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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O SATANICO DR. NO
O SATANICO DR. NO

 

                                                                                                                                              

 

 

 

 

 

XVI - HORAS DE AGONIA


Uma voz, por trás de Bond, disse serenamente: — O jantar está servido.

Bond voltou-se para trás. O anunciante fora o guarda-costas, que tinha a seu lado outro homem que bem poderia ser seu irmão gêmeo. Ali ficaram eles, duas barricas de musculatura, com as mãos mergulhadas nas mangas dos quimonos, olhando, por cima da cabeça de Bond, para o Dr. No.

— Ah, já nove horas. — O Dr. No levantou-se lentamente e disse: — Vamos. Podemos continuar a nossa conversação em ambiente mais íntimo. Foi muita bondade dos senhores terem ouvido a minha história com paciência tão exemplar. Espero que a modéstia de minha cozinha e de minha adega não representem mais uma imposição.

Portas duplas tinham sido conservadas abertas por trás dos dois homens de jaquetas brancas. Bond e a jovem atravessaram-nas seguindo o Dr. No, indo ter a uma sala octogonal, com as paredes recobertas de painéis de mogno, e ao centro um candelabro de prata, sob o qual estava posta uma mesa para três pessoas. O tapete simples, azul-escuro, era luxuosamente espesso. O Dr. No tomou a cadeira central, de espaldar alto, e indicou cortesmente, com uma inclinação, a cadeira à sua direita para a jovem. Sentaram-se e abriram guardanapos de seda branca.

A cerimônia vazia e a encantadora sala deixavam Bond louco. Ansiava por despedaçar tudo aquilo com as próprias mãos, por passar o seu guardanapo de seda à volta do pescoço do Dr. No e apertá-lo até que aquelas lentes de contato saltassem daqueles malditos olhos negros.

Os dois guardas usavam luvas de algodão branco. Serviram as iguarias com suave eficiência que era instigada por uma ocasional palavra chinesa proferida pelo Dr. No.

A princípio o Dr. No parecia preocupado. Lentamente, ingeriu três taças de diferentes sopas, utilizando-se de uma colher dotada de um cabo curto e que se adaptava perfeitamente entre as pinças de sua mão mecânica. Bond esforçou-se por esconder os seus temores da jovem. Sentou-se afetando uma atitude de relaxamento e comeu e bebeu com forçado apetite. Falou ainda animadamente com a jovem sobre Jamaica — sobre aves e animais, assim como fores, que constituíam fáceis assuntos de conversação para Honeychile. De vez em quando os seus pés tocavam nos dela, sob a mesa. Ela quase chegou a ficar alegre. Bond pensou que ambos estavam fazendo uma bela imitação de namorados comprometidos, que estivessem saboreando um jantar oferecido por um tio detestável.

Bond não tinha a mínima idéia sobre se o seu fraco blefe tinha surtido algum efeito. Assim, não deu grande importância às suas possibilidades. O Dr. No, assim como a sua história, eram perfeitamente impenetráveis. A incrível biografa parecia verdadeira. Nem uma só palavra daquele relato era impossível. Talvez houvesse outras pessoas no mundo com os seus reinos particulares — reinos afastados dos caminhos trilhados por homens comuns, sem testemunhas, onde pudessem fazer o que bem entendessem. E que estaria planejando fazer o Dr. No, depois que tivesse esmagado as moscas que tinham vindo incomodá-lo? E se eles fossem mortos — e quando o fossem — Londres conseguiria recolher os fios que ele, Bond, tinha recolhido? Provavelmente conseguiria. Lá estava Pleydell-Smith, e as provas das frutas envenenadas. Mas até onde a substituição de Bond iria afetar o Dr. No? Não muito. O Dr. No daria de ombros ao desaparecimento de Bond e Quarrel. Nunca teria ouvido falar deles. E não haveria qualquer elo com a jovem. Em Porto Morgan, todos pensariam que ela se tinha afogado em suas expedições. Era difícil saber o que poderia interferir com o Dr. No — com o segundo capítulo de sua vida, qualquer que ele fosse.

Sob aquela conversa com a jovem, Bond foi-se preparando para o pior. Ao lado de seu prato havia algumas facas. Então chegaram as costeletas, perfeitamente cozidas, e Bond tocou em várias facas, hesitante, até que escolheu a do pão para cortá-las. Enquanto comia e conversava foi deslocando a grande lâmina de aço para perto do corpo. Um gesto largo da mão direita derrubou o seu copo de champanha e, numa fração de segundo, enquanto o copo se partia, sua mão esquerda enfiou a lâmina para dentro da manga do quimono. Em meio às suas desculpas, e à confusão que se seguiu, enquanto os guardas enxugavam a champanha derramada na mesa, Bond levantou o braço esquerdo e sentiu que a faca deslizava para baixo do braço e depois caía para dentro do quimono, ficando encostada às suas costelas. Quando acabou de comer as costeletas, apertou o cinto de seda, à volta da cintura, ao mesmo tempo que deslocava a faca para diante da barriga. A faca aninhou-se. confortàvelmente contra a sua pele e em pouco tempo o aço da lâmina foi-se tornando aquecido.

Por fim veio o café e a refeição foi dada por terminada. Os dois guardas se aproximaram e postaram-se por trás das cadeiras da jovem e de Bond. Tinham os braços cruzados sobre o peito, impassíveis, sem nenhum movimento, como carrascos.

O Dr. No pousou delicadamente a sua xícara no pires e descansou as duas pinças de aço sobre a mesa. Depois se endireitou um pouco na cadeira e virou o corpo, apenas uma polegada, em direção de Bond. Agora não havia o mínimo sinal de preocupação em seu rosto. Os olhos eram duros e diretos. A boca fina contraiu-se e abriu-se: — Apreciou o jantar, sr. Bond?

Bond apanhou um cigarro numa caixa de prata que estava à frente e acendeu-o. Depois, pôs-se a brincar com o isqueiro de prata que estava sobre a mesa. Sentia que más noticias iriam chegar. Pensou que deveria meter aquele isqueiro no bolso, de qualquer maneira. O fogo talvez viesse a ser mais uma arma. Respondeu com facilidade: — Sim, estava excelente. — Em seguida olhou para Honeychile. Curvou-se sobre a mesa e descansou os braços sobre ela, e logo cruzou-os, envolvendo o isqueiro com esta manobra. Sorriu para ela: — Espero ter pedido o que você gosta.

— Oh, sim, estava magnífico. — Para ela a recepção ainda estava continuando.

Bond fumava afanosamente, agitando mãos e braços, a fim de criar uma atmosfera de movimento. Voltou-se para o Dr. No, apagou o toco de seu cigarro e reclinou-se na cadeira. Cruzou os braços sobre o peito. O isqueiro já estava sob o seu sovaco esquerdo. Riu animadamente:

— E o que acontecerá agora, Dr. No?

— Podemos continuar com a nossa distração de após-jantar, sr. Bond. O leve sorriso contraiu-se e desapareceu.

— Examinei a sua proposta sob todos os aspectos. Não a aceito.

Bond deu de ombros e observou: — O senhor não é sensato.

— Não, sr. Bond. Receio que a sua proposta não passe de uma isca dourada. Em sua profissão não se atua como o senhor quer sugerir. Os agentes enviam relatórios rotineiros para o quartel-general. Mantêm seus chefes a par dos progressos das investigações que fazem. Conheço essas coisas. Os agentes secretos não se comportam como o senhor sugeriu ter agido. O senhor esteve lendo muitas novelas de aventuras, e o seu pequeno discurso mostrou com muita facilidade o papelão pintado. Não, sr. Bond, não aceito a sua história. Se ela for verdadeira, estou preparado para enfrentar as conseqüências. Tenho muita coisa em jogo para ser facilmente desviado de meu caminho. Que venham a polícia e os soldados. Onde estão o homem e a jovem? Que homem e que jovem? Não sei de nada. Por favor, retirem-se, os senhores estão prejudicando a minha guaneira. Onde estão as suas provas, o seu mandado de prisão? A lei inglesa é rigorosa, meus senhores. Voltem para casa e deixem-me em paz com os meus queridos corvos marinhos. Está vendo, sr. Bond? E digamos mesmo que o pior redunde em pior. Que um de meus agentes fale, o que é altamente improvável. (Bond lembrou-se da fortaleza da srta. Chung). Que tenho eu a perder? Mais duas mortes no libelo acusatório. Mas, sr. Bond, um homem só pode ser enforcado uma vez: — A elevada cabeça, em forma de pêra, agitava-se suavemente, de um lado para outro. — O senhor tem mais alguma coisa a dizer? Alguma pergunta? Ambos irão ter uma noite muito ocupada e o tempo de que dispõem está-se tornando escasso. Quanto a mim, devo ir dormir. O navio que chega mensalmente deverá atracar amanhã e eu terei que supervisionar o carregamento. Passarei todo o dia no cais. Certo, sr. Bond?

Bond olhou para Honeychile. Ela estava mortalmente pálida. Olhava com olhar esgazeado, esperando pelo milagre que ele deveria operar. Bond olhou para as próprias mãos e examinou cuidadosamente as unhas. Depois, disse, para ganhar tempo: — E então, após seu dia ocupado com o carregamento, o que virá em seu programa? Qual o novo capítulo que o senhor pensa escrever?

Bond não levantou o olhar. A profunda e serena voz autoritária caiu sobre ele como se tivesse vindo do céu escuro.

— Ah, sim, o senhor deve ter estado a pensar nisso.

O senhor tem o hábito da investigação. Os hábitos persistem até o fim, até as sombras. Admiro tais qualidades num homem que tem apenas algumas horas mais para viver. Por isso, dir-lhe-ei. Encetarei um novo capítulo, e isso o consolará. Há muito mais nesta ilha do que uma simples guaneira. O seu instinto não o enganou, sr. Bond.

O Dr. No fez uma pausa para dar mais ênfase ao que iria dizer e continuou: — Esta ilha, sr. Bond, está em vésperas de se transformar num dos mais valiosos centros de informação técnica do mundo.

— De fato? — Bond mantinha os olhos fixos em suas mãos.

— Sem dúvida que o senhor não ignora que Turks Island, a trezentas milhas, de distância daqui, através de Windward Passage, constitui o mais importante centro para a experimentação de projéteis teleguiados dos Estados Unidos?

— Sim, é um importante centro de experiências.

— Talvez o senhor tenha lido sobre os foguetes que recentemente se desviaram de sua rota? O “Snark” de múltiplas fases, por exemplo, que terminou o seu vôo nas florestas do Brasil, ao invés de ir perder-se nas profundezas do Atlântico Sul?

— Sim.

— O senhor se lembrará que ele se recusou a obedecer as instruções que lhe foram enviadas por rádio, no sentido de modificar a sua rota, e até mesmo de se destruir a si mesmo. Ele desenvolvera uma vontade própria.

— Lembro-me.

— Houve outras falhas, falhas decisivas, na longa lista dos protótipos — o Zuni, o Matador, o Petrel, o Regulus, o Bomarc — tantos nomes, outras tantas modificações, nem posso lembrar-me deles todos. Bem, sr. Bond, — o Dr. No mal podia esconder uma nota de orgulho em sua voz — talvez lhe interesse saber que a maioria desses fracassos foi causada de Crab Key.

— É verdade?

— Não me acredita? Não tem importância. Outros acreditam-no. Outros que viram o abandono de toda uma série, o Mastodonte, em virtude de seus freqüentes erros de navegação, sua incapacidade de obedecer às ordens enviadas pelo rádio, de Turks Island. Esses outros são os russos. Os russos são meus sócios nesta empreitada. Treinaram seis dos meus homens, sr. Bond. Exatamente neste momento tenho dois desses homens observando, estudando as freqüências de rádio, as faixas nas quais trabalham esses engenhos. Há um milhão de dólares de instalações, nas galerias rochosas, acima de nossas cabeças, sr. Bond, enviando sinais para a camada de Heavyside, aguardando os sinais, perturbando-os, contrabalançando faixas com outras faixas. E, de vez em quando, um foguete sobe em seu itinerário e aprofunda-se cem, quinhentas milhas, pelo Atlântico, enquanto nós anotamos cuidadosamente a sua trajetória, com a mesma perfeição com que isto é feito na Sala de Operações de Turks Island. Em seguida, subitamente, as nossas pulsações são enviadas ao foguete, o seu cérebro é perturbado, ele enlouquece e mergulha no mar, destruindo-se. Foi mais uma experiência que fracassou. Os operários levam a culpa, assim como os projetistas e os fabricantes. Há pânico no Pentágono. Outra coisa deve ser tentada, freqüências diversas, metais diversos, um cérebro eletrônico diferente. Naturalmente que também temos as nossas dificuldades. Assim é que assinalamos muitos disparos experimentais sem sermos capazes de chegar até o cérebro do novo engenho. Então, comunicamo-nos urgentemente com Moscou. Com efeito, eles deram-nos até uma máquina de cifras com as nossas freqüências e rotinas. E os russos continuam pensando, fazem sugestões, e nós as experimentamos. Por fim, sr. Bond, um belo dia, é como se atraíssemos a atenção de um homem perdido numa multidão. Lá no alto, na estratosfera, o foguete reconhece o nosso sinal. Somos reconhecidos e podemos falar com ele e modificar os seus pensamentos. — O Dr. No fez uma pausa e depois continuou: — O senhor não acha isso interessante, esta variante de meus negócios com o guano? Asseguro-lhe que é um negócio muito lucrativo, e podia sê-lo ainda mais. Talvez a China comunista venha a pagar mais pelos meus serviços. Quem sabe? Já tenho os meus agentes em campo, para sondagens.

Bond ergueu os olhos, olhando pensativamente para o Dr. No. Então ele tinha tido razão. Havia mesmo mais alguma coisa, muito mais, em tudo aquilo que os seus olhos tinham visto. Aquilo era uma grande partida, uma partida que explicava tudo, uma partida que no mercado internacional da espionagem bem valia a pena ser jogada. Bem, bem! Agora, as peças do quebra-cabeças tinham caído corretamente em seus lugares. Para isso tinha valido a pena, certamente, assustar alguns pássaros e eliminar algumas pessoas. Isolamento? Naturalmente que o Dr. No teria que matar a ele e à jovem. Poder? Sim, isso era poder. O Dr. No se tinha realmente lançado nos negócios.

Bond fixou os dois orifícios negros com um novo respeito, e observou: — O senhor terá que matar muito mais gente para manter isto em suas mãos, Dr. No. Isto vale muito dinheiro. O senhor tem aqui uma bela propriedade, superior ao que eu pensava, e as pessoas hão-de querer um pedaço deste bolo. Penso em quem será o primeiro a chegar até o senhor e matá-lo. Serão aqueles homens que estão lá em cima, treinados por Moscou? — e ele fez um gesto apontando para o teto. Depois continuou: — Eles são os técnicos. Eu me pergunto: o que Moscou estará lhes ordenando que façam? O senhor não poderia estar a par disso, poderia?

O Dr. No respondeu: — Vejo que continua subestimando meu valor, sr. Bond. O senhor é um homem obstinado e mais estúpido do que pensava. É claro que estou consciente dessas possibilidades. Separei um desses homens e transformei-o numa espécie de vigilante particular. Ele tem uma duplicata das cifras e da máquina. Vive em outra parte da montanha. Os outros pensam que ele morreu, mas ele está bem vivo a fiscalizar a cronometragem de rotina, e entrega-me diariamente uma cópia do tráfego que é registrado. Até agora os sinais emitidos por Moscou têm sido inocentes e não indicam qualquer conspiração. Penso em tudo isso constantemente, sr. Bond. Tomo precauções e ainda as multiplicarei para o futuro. Como disse, o senhor me tem subestimado.

— Não o subestimo, Dr. No. O senhor é um homem muito prudente, mas já há muitas pastas sobre o senhor. Em minha linha de atividades, a mesma coisa se aplica a mim, mas as suas pastas são muito perigosas. A chinesa, por exemplo. Não gostaria de ter uma com essa gente. A da FBI deve ser a menos penosa — roubo e falsa identidade. Mas o senhor conhece os russos tão bem quanto eu? Por enquanto o senhor é “o melhor amigo” deles. Mas os russos não têm sócios. Hão-de querer comprá-lo... — comprá-lo com um balaço. Depois vem a pasta que o senhor abriu com o meu serviço. O senhor quererá mesmo fazê-la mais volumosa? Eu não o faria se estivesse em seu lugar, Dr. No. O pessoal do meu serviço é muito obstinado. Se alguma coisa me acontecer e à jovem, o senhor verificará que Crab Key é uma ilha muito pequena e insignificante.

— Não se pode jogar grandes partidas sem assumir riscos, senhor Bond. Aceito os perigos e, até onde posso, procuro defender-me deles. Como vê — e a sua voz tinha um acento de cupidez — estou em vésperas de coisas muito maiores. O capítulo dois, ao qual já me referi, encerra promessa de prêmios que ninguém, a não ser um tolo, jogaria fora por ter medo. Já lhe disse que posso desviar os raios magnéticos por onde viajam os foguetes. Posso fazer com que estes mudem de rota e não obedeçam ao controle eletrônico. Que diria o senhor, se eu fosse ainda mais longe? Se eu os fizesse cair nesta ilha, a fim de recolher todos os segredos de sua construção? Atualmente, destróieres norte-americanos, nos confins do Atlântico Sul, recolhem esses foguetes quando eles esgotam o seu combustível e caem de pára-quedas sobre o mar. Algumas vezes os pára-quedas deixam de se abrir, e algumas vezes as instalações de autodestruição deixam de operar.

Ninguém em Turks Island se sentiria surpreendido se de vez em quando o protótipo de uma nova série saísse de sua trajetória e caísse perto de Crab Key. Antes de mais nada, isto seria atribuído a falhas mecânicas. Mais tarde talvez descobrissem que outros sinais, que não os seus, tinham estado a guiar os seus foguetes. Teria início, então uma guerra de freqüência. Tentariam e conseguiriam localizar a origem dos sinais falsos, mas assim que eu verificasse que eles estavam à minha caça, teria uma derradeira cartada. Os seus foguetes enlouqueceriam. Cairiam em Havana, em Kingston; dariam uma volta e despencariam sobre Miami. Mesmo sem as cargas detonantes, Sr. Bond, cinco toneladas de metal, chocando-se a mil milhas por hora, podem causar terríveis danos numa cidade super-povoada. E depois? Haveria pânico, haveria um clamor público. As experiências teriam de ser interrompidas. A base de Turks Island teria que fechar. E quanto não pagariam os russos para que isso acontecesse, sr. Bond? E quanto por protótipo que eu capturasse para eles? Digamos dez milhões de dólares por toda a operação? Vinte milhões? Seria uma vitória sem preço na corrida dos armamentos. Posso fazer o meu preço, não concorda, sr. Bond? E não concorda também que essas considerações tornam os seus argumentos e ameaças engraçadíssimos?

Bond não respondeu. Nada havia a dizer. Subitamente se viu em pensamento naquela sala tranqüila de Regents Park. Podia ouvir a chuva batendo suavemente contra a janela e a voz de M, impaciente e sarcástica, dizendo: “Oh, algum maldito negócio em torno de aves... umas férias ao sol lhe farão bem... investigações rotineiras.” E ele, Bond, tinha apanhado uma canoa, um caniço e um farnel de piquenique e partira — há quantos dias, há quantas semanas? — “para dar uma espiada”. Bem, ele tinha dado uma espiada na caixa de Pandora. E tinha tido as respostas, conhecera os segredos — e agora? Agora iriam mostrar-lhe polidamente o caminho para a sepultura, para onde ele levaria consigo o seus segredos arrancados e arrastados por ele em sua lunática aventura. Toda a amargura que lhe ia no íntimo aforou à boca, de modo que por um momento pensou que ia vomitar. Apanhou o copo e esvaziou todo o resto de champanha que nele havia. Depois disse asperamente: — Muito bem, Dr. No. Agora vamos ao cabaré. Qual é o programa — faca, bala, veneno, corda? Mas proceda rapidamente, já o vi bastante.

Os lábios do Dr. No se apertaram numa fina linha arroxeada. Os olhos eram duros como ônix, sob a bola de bilhar de sua fronte e crânio. A máscara de polidez tinha desaparecido. O Grande Inquisidor sentava-se na cadeira de alto espaldar. Tinha soado a hora para a “peine forte et dure”.

O Dr. No proferiu uma palavra e os dois guardas avançaram um passo e agarraram as suas vitimas pelos braços, acima dos cotovelos, mantendo-as imobilizadas para trás, apoiadas nos lados das cadeiras. Não houve resistência. Bond concentrou-se em manter o isqueiro sob o sovaco. As luvas brancas em seus bíceps pareciam faixas de aço. Sorriu para a jovem. — Desculpe-me por isso, Honey, — disse. — Receio que afinal de contas não possamos mais brincar juntos.

Os olhos da jovem, em seu rosto pálido, tinham ficado azul-escuros, pelo medo. Seus lábios tremiam, e ela perguntou: — Doerá muito?

— Silencio! — A voz do Dr. No soou como o estalar de um chicote. — Chega de tolices. Naturalmente que doerá. Estou interessado na dor. E estou igualmente interessado em descobrir quanto de dor o corpo humano pode suportar. De vez em quando faço experiências com os meus subordinados que devem ser punidos, e em intrusos como os senhores. Acarretaram-me os senhores grandes dificuldades. Em troca, pretendo causar-lhes uma grande soma de dor. Registrarei os níveis de suas resistências. Os fatos serão anotados, e um dia as minhas pesquisas serão relatadas ao mundo. As suas mortes terão servido à Ciência. Nunca desperdiço material humano. As experiências feitas pelos alemães com seres humanos vivos, durante a guerra, foram de grande proveito para a Ciência. Faz um ano que pus uma mulher para morrer da maneira que escolhi para a senhora. Ela era uma negra e durou três horas, mas morreu de terror. Queria agora fazer a experiência com uma mulher branca, para poder estabelecer uma comparação. Não me surpreendi quando a sua chegada me foi comunicada. Consigo sempre o que quero. — O Dr. No reclinou-se para trás na cadeira. Seus olhos estavam agora fixos na jovem, estudando-lhe as reações. Honeychile correspondia ao olhar, como que meio hipnotizada, como um rato do mato diante de uma cascavel.

Bond apertou os dentes.

— A senhora é uma jamaicana, por isso saberá o que quero dizer. Esta ilha chama-se Crab Key. Recebeu este nome porque está infestada de caranguejos — o que chamam em Jamaica “caranguejos negros”. A senhora os conhece. Pesam meio quilo, cada um, e têm o tamanho de um pires. Nesta época do ano eles saem aos milhares de seus esconderijos, próximos à costa, e sobem em direção à montanha. Lá, nos planaltos de coral, eles se alojam novamente em buracos da rocha, onde desovam. Avançam em exércitos de centenas, de cada vez. Atravessam tudo e sobre tudo. Em Jamaica eles invadem as casas e não se desviam de seu caminho. São como certos roedores da Noruega. É uma migração irresistível. — O Dr. No fez uma pausa. Em seguida acrescentou suavemente: — Mas há uma diferença. Os caranguejos devoram o que encontram em seu caminho. E agora, minha senhora, eles já estão em marcha. Estão galgando as faldas da montanha, às dezenas de milhares, em ondas negras e vermelho-laranja. Estão, neste momento, se apressando e se empurrando e arranhando a rocha acima de nós. E esta noite, no meio do seu caminho, eles vão encontrar o corpo nu de uma mulher sòlidamente preso — um banquete preparado para eles — e vão apalpar o corpo morno com suas pinças, e um deles dará o primeiro corte com suas garras de combate e então... e então...

A moça gemeu. Sua cabeça caiu para a frente sobre o peito. Desmaiara. O corpo de Bond inteiriçou-se na cadeira. Uma torrente de palavras obscenas escapou por entre seus dentes cerrados. As manoplas dos guardas pareciam-lhe ferro à volta dos braços. Nem sequer podia fazer deslizar os pés da cadeira no chão. Depois de um momento de luta, desistiu. Esperou que sua voz se acalmasse, e disse então, com todo o veneno que podia instilar nas palavras:

— Seu bastardo! Você há-de frigir no inferno se fizer isso!

O Dr. No sorriu fracamente.

— Senhor Bond, não acredito na existência do inferno. Procure consolar-se. Talvez eles comecem pela garganta ou pelo coração. O bater do pulso ainda os poderá atrair. Depois disso, tudo acabará depressa.

Proferiu então uma sentença em chinês. O guarda que estava atrás da cadeira da moça inclinou-se para a frente, levantou-a da cadeira como se fora uma criança e atirou-a por cima do ombro. Os belos cabelos caíam qual cascata de ouro entre os braços inertes. O guarda foi à porta, abriu-a e saiu, formando a fechá-la sem ruído.

Por um momento, reinou, silêncio na sala. Bond pensava somente na faca encostada ao seu ventre e no isqueiro debaixo da axila. Qual a extensão dos estragos que ele poderia causar com aqueles dois pedaços de metal? Poderia, de algum modo, aproximar-se do Dr. No?

O Dr. No continuou serenamente: — O senhor disse que o poder era uma ilusão, sr. Bond. Não modifica a sua opinião? O meu poder de escolher a morte que quiser para essa jovem certamente que não é uma ilusão. Todavia, passemos ao método de sua morte. Isso também encerra aspectos novos. Saiba, sr. Bond, que estou interessado na anatomia da coragem — do poder de resistência do corpo humano. Mas como medir a resistência humana? Como traçar um gráfico da vontade de sobrevivência, da tolerância à dor, da conquista do medo? Pensei muito nesse problema e acredito tê-lo solucionado. Trata-se, por enquanto, de um método incompleto e grosseiro, mas que será aperfeiçoado na medida em que as experiências se forem multiplicando. Preparei o senhor para essa experiência. Dei-lhe um sedativo, de modo que o seu corpo esteja descansado, e alimentei-o bem, de modo que possa estar no gozo completo de suas forças. Os futuros — como os chamarei — pacientes, terão as mesmas vantagens. Todos começarão nas mesmas condições. Depois disso, o restante será uma questão de coragem e do poder de resistência individuais.

O Dr. No fez uma pausa, enquanto observava o rosto de Bond. Depois prosseguiu: — Saiba ainda, sr. Bond, que justamente agora acabo de construir uma espécie de pista de obstáculos, uma espécie de pista de corrida contra a morte. Não direi mais sobre isso porque o elemento surpresa é um dos que aparecem na formação do medo. Os perigos desconhecidos são os piores, os que mais pressionam as reservas de coragem. E me alegro com a idéia de que a corrida de obstáculos que o senhor enfrentará contém um rico sortimento de coisas inesperadas. Será particularmente interessante sr. Bond, que um homem com as suas qualidades físicas seja o meu primeiro competidor. Será interessantíssimo ver até onde o senhor conseguirá alcançar, na pista que idealizei. Não há dúvida de que o senhor estabelecerá uma marca invejável para os futuros corredores. Tenho grandes esperanças no senhor. O senhor deverá ir muito longe, mas quando tombar, inevitavelmente, diante de um obstáculo, seu corpo será recolhido e eu examinarei meticulosamente os seus restos. Os dados assim colhidos serão registrados e o senhor representará o primeiro ponto de um gráfico. Algo honroso, não é, senhor Bond?

Bond nada respondeu. Que diabo significaria tudo aquilo? Em que poderia consistir aquela prova? Seria possível escapar dela com vida? Poderia escapar disso e salvar Honeychile antes que fosse demasiado tarde, ainda que para matá-la e assim salvá-la da tortura? Silenciosamente, Bond ia reunindo suas reservas de coragem, retemperando a mente contra o temor do desconhecido que já começava a envolver a sua garganta, e focalizando a sua vontade no alvo da sobrevivência. Acima de tudo, deveria apegar-se às suas armas.

O Dr. No levantou-se e afastou-se da cadeira. Caminhou vagarosamente até a porta e voltou-se. Seus olhos negros e ameaçadores fixavam Bond, pouco abaixo da armação da porta. A cabeça estava ligeiramente inclinada e os lábios finos tornaram a se mexer: — Faça uma boa corrida para mim, sr. Bond. Meus pensamentos, como se costuma dizer, o acompanharão.

O Dr. No afastou-se e a porta fechou-se suavemente por trás de seus costados amarelos.


XVII - O PROLONGADO GRITO


Havia um homem no elevador, cujas portas estavam abertas, à espera. James Bond, com os braços ainda torcidos, junto aos flancos, foi impelido para dentro do elevador. Agora, a sala de jantar estava vazia. Quando voltariam os guardas para desembaraçar a mesa e então notar o desaparecimento dos objetos subtraídos? As portas fecharam-se e o cabineiro ficou diante dos botões, de modo que Bond não pôde ver qual deles teria sido apertado. Sabia apenas que estavam, subindo, e tentou fazer um cálculo da distância percorrida. O elevador parou, e Bond teve a impressão de que o tempo gasto naquele percurso fora menor do que quando descera juntamente com Honeychile. As portas abriram-se para um corredor sem tapete, com uma pintura cinzenta e rústica nas paredes de granito. Esse corredor ia numa linha reta até uma distância de vinte metros.

— Espere aí — disse o guarda de Bond para o cabineiro — voltarei logo.

Bond foi conduzido ao longo do corredor, passando diante de portas marcadas com letras do alfabeto. Ouvia-se um leve zunido de maquinaria no ar, e, por trás de uma porta, Bond teve a impressão de ouvir descargas estáticas de equipamento eletrônico. Aquilo parecia vir da sala de máquinas, no coração da montanha. Logo chegaram à porta da extremidade do corredor que estava marcada com um Q negro. Ela estava entreaberta, de modo que logo se escancarou quando Bond foi empurrado através dela. Por trás daquela porta estava uma cela pintada de cinzento, com cerca de quinze pés quadrados. Nela nada havia, a não ser uma cadeira de madeira, sobre a qual estavam, lavadas e cuidadosamente dobradas, as calças pretas de Bond e a sua camisa azul.

O guarda soltou os braços de Bond, que logo se voltou e olhou para o rosto amarelo, sob os cabelos ondeados. Havia um leve sinal de curiosidade e prazer nos olhos marrons e úmidos. O homem estava de pé, segurando a maçaneta da porta. — Bem, aqui estamos, rapaz. Você está no ponto de partida. Poderá ficar aí sentado, apodrecendo, ou procurar uma saída e iniciar a corrida. Felicidades para você.

Bond pensou que valeria a pena tentá-lo. Deu ainda uma olhadela para além do guarda, onde o cabineiro ainda se conservava ao lado de suas portas abertas, observando-os.

Então disse suavemente: — Você não gostaria de ganhar dez mil dólares, garantidos, e uma passagem para qualquer lugar do mundo que desejasse? — Dito isso, observou cuidadosamente as reações do homem. A boca se abriu numa ampla careta, mostrando dentes escurecidos, desigualmente gastos pelos anos de mascagem de cana-de-açúcar.

— Muito obrigado, senhor. Prefiro continuar vivendo. — O homem fez menção de fechar a porta e Bond ainda gritou ansiosamente: — Podemos sair juntos daqui.

Os grossos lábios fizeram uma careta de desprezo, e o homem apenas disse: “Vá em frente!” E logo a porta se fechou com um duro estalido.

Bond deu de ombros, mas logo passou a examinar a porta. Era feita de metal e não havia maçaneta do lado de dentro. Bond preferiu não experimentar o ombro de encontro àquela barreira. Aproximou-se da cadeira, sentou-se sobre a pilha de suas roupas limpas, e olhou à volta da cela. As paredes eram inteiramente nuas, com exceção de uma grade para ventilação, feita de arame grosso, num dos cantos, logo abaixo do teto. Aquela abertura era maior que os seus ombros. Era, evidentemente, a entrada para a pista dos obstáculos. A única abertura restante, naquele recinto, era uma espécie de vigia de espesso vidro, logo acima da porta, e que não seria maior do que a cabeça de Bond. A luz, vinda do corredor, atravessava aquela grade e penetrava na cela. Nada mais havia. Não seria inteligente perder tempo. Seriam dez e meia. Lá fora, em alguma parte da falda da montanha, a jovem já deveria estar deitada, estendida sobre o chão, à espera do matraquear das pinças no coral cinzento. Bond apertou os dentes ao pensamento daquele corpo frágil e indefeso sob as estrelas. Bruscamente, pôs-se de pé. Que diabo estava ele fazendo ali sentado? O que quer que existisse do outro lado da grade deveria ser imediatamente enfrentado.

Bond apanhou a faca e o isqueiro, e tirou o quimono. Em seguida vestiu as calças e a camisa, enfiando o isqueiro no bolso. Experimentou o corte da faca com o polegar, e verificou que a lamina era bastante afiada. Seria ainda melhor se pudesse fazer uma ponta naquela lâmina. Ajoelhou-se no chão e começou a esfregar a extremidade arredondada da faca na laje do pavimento. Depois de um precioso quarto de hora, deu-se por satisfeito. Não era um estilete, mas que tanto serviria para cortar como para espetar. Colocou-a então entre os dentes e arrastou a cadeira para baixo da abertura gradeada. A grade? Supondo que pudesse arrancá-la pela base, aquele arame bem poderia ser esticado, de modo a formar uma lança, facultando-lhe assim uma terceira arma. Bond esticou os braços, com os dedos encurvados.

A coisa imediata de que tomou consciência foi uma dor de queimadura ao longo do braço e o choque de sua cabeça, ao atingir o chão de pedra. Ficou durante algum tempo estendido no solo, apenas com a lembrança de uma faísca azulada e o estalido e o chiado seco de eletricidade.

Depois de algum tempo, Bond pôs-se de joelhos e assim ficou por um momento. Em seguida baixou a cabeça e sacudiu-a lentamente de um lado para outro, como um animal ferido. Sentiu um leve odor de carne queimada. Levantou a mão direita à altura dos olhos e viu a mancha vermelha de uma queimadura aberta ao longo da parte interna dos dedos. A visão daquele ferimento trouxe-lhe também a consciência da dor. Bond proferiu uma imprecação. Vagarosamente pôs-se de pé. Dessa vez, olhou de soslaio, cautelosamente, para a grade, como se ela fosse feri-lo novamente. Irritado, encostou a cadeira na parede, apanhou a faca e com ela cortou uma faixa do quimono, envolvendo-a firmemente nos dedos. Em seguida tornou a subir na cadeira e olhou para a grade. Esperava-se que ele a atravessasse, e aquele choque tinha sido calculado apenas para amolecê-lo: era uma amostra do que estaria por vir. Com certeza o curto-circuito causado por ele já tinha posto fora de combate aquela armadilha. Olhou para a grade apenas por um instante, e já os dedos de sua mão esquerda a atingiam e atravessavam. Do outro lado não havia nada. Seria mesmo só aquela grade? Puxou a armação e ela cedeu uma polegada. Fez novo esforço e a grade foi arrancada do lugar, ficando pendurada por dois fios de cobre que desapareciam no interior da parede. Bond soltou a grade das pontas daqueles fios e desceu da cadeira. Havia um ponto de junção no arame de ferro, naquela grade, e Bond pôs-se a retificá-la, usando a cadeira como martelo.

Depois de dez minutos tinha à sua disposição um chuço recurvado de cerca de um metro de comprimento. Uma des extremidades, que tinha sido originalmente cortada por alicates, apresentava-se lacerada. Não atravessaria as roupas de um homem, mas teria efeito devastador no pescoço ou no rosto. Lançando mão de toda sua força e servindo-se da fresta inferior da porta metálica, Bond conseguiu fazer ainda um gancho com a extremidade rombuda daquele arame de ferro. Em seguida mediu-o com a perna e achou que aquela nova arma era demasiado longa. Em conseqüência, dobrou-a em dois e enfiou-a numa das pernas da calça. Agora, o chuço ia de sua cintura, onde fora pendurado, até o joelho. Voltou então para a cadeira e tornou a subir até a boca do ventilador, agora desobstruída. Não experimentou mais choque. Ergueu o corpo e introduziu-o naquele tubo que tinha mais quatro polegadas que a largura de seus ombros. Durante algum tempo deixou-se ficar, de barriga para baixo, a olhar para o interior da abertura. O túnel era circular e de metal polido. Bond apanhou o isqueiro, abençoando a inspiração que o fizera roubá-lo, e acionou-o. Sim, aquilo era folha de zinco que parecia nova. O túnel continuava em linha reta, sem qualquer característica especial, a não ser as costuras de junção das várias seções tubulares. Bond tornou a meter o isqueiro no bolso e foi-se arrastando para a frente.

Aquele deslizamento não foi difícil, e até mesmo uma brisa fresca, proveniente do sistema de ventilação, afagava o rosto de Bond. O ar não trazia nenhum cheiro de mar, sendo o seu odor o mesmo que caracteriza o ar de uma instalação de condicionamento de temperatura. O Dr. No devia ter lançado mão de um dos tubos do sistema para as suas experiências. Mas que armadilhas teria introduzido naquele tubo, a fim de pôr à prova as suas vítimas? Deviam ser engenhosas e dolorosíssimas — imaginadas para reduzir a resistência de suas vítimas. No final dos obstáculos, com certeza, a vítima seria surpreendida com o golpe de misericórdia — se é que lograsse chegar ao fim. Com efeito, haveria ali algo que não admitisse escapatória, pois nessa corrida não haveria prêmios, mas apenas padecimentos. A não ser, naturalmente, que o Dr. No tivesse subestimado a vontade de sobrevivência de seu desafeto. Essa, pensou Bond, era a sua única esperança — tentar vencer todos os obstáculos que se lhe deparassem, rompendo pelo menos até a última estacada.

Havia uma pálida luminosidade à sua frente. Bond foi-se arrastando cautelosamente, com todos os seus sentidos atuando como antenas. Aquela luminosidade foi-se tornando mais clara. Era o reflexo da luz que incidia sobre um dos lados da extremidade do tubo. Continuou avançando até que sua cabeça tocou naquela extremidade. Aí, Bond se torceu sobre as costas e olhou para cima. Sobre sua cabeça estava uma chaminé de cerca de cinqüenta metros de altura, em cujo topo havia uma claridade estável. Era como se alguém olhasse através de um comprido cano de canhão. Bond enfiou a cabeça por aquela chaminé e pôs-se de pé. Então, esperava-se que ele galgasse aquele tubo liso, sem qualquer apoio para os pés! Seria possível? Bond expandiu os ombros. Sim, eles lhe proporcionariam uma boa adesão às paredes laterais. Seus pés também o ajudariam na empreitada, embora escorregassem terrivelmente, a não ser nas orlas em que se soldavam os tubos. Bond deu de ombros e tirou os sapatos. Não adiantava monologar. Teria apenas que tentar.

Seis polegadas de cada vez, e o corpo de Bond começou a deslizar pela chaminé acima. A operação consistia em expandir os ombros para se fixar à chaminé, depois levantar os pés, unir os joelhos fortemente, e forçar os pés para fora, em direções opostas, contra o metal, e rapidamente contrair e expandir os ombros novamente, ao mesmo tempo que os pés escorregavam para baixo, deixando, entretanto, como saldo uma pequena progressão de algumas polegadas. E continuar repetindo, repetindo e repetindo a operação, até que os seus olhos fossem banhados pela luz que vira no topo da chaminé. De quando em quando pararia na saliência da solda dos tubos, a fim de descansar um pouco, recuperar o fôlego e medir o próximo avanço. E não havia que olhar para cima; apenas concentrar-se nas polegadas de metal que deveriam ser vencidas, uma a uma. Nada de preocupações com a luminosidade que pareceria nunca aumentar ou se aproximar. Também não deveria preocupar-se com a possibilidade de afrouxar a pressão dos ombros contra as paredes metálicas, indo esmagar os tornozelos no fundo da chaminé. E nenhuma preocupação com cãibras, com o inchaço dos ombros ou com as esfoladuras dos pés. Apenas ataque às polegadas prateadas, conquistando-as uma a uma.

Mas logo os pés começaram a suar e escorregar de modo desesperador. Por duas vezes Bond perdeu um metro, em virtude do escorregamento de seus ombros, que ficaram terrivelmente escalavrados com o atrito, antes de poder conseguir a freagem. Em certa altura teve mesmo que se deter durante algum tempo para esperar que o suor secasse com a corrente de ar que descia pela chaminé. Essa pausa durou dez minutos, durante os quais ele se viu apagadamente refletido na superfície metálica, com o rosto dividido ao meio pela faca que segurava entre os dentes. Ainda assim recusou-se a olhar para cima, a fim de ver quantos metros teria que vencer. Aquela derradeira seção poderia ser muito longa. Cuidadosamente Bond esfregou cada pé num cano de calça e recomeçou a batalha.

Agora, parte de sua mente sonhava, enquanto a outra se empenhava na luta. Nem mesmo estava consciente de que a luminosidade se ia acentuando lentamente e que a brisa se tornava mais forte. Via-se apenas como uma lagarta ferida, arrastando-se por um cano de descarga em direção a um ralo de banheira. O que veria quando atravessasse o ralo? Uma jovem nua se enxugando? Um homem fazendo a barba? A luz do sol filtrando-se para dentro de um banheiro Vazio?

A cabeça de Bond bateu de encontro a alguma coisa. O ralo estava obstruindo o orifício! O choque do desapontamento fez que escorregasse uma polegada, antes que seus ombros pudessem retê-lo firmemente. Então compreendeu que tinha chegado ao topo da chaminé! Agora notava a luz forte e o vento impetuoso. Ansiosamente, ele se alçou novamente até que a cabeça tocou em algo. O vento soprava contra sua orelha esquerda. Cautelosamente, voltou a cabeça para essa direção. Era outro tubo lateral. Acima de sua cabeça a luz se escoava através de uma espessa vigia. Tudo o que tinha a fazer era contornar aquela derivação, agarrando-se à orla do novo tubo, e, de qualquer maneira, encontrar forças para se introduzir naquele túnel lateral. Então poderia descansar um pouco, deitado.

Com redobrada cautela, nascida do pânico de que algo agora podia acontecer, de que poderia cometer um erro e ser precipitado no fundo da chaminé, Bond empreendeu a manobra, com suas últimas reservas de forças, e introduzindo-se na nova caverna caiu estirado com o rosto para baixo.

Mais tarde — quanto tempo mais tarde? — os olhos de Bond se abriram e seu corpo estremeceu. O frio o tinha despertado da total inconsciência em que o seu corpo o teria lançado. Penosamente, virou-se de costas, com pés e ombros doendo terrivelmente, e procurou reunir todas as forças mentais e físicas. Não tinha a mínima idéia da hora ou do lugar em que estaria no interior da montanha. Levantou a cabeça e olhou para trás, em direção à vigia, sobre o tubo vertical, do qual escapara. A luz era amarelada e o vidro parecia muito grosso. Lembrou-se da vigia existente na sala Q. Aquela vigia era absolutamente inquebrável, e esta também o seria, pensou ele.

Subitamente, por trás daquele vidro, distinguiu movimento. Enquanto observava, um par de olhos se materializaram, por trás de lâmpadas elétricas. Aqueles olhos pararam e fitaram-no, com o farolete parecendo um nariz entre aqueles dois olhos. Fixaram-no negligentemente e depois desapareceram. Os lábios de Bond explodiram numa imprecação. Então o seu progresso estava sendo observado para ser levado ao conhecimento do Dr. No.

Bond disse em voz alta: “Para o diabo com todos eles!”,, e voltou-se colérico sobre o ventre. Levantou a cabeça e olhou para a frente. O túnel desaparecia na escuridão. Para a frente! Não adianta nada perder tempo aqui. Apanhou a faca, colocou-a entre os dentes e foi abrindo caminho.

Em breve já não havia mais nenhuma luminosidade. Bond detinha-se de quando em quando para acender o isqueiro mas nada encontrava a não ser trevas. O ar começou a se tornar mais cálido, dentro do túnel, e, depois de uns cinqüenta metros talvez, decididamente quente. Havia mesmo cheiro de calor no ar, de calor metálico. Bond começou a suar.. Dentro de alguns minutos seu corpo estava completamente encharcado e ele tinha que parar para limpar os olhos. Deu uma volta à direita, no tubo, e, na nova seção, sentiu o metal bastante quente contra a sua pele. O cheiro de calor metálico era agora bem acentuado. Assim que enfiou a cabeça no novo túnel, tirou o isqueiro do bolso, acendeu-o e rapidamente recuou. Amargamente, considerou a nova dificuldade, medindo-a e amaldiçoando-a. A chama de seu isqueiro tinha iluminado uma seção de tubos de zinco descolorido. A nova dificuldade seria o calor!

Bond resmungou alto. Como a sua carne já esfolada poderia resistir àquilo? Como poderia proteger a pele contra o metal? Mas não havia solução satisfatória. Ou voltaria, ou continuaria ali parado ou, afinal, avançaria. Não havia outra decisão a tomar. Aliás, Bond começava a encontrar algum consolo em suas reflexões. Com efeito, não seria o calor que haveria de matá-lo, mas alguma mutilação. O metal aquecido não seria o seu campo de sacrifício — apenas mais uma prova para medir-lhe a resistência.

Bond pensou na jovem e no que ela estaria sofrendo. Oh, sim, para a frente com aquilo. Agora, vejamos...

Bond apanhou a faca e cortou toda a parte da frente da camisa, fazendo com ela várias faixas. A única esperança estaria em dar alguma proteção às partes de seu corpo que mais sofreriam a ação do calor, isto é, os pés e as mãos. Seus joelhos e cotovelos teriam de resistir apenas com a proteção normal da fina camada de roupa. E, assim, dispôs-se à luta, amaldiçoando-a.

Agora estava pronto. Um, dois, três...

Bond dobrou o ângulo do túnel e lançou-se contra o foco de calor.

Mantenha a barriga nua distante do chão! Contraia os ombros! Mãos, joelhos, pés; mãos. joelhos, pés. Mais depressa! Mais depressa! Sempre mais depressa, de modo que cada toque contra o chão seja rapidamente seguido por outro.

Os joelhos é que mais estavam sofrendo, agüentando a maior parte do peso do corpo. Agora, as mãos envoltas em panos estavam começando a chamuscar. Acendeu-se uma fagulha, e logo outra, e em seguida surgiram chamas, quando as fagulhas começaram a se deslocar. A fumaça que saía daquele envoltório de pano de suas mãos fazia que os seus olhos ardessem penosamente. Por Deus, ele não agüentaria mais! Não havia mais ar. Seus pulmões estavam a ponto de estourar. Agora as suas duas mãos estavam lançando fagulhas para os lados. O tecido devia estar quase acabado; então a carne começaria a queimar. Bond deu um guinada e seu ombro ferido tocou no metal. Um grito de dor ecoou no túnel, logo seguido de outros gritos proferidos regularmente, quando suas mãos, pés ou joelhos tocavam no metal escaldante. Agora ele estava liquidado. Era o fim. Mais alguns segundos e iria cair de borco, morrendo literalmente queimado. Não! Devia opor um supremo esforço de reação, ainda que aos berros, até que toda a carne tivesse sido queimada até os ossos. A pele dos joelhos já devia ter sido completamente destruída. Mais um pouco e as palmas de suas mãos estariam tocando no metal. Apenas o suor que corria de seus braços poderia manter úmido o pano de suas mãos. Grite, grite, grite! Isto aliviará a dor.” Isto dirá que você está vivo. Continue! Continue! Não pode durar muito mais. Não é aqui que você deverá morrer. Não fraqueje! Você não pode!

A mão direita de Bond tocou em alguma coisa que cedeu. Logo sentiu uma corrente de ar frio. A outra mão bateu então em sua cabeça. Ouviu-se um débil ruído. Bond sentiu a orla inferior de um anteparo de amianto, articulado na parte superior do tubo, e que agora se arrastava em suas costas. Tinha vencido aquela prova. Ouviu o barulho daquele anteparo fechando-se novamente, depois de ter dado passagem a todo o seu corpo. Suas mãos estavam agora encostadas numa sólida parede. Com os dedos, apalpou à direita e à esquerda. Era um desvio em ângulo reto. Seu corpo seguiu cegamente volta do desvio e o ar frio parecia penetrar em seus pulmões como lâminas de aço geladas. Prudentemente, encostou os dedos no metal. Estava frio! Com um gemido Bond caiu sobre o rosto e ficou quieto.

Algum tempo depois, a dor tornou a reavivá-lo. Bond voltou-se dolentemente, de costas. Vagamente notou uma vigia de vidro acima de sua cabeça, e vagamente percebeu aquele mesmo par de olhos a fitá-lo. Depois, deixou novamente que as ondas de trevas o submergissem.

Aos poucos, na escuridão, as bolhas feitas em toda a pele e os pés e ombros queimados começaram a endurecer. O suor tinha-se secado no corpo e nos farrapos da roupa, enquanto o ar penetrara nos pulmões superaquecidos, começando o seu insidioso trabalho. Mas o coração continuava batendo, forte e regularmente, por dentro da torturada carcaça, e os poderes mágicos do oxigênio levaram nova vida para dentro das artérias e veias, recarregando os nervos.

Depois de um tempo que lhe pareceu infinito, Bond despertou. Estremeceu, e, ao encontrarem-se os seus olhos com o outro par que o espreitava, por trás do vidro, a dor se apoderou dele e sacudiu-o como se fosse um rato. Esperou que aquela descarga de dor o matasse. Tentou novamente, e novamente, até que conseguiu aquilatar toda a força do adversário. Em seguida, para esconder-se da testemunha, voltou-se sobre o estômago e resistiu a toda a dor que vinha de dentro de si próprio. Continuou em expectativa, explorando o corpo para verificar-lhe as reações, pondo à prova a força de decisão que ainda tivesse restado nas baterias. Quanto mais poderia ainda agüentar? Os lábios de Bond desprenderam-se dos dentes e ele rosnou na escuridão. Era um som animal. Tinha chegado ao fim de suas reações humanas à dor e à adversidade. O Dr. No o tinha encurralado. Mas ainda restavam reservas de desespero animal e, num animal forte, essas reservas são consideráveis.

Lentamente, em verdadeira agonia, Bond deslizou mais alguns metros para fora do campo visual daqueles olhos e procurou o seu isqueiro, acendendo-o. À sua frente via apenas uma lua cheia negra, a boca circular que o levaria ao estômago da morte. Bond guardou o isqueiro, respirou profundamente e pôs-se sobre os joelhos e mãos. A dor não foi maior, apenas diferente. Lentamente, com movimentos duramente articulados, avançou.

O tecido de algodão de seus joelhos e de seus cotovelos tinha sido completamente queimado. Entorpecidamente, seu cérebro foi registrando a umidade à medida que suas bolhas se abriam contra o metal frio. Enquanto se movia, ia simultaneamente flexionando os dedos e os pés, sentindo-lhes a dor. Lentamente foi sabendo o que poderia fazer, o que doeria menos. Esta dor é suportável, refletiu ele consigo mesmo. Se eu tivesse sofrido um desastre de avião, eles diagnosticariam apenas contusões e queimaduras superficiais. Teria alta do hospital dentro de alguns dias. Não há nada de sério comigo. Sou um sobrevivente de desastre. Dói, mas não é nada. Pense nos pedaços de carnes dos outros passageiros. Dê-se por feliz. Tire isso de sua cabeça. Mas, por trás de todas essa reflexões, estava o pensamento de que, em verdade, ele ainda não experimentara o desastre, — que ainda estava a caminho dele, com sua resistência e sua capacidade muito reduzidas. Quando chegaria ele? Que caráter teria? E quanto mais ainda seria ele amolecido antes de chegar à arena do sacrifício?

à frente, na escuridão, aqueles pequeninos pontos vermelhos bem poderiam ser uma alucinação, manchas rubras diante de seus olhos, causadas pela exaustão. Bond parou e apertou os olhos. Balançou a cabeça. Não, aqueles pontinhos vermelhos ainda estavam lá. Vagarosamente, arrastou-se para mais perto deles. Agora não havia dúvida de que eles se estavam movendo. Bond deteve-se novamente. Alem das batidas de seu coração, ouvia uma espécie de murmúrio suave e delicado. Aqueles pontinhos do tamanho de uma cabeça de alfinete tinham aumentado. Agora haveria vinte ou trinta, deslocando-se para a frente e para trás, alguns rapidamente, outros mais vagarosamente, em todo o círculo negro que o esperava à frente. Susteve o fôlego, assim que conseguiu acender o isqueiro. Os pontinhos vermelhos tinham desaparecido. Substituindo-os, ele viu a um metro de distância, à sua frente, uma tela muito fina, quase da finura de musselina, bloqueando o túnel.

Bond continuou deslocando-se por centímetros, para diante, com o isqueiro aceso à frente. Aquilo era uma espécie de gaiola, com pequeninos animais no seu interior. Podia ouvir aqueles diminutos seres fugindo à luz. A um pé apenas da tela apagou a luz e esperou que seus olhos se acostumassem à escuridão. Enquanto esperava, escutando, pôde ouvir novamente os pequeninos animais aproximarem-se dele, e, gradualmente, aquela floresta de pequeninos pontinhos vermelhos começou a se juntar, fitando-o através da tela.

Que seria aquilo? Bond ouviu seu coração bater com força. Serpentes? Escorpiões? Centopéias?

Cuidadosamente, foi aproximando os olhos daquela floresta de pontos luminosos. Aproximou o isqueiro bem junto da tela e acendeu-o bruscamente. Pôde apreender, num relance, a visão de pequeninas patas que atravessavam a tela e de dezenas de pés cabeludos e de ventres igualmente cabeludos com a forma de sacos, tendo em determinado ponto grandes cabeças de insetos que pareciam cobertas de olhos. Os animais fugiam em precipitada corrida, abandonando a tela da frente para irem refugiar-se na extremidade oposta da gaiola, formando uma só massa cinza-marrom.

Bond olhou através da tela, movendo o isqueiro para a frente e para trás. Depois apagou-o para economizar gasolina, e deixou que a respiração saísse por entre os dentes, num tranqüilo suspiro.

Eram aranhas, gigantescas tarântulas, de três ou quatro polegadas de comprimento. Haveria umas vinte delas dentro daquela gaiola. E, de qualquer maneira, ele teria que passar por perto delas.

Bond ficou parado, descansando e pensando, enquanto os olhos vermelhos se iam reunindo outra vez diante de seu rosto.

Qual seria o grau de letalidade daqueles animais? Quanto das lendas em torno delas seria mito? Certamente que podiam matar animais, mas em que medida seriam mortais para o homem aquelas gigantescas aranhas? Bond deu de ombros. Lembrou-se da centopéia. O toque das tarântulas seria muito mais suave. Seriam como o toque das patas de ursinhos de brinquedo contra a pele humana — até que mordessem e esvaziassem os seus folículos venenosos no organismo da pessoa.

Mas, ainda aqui, seria esta a arena do sacrifício derradeira, montada pelo Dr. No? Uma mordida ou duas, talvez, para mandar uma pessoa para um delírio de dor. O horror de ter que atravessar a tela no escuro — o Dr. No não teria pensado no isqueiro de Bond — varando aquela floresta de olhos, esmagando alguns corpos moles mas sentindo as picadas de outros. E depois mais picadas das que tivessem ficado presas à roupa. Em seguida, a lenta agonia do veneno. Este deveria ter sido o caminho percorrido pela imaginação do Dr. No — para que a vítima prosseguisse aos gritos pelo seu caminho. Para quê? Para a barreira final?

Mas Bond tinha o isqueiro, a faca e o chuço de arame. Tudo o que iria precisar era nervos e uma precisão infinita.

Delicadamente abriu a tampa do isqueiro e, com o polegar e indicador, fez sair o pavio uma polegada. Acendeu-o, e quando as aranhas recuaram, furou a tela com a faca. Fez um buraco na armadura e cortou para os lados. Depois, apanhou a aba da tela, que assim se desprendera, e arrancou-a da armadura. A tarefa não foi difícil, pois a aba fendeu-se numa só peça, com um tecido de algodão. Tornou a colocar a faca entre os dentes e atravessou a abertura. As aranhas recuaram diante da chama e amontoaram-se umas sobre as outras. Bond retirou o chuço de arame de dentro das calças e bateu com o arame dobrado sobre aqueles corpos moles. Bateu e tornou a bater ferozmente, reduzindo os aracnídeos a uma pasta informe. Quando algumas das aranhas tentaram escapar em sua direção, ele acenou-lhes com a chama e esmagou as fugitivas, uma a uma. Agora, as aranhas vivas estavam atacando as mortas, e tudo quanto Bond tinha a fazer era terminar o massacre.

Lentamente todos aqueles movimentos convulsivos foram declinando até cessarem completamente. Estariam todas mortas? Estariam algumas simulando morte? A chama do isqueiro estava começando a morrer. Teria que enfrentar o risco. Avançou mais um pouco e atirou aquela massa escura e pegajosa para um lado. Depois tirou a faca de entre os dentes e abriu a segunda cortina, puxando a aba cortada para cima da pasta feita com os corpos das tarântulas. A chama bruxuleou e tornou-se apenas um revérbero vermelho. Bond reuniu suas forças, atirou o corpo sobre a massa encoberta e atravessou a segunda tela.

Não sabia se teria posto os joelhos e cotovelos sobre limalhas metálicas ou sobre as aranhas. Tudo o que sabia é que tinha atravessado aquela barreira. Arrastou-se ainda por alguns metros para a frente, no interior do túnel, e depois parou para descansar e reunir coragem.

Sobre a sua cabeça veio uma pálida luz. Bond torceu-se para um lado, ficando de costas, para ver o que já esperava. Os olhos amarelos e amendoados fixavam-no com profundo interesse. Lentamente, por trás do farolete, a cabeça moveu-se de um lado para outro. As pálpebras caíram numa piedade fingida. Um punho cerrado, com o polegar apontando para baixo, à guisa de despedida e aniquilamento, interpôs-se entre o farolete e o vidro. Em seguida foi retirado e a luz apagou-se. Bond voltou o rosto para baixo e descansou a testa no chão metálico e frio. Aquele gesto dizia-lhe que ele estava chegando ao obstáculo final, que os seus algozes tinham dado por encerradas as observações até virem recolher os seus restos. Bond sentiu ainda que naquele rosto não houvera um único indício de louvor pelo fato de ter logrado sobreviver até aquela etapa. Aqueles chineses negros odiavam-no. Apenas queriam que ele morresse, e tão miseravelmente quanto possível.

Os dentes de Bond bateram suavemente. Ele pensara na jovem e este pensamento dera-lhe forças. Ainda não estava morto. Que diabo! Ele não iria morrer! Não enquanto o coração não lhe fosse arrancado do corpo.

Bond retesou os músculos. Era tempo de continuar, a investida. Com redobrado cuidado, recolocou as armas em seus lugares, e penosamente recomeçou a avançar pela escuridão.

O túnel começava a inclinar-se ligeiramente para baixo, o que tornava a progressão mais fácil. Logo a inclinação tornou-se tão acentuada que Bond podia deslocar-se apenas em virtude de seu peso. Era uma bênção não ter que fazer aquele esforço derradeiro com os músculos. Vislumbrou um clarão acinzentado à sua frente, pouco mais que uma redução das trevas completas, mas aquilo prenunciava uma mudança, pois a qualidade do ar parecia diferente. Havia nele um odor novo. O que seria? O mar?

Súbito, Bond compreendeu que estava escorregando para baixo, ao longo do túnel. Expandiu os ombros e abriu os pés, procurando impedir a queda. Aquele esforço causou-lhe terríveis dores e o efeito foi mínimo. Agora o túnel começava a alargar-se e ele já não poderia mais diminuir o impulso da queda! Seu deslizamento tornava-se mais e mais acelerado. Agora via uma curva à frente — e era uma curva dirigida para baixo.

O corpo de Bond logo chegou. àquela curva e contornou-a. Deus do céu, ele estava mergulhando de cabeça para baixo! Desesperadamente, abriu os braços e pernas. O metal esfolou sua pele. Agora tinha perdido completamente o controle da situação e estava mergulhando para baixo, sempre pára baixo, no interior de um cano de canhão. Muito abaixo havia um circulo de luz cinzenta. Seria o ar livre? O mar? A luz subia vertiginosamente para ele! Lutou para recuperar o fôlego. Continue vivo, idiota! Continue vivo!

Primeiro a cabeça, e logo depois o corpo de Bond precipitaram-se pelo espaço, vencendo aceleradamente a distância de mais de cem pés que o separava da superfície do mar.


XVIII - ARENA DE SACRIFÍCIO


O corpo de Bond espadanejou o espelho de um mar de alvorada como o impacto de uma bomba.

Enquanto descia precipitadamente pelo tubo prateado, em direção ao disco de luz, o instinto dissera-lhe que retirasse a faca de entre os dentes e que pusesse as mãos para a frente, a fim de aparar a queda, assim como a cabeça para baixo e o corpo rígido. E, na última fração de segundo, quando ele viu o mar que se alteava ao ritmo das ondas, procurou sorver uma longa inspiração. En conseqüência, projetou-se na água como se estivesse dando um mergulho, com os braços estendidos abrindo-lhe um buraco através do qual passaram a sua cabeça e o corpo. Conquanto, quando chegou a vinte pés de profundidade, tivesse perdido os sentidos, o despencar a sessenta e cinco quilômetros por hora não conseguira matá-lo.

Lentamente o corpo foi voltando à superfície, e ficou, com a cabeça para baixo, a balançar-se suavemente nas pequeninas ondas causadas pelo seu próprio mergulho. A água que penetrou nos pulmões de certa forma contribuiu para enviar uma última mensagem ao cérebro. As pernas e braços agitaram-se desajeitadamente. Agora tinha conseguido voltar a cabeça para cima, com a água escorrendo da boca. Tornou a afundar, mas dessa vez, instintivamente, as pernas começaram a mover-se procurando manter o corpo à superfície da água. Por fim, a cabeça, horrivelmente sacudida pela tosse, conseguiu vir para fora da água e assim manter-se. Os braços e as pernas começaram a agitar-se dèbilmente, com os movimentos natatórios de um cão, e através da cortina vermelha e negra, os olhos injetados de sangue viram a linha da vida e disseram ao dolente cérebro que visasse àquele objetivo.

A arena de execução era uma estreita e profunda enseada, na base de um elevado penhasco. A corda de salvamento em direção à qual Bond lutava, embaraçado pelo chuço metido em sua calça, era representada por uma forte tela de arame, que se estendia por dois lados do penhasco, protegendo aquela enseada do mar aberto. Aquela rede, formada de quadrados, estava suspensa a um grosso cabo situado a dois metros acima da superfície da água. Para baixo, a tela desaparecia nas profundezas, cheia de incrustações de algas.

Bond conseguiu chegar ao arame, e a ele agarrou-se como que crucificado. Durante quinze minutos deixou-se ficar na mesma posição, com o corpo de quando em quando sacudido por vômitos, até que se sentiu bastante forte para virar a cabeça e verificar onde estava. Ofuscadamente, os seus olhos tomaram a altura do penhasco, sobre sua cabeça. O lugar estava obscurecido por uma sombra cinzenta, projetada pela montanha, mas ao largo, no mar, havia uma iridiscência de pérola provocada pela aurora, o que significava que para o resto do mundo o dia estava amanhecendo. Mas onde Bond se encontrava era escuro e triste.

Lerdamente, a mente de Bond começou a se interrogar sobre aquela tela de arame. Qual seria a sua finalidade, fechando aquela escura enseada e separando-a do mar? Seria para manter alguma coisa do lado de fora ou para mantê-la do lado de dentro? Bond olhou vagamente para baixo, procurando penetrar as profundezas do mar, à sua volta. As malhas de arame perdiam-se no nada, sob os seus pés. Havia pequeninos peixes à volta de suas pernas, abaixo da cintura. Que estariam eles fazendo? Pareciam estar-se alimentando, avançando contra seu corpo e depois recuando com fiapos negros na boca. Fiapos de que? De algodão de seus farrapos? Bond sacudiu a cabeça para clarear as idéias. Tornou a olhar para baixo. Não, aqueles peixes estavam-se alimentando com seu sangue.

Bond estremeceu. Sim, o sangue estava escorrendo de seu corpo, dos ombros, dos joelhos, dos pés, e misturando-se à água. Agora, pela primeira vez sentiu a dor causada pela água salgada em suas feridas e queimaduras. A dor tornou-se mais viva e estimulou a sua mente. Se esses pequeninos peixes estavam gostando de seu sangue, o que dizer dos tubarões? Seria essa a finalidade daquela tela de arame, isto é, evitar que os peixes devoradores de seres humanos pudessem escapar para o mar? Então por que eles ainda não se tinham lançado sobre ele? Para o diabo! A primeira coisa a fazer era subir pelo arame e ganhar o outro lado. Interpor aquela tela entre ele e o que quer que vivesse naquele escuro aquário.

Dèbilmente, pé após pé, lá se foi Bond subindo pela tela, até chegar ao cume e passar para o outro lado, onde poderia descansar sem preocupações. Colocou o espesso cabo sob a axila, e olhou para baixo, contemplando os peixes que ainda se nutriam com o sangue que continuava gotejando de seus pés.

Agora já não havia muito em Bond; pouquíssimas reservas teria ele. O último mergulho no tubo, o choque da queda, na água, e a quase morte, causada por afogamento, tinham-no esmagado como a uma esponja. Estava prestes a entregar-se, prestes a soltar um pequeno suspiro e depois escorregar para os doces braços da água. Como seria bom abandonar-se, finalmente, e descansar — sentir que o mar suavemente o levava para o seu leito.

Foi a explosiva fuga dos peixes que estavam sorvendo o seu sangue, sob os seus pés, que despertou Bond de seu sonho de morte. Alguma coisa tinha-se movido muito abaixo da superfície. Havia uma trêmula claridade muito distante, mas que avançava lentamente para a superfície, aproximando-se pelo lado interno da tela.

O corpo de Bond se enrijeceu. Ante a iminência do perigo, a vida voltou-lhe num ímpeto, expulsando a letargia e comunicando-lhe renovada vontade de sobreviver.

Bond abriu os dedos aos quais, há muito, o seu cérebro ordenara que não perdessem a faca. Fechou os dedos e agarrou o cabo daquela lâmina. Abaixou-se em seguida e tocou no gancho do chuço que ainda se mantinha no interior da calça. Sacudiu vivamente a cabeça e ficou com os olhos alertas. E agora?

Sob os seus pés a água estremeceu. Alguma coisa estava-se debatendo, no fundo, alguma coisa enorme. Algo grande, de cor cinza luminescente, tornou-se visível, detendo-se muito abaixo da superfície, na escuridão. Alguma coisa se projetou daquela massa, em direção à superfície, algo como se fosse um chicote da grossura do braço de Bond. A extremidade daquela tira inchava-se numa terminação oval e achatada, com marcas semelhantes a botões distribuídos a espaços regulares. Aquele tentáculo rodopiou na água, no lugar em que os peixes tinham estado, e logo se encolheu. Agora só se via a grande sombra cinzenta lá embaixo da superfície. Que estaria fazendo o animal? Estaria...? Estaria provando o seu sangue?

Como que em resposta àquela pergunta, dois olhos, tão grandes quanto bolas de futebol, foram avançando para cima até se porem no campo de visão de Bond. Aqueles enormes olhos pararam vinte pés abaixo da superfície e olharam tranqüilamente para cima, fixando-se no rosto de Bond.

A pele de Bond ficou arrepiada nas costas. Sua boca deixou escapar um palavrão! Então, aquela era a Ultima surpresa do Dr. No, o fim da corrida!

Bond ficou de olhos abertos, meio hipnotizado, olhando para baixo. Então aquele era o polvo gigante, o monstro mítico que podia arrastar navios para as profundezas do mar, o monstro de cinqüenta pés de comprimento que podia dar combate às baleias e que pesava uma tonelada ou mais. O que mais sabia ele a respeito daqueles animais? Que tinham dois longos tentáculos para laçar e outros dez para agarrar; que tinham um enorme bico rombudo por baixo de olhos que eram os únicos olhos, entre os peixes, a trabalharem segundo o principio da câmara fotográfica, como os do homem: que seu cérebro era eficiente; que o monstro podia fugir para trás a uma velocidade de trinta nós, por um sistema de jato-propulsão. Sabia ainda que os arpões podiam afundar-se em sua manta de gelatina sem causar nenhum mal ao monstro, e que... mas os grandes olhos esbugalhados, que ofereciam um alvo negro e branco, estavam-se elevando em sua direção. A superfície da água estremecia. Agora Bond podia ver uma floresta de tentáculos que saíam da cara do animal. Ondulavam diante dos olhos do monstro como uma ninhada de grossas serpentes. Bond podia ver-lhe as ventosas sob os tentáculos. Atrás da cabeça, a grande aba da manta de gelatina abria-se e fechava-se suavemente, e, por trás dela, o brilho do corpo perdia-se nas profundezas. Por Deus, a coisa era tão grande quanto uma locomotiva!

Muito devagar e discretamente Bond foi enfiando os pés e depois os braços através dos quadrados da tela de arame, protegendo-se e ancorando-se tão sòlidamente que os tentáculos teriam que arrancá-lo dali aos pedaços ou então arrastar com ele todo aquele arcabouço de metal. Olhou para a direita e para a esquerda. Para qualquer lado, teria que vencer vinte metros, antes de chegar à terra. Mas, qualquer movimento, ainda que pudesse empreende-lo, séria fatal. Devia ficar absolutamente imóvel, rezando para que o monstro perdesse o interesse e se afastasse. Se ele não perdesse o interesse... Suavemente os dedos de Bond apertaram a pequenina faca.

Os olhos do monstro continuavam fitando-o, fria e pacientemente. Delicadamente, como a tromba de um elefante, um daqueles longos tentáculos laçadores emergiu da superfície e foi galgando a tela em direção às pernas de Bond. Tocou num de seus pés, e Bond sentiu o áspero beijo daquelas ventosas. Não se mexeu. Não ousava abaixar-se e afrouxar o enlaçamento de seus braços à volta do arame. Docemente as ventosas entraram em ação, experimentando o rendimento daquela presa. Não era bastante. Como uma gigantesca lagarta, o tentáculo foi subindo por sua perna. Parou à altura do joelho ensangüentado e deteve-se, interessado. Os dentes de Bond estalaram com a dor. Ele bem podia imaginar a mensagem que tinha descido por aquele tentáculo até o cérebro do animal: sim, é bom para comer-se! E a ordem de retorno ao tentáculo: então traga-o.

As ventosas continuaram subindo pela coxa. A extremidade do tentáculo se aflou e em seguida dilatou-se a ponto de quase cobrir toda a espessura da coxa de Bond. Depois reduziu-se à grossura de um pulso. Aquele seria o alvo de Bond. Apenas teria que agüentar a dor e resistir ao horror daquela acometida, esperando que esse pulso chegasse ao alcance de um golpe.

 

* *
Uma brisa, a primeira suave brisa da madrugada, soprou sobre a superfície metálica da enseada, levantando pequenas ondas que iam beijar a rocha do penhasco. Um bando de corvos marinhos alçou vôo da guaneira, quinhentos pés acima da enseada, e cacarejando suavemente, avançou em direção ao mar. Quando as aves passaram sobre a enseada, o barulho que as tinha perturbado chegou aos ouvidos de Bond — o tríplice apito de um navio, que indica estar a embarcação pronta para receber a carga. Aquele som chegava do lado esquerdo de Bond. O cais deveria estar situado a pequena distância contornando o braço setentrional da enseada. O navio procedente de Antuérpia tinha chegado. Antuérpia! Uma região do mundo exterior — um mundo que estava a um milhão de quilômetros de distância, fora do alcance de Bond — com certeza para sempre fora de seu alcance. Exatamente para além daquele braço rochoso a tripulação estaria no refeitório, tomando o seu desjejum. O rádio estaria tocando. Haveria o chiado do toicinho defumado e ovos na frigideira, o cheiro do café...


* * *


As ventosas estavam em sua coxa. Bond podia ver dentro daqueles cálices córneos. Um cheiro de maresia estagnada chegou-lhe às narinas, quando aquela mão vagarosamente serpenteou para cima. Seria muito duro o tecido gelatinoso cinza-escuro, por trás daquela mão? Deveria usar agora a faca? Não, o golpe deveria ser rápido e seguro, atingindo toda a espessura, como se se cortasse uma corda. Não importaria que a sua própria pele fosse atingida.

Agora! Bond lançou um rápido golpe de vista àqueles dois enormes olhos, lá embaixo, tão pacientes e tão negligentes. Nesse momento, o outro tentáculo elevou-se da superfície da água e avançou em direção ao seu rosto. Bond recuou a cabeça e a mão se enroscou num fio de arame diante de seus olhos. Num segundo aquela garra se deslocaria para um braço ou ombro, e ele estaria liquidado. Agora!

O primeiro tentáculo estava sobre suas costelas. Quase sem fazer pontaria, a mão de Bond que empunhava a faca caiu rapidamente para baixo e transversalmente. Sentiu a lâmina afundar naquele pudim carnoso, e quase deixou que ela escapasse de sua mão, quando o tentáculo ferido chicoteou pelo ar, desaparecendo na água. Por um momento o mar foi agitado à sua volta. Agora, o outro tentáculo abandonou o arame e agarrou-se ao seu ventre. A mão aflada prendeu-se como uma sanguessuga, com toda a força de sua sucção furiosamente aplicada. Bond gritou ao sentir o contacto daquelas ventosas em sua carne. Golpeou loucamente, mais e mais. Por Deus, o seu estômago estava sendo arrancado para fora! A tela agitou-se com a luta. Aos seus pés a água fervilhava e espumava. Ele teria que ceder. Um derradeiro golpe, desta vez nas costas daquela mão disforme. Deu resultado! A mão se agitou no ar e desceu serpeante, deixando vinte círculos vermelhos sangrando em sua pele.

Bond não tinha tempo para se preocupar com aquilo. Agora a cabeça do monstro tinha emergido, e os seus olhos brilhantes fixavam-se nele, avermelhados, enfurecidos, e a floresta dos tentáculos sugadores começava a envolver-lhe os pés e as pernas, dilacerando-lhe as roupas, para logo retornar aos seus membros. Bond estava sendo arrastado para baixo, polegada por polegada. O arame estava penetrando em suas axilas. Podia até mesmo sentir a sua espinha sendo distendida. Se ele continuasse resistindo seria partido ao meio. Agora, os olhos e o grande bico triangular estavam fora d’água, e o bico procurava o seu pé. Havia uma esperança, apenas uma!

Bond meteu a faca entre os dentes e sua mão procurou o gancho do chuço de arame. Agarrou aquela arma, e desdobrou-a com as suas duas mãos. Teria que soltar um dos braços para poder abaixar-se e se aproximar do alvo. Se falhasse, entretanto, seria reduzido a pedaços sobre a tela.

Agora, antes que morresse com a dor! Agora, agora! Bond deixou todo o seu corpo escorregar por aquela escada de arame, para baixo, e desferiu uma violenta estocada. Pôde ver que o pontaço de sua lâmina penetrava pelo centro de um enorme globo ocular negro, e imediatamente todo o mar se intumesceu para ele, como uma fonte de negrume, enquanto seu corpo se mantinha pendurado de cabeça para baixo, seguro pelos joelhos, com o rosto apenas uma polegada acima da superfície.

Que teria acontecido? Teria ficado cego? Não podia ver nada. Seus olhos estavam ardendo e havia um gosto horrível de peixe podre em sua boca. Contudo, podia sentir o arame cortando-lhe os tendões dos joelhos. Então devia estar vivo! Estonteado, Bond deixou que o chuço caísse de sua mão, e procurou o arame mais próximo. Depois, agarrou-se com a outra mão um pouco mais acima, e, assim, vagarosamente, foi-se alçando até que conseguiu sentar-se no cabo superior da cerca. Clarões de luz chegaram-lhe aos olhos. Passou uma das mãos pelo rosto. Agora podia ver. Fixou a sua mão: estava negra e pegajosa. Olhou para o seu corpo: estava também coberto por um lodo negro, e o preto tingia o mar numa extensão de vinte metros à sua volta. Então Bond compreendeu: o polvo ferido tinha esvaziado a sua bolsa de tinta contra ele.

Mas onde estava o monstro? Voltaria? Bond esquadrinhou o mar. Nada, nada além da enorme mancha negra que se continuava ampliando. Nem uma só ondulação! Então, nada de esperar! Fugir dali o mais depressa possível! Ansiosamente, Bond olhou para a direita e para a esquerda. Para a esquerda era na direção do navio, mas também na direção do Dr. No, enquanto para a direita seria para o nada. Para instalar aquela tela de arame, os trabalhadores deviam ter vindo da esquerda, na direção do cais. Devia haver algum caminho até ali. Bond começou a se deslocar frenèticamente pelo cabo superior, em direção à rocha, a vinte metros de distância.

O espantalho negro e sangrento movimentava os braços e pernas quase automaticamente. O aparelho pensante e sensorial de Bond já não fazia mais parte de seu corpo. Movia-se ao lado de seu corpo ou acima dele, mantendo apenas o contato necessário para puxar os cordéis que faziam o boneco trabalhar. Bond era como um verme secionado, cujas duas metades continuassem arrastando-se para a frente, conquanto a vida os tivesse abandonado para ser substituída pela vida ilusória dos impulsos nervosos. Apenas, no caso de Bond, as duas metades ainda não estavam mortas. A vida tinha somente se ausentado delas. Tudo quanto ele precisava era um grama de esperança, um grama de confiança, de convicção de que ainda valeria a pena tentar sobreviver.

Bond chegou à rocha, e lentamente desceu pela tela até a última malha. Contemplou vagamente o brilho palpitante da água. O mar estava negro e impenetrável. Deveria arriscar-se? Sem dúvida! Não podia fazer nada enquanto não tivesse lavado aquela camada de lodo e sangue, sem falar do horrível cheiro de peixe. Sombriamente, fatalisticamente, ele tirou os farrapos de sua camisa e calças, pendurando-os no cabo. Olhou para baixo, para seu corpo marrom e branco, salpicado de vermelho. Instintivamente, procurou sentir seu pulso, que se apresentava lento mas regular. As firmes palpitações de vida reanimaram o seu espírito. Por que diabo estava ele se lamuriando? Estava vivo. As feridas e machucaduras em seu corpo não eram nada — absolutamente nada. Eram horríveis, mas nada estava quebrado. Por dentro do invólucro maltratado, a máquina estava trabalhando serena e seguramente. Cortes superficiais e esfoladuras, recordações sangrentas, cansaço mortal — estes seriam ferimentos dos quais se riria uma enfermeira experiente. Para a frente, seu bastardo! Para a frente! Limpe-se e levante-se. Conte as suas bênçãos. Pense na jovem. Pense no homem que você deverá encontrar e matar. Agarre-se à vida como se agarrou à faca entre os dentes. Acabe com esta autopiedade. Para o diabo com o que acaba de acontecer! Para dentro d’água e lave-se!

Dez minutos mais tarde, Bond, com seus farrapos molhados colados ao corpo já esfregado, e com os cabelos repuxados para fora dos olhos, galgava o cimo do penhasco.

Sim, era como ele tinha imaginado. Uma picada estreita e rochosa, feita pelos pés dos trabalhadores, descia para o outro lado, contornando a saliência do penhasco.

Das proximidades chegaram vários sons e ecos. Um guindaste estava trabalhando. Podia ouvir os ritmos variáveis de seu motor. Ouviam-se os barulhos peculiares, aos navios de ferro, bem como o ruído da água que era lançada ao mar por uma bomba de porão.

Bond olhou para cima, para o céu, que estava de um azul pálido. Nuvens manchadas de ouro e reflexos rosados derivavam em direção ao horizonte. Muito acima dele, os corvos marinhos esvoaçavam em torno da guaneira. Em breve estariam fazendo-se ao mar, em busca de alimentos. Talvez, agora, mesmo, estivessem vigiando os grupos de reconhecimento, longe, sobre o mar, na faina de localizarem os peixes. Seriam cerca de seis horas — a aurora de um belo dia.

Bond, deixando gotas de sangue atrás de si, seguiu o seu caminho cuidadosamente pela picada abaixo, beirando o sopé do penhasco. Para além da curva, a picada se infiltrava por um terreno cheio de pedras espalhadas. Os ruídos iam-se tornando mais altos. Bond ia avançando cuidadosamente, evitando pisar em pedras. Uma voz se fez ouvir surpreendentemente perto: ‘”Pronto para largar?” E logo uma resposta distante: “Pronto”. O motor do guindaste acelerou. Mais alguns metros. Mais um pedregulho; e mais outro. Agora!

Bond se ocultou por trás da rocha e cautelosamente meteu a cabeça para fora, a fim de observar.

 

CONTINUA

XVI - HORAS DE AGONIA


Uma voz, por trás de Bond, disse serenamente: — O jantar está servido.

Bond voltou-se para trás. O anunciante fora o guarda-costas, que tinha a seu lado outro homem que bem poderia ser seu irmão gêmeo. Ali ficaram eles, duas barricas de musculatura, com as mãos mergulhadas nas mangas dos quimonos, olhando, por cima da cabeça de Bond, para o Dr. No.

— Ah, já nove horas. — O Dr. No levantou-se lentamente e disse: — Vamos. Podemos continuar a nossa conversação em ambiente mais íntimo. Foi muita bondade dos senhores terem ouvido a minha história com paciência tão exemplar. Espero que a modéstia de minha cozinha e de minha adega não representem mais uma imposição.

Portas duplas tinham sido conservadas abertas por trás dos dois homens de jaquetas brancas. Bond e a jovem atravessaram-nas seguindo o Dr. No, indo ter a uma sala octogonal, com as paredes recobertas de painéis de mogno, e ao centro um candelabro de prata, sob o qual estava posta uma mesa para três pessoas. O tapete simples, azul-escuro, era luxuosamente espesso. O Dr. No tomou a cadeira central, de espaldar alto, e indicou cortesmente, com uma inclinação, a cadeira à sua direita para a jovem. Sentaram-se e abriram guardanapos de seda branca.

A cerimônia vazia e a encantadora sala deixavam Bond louco. Ansiava por despedaçar tudo aquilo com as próprias mãos, por passar o seu guardanapo de seda à volta do pescoço do Dr. No e apertá-lo até que aquelas lentes de contato saltassem daqueles malditos olhos negros.

Os dois guardas usavam luvas de algodão branco. Serviram as iguarias com suave eficiência que era instigada por uma ocasional palavra chinesa proferida pelo Dr. No.

A princípio o Dr. No parecia preocupado. Lentamente, ingeriu três taças de diferentes sopas, utilizando-se de uma colher dotada de um cabo curto e que se adaptava perfeitamente entre as pinças de sua mão mecânica. Bond esforçou-se por esconder os seus temores da jovem. Sentou-se afetando uma atitude de relaxamento e comeu e bebeu com forçado apetite. Falou ainda animadamente com a jovem sobre Jamaica — sobre aves e animais, assim como fores, que constituíam fáceis assuntos de conversação para Honeychile. De vez em quando os seus pés tocavam nos dela, sob a mesa. Ela quase chegou a ficar alegre. Bond pensou que ambos estavam fazendo uma bela imitação de namorados comprometidos, que estivessem saboreando um jantar oferecido por um tio detestável.

Bond não tinha a mínima idéia sobre se o seu fraco blefe tinha surtido algum efeito. Assim, não deu grande importância às suas possibilidades. O Dr. No, assim como a sua história, eram perfeitamente impenetráveis. A incrível biografa parecia verdadeira. Nem uma só palavra daquele relato era impossível. Talvez houvesse outras pessoas no mundo com os seus reinos particulares — reinos afastados dos caminhos trilhados por homens comuns, sem testemunhas, onde pudessem fazer o que bem entendessem. E que estaria planejando fazer o Dr. No, depois que tivesse esmagado as moscas que tinham vindo incomodá-lo? E se eles fossem mortos — e quando o fossem — Londres conseguiria recolher os fios que ele, Bond, tinha recolhido? Provavelmente conseguiria. Lá estava Pleydell-Smith, e as provas das frutas envenenadas. Mas até onde a substituição de Bond iria afetar o Dr. No? Não muito. O Dr. No daria de ombros ao desaparecimento de Bond e Quarrel. Nunca teria ouvido falar deles. E não haveria qualquer elo com a jovem. Em Porto Morgan, todos pensariam que ela se tinha afogado em suas expedições. Era difícil saber o que poderia interferir com o Dr. No — com o segundo capítulo de sua vida, qualquer que ele fosse.

Sob aquela conversa com a jovem, Bond foi-se preparando para o pior. Ao lado de seu prato havia algumas facas. Então chegaram as costeletas, perfeitamente cozidas, e Bond tocou em várias facas, hesitante, até que escolheu a do pão para cortá-las. Enquanto comia e conversava foi deslocando a grande lâmina de aço para perto do corpo. Um gesto largo da mão direita derrubou o seu copo de champanha e, numa fração de segundo, enquanto o copo se partia, sua mão esquerda enfiou a lâmina para dentro da manga do quimono. Em meio às suas desculpas, e à confusão que se seguiu, enquanto os guardas enxugavam a champanha derramada na mesa, Bond levantou o braço esquerdo e sentiu que a faca deslizava para baixo do braço e depois caía para dentro do quimono, ficando encostada às suas costelas. Quando acabou de comer as costeletas, apertou o cinto de seda, à volta da cintura, ao mesmo tempo que deslocava a faca para diante da barriga. A faca aninhou-se. confortàvelmente contra a sua pele e em pouco tempo o aço da lâmina foi-se tornando aquecido.

Por fim veio o café e a refeição foi dada por terminada. Os dois guardas se aproximaram e postaram-se por trás das cadeiras da jovem e de Bond. Tinham os braços cruzados sobre o peito, impassíveis, sem nenhum movimento, como carrascos.

O Dr. No pousou delicadamente a sua xícara no pires e descansou as duas pinças de aço sobre a mesa. Depois se endireitou um pouco na cadeira e virou o corpo, apenas uma polegada, em direção de Bond. Agora não havia o mínimo sinal de preocupação em seu rosto. Os olhos eram duros e diretos. A boca fina contraiu-se e abriu-se: — Apreciou o jantar, sr. Bond?

Bond apanhou um cigarro numa caixa de prata que estava à frente e acendeu-o. Depois, pôs-se a brincar com o isqueiro de prata que estava sobre a mesa. Sentia que más noticias iriam chegar. Pensou que deveria meter aquele isqueiro no bolso, de qualquer maneira. O fogo talvez viesse a ser mais uma arma. Respondeu com facilidade: — Sim, estava excelente. — Em seguida olhou para Honeychile. Curvou-se sobre a mesa e descansou os braços sobre ela, e logo cruzou-os, envolvendo o isqueiro com esta manobra. Sorriu para ela: — Espero ter pedido o que você gosta.

— Oh, sim, estava magnífico. — Para ela a recepção ainda estava continuando.

Bond fumava afanosamente, agitando mãos e braços, a fim de criar uma atmosfera de movimento. Voltou-se para o Dr. No, apagou o toco de seu cigarro e reclinou-se na cadeira. Cruzou os braços sobre o peito. O isqueiro já estava sob o seu sovaco esquerdo. Riu animadamente:

— E o que acontecerá agora, Dr. No?

— Podemos continuar com a nossa distração de após-jantar, sr. Bond. O leve sorriso contraiu-se e desapareceu.

— Examinei a sua proposta sob todos os aspectos. Não a aceito.

Bond deu de ombros e observou: — O senhor não é sensato.

— Não, sr. Bond. Receio que a sua proposta não passe de uma isca dourada. Em sua profissão não se atua como o senhor quer sugerir. Os agentes enviam relatórios rotineiros para o quartel-general. Mantêm seus chefes a par dos progressos das investigações que fazem. Conheço essas coisas. Os agentes secretos não se comportam como o senhor sugeriu ter agido. O senhor esteve lendo muitas novelas de aventuras, e o seu pequeno discurso mostrou com muita facilidade o papelão pintado. Não, sr. Bond, não aceito a sua história. Se ela for verdadeira, estou preparado para enfrentar as conseqüências. Tenho muita coisa em jogo para ser facilmente desviado de meu caminho. Que venham a polícia e os soldados. Onde estão o homem e a jovem? Que homem e que jovem? Não sei de nada. Por favor, retirem-se, os senhores estão prejudicando a minha guaneira. Onde estão as suas provas, o seu mandado de prisão? A lei inglesa é rigorosa, meus senhores. Voltem para casa e deixem-me em paz com os meus queridos corvos marinhos. Está vendo, sr. Bond? E digamos mesmo que o pior redunde em pior. Que um de meus agentes fale, o que é altamente improvável. (Bond lembrou-se da fortaleza da srta. Chung). Que tenho eu a perder? Mais duas mortes no libelo acusatório. Mas, sr. Bond, um homem só pode ser enforcado uma vez: — A elevada cabeça, em forma de pêra, agitava-se suavemente, de um lado para outro. — O senhor tem mais alguma coisa a dizer? Alguma pergunta? Ambos irão ter uma noite muito ocupada e o tempo de que dispõem está-se tornando escasso. Quanto a mim, devo ir dormir. O navio que chega mensalmente deverá atracar amanhã e eu terei que supervisionar o carregamento. Passarei todo o dia no cais. Certo, sr. Bond?

Bond olhou para Honeychile. Ela estava mortalmente pálida. Olhava com olhar esgazeado, esperando pelo milagre que ele deveria operar. Bond olhou para as próprias mãos e examinou cuidadosamente as unhas. Depois, disse, para ganhar tempo: — E então, após seu dia ocupado com o carregamento, o que virá em seu programa? Qual o novo capítulo que o senhor pensa escrever?

Bond não levantou o olhar. A profunda e serena voz autoritária caiu sobre ele como se tivesse vindo do céu escuro.

— Ah, sim, o senhor deve ter estado a pensar nisso.

O senhor tem o hábito da investigação. Os hábitos persistem até o fim, até as sombras. Admiro tais qualidades num homem que tem apenas algumas horas mais para viver. Por isso, dir-lhe-ei. Encetarei um novo capítulo, e isso o consolará. Há muito mais nesta ilha do que uma simples guaneira. O seu instinto não o enganou, sr. Bond.

O Dr. No fez uma pausa para dar mais ênfase ao que iria dizer e continuou: — Esta ilha, sr. Bond, está em vésperas de se transformar num dos mais valiosos centros de informação técnica do mundo.

— De fato? — Bond mantinha os olhos fixos em suas mãos.

— Sem dúvida que o senhor não ignora que Turks Island, a trezentas milhas, de distância daqui, através de Windward Passage, constitui o mais importante centro para a experimentação de projéteis teleguiados dos Estados Unidos?

— Sim, é um importante centro de experiências.

— Talvez o senhor tenha lido sobre os foguetes que recentemente se desviaram de sua rota? O “Snark” de múltiplas fases, por exemplo, que terminou o seu vôo nas florestas do Brasil, ao invés de ir perder-se nas profundezas do Atlântico Sul?

— Sim.

— O senhor se lembrará que ele se recusou a obedecer as instruções que lhe foram enviadas por rádio, no sentido de modificar a sua rota, e até mesmo de se destruir a si mesmo. Ele desenvolvera uma vontade própria.

— Lembro-me.

— Houve outras falhas, falhas decisivas, na longa lista dos protótipos — o Zuni, o Matador, o Petrel, o Regulus, o Bomarc — tantos nomes, outras tantas modificações, nem posso lembrar-me deles todos. Bem, sr. Bond, — o Dr. No mal podia esconder uma nota de orgulho em sua voz — talvez lhe interesse saber que a maioria desses fracassos foi causada de Crab Key.

— É verdade?

— Não me acredita? Não tem importância. Outros acreditam-no. Outros que viram o abandono de toda uma série, o Mastodonte, em virtude de seus freqüentes erros de navegação, sua incapacidade de obedecer às ordens enviadas pelo rádio, de Turks Island. Esses outros são os russos. Os russos são meus sócios nesta empreitada. Treinaram seis dos meus homens, sr. Bond. Exatamente neste momento tenho dois desses homens observando, estudando as freqüências de rádio, as faixas nas quais trabalham esses engenhos. Há um milhão de dólares de instalações, nas galerias rochosas, acima de nossas cabeças, sr. Bond, enviando sinais para a camada de Heavyside, aguardando os sinais, perturbando-os, contrabalançando faixas com outras faixas. E, de vez em quando, um foguete sobe em seu itinerário e aprofunda-se cem, quinhentas milhas, pelo Atlântico, enquanto nós anotamos cuidadosamente a sua trajetória, com a mesma perfeição com que isto é feito na Sala de Operações de Turks Island. Em seguida, subitamente, as nossas pulsações são enviadas ao foguete, o seu cérebro é perturbado, ele enlouquece e mergulha no mar, destruindo-se. Foi mais uma experiência que fracassou. Os operários levam a culpa, assim como os projetistas e os fabricantes. Há pânico no Pentágono. Outra coisa deve ser tentada, freqüências diversas, metais diversos, um cérebro eletrônico diferente. Naturalmente que também temos as nossas dificuldades. Assim é que assinalamos muitos disparos experimentais sem sermos capazes de chegar até o cérebro do novo engenho. Então, comunicamo-nos urgentemente com Moscou. Com efeito, eles deram-nos até uma máquina de cifras com as nossas freqüências e rotinas. E os russos continuam pensando, fazem sugestões, e nós as experimentamos. Por fim, sr. Bond, um belo dia, é como se atraíssemos a atenção de um homem perdido numa multidão. Lá no alto, na estratosfera, o foguete reconhece o nosso sinal. Somos reconhecidos e podemos falar com ele e modificar os seus pensamentos. — O Dr. No fez uma pausa e depois continuou: — O senhor não acha isso interessante, esta variante de meus negócios com o guano? Asseguro-lhe que é um negócio muito lucrativo, e podia sê-lo ainda mais. Talvez a China comunista venha a pagar mais pelos meus serviços. Quem sabe? Já tenho os meus agentes em campo, para sondagens.

Bond ergueu os olhos, olhando pensativamente para o Dr. No. Então ele tinha tido razão. Havia mesmo mais alguma coisa, muito mais, em tudo aquilo que os seus olhos tinham visto. Aquilo era uma grande partida, uma partida que explicava tudo, uma partida que no mercado internacional da espionagem bem valia a pena ser jogada. Bem, bem! Agora, as peças do quebra-cabeças tinham caído corretamente em seus lugares. Para isso tinha valido a pena, certamente, assustar alguns pássaros e eliminar algumas pessoas. Isolamento? Naturalmente que o Dr. No teria que matar a ele e à jovem. Poder? Sim, isso era poder. O Dr. No se tinha realmente lançado nos negócios.

Bond fixou os dois orifícios negros com um novo respeito, e observou: — O senhor terá que matar muito mais gente para manter isto em suas mãos, Dr. No. Isto vale muito dinheiro. O senhor tem aqui uma bela propriedade, superior ao que eu pensava, e as pessoas hão-de querer um pedaço deste bolo. Penso em quem será o primeiro a chegar até o senhor e matá-lo. Serão aqueles homens que estão lá em cima, treinados por Moscou? — e ele fez um gesto apontando para o teto. Depois continuou: — Eles são os técnicos. Eu me pergunto: o que Moscou estará lhes ordenando que façam? O senhor não poderia estar a par disso, poderia?

O Dr. No respondeu: — Vejo que continua subestimando meu valor, sr. Bond. O senhor é um homem obstinado e mais estúpido do que pensava. É claro que estou consciente dessas possibilidades. Separei um desses homens e transformei-o numa espécie de vigilante particular. Ele tem uma duplicata das cifras e da máquina. Vive em outra parte da montanha. Os outros pensam que ele morreu, mas ele está bem vivo a fiscalizar a cronometragem de rotina, e entrega-me diariamente uma cópia do tráfego que é registrado. Até agora os sinais emitidos por Moscou têm sido inocentes e não indicam qualquer conspiração. Penso em tudo isso constantemente, sr. Bond. Tomo precauções e ainda as multiplicarei para o futuro. Como disse, o senhor me tem subestimado.

— Não o subestimo, Dr. No. O senhor é um homem muito prudente, mas já há muitas pastas sobre o senhor. Em minha linha de atividades, a mesma coisa se aplica a mim, mas as suas pastas são muito perigosas. A chinesa, por exemplo. Não gostaria de ter uma com essa gente. A da FBI deve ser a menos penosa — roubo e falsa identidade. Mas o senhor conhece os russos tão bem quanto eu? Por enquanto o senhor é “o melhor amigo” deles. Mas os russos não têm sócios. Hão-de querer comprá-lo... — comprá-lo com um balaço. Depois vem a pasta que o senhor abriu com o meu serviço. O senhor quererá mesmo fazê-la mais volumosa? Eu não o faria se estivesse em seu lugar, Dr. No. O pessoal do meu serviço é muito obstinado. Se alguma coisa me acontecer e à jovem, o senhor verificará que Crab Key é uma ilha muito pequena e insignificante.

— Não se pode jogar grandes partidas sem assumir riscos, senhor Bond. Aceito os perigos e, até onde posso, procuro defender-me deles. Como vê — e a sua voz tinha um acento de cupidez — estou em vésperas de coisas muito maiores. O capítulo dois, ao qual já me referi, encerra promessa de prêmios que ninguém, a não ser um tolo, jogaria fora por ter medo. Já lhe disse que posso desviar os raios magnéticos por onde viajam os foguetes. Posso fazer com que estes mudem de rota e não obedeçam ao controle eletrônico. Que diria o senhor, se eu fosse ainda mais longe? Se eu os fizesse cair nesta ilha, a fim de recolher todos os segredos de sua construção? Atualmente, destróieres norte-americanos, nos confins do Atlântico Sul, recolhem esses foguetes quando eles esgotam o seu combustível e caem de pára-quedas sobre o mar. Algumas vezes os pára-quedas deixam de se abrir, e algumas vezes as instalações de autodestruição deixam de operar.

Ninguém em Turks Island se sentiria surpreendido se de vez em quando o protótipo de uma nova série saísse de sua trajetória e caísse perto de Crab Key. Antes de mais nada, isto seria atribuído a falhas mecânicas. Mais tarde talvez descobrissem que outros sinais, que não os seus, tinham estado a guiar os seus foguetes. Teria início, então uma guerra de freqüência. Tentariam e conseguiriam localizar a origem dos sinais falsos, mas assim que eu verificasse que eles estavam à minha caça, teria uma derradeira cartada. Os seus foguetes enlouqueceriam. Cairiam em Havana, em Kingston; dariam uma volta e despencariam sobre Miami. Mesmo sem as cargas detonantes, Sr. Bond, cinco toneladas de metal, chocando-se a mil milhas por hora, podem causar terríveis danos numa cidade super-povoada. E depois? Haveria pânico, haveria um clamor público. As experiências teriam de ser interrompidas. A base de Turks Island teria que fechar. E quanto não pagariam os russos para que isso acontecesse, sr. Bond? E quanto por protótipo que eu capturasse para eles? Digamos dez milhões de dólares por toda a operação? Vinte milhões? Seria uma vitória sem preço na corrida dos armamentos. Posso fazer o meu preço, não concorda, sr. Bond? E não concorda também que essas considerações tornam os seus argumentos e ameaças engraçadíssimos?

Bond não respondeu. Nada havia a dizer. Subitamente se viu em pensamento naquela sala tranqüila de Regents Park. Podia ouvir a chuva batendo suavemente contra a janela e a voz de M, impaciente e sarcástica, dizendo: “Oh, algum maldito negócio em torno de aves... umas férias ao sol lhe farão bem... investigações rotineiras.” E ele, Bond, tinha apanhado uma canoa, um caniço e um farnel de piquenique e partira — há quantos dias, há quantas semanas? — “para dar uma espiada”. Bem, ele tinha dado uma espiada na caixa de Pandora. E tinha tido as respostas, conhecera os segredos — e agora? Agora iriam mostrar-lhe polidamente o caminho para a sepultura, para onde ele levaria consigo o seus segredos arrancados e arrastados por ele em sua lunática aventura. Toda a amargura que lhe ia no íntimo aforou à boca, de modo que por um momento pensou que ia vomitar. Apanhou o copo e esvaziou todo o resto de champanha que nele havia. Depois disse asperamente: — Muito bem, Dr. No. Agora vamos ao cabaré. Qual é o programa — faca, bala, veneno, corda? Mas proceda rapidamente, já o vi bastante.

Os lábios do Dr. No se apertaram numa fina linha arroxeada. Os olhos eram duros como ônix, sob a bola de bilhar de sua fronte e crânio. A máscara de polidez tinha desaparecido. O Grande Inquisidor sentava-se na cadeira de alto espaldar. Tinha soado a hora para a “peine forte et dure”.

O Dr. No proferiu uma palavra e os dois guardas avançaram um passo e agarraram as suas vitimas pelos braços, acima dos cotovelos, mantendo-as imobilizadas para trás, apoiadas nos lados das cadeiras. Não houve resistência. Bond concentrou-se em manter o isqueiro sob o sovaco. As luvas brancas em seus bíceps pareciam faixas de aço. Sorriu para a jovem. — Desculpe-me por isso, Honey, — disse. — Receio que afinal de contas não possamos mais brincar juntos.

Os olhos da jovem, em seu rosto pálido, tinham ficado azul-escuros, pelo medo. Seus lábios tremiam, e ela perguntou: — Doerá muito?

— Silencio! — A voz do Dr. No soou como o estalar de um chicote. — Chega de tolices. Naturalmente que doerá. Estou interessado na dor. E estou igualmente interessado em descobrir quanto de dor o corpo humano pode suportar. De vez em quando faço experiências com os meus subordinados que devem ser punidos, e em intrusos como os senhores. Acarretaram-me os senhores grandes dificuldades. Em troca, pretendo causar-lhes uma grande soma de dor. Registrarei os níveis de suas resistências. Os fatos serão anotados, e um dia as minhas pesquisas serão relatadas ao mundo. As suas mortes terão servido à Ciência. Nunca desperdiço material humano. As experiências feitas pelos alemães com seres humanos vivos, durante a guerra, foram de grande proveito para a Ciência. Faz um ano que pus uma mulher para morrer da maneira que escolhi para a senhora. Ela era uma negra e durou três horas, mas morreu de terror. Queria agora fazer a experiência com uma mulher branca, para poder estabelecer uma comparação. Não me surpreendi quando a sua chegada me foi comunicada. Consigo sempre o que quero. — O Dr. No reclinou-se para trás na cadeira. Seus olhos estavam agora fixos na jovem, estudando-lhe as reações. Honeychile correspondia ao olhar, como que meio hipnotizada, como um rato do mato diante de uma cascavel.

Bond apertou os dentes.

— A senhora é uma jamaicana, por isso saberá o que quero dizer. Esta ilha chama-se Crab Key. Recebeu este nome porque está infestada de caranguejos — o que chamam em Jamaica “caranguejos negros”. A senhora os conhece. Pesam meio quilo, cada um, e têm o tamanho de um pires. Nesta época do ano eles saem aos milhares de seus esconderijos, próximos à costa, e sobem em direção à montanha. Lá, nos planaltos de coral, eles se alojam novamente em buracos da rocha, onde desovam. Avançam em exércitos de centenas, de cada vez. Atravessam tudo e sobre tudo. Em Jamaica eles invadem as casas e não se desviam de seu caminho. São como certos roedores da Noruega. É uma migração irresistível. — O Dr. No fez uma pausa. Em seguida acrescentou suavemente: — Mas há uma diferença. Os caranguejos devoram o que encontram em seu caminho. E agora, minha senhora, eles já estão em marcha. Estão galgando as faldas da montanha, às dezenas de milhares, em ondas negras e vermelho-laranja. Estão, neste momento, se apressando e se empurrando e arranhando a rocha acima de nós. E esta noite, no meio do seu caminho, eles vão encontrar o corpo nu de uma mulher sòlidamente preso — um banquete preparado para eles — e vão apalpar o corpo morno com suas pinças, e um deles dará o primeiro corte com suas garras de combate e então... e então...

A moça gemeu. Sua cabeça caiu para a frente sobre o peito. Desmaiara. O corpo de Bond inteiriçou-se na cadeira. Uma torrente de palavras obscenas escapou por entre seus dentes cerrados. As manoplas dos guardas pareciam-lhe ferro à volta dos braços. Nem sequer podia fazer deslizar os pés da cadeira no chão. Depois de um momento de luta, desistiu. Esperou que sua voz se acalmasse, e disse então, com todo o veneno que podia instilar nas palavras:

— Seu bastardo! Você há-de frigir no inferno se fizer isso!

O Dr. No sorriu fracamente.

— Senhor Bond, não acredito na existência do inferno. Procure consolar-se. Talvez eles comecem pela garganta ou pelo coração. O bater do pulso ainda os poderá atrair. Depois disso, tudo acabará depressa.

Proferiu então uma sentença em chinês. O guarda que estava atrás da cadeira da moça inclinou-se para a frente, levantou-a da cadeira como se fora uma criança e atirou-a por cima do ombro. Os belos cabelos caíam qual cascata de ouro entre os braços inertes. O guarda foi à porta, abriu-a e saiu, formando a fechá-la sem ruído.

Por um momento, reinou, silêncio na sala. Bond pensava somente na faca encostada ao seu ventre e no isqueiro debaixo da axila. Qual a extensão dos estragos que ele poderia causar com aqueles dois pedaços de metal? Poderia, de algum modo, aproximar-se do Dr. No?

O Dr. No continuou serenamente: — O senhor disse que o poder era uma ilusão, sr. Bond. Não modifica a sua opinião? O meu poder de escolher a morte que quiser para essa jovem certamente que não é uma ilusão. Todavia, passemos ao método de sua morte. Isso também encerra aspectos novos. Saiba, sr. Bond, que estou interessado na anatomia da coragem — do poder de resistência do corpo humano. Mas como medir a resistência humana? Como traçar um gráfico da vontade de sobrevivência, da tolerância à dor, da conquista do medo? Pensei muito nesse problema e acredito tê-lo solucionado. Trata-se, por enquanto, de um método incompleto e grosseiro, mas que será aperfeiçoado na medida em que as experiências se forem multiplicando. Preparei o senhor para essa experiência. Dei-lhe um sedativo, de modo que o seu corpo esteja descansado, e alimentei-o bem, de modo que possa estar no gozo completo de suas forças. Os futuros — como os chamarei — pacientes, terão as mesmas vantagens. Todos começarão nas mesmas condições. Depois disso, o restante será uma questão de coragem e do poder de resistência individuais.

O Dr. No fez uma pausa, enquanto observava o rosto de Bond. Depois prosseguiu: — Saiba ainda, sr. Bond, que justamente agora acabo de construir uma espécie de pista de obstáculos, uma espécie de pista de corrida contra a morte. Não direi mais sobre isso porque o elemento surpresa é um dos que aparecem na formação do medo. Os perigos desconhecidos são os piores, os que mais pressionam as reservas de coragem. E me alegro com a idéia de que a corrida de obstáculos que o senhor enfrentará contém um rico sortimento de coisas inesperadas. Será particularmente interessante sr. Bond, que um homem com as suas qualidades físicas seja o meu primeiro competidor. Será interessantíssimo ver até onde o senhor conseguirá alcançar, na pista que idealizei. Não há dúvida de que o senhor estabelecerá uma marca invejável para os futuros corredores. Tenho grandes esperanças no senhor. O senhor deverá ir muito longe, mas quando tombar, inevitavelmente, diante de um obstáculo, seu corpo será recolhido e eu examinarei meticulosamente os seus restos. Os dados assim colhidos serão registrados e o senhor representará o primeiro ponto de um gráfico. Algo honroso, não é, senhor Bond?

Bond nada respondeu. Que diabo significaria tudo aquilo? Em que poderia consistir aquela prova? Seria possível escapar dela com vida? Poderia escapar disso e salvar Honeychile antes que fosse demasiado tarde, ainda que para matá-la e assim salvá-la da tortura? Silenciosamente, Bond ia reunindo suas reservas de coragem, retemperando a mente contra o temor do desconhecido que já começava a envolver a sua garganta, e focalizando a sua vontade no alvo da sobrevivência. Acima de tudo, deveria apegar-se às suas armas.

O Dr. No levantou-se e afastou-se da cadeira. Caminhou vagarosamente até a porta e voltou-se. Seus olhos negros e ameaçadores fixavam Bond, pouco abaixo da armação da porta. A cabeça estava ligeiramente inclinada e os lábios finos tornaram a se mexer: — Faça uma boa corrida para mim, sr. Bond. Meus pensamentos, como se costuma dizer, o acompanharão.

O Dr. No afastou-se e a porta fechou-se suavemente por trás de seus costados amarelos.


XVII - O PROLONGADO GRITO


Havia um homem no elevador, cujas portas estavam abertas, à espera. James Bond, com os braços ainda torcidos, junto aos flancos, foi impelido para dentro do elevador. Agora, a sala de jantar estava vazia. Quando voltariam os guardas para desembaraçar a mesa e então notar o desaparecimento dos objetos subtraídos? As portas fecharam-se e o cabineiro ficou diante dos botões, de modo que Bond não pôde ver qual deles teria sido apertado. Sabia apenas que estavam, subindo, e tentou fazer um cálculo da distância percorrida. O elevador parou, e Bond teve a impressão de que o tempo gasto naquele percurso fora menor do que quando descera juntamente com Honeychile. As portas abriram-se para um corredor sem tapete, com uma pintura cinzenta e rústica nas paredes de granito. Esse corredor ia numa linha reta até uma distância de vinte metros.

— Espere aí — disse o guarda de Bond para o cabineiro — voltarei logo.

Bond foi conduzido ao longo do corredor, passando diante de portas marcadas com letras do alfabeto. Ouvia-se um leve zunido de maquinaria no ar, e, por trás de uma porta, Bond teve a impressão de ouvir descargas estáticas de equipamento eletrônico. Aquilo parecia vir da sala de máquinas, no coração da montanha. Logo chegaram à porta da extremidade do corredor que estava marcada com um Q negro. Ela estava entreaberta, de modo que logo se escancarou quando Bond foi empurrado através dela. Por trás daquela porta estava uma cela pintada de cinzento, com cerca de quinze pés quadrados. Nela nada havia, a não ser uma cadeira de madeira, sobre a qual estavam, lavadas e cuidadosamente dobradas, as calças pretas de Bond e a sua camisa azul.

O guarda soltou os braços de Bond, que logo se voltou e olhou para o rosto amarelo, sob os cabelos ondeados. Havia um leve sinal de curiosidade e prazer nos olhos marrons e úmidos. O homem estava de pé, segurando a maçaneta da porta. — Bem, aqui estamos, rapaz. Você está no ponto de partida. Poderá ficar aí sentado, apodrecendo, ou procurar uma saída e iniciar a corrida. Felicidades para você.

Bond pensou que valeria a pena tentá-lo. Deu ainda uma olhadela para além do guarda, onde o cabineiro ainda se conservava ao lado de suas portas abertas, observando-os.

Então disse suavemente: — Você não gostaria de ganhar dez mil dólares, garantidos, e uma passagem para qualquer lugar do mundo que desejasse? — Dito isso, observou cuidadosamente as reações do homem. A boca se abriu numa ampla careta, mostrando dentes escurecidos, desigualmente gastos pelos anos de mascagem de cana-de-açúcar.

— Muito obrigado, senhor. Prefiro continuar vivendo. — O homem fez menção de fechar a porta e Bond ainda gritou ansiosamente: — Podemos sair juntos daqui.

Os grossos lábios fizeram uma careta de desprezo, e o homem apenas disse: “Vá em frente!” E logo a porta se fechou com um duro estalido.

Bond deu de ombros, mas logo passou a examinar a porta. Era feita de metal e não havia maçaneta do lado de dentro. Bond preferiu não experimentar o ombro de encontro àquela barreira. Aproximou-se da cadeira, sentou-se sobre a pilha de suas roupas limpas, e olhou à volta da cela. As paredes eram inteiramente nuas, com exceção de uma grade para ventilação, feita de arame grosso, num dos cantos, logo abaixo do teto. Aquela abertura era maior que os seus ombros. Era, evidentemente, a entrada para a pista dos obstáculos. A única abertura restante, naquele recinto, era uma espécie de vigia de espesso vidro, logo acima da porta, e que não seria maior do que a cabeça de Bond. A luz, vinda do corredor, atravessava aquela grade e penetrava na cela. Nada mais havia. Não seria inteligente perder tempo. Seriam dez e meia. Lá fora, em alguma parte da falda da montanha, a jovem já deveria estar deitada, estendida sobre o chão, à espera do matraquear das pinças no coral cinzento. Bond apertou os dentes ao pensamento daquele corpo frágil e indefeso sob as estrelas. Bruscamente, pôs-se de pé. Que diabo estava ele fazendo ali sentado? O que quer que existisse do outro lado da grade deveria ser imediatamente enfrentado.

Bond apanhou a faca e o isqueiro, e tirou o quimono. Em seguida vestiu as calças e a camisa, enfiando o isqueiro no bolso. Experimentou o corte da faca com o polegar, e verificou que a lamina era bastante afiada. Seria ainda melhor se pudesse fazer uma ponta naquela lâmina. Ajoelhou-se no chão e começou a esfregar a extremidade arredondada da faca na laje do pavimento. Depois de um precioso quarto de hora, deu-se por satisfeito. Não era um estilete, mas que tanto serviria para cortar como para espetar. Colocou-a então entre os dentes e arrastou a cadeira para baixo da abertura gradeada. A grade? Supondo que pudesse arrancá-la pela base, aquele arame bem poderia ser esticado, de modo a formar uma lança, facultando-lhe assim uma terceira arma. Bond esticou os braços, com os dedos encurvados.

A coisa imediata de que tomou consciência foi uma dor de queimadura ao longo do braço e o choque de sua cabeça, ao atingir o chão de pedra. Ficou durante algum tempo estendido no solo, apenas com a lembrança de uma faísca azulada e o estalido e o chiado seco de eletricidade.

Depois de algum tempo, Bond pôs-se de joelhos e assim ficou por um momento. Em seguida baixou a cabeça e sacudiu-a lentamente de um lado para outro, como um animal ferido. Sentiu um leve odor de carne queimada. Levantou a mão direita à altura dos olhos e viu a mancha vermelha de uma queimadura aberta ao longo da parte interna dos dedos. A visão daquele ferimento trouxe-lhe também a consciência da dor. Bond proferiu uma imprecação. Vagarosamente pôs-se de pé. Dessa vez, olhou de soslaio, cautelosamente, para a grade, como se ela fosse feri-lo novamente. Irritado, encostou a cadeira na parede, apanhou a faca e com ela cortou uma faixa do quimono, envolvendo-a firmemente nos dedos. Em seguida tornou a subir na cadeira e olhou para a grade. Esperava-se que ele a atravessasse, e aquele choque tinha sido calculado apenas para amolecê-lo: era uma amostra do que estaria por vir. Com certeza o curto-circuito causado por ele já tinha posto fora de combate aquela armadilha. Olhou para a grade apenas por um instante, e já os dedos de sua mão esquerda a atingiam e atravessavam. Do outro lado não havia nada. Seria mesmo só aquela grade? Puxou a armação e ela cedeu uma polegada. Fez novo esforço e a grade foi arrancada do lugar, ficando pendurada por dois fios de cobre que desapareciam no interior da parede. Bond soltou a grade das pontas daqueles fios e desceu da cadeira. Havia um ponto de junção no arame de ferro, naquela grade, e Bond pôs-se a retificá-la, usando a cadeira como martelo.

Depois de dez minutos tinha à sua disposição um chuço recurvado de cerca de um metro de comprimento. Uma des extremidades, que tinha sido originalmente cortada por alicates, apresentava-se lacerada. Não atravessaria as roupas de um homem, mas teria efeito devastador no pescoço ou no rosto. Lançando mão de toda sua força e servindo-se da fresta inferior da porta metálica, Bond conseguiu fazer ainda um gancho com a extremidade rombuda daquele arame de ferro. Em seguida mediu-o com a perna e achou que aquela nova arma era demasiado longa. Em conseqüência, dobrou-a em dois e enfiou-a numa das pernas da calça. Agora, o chuço ia de sua cintura, onde fora pendurado, até o joelho. Voltou então para a cadeira e tornou a subir até a boca do ventilador, agora desobstruída. Não experimentou mais choque. Ergueu o corpo e introduziu-o naquele tubo que tinha mais quatro polegadas que a largura de seus ombros. Durante algum tempo deixou-se ficar, de barriga para baixo, a olhar para o interior da abertura. O túnel era circular e de metal polido. Bond apanhou o isqueiro, abençoando a inspiração que o fizera roubá-lo, e acionou-o. Sim, aquilo era folha de zinco que parecia nova. O túnel continuava em linha reta, sem qualquer característica especial, a não ser as costuras de junção das várias seções tubulares. Bond tornou a meter o isqueiro no bolso e foi-se arrastando para a frente.

Aquele deslizamento não foi difícil, e até mesmo uma brisa fresca, proveniente do sistema de ventilação, afagava o rosto de Bond. O ar não trazia nenhum cheiro de mar, sendo o seu odor o mesmo que caracteriza o ar de uma instalação de condicionamento de temperatura. O Dr. No devia ter lançado mão de um dos tubos do sistema para as suas experiências. Mas que armadilhas teria introduzido naquele tubo, a fim de pôr à prova as suas vítimas? Deviam ser engenhosas e dolorosíssimas — imaginadas para reduzir a resistência de suas vítimas. No final dos obstáculos, com certeza, a vítima seria surpreendida com o golpe de misericórdia — se é que lograsse chegar ao fim. Com efeito, haveria ali algo que não admitisse escapatória, pois nessa corrida não haveria prêmios, mas apenas padecimentos. A não ser, naturalmente, que o Dr. No tivesse subestimado a vontade de sobrevivência de seu desafeto. Essa, pensou Bond, era a sua única esperança — tentar vencer todos os obstáculos que se lhe deparassem, rompendo pelo menos até a última estacada.

Havia uma pálida luminosidade à sua frente. Bond foi-se arrastando cautelosamente, com todos os seus sentidos atuando como antenas. Aquela luminosidade foi-se tornando mais clara. Era o reflexo da luz que incidia sobre um dos lados da extremidade do tubo. Continuou avançando até que sua cabeça tocou naquela extremidade. Aí, Bond se torceu sobre as costas e olhou para cima. Sobre sua cabeça estava uma chaminé de cerca de cinqüenta metros de altura, em cujo topo havia uma claridade estável. Era como se alguém olhasse através de um comprido cano de canhão. Bond enfiou a cabeça por aquela chaminé e pôs-se de pé. Então, esperava-se que ele galgasse aquele tubo liso, sem qualquer apoio para os pés! Seria possível? Bond expandiu os ombros. Sim, eles lhe proporcionariam uma boa adesão às paredes laterais. Seus pés também o ajudariam na empreitada, embora escorregassem terrivelmente, a não ser nas orlas em que se soldavam os tubos. Bond deu de ombros e tirou os sapatos. Não adiantava monologar. Teria apenas que tentar.

Seis polegadas de cada vez, e o corpo de Bond começou a deslizar pela chaminé acima. A operação consistia em expandir os ombros para se fixar à chaminé, depois levantar os pés, unir os joelhos fortemente, e forçar os pés para fora, em direções opostas, contra o metal, e rapidamente contrair e expandir os ombros novamente, ao mesmo tempo que os pés escorregavam para baixo, deixando, entretanto, como saldo uma pequena progressão de algumas polegadas. E continuar repetindo, repetindo e repetindo a operação, até que os seus olhos fossem banhados pela luz que vira no topo da chaminé. De quando em quando pararia na saliência da solda dos tubos, a fim de descansar um pouco, recuperar o fôlego e medir o próximo avanço. E não havia que olhar para cima; apenas concentrar-se nas polegadas de metal que deveriam ser vencidas, uma a uma. Nada de preocupações com a luminosidade que pareceria nunca aumentar ou se aproximar. Também não deveria preocupar-se com a possibilidade de afrouxar a pressão dos ombros contra as paredes metálicas, indo esmagar os tornozelos no fundo da chaminé. E nenhuma preocupação com cãibras, com o inchaço dos ombros ou com as esfoladuras dos pés. Apenas ataque às polegadas prateadas, conquistando-as uma a uma.

Mas logo os pés começaram a suar e escorregar de modo desesperador. Por duas vezes Bond perdeu um metro, em virtude do escorregamento de seus ombros, que ficaram terrivelmente escalavrados com o atrito, antes de poder conseguir a freagem. Em certa altura teve mesmo que se deter durante algum tempo para esperar que o suor secasse com a corrente de ar que descia pela chaminé. Essa pausa durou dez minutos, durante os quais ele se viu apagadamente refletido na superfície metálica, com o rosto dividido ao meio pela faca que segurava entre os dentes. Ainda assim recusou-se a olhar para cima, a fim de ver quantos metros teria que vencer. Aquela derradeira seção poderia ser muito longa. Cuidadosamente Bond esfregou cada pé num cano de calça e recomeçou a batalha.

Agora, parte de sua mente sonhava, enquanto a outra se empenhava na luta. Nem mesmo estava consciente de que a luminosidade se ia acentuando lentamente e que a brisa se tornava mais forte. Via-se apenas como uma lagarta ferida, arrastando-se por um cano de descarga em direção a um ralo de banheira. O que veria quando atravessasse o ralo? Uma jovem nua se enxugando? Um homem fazendo a barba? A luz do sol filtrando-se para dentro de um banheiro Vazio?

A cabeça de Bond bateu de encontro a alguma coisa. O ralo estava obstruindo o orifício! O choque do desapontamento fez que escorregasse uma polegada, antes que seus ombros pudessem retê-lo firmemente. Então compreendeu que tinha chegado ao topo da chaminé! Agora notava a luz forte e o vento impetuoso. Ansiosamente, ele se alçou novamente até que a cabeça tocou em algo. O vento soprava contra sua orelha esquerda. Cautelosamente, voltou a cabeça para essa direção. Era outro tubo lateral. Acima de sua cabeça a luz se escoava através de uma espessa vigia. Tudo o que tinha a fazer era contornar aquela derivação, agarrando-se à orla do novo tubo, e, de qualquer maneira, encontrar forças para se introduzir naquele túnel lateral. Então poderia descansar um pouco, deitado.

Com redobrada cautela, nascida do pânico de que algo agora podia acontecer, de que poderia cometer um erro e ser precipitado no fundo da chaminé, Bond empreendeu a manobra, com suas últimas reservas de forças, e introduzindo-se na nova caverna caiu estirado com o rosto para baixo.

Mais tarde — quanto tempo mais tarde? — os olhos de Bond se abriram e seu corpo estremeceu. O frio o tinha despertado da total inconsciência em que o seu corpo o teria lançado. Penosamente, virou-se de costas, com pés e ombros doendo terrivelmente, e procurou reunir todas as forças mentais e físicas. Não tinha a mínima idéia da hora ou do lugar em que estaria no interior da montanha. Levantou a cabeça e olhou para trás, em direção à vigia, sobre o tubo vertical, do qual escapara. A luz era amarelada e o vidro parecia muito grosso. Lembrou-se da vigia existente na sala Q. Aquela vigia era absolutamente inquebrável, e esta também o seria, pensou ele.

Subitamente, por trás daquele vidro, distinguiu movimento. Enquanto observava, um par de olhos se materializaram, por trás de lâmpadas elétricas. Aqueles olhos pararam e fitaram-no, com o farolete parecendo um nariz entre aqueles dois olhos. Fixaram-no negligentemente e depois desapareceram. Os lábios de Bond explodiram numa imprecação. Então o seu progresso estava sendo observado para ser levado ao conhecimento do Dr. No.

Bond disse em voz alta: “Para o diabo com todos eles!”,, e voltou-se colérico sobre o ventre. Levantou a cabeça e olhou para a frente. O túnel desaparecia na escuridão. Para a frente! Não adianta nada perder tempo aqui. Apanhou a faca, colocou-a entre os dentes e foi abrindo caminho.

Em breve já não havia mais nenhuma luminosidade. Bond detinha-se de quando em quando para acender o isqueiro mas nada encontrava a não ser trevas. O ar começou a se tornar mais cálido, dentro do túnel, e, depois de uns cinqüenta metros talvez, decididamente quente. Havia mesmo cheiro de calor no ar, de calor metálico. Bond começou a suar.. Dentro de alguns minutos seu corpo estava completamente encharcado e ele tinha que parar para limpar os olhos. Deu uma volta à direita, no tubo, e, na nova seção, sentiu o metal bastante quente contra a sua pele. O cheiro de calor metálico era agora bem acentuado. Assim que enfiou a cabeça no novo túnel, tirou o isqueiro do bolso, acendeu-o e rapidamente recuou. Amargamente, considerou a nova dificuldade, medindo-a e amaldiçoando-a. A chama de seu isqueiro tinha iluminado uma seção de tubos de zinco descolorido. A nova dificuldade seria o calor!

Bond resmungou alto. Como a sua carne já esfolada poderia resistir àquilo? Como poderia proteger a pele contra o metal? Mas não havia solução satisfatória. Ou voltaria, ou continuaria ali parado ou, afinal, avançaria. Não havia outra decisão a tomar. Aliás, Bond começava a encontrar algum consolo em suas reflexões. Com efeito, não seria o calor que haveria de matá-lo, mas alguma mutilação. O metal aquecido não seria o seu campo de sacrifício — apenas mais uma prova para medir-lhe a resistência.

Bond pensou na jovem e no que ela estaria sofrendo. Oh, sim, para a frente com aquilo. Agora, vejamos...

Bond apanhou a faca e cortou toda a parte da frente da camisa, fazendo com ela várias faixas. A única esperança estaria em dar alguma proteção às partes de seu corpo que mais sofreriam a ação do calor, isto é, os pés e as mãos. Seus joelhos e cotovelos teriam de resistir apenas com a proteção normal da fina camada de roupa. E, assim, dispôs-se à luta, amaldiçoando-a.

Agora estava pronto. Um, dois, três...

Bond dobrou o ângulo do túnel e lançou-se contra o foco de calor.

Mantenha a barriga nua distante do chão! Contraia os ombros! Mãos, joelhos, pés; mãos. joelhos, pés. Mais depressa! Mais depressa! Sempre mais depressa, de modo que cada toque contra o chão seja rapidamente seguido por outro.

Os joelhos é que mais estavam sofrendo, agüentando a maior parte do peso do corpo. Agora, as mãos envoltas em panos estavam começando a chamuscar. Acendeu-se uma fagulha, e logo outra, e em seguida surgiram chamas, quando as fagulhas começaram a se deslocar. A fumaça que saía daquele envoltório de pano de suas mãos fazia que os seus olhos ardessem penosamente. Por Deus, ele não agüentaria mais! Não havia mais ar. Seus pulmões estavam a ponto de estourar. Agora as suas duas mãos estavam lançando fagulhas para os lados. O tecido devia estar quase acabado; então a carne começaria a queimar. Bond deu um guinada e seu ombro ferido tocou no metal. Um grito de dor ecoou no túnel, logo seguido de outros gritos proferidos regularmente, quando suas mãos, pés ou joelhos tocavam no metal escaldante. Agora ele estava liquidado. Era o fim. Mais alguns segundos e iria cair de borco, morrendo literalmente queimado. Não! Devia opor um supremo esforço de reação, ainda que aos berros, até que toda a carne tivesse sido queimada até os ossos. A pele dos joelhos já devia ter sido completamente destruída. Mais um pouco e as palmas de suas mãos estariam tocando no metal. Apenas o suor que corria de seus braços poderia manter úmido o pano de suas mãos. Grite, grite, grite! Isto aliviará a dor.” Isto dirá que você está vivo. Continue! Continue! Não pode durar muito mais. Não é aqui que você deverá morrer. Não fraqueje! Você não pode!

A mão direita de Bond tocou em alguma coisa que cedeu. Logo sentiu uma corrente de ar frio. A outra mão bateu então em sua cabeça. Ouviu-se um débil ruído. Bond sentiu a orla inferior de um anteparo de amianto, articulado na parte superior do tubo, e que agora se arrastava em suas costas. Tinha vencido aquela prova. Ouviu o barulho daquele anteparo fechando-se novamente, depois de ter dado passagem a todo o seu corpo. Suas mãos estavam agora encostadas numa sólida parede. Com os dedos, apalpou à direita e à esquerda. Era um desvio em ângulo reto. Seu corpo seguiu cegamente volta do desvio e o ar frio parecia penetrar em seus pulmões como lâminas de aço geladas. Prudentemente, encostou os dedos no metal. Estava frio! Com um gemido Bond caiu sobre o rosto e ficou quieto.

Algum tempo depois, a dor tornou a reavivá-lo. Bond voltou-se dolentemente, de costas. Vagamente notou uma vigia de vidro acima de sua cabeça, e vagamente percebeu aquele mesmo par de olhos a fitá-lo. Depois, deixou novamente que as ondas de trevas o submergissem.

Aos poucos, na escuridão, as bolhas feitas em toda a pele e os pés e ombros queimados começaram a endurecer. O suor tinha-se secado no corpo e nos farrapos da roupa, enquanto o ar penetrara nos pulmões superaquecidos, começando o seu insidioso trabalho. Mas o coração continuava batendo, forte e regularmente, por dentro da torturada carcaça, e os poderes mágicos do oxigênio levaram nova vida para dentro das artérias e veias, recarregando os nervos.

Depois de um tempo que lhe pareceu infinito, Bond despertou. Estremeceu, e, ao encontrarem-se os seus olhos com o outro par que o espreitava, por trás do vidro, a dor se apoderou dele e sacudiu-o como se fosse um rato. Esperou que aquela descarga de dor o matasse. Tentou novamente, e novamente, até que conseguiu aquilatar toda a força do adversário. Em seguida, para esconder-se da testemunha, voltou-se sobre o estômago e resistiu a toda a dor que vinha de dentro de si próprio. Continuou em expectativa, explorando o corpo para verificar-lhe as reações, pondo à prova a força de decisão que ainda tivesse restado nas baterias. Quanto mais poderia ainda agüentar? Os lábios de Bond desprenderam-se dos dentes e ele rosnou na escuridão. Era um som animal. Tinha chegado ao fim de suas reações humanas à dor e à adversidade. O Dr. No o tinha encurralado. Mas ainda restavam reservas de desespero animal e, num animal forte, essas reservas são consideráveis.

Lentamente, em verdadeira agonia, Bond deslizou mais alguns metros para fora do campo visual daqueles olhos e procurou o seu isqueiro, acendendo-o. À sua frente via apenas uma lua cheia negra, a boca circular que o levaria ao estômago da morte. Bond guardou o isqueiro, respirou profundamente e pôs-se sobre os joelhos e mãos. A dor não foi maior, apenas diferente. Lentamente, com movimentos duramente articulados, avançou.

O tecido de algodão de seus joelhos e de seus cotovelos tinha sido completamente queimado. Entorpecidamente, seu cérebro foi registrando a umidade à medida que suas bolhas se abriam contra o metal frio. Enquanto se movia, ia simultaneamente flexionando os dedos e os pés, sentindo-lhes a dor. Lentamente foi sabendo o que poderia fazer, o que doeria menos. Esta dor é suportável, refletiu ele consigo mesmo. Se eu tivesse sofrido um desastre de avião, eles diagnosticariam apenas contusões e queimaduras superficiais. Teria alta do hospital dentro de alguns dias. Não há nada de sério comigo. Sou um sobrevivente de desastre. Dói, mas não é nada. Pense nos pedaços de carnes dos outros passageiros. Dê-se por feliz. Tire isso de sua cabeça. Mas, por trás de todas essa reflexões, estava o pensamento de que, em verdade, ele ainda não experimentara o desastre, — que ainda estava a caminho dele, com sua resistência e sua capacidade muito reduzidas. Quando chegaria ele? Que caráter teria? E quanto mais ainda seria ele amolecido antes de chegar à arena do sacrifício?

à frente, na escuridão, aqueles pequeninos pontos vermelhos bem poderiam ser uma alucinação, manchas rubras diante de seus olhos, causadas pela exaustão. Bond parou e apertou os olhos. Balançou a cabeça. Não, aqueles pontinhos vermelhos ainda estavam lá. Vagarosamente, arrastou-se para mais perto deles. Agora não havia dúvida de que eles se estavam movendo. Bond deteve-se novamente. Alem das batidas de seu coração, ouvia uma espécie de murmúrio suave e delicado. Aqueles pontinhos do tamanho de uma cabeça de alfinete tinham aumentado. Agora haveria vinte ou trinta, deslocando-se para a frente e para trás, alguns rapidamente, outros mais vagarosamente, em todo o círculo negro que o esperava à frente. Susteve o fôlego, assim que conseguiu acender o isqueiro. Os pontinhos vermelhos tinham desaparecido. Substituindo-os, ele viu a um metro de distância, à sua frente, uma tela muito fina, quase da finura de musselina, bloqueando o túnel.

Bond continuou deslocando-se por centímetros, para diante, com o isqueiro aceso à frente. Aquilo era uma espécie de gaiola, com pequeninos animais no seu interior. Podia ouvir aqueles diminutos seres fugindo à luz. A um pé apenas da tela apagou a luz e esperou que seus olhos se acostumassem à escuridão. Enquanto esperava, escutando, pôde ouvir novamente os pequeninos animais aproximarem-se dele, e, gradualmente, aquela floresta de pequeninos pontinhos vermelhos começou a se juntar, fitando-o através da tela.

Que seria aquilo? Bond ouviu seu coração bater com força. Serpentes? Escorpiões? Centopéias?

Cuidadosamente, foi aproximando os olhos daquela floresta de pontos luminosos. Aproximou o isqueiro bem junto da tela e acendeu-o bruscamente. Pôde apreender, num relance, a visão de pequeninas patas que atravessavam a tela e de dezenas de pés cabeludos e de ventres igualmente cabeludos com a forma de sacos, tendo em determinado ponto grandes cabeças de insetos que pareciam cobertas de olhos. Os animais fugiam em precipitada corrida, abandonando a tela da frente para irem refugiar-se na extremidade oposta da gaiola, formando uma só massa cinza-marrom.

Bond olhou através da tela, movendo o isqueiro para a frente e para trás. Depois apagou-o para economizar gasolina, e deixou que a respiração saísse por entre os dentes, num tranqüilo suspiro.

Eram aranhas, gigantescas tarântulas, de três ou quatro polegadas de comprimento. Haveria umas vinte delas dentro daquela gaiola. E, de qualquer maneira, ele teria que passar por perto delas.

Bond ficou parado, descansando e pensando, enquanto os olhos vermelhos se iam reunindo outra vez diante de seu rosto.

Qual seria o grau de letalidade daqueles animais? Quanto das lendas em torno delas seria mito? Certamente que podiam matar animais, mas em que medida seriam mortais para o homem aquelas gigantescas aranhas? Bond deu de ombros. Lembrou-se da centopéia. O toque das tarântulas seria muito mais suave. Seriam como o toque das patas de ursinhos de brinquedo contra a pele humana — até que mordessem e esvaziassem os seus folículos venenosos no organismo da pessoa.

Mas, ainda aqui, seria esta a arena do sacrifício derradeira, montada pelo Dr. No? Uma mordida ou duas, talvez, para mandar uma pessoa para um delírio de dor. O horror de ter que atravessar a tela no escuro — o Dr. No não teria pensado no isqueiro de Bond — varando aquela floresta de olhos, esmagando alguns corpos moles mas sentindo as picadas de outros. E depois mais picadas das que tivessem ficado presas à roupa. Em seguida, a lenta agonia do veneno. Este deveria ter sido o caminho percorrido pela imaginação do Dr. No — para que a vítima prosseguisse aos gritos pelo seu caminho. Para quê? Para a barreira final?

Mas Bond tinha o isqueiro, a faca e o chuço de arame. Tudo o que iria precisar era nervos e uma precisão infinita.

Delicadamente abriu a tampa do isqueiro e, com o polegar e indicador, fez sair o pavio uma polegada. Acendeu-o, e quando as aranhas recuaram, furou a tela com a faca. Fez um buraco na armadura e cortou para os lados. Depois, apanhou a aba da tela, que assim se desprendera, e arrancou-a da armadura. A tarefa não foi difícil, pois a aba fendeu-se numa só peça, com um tecido de algodão. Tornou a colocar a faca entre os dentes e atravessou a abertura. As aranhas recuaram diante da chama e amontoaram-se umas sobre as outras. Bond retirou o chuço de arame de dentro das calças e bateu com o arame dobrado sobre aqueles corpos moles. Bateu e tornou a bater ferozmente, reduzindo os aracnídeos a uma pasta informe. Quando algumas das aranhas tentaram escapar em sua direção, ele acenou-lhes com a chama e esmagou as fugitivas, uma a uma. Agora, as aranhas vivas estavam atacando as mortas, e tudo quanto Bond tinha a fazer era terminar o massacre.

Lentamente todos aqueles movimentos convulsivos foram declinando até cessarem completamente. Estariam todas mortas? Estariam algumas simulando morte? A chama do isqueiro estava começando a morrer. Teria que enfrentar o risco. Avançou mais um pouco e atirou aquela massa escura e pegajosa para um lado. Depois tirou a faca de entre os dentes e abriu a segunda cortina, puxando a aba cortada para cima da pasta feita com os corpos das tarântulas. A chama bruxuleou e tornou-se apenas um revérbero vermelho. Bond reuniu suas forças, atirou o corpo sobre a massa encoberta e atravessou a segunda tela.

Não sabia se teria posto os joelhos e cotovelos sobre limalhas metálicas ou sobre as aranhas. Tudo o que sabia é que tinha atravessado aquela barreira. Arrastou-se ainda por alguns metros para a frente, no interior do túnel, e depois parou para descansar e reunir coragem.

Sobre a sua cabeça veio uma pálida luz. Bond torceu-se para um lado, ficando de costas, para ver o que já esperava. Os olhos amarelos e amendoados fixavam-no com profundo interesse. Lentamente, por trás do farolete, a cabeça moveu-se de um lado para outro. As pálpebras caíram numa piedade fingida. Um punho cerrado, com o polegar apontando para baixo, à guisa de despedida e aniquilamento, interpôs-se entre o farolete e o vidro. Em seguida foi retirado e a luz apagou-se. Bond voltou o rosto para baixo e descansou a testa no chão metálico e frio. Aquele gesto dizia-lhe que ele estava chegando ao obstáculo final, que os seus algozes tinham dado por encerradas as observações até virem recolher os seus restos. Bond sentiu ainda que naquele rosto não houvera um único indício de louvor pelo fato de ter logrado sobreviver até aquela etapa. Aqueles chineses negros odiavam-no. Apenas queriam que ele morresse, e tão miseravelmente quanto possível.

Os dentes de Bond bateram suavemente. Ele pensara na jovem e este pensamento dera-lhe forças. Ainda não estava morto. Que diabo! Ele não iria morrer! Não enquanto o coração não lhe fosse arrancado do corpo.

Bond retesou os músculos. Era tempo de continuar, a investida. Com redobrado cuidado, recolocou as armas em seus lugares, e penosamente recomeçou a avançar pela escuridão.

O túnel começava a inclinar-se ligeiramente para baixo, o que tornava a progressão mais fácil. Logo a inclinação tornou-se tão acentuada que Bond podia deslocar-se apenas em virtude de seu peso. Era uma bênção não ter que fazer aquele esforço derradeiro com os músculos. Vislumbrou um clarão acinzentado à sua frente, pouco mais que uma redução das trevas completas, mas aquilo prenunciava uma mudança, pois a qualidade do ar parecia diferente. Havia nele um odor novo. O que seria? O mar?

Súbito, Bond compreendeu que estava escorregando para baixo, ao longo do túnel. Expandiu os ombros e abriu os pés, procurando impedir a queda. Aquele esforço causou-lhe terríveis dores e o efeito foi mínimo. Agora o túnel começava a alargar-se e ele já não poderia mais diminuir o impulso da queda! Seu deslizamento tornava-se mais e mais acelerado. Agora via uma curva à frente — e era uma curva dirigida para baixo.

O corpo de Bond logo chegou. àquela curva e contornou-a. Deus do céu, ele estava mergulhando de cabeça para baixo! Desesperadamente, abriu os braços e pernas. O metal esfolou sua pele. Agora tinha perdido completamente o controle da situação e estava mergulhando para baixo, sempre pára baixo, no interior de um cano de canhão. Muito abaixo havia um circulo de luz cinzenta. Seria o ar livre? O mar? A luz subia vertiginosamente para ele! Lutou para recuperar o fôlego. Continue vivo, idiota! Continue vivo!

Primeiro a cabeça, e logo depois o corpo de Bond precipitaram-se pelo espaço, vencendo aceleradamente a distância de mais de cem pés que o separava da superfície do mar.


XVIII - ARENA DE SACRIFÍCIO


O corpo de Bond espadanejou o espelho de um mar de alvorada como o impacto de uma bomba.

Enquanto descia precipitadamente pelo tubo prateado, em direção ao disco de luz, o instinto dissera-lhe que retirasse a faca de entre os dentes e que pusesse as mãos para a frente, a fim de aparar a queda, assim como a cabeça para baixo e o corpo rígido. E, na última fração de segundo, quando ele viu o mar que se alteava ao ritmo das ondas, procurou sorver uma longa inspiração. En conseqüência, projetou-se na água como se estivesse dando um mergulho, com os braços estendidos abrindo-lhe um buraco através do qual passaram a sua cabeça e o corpo. Conquanto, quando chegou a vinte pés de profundidade, tivesse perdido os sentidos, o despencar a sessenta e cinco quilômetros por hora não conseguira matá-lo.

Lentamente o corpo foi voltando à superfície, e ficou, com a cabeça para baixo, a balançar-se suavemente nas pequeninas ondas causadas pelo seu próprio mergulho. A água que penetrou nos pulmões de certa forma contribuiu para enviar uma última mensagem ao cérebro. As pernas e braços agitaram-se desajeitadamente. Agora tinha conseguido voltar a cabeça para cima, com a água escorrendo da boca. Tornou a afundar, mas dessa vez, instintivamente, as pernas começaram a mover-se procurando manter o corpo à superfície da água. Por fim, a cabeça, horrivelmente sacudida pela tosse, conseguiu vir para fora da água e assim manter-se. Os braços e as pernas começaram a agitar-se dèbilmente, com os movimentos natatórios de um cão, e através da cortina vermelha e negra, os olhos injetados de sangue viram a linha da vida e disseram ao dolente cérebro que visasse àquele objetivo.

A arena de execução era uma estreita e profunda enseada, na base de um elevado penhasco. A corda de salvamento em direção à qual Bond lutava, embaraçado pelo chuço metido em sua calça, era representada por uma forte tela de arame, que se estendia por dois lados do penhasco, protegendo aquela enseada do mar aberto. Aquela rede, formada de quadrados, estava suspensa a um grosso cabo situado a dois metros acima da superfície da água. Para baixo, a tela desaparecia nas profundezas, cheia de incrustações de algas.

Bond conseguiu chegar ao arame, e a ele agarrou-se como que crucificado. Durante quinze minutos deixou-se ficar na mesma posição, com o corpo de quando em quando sacudido por vômitos, até que se sentiu bastante forte para virar a cabeça e verificar onde estava. Ofuscadamente, os seus olhos tomaram a altura do penhasco, sobre sua cabeça. O lugar estava obscurecido por uma sombra cinzenta, projetada pela montanha, mas ao largo, no mar, havia uma iridiscência de pérola provocada pela aurora, o que significava que para o resto do mundo o dia estava amanhecendo. Mas onde Bond se encontrava era escuro e triste.

Lerdamente, a mente de Bond começou a se interrogar sobre aquela tela de arame. Qual seria a sua finalidade, fechando aquela escura enseada e separando-a do mar? Seria para manter alguma coisa do lado de fora ou para mantê-la do lado de dentro? Bond olhou vagamente para baixo, procurando penetrar as profundezas do mar, à sua volta. As malhas de arame perdiam-se no nada, sob os seus pés. Havia pequeninos peixes à volta de suas pernas, abaixo da cintura. Que estariam eles fazendo? Pareciam estar-se alimentando, avançando contra seu corpo e depois recuando com fiapos negros na boca. Fiapos de que? De algodão de seus farrapos? Bond sacudiu a cabeça para clarear as idéias. Tornou a olhar para baixo. Não, aqueles peixes estavam-se alimentando com seu sangue.

Bond estremeceu. Sim, o sangue estava escorrendo de seu corpo, dos ombros, dos joelhos, dos pés, e misturando-se à água. Agora, pela primeira vez sentiu a dor causada pela água salgada em suas feridas e queimaduras. A dor tornou-se mais viva e estimulou a sua mente. Se esses pequeninos peixes estavam gostando de seu sangue, o que dizer dos tubarões? Seria essa a finalidade daquela tela de arame, isto é, evitar que os peixes devoradores de seres humanos pudessem escapar para o mar? Então por que eles ainda não se tinham lançado sobre ele? Para o diabo! A primeira coisa a fazer era subir pelo arame e ganhar o outro lado. Interpor aquela tela entre ele e o que quer que vivesse naquele escuro aquário.

Dèbilmente, pé após pé, lá se foi Bond subindo pela tela, até chegar ao cume e passar para o outro lado, onde poderia descansar sem preocupações. Colocou o espesso cabo sob a axila, e olhou para baixo, contemplando os peixes que ainda se nutriam com o sangue que continuava gotejando de seus pés.

Agora já não havia muito em Bond; pouquíssimas reservas teria ele. O último mergulho no tubo, o choque da queda, na água, e a quase morte, causada por afogamento, tinham-no esmagado como a uma esponja. Estava prestes a entregar-se, prestes a soltar um pequeno suspiro e depois escorregar para os doces braços da água. Como seria bom abandonar-se, finalmente, e descansar — sentir que o mar suavemente o levava para o seu leito.

Foi a explosiva fuga dos peixes que estavam sorvendo o seu sangue, sob os seus pés, que despertou Bond de seu sonho de morte. Alguma coisa tinha-se movido muito abaixo da superfície. Havia uma trêmula claridade muito distante, mas que avançava lentamente para a superfície, aproximando-se pelo lado interno da tela.

O corpo de Bond se enrijeceu. Ante a iminência do perigo, a vida voltou-lhe num ímpeto, expulsando a letargia e comunicando-lhe renovada vontade de sobreviver.

Bond abriu os dedos aos quais, há muito, o seu cérebro ordenara que não perdessem a faca. Fechou os dedos e agarrou o cabo daquela lâmina. Abaixou-se em seguida e tocou no gancho do chuço que ainda se mantinha no interior da calça. Sacudiu vivamente a cabeça e ficou com os olhos alertas. E agora?

Sob os seus pés a água estremeceu. Alguma coisa estava-se debatendo, no fundo, alguma coisa enorme. Algo grande, de cor cinza luminescente, tornou-se visível, detendo-se muito abaixo da superfície, na escuridão. Alguma coisa se projetou daquela massa, em direção à superfície, algo como se fosse um chicote da grossura do braço de Bond. A extremidade daquela tira inchava-se numa terminação oval e achatada, com marcas semelhantes a botões distribuídos a espaços regulares. Aquele tentáculo rodopiou na água, no lugar em que os peixes tinham estado, e logo se encolheu. Agora só se via a grande sombra cinzenta lá embaixo da superfície. Que estaria fazendo o animal? Estaria...? Estaria provando o seu sangue?

Como que em resposta àquela pergunta, dois olhos, tão grandes quanto bolas de futebol, foram avançando para cima até se porem no campo de visão de Bond. Aqueles enormes olhos pararam vinte pés abaixo da superfície e olharam tranqüilamente para cima, fixando-se no rosto de Bond.

A pele de Bond ficou arrepiada nas costas. Sua boca deixou escapar um palavrão! Então, aquela era a Ultima surpresa do Dr. No, o fim da corrida!

Bond ficou de olhos abertos, meio hipnotizado, olhando para baixo. Então aquele era o polvo gigante, o monstro mítico que podia arrastar navios para as profundezas do mar, o monstro de cinqüenta pés de comprimento que podia dar combate às baleias e que pesava uma tonelada ou mais. O que mais sabia ele a respeito daqueles animais? Que tinham dois longos tentáculos para laçar e outros dez para agarrar; que tinham um enorme bico rombudo por baixo de olhos que eram os únicos olhos, entre os peixes, a trabalharem segundo o principio da câmara fotográfica, como os do homem: que seu cérebro era eficiente; que o monstro podia fugir para trás a uma velocidade de trinta nós, por um sistema de jato-propulsão. Sabia ainda que os arpões podiam afundar-se em sua manta de gelatina sem causar nenhum mal ao monstro, e que... mas os grandes olhos esbugalhados, que ofereciam um alvo negro e branco, estavam-se elevando em sua direção. A superfície da água estremecia. Agora Bond podia ver uma floresta de tentáculos que saíam da cara do animal. Ondulavam diante dos olhos do monstro como uma ninhada de grossas serpentes. Bond podia ver-lhe as ventosas sob os tentáculos. Atrás da cabeça, a grande aba da manta de gelatina abria-se e fechava-se suavemente, e, por trás dela, o brilho do corpo perdia-se nas profundezas. Por Deus, a coisa era tão grande quanto uma locomotiva!

Muito devagar e discretamente Bond foi enfiando os pés e depois os braços através dos quadrados da tela de arame, protegendo-se e ancorando-se tão sòlidamente que os tentáculos teriam que arrancá-lo dali aos pedaços ou então arrastar com ele todo aquele arcabouço de metal. Olhou para a direita e para a esquerda. Para qualquer lado, teria que vencer vinte metros, antes de chegar à terra. Mas, qualquer movimento, ainda que pudesse empreende-lo, séria fatal. Devia ficar absolutamente imóvel, rezando para que o monstro perdesse o interesse e se afastasse. Se ele não perdesse o interesse... Suavemente os dedos de Bond apertaram a pequenina faca.

Os olhos do monstro continuavam fitando-o, fria e pacientemente. Delicadamente, como a tromba de um elefante, um daqueles longos tentáculos laçadores emergiu da superfície e foi galgando a tela em direção às pernas de Bond. Tocou num de seus pés, e Bond sentiu o áspero beijo daquelas ventosas. Não se mexeu. Não ousava abaixar-se e afrouxar o enlaçamento de seus braços à volta do arame. Docemente as ventosas entraram em ação, experimentando o rendimento daquela presa. Não era bastante. Como uma gigantesca lagarta, o tentáculo foi subindo por sua perna. Parou à altura do joelho ensangüentado e deteve-se, interessado. Os dentes de Bond estalaram com a dor. Ele bem podia imaginar a mensagem que tinha descido por aquele tentáculo até o cérebro do animal: sim, é bom para comer-se! E a ordem de retorno ao tentáculo: então traga-o.

As ventosas continuaram subindo pela coxa. A extremidade do tentáculo se aflou e em seguida dilatou-se a ponto de quase cobrir toda a espessura da coxa de Bond. Depois reduziu-se à grossura de um pulso. Aquele seria o alvo de Bond. Apenas teria que agüentar a dor e resistir ao horror daquela acometida, esperando que esse pulso chegasse ao alcance de um golpe.

 

* *
Uma brisa, a primeira suave brisa da madrugada, soprou sobre a superfície metálica da enseada, levantando pequenas ondas que iam beijar a rocha do penhasco. Um bando de corvos marinhos alçou vôo da guaneira, quinhentos pés acima da enseada, e cacarejando suavemente, avançou em direção ao mar. Quando as aves passaram sobre a enseada, o barulho que as tinha perturbado chegou aos ouvidos de Bond — o tríplice apito de um navio, que indica estar a embarcação pronta para receber a carga. Aquele som chegava do lado esquerdo de Bond. O cais deveria estar situado a pequena distância contornando o braço setentrional da enseada. O navio procedente de Antuérpia tinha chegado. Antuérpia! Uma região do mundo exterior — um mundo que estava a um milhão de quilômetros de distância, fora do alcance de Bond — com certeza para sempre fora de seu alcance. Exatamente para além daquele braço rochoso a tripulação estaria no refeitório, tomando o seu desjejum. O rádio estaria tocando. Haveria o chiado do toicinho defumado e ovos na frigideira, o cheiro do café...


* * *


As ventosas estavam em sua coxa. Bond podia ver dentro daqueles cálices córneos. Um cheiro de maresia estagnada chegou-lhe às narinas, quando aquela mão vagarosamente serpenteou para cima. Seria muito duro o tecido gelatinoso cinza-escuro, por trás daquela mão? Deveria usar agora a faca? Não, o golpe deveria ser rápido e seguro, atingindo toda a espessura, como se se cortasse uma corda. Não importaria que a sua própria pele fosse atingida.

Agora! Bond lançou um rápido golpe de vista àqueles dois enormes olhos, lá embaixo, tão pacientes e tão negligentes. Nesse momento, o outro tentáculo elevou-se da superfície da água e avançou em direção ao seu rosto. Bond recuou a cabeça e a mão se enroscou num fio de arame diante de seus olhos. Num segundo aquela garra se deslocaria para um braço ou ombro, e ele estaria liquidado. Agora!

O primeiro tentáculo estava sobre suas costelas. Quase sem fazer pontaria, a mão de Bond que empunhava a faca caiu rapidamente para baixo e transversalmente. Sentiu a lâmina afundar naquele pudim carnoso, e quase deixou que ela escapasse de sua mão, quando o tentáculo ferido chicoteou pelo ar, desaparecendo na água. Por um momento o mar foi agitado à sua volta. Agora, o outro tentáculo abandonou o arame e agarrou-se ao seu ventre. A mão aflada prendeu-se como uma sanguessuga, com toda a força de sua sucção furiosamente aplicada. Bond gritou ao sentir o contacto daquelas ventosas em sua carne. Golpeou loucamente, mais e mais. Por Deus, o seu estômago estava sendo arrancado para fora! A tela agitou-se com a luta. Aos seus pés a água fervilhava e espumava. Ele teria que ceder. Um derradeiro golpe, desta vez nas costas daquela mão disforme. Deu resultado! A mão se agitou no ar e desceu serpeante, deixando vinte círculos vermelhos sangrando em sua pele.

Bond não tinha tempo para se preocupar com aquilo. Agora a cabeça do monstro tinha emergido, e os seus olhos brilhantes fixavam-se nele, avermelhados, enfurecidos, e a floresta dos tentáculos sugadores começava a envolver-lhe os pés e as pernas, dilacerando-lhe as roupas, para logo retornar aos seus membros. Bond estava sendo arrastado para baixo, polegada por polegada. O arame estava penetrando em suas axilas. Podia até mesmo sentir a sua espinha sendo distendida. Se ele continuasse resistindo seria partido ao meio. Agora, os olhos e o grande bico triangular estavam fora d’água, e o bico procurava o seu pé. Havia uma esperança, apenas uma!

Bond meteu a faca entre os dentes e sua mão procurou o gancho do chuço de arame. Agarrou aquela arma, e desdobrou-a com as suas duas mãos. Teria que soltar um dos braços para poder abaixar-se e se aproximar do alvo. Se falhasse, entretanto, seria reduzido a pedaços sobre a tela.

Agora, antes que morresse com a dor! Agora, agora! Bond deixou todo o seu corpo escorregar por aquela escada de arame, para baixo, e desferiu uma violenta estocada. Pôde ver que o pontaço de sua lâmina penetrava pelo centro de um enorme globo ocular negro, e imediatamente todo o mar se intumesceu para ele, como uma fonte de negrume, enquanto seu corpo se mantinha pendurado de cabeça para baixo, seguro pelos joelhos, com o rosto apenas uma polegada acima da superfície.

Que teria acontecido? Teria ficado cego? Não podia ver nada. Seus olhos estavam ardendo e havia um gosto horrível de peixe podre em sua boca. Contudo, podia sentir o arame cortando-lhe os tendões dos joelhos. Então devia estar vivo! Estonteado, Bond deixou que o chuço caísse de sua mão, e procurou o arame mais próximo. Depois, agarrou-se com a outra mão um pouco mais acima, e, assim, vagarosamente, foi-se alçando até que conseguiu sentar-se no cabo superior da cerca. Clarões de luz chegaram-lhe aos olhos. Passou uma das mãos pelo rosto. Agora podia ver. Fixou a sua mão: estava negra e pegajosa. Olhou para o seu corpo: estava também coberto por um lodo negro, e o preto tingia o mar numa extensão de vinte metros à sua volta. Então Bond compreendeu: o polvo ferido tinha esvaziado a sua bolsa de tinta contra ele.

Mas onde estava o monstro? Voltaria? Bond esquadrinhou o mar. Nada, nada além da enorme mancha negra que se continuava ampliando. Nem uma só ondulação! Então, nada de esperar! Fugir dali o mais depressa possível! Ansiosamente, Bond olhou para a direita e para a esquerda. Para a esquerda era na direção do navio, mas também na direção do Dr. No, enquanto para a direita seria para o nada. Para instalar aquela tela de arame, os trabalhadores deviam ter vindo da esquerda, na direção do cais. Devia haver algum caminho até ali. Bond começou a se deslocar frenèticamente pelo cabo superior, em direção à rocha, a vinte metros de distância.

O espantalho negro e sangrento movimentava os braços e pernas quase automaticamente. O aparelho pensante e sensorial de Bond já não fazia mais parte de seu corpo. Movia-se ao lado de seu corpo ou acima dele, mantendo apenas o contato necessário para puxar os cordéis que faziam o boneco trabalhar. Bond era como um verme secionado, cujas duas metades continuassem arrastando-se para a frente, conquanto a vida os tivesse abandonado para ser substituída pela vida ilusória dos impulsos nervosos. Apenas, no caso de Bond, as duas metades ainda não estavam mortas. A vida tinha somente se ausentado delas. Tudo quanto ele precisava era um grama de esperança, um grama de confiança, de convicção de que ainda valeria a pena tentar sobreviver.

Bond chegou à rocha, e lentamente desceu pela tela até a última malha. Contemplou vagamente o brilho palpitante da água. O mar estava negro e impenetrável. Deveria arriscar-se? Sem dúvida! Não podia fazer nada enquanto não tivesse lavado aquela camada de lodo e sangue, sem falar do horrível cheiro de peixe. Sombriamente, fatalisticamente, ele tirou os farrapos de sua camisa e calças, pendurando-os no cabo. Olhou para baixo, para seu corpo marrom e branco, salpicado de vermelho. Instintivamente, procurou sentir seu pulso, que se apresentava lento mas regular. As firmes palpitações de vida reanimaram o seu espírito. Por que diabo estava ele se lamuriando? Estava vivo. As feridas e machucaduras em seu corpo não eram nada — absolutamente nada. Eram horríveis, mas nada estava quebrado. Por dentro do invólucro maltratado, a máquina estava trabalhando serena e seguramente. Cortes superficiais e esfoladuras, recordações sangrentas, cansaço mortal — estes seriam ferimentos dos quais se riria uma enfermeira experiente. Para a frente, seu bastardo! Para a frente! Limpe-se e levante-se. Conte as suas bênçãos. Pense na jovem. Pense no homem que você deverá encontrar e matar. Agarre-se à vida como se agarrou à faca entre os dentes. Acabe com esta autopiedade. Para o diabo com o que acaba de acontecer! Para dentro d’água e lave-se!

Dez minutos mais tarde, Bond, com seus farrapos molhados colados ao corpo já esfregado, e com os cabelos repuxados para fora dos olhos, galgava o cimo do penhasco.

Sim, era como ele tinha imaginado. Uma picada estreita e rochosa, feita pelos pés dos trabalhadores, descia para o outro lado, contornando a saliência do penhasco.

Das proximidades chegaram vários sons e ecos. Um guindaste estava trabalhando. Podia ouvir os ritmos variáveis de seu motor. Ouviam-se os barulhos peculiares, aos navios de ferro, bem como o ruído da água que era lançada ao mar por uma bomba de porão.

Bond olhou para cima, para o céu, que estava de um azul pálido. Nuvens manchadas de ouro e reflexos rosados derivavam em direção ao horizonte. Muito acima dele, os corvos marinhos esvoaçavam em torno da guaneira. Em breve estariam fazendo-se ao mar, em busca de alimentos. Talvez, agora, mesmo, estivessem vigiando os grupos de reconhecimento, longe, sobre o mar, na faina de localizarem os peixes. Seriam cerca de seis horas — a aurora de um belo dia.

Bond, deixando gotas de sangue atrás de si, seguiu o seu caminho cuidadosamente pela picada abaixo, beirando o sopé do penhasco. Para além da curva, a picada se infiltrava por um terreno cheio de pedras espalhadas. Os ruídos iam-se tornando mais altos. Bond ia avançando cuidadosamente, evitando pisar em pedras. Uma voz se fez ouvir surpreendentemente perto: ‘”Pronto para largar?” E logo uma resposta distante: “Pronto”. O motor do guindaste acelerou. Mais alguns metros. Mais um pedregulho; e mais outro. Agora!

Bond se ocultou por trás da rocha e cautelosamente meteu a cabeça para fora, a fim de observar.

 

CONTINUA

XVI - HORAS DE AGONIA


Uma voz, por trás de Bond, disse serenamente: — O jantar está servido.

Bond voltou-se para trás. O anunciante fora o guarda-costas, que tinha a seu lado outro homem que bem poderia ser seu irmão gêmeo. Ali ficaram eles, duas barricas de musculatura, com as mãos mergulhadas nas mangas dos quimonos, olhando, por cima da cabeça de Bond, para o Dr. No.

— Ah, já nove horas. — O Dr. No levantou-se lentamente e disse: — Vamos. Podemos continuar a nossa conversação em ambiente mais íntimo. Foi muita bondade dos senhores terem ouvido a minha história com paciência tão exemplar. Espero que a modéstia de minha cozinha e de minha adega não representem mais uma imposição.

Portas duplas tinham sido conservadas abertas por trás dos dois homens de jaquetas brancas. Bond e a jovem atravessaram-nas seguindo o Dr. No, indo ter a uma sala octogonal, com as paredes recobertas de painéis de mogno, e ao centro um candelabro de prata, sob o qual estava posta uma mesa para três pessoas. O tapete simples, azul-escuro, era luxuosamente espesso. O Dr. No tomou a cadeira central, de espaldar alto, e indicou cortesmente, com uma inclinação, a cadeira à sua direita para a jovem. Sentaram-se e abriram guardanapos de seda branca.

A cerimônia vazia e a encantadora sala deixavam Bond louco. Ansiava por despedaçar tudo aquilo com as próprias mãos, por passar o seu guardanapo de seda à volta do pescoço do Dr. No e apertá-lo até que aquelas lentes de contato saltassem daqueles malditos olhos negros.

Os dois guardas usavam luvas de algodão branco. Serviram as iguarias com suave eficiência que era instigada por uma ocasional palavra chinesa proferida pelo Dr. No.

A princípio o Dr. No parecia preocupado. Lentamente, ingeriu três taças de diferentes sopas, utilizando-se de uma colher dotada de um cabo curto e que se adaptava perfeitamente entre as pinças de sua mão mecânica. Bond esforçou-se por esconder os seus temores da jovem. Sentou-se afetando uma atitude de relaxamento e comeu e bebeu com forçado apetite. Falou ainda animadamente com a jovem sobre Jamaica — sobre aves e animais, assim como fores, que constituíam fáceis assuntos de conversação para Honeychile. De vez em quando os seus pés tocavam nos dela, sob a mesa. Ela quase chegou a ficar alegre. Bond pensou que ambos estavam fazendo uma bela imitação de namorados comprometidos, que estivessem saboreando um jantar oferecido por um tio detestável.

Bond não tinha a mínima idéia sobre se o seu fraco blefe tinha surtido algum efeito. Assim, não deu grande importância às suas possibilidades. O Dr. No, assim como a sua história, eram perfeitamente impenetráveis. A incrível biografa parecia verdadeira. Nem uma só palavra daquele relato era impossível. Talvez houvesse outras pessoas no mundo com os seus reinos particulares — reinos afastados dos caminhos trilhados por homens comuns, sem testemunhas, onde pudessem fazer o que bem entendessem. E que estaria planejando fazer o Dr. No, depois que tivesse esmagado as moscas que tinham vindo incomodá-lo? E se eles fossem mortos — e quando o fossem — Londres conseguiria recolher os fios que ele, Bond, tinha recolhido? Provavelmente conseguiria. Lá estava Pleydell-Smith, e as provas das frutas envenenadas. Mas até onde a substituição de Bond iria afetar o Dr. No? Não muito. O Dr. No daria de ombros ao desaparecimento de Bond e Quarrel. Nunca teria ouvido falar deles. E não haveria qualquer elo com a jovem. Em Porto Morgan, todos pensariam que ela se tinha afogado em suas expedições. Era difícil saber o que poderia interferir com o Dr. No — com o segundo capítulo de sua vida, qualquer que ele fosse.

Sob aquela conversa com a jovem, Bond foi-se preparando para o pior. Ao lado de seu prato havia algumas facas. Então chegaram as costeletas, perfeitamente cozidas, e Bond tocou em várias facas, hesitante, até que escolheu a do pão para cortá-las. Enquanto comia e conversava foi deslocando a grande lâmina de aço para perto do corpo. Um gesto largo da mão direita derrubou o seu copo de champanha e, numa fração de segundo, enquanto o copo se partia, sua mão esquerda enfiou a lâmina para dentro da manga do quimono. Em meio às suas desculpas, e à confusão que se seguiu, enquanto os guardas enxugavam a champanha derramada na mesa, Bond levantou o braço esquerdo e sentiu que a faca deslizava para baixo do braço e depois caía para dentro do quimono, ficando encostada às suas costelas. Quando acabou de comer as costeletas, apertou o cinto de seda, à volta da cintura, ao mesmo tempo que deslocava a faca para diante da barriga. A faca aninhou-se. confortàvelmente contra a sua pele e em pouco tempo o aço da lâmina foi-se tornando aquecido.

Por fim veio o café e a refeição foi dada por terminada. Os dois guardas se aproximaram e postaram-se por trás das cadeiras da jovem e de Bond. Tinham os braços cruzados sobre o peito, impassíveis, sem nenhum movimento, como carrascos.

O Dr. No pousou delicadamente a sua xícara no pires e descansou as duas pinças de aço sobre a mesa. Depois se endireitou um pouco na cadeira e virou o corpo, apenas uma polegada, em direção de Bond. Agora não havia o mínimo sinal de preocupação em seu rosto. Os olhos eram duros e diretos. A boca fina contraiu-se e abriu-se: — Apreciou o jantar, sr. Bond?

Bond apanhou um cigarro numa caixa de prata que estava à frente e acendeu-o. Depois, pôs-se a brincar com o isqueiro de prata que estava sobre a mesa. Sentia que más noticias iriam chegar. Pensou que deveria meter aquele isqueiro no bolso, de qualquer maneira. O fogo talvez viesse a ser mais uma arma. Respondeu com facilidade: — Sim, estava excelente. — Em seguida olhou para Honeychile. Curvou-se sobre a mesa e descansou os braços sobre ela, e logo cruzou-os, envolvendo o isqueiro com esta manobra. Sorriu para ela: — Espero ter pedido o que você gosta.

— Oh, sim, estava magnífico. — Para ela a recepção ainda estava continuando.

Bond fumava afanosamente, agitando mãos e braços, a fim de criar uma atmosfera de movimento. Voltou-se para o Dr. No, apagou o toco de seu cigarro e reclinou-se na cadeira. Cruzou os braços sobre o peito. O isqueiro já estava sob o seu sovaco esquerdo. Riu animadamente:

— E o que acontecerá agora, Dr. No?

— Podemos continuar com a nossa distração de após-jantar, sr. Bond. O leve sorriso contraiu-se e desapareceu.

— Examinei a sua proposta sob todos os aspectos. Não a aceito.

Bond deu de ombros e observou: — O senhor não é sensato.

— Não, sr. Bond. Receio que a sua proposta não passe de uma isca dourada. Em sua profissão não se atua como o senhor quer sugerir. Os agentes enviam relatórios rotineiros para o quartel-general. Mantêm seus chefes a par dos progressos das investigações que fazem. Conheço essas coisas. Os agentes secretos não se comportam como o senhor sugeriu ter agido. O senhor esteve lendo muitas novelas de aventuras, e o seu pequeno discurso mostrou com muita facilidade o papelão pintado. Não, sr. Bond, não aceito a sua história. Se ela for verdadeira, estou preparado para enfrentar as conseqüências. Tenho muita coisa em jogo para ser facilmente desviado de meu caminho. Que venham a polícia e os soldados. Onde estão o homem e a jovem? Que homem e que jovem? Não sei de nada. Por favor, retirem-se, os senhores estão prejudicando a minha guaneira. Onde estão as suas provas, o seu mandado de prisão? A lei inglesa é rigorosa, meus senhores. Voltem para casa e deixem-me em paz com os meus queridos corvos marinhos. Está vendo, sr. Bond? E digamos mesmo que o pior redunde em pior. Que um de meus agentes fale, o que é altamente improvável. (Bond lembrou-se da fortaleza da srta. Chung). Que tenho eu a perder? Mais duas mortes no libelo acusatório. Mas, sr. Bond, um homem só pode ser enforcado uma vez: — A elevada cabeça, em forma de pêra, agitava-se suavemente, de um lado para outro. — O senhor tem mais alguma coisa a dizer? Alguma pergunta? Ambos irão ter uma noite muito ocupada e o tempo de que dispõem está-se tornando escasso. Quanto a mim, devo ir dormir. O navio que chega mensalmente deverá atracar amanhã e eu terei que supervisionar o carregamento. Passarei todo o dia no cais. Certo, sr. Bond?

Bond olhou para Honeychile. Ela estava mortalmente pálida. Olhava com olhar esgazeado, esperando pelo milagre que ele deveria operar. Bond olhou para as próprias mãos e examinou cuidadosamente as unhas. Depois, disse, para ganhar tempo: — E então, após seu dia ocupado com o carregamento, o que virá em seu programa? Qual o novo capítulo que o senhor pensa escrever?

Bond não levantou o olhar. A profunda e serena voz autoritária caiu sobre ele como se tivesse vindo do céu escuro.

— Ah, sim, o senhor deve ter estado a pensar nisso.

O senhor tem o hábito da investigação. Os hábitos persistem até o fim, até as sombras. Admiro tais qualidades num homem que tem apenas algumas horas mais para viver. Por isso, dir-lhe-ei. Encetarei um novo capítulo, e isso o consolará. Há muito mais nesta ilha do que uma simples guaneira. O seu instinto não o enganou, sr. Bond.

O Dr. No fez uma pausa para dar mais ênfase ao que iria dizer e continuou: — Esta ilha, sr. Bond, está em vésperas de se transformar num dos mais valiosos centros de informação técnica do mundo.

— De fato? — Bond mantinha os olhos fixos em suas mãos.

— Sem dúvida que o senhor não ignora que Turks Island, a trezentas milhas, de distância daqui, através de Windward Passage, constitui o mais importante centro para a experimentação de projéteis teleguiados dos Estados Unidos?

— Sim, é um importante centro de experiências.

— Talvez o senhor tenha lido sobre os foguetes que recentemente se desviaram de sua rota? O “Snark” de múltiplas fases, por exemplo, que terminou o seu vôo nas florestas do Brasil, ao invés de ir perder-se nas profundezas do Atlântico Sul?

— Sim.

— O senhor se lembrará que ele se recusou a obedecer as instruções que lhe foram enviadas por rádio, no sentido de modificar a sua rota, e até mesmo de se destruir a si mesmo. Ele desenvolvera uma vontade própria.

— Lembro-me.

— Houve outras falhas, falhas decisivas, na longa lista dos protótipos — o Zuni, o Matador, o Petrel, o Regulus, o Bomarc — tantos nomes, outras tantas modificações, nem posso lembrar-me deles todos. Bem, sr. Bond, — o Dr. No mal podia esconder uma nota de orgulho em sua voz — talvez lhe interesse saber que a maioria desses fracassos foi causada de Crab Key.

— É verdade?

— Não me acredita? Não tem importância. Outros acreditam-no. Outros que viram o abandono de toda uma série, o Mastodonte, em virtude de seus freqüentes erros de navegação, sua incapacidade de obedecer às ordens enviadas pelo rádio, de Turks Island. Esses outros são os russos. Os russos são meus sócios nesta empreitada. Treinaram seis dos meus homens, sr. Bond. Exatamente neste momento tenho dois desses homens observando, estudando as freqüências de rádio, as faixas nas quais trabalham esses engenhos. Há um milhão de dólares de instalações, nas galerias rochosas, acima de nossas cabeças, sr. Bond, enviando sinais para a camada de Heavyside, aguardando os sinais, perturbando-os, contrabalançando faixas com outras faixas. E, de vez em quando, um foguete sobe em seu itinerário e aprofunda-se cem, quinhentas milhas, pelo Atlântico, enquanto nós anotamos cuidadosamente a sua trajetória, com a mesma perfeição com que isto é feito na Sala de Operações de Turks Island. Em seguida, subitamente, as nossas pulsações são enviadas ao foguete, o seu cérebro é perturbado, ele enlouquece e mergulha no mar, destruindo-se. Foi mais uma experiência que fracassou. Os operários levam a culpa, assim como os projetistas e os fabricantes. Há pânico no Pentágono. Outra coisa deve ser tentada, freqüências diversas, metais diversos, um cérebro eletrônico diferente. Naturalmente que também temos as nossas dificuldades. Assim é que assinalamos muitos disparos experimentais sem sermos capazes de chegar até o cérebro do novo engenho. Então, comunicamo-nos urgentemente com Moscou. Com efeito, eles deram-nos até uma máquina de cifras com as nossas freqüências e rotinas. E os russos continuam pensando, fazem sugestões, e nós as experimentamos. Por fim, sr. Bond, um belo dia, é como se atraíssemos a atenção de um homem perdido numa multidão. Lá no alto, na estratosfera, o foguete reconhece o nosso sinal. Somos reconhecidos e podemos falar com ele e modificar os seus pensamentos. — O Dr. No fez uma pausa e depois continuou: — O senhor não acha isso interessante, esta variante de meus negócios com o guano? Asseguro-lhe que é um negócio muito lucrativo, e podia sê-lo ainda mais. Talvez a China comunista venha a pagar mais pelos meus serviços. Quem sabe? Já tenho os meus agentes em campo, para sondagens.

Bond ergueu os olhos, olhando pensativamente para o Dr. No. Então ele tinha tido razão. Havia mesmo mais alguma coisa, muito mais, em tudo aquilo que os seus olhos tinham visto. Aquilo era uma grande partida, uma partida que explicava tudo, uma partida que no mercado internacional da espionagem bem valia a pena ser jogada. Bem, bem! Agora, as peças do quebra-cabeças tinham caído corretamente em seus lugares. Para isso tinha valido a pena, certamente, assustar alguns pássaros e eliminar algumas pessoas. Isolamento? Naturalmente que o Dr. No teria que matar a ele e à jovem. Poder? Sim, isso era poder. O Dr. No se tinha realmente lançado nos negócios.

Bond fixou os dois orifícios negros com um novo respeito, e observou: — O senhor terá que matar muito mais gente para manter isto em suas mãos, Dr. No. Isto vale muito dinheiro. O senhor tem aqui uma bela propriedade, superior ao que eu pensava, e as pessoas hão-de querer um pedaço deste bolo. Penso em quem será o primeiro a chegar até o senhor e matá-lo. Serão aqueles homens que estão lá em cima, treinados por Moscou? — e ele fez um gesto apontando para o teto. Depois continuou: — Eles são os técnicos. Eu me pergunto: o que Moscou estará lhes ordenando que façam? O senhor não poderia estar a par disso, poderia?

O Dr. No respondeu: — Vejo que continua subestimando meu valor, sr. Bond. O senhor é um homem obstinado e mais estúpido do que pensava. É claro que estou consciente dessas possibilidades. Separei um desses homens e transformei-o numa espécie de vigilante particular. Ele tem uma duplicata das cifras e da máquina. Vive em outra parte da montanha. Os outros pensam que ele morreu, mas ele está bem vivo a fiscalizar a cronometragem de rotina, e entrega-me diariamente uma cópia do tráfego que é registrado. Até agora os sinais emitidos por Moscou têm sido inocentes e não indicam qualquer conspiração. Penso em tudo isso constantemente, sr. Bond. Tomo precauções e ainda as multiplicarei para o futuro. Como disse, o senhor me tem subestimado.

— Não o subestimo, Dr. No. O senhor é um homem muito prudente, mas já há muitas pastas sobre o senhor. Em minha linha de atividades, a mesma coisa se aplica a mim, mas as suas pastas são muito perigosas. A chinesa, por exemplo. Não gostaria de ter uma com essa gente. A da FBI deve ser a menos penosa — roubo e falsa identidade. Mas o senhor conhece os russos tão bem quanto eu? Por enquanto o senhor é “o melhor amigo” deles. Mas os russos não têm sócios. Hão-de querer comprá-lo... — comprá-lo com um balaço. Depois vem a pasta que o senhor abriu com o meu serviço. O senhor quererá mesmo fazê-la mais volumosa? Eu não o faria se estivesse em seu lugar, Dr. No. O pessoal do meu serviço é muito obstinado. Se alguma coisa me acontecer e à jovem, o senhor verificará que Crab Key é uma ilha muito pequena e insignificante.

— Não se pode jogar grandes partidas sem assumir riscos, senhor Bond. Aceito os perigos e, até onde posso, procuro defender-me deles. Como vê — e a sua voz tinha um acento de cupidez — estou em vésperas de coisas muito maiores. O capítulo dois, ao qual já me referi, encerra promessa de prêmios que ninguém, a não ser um tolo, jogaria fora por ter medo. Já lhe disse que posso desviar os raios magnéticos por onde viajam os foguetes. Posso fazer com que estes mudem de rota e não obedeçam ao controle eletrônico. Que diria o senhor, se eu fosse ainda mais longe? Se eu os fizesse cair nesta ilha, a fim de recolher todos os segredos de sua construção? Atualmente, destróieres norte-americanos, nos confins do Atlântico Sul, recolhem esses foguetes quando eles esgotam o seu combustível e caem de pára-quedas sobre o mar. Algumas vezes os pára-quedas deixam de se abrir, e algumas vezes as instalações de autodestruição deixam de operar.

Ninguém em Turks Island se sentiria surpreendido se de vez em quando o protótipo de uma nova série saísse de sua trajetória e caísse perto de Crab Key. Antes de mais nada, isto seria atribuído a falhas mecânicas. Mais tarde talvez descobrissem que outros sinais, que não os seus, tinham estado a guiar os seus foguetes. Teria início, então uma guerra de freqüência. Tentariam e conseguiriam localizar a origem dos sinais falsos, mas assim que eu verificasse que eles estavam à minha caça, teria uma derradeira cartada. Os seus foguetes enlouqueceriam. Cairiam em Havana, em Kingston; dariam uma volta e despencariam sobre Miami. Mesmo sem as cargas detonantes, Sr. Bond, cinco toneladas de metal, chocando-se a mil milhas por hora, podem causar terríveis danos numa cidade super-povoada. E depois? Haveria pânico, haveria um clamor público. As experiências teriam de ser interrompidas. A base de Turks Island teria que fechar. E quanto não pagariam os russos para que isso acontecesse, sr. Bond? E quanto por protótipo que eu capturasse para eles? Digamos dez milhões de dólares por toda a operação? Vinte milhões? Seria uma vitória sem preço na corrida dos armamentos. Posso fazer o meu preço, não concorda, sr. Bond? E não concorda também que essas considerações tornam os seus argumentos e ameaças engraçadíssimos?

Bond não respondeu. Nada havia a dizer. Subitamente se viu em pensamento naquela sala tranqüila de Regents Park. Podia ouvir a chuva batendo suavemente contra a janela e a voz de M, impaciente e sarcástica, dizendo: “Oh, algum maldito negócio em torno de aves... umas férias ao sol lhe farão bem... investigações rotineiras.” E ele, Bond, tinha apanhado uma canoa, um caniço e um farnel de piquenique e partira — há quantos dias, há quantas semanas? — “para dar uma espiada”. Bem, ele tinha dado uma espiada na caixa de Pandora. E tinha tido as respostas, conhecera os segredos — e agora? Agora iriam mostrar-lhe polidamente o caminho para a sepultura, para onde ele levaria consigo o seus segredos arrancados e arrastados por ele em sua lunática aventura. Toda a amargura que lhe ia no íntimo aforou à boca, de modo que por um momento pensou que ia vomitar. Apanhou o copo e esvaziou todo o resto de champanha que nele havia. Depois disse asperamente: — Muito bem, Dr. No. Agora vamos ao cabaré. Qual é o programa — faca, bala, veneno, corda? Mas proceda rapidamente, já o vi bastante.

Os lábios do Dr. No se apertaram numa fina linha arroxeada. Os olhos eram duros como ônix, sob a bola de bilhar de sua fronte e crânio. A máscara de polidez tinha desaparecido. O Grande Inquisidor sentava-se na cadeira de alto espaldar. Tinha soado a hora para a “peine forte et dure”.

O Dr. No proferiu uma palavra e os dois guardas avançaram um passo e agarraram as suas vitimas pelos braços, acima dos cotovelos, mantendo-as imobilizadas para trás, apoiadas nos lados das cadeiras. Não houve resistência. Bond concentrou-se em manter o isqueiro sob o sovaco. As luvas brancas em seus bíceps pareciam faixas de aço. Sorriu para a jovem. — Desculpe-me por isso, Honey, — disse. — Receio que afinal de contas não possamos mais brincar juntos.

Os olhos da jovem, em seu rosto pálido, tinham ficado azul-escuros, pelo medo. Seus lábios tremiam, e ela perguntou: — Doerá muito?

— Silencio! — A voz do Dr. No soou como o estalar de um chicote. — Chega de tolices. Naturalmente que doerá. Estou interessado na dor. E estou igualmente interessado em descobrir quanto de dor o corpo humano pode suportar. De vez em quando faço experiências com os meus subordinados que devem ser punidos, e em intrusos como os senhores. Acarretaram-me os senhores grandes dificuldades. Em troca, pretendo causar-lhes uma grande soma de dor. Registrarei os níveis de suas resistências. Os fatos serão anotados, e um dia as minhas pesquisas serão relatadas ao mundo. As suas mortes terão servido à Ciência. Nunca desperdiço material humano. As experiências feitas pelos alemães com seres humanos vivos, durante a guerra, foram de grande proveito para a Ciência. Faz um ano que pus uma mulher para morrer da maneira que escolhi para a senhora. Ela era uma negra e durou três horas, mas morreu de terror. Queria agora fazer a experiência com uma mulher branca, para poder estabelecer uma comparação. Não me surpreendi quando a sua chegada me foi comunicada. Consigo sempre o que quero. — O Dr. No reclinou-se para trás na cadeira. Seus olhos estavam agora fixos na jovem, estudando-lhe as reações. Honeychile correspondia ao olhar, como que meio hipnotizada, como um rato do mato diante de uma cascavel.

Bond apertou os dentes.

— A senhora é uma jamaicana, por isso saberá o que quero dizer. Esta ilha chama-se Crab Key. Recebeu este nome porque está infestada de caranguejos — o que chamam em Jamaica “caranguejos negros”. A senhora os conhece. Pesam meio quilo, cada um, e têm o tamanho de um pires. Nesta época do ano eles saem aos milhares de seus esconderijos, próximos à costa, e sobem em direção à montanha. Lá, nos planaltos de coral, eles se alojam novamente em buracos da rocha, onde desovam. Avançam em exércitos de centenas, de cada vez. Atravessam tudo e sobre tudo. Em Jamaica eles invadem as casas e não se desviam de seu caminho. São como certos roedores da Noruega. É uma migração irresistível. — O Dr. No fez uma pausa. Em seguida acrescentou suavemente: — Mas há uma diferença. Os caranguejos devoram o que encontram em seu caminho. E agora, minha senhora, eles já estão em marcha. Estão galgando as faldas da montanha, às dezenas de milhares, em ondas negras e vermelho-laranja. Estão, neste momento, se apressando e se empurrando e arranhando a rocha acima de nós. E esta noite, no meio do seu caminho, eles vão encontrar o corpo nu de uma mulher sòlidamente preso — um banquete preparado para eles — e vão apalpar o corpo morno com suas pinças, e um deles dará o primeiro corte com suas garras de combate e então... e então...

A moça gemeu. Sua cabeça caiu para a frente sobre o peito. Desmaiara. O corpo de Bond inteiriçou-se na cadeira. Uma torrente de palavras obscenas escapou por entre seus dentes cerrados. As manoplas dos guardas pareciam-lhe ferro à volta dos braços. Nem sequer podia fazer deslizar os pés da cadeira no chão. Depois de um momento de luta, desistiu. Esperou que sua voz se acalmasse, e disse então, com todo o veneno que podia instilar nas palavras:

— Seu bastardo! Você há-de frigir no inferno se fizer isso!

O Dr. No sorriu fracamente.

— Senhor Bond, não acredito na existência do inferno. Procure consolar-se. Talvez eles comecem pela garganta ou pelo coração. O bater do pulso ainda os poderá atrair. Depois disso, tudo acabará depressa.

Proferiu então uma sentença em chinês. O guarda que estava atrás da cadeira da moça inclinou-se para a frente, levantou-a da cadeira como se fora uma criança e atirou-a por cima do ombro. Os belos cabelos caíam qual cascata de ouro entre os braços inertes. O guarda foi à porta, abriu-a e saiu, formando a fechá-la sem ruído.

Por um momento, reinou, silêncio na sala. Bond pensava somente na faca encostada ao seu ventre e no isqueiro debaixo da axila. Qual a extensão dos estragos que ele poderia causar com aqueles dois pedaços de metal? Poderia, de algum modo, aproximar-se do Dr. No?

O Dr. No continuou serenamente: — O senhor disse que o poder era uma ilusão, sr. Bond. Não modifica a sua opinião? O meu poder de escolher a morte que quiser para essa jovem certamente que não é uma ilusão. Todavia, passemos ao método de sua morte. Isso também encerra aspectos novos. Saiba, sr. Bond, que estou interessado na anatomia da coragem — do poder de resistência do corpo humano. Mas como medir a resistência humana? Como traçar um gráfico da vontade de sobrevivência, da tolerância à dor, da conquista do medo? Pensei muito nesse problema e acredito tê-lo solucionado. Trata-se, por enquanto, de um método incompleto e grosseiro, mas que será aperfeiçoado na medida em que as experiências se forem multiplicando. Preparei o senhor para essa experiência. Dei-lhe um sedativo, de modo que o seu corpo esteja descansado, e alimentei-o bem, de modo que possa estar no gozo completo de suas forças. Os futuros — como os chamarei — pacientes, terão as mesmas vantagens. Todos começarão nas mesmas condições. Depois disso, o restante será uma questão de coragem e do poder de resistência individuais.

O Dr. No fez uma pausa, enquanto observava o rosto de Bond. Depois prosseguiu: — Saiba ainda, sr. Bond, que justamente agora acabo de construir uma espécie de pista de obstáculos, uma espécie de pista de corrida contra a morte. Não direi mais sobre isso porque o elemento surpresa é um dos que aparecem na formação do medo. Os perigos desconhecidos são os piores, os que mais pressionam as reservas de coragem. E me alegro com a idéia de que a corrida de obstáculos que o senhor enfrentará contém um rico sortimento de coisas inesperadas. Será particularmente interessante sr. Bond, que um homem com as suas qualidades físicas seja o meu primeiro competidor. Será interessantíssimo ver até onde o senhor conseguirá alcançar, na pista que idealizei. Não há dúvida de que o senhor estabelecerá uma marca invejável para os futuros corredores. Tenho grandes esperanças no senhor. O senhor deverá ir muito longe, mas quando tombar, inevitavelmente, diante de um obstáculo, seu corpo será recolhido e eu examinarei meticulosamente os seus restos. Os dados assim colhidos serão registrados e o senhor representará o primeiro ponto de um gráfico. Algo honroso, não é, senhor Bond?

Bond nada respondeu. Que diabo significaria tudo aquilo? Em que poderia consistir aquela prova? Seria possível escapar dela com vida? Poderia escapar disso e salvar Honeychile antes que fosse demasiado tarde, ainda que para matá-la e assim salvá-la da tortura? Silenciosamente, Bond ia reunindo suas reservas de coragem, retemperando a mente contra o temor do desconhecido que já começava a envolver a sua garganta, e focalizando a sua vontade no alvo da sobrevivência. Acima de tudo, deveria apegar-se às suas armas.

O Dr. No levantou-se e afastou-se da cadeira. Caminhou vagarosamente até a porta e voltou-se. Seus olhos negros e ameaçadores fixavam Bond, pouco abaixo da armação da porta. A cabeça estava ligeiramente inclinada e os lábios finos tornaram a se mexer: — Faça uma boa corrida para mim, sr. Bond. Meus pensamentos, como se costuma dizer, o acompanharão.

O Dr. No afastou-se e a porta fechou-se suavemente por trás de seus costados amarelos.


XVII - O PROLONGADO GRITO


Havia um homem no elevador, cujas portas estavam abertas, à espera. James Bond, com os braços ainda torcidos, junto aos flancos, foi impelido para dentro do elevador. Agora, a sala de jantar estava vazia. Quando voltariam os guardas para desembaraçar a mesa e então notar o desaparecimento dos objetos subtraídos? As portas fecharam-se e o cabineiro ficou diante dos botões, de modo que Bond não pôde ver qual deles teria sido apertado. Sabia apenas que estavam, subindo, e tentou fazer um cálculo da distância percorrida. O elevador parou, e Bond teve a impressão de que o tempo gasto naquele percurso fora menor do que quando descera juntamente com Honeychile. As portas abriram-se para um corredor sem tapete, com uma pintura cinzenta e rústica nas paredes de granito. Esse corredor ia numa linha reta até uma distância de vinte metros.

— Espere aí — disse o guarda de Bond para o cabineiro — voltarei logo.

Bond foi conduzido ao longo do corredor, passando diante de portas marcadas com letras do alfabeto. Ouvia-se um leve zunido de maquinaria no ar, e, por trás de uma porta, Bond teve a impressão de ouvir descargas estáticas de equipamento eletrônico. Aquilo parecia vir da sala de máquinas, no coração da montanha. Logo chegaram à porta da extremidade do corredor que estava marcada com um Q negro. Ela estava entreaberta, de modo que logo se escancarou quando Bond foi empurrado através dela. Por trás daquela porta estava uma cela pintada de cinzento, com cerca de quinze pés quadrados. Nela nada havia, a não ser uma cadeira de madeira, sobre a qual estavam, lavadas e cuidadosamente dobradas, as calças pretas de Bond e a sua camisa azul.

O guarda soltou os braços de Bond, que logo se voltou e olhou para o rosto amarelo, sob os cabelos ondeados. Havia um leve sinal de curiosidade e prazer nos olhos marrons e úmidos. O homem estava de pé, segurando a maçaneta da porta. — Bem, aqui estamos, rapaz. Você está no ponto de partida. Poderá ficar aí sentado, apodrecendo, ou procurar uma saída e iniciar a corrida. Felicidades para você.

Bond pensou que valeria a pena tentá-lo. Deu ainda uma olhadela para além do guarda, onde o cabineiro ainda se conservava ao lado de suas portas abertas, observando-os.

Então disse suavemente: — Você não gostaria de ganhar dez mil dólares, garantidos, e uma passagem para qualquer lugar do mundo que desejasse? — Dito isso, observou cuidadosamente as reações do homem. A boca se abriu numa ampla careta, mostrando dentes escurecidos, desigualmente gastos pelos anos de mascagem de cana-de-açúcar.

— Muito obrigado, senhor. Prefiro continuar vivendo. — O homem fez menção de fechar a porta e Bond ainda gritou ansiosamente: — Podemos sair juntos daqui.

Os grossos lábios fizeram uma careta de desprezo, e o homem apenas disse: “Vá em frente!” E logo a porta se fechou com um duro estalido.

Bond deu de ombros, mas logo passou a examinar a porta. Era feita de metal e não havia maçaneta do lado de dentro. Bond preferiu não experimentar o ombro de encontro àquela barreira. Aproximou-se da cadeira, sentou-se sobre a pilha de suas roupas limpas, e olhou à volta da cela. As paredes eram inteiramente nuas, com exceção de uma grade para ventilação, feita de arame grosso, num dos cantos, logo abaixo do teto. Aquela abertura era maior que os seus ombros. Era, evidentemente, a entrada para a pista dos obstáculos. A única abertura restante, naquele recinto, era uma espécie de vigia de espesso vidro, logo acima da porta, e que não seria maior do que a cabeça de Bond. A luz, vinda do corredor, atravessava aquela grade e penetrava na cela. Nada mais havia. Não seria inteligente perder tempo. Seriam dez e meia. Lá fora, em alguma parte da falda da montanha, a jovem já deveria estar deitada, estendida sobre o chão, à espera do matraquear das pinças no coral cinzento. Bond apertou os dentes ao pensamento daquele corpo frágil e indefeso sob as estrelas. Bruscamente, pôs-se de pé. Que diabo estava ele fazendo ali sentado? O que quer que existisse do outro lado da grade deveria ser imediatamente enfrentado.

Bond apanhou a faca e o isqueiro, e tirou o quimono. Em seguida vestiu as calças e a camisa, enfiando o isqueiro no bolso. Experimentou o corte da faca com o polegar, e verificou que a lamina era bastante afiada. Seria ainda melhor se pudesse fazer uma ponta naquela lâmina. Ajoelhou-se no chão e começou a esfregar a extremidade arredondada da faca na laje do pavimento. Depois de um precioso quarto de hora, deu-se por satisfeito. Não era um estilete, mas que tanto serviria para cortar como para espetar. Colocou-a então entre os dentes e arrastou a cadeira para baixo da abertura gradeada. A grade? Supondo que pudesse arrancá-la pela base, aquele arame bem poderia ser esticado, de modo a formar uma lança, facultando-lhe assim uma terceira arma. Bond esticou os braços, com os dedos encurvados.

A coisa imediata de que tomou consciência foi uma dor de queimadura ao longo do braço e o choque de sua cabeça, ao atingir o chão de pedra. Ficou durante algum tempo estendido no solo, apenas com a lembrança de uma faísca azulada e o estalido e o chiado seco de eletricidade.

Depois de algum tempo, Bond pôs-se de joelhos e assim ficou por um momento. Em seguida baixou a cabeça e sacudiu-a lentamente de um lado para outro, como um animal ferido. Sentiu um leve odor de carne queimada. Levantou a mão direita à altura dos olhos e viu a mancha vermelha de uma queimadura aberta ao longo da parte interna dos dedos. A visão daquele ferimento trouxe-lhe também a consciência da dor. Bond proferiu uma imprecação. Vagarosamente pôs-se de pé. Dessa vez, olhou de soslaio, cautelosamente, para a grade, como se ela fosse feri-lo novamente. Irritado, encostou a cadeira na parede, apanhou a faca e com ela cortou uma faixa do quimono, envolvendo-a firmemente nos dedos. Em seguida tornou a subir na cadeira e olhou para a grade. Esperava-se que ele a atravessasse, e aquele choque tinha sido calculado apenas para amolecê-lo: era uma amostra do que estaria por vir. Com certeza o curto-circuito causado por ele já tinha posto fora de combate aquela armadilha. Olhou para a grade apenas por um instante, e já os dedos de sua mão esquerda a atingiam e atravessavam. Do outro lado não havia nada. Seria mesmo só aquela grade? Puxou a armação e ela cedeu uma polegada. Fez novo esforço e a grade foi arrancada do lugar, ficando pendurada por dois fios de cobre que desapareciam no interior da parede. Bond soltou a grade das pontas daqueles fios e desceu da cadeira. Havia um ponto de junção no arame de ferro, naquela grade, e Bond pôs-se a retificá-la, usando a cadeira como martelo.

Depois de dez minutos tinha à sua disposição um chuço recurvado de cerca de um metro de comprimento. Uma des extremidades, que tinha sido originalmente cortada por alicates, apresentava-se lacerada. Não atravessaria as roupas de um homem, mas teria efeito devastador no pescoço ou no rosto. Lançando mão de toda sua força e servindo-se da fresta inferior da porta metálica, Bond conseguiu fazer ainda um gancho com a extremidade rombuda daquele arame de ferro. Em seguida mediu-o com a perna e achou que aquela nova arma era demasiado longa. Em conseqüência, dobrou-a em dois e enfiou-a numa das pernas da calça. Agora, o chuço ia de sua cintura, onde fora pendurado, até o joelho. Voltou então para a cadeira e tornou a subir até a boca do ventilador, agora desobstruída. Não experimentou mais choque. Ergueu o corpo e introduziu-o naquele tubo que tinha mais quatro polegadas que a largura de seus ombros. Durante algum tempo deixou-se ficar, de barriga para baixo, a olhar para o interior da abertura. O túnel era circular e de metal polido. Bond apanhou o isqueiro, abençoando a inspiração que o fizera roubá-lo, e acionou-o. Sim, aquilo era folha de zinco que parecia nova. O túnel continuava em linha reta, sem qualquer característica especial, a não ser as costuras de junção das várias seções tubulares. Bond tornou a meter o isqueiro no bolso e foi-se arrastando para a frente.

Aquele deslizamento não foi difícil, e até mesmo uma brisa fresca, proveniente do sistema de ventilação, afagava o rosto de Bond. O ar não trazia nenhum cheiro de mar, sendo o seu odor o mesmo que caracteriza o ar de uma instalação de condicionamento de temperatura. O Dr. No devia ter lançado mão de um dos tubos do sistema para as suas experiências. Mas que armadilhas teria introduzido naquele tubo, a fim de pôr à prova as suas vítimas? Deviam ser engenhosas e dolorosíssimas — imaginadas para reduzir a resistência de suas vítimas. No final dos obstáculos, com certeza, a vítima seria surpreendida com o golpe de misericórdia — se é que lograsse chegar ao fim. Com efeito, haveria ali algo que não admitisse escapatória, pois nessa corrida não haveria prêmios, mas apenas padecimentos. A não ser, naturalmente, que o Dr. No tivesse subestimado a vontade de sobrevivência de seu desafeto. Essa, pensou Bond, era a sua única esperança — tentar vencer todos os obstáculos que se lhe deparassem, rompendo pelo menos até a última estacada.

Havia uma pálida luminosidade à sua frente. Bond foi-se arrastando cautelosamente, com todos os seus sentidos atuando como antenas. Aquela luminosidade foi-se tornando mais clara. Era o reflexo da luz que incidia sobre um dos lados da extremidade do tubo. Continuou avançando até que sua cabeça tocou naquela extremidade. Aí, Bond se torceu sobre as costas e olhou para cima. Sobre sua cabeça estava uma chaminé de cerca de cinqüenta metros de altura, em cujo topo havia uma claridade estável. Era como se alguém olhasse através de um comprido cano de canhão. Bond enfiou a cabeça por aquela chaminé e pôs-se de pé. Então, esperava-se que ele galgasse aquele tubo liso, sem qualquer apoio para os pés! Seria possível? Bond expandiu os ombros. Sim, eles lhe proporcionariam uma boa adesão às paredes laterais. Seus pés também o ajudariam na empreitada, embora escorregassem terrivelmente, a não ser nas orlas em que se soldavam os tubos. Bond deu de ombros e tirou os sapatos. Não adiantava monologar. Teria apenas que tentar.

Seis polegadas de cada vez, e o corpo de Bond começou a deslizar pela chaminé acima. A operação consistia em expandir os ombros para se fixar à chaminé, depois levantar os pés, unir os joelhos fortemente, e forçar os pés para fora, em direções opostas, contra o metal, e rapidamente contrair e expandir os ombros novamente, ao mesmo tempo que os pés escorregavam para baixo, deixando, entretanto, como saldo uma pequena progressão de algumas polegadas. E continuar repetindo, repetindo e repetindo a operação, até que os seus olhos fossem banhados pela luz que vira no topo da chaminé. De quando em quando pararia na saliência da solda dos tubos, a fim de descansar um pouco, recuperar o fôlego e medir o próximo avanço. E não havia que olhar para cima; apenas concentrar-se nas polegadas de metal que deveriam ser vencidas, uma a uma. Nada de preocupações com a luminosidade que pareceria nunca aumentar ou se aproximar. Também não deveria preocupar-se com a possibilidade de afrouxar a pressão dos ombros contra as paredes metálicas, indo esmagar os tornozelos no fundo da chaminé. E nenhuma preocupação com cãibras, com o inchaço dos ombros ou com as esfoladuras dos pés. Apenas ataque às polegadas prateadas, conquistando-as uma a uma.

Mas logo os pés começaram a suar e escorregar de modo desesperador. Por duas vezes Bond perdeu um metro, em virtude do escorregamento de seus ombros, que ficaram terrivelmente escalavrados com o atrito, antes de poder conseguir a freagem. Em certa altura teve mesmo que se deter durante algum tempo para esperar que o suor secasse com a corrente de ar que descia pela chaminé. Essa pausa durou dez minutos, durante os quais ele se viu apagadamente refletido na superfície metálica, com o rosto dividido ao meio pela faca que segurava entre os dentes. Ainda assim recusou-se a olhar para cima, a fim de ver quantos metros teria que vencer. Aquela derradeira seção poderia ser muito longa. Cuidadosamente Bond esfregou cada pé num cano de calça e recomeçou a batalha.

Agora, parte de sua mente sonhava, enquanto a outra se empenhava na luta. Nem mesmo estava consciente de que a luminosidade se ia acentuando lentamente e que a brisa se tornava mais forte. Via-se apenas como uma lagarta ferida, arrastando-se por um cano de descarga em direção a um ralo de banheira. O que veria quando atravessasse o ralo? Uma jovem nua se enxugando? Um homem fazendo a barba? A luz do sol filtrando-se para dentro de um banheiro Vazio?

A cabeça de Bond bateu de encontro a alguma coisa. O ralo estava obstruindo o orifício! O choque do desapontamento fez que escorregasse uma polegada, antes que seus ombros pudessem retê-lo firmemente. Então compreendeu que tinha chegado ao topo da chaminé! Agora notava a luz forte e o vento impetuoso. Ansiosamente, ele se alçou novamente até que a cabeça tocou em algo. O vento soprava contra sua orelha esquerda. Cautelosamente, voltou a cabeça para essa direção. Era outro tubo lateral. Acima de sua cabeça a luz se escoava através de uma espessa vigia. Tudo o que tinha a fazer era contornar aquela derivação, agarrando-se à orla do novo tubo, e, de qualquer maneira, encontrar forças para se introduzir naquele túnel lateral. Então poderia descansar um pouco, deitado.

Com redobrada cautela, nascida do pânico de que algo agora podia acontecer, de que poderia cometer um erro e ser precipitado no fundo da chaminé, Bond empreendeu a manobra, com suas últimas reservas de forças, e introduzindo-se na nova caverna caiu estirado com o rosto para baixo.

Mais tarde — quanto tempo mais tarde? — os olhos de Bond se abriram e seu corpo estremeceu. O frio o tinha despertado da total inconsciência em que o seu corpo o teria lançado. Penosamente, virou-se de costas, com pés e ombros doendo terrivelmente, e procurou reunir todas as forças mentais e físicas. Não tinha a mínima idéia da hora ou do lugar em que estaria no interior da montanha. Levantou a cabeça e olhou para trás, em direção à vigia, sobre o tubo vertical, do qual escapara. A luz era amarelada e o vidro parecia muito grosso. Lembrou-se da vigia existente na sala Q. Aquela vigia era absolutamente inquebrável, e esta também o seria, pensou ele.

Subitamente, por trás daquele vidro, distinguiu movimento. Enquanto observava, um par de olhos se materializaram, por trás de lâmpadas elétricas. Aqueles olhos pararam e fitaram-no, com o farolete parecendo um nariz entre aqueles dois olhos. Fixaram-no negligentemente e depois desapareceram. Os lábios de Bond explodiram numa imprecação. Então o seu progresso estava sendo observado para ser levado ao conhecimento do Dr. No.

Bond disse em voz alta: “Para o diabo com todos eles!”,, e voltou-se colérico sobre o ventre. Levantou a cabeça e olhou para a frente. O túnel desaparecia na escuridão. Para a frente! Não adianta nada perder tempo aqui. Apanhou a faca, colocou-a entre os dentes e foi abrindo caminho.

Em breve já não havia mais nenhuma luminosidade. Bond detinha-se de quando em quando para acender o isqueiro mas nada encontrava a não ser trevas. O ar começou a se tornar mais cálido, dentro do túnel, e, depois de uns cinqüenta metros talvez, decididamente quente. Havia mesmo cheiro de calor no ar, de calor metálico. Bond começou a suar.. Dentro de alguns minutos seu corpo estava completamente encharcado e ele tinha que parar para limpar os olhos. Deu uma volta à direita, no tubo, e, na nova seção, sentiu o metal bastante quente contra a sua pele. O cheiro de calor metálico era agora bem acentuado. Assim que enfiou a cabeça no novo túnel, tirou o isqueiro do bolso, acendeu-o e rapidamente recuou. Amargamente, considerou a nova dificuldade, medindo-a e amaldiçoando-a. A chama de seu isqueiro tinha iluminado uma seção de tubos de zinco descolorido. A nova dificuldade seria o calor!

Bond resmungou alto. Como a sua carne já esfolada poderia resistir àquilo? Como poderia proteger a pele contra o metal? Mas não havia solução satisfatória. Ou voltaria, ou continuaria ali parado ou, afinal, avançaria. Não havia outra decisão a tomar. Aliás, Bond começava a encontrar algum consolo em suas reflexões. Com efeito, não seria o calor que haveria de matá-lo, mas alguma mutilação. O metal aquecido não seria o seu campo de sacrifício — apenas mais uma prova para medir-lhe a resistência.

Bond pensou na jovem e no que ela estaria sofrendo. Oh, sim, para a frente com aquilo. Agora, vejamos...

Bond apanhou a faca e cortou toda a parte da frente da camisa, fazendo com ela várias faixas. A única esperança estaria em dar alguma proteção às partes de seu corpo que mais sofreriam a ação do calor, isto é, os pés e as mãos. Seus joelhos e cotovelos teriam de resistir apenas com a proteção normal da fina camada de roupa. E, assim, dispôs-se à luta, amaldiçoando-a.

Agora estava pronto. Um, dois, três...

Bond dobrou o ângulo do túnel e lançou-se contra o foco de calor.

Mantenha a barriga nua distante do chão! Contraia os ombros! Mãos, joelhos, pés; mãos. joelhos, pés. Mais depressa! Mais depressa! Sempre mais depressa, de modo que cada toque contra o chão seja rapidamente seguido por outro.

Os joelhos é que mais estavam sofrendo, agüentando a maior parte do peso do corpo. Agora, as mãos envoltas em panos estavam começando a chamuscar. Acendeu-se uma fagulha, e logo outra, e em seguida surgiram chamas, quando as fagulhas começaram a se deslocar. A fumaça que saía daquele envoltório de pano de suas mãos fazia que os seus olhos ardessem penosamente. Por Deus, ele não agüentaria mais! Não havia mais ar. Seus pulmões estavam a ponto de estourar. Agora as suas duas mãos estavam lançando fagulhas para os lados. O tecido devia estar quase acabado; então a carne começaria a queimar. Bond deu um guinada e seu ombro ferido tocou no metal. Um grito de dor ecoou no túnel, logo seguido de outros gritos proferidos regularmente, quando suas mãos, pés ou joelhos tocavam no metal escaldante. Agora ele estava liquidado. Era o fim. Mais alguns segundos e iria cair de borco, morrendo literalmente queimado. Não! Devia opor um supremo esforço de reação, ainda que aos berros, até que toda a carne tivesse sido queimada até os ossos. A pele dos joelhos já devia ter sido completamente destruída. Mais um pouco e as palmas de suas mãos estariam tocando no metal. Apenas o suor que corria de seus braços poderia manter úmido o pano de suas mãos. Grite, grite, grite! Isto aliviará a dor.” Isto dirá que você está vivo. Continue! Continue! Não pode durar muito mais. Não é aqui que você deverá morrer. Não fraqueje! Você não pode!

A mão direita de Bond tocou em alguma coisa que cedeu. Logo sentiu uma corrente de ar frio. A outra mão bateu então em sua cabeça. Ouviu-se um débil ruído. Bond sentiu a orla inferior de um anteparo de amianto, articulado na parte superior do tubo, e que agora se arrastava em suas costas. Tinha vencido aquela prova. Ouviu o barulho daquele anteparo fechando-se novamente, depois de ter dado passagem a todo o seu corpo. Suas mãos estavam agora encostadas numa sólida parede. Com os dedos, apalpou à direita e à esquerda. Era um desvio em ângulo reto. Seu corpo seguiu cegamente volta do desvio e o ar frio parecia penetrar em seus pulmões como lâminas de aço geladas. Prudentemente, encostou os dedos no metal. Estava frio! Com um gemido Bond caiu sobre o rosto e ficou quieto.

Algum tempo depois, a dor tornou a reavivá-lo. Bond voltou-se dolentemente, de costas. Vagamente notou uma vigia de vidro acima de sua cabeça, e vagamente percebeu aquele mesmo par de olhos a fitá-lo. Depois, deixou novamente que as ondas de trevas o submergissem.

Aos poucos, na escuridão, as bolhas feitas em toda a pele e os pés e ombros queimados começaram a endurecer. O suor tinha-se secado no corpo e nos farrapos da roupa, enquanto o ar penetrara nos pulmões superaquecidos, começando o seu insidioso trabalho. Mas o coração continuava batendo, forte e regularmente, por dentro da torturada carcaça, e os poderes mágicos do oxigênio levaram nova vida para dentro das artérias e veias, recarregando os nervos.

Depois de um tempo que lhe pareceu infinito, Bond despertou. Estremeceu, e, ao encontrarem-se os seus olhos com o outro par que o espreitava, por trás do vidro, a dor se apoderou dele e sacudiu-o como se fosse um rato. Esperou que aquela descarga de dor o matasse. Tentou novamente, e novamente, até que conseguiu aquilatar toda a força do adversário. Em seguida, para esconder-se da testemunha, voltou-se sobre o estômago e resistiu a toda a dor que vinha de dentro de si próprio. Continuou em expectativa, explorando o corpo para verificar-lhe as reações, pondo à prova a força de decisão que ainda tivesse restado nas baterias. Quanto mais poderia ainda agüentar? Os lábios de Bond desprenderam-se dos dentes e ele rosnou na escuridão. Era um som animal. Tinha chegado ao fim de suas reações humanas à dor e à adversidade. O Dr. No o tinha encurralado. Mas ainda restavam reservas de desespero animal e, num animal forte, essas reservas são consideráveis.

Lentamente, em verdadeira agonia, Bond deslizou mais alguns metros para fora do campo visual daqueles olhos e procurou o seu isqueiro, acendendo-o. À sua frente via apenas uma lua cheia negra, a boca circular que o levaria ao estômago da morte. Bond guardou o isqueiro, respirou profundamente e pôs-se sobre os joelhos e mãos. A dor não foi maior, apenas diferente. Lentamente, com movimentos duramente articulados, avançou.

O tecido de algodão de seus joelhos e de seus cotovelos tinha sido completamente queimado. Entorpecidamente, seu cérebro foi registrando a umidade à medida que suas bolhas se abriam contra o metal frio. Enquanto se movia, ia simultaneamente flexionando os dedos e os pés, sentindo-lhes a dor. Lentamente foi sabendo o que poderia fazer, o que doeria menos. Esta dor é suportável, refletiu ele consigo mesmo. Se eu tivesse sofrido um desastre de avião, eles diagnosticariam apenas contusões e queimaduras superficiais. Teria alta do hospital dentro de alguns dias. Não há nada de sério comigo. Sou um sobrevivente de desastre. Dói, mas não é nada. Pense nos pedaços de carnes dos outros passageiros. Dê-se por feliz. Tire isso de sua cabeça. Mas, por trás de todas essa reflexões, estava o pensamento de que, em verdade, ele ainda não experimentara o desastre, — que ainda estava a caminho dele, com sua resistência e sua capacidade muito reduzidas. Quando chegaria ele? Que caráter teria? E quanto mais ainda seria ele amolecido antes de chegar à arena do sacrifício?

à frente, na escuridão, aqueles pequeninos pontos vermelhos bem poderiam ser uma alucinação, manchas rubras diante de seus olhos, causadas pela exaustão. Bond parou e apertou os olhos. Balançou a cabeça. Não, aqueles pontinhos vermelhos ainda estavam lá. Vagarosamente, arrastou-se para mais perto deles. Agora não havia dúvida de que eles se estavam movendo. Bond deteve-se novamente. Alem das batidas de seu coração, ouvia uma espécie de murmúrio suave e delicado. Aqueles pontinhos do tamanho de uma cabeça de alfinete tinham aumentado. Agora haveria vinte ou trinta, deslocando-se para a frente e para trás, alguns rapidamente, outros mais vagarosamente, em todo o círculo negro que o esperava à frente. Susteve o fôlego, assim que conseguiu acender o isqueiro. Os pontinhos vermelhos tinham desaparecido. Substituindo-os, ele viu a um metro de distância, à sua frente, uma tela muito fina, quase da finura de musselina, bloqueando o túnel.

Bond continuou deslocando-se por centímetros, para diante, com o isqueiro aceso à frente. Aquilo era uma espécie de gaiola, com pequeninos animais no seu interior. Podia ouvir aqueles diminutos seres fugindo à luz. A um pé apenas da tela apagou a luz e esperou que seus olhos se acostumassem à escuridão. Enquanto esperava, escutando, pôde ouvir novamente os pequeninos animais aproximarem-se dele, e, gradualmente, aquela floresta de pequeninos pontinhos vermelhos começou a se juntar, fitando-o através da tela.

Que seria aquilo? Bond ouviu seu coração bater com força. Serpentes? Escorpiões? Centopéias?

Cuidadosamente, foi aproximando os olhos daquela floresta de pontos luminosos. Aproximou o isqueiro bem junto da tela e acendeu-o bruscamente. Pôde apreender, num relance, a visão de pequeninas patas que atravessavam a tela e de dezenas de pés cabeludos e de ventres igualmente cabeludos com a forma de sacos, tendo em determinado ponto grandes cabeças de insetos que pareciam cobertas de olhos. Os animais fugiam em precipitada corrida, abandonando a tela da frente para irem refugiar-se na extremidade oposta da gaiola, formando uma só massa cinza-marrom.

Bond olhou através da tela, movendo o isqueiro para a frente e para trás. Depois apagou-o para economizar gasolina, e deixou que a respiração saísse por entre os dentes, num tranqüilo suspiro.

Eram aranhas, gigantescas tarântulas, de três ou quatro polegadas de comprimento. Haveria umas vinte delas dentro daquela gaiola. E, de qualquer maneira, ele teria que passar por perto delas.

Bond ficou parado, descansando e pensando, enquanto os olhos vermelhos se iam reunindo outra vez diante de seu rosto.

Qual seria o grau de letalidade daqueles animais? Quanto das lendas em torno delas seria mito? Certamente que podiam matar animais, mas em que medida seriam mortais para o homem aquelas gigantescas aranhas? Bond deu de ombros. Lembrou-se da centopéia. O toque das tarântulas seria muito mais suave. Seriam como o toque das patas de ursinhos de brinquedo contra a pele humana — até que mordessem e esvaziassem os seus folículos venenosos no organismo da pessoa.

Mas, ainda aqui, seria esta a arena do sacrifício derradeira, montada pelo Dr. No? Uma mordida ou duas, talvez, para mandar uma pessoa para um delírio de dor. O horror de ter que atravessar a tela no escuro — o Dr. No não teria pensado no isqueiro de Bond — varando aquela floresta de olhos, esmagando alguns corpos moles mas sentindo as picadas de outros. E depois mais picadas das que tivessem ficado presas à roupa. Em seguida, a lenta agonia do veneno. Este deveria ter sido o caminho percorrido pela imaginação do Dr. No — para que a vítima prosseguisse aos gritos pelo seu caminho. Para quê? Para a barreira final?

Mas Bond tinha o isqueiro, a faca e o chuço de arame. Tudo o que iria precisar era nervos e uma precisão infinita.

Delicadamente abriu a tampa do isqueiro e, com o polegar e indicador, fez sair o pavio uma polegada. Acendeu-o, e quando as aranhas recuaram, furou a tela com a faca. Fez um buraco na armadura e cortou para os lados. Depois, apanhou a aba da tela, que assim se desprendera, e arrancou-a da armadura. A tarefa não foi difícil, pois a aba fendeu-se numa só peça, com um tecido de algodão. Tornou a colocar a faca entre os dentes e atravessou a abertura. As aranhas recuaram diante da chama e amontoaram-se umas sobre as outras. Bond retirou o chuço de arame de dentro das calças e bateu com o arame dobrado sobre aqueles corpos moles. Bateu e tornou a bater ferozmente, reduzindo os aracnídeos a uma pasta informe. Quando algumas das aranhas tentaram escapar em sua direção, ele acenou-lhes com a chama e esmagou as fugitivas, uma a uma. Agora, as aranhas vivas estavam atacando as mortas, e tudo quanto Bond tinha a fazer era terminar o massacre.

Lentamente todos aqueles movimentos convulsivos foram declinando até cessarem completamente. Estariam todas mortas? Estariam algumas simulando morte? A chama do isqueiro estava começando a morrer. Teria que enfrentar o risco. Avançou mais um pouco e atirou aquela massa escura e pegajosa para um lado. Depois tirou a faca de entre os dentes e abriu a segunda cortina, puxando a aba cortada para cima da pasta feita com os corpos das tarântulas. A chama bruxuleou e tornou-se apenas um revérbero vermelho. Bond reuniu suas forças, atirou o corpo sobre a massa encoberta e atravessou a segunda tela.

Não sabia se teria posto os joelhos e cotovelos sobre limalhas metálicas ou sobre as aranhas. Tudo o que sabia é que tinha atravessado aquela barreira. Arrastou-se ainda por alguns metros para a frente, no interior do túnel, e depois parou para descansar e reunir coragem.

Sobre a sua cabeça veio uma pálida luz. Bond torceu-se para um lado, ficando de costas, para ver o que já esperava. Os olhos amarelos e amendoados fixavam-no com profundo interesse. Lentamente, por trás do farolete, a cabeça moveu-se de um lado para outro. As pálpebras caíram numa piedade fingida. Um punho cerrado, com o polegar apontando para baixo, à guisa de despedida e aniquilamento, interpôs-se entre o farolete e o vidro. Em seguida foi retirado e a luz apagou-se. Bond voltou o rosto para baixo e descansou a testa no chão metálico e frio. Aquele gesto dizia-lhe que ele estava chegando ao obstáculo final, que os seus algozes tinham dado por encerradas as observações até virem recolher os seus restos. Bond sentiu ainda que naquele rosto não houvera um único indício de louvor pelo fato de ter logrado sobreviver até aquela etapa. Aqueles chineses negros odiavam-no. Apenas queriam que ele morresse, e tão miseravelmente quanto possível.

Os dentes de Bond bateram suavemente. Ele pensara na jovem e este pensamento dera-lhe forças. Ainda não estava morto. Que diabo! Ele não iria morrer! Não enquanto o coração não lhe fosse arrancado do corpo.

Bond retesou os músculos. Era tempo de continuar, a investida. Com redobrado cuidado, recolocou as armas em seus lugares, e penosamente recomeçou a avançar pela escuridão.

O túnel começava a inclinar-se ligeiramente para baixo, o que tornava a progressão mais fácil. Logo a inclinação tornou-se tão acentuada que Bond podia deslocar-se apenas em virtude de seu peso. Era uma bênção não ter que fazer aquele esforço derradeiro com os músculos. Vislumbrou um clarão acinzentado à sua frente, pouco mais que uma redução das trevas completas, mas aquilo prenunciava uma mudança, pois a qualidade do ar parecia diferente. Havia nele um odor novo. O que seria? O mar?

Súbito, Bond compreendeu que estava escorregando para baixo, ao longo do túnel. Expandiu os ombros e abriu os pés, procurando impedir a queda. Aquele esforço causou-lhe terríveis dores e o efeito foi mínimo. Agora o túnel começava a alargar-se e ele já não poderia mais diminuir o impulso da queda! Seu deslizamento tornava-se mais e mais acelerado. Agora via uma curva à frente — e era uma curva dirigida para baixo.

O corpo de Bond logo chegou. àquela curva e contornou-a. Deus do céu, ele estava mergulhando de cabeça para baixo! Desesperadamente, abriu os braços e pernas. O metal esfolou sua pele. Agora tinha perdido completamente o controle da situação e estava mergulhando para baixo, sempre pára baixo, no interior de um cano de canhão. Muito abaixo havia um circulo de luz cinzenta. Seria o ar livre? O mar? A luz subia vertiginosamente para ele! Lutou para recuperar o fôlego. Continue vivo, idiota! Continue vivo!

Primeiro a cabeça, e logo depois o corpo de Bond precipitaram-se pelo espaço, vencendo aceleradamente a distância de mais de cem pés que o separava da superfície do mar.


XVIII - ARENA DE SACRIFÍCIO


O corpo de Bond espadanejou o espelho de um mar de alvorada como o impacto de uma bomba.

Enquanto descia precipitadamente pelo tubo prateado, em direção ao disco de luz, o instinto dissera-lhe que retirasse a faca de entre os dentes e que pusesse as mãos para a frente, a fim de aparar a queda, assim como a cabeça para baixo e o corpo rígido. E, na última fração de segundo, quando ele viu o mar que se alteava ao ritmo das ondas, procurou sorver uma longa inspiração. En conseqüência, projetou-se na água como se estivesse dando um mergulho, com os braços estendidos abrindo-lhe um buraco através do qual passaram a sua cabeça e o corpo. Conquanto, quando chegou a vinte pés de profundidade, tivesse perdido os sentidos, o despencar a sessenta e cinco quilômetros por hora não conseguira matá-lo.

Lentamente o corpo foi voltando à superfície, e ficou, com a cabeça para baixo, a balançar-se suavemente nas pequeninas ondas causadas pelo seu próprio mergulho. A água que penetrou nos pulmões de certa forma contribuiu para enviar uma última mensagem ao cérebro. As pernas e braços agitaram-se desajeitadamente. Agora tinha conseguido voltar a cabeça para cima, com a água escorrendo da boca. Tornou a afundar, mas dessa vez, instintivamente, as pernas começaram a mover-se procurando manter o corpo à superfície da água. Por fim, a cabeça, horrivelmente sacudida pela tosse, conseguiu vir para fora da água e assim manter-se. Os braços e as pernas começaram a agitar-se dèbilmente, com os movimentos natatórios de um cão, e através da cortina vermelha e negra, os olhos injetados de sangue viram a linha da vida e disseram ao dolente cérebro que visasse àquele objetivo.

A arena de execução era uma estreita e profunda enseada, na base de um elevado penhasco. A corda de salvamento em direção à qual Bond lutava, embaraçado pelo chuço metido em sua calça, era representada por uma forte tela de arame, que se estendia por dois lados do penhasco, protegendo aquela enseada do mar aberto. Aquela rede, formada de quadrados, estava suspensa a um grosso cabo situado a dois metros acima da superfície da água. Para baixo, a tela desaparecia nas profundezas, cheia de incrustações de algas.

Bond conseguiu chegar ao arame, e a ele agarrou-se como que crucificado. Durante quinze minutos deixou-se ficar na mesma posição, com o corpo de quando em quando sacudido por vômitos, até que se sentiu bastante forte para virar a cabeça e verificar onde estava. Ofuscadamente, os seus olhos tomaram a altura do penhasco, sobre sua cabeça. O lugar estava obscurecido por uma sombra cinzenta, projetada pela montanha, mas ao largo, no mar, havia uma iridiscência de pérola provocada pela aurora, o que significava que para o resto do mundo o dia estava amanhecendo. Mas onde Bond se encontrava era escuro e triste.

Lerdamente, a mente de Bond começou a se interrogar sobre aquela tela de arame. Qual seria a sua finalidade, fechando aquela escura enseada e separando-a do mar? Seria para manter alguma coisa do lado de fora ou para mantê-la do lado de dentro? Bond olhou vagamente para baixo, procurando penetrar as profundezas do mar, à sua volta. As malhas de arame perdiam-se no nada, sob os seus pés. Havia pequeninos peixes à volta de suas pernas, abaixo da cintura. Que estariam eles fazendo? Pareciam estar-se alimentando, avançando contra seu corpo e depois recuando com fiapos negros na boca. Fiapos de que? De algodão de seus farrapos? Bond sacudiu a cabeça para clarear as idéias. Tornou a olhar para baixo. Não, aqueles peixes estavam-se alimentando com seu sangue.

Bond estremeceu. Sim, o sangue estava escorrendo de seu corpo, dos ombros, dos joelhos, dos pés, e misturando-se à água. Agora, pela primeira vez sentiu a dor causada pela água salgada em suas feridas e queimaduras. A dor tornou-se mais viva e estimulou a sua mente. Se esses pequeninos peixes estavam gostando de seu sangue, o que dizer dos tubarões? Seria essa a finalidade daquela tela de arame, isto é, evitar que os peixes devoradores de seres humanos pudessem escapar para o mar? Então por que eles ainda não se tinham lançado sobre ele? Para o diabo! A primeira coisa a fazer era subir pelo arame e ganhar o outro lado. Interpor aquela tela entre ele e o que quer que vivesse naquele escuro aquário.

Dèbilmente, pé após pé, lá se foi Bond subindo pela tela, até chegar ao cume e passar para o outro lado, onde poderia descansar sem preocupações. Colocou o espesso cabo sob a axila, e olhou para baixo, contemplando os peixes que ainda se nutriam com o sangue que continuava gotejando de seus pés.

Agora já não havia muito em Bond; pouquíssimas reservas teria ele. O último mergulho no tubo, o choque da queda, na água, e a quase morte, causada por afogamento, tinham-no esmagado como a uma esponja. Estava prestes a entregar-se, prestes a soltar um pequeno suspiro e depois escorregar para os doces braços da água. Como seria bom abandonar-se, finalmente, e descansar — sentir que o mar suavemente o levava para o seu leito.

Foi a explosiva fuga dos peixes que estavam sorvendo o seu sangue, sob os seus pés, que despertou Bond de seu sonho de morte. Alguma coisa tinha-se movido muito abaixo da superfície. Havia uma trêmula claridade muito distante, mas que avançava lentamente para a superfície, aproximando-se pelo lado interno da tela.

O corpo de Bond se enrijeceu. Ante a iminência do perigo, a vida voltou-lhe num ímpeto, expulsando a letargia e comunicando-lhe renovada vontade de sobreviver.

Bond abriu os dedos aos quais, há muito, o seu cérebro ordenara que não perdessem a faca. Fechou os dedos e agarrou o cabo daquela lâmina. Abaixou-se em seguida e tocou no gancho do chuço que ainda se mantinha no interior da calça. Sacudiu vivamente a cabeça e ficou com os olhos alertas. E agora?

Sob os seus pés a água estremeceu. Alguma coisa estava-se debatendo, no fundo, alguma coisa enorme. Algo grande, de cor cinza luminescente, tornou-se visível, detendo-se muito abaixo da superfície, na escuridão. Alguma coisa se projetou daquela massa, em direção à superfície, algo como se fosse um chicote da grossura do braço de Bond. A extremidade daquela tira inchava-se numa terminação oval e achatada, com marcas semelhantes a botões distribuídos a espaços regulares. Aquele tentáculo rodopiou na água, no lugar em que os peixes tinham estado, e logo se encolheu. Agora só se via a grande sombra cinzenta lá embaixo da superfície. Que estaria fazendo o animal? Estaria...? Estaria provando o seu sangue?

Como que em resposta àquela pergunta, dois olhos, tão grandes quanto bolas de futebol, foram avançando para cima até se porem no campo de visão de Bond. Aqueles enormes olhos pararam vinte pés abaixo da superfície e olharam tranqüilamente para cima, fixando-se no rosto de Bond.

A pele de Bond ficou arrepiada nas costas. Sua boca deixou escapar um palavrão! Então, aquela era a Ultima surpresa do Dr. No, o fim da corrida!

Bond ficou de olhos abertos, meio hipnotizado, olhando para baixo. Então aquele era o polvo gigante, o monstro mítico que podia arrastar navios para as profundezas do mar, o monstro de cinqüenta pés de comprimento que podia dar combate às baleias e que pesava uma tonelada ou mais. O que mais sabia ele a respeito daqueles animais? Que tinham dois longos tentáculos para laçar e outros dez para agarrar; que tinham um enorme bico rombudo por baixo de olhos que eram os únicos olhos, entre os peixes, a trabalharem segundo o principio da câmara fotográfica, como os do homem: que seu cérebro era eficiente; que o monstro podia fugir para trás a uma velocidade de trinta nós, por um sistema de jato-propulsão. Sabia ainda que os arpões podiam afundar-se em sua manta de gelatina sem causar nenhum mal ao monstro, e que... mas os grandes olhos esbugalhados, que ofereciam um alvo negro e branco, estavam-se elevando em sua direção. A superfície da água estremecia. Agora Bond podia ver uma floresta de tentáculos que saíam da cara do animal. Ondulavam diante dos olhos do monstro como uma ninhada de grossas serpentes. Bond podia ver-lhe as ventosas sob os tentáculos. Atrás da cabeça, a grande aba da manta de gelatina abria-se e fechava-se suavemente, e, por trás dela, o brilho do corpo perdia-se nas profundezas. Por Deus, a coisa era tão grande quanto uma locomotiva!

Muito devagar e discretamente Bond foi enfiando os pés e depois os braços através dos quadrados da tela de arame, protegendo-se e ancorando-se tão sòlidamente que os tentáculos teriam que arrancá-lo dali aos pedaços ou então arrastar com ele todo aquele arcabouço de metal. Olhou para a direita e para a esquerda. Para qualquer lado, teria que vencer vinte metros, antes de chegar à terra. Mas, qualquer movimento, ainda que pudesse empreende-lo, séria fatal. Devia ficar absolutamente imóvel, rezando para que o monstro perdesse o interesse e se afastasse. Se ele não perdesse o interesse... Suavemente os dedos de Bond apertaram a pequenina faca.

Os olhos do monstro continuavam fitando-o, fria e pacientemente. Delicadamente, como a tromba de um elefante, um daqueles longos tentáculos laçadores emergiu da superfície e foi galgando a tela em direção às pernas de Bond. Tocou num de seus pés, e Bond sentiu o áspero beijo daquelas ventosas. Não se mexeu. Não ousava abaixar-se e afrouxar o enlaçamento de seus braços à volta do arame. Docemente as ventosas entraram em ação, experimentando o rendimento daquela presa. Não era bastante. Como uma gigantesca lagarta, o tentáculo foi subindo por sua perna. Parou à altura do joelho ensangüentado e deteve-se, interessado. Os dentes de Bond estalaram com a dor. Ele bem podia imaginar a mensagem que tinha descido por aquele tentáculo até o cérebro do animal: sim, é bom para comer-se! E a ordem de retorno ao tentáculo: então traga-o.

As ventosas continuaram subindo pela coxa. A extremidade do tentáculo se aflou e em seguida dilatou-se a ponto de quase cobrir toda a espessura da coxa de Bond. Depois reduziu-se à grossura de um pulso. Aquele seria o alvo de Bond. Apenas teria que agüentar a dor e resistir ao horror daquela acometida, esperando que esse pulso chegasse ao alcance de um golpe.

 

* *
Uma brisa, a primeira suave brisa da madrugada, soprou sobre a superfície metálica da enseada, levantando pequenas ondas que iam beijar a rocha do penhasco. Um bando de corvos marinhos alçou vôo da guaneira, quinhentos pés acima da enseada, e cacarejando suavemente, avançou em direção ao mar. Quando as aves passaram sobre a enseada, o barulho que as tinha perturbado chegou aos ouvidos de Bond — o tríplice apito de um navio, que indica estar a embarcação pronta para receber a carga. Aquele som chegava do lado esquerdo de Bond. O cais deveria estar situado a pequena distância contornando o braço setentrional da enseada. O navio procedente de Antuérpia tinha chegado. Antuérpia! Uma região do mundo exterior — um mundo que estava a um milhão de quilômetros de distância, fora do alcance de Bond — com certeza para sempre fora de seu alcance. Exatamente para além daquele braço rochoso a tripulação estaria no refeitório, tomando o seu desjejum. O rádio estaria tocando. Haveria o chiado do toicinho defumado e ovos na frigideira, o cheiro do café...


* * *


As ventosas estavam em sua coxa. Bond podia ver dentro daqueles cálices córneos. Um cheiro de maresia estagnada chegou-lhe às narinas, quando aquela mão vagarosamente serpenteou para cima. Seria muito duro o tecido gelatinoso cinza-escuro, por trás daquela mão? Deveria usar agora a faca? Não, o golpe deveria ser rápido e seguro, atingindo toda a espessura, como se se cortasse uma corda. Não importaria que a sua própria pele fosse atingida.

Agora! Bond lançou um rápido golpe de vista àqueles dois enormes olhos, lá embaixo, tão pacientes e tão negligentes. Nesse momento, o outro tentáculo elevou-se da superfície da água e avançou em direção ao seu rosto. Bond recuou a cabeça e a mão se enroscou num fio de arame diante de seus olhos. Num segundo aquela garra se deslocaria para um braço ou ombro, e ele estaria liquidado. Agora!

O primeiro tentáculo estava sobre suas costelas. Quase sem fazer pontaria, a mão de Bond que empunhava a faca caiu rapidamente para baixo e transversalmente. Sentiu a lâmina afundar naquele pudim carnoso, e quase deixou que ela escapasse de sua mão, quando o tentáculo ferido chicoteou pelo ar, desaparecendo na água. Por um momento o mar foi agitado à sua volta. Agora, o outro tentáculo abandonou o arame e agarrou-se ao seu ventre. A mão aflada prendeu-se como uma sanguessuga, com toda a força de sua sucção furiosamente aplicada. Bond gritou ao sentir o contacto daquelas ventosas em sua carne. Golpeou loucamente, mais e mais. Por Deus, o seu estômago estava sendo arrancado para fora! A tela agitou-se com a luta. Aos seus pés a água fervilhava e espumava. Ele teria que ceder. Um derradeiro golpe, desta vez nas costas daquela mão disforme. Deu resultado! A mão se agitou no ar e desceu serpeante, deixando vinte círculos vermelhos sangrando em sua pele.

Bond não tinha tempo para se preocupar com aquilo. Agora a cabeça do monstro tinha emergido, e os seus olhos brilhantes fixavam-se nele, avermelhados, enfurecidos, e a floresta dos tentáculos sugadores começava a envolver-lhe os pés e as pernas, dilacerando-lhe as roupas, para logo retornar aos seus membros. Bond estava sendo arrastado para baixo, polegada por polegada. O arame estava penetrando em suas axilas. Podia até mesmo sentir a sua espinha sendo distendida. Se ele continuasse resistindo seria partido ao meio. Agora, os olhos e o grande bico triangular estavam fora d’água, e o bico procurava o seu pé. Havia uma esperança, apenas uma!

Bond meteu a faca entre os dentes e sua mão procurou o gancho do chuço de arame. Agarrou aquela arma, e desdobrou-a com as suas duas mãos. Teria que soltar um dos braços para poder abaixar-se e se aproximar do alvo. Se falhasse, entretanto, seria reduzido a pedaços sobre a tela.

Agora, antes que morresse com a dor! Agora, agora! Bond deixou todo o seu corpo escorregar por aquela escada de arame, para baixo, e desferiu uma violenta estocada. Pôde ver que o pontaço de sua lâmina penetrava pelo centro de um enorme globo ocular negro, e imediatamente todo o mar se intumesceu para ele, como uma fonte de negrume, enquanto seu corpo se mantinha pendurado de cabeça para baixo, seguro pelos joelhos, com o rosto apenas uma polegada acima da superfície.

Que teria acontecido? Teria ficado cego? Não podia ver nada. Seus olhos estavam ardendo e havia um gosto horrível de peixe podre em sua boca. Contudo, podia sentir o arame cortando-lhe os tendões dos joelhos. Então devia estar vivo! Estonteado, Bond deixou que o chuço caísse de sua mão, e procurou o arame mais próximo. Depois, agarrou-se com a outra mão um pouco mais acima, e, assim, vagarosamente, foi-se alçando até que conseguiu sentar-se no cabo superior da cerca. Clarões de luz chegaram-lhe aos olhos. Passou uma das mãos pelo rosto. Agora podia ver. Fixou a sua mão: estava negra e pegajosa. Olhou para o seu corpo: estava também coberto por um lodo negro, e o preto tingia o mar numa extensão de vinte metros à sua volta. Então Bond compreendeu: o polvo ferido tinha esvaziado a sua bolsa de tinta contra ele.

Mas onde estava o monstro? Voltaria? Bond esquadrinhou o mar. Nada, nada além da enorme mancha negra que se continuava ampliando. Nem uma só ondulação! Então, nada de esperar! Fugir dali o mais depressa possível! Ansiosamente, Bond olhou para a direita e para a esquerda. Para a esquerda era na direção do navio, mas também na direção do Dr. No, enquanto para a direita seria para o nada. Para instalar aquela tela de arame, os trabalhadores deviam ter vindo da esquerda, na direção do cais. Devia haver algum caminho até ali. Bond começou a se deslocar frenèticamente pelo cabo superior, em direção à rocha, a vinte metros de distância.

O espantalho negro e sangrento movimentava os braços e pernas quase automaticamente. O aparelho pensante e sensorial de Bond já não fazia mais parte de seu corpo. Movia-se ao lado de seu corpo ou acima dele, mantendo apenas o contato necessário para puxar os cordéis que faziam o boneco trabalhar. Bond era como um verme secionado, cujas duas metades continuassem arrastando-se para a frente, conquanto a vida os tivesse abandonado para ser substituída pela vida ilusória dos impulsos nervosos. Apenas, no caso de Bond, as duas metades ainda não estavam mortas. A vida tinha somente se ausentado delas. Tudo quanto ele precisava era um grama de esperança, um grama de confiança, de convicção de que ainda valeria a pena tentar sobreviver.

Bond chegou à rocha, e lentamente desceu pela tela até a última malha. Contemplou vagamente o brilho palpitante da água. O mar estava negro e impenetrável. Deveria arriscar-se? Sem dúvida! Não podia fazer nada enquanto não tivesse lavado aquela camada de lodo e sangue, sem falar do horrível cheiro de peixe. Sombriamente, fatalisticamente, ele tirou os farrapos de sua camisa e calças, pendurando-os no cabo. Olhou para baixo, para seu corpo marrom e branco, salpicado de vermelho. Instintivamente, procurou sentir seu pulso, que se apresentava lento mas regular. As firmes palpitações de vida reanimaram o seu espírito. Por que diabo estava ele se lamuriando? Estava vivo. As feridas e machucaduras em seu corpo não eram nada — absolutamente nada. Eram horríveis, mas nada estava quebrado. Por dentro do invólucro maltratado, a máquina estava trabalhando serena e seguramente. Cortes superficiais e esfoladuras, recordações sangrentas, cansaço mortal — estes seriam ferimentos dos quais se riria uma enfermeira experiente. Para a frente, seu bastardo! Para a frente! Limpe-se e levante-se. Conte as suas bênçãos. Pense na jovem. Pense no homem que você deverá encontrar e matar. Agarre-se à vida como se agarrou à faca entre os dentes. Acabe com esta autopiedade. Para o diabo com o que acaba de acontecer! Para dentro d’água e lave-se!

Dez minutos mais tarde, Bond, com seus farrapos molhados colados ao corpo já esfregado, e com os cabelos repuxados para fora dos olhos, galgava o cimo do penhasco.

Sim, era como ele tinha imaginado. Uma picada estreita e rochosa, feita pelos pés dos trabalhadores, descia para o outro lado, contornando a saliência do penhasco.

Das proximidades chegaram vários sons e ecos. Um guindaste estava trabalhando. Podia ouvir os ritmos variáveis de seu motor. Ouviam-se os barulhos peculiares, aos navios de ferro, bem como o ruído da água que era lançada ao mar por uma bomba de porão.

Bond olhou para cima, para o céu, que estava de um azul pálido. Nuvens manchadas de ouro e reflexos rosados derivavam em direção ao horizonte. Muito acima dele, os corvos marinhos esvoaçavam em torno da guaneira. Em breve estariam fazendo-se ao mar, em busca de alimentos. Talvez, agora, mesmo, estivessem vigiando os grupos de reconhecimento, longe, sobre o mar, na faina de localizarem os peixes. Seriam cerca de seis horas — a aurora de um belo dia.

Bond, deixando gotas de sangue atrás de si, seguiu o seu caminho cuidadosamente pela picada abaixo, beirando o sopé do penhasco. Para além da curva, a picada se infiltrava por um terreno cheio de pedras espalhadas. Os ruídos iam-se tornando mais altos. Bond ia avançando cuidadosamente, evitando pisar em pedras. Uma voz se fez ouvir surpreendentemente perto: ‘”Pronto para largar?” E logo uma resposta distante: “Pronto”. O motor do guindaste acelerou. Mais alguns metros. Mais um pedregulho; e mais outro. Agora!

Bond se ocultou por trás da rocha e cautelosamente meteu a cabeça para fora, a fim de observar.

 

CONTINUA

XVI - HORAS DE AGONIA


Uma voz, por trás de Bond, disse serenamente: — O jantar está servido.

Bond voltou-se para trás. O anunciante fora o guarda-costas, que tinha a seu lado outro homem que bem poderia ser seu irmão gêmeo. Ali ficaram eles, duas barricas de musculatura, com as mãos mergulhadas nas mangas dos quimonos, olhando, por cima da cabeça de Bond, para o Dr. No.

— Ah, já nove horas. — O Dr. No levantou-se lentamente e disse: — Vamos. Podemos continuar a nossa conversação em ambiente mais íntimo. Foi muita bondade dos senhores terem ouvido a minha história com paciência tão exemplar. Espero que a modéstia de minha cozinha e de minha adega não representem mais uma imposição.

Portas duplas tinham sido conservadas abertas por trás dos dois homens de jaquetas brancas. Bond e a jovem atravessaram-nas seguindo o Dr. No, indo ter a uma sala octogonal, com as paredes recobertas de painéis de mogno, e ao centro um candelabro de prata, sob o qual estava posta uma mesa para três pessoas. O tapete simples, azul-escuro, era luxuosamente espesso. O Dr. No tomou a cadeira central, de espaldar alto, e indicou cortesmente, com uma inclinação, a cadeira à sua direita para a jovem. Sentaram-se e abriram guardanapos de seda branca.

A cerimônia vazia e a encantadora sala deixavam Bond louco. Ansiava por despedaçar tudo aquilo com as próprias mãos, por passar o seu guardanapo de seda à volta do pescoço do Dr. No e apertá-lo até que aquelas lentes de contato saltassem daqueles malditos olhos negros.

Os dois guardas usavam luvas de algodão branco. Serviram as iguarias com suave eficiência que era instigada por uma ocasional palavra chinesa proferida pelo Dr. No.

A princípio o Dr. No parecia preocupado. Lentamente, ingeriu três taças de diferentes sopas, utilizando-se de uma colher dotada de um cabo curto e que se adaptava perfeitamente entre as pinças de sua mão mecânica. Bond esforçou-se por esconder os seus temores da jovem. Sentou-se afetando uma atitude de relaxamento e comeu e bebeu com forçado apetite. Falou ainda animadamente com a jovem sobre Jamaica — sobre aves e animais, assim como fores, que constituíam fáceis assuntos de conversação para Honeychile. De vez em quando os seus pés tocavam nos dela, sob a mesa. Ela quase chegou a ficar alegre. Bond pensou que ambos estavam fazendo uma bela imitação de namorados comprometidos, que estivessem saboreando um jantar oferecido por um tio detestável.

Bond não tinha a mínima idéia sobre se o seu fraco blefe tinha surtido algum efeito. Assim, não deu grande importância às suas possibilidades. O Dr. No, assim como a sua história, eram perfeitamente impenetráveis. A incrível biografa parecia verdadeira. Nem uma só palavra daquele relato era impossível. Talvez houvesse outras pessoas no mundo com os seus reinos particulares — reinos afastados dos caminhos trilhados por homens comuns, sem testemunhas, onde pudessem fazer o que bem entendessem. E que estaria planejando fazer o Dr. No, depois que tivesse esmagado as moscas que tinham vindo incomodá-lo? E se eles fossem mortos — e quando o fossem — Londres conseguiria recolher os fios que ele, Bond, tinha recolhido? Provavelmente conseguiria. Lá estava Pleydell-Smith, e as provas das frutas envenenadas. Mas até onde a substituição de Bond iria afetar o Dr. No? Não muito. O Dr. No daria de ombros ao desaparecimento de Bond e Quarrel. Nunca teria ouvido falar deles. E não haveria qualquer elo com a jovem. Em Porto Morgan, todos pensariam que ela se tinha afogado em suas expedições. Era difícil saber o que poderia interferir com o Dr. No — com o segundo capítulo de sua vida, qualquer que ele fosse.

Sob aquela conversa com a jovem, Bond foi-se preparando para o pior. Ao lado de seu prato havia algumas facas. Então chegaram as costeletas, perfeitamente cozidas, e Bond tocou em várias facas, hesitante, até que escolheu a do pão para cortá-las. Enquanto comia e conversava foi deslocando a grande lâmina de aço para perto do corpo. Um gesto largo da mão direita derrubou o seu copo de champanha e, numa fração de segundo, enquanto o copo se partia, sua mão esquerda enfiou a lâmina para dentro da manga do quimono. Em meio às suas desculpas, e à confusão que se seguiu, enquanto os guardas enxugavam a champanha derramada na mesa, Bond levantou o braço esquerdo e sentiu que a faca deslizava para baixo do braço e depois caía para dentro do quimono, ficando encostada às suas costelas. Quando acabou de comer as costeletas, apertou o cinto de seda, à volta da cintura, ao mesmo tempo que deslocava a faca para diante da barriga. A faca aninhou-se. confortàvelmente contra a sua pele e em pouco tempo o aço da lâmina foi-se tornando aquecido.

Por fim veio o café e a refeição foi dada por terminada. Os dois guardas se aproximaram e postaram-se por trás das cadeiras da jovem e de Bond. Tinham os braços cruzados sobre o peito, impassíveis, sem nenhum movimento, como carrascos.

O Dr. No pousou delicadamente a sua xícara no pires e descansou as duas pinças de aço sobre a mesa. Depois se endireitou um pouco na cadeira e virou o corpo, apenas uma polegada, em direção de Bond. Agora não havia o mínimo sinal de preocupação em seu rosto. Os olhos eram duros e diretos. A boca fina contraiu-se e abriu-se: — Apreciou o jantar, sr. Bond?

Bond apanhou um cigarro numa caixa de prata que estava à frente e acendeu-o. Depois, pôs-se a brincar com o isqueiro de prata que estava sobre a mesa. Sentia que más noticias iriam chegar. Pensou que deveria meter aquele isqueiro no bolso, de qualquer maneira. O fogo talvez viesse a ser mais uma arma. Respondeu com facilidade: — Sim, estava excelente. — Em seguida olhou para Honeychile. Curvou-se sobre a mesa e descansou os braços sobre ela, e logo cruzou-os, envolvendo o isqueiro com esta manobra. Sorriu para ela: — Espero ter pedido o que você gosta.

— Oh, sim, estava magnífico. — Para ela a recepção ainda estava continuando.

Bond fumava afanosamente, agitando mãos e braços, a fim de criar uma atmosfera de movimento. Voltou-se para o Dr. No, apagou o toco de seu cigarro e reclinou-se na cadeira. Cruzou os braços sobre o peito. O isqueiro já estava sob o seu sovaco esquerdo. Riu animadamente:

— E o que acontecerá agora, Dr. No?

— Podemos continuar com a nossa distração de após-jantar, sr. Bond. O leve sorriso contraiu-se e desapareceu.

— Examinei a sua proposta sob todos os aspectos. Não a aceito.

Bond deu de ombros e observou: — O senhor não é sensato.

— Não, sr. Bond. Receio que a sua proposta não passe de uma isca dourada. Em sua profissão não se atua como o senhor quer sugerir. Os agentes enviam relatórios rotineiros para o quartel-general. Mantêm seus chefes a par dos progressos das investigações que fazem. Conheço essas coisas. Os agentes secretos não se comportam como o senhor sugeriu ter agido. O senhor esteve lendo muitas novelas de aventuras, e o seu pequeno discurso mostrou com muita facilidade o papelão pintado. Não, sr. Bond, não aceito a sua história. Se ela for verdadeira, estou preparado para enfrentar as conseqüências. Tenho muita coisa em jogo para ser facilmente desviado de meu caminho. Que venham a polícia e os soldados. Onde estão o homem e a jovem? Que homem e que jovem? Não sei de nada. Por favor, retirem-se, os senhores estão prejudicando a minha guaneira. Onde estão as suas provas, o seu mandado de prisão? A lei inglesa é rigorosa, meus senhores. Voltem para casa e deixem-me em paz com os meus queridos corvos marinhos. Está vendo, sr. Bond? E digamos mesmo que o pior redunde em pior. Que um de meus agentes fale, o que é altamente improvável. (Bond lembrou-se da fortaleza da srta. Chung). Que tenho eu a perder? Mais duas mortes no libelo acusatório. Mas, sr. Bond, um homem só pode ser enforcado uma vez: — A elevada cabeça, em forma de pêra, agitava-se suavemente, de um lado para outro. — O senhor tem mais alguma coisa a dizer? Alguma pergunta? Ambos irão ter uma noite muito ocupada e o tempo de que dispõem está-se tornando escasso. Quanto a mim, devo ir dormir. O navio que chega mensalmente deverá atracar amanhã e eu terei que supervisionar o carregamento. Passarei todo o dia no cais. Certo, sr. Bond?

Bond olhou para Honeychile. Ela estava mortalmente pálida. Olhava com olhar esgazeado, esperando pelo milagre que ele deveria operar. Bond olhou para as próprias mãos e examinou cuidadosamente as unhas. Depois, disse, para ganhar tempo: — E então, após seu dia ocupado com o carregamento, o que virá em seu programa? Qual o novo capítulo que o senhor pensa escrever?

Bond não levantou o olhar. A profunda e serena voz autoritária caiu sobre ele como se tivesse vindo do céu escuro.

— Ah, sim, o senhor deve ter estado a pensar nisso.

O senhor tem o hábito da investigação. Os hábitos persistem até o fim, até as sombras. Admiro tais qualidades num homem que tem apenas algumas horas mais para viver. Por isso, dir-lhe-ei. Encetarei um novo capítulo, e isso o consolará. Há muito mais nesta ilha do que uma simples guaneira. O seu instinto não o enganou, sr. Bond.

O Dr. No fez uma pausa para dar mais ênfase ao que iria dizer e continuou: — Esta ilha, sr. Bond, está em vésperas de se transformar num dos mais valiosos centros de informação técnica do mundo.

— De fato? — Bond mantinha os olhos fixos em suas mãos.

— Sem dúvida que o senhor não ignora que Turks Island, a trezentas milhas, de distância daqui, através de Windward Passage, constitui o mais importante centro para a experimentação de projéteis teleguiados dos Estados Unidos?

— Sim, é um importante centro de experiências.

— Talvez o senhor tenha lido sobre os foguetes que recentemente se desviaram de sua rota? O “Snark” de múltiplas fases, por exemplo, que terminou o seu vôo nas florestas do Brasil, ao invés de ir perder-se nas profundezas do Atlântico Sul?

— Sim.

— O senhor se lembrará que ele se recusou a obedecer as instruções que lhe foram enviadas por rádio, no sentido de modificar a sua rota, e até mesmo de se destruir a si mesmo. Ele desenvolvera uma vontade própria.

— Lembro-me.

— Houve outras falhas, falhas decisivas, na longa lista dos protótipos — o Zuni, o Matador, o Petrel, o Regulus, o Bomarc — tantos nomes, outras tantas modificações, nem posso lembrar-me deles todos. Bem, sr. Bond, — o Dr. No mal podia esconder uma nota de orgulho em sua voz — talvez lhe interesse saber que a maioria desses fracassos foi causada de Crab Key.

— É verdade?

— Não me acredita? Não tem importância. Outros acreditam-no. Outros que viram o abandono de toda uma série, o Mastodonte, em virtude de seus freqüentes erros de navegação, sua incapacidade de obedecer às ordens enviadas pelo rádio, de Turks Island. Esses outros são os russos. Os russos são meus sócios nesta empreitada. Treinaram seis dos meus homens, sr. Bond. Exatamente neste momento tenho dois desses homens observando, estudando as freqüências de rádio, as faixas nas quais trabalham esses engenhos. Há um milhão de dólares de instalações, nas galerias rochosas, acima de nossas cabeças, sr. Bond, enviando sinais para a camada de Heavyside, aguardando os sinais, perturbando-os, contrabalançando faixas com outras faixas. E, de vez em quando, um foguete sobe em seu itinerário e aprofunda-se cem, quinhentas milhas, pelo Atlântico, enquanto nós anotamos cuidadosamente a sua trajetória, com a mesma perfeição com que isto é feito na Sala de Operações de Turks Island. Em seguida, subitamente, as nossas pulsações são enviadas ao foguete, o seu cérebro é perturbado, ele enlouquece e mergulha no mar, destruindo-se. Foi mais uma experiência que fracassou. Os operários levam a culpa, assim como os projetistas e os fabricantes. Há pânico no Pentágono. Outra coisa deve ser tentada, freqüências diversas, metais diversos, um cérebro eletrônico diferente. Naturalmente que também temos as nossas dificuldades. Assim é que assinalamos muitos disparos experimentais sem sermos capazes de chegar até o cérebro do novo engenho. Então, comunicamo-nos urgentemente com Moscou. Com efeito, eles deram-nos até uma máquina de cifras com as nossas freqüências e rotinas. E os russos continuam pensando, fazem sugestões, e nós as experimentamos. Por fim, sr. Bond, um belo dia, é como se atraíssemos a atenção de um homem perdido numa multidão. Lá no alto, na estratosfera, o foguete reconhece o nosso sinal. Somos reconhecidos e podemos falar com ele e modificar os seus pensamentos. — O Dr. No fez uma pausa e depois continuou: — O senhor não acha isso interessante, esta variante de meus negócios com o guano? Asseguro-lhe que é um negócio muito lucrativo, e podia sê-lo ainda mais. Talvez a China comunista venha a pagar mais pelos meus serviços. Quem sabe? Já tenho os meus agentes em campo, para sondagens.

Bond ergueu os olhos, olhando pensativamente para o Dr. No. Então ele tinha tido razão. Havia mesmo mais alguma coisa, muito mais, em tudo aquilo que os seus olhos tinham visto. Aquilo era uma grande partida, uma partida que explicava tudo, uma partida que no mercado internacional da espionagem bem valia a pena ser jogada. Bem, bem! Agora, as peças do quebra-cabeças tinham caído corretamente em seus lugares. Para isso tinha valido a pena, certamente, assustar alguns pássaros e eliminar algumas pessoas. Isolamento? Naturalmente que o Dr. No teria que matar a ele e à jovem. Poder? Sim, isso era poder. O Dr. No se tinha realmente lançado nos negócios.

Bond fixou os dois orifícios negros com um novo respeito, e observou: — O senhor terá que matar muito mais gente para manter isto em suas mãos, Dr. No. Isto vale muito dinheiro. O senhor tem aqui uma bela propriedade, superior ao que eu pensava, e as pessoas hão-de querer um pedaço deste bolo. Penso em quem será o primeiro a chegar até o senhor e matá-lo. Serão aqueles homens que estão lá em cima, treinados por Moscou? — e ele fez um gesto apontando para o teto. Depois continuou: — Eles são os técnicos. Eu me pergunto: o que Moscou estará lhes ordenando que façam? O senhor não poderia estar a par disso, poderia?

O Dr. No respondeu: — Vejo que continua subestimando meu valor, sr. Bond. O senhor é um homem obstinado e mais estúpido do que pensava. É claro que estou consciente dessas possibilidades. Separei um desses homens e transformei-o numa espécie de vigilante particular. Ele tem uma duplicata das cifras e da máquina. Vive em outra parte da montanha. Os outros pensam que ele morreu, mas ele está bem vivo a fiscalizar a cronometragem de rotina, e entrega-me diariamente uma cópia do tráfego que é registrado. Até agora os sinais emitidos por Moscou têm sido inocentes e não indicam qualquer conspiração. Penso em tudo isso constantemente, sr. Bond. Tomo precauções e ainda as multiplicarei para o futuro. Como disse, o senhor me tem subestimado.

— Não o subestimo, Dr. No. O senhor é um homem muito prudente, mas já há muitas pastas sobre o senhor. Em minha linha de atividades, a mesma coisa se aplica a mim, mas as suas pastas são muito perigosas. A chinesa, por exemplo. Não gostaria de ter uma com essa gente. A da FBI deve ser a menos penosa — roubo e falsa identidade. Mas o senhor conhece os russos tão bem quanto eu? Por enquanto o senhor é “o melhor amigo” deles. Mas os russos não têm sócios. Hão-de querer comprá-lo... — comprá-lo com um balaço. Depois vem a pasta que o senhor abriu com o meu serviço. O senhor quererá mesmo fazê-la mais volumosa? Eu não o faria se estivesse em seu lugar, Dr. No. O pessoal do meu serviço é muito obstinado. Se alguma coisa me acontecer e à jovem, o senhor verificará que Crab Key é uma ilha muito pequena e insignificante.

— Não se pode jogar grandes partidas sem assumir riscos, senhor Bond. Aceito os perigos e, até onde posso, procuro defender-me deles. Como vê — e a sua voz tinha um acento de cupidez — estou em vésperas de coisas muito maiores. O capítulo dois, ao qual já me referi, encerra promessa de prêmios que ninguém, a não ser um tolo, jogaria fora por ter medo. Já lhe disse que posso desviar os raios magnéticos por onde viajam os foguetes. Posso fazer com que estes mudem de rota e não obedeçam ao controle eletrônico. Que diria o senhor, se eu fosse ainda mais longe? Se eu os fizesse cair nesta ilha, a fim de recolher todos os segredos de sua construção? Atualmente, destróieres norte-americanos, nos confins do Atlântico Sul, recolhem esses foguetes quando eles esgotam o seu combustível e caem de pára-quedas sobre o mar. Algumas vezes os pára-quedas deixam de se abrir, e algumas vezes as instalações de autodestruição deixam de operar.

Ninguém em Turks Island se sentiria surpreendido se de vez em quando o protótipo de uma nova série saísse de sua trajetória e caísse perto de Crab Key. Antes de mais nada, isto seria atribuído a falhas mecânicas. Mais tarde talvez descobrissem que outros sinais, que não os seus, tinham estado a guiar os seus foguetes. Teria início, então uma guerra de freqüência. Tentariam e conseguiriam localizar a origem dos sinais falsos, mas assim que eu verificasse que eles estavam à minha caça, teria uma derradeira cartada. Os seus foguetes enlouqueceriam. Cairiam em Havana, em Kingston; dariam uma volta e despencariam sobre Miami. Mesmo sem as cargas detonantes, Sr. Bond, cinco toneladas de metal, chocando-se a mil milhas por hora, podem causar terríveis danos numa cidade super-povoada. E depois? Haveria pânico, haveria um clamor público. As experiências teriam de ser interrompidas. A base de Turks Island teria que fechar. E quanto não pagariam os russos para que isso acontecesse, sr. Bond? E quanto por protótipo que eu capturasse para eles? Digamos dez milhões de dólares por toda a operação? Vinte milhões? Seria uma vitória sem preço na corrida dos armamentos. Posso fazer o meu preço, não concorda, sr. Bond? E não concorda também que essas considerações tornam os seus argumentos e ameaças engraçadíssimos?

Bond não respondeu. Nada havia a dizer. Subitamente se viu em pensamento naquela sala tranqüila de Regents Park. Podia ouvir a chuva batendo suavemente contra a janela e a voz de M, impaciente e sarcástica, dizendo: “Oh, algum maldito negócio em torno de aves... umas férias ao sol lhe farão bem... investigações rotineiras.” E ele, Bond, tinha apanhado uma canoa, um caniço e um farnel de piquenique e partira — há quantos dias, há quantas semanas? — “para dar uma espiada”. Bem, ele tinha dado uma espiada na caixa de Pandora. E tinha tido as respostas, conhecera os segredos — e agora? Agora iriam mostrar-lhe polidamente o caminho para a sepultura, para onde ele levaria consigo o seus segredos arrancados e arrastados por ele em sua lunática aventura. Toda a amargura que lhe ia no íntimo aforou à boca, de modo que por um momento pensou que ia vomitar. Apanhou o copo e esvaziou todo o resto de champanha que nele havia. Depois disse asperamente: — Muito bem, Dr. No. Agora vamos ao cabaré. Qual é o programa — faca, bala, veneno, corda? Mas proceda rapidamente, já o vi bastante.

Os lábios do Dr. No se apertaram numa fina linha arroxeada. Os olhos eram duros como ônix, sob a bola de bilhar de sua fronte e crânio. A máscara de polidez tinha desaparecido. O Grande Inquisidor sentava-se na cadeira de alto espaldar. Tinha soado a hora para a “peine forte et dure”.

O Dr. No proferiu uma palavra e os dois guardas avançaram um passo e agarraram as suas vitimas pelos braços, acima dos cotovelos, mantendo-as imobilizadas para trás, apoiadas nos lados das cadeiras. Não houve resistência. Bond concentrou-se em manter o isqueiro sob o sovaco. As luvas brancas em seus bíceps pareciam faixas de aço. Sorriu para a jovem. — Desculpe-me por isso, Honey, — disse. — Receio que afinal de contas não possamos mais brincar juntos.

Os olhos da jovem, em seu rosto pálido, tinham ficado azul-escuros, pelo medo. Seus lábios tremiam, e ela perguntou: — Doerá muito?

— Silencio! — A voz do Dr. No soou como o estalar de um chicote. — Chega de tolices. Naturalmente que doerá. Estou interessado na dor. E estou igualmente interessado em descobrir quanto de dor o corpo humano pode suportar. De vez em quando faço experiências com os meus subordinados que devem ser punidos, e em intrusos como os senhores. Acarretaram-me os senhores grandes dificuldades. Em troca, pretendo causar-lhes uma grande soma de dor. Registrarei os níveis de suas resistências. Os fatos serão anotados, e um dia as minhas pesquisas serão relatadas ao mundo. As suas mortes terão servido à Ciência. Nunca desperdiço material humano. As experiências feitas pelos alemães com seres humanos vivos, durante a guerra, foram de grande proveito para a Ciência. Faz um ano que pus uma mulher para morrer da maneira que escolhi para a senhora. Ela era uma negra e durou três horas, mas morreu de terror. Queria agora fazer a experiência com uma mulher branca, para poder estabelecer uma comparação. Não me surpreendi quando a sua chegada me foi comunicada. Consigo sempre o que quero. — O Dr. No reclinou-se para trás na cadeira. Seus olhos estavam agora fixos na jovem, estudando-lhe as reações. Honeychile correspondia ao olhar, como que meio hipnotizada, como um rato do mato diante de uma cascavel.

Bond apertou os dentes.

— A senhora é uma jamaicana, por isso saberá o que quero dizer. Esta ilha chama-se Crab Key. Recebeu este nome porque está infestada de caranguejos — o que chamam em Jamaica “caranguejos negros”. A senhora os conhece. Pesam meio quilo, cada um, e têm o tamanho de um pires. Nesta época do ano eles saem aos milhares de seus esconderijos, próximos à costa, e sobem em direção à montanha. Lá, nos planaltos de coral, eles se alojam novamente em buracos da rocha, onde desovam. Avançam em exércitos de centenas, de cada vez. Atravessam tudo e sobre tudo. Em Jamaica eles invadem as casas e não se desviam de seu caminho. São como certos roedores da Noruega. É uma migração irresistível. — O Dr. No fez uma pausa. Em seguida acrescentou suavemente: — Mas há uma diferença. Os caranguejos devoram o que encontram em seu caminho. E agora, minha senhora, eles já estão em marcha. Estão galgando as faldas da montanha, às dezenas de milhares, em ondas negras e vermelho-laranja. Estão, neste momento, se apressando e se empurrando e arranhando a rocha acima de nós. E esta noite, no meio do seu caminho, eles vão encontrar o corpo nu de uma mulher sòlidamente preso — um banquete preparado para eles — e vão apalpar o corpo morno com suas pinças, e um deles dará o primeiro corte com suas garras de combate e então... e então...

A moça gemeu. Sua cabeça caiu para a frente sobre o peito. Desmaiara. O corpo de Bond inteiriçou-se na cadeira. Uma torrente de palavras obscenas escapou por entre seus dentes cerrados. As manoplas dos guardas pareciam-lhe ferro à volta dos braços. Nem sequer podia fazer deslizar os pés da cadeira no chão. Depois de um momento de luta, desistiu. Esperou que sua voz se acalmasse, e disse então, com todo o veneno que podia instilar nas palavras:

— Seu bastardo! Você há-de frigir no inferno se fizer isso!

O Dr. No sorriu fracamente.

— Senhor Bond, não acredito na existência do inferno. Procure consolar-se. Talvez eles comecem pela garganta ou pelo coração. O bater do pulso ainda os poderá atrair. Depois disso, tudo acabará depressa.

Proferiu então uma sentença em chinês. O guarda que estava atrás da cadeira da moça inclinou-se para a frente, levantou-a da cadeira como se fora uma criança e atirou-a por cima do ombro. Os belos cabelos caíam qual cascata de ouro entre os braços inertes. O guarda foi à porta, abriu-a e saiu, formando a fechá-la sem ruído.

Por um momento, reinou, silêncio na sala. Bond pensava somente na faca encostada ao seu ventre e no isqueiro debaixo da axila. Qual a extensão dos estragos que ele poderia causar com aqueles dois pedaços de metal? Poderia, de algum modo, aproximar-se do Dr. No?

O Dr. No continuou serenamente: — O senhor disse que o poder era uma ilusão, sr. Bond. Não modifica a sua opinião? O meu poder de escolher a morte que quiser para essa jovem certamente que não é uma ilusão. Todavia, passemos ao método de sua morte. Isso também encerra aspectos novos. Saiba, sr. Bond, que estou interessado na anatomia da coragem — do poder de resistência do corpo humano. Mas como medir a resistência humana? Como traçar um gráfico da vontade de sobrevivência, da tolerância à dor, da conquista do medo? Pensei muito nesse problema e acredito tê-lo solucionado. Trata-se, por enquanto, de um método incompleto e grosseiro, mas que será aperfeiçoado na medida em que as experiências se forem multiplicando. Preparei o senhor para essa experiência. Dei-lhe um sedativo, de modo que o seu corpo esteja descansado, e alimentei-o bem, de modo que possa estar no gozo completo de suas forças. Os futuros — como os chamarei — pacientes, terão as mesmas vantagens. Todos começarão nas mesmas condições. Depois disso, o restante será uma questão de coragem e do poder de resistência individuais.

O Dr. No fez uma pausa, enquanto observava o rosto de Bond. Depois prosseguiu: — Saiba ainda, sr. Bond, que justamente agora acabo de construir uma espécie de pista de obstáculos, uma espécie de pista de corrida contra a morte. Não direi mais sobre isso porque o elemento surpresa é um dos que aparecem na formação do medo. Os perigos desconhecidos são os piores, os que mais pressionam as reservas de coragem. E me alegro com a idéia de que a corrida de obstáculos que o senhor enfrentará contém um rico sortimento de coisas inesperadas. Será particularmente interessante sr. Bond, que um homem com as suas qualidades físicas seja o meu primeiro competidor. Será interessantíssimo ver até onde o senhor conseguirá alcançar, na pista que idealizei. Não há dúvida de que o senhor estabelecerá uma marca invejável para os futuros corredores. Tenho grandes esperanças no senhor. O senhor deverá ir muito longe, mas quando tombar, inevitavelmente, diante de um obstáculo, seu corpo será recolhido e eu examinarei meticulosamente os seus restos. Os dados assim colhidos serão registrados e o senhor representará o primeiro ponto de um gráfico. Algo honroso, não é, senhor Bond?

Bond nada respondeu. Que diabo significaria tudo aquilo? Em que poderia consistir aquela prova? Seria possível escapar dela com vida? Poderia escapar disso e salvar Honeychile antes que fosse demasiado tarde, ainda que para matá-la e assim salvá-la da tortura? Silenciosamente, Bond ia reunindo suas reservas de coragem, retemperando a mente contra o temor do desconhecido que já começava a envolver a sua garganta, e focalizando a sua vontade no alvo da sobrevivência. Acima de tudo, deveria apegar-se às suas armas.

O Dr. No levantou-se e afastou-se da cadeira. Caminhou vagarosamente até a porta e voltou-se. Seus olhos negros e ameaçadores fixavam Bond, pouco abaixo da armação da porta. A cabeça estava ligeiramente inclinada e os lábios finos tornaram a se mexer: — Faça uma boa corrida para mim, sr. Bond. Meus pensamentos, como se costuma dizer, o acompanharão.

O Dr. No afastou-se e a porta fechou-se suavemente por trás de seus costados amarelos.


XVII - O PROLONGADO GRITO


Havia um homem no elevador, cujas portas estavam abertas, à espera. James Bond, com os braços ainda torcidos, junto aos flancos, foi impelido para dentro do elevador. Agora, a sala de jantar estava vazia. Quando voltariam os guardas para desembaraçar a mesa e então notar o desaparecimento dos objetos subtraídos? As portas fecharam-se e o cabineiro ficou diante dos botões, de modo que Bond não pôde ver qual deles teria sido apertado. Sabia apenas que estavam, subindo, e tentou fazer um cálculo da distância percorrida. O elevador parou, e Bond teve a impressão de que o tempo gasto naquele percurso fora menor do que quando descera juntamente com Honeychile. As portas abriram-se para um corredor sem tapete, com uma pintura cinzenta e rústica nas paredes de granito. Esse corredor ia numa linha reta até uma distância de vinte metros.

— Espere aí — disse o guarda de Bond para o cabineiro — voltarei logo.

Bond foi conduzido ao longo do corredor, passando diante de portas marcadas com letras do alfabeto. Ouvia-se um leve zunido de maquinaria no ar, e, por trás de uma porta, Bond teve a impressão de ouvir descargas estáticas de equipamento eletrônico. Aquilo parecia vir da sala de máquinas, no coração da montanha. Logo chegaram à porta da extremidade do corredor que estava marcada com um Q negro. Ela estava entreaberta, de modo que logo se escancarou quando Bond foi empurrado através dela. Por trás daquela porta estava uma cela pintada de cinzento, com cerca de quinze pés quadrados. Nela nada havia, a não ser uma cadeira de madeira, sobre a qual estavam, lavadas e cuidadosamente dobradas, as calças pretas de Bond e a sua camisa azul.

O guarda soltou os braços de Bond, que logo se voltou e olhou para o rosto amarelo, sob os cabelos ondeados. Havia um leve sinal de curiosidade e prazer nos olhos marrons e úmidos. O homem estava de pé, segurando a maçaneta da porta. — Bem, aqui estamos, rapaz. Você está no ponto de partida. Poderá ficar aí sentado, apodrecendo, ou procurar uma saída e iniciar a corrida. Felicidades para você.

Bond pensou que valeria a pena tentá-lo. Deu ainda uma olhadela para além do guarda, onde o cabineiro ainda se conservava ao lado de suas portas abertas, observando-os.

Então disse suavemente: — Você não gostaria de ganhar dez mil dólares, garantidos, e uma passagem para qualquer lugar do mundo que desejasse? — Dito isso, observou cuidadosamente as reações do homem. A boca se abriu numa ampla careta, mostrando dentes escurecidos, desigualmente gastos pelos anos de mascagem de cana-de-açúcar.

— Muito obrigado, senhor. Prefiro continuar vivendo. — O homem fez menção de fechar a porta e Bond ainda gritou ansiosamente: — Podemos sair juntos daqui.

Os grossos lábios fizeram uma careta de desprezo, e o homem apenas disse: “Vá em frente!” E logo a porta se fechou com um duro estalido.

Bond deu de ombros, mas logo passou a examinar a porta. Era feita de metal e não havia maçaneta do lado de dentro. Bond preferiu não experimentar o ombro de encontro àquela barreira. Aproximou-se da cadeira, sentou-se sobre a pilha de suas roupas limpas, e olhou à volta da cela. As paredes eram inteiramente nuas, com exceção de uma grade para ventilação, feita de arame grosso, num dos cantos, logo abaixo do teto. Aquela abertura era maior que os seus ombros. Era, evidentemente, a entrada para a pista dos obstáculos. A única abertura restante, naquele recinto, era uma espécie de vigia de espesso vidro, logo acima da porta, e que não seria maior do que a cabeça de Bond. A luz, vinda do corredor, atravessava aquela grade e penetrava na cela. Nada mais havia. Não seria inteligente perder tempo. Seriam dez e meia. Lá fora, em alguma parte da falda da montanha, a jovem já deveria estar deitada, estendida sobre o chão, à espera do matraquear das pinças no coral cinzento. Bond apertou os dentes ao pensamento daquele corpo frágil e indefeso sob as estrelas. Bruscamente, pôs-se de pé. Que diabo estava ele fazendo ali sentado? O que quer que existisse do outro lado da grade deveria ser imediatamente enfrentado.

Bond apanhou a faca e o isqueiro, e tirou o quimono. Em seguida vestiu as calças e a camisa, enfiando o isqueiro no bolso. Experimentou o corte da faca com o polegar, e verificou que a lamina era bastante afiada. Seria ainda melhor se pudesse fazer uma ponta naquela lâmina. Ajoelhou-se no chão e começou a esfregar a extremidade arredondada da faca na laje do pavimento. Depois de um precioso quarto de hora, deu-se por satisfeito. Não era um estilete, mas que tanto serviria para cortar como para espetar. Colocou-a então entre os dentes e arrastou a cadeira para baixo da abertura gradeada. A grade? Supondo que pudesse arrancá-la pela base, aquele arame bem poderia ser esticado, de modo a formar uma lança, facultando-lhe assim uma terceira arma. Bond esticou os braços, com os dedos encurvados.

A coisa imediata de que tomou consciência foi uma dor de queimadura ao longo do braço e o choque de sua cabeça, ao atingir o chão de pedra. Ficou durante algum tempo estendido no solo, apenas com a lembrança de uma faísca azulada e o estalido e o chiado seco de eletricidade.

Depois de algum tempo, Bond pôs-se de joelhos e assim ficou por um momento. Em seguida baixou a cabeça e sacudiu-a lentamente de um lado para outro, como um animal ferido. Sentiu um leve odor de carne queimada. Levantou a mão direita à altura dos olhos e viu a mancha vermelha de uma queimadura aberta ao longo da parte interna dos dedos. A visão daquele ferimento trouxe-lhe também a consciência da dor. Bond proferiu uma imprecação. Vagarosamente pôs-se de pé. Dessa vez, olhou de soslaio, cautelosamente, para a grade, como se ela fosse feri-lo novamente. Irritado, encostou a cadeira na parede, apanhou a faca e com ela cortou uma faixa do quimono, envolvendo-a firmemente nos dedos. Em seguida tornou a subir na cadeira e olhou para a grade. Esperava-se que ele a atravessasse, e aquele choque tinha sido calculado apenas para amolecê-lo: era uma amostra do que estaria por vir. Com certeza o curto-circuito causado por ele já tinha posto fora de combate aquela armadilha. Olhou para a grade apenas por um instante, e já os dedos de sua mão esquerda a atingiam e atravessavam. Do outro lado não havia nada. Seria mesmo só aquela grade? Puxou a armação e ela cedeu uma polegada. Fez novo esforço e a grade foi arrancada do lugar, ficando pendurada por dois fios de cobre que desapareciam no interior da parede. Bond soltou a grade das pontas daqueles fios e desceu da cadeira. Havia um ponto de junção no arame de ferro, naquela grade, e Bond pôs-se a retificá-la, usando a cadeira como martelo.

Depois de dez minutos tinha à sua disposição um chuço recurvado de cerca de um metro de comprimento. Uma des extremidades, que tinha sido originalmente cortada por alicates, apresentava-se lacerada. Não atravessaria as roupas de um homem, mas teria efeito devastador no pescoço ou no rosto. Lançando mão de toda sua força e servindo-se da fresta inferior da porta metálica, Bond conseguiu fazer ainda um gancho com a extremidade rombuda daquele arame de ferro. Em seguida mediu-o com a perna e achou que aquela nova arma era demasiado longa. Em conseqüência, dobrou-a em dois e enfiou-a numa das pernas da calça. Agora, o chuço ia de sua cintura, onde fora pendurado, até o joelho. Voltou então para a cadeira e tornou a subir até a boca do ventilador, agora desobstruída. Não experimentou mais choque. Ergueu o corpo e introduziu-o naquele tubo que tinha mais quatro polegadas que a largura de seus ombros. Durante algum tempo deixou-se ficar, de barriga para baixo, a olhar para o interior da abertura. O túnel era circular e de metal polido. Bond apanhou o isqueiro, abençoando a inspiração que o fizera roubá-lo, e acionou-o. Sim, aquilo era folha de zinco que parecia nova. O túnel continuava em linha reta, sem qualquer característica especial, a não ser as costuras de junção das várias seções tubulares. Bond tornou a meter o isqueiro no bolso e foi-se arrastando para a frente.

Aquele deslizamento não foi difícil, e até mesmo uma brisa fresca, proveniente do sistema de ventilação, afagava o rosto de Bond. O ar não trazia nenhum cheiro de mar, sendo o seu odor o mesmo que caracteriza o ar de uma instalação de condicionamento de temperatura. O Dr. No devia ter lançado mão de um dos tubos do sistema para as suas experiências. Mas que armadilhas teria introduzido naquele tubo, a fim de pôr à prova as suas vítimas? Deviam ser engenhosas e dolorosíssimas — imaginadas para reduzir a resistência de suas vítimas. No final dos obstáculos, com certeza, a vítima seria surpreendida com o golpe de misericórdia — se é que lograsse chegar ao fim. Com efeito, haveria ali algo que não admitisse escapatória, pois nessa corrida não haveria prêmios, mas apenas padecimentos. A não ser, naturalmente, que o Dr. No tivesse subestimado a vontade de sobrevivência de seu desafeto. Essa, pensou Bond, era a sua única esperança — tentar vencer todos os obstáculos que se lhe deparassem, rompendo pelo menos até a última estacada.

Havia uma pálida luminosidade à sua frente. Bond foi-se arrastando cautelosamente, com todos os seus sentidos atuando como antenas. Aquela luminosidade foi-se tornando mais clara. Era o reflexo da luz que incidia sobre um dos lados da extremidade do tubo. Continuou avançando até que sua cabeça tocou naquela extremidade. Aí, Bond se torceu sobre as costas e olhou para cima. Sobre sua cabeça estava uma chaminé de cerca de cinqüenta metros de altura, em cujo topo havia uma claridade estável. Era como se alguém olhasse através de um comprido cano de canhão. Bond enfiou a cabeça por aquela chaminé e pôs-se de pé. Então, esperava-se que ele galgasse aquele tubo liso, sem qualquer apoio para os pés! Seria possível? Bond expandiu os ombros. Sim, eles lhe proporcionariam uma boa adesão às paredes laterais. Seus pés também o ajudariam na empreitada, embora escorregassem terrivelmente, a não ser nas orlas em que se soldavam os tubos. Bond deu de ombros e tirou os sapatos. Não adiantava monologar. Teria apenas que tentar.

Seis polegadas de cada vez, e o corpo de Bond começou a deslizar pela chaminé acima. A operação consistia em expandir os ombros para se fixar à chaminé, depois levantar os pés, unir os joelhos fortemente, e forçar os pés para fora, em direções opostas, contra o metal, e rapidamente contrair e expandir os ombros novamente, ao mesmo tempo que os pés escorregavam para baixo, deixando, entretanto, como saldo uma pequena progressão de algumas polegadas. E continuar repetindo, repetindo e repetindo a operação, até que os seus olhos fossem banhados pela luz que vira no topo da chaminé. De quando em quando pararia na saliência da solda dos tubos, a fim de descansar um pouco, recuperar o fôlego e medir o próximo avanço. E não havia que olhar para cima; apenas concentrar-se nas polegadas de metal que deveriam ser vencidas, uma a uma. Nada de preocupações com a luminosidade que pareceria nunca aumentar ou se aproximar. Também não deveria preocupar-se com a possibilidade de afrouxar a pressão dos ombros contra as paredes metálicas, indo esmagar os tornozelos no fundo da chaminé. E nenhuma preocupação com cãibras, com o inchaço dos ombros ou com as esfoladuras dos pés. Apenas ataque às polegadas prateadas, conquistando-as uma a uma.

Mas logo os pés começaram a suar e escorregar de modo desesperador. Por duas vezes Bond perdeu um metro, em virtude do escorregamento de seus ombros, que ficaram terrivelmente escalavrados com o atrito, antes de poder conseguir a freagem. Em certa altura teve mesmo que se deter durante algum tempo para esperar que o suor secasse com a corrente de ar que descia pela chaminé. Essa pausa durou dez minutos, durante os quais ele se viu apagadamente refletido na superfície metálica, com o rosto dividido ao meio pela faca que segurava entre os dentes. Ainda assim recusou-se a olhar para cima, a fim de ver quantos metros teria que vencer. Aquela derradeira seção poderia ser muito longa. Cuidadosamente Bond esfregou cada pé num cano de calça e recomeçou a batalha.

Agora, parte de sua mente sonhava, enquanto a outra se empenhava na luta. Nem mesmo estava consciente de que a luminosidade se ia acentuando lentamente e que a brisa se tornava mais forte. Via-se apenas como uma lagarta ferida, arrastando-se por um cano de descarga em direção a um ralo de banheira. O que veria quando atravessasse o ralo? Uma jovem nua se enxugando? Um homem fazendo a barba? A luz do sol filtrando-se para dentro de um banheiro Vazio?

A cabeça de Bond bateu de encontro a alguma coisa. O ralo estava obstruindo o orifício! O choque do desapontamento fez que escorregasse uma polegada, antes que seus ombros pudessem retê-lo firmemente. Então compreendeu que tinha chegado ao topo da chaminé! Agora notava a luz forte e o vento impetuoso. Ansiosamente, ele se alçou novamente até que a cabeça tocou em algo. O vento soprava contra sua orelha esquerda. Cautelosamente, voltou a cabeça para essa direção. Era outro tubo lateral. Acima de sua cabeça a luz se escoava através de uma espessa vigia. Tudo o que tinha a fazer era contornar aquela derivação, agarrando-se à orla do novo tubo, e, de qualquer maneira, encontrar forças para se introduzir naquele túnel lateral. Então poderia descansar um pouco, deitado.

Com redobrada cautela, nascida do pânico de que algo agora podia acontecer, de que poderia cometer um erro e ser precipitado no fundo da chaminé, Bond empreendeu a manobra, com suas últimas reservas de forças, e introduzindo-se na nova caverna caiu estirado com o rosto para baixo.

Mais tarde — quanto tempo mais tarde? — os olhos de Bond se abriram e seu corpo estremeceu. O frio o tinha despertado da total inconsciência em que o seu corpo o teria lançado. Penosamente, virou-se de costas, com pés e ombros doendo terrivelmente, e procurou reunir todas as forças mentais e físicas. Não tinha a mínima idéia da hora ou do lugar em que estaria no interior da montanha. Levantou a cabeça e olhou para trás, em direção à vigia, sobre o tubo vertical, do qual escapara. A luz era amarelada e o vidro parecia muito grosso. Lembrou-se da vigia existente na sala Q. Aquela vigia era absolutamente inquebrável, e esta também o seria, pensou ele.

Subitamente, por trás daquele vidro, distinguiu movimento. Enquanto observava, um par de olhos se materializaram, por trás de lâmpadas elétricas. Aqueles olhos pararam e fitaram-no, com o farolete parecendo um nariz entre aqueles dois olhos. Fixaram-no negligentemente e depois desapareceram. Os lábios de Bond explodiram numa imprecação. Então o seu progresso estava sendo observado para ser levado ao conhecimento do Dr. No.

Bond disse em voz alta: “Para o diabo com todos eles!”,, e voltou-se colérico sobre o ventre. Levantou a cabeça e olhou para a frente. O túnel desaparecia na escuridão. Para a frente! Não adianta nada perder tempo aqui. Apanhou a faca, colocou-a entre os dentes e foi abrindo caminho.

Em breve já não havia mais nenhuma luminosidade. Bond detinha-se de quando em quando para acender o isqueiro mas nada encontrava a não ser trevas. O ar começou a se tornar mais cálido, dentro do túnel, e, depois de uns cinqüenta metros talvez, decididamente quente. Havia mesmo cheiro de calor no ar, de calor metálico. Bond começou a suar.. Dentro de alguns minutos seu corpo estava completamente encharcado e ele tinha que parar para limpar os olhos. Deu uma volta à direita, no tubo, e, na nova seção, sentiu o metal bastante quente contra a sua pele. O cheiro de calor metálico era agora bem acentuado. Assim que enfiou a cabeça no novo túnel, tirou o isqueiro do bolso, acendeu-o e rapidamente recuou. Amargamente, considerou a nova dificuldade, medindo-a e amaldiçoando-a. A chama de seu isqueiro tinha iluminado uma seção de tubos de zinco descolorido. A nova dificuldade seria o calor!

Bond resmungou alto. Como a sua carne já esfolada poderia resistir àquilo? Como poderia proteger a pele contra o metal? Mas não havia solução satisfatória. Ou voltaria, ou continuaria ali parado ou, afinal, avançaria. Não havia outra decisão a tomar. Aliás, Bond começava a encontrar algum consolo em suas reflexões. Com efeito, não seria o calor que haveria de matá-lo, mas alguma mutilação. O metal aquecido não seria o seu campo de sacrifício — apenas mais uma prova para medir-lhe a resistência.

Bond pensou na jovem e no que ela estaria sofrendo. Oh, sim, para a frente com aquilo. Agora, vejamos...

Bond apanhou a faca e cortou toda a parte da frente da camisa, fazendo com ela várias faixas. A única esperança estaria em dar alguma proteção às partes de seu corpo que mais sofreriam a ação do calor, isto é, os pés e as mãos. Seus joelhos e cotovelos teriam de resistir apenas com a proteção normal da fina camada de roupa. E, assim, dispôs-se à luta, amaldiçoando-a.

Agora estava pronto. Um, dois, três...

Bond dobrou o ângulo do túnel e lançou-se contra o foco de calor.

Mantenha a barriga nua distante do chão! Contraia os ombros! Mãos, joelhos, pés; mãos. joelhos, pés. Mais depressa! Mais depressa! Sempre mais depressa, de modo que cada toque contra o chão seja rapidamente seguido por outro.

Os joelhos é que mais estavam sofrendo, agüentando a maior parte do peso do corpo. Agora, as mãos envoltas em panos estavam começando a chamuscar. Acendeu-se uma fagulha, e logo outra, e em seguida surgiram chamas, quando as fagulhas começaram a se deslocar. A fumaça que saía daquele envoltório de pano de suas mãos fazia que os seus olhos ardessem penosamente. Por Deus, ele não agüentaria mais! Não havia mais ar. Seus pulmões estavam a ponto de estourar. Agora as suas duas mãos estavam lançando fagulhas para os lados. O tecido devia estar quase acabado; então a carne começaria a queimar. Bond deu um guinada e seu ombro ferido tocou no metal. Um grito de dor ecoou no túnel, logo seguido de outros gritos proferidos regularmente, quando suas mãos, pés ou joelhos tocavam no metal escaldante. Agora ele estava liquidado. Era o fim. Mais alguns segundos e iria cair de borco, morrendo literalmente queimado. Não! Devia opor um supremo esforço de reação, ainda que aos berros, até que toda a carne tivesse sido queimada até os ossos. A pele dos joelhos já devia ter sido completamente destruída. Mais um pouco e as palmas de suas mãos estariam tocando no metal. Apenas o suor que corria de seus braços poderia manter úmido o pano de suas mãos. Grite, grite, grite! Isto aliviará a dor.” Isto dirá que você está vivo. Continue! Continue! Não pode durar muito mais. Não é aqui que você deverá morrer. Não fraqueje! Você não pode!

A mão direita de Bond tocou em alguma coisa que cedeu. Logo sentiu uma corrente de ar frio. A outra mão bateu então em sua cabeça. Ouviu-se um débil ruído. Bond sentiu a orla inferior de um anteparo de amianto, articulado na parte superior do tubo, e que agora se arrastava em suas costas. Tinha vencido aquela prova. Ouviu o barulho daquele anteparo fechando-se novamente, depois de ter dado passagem a todo o seu corpo. Suas mãos estavam agora encostadas numa sólida parede. Com os dedos, apalpou à direita e à esquerda. Era um desvio em ângulo reto. Seu corpo seguiu cegamente volta do desvio e o ar frio parecia penetrar em seus pulmões como lâminas de aço geladas. Prudentemente, encostou os dedos no metal. Estava frio! Com um gemido Bond caiu sobre o rosto e ficou quieto.

Algum tempo depois, a dor tornou a reavivá-lo. Bond voltou-se dolentemente, de costas. Vagamente notou uma vigia de vidro acima de sua cabeça, e vagamente percebeu aquele mesmo par de olhos a fitá-lo. Depois, deixou novamente que as ondas de trevas o submergissem.

Aos poucos, na escuridão, as bolhas feitas em toda a pele e os pés e ombros queimados começaram a endurecer. O suor tinha-se secado no corpo e nos farrapos da roupa, enquanto o ar penetrara nos pulmões superaquecidos, começando o seu insidioso trabalho. Mas o coração continuava batendo, forte e regularmente, por dentro da torturada carcaça, e os poderes mágicos do oxigênio levaram nova vida para dentro das artérias e veias, recarregando os nervos.

Depois de um tempo que lhe pareceu infinito, Bond despertou. Estremeceu, e, ao encontrarem-se os seus olhos com o outro par que o espreitava, por trás do vidro, a dor se apoderou dele e sacudiu-o como se fosse um rato. Esperou que aquela descarga de dor o matasse. Tentou novamente, e novamente, até que conseguiu aquilatar toda a força do adversário. Em seguida, para esconder-se da testemunha, voltou-se sobre o estômago e resistiu a toda a dor que vinha de dentro de si próprio. Continuou em expectativa, explorando o corpo para verificar-lhe as reações, pondo à prova a força de decisão que ainda tivesse restado nas baterias. Quanto mais poderia ainda agüentar? Os lábios de Bond desprenderam-se dos dentes e ele rosnou na escuridão. Era um som animal. Tinha chegado ao fim de suas reações humanas à dor e à adversidade. O Dr. No o tinha encurralado. Mas ainda restavam reservas de desespero animal e, num animal forte, essas reservas são consideráveis.

Lentamente, em verdadeira agonia, Bond deslizou mais alguns metros para fora do campo visual daqueles olhos e procurou o seu isqueiro, acendendo-o. À sua frente via apenas uma lua cheia negra, a boca circular que o levaria ao estômago da morte. Bond guardou o isqueiro, respirou profundamente e pôs-se sobre os joelhos e mãos. A dor não foi maior, apenas diferente. Lentamente, com movimentos duramente articulados, avançou.

O tecido de algodão de seus joelhos e de seus cotovelos tinha sido completamente queimado. Entorpecidamente, seu cérebro foi registrando a umidade à medida que suas bolhas se abriam contra o metal frio. Enquanto se movia, ia simultaneamente flexionando os dedos e os pés, sentindo-lhes a dor. Lentamente foi sabendo o que poderia fazer, o que doeria menos. Esta dor é suportável, refletiu ele consigo mesmo. Se eu tivesse sofrido um desastre de avião, eles diagnosticariam apenas contusões e queimaduras superficiais. Teria alta do hospital dentro de alguns dias. Não há nada de sério comigo. Sou um sobrevivente de desastre. Dói, mas não é nada. Pense nos pedaços de carnes dos outros passageiros. Dê-se por feliz. Tire isso de sua cabeça. Mas, por trás de todas essa reflexões, estava o pensamento de que, em verdade, ele ainda não experimentara o desastre, — que ainda estava a caminho dele, com sua resistência e sua capacidade muito reduzidas. Quando chegaria ele? Que caráter teria? E quanto mais ainda seria ele amolecido antes de chegar à arena do sacrifício?

à frente, na escuridão, aqueles pequeninos pontos vermelhos bem poderiam ser uma alucinação, manchas rubras diante de seus olhos, causadas pela exaustão. Bond parou e apertou os olhos. Balançou a cabeça. Não, aqueles pontinhos vermelhos ainda estavam lá. Vagarosamente, arrastou-se para mais perto deles. Agora não havia dúvida de que eles se estavam movendo. Bond deteve-se novamente. Alem das batidas de seu coração, ouvia uma espécie de murmúrio suave e delicado. Aqueles pontinhos do tamanho de uma cabeça de alfinete tinham aumentado. Agora haveria vinte ou trinta, deslocando-se para a frente e para trás, alguns rapidamente, outros mais vagarosamente, em todo o círculo negro que o esperava à frente. Susteve o fôlego, assim que conseguiu acender o isqueiro. Os pontinhos vermelhos tinham desaparecido. Substituindo-os, ele viu a um metro de distância, à sua frente, uma tela muito fina, quase da finura de musselina, bloqueando o túnel.

Bond continuou deslocando-se por centímetros, para diante, com o isqueiro aceso à frente. Aquilo era uma espécie de gaiola, com pequeninos animais no seu interior. Podia ouvir aqueles diminutos seres fugindo à luz. A um pé apenas da tela apagou a luz e esperou que seus olhos se acostumassem à escuridão. Enquanto esperava, escutando, pôde ouvir novamente os pequeninos animais aproximarem-se dele, e, gradualmente, aquela floresta de pequeninos pontinhos vermelhos começou a se juntar, fitando-o através da tela.

Que seria aquilo? Bond ouviu seu coração bater com força. Serpentes? Escorpiões? Centopéias?

Cuidadosamente, foi aproximando os olhos daquela floresta de pontos luminosos. Aproximou o isqueiro bem junto da tela e acendeu-o bruscamente. Pôde apreender, num relance, a visão de pequeninas patas que atravessavam a tela e de dezenas de pés cabeludos e de ventres igualmente cabeludos com a forma de sacos, tendo em determinado ponto grandes cabeças de insetos que pareciam cobertas de olhos. Os animais fugiam em precipitada corrida, abandonando a tela da frente para irem refugiar-se na extremidade oposta da gaiola, formando uma só massa cinza-marrom.

Bond olhou através da tela, movendo o isqueiro para a frente e para trás. Depois apagou-o para economizar gasolina, e deixou que a respiração saísse por entre os dentes, num tranqüilo suspiro.

Eram aranhas, gigantescas tarântulas, de três ou quatro polegadas de comprimento. Haveria umas vinte delas dentro daquela gaiola. E, de qualquer maneira, ele teria que passar por perto delas.

Bond ficou parado, descansando e pensando, enquanto os olhos vermelhos se iam reunindo outra vez diante de seu rosto.

Qual seria o grau de letalidade daqueles animais? Quanto das lendas em torno delas seria mito? Certamente que podiam matar animais, mas em que medida seriam mortais para o homem aquelas gigantescas aranhas? Bond deu de ombros. Lembrou-se da centopéia. O toque das tarântulas seria muito mais suave. Seriam como o toque das patas de ursinhos de brinquedo contra a pele humana — até que mordessem e esvaziassem os seus folículos venenosos no organismo da pessoa.

Mas, ainda aqui, seria esta a arena do sacrifício derradeira, montada pelo Dr. No? Uma mordida ou duas, talvez, para mandar uma pessoa para um delírio de dor. O horror de ter que atravessar a tela no escuro — o Dr. No não teria pensado no isqueiro de Bond — varando aquela floresta de olhos, esmagando alguns corpos moles mas sentindo as picadas de outros. E depois mais picadas das que tivessem ficado presas à roupa. Em seguida, a lenta agonia do veneno. Este deveria ter sido o caminho percorrido pela imaginação do Dr. No — para que a vítima prosseguisse aos gritos pelo seu caminho. Para quê? Para a barreira final?

Mas Bond tinha o isqueiro, a faca e o chuço de arame. Tudo o que iria precisar era nervos e uma precisão infinita.

Delicadamente abriu a tampa do isqueiro e, com o polegar e indicador, fez sair o pavio uma polegada. Acendeu-o, e quando as aranhas recuaram, furou a tela com a faca. Fez um buraco na armadura e cortou para os lados. Depois, apanhou a aba da tela, que assim se desprendera, e arrancou-a da armadura. A tarefa não foi difícil, pois a aba fendeu-se numa só peça, com um tecido de algodão. Tornou a colocar a faca entre os dentes e atravessou a abertura. As aranhas recuaram diante da chama e amontoaram-se umas sobre as outras. Bond retirou o chuço de arame de dentro das calças e bateu com o arame dobrado sobre aqueles corpos moles. Bateu e tornou a bater ferozmente, reduzindo os aracnídeos a uma pasta informe. Quando algumas das aranhas tentaram escapar em sua direção, ele acenou-lhes com a chama e esmagou as fugitivas, uma a uma. Agora, as aranhas vivas estavam atacando as mortas, e tudo quanto Bond tinha a fazer era terminar o massacre.

Lentamente todos aqueles movimentos convulsivos foram declinando até cessarem completamente. Estariam todas mortas? Estariam algumas simulando morte? A chama do isqueiro estava começando a morrer. Teria que enfrentar o risco. Avançou mais um pouco e atirou aquela massa escura e pegajosa para um lado. Depois tirou a faca de entre os dentes e abriu a segunda cortina, puxando a aba cortada para cima da pasta feita com os corpos das tarântulas. A chama bruxuleou e tornou-se apenas um revérbero vermelho. Bond reuniu suas forças, atirou o corpo sobre a massa encoberta e atravessou a segunda tela.

Não sabia se teria posto os joelhos e cotovelos sobre limalhas metálicas ou sobre as aranhas. Tudo o que sabia é que tinha atravessado aquela barreira. Arrastou-se ainda por alguns metros para a frente, no interior do túnel, e depois parou para descansar e reunir coragem.

Sobre a sua cabeça veio uma pálida luz. Bond torceu-se para um lado, ficando de costas, para ver o que já esperava. Os olhos amarelos e amendoados fixavam-no com profundo interesse. Lentamente, por trás do farolete, a cabeça moveu-se de um lado para outro. As pálpebras caíram numa piedade fingida. Um punho cerrado, com o polegar apontando para baixo, à guisa de despedida e aniquilamento, interpôs-se entre o farolete e o vidro. Em seguida foi retirado e a luz apagou-se. Bond voltou o rosto para baixo e descansou a testa no chão metálico e frio. Aquele gesto dizia-lhe que ele estava chegando ao obstáculo final, que os seus algozes tinham dado por encerradas as observações até virem recolher os seus restos. Bond sentiu ainda que naquele rosto não houvera um único indício de louvor pelo fato de ter logrado sobreviver até aquela etapa. Aqueles chineses negros odiavam-no. Apenas queriam que ele morresse, e tão miseravelmente quanto possível.

Os dentes de Bond bateram suavemente. Ele pensara na jovem e este pensamento dera-lhe forças. Ainda não estava morto. Que diabo! Ele não iria morrer! Não enquanto o coração não lhe fosse arrancado do corpo.

Bond retesou os músculos. Era tempo de continuar, a investida. Com redobrado cuidado, recolocou as armas em seus lugares, e penosamente recomeçou a avançar pela escuridão.

O túnel começava a inclinar-se ligeiramente para baixo, o que tornava a progressão mais fácil. Logo a inclinação tornou-se tão acentuada que Bond podia deslocar-se apenas em virtude de seu peso. Era uma bênção não ter que fazer aquele esforço derradeiro com os músculos. Vislumbrou um clarão acinzentado à sua frente, pouco mais que uma redução das trevas completas, mas aquilo prenunciava uma mudança, pois a qualidade do ar parecia diferente. Havia nele um odor novo. O que seria? O mar?

Súbito, Bond compreendeu que estava escorregando para baixo, ao longo do túnel. Expandiu os ombros e abriu os pés, procurando impedir a queda. Aquele esforço causou-lhe terríveis dores e o efeito foi mínimo. Agora o túnel começava a alargar-se e ele já não poderia mais diminuir o impulso da queda! Seu deslizamento tornava-se mais e mais acelerado. Agora via uma curva à frente — e era uma curva dirigida para baixo.

O corpo de Bond logo chegou. àquela curva e contornou-a. Deus do céu, ele estava mergulhando de cabeça para baixo! Desesperadamente, abriu os braços e pernas. O metal esfolou sua pele. Agora tinha perdido completamente o controle da situação e estava mergulhando para baixo, sempre pára baixo, no interior de um cano de canhão. Muito abaixo havia um circulo de luz cinzenta. Seria o ar livre? O mar? A luz subia vertiginosamente para ele! Lutou para recuperar o fôlego. Continue vivo, idiota! Continue vivo!

Primeiro a cabeça, e logo depois o corpo de Bond precipitaram-se pelo espaço, vencendo aceleradamente a distância de mais de cem pés que o separava da superfície do mar.


XVIII - ARENA DE SACRIFÍCIO


O corpo de Bond espadanejou o espelho de um mar de alvorada como o impacto de uma bomba.

Enquanto descia precipitadamente pelo tubo prateado, em direção ao disco de luz, o instinto dissera-lhe que retirasse a faca de entre os dentes e que pusesse as mãos para a frente, a fim de aparar a queda, assim como a cabeça para baixo e o corpo rígido. E, na última fração de segundo, quando ele viu o mar que se alteava ao ritmo das ondas, procurou sorver uma longa inspiração. En conseqüência, projetou-se na água como se estivesse dando um mergulho, com os braços estendidos abrindo-lhe um buraco através do qual passaram a sua cabeça e o corpo. Conquanto, quando chegou a vinte pés de profundidade, tivesse perdido os sentidos, o despencar a sessenta e cinco quilômetros por hora não conseguira matá-lo.

Lentamente o corpo foi voltando à superfície, e ficou, com a cabeça para baixo, a balançar-se suavemente nas pequeninas ondas causadas pelo seu próprio mergulho. A água que penetrou nos pulmões de certa forma contribuiu para enviar uma última mensagem ao cérebro. As pernas e braços agitaram-se desajeitadamente. Agora tinha conseguido voltar a cabeça para cima, com a água escorrendo da boca. Tornou a afundar, mas dessa vez, instintivamente, as pernas começaram a mover-se procurando manter o corpo à superfície da água. Por fim, a cabeça, horrivelmente sacudida pela tosse, conseguiu vir para fora da água e assim manter-se. Os braços e as pernas começaram a agitar-se dèbilmente, com os movimentos natatórios de um cão, e através da cortina vermelha e negra, os olhos injetados de sangue viram a linha da vida e disseram ao dolente cérebro que visasse àquele objetivo.

A arena de execução era uma estreita e profunda enseada, na base de um elevado penhasco. A corda de salvamento em direção à qual Bond lutava, embaraçado pelo chuço metido em sua calça, era representada por uma forte tela de arame, que se estendia por dois lados do penhasco, protegendo aquela enseada do mar aberto. Aquela rede, formada de quadrados, estava suspensa a um grosso cabo situado a dois metros acima da superfície da água. Para baixo, a tela desaparecia nas profundezas, cheia de incrustações de algas.

Bond conseguiu chegar ao arame, e a ele agarrou-se como que crucificado. Durante quinze minutos deixou-se ficar na mesma posição, com o corpo de quando em quando sacudido por vômitos, até que se sentiu bastante forte para virar a cabeça e verificar onde estava. Ofuscadamente, os seus olhos tomaram a altura do penhasco, sobre sua cabeça. O lugar estava obscurecido por uma sombra cinzenta, projetada pela montanha, mas ao largo, no mar, havia uma iridiscência de pérola provocada pela aurora, o que significava que para o resto do mundo o dia estava amanhecendo. Mas onde Bond se encontrava era escuro e triste.

Lerdamente, a mente de Bond começou a se interrogar sobre aquela tela de arame. Qual seria a sua finalidade, fechando aquela escura enseada e separando-a do mar? Seria para manter alguma coisa do lado de fora ou para mantê-la do lado de dentro? Bond olhou vagamente para baixo, procurando penetrar as profundezas do mar, à sua volta. As malhas de arame perdiam-se no nada, sob os seus pés. Havia pequeninos peixes à volta de suas pernas, abaixo da cintura. Que estariam eles fazendo? Pareciam estar-se alimentando, avançando contra seu corpo e depois recuando com fiapos negros na boca. Fiapos de que? De algodão de seus farrapos? Bond sacudiu a cabeça para clarear as idéias. Tornou a olhar para baixo. Não, aqueles peixes estavam-se alimentando com seu sangue.

Bond estremeceu. Sim, o sangue estava escorrendo de seu corpo, dos ombros, dos joelhos, dos pés, e misturando-se à água. Agora, pela primeira vez sentiu a dor causada pela água salgada em suas feridas e queimaduras. A dor tornou-se mais viva e estimulou a sua mente. Se esses pequeninos peixes estavam gostando de seu sangue, o que dizer dos tubarões? Seria essa a finalidade daquela tela de arame, isto é, evitar que os peixes devoradores de seres humanos pudessem escapar para o mar? Então por que eles ainda não se tinham lançado sobre ele? Para o diabo! A primeira coisa a fazer era subir pelo arame e ganhar o outro lado. Interpor aquela tela entre ele e o que quer que vivesse naquele escuro aquário.

Dèbilmente, pé após pé, lá se foi Bond subindo pela tela, até chegar ao cume e passar para o outro lado, onde poderia descansar sem preocupações. Colocou o espesso cabo sob a axila, e olhou para baixo, contemplando os peixes que ainda se nutriam com o sangue que continuava gotejando de seus pés.

Agora já não havia muito em Bond; pouquíssimas reservas teria ele. O último mergulho no tubo, o choque da queda, na água, e a quase morte, causada por afogamento, tinham-no esmagado como a uma esponja. Estava prestes a entregar-se, prestes a soltar um pequeno suspiro e depois escorregar para os doces braços da água. Como seria bom abandonar-se, finalmente, e descansar — sentir que o mar suavemente o levava para o seu leito.

Foi a explosiva fuga dos peixes que estavam sorvendo o seu sangue, sob os seus pés, que despertou Bond de seu sonho de morte. Alguma coisa tinha-se movido muito abaixo da superfície. Havia uma trêmula claridade muito distante, mas que avançava lentamente para a superfície, aproximando-se pelo lado interno da tela.

O corpo de Bond se enrijeceu. Ante a iminência do perigo, a vida voltou-lhe num ímpeto, expulsando a letargia e comunicando-lhe renovada vontade de sobreviver.

Bond abriu os dedos aos quais, há muito, o seu cérebro ordenara que não perdessem a faca. Fechou os dedos e agarrou o cabo daquela lâmina. Abaixou-se em seguida e tocou no gancho do chuço que ainda se mantinha no interior da calça. Sacudiu vivamente a cabeça e ficou com os olhos alertas. E agora?

Sob os seus pés a água estremeceu. Alguma coisa estava-se debatendo, no fundo, alguma coisa enorme. Algo grande, de cor cinza luminescente, tornou-se visível, detendo-se muito abaixo da superfície, na escuridão. Alguma coisa se projetou daquela massa, em direção à superfície, algo como se fosse um chicote da grossura do braço de Bond. A extremidade daquela tira inchava-se numa terminação oval e achatada, com marcas semelhantes a botões distribuídos a espaços regulares. Aquele tentáculo rodopiou na água, no lugar em que os peixes tinham estado, e logo se encolheu. Agora só se via a grande sombra cinzenta lá embaixo da superfície. Que estaria fazendo o animal? Estaria...? Estaria provando o seu sangue?

Como que em resposta àquela pergunta, dois olhos, tão grandes quanto bolas de futebol, foram avançando para cima até se porem no campo de visão de Bond. Aqueles enormes olhos pararam vinte pés abaixo da superfície e olharam tranqüilamente para cima, fixando-se no rosto de Bond.

A pele de Bond ficou arrepiada nas costas. Sua boca deixou escapar um palavrão! Então, aquela era a Ultima surpresa do Dr. No, o fim da corrida!

Bond ficou de olhos abertos, meio hipnotizado, olhando para baixo. Então aquele era o polvo gigante, o monstro mítico que podia arrastar navios para as profundezas do mar, o monstro de cinqüenta pés de comprimento que podia dar combate às baleias e que pesava uma tonelada ou mais. O que mais sabia ele a respeito daqueles animais? Que tinham dois longos tentáculos para laçar e outros dez para agarrar; que tinham um enorme bico rombudo por baixo de olhos que eram os únicos olhos, entre os peixes, a trabalharem segundo o principio da câmara fotográfica, como os do homem: que seu cérebro era eficiente; que o monstro podia fugir para trás a uma velocidade de trinta nós, por um sistema de jato-propulsão. Sabia ainda que os arpões podiam afundar-se em sua manta de gelatina sem causar nenhum mal ao monstro, e que... mas os grandes olhos esbugalhados, que ofereciam um alvo negro e branco, estavam-se elevando em sua direção. A superfície da água estremecia. Agora Bond podia ver uma floresta de tentáculos que saíam da cara do animal. Ondulavam diante dos olhos do monstro como uma ninhada de grossas serpentes. Bond podia ver-lhe as ventosas sob os tentáculos. Atrás da cabeça, a grande aba da manta de gelatina abria-se e fechava-se suavemente, e, por trás dela, o brilho do corpo perdia-se nas profundezas. Por Deus, a coisa era tão grande quanto uma locomotiva!

Muito devagar e discretamente Bond foi enfiando os pés e depois os braços através dos quadrados da tela de arame, protegendo-se e ancorando-se tão sòlidamente que os tentáculos teriam que arrancá-lo dali aos pedaços ou então arrastar com ele todo aquele arcabouço de metal. Olhou para a direita e para a esquerda. Para qualquer lado, teria que vencer vinte metros, antes de chegar à terra. Mas, qualquer movimento, ainda que pudesse empreende-lo, séria fatal. Devia ficar absolutamente imóvel, rezando para que o monstro perdesse o interesse e se afastasse. Se ele não perdesse o interesse... Suavemente os dedos de Bond apertaram a pequenina faca.

Os olhos do monstro continuavam fitando-o, fria e pacientemente. Delicadamente, como a tromba de um elefante, um daqueles longos tentáculos laçadores emergiu da superfície e foi galgando a tela em direção às pernas de Bond. Tocou num de seus pés, e Bond sentiu o áspero beijo daquelas ventosas. Não se mexeu. Não ousava abaixar-se e afrouxar o enlaçamento de seus braços à volta do arame. Docemente as ventosas entraram em ação, experimentando o rendimento daquela presa. Não era bastante. Como uma gigantesca lagarta, o tentáculo foi subindo por sua perna. Parou à altura do joelho ensangüentado e deteve-se, interessado. Os dentes de Bond estalaram com a dor. Ele bem podia imaginar a mensagem que tinha descido por aquele tentáculo até o cérebro do animal: sim, é bom para comer-se! E a ordem de retorno ao tentáculo: então traga-o.

As ventosas continuaram subindo pela coxa. A extremidade do tentáculo se aflou e em seguida dilatou-se a ponto de quase cobrir toda a espessura da coxa de Bond. Depois reduziu-se à grossura de um pulso. Aquele seria o alvo de Bond. Apenas teria que agüentar a dor e resistir ao horror daquela acometida, esperando que esse pulso chegasse ao alcance de um golpe.

 

* *
Uma brisa, a primeira suave brisa da madrugada, soprou sobre a superfície metálica da enseada, levantando pequenas ondas que iam beijar a rocha do penhasco. Um bando de corvos marinhos alçou vôo da guaneira, quinhentos pés acima da enseada, e cacarejando suavemente, avançou em direção ao mar. Quando as aves passaram sobre a enseada, o barulho que as tinha perturbado chegou aos ouvidos de Bond — o tríplice apito de um navio, que indica estar a embarcação pronta para receber a carga. Aquele som chegava do lado esquerdo de Bond. O cais deveria estar situado a pequena distância contornando o braço setentrional da enseada. O navio procedente de Antuérpia tinha chegado. Antuérpia! Uma região do mundo exterior — um mundo que estava a um milhão de quilômetros de distância, fora do alcance de Bond — com certeza para sempre fora de seu alcance. Exatamente para além daquele braço rochoso a tripulação estaria no refeitório, tomando o seu desjejum. O rádio estaria tocando. Haveria o chiado do toicinho defumado e ovos na frigideira, o cheiro do café...


* * *


As ventosas estavam em sua coxa. Bond podia ver dentro daqueles cálices córneos. Um cheiro de maresia estagnada chegou-lhe às narinas, quando aquela mão vagarosamente serpenteou para cima. Seria muito duro o tecido gelatinoso cinza-escuro, por trás daquela mão? Deveria usar agora a faca? Não, o golpe deveria ser rápido e seguro, atingindo toda a espessura, como se se cortasse uma corda. Não importaria que a sua própria pele fosse atingida.

Agora! Bond lançou um rápido golpe de vista àqueles dois enormes olhos, lá embaixo, tão pacientes e tão negligentes. Nesse momento, o outro tentáculo elevou-se da superfície da água e avançou em direção ao seu rosto. Bond recuou a cabeça e a mão se enroscou num fio de arame diante de seus olhos. Num segundo aquela garra se deslocaria para um braço ou ombro, e ele estaria liquidado. Agora!

O primeiro tentáculo estava sobre suas costelas. Quase sem fazer pontaria, a mão de Bond que empunhava a faca caiu rapidamente para baixo e transversalmente. Sentiu a lâmina afundar naquele pudim carnoso, e quase deixou que ela escapasse de sua mão, quando o tentáculo ferido chicoteou pelo ar, desaparecendo na água. Por um momento o mar foi agitado à sua volta. Agora, o outro tentáculo abandonou o arame e agarrou-se ao seu ventre. A mão aflada prendeu-se como uma sanguessuga, com toda a força de sua sucção furiosamente aplicada. Bond gritou ao sentir o contacto daquelas ventosas em sua carne. Golpeou loucamente, mais e mais. Por Deus, o seu estômago estava sendo arrancado para fora! A tela agitou-se com a luta. Aos seus pés a água fervilhava e espumava. Ele teria que ceder. Um derradeiro golpe, desta vez nas costas daquela mão disforme. Deu resultado! A mão se agitou no ar e desceu serpeante, deixando vinte círculos vermelhos sangrando em sua pele.

Bond não tinha tempo para se preocupar com aquilo. Agora a cabeça do monstro tinha emergido, e os seus olhos brilhantes fixavam-se nele, avermelhados, enfurecidos, e a floresta dos tentáculos sugadores começava a envolver-lhe os pés e as pernas, dilacerando-lhe as roupas, para logo retornar aos seus membros. Bond estava sendo arrastado para baixo, polegada por polegada. O arame estava penetrando em suas axilas. Podia até mesmo sentir a sua espinha sendo distendida. Se ele continuasse resistindo seria partido ao meio. Agora, os olhos e o grande bico triangular estavam fora d’água, e o bico procurava o seu pé. Havia uma esperança, apenas uma!

Bond meteu a faca entre os dentes e sua mão procurou o gancho do chuço de arame. Agarrou aquela arma, e desdobrou-a com as suas duas mãos. Teria que soltar um dos braços para poder abaixar-se e se aproximar do alvo. Se falhasse, entretanto, seria reduzido a pedaços sobre a tela.

Agora, antes que morresse com a dor! Agora, agora! Bond deixou todo o seu corpo escorregar por aquela escada de arame, para baixo, e desferiu uma violenta estocada. Pôde ver que o pontaço de sua lâmina penetrava pelo centro de um enorme globo ocular negro, e imediatamente todo o mar se intumesceu para ele, como uma fonte de negrume, enquanto seu corpo se mantinha pendurado de cabeça para baixo, seguro pelos joelhos, com o rosto apenas uma polegada acima da superfície.

Que teria acontecido? Teria ficado cego? Não podia ver nada. Seus olhos estavam ardendo e havia um gosto horrível de peixe podre em sua boca. Contudo, podia sentir o arame cortando-lhe os tendões dos joelhos. Então devia estar vivo! Estonteado, Bond deixou que o chuço caísse de sua mão, e procurou o arame mais próximo. Depois, agarrou-se com a outra mão um pouco mais acima, e, assim, vagarosamente, foi-se alçando até que conseguiu sentar-se no cabo superior da cerca. Clarões de luz chegaram-lhe aos olhos. Passou uma das mãos pelo rosto. Agora podia ver. Fixou a sua mão: estava negra e pegajosa. Olhou para o seu corpo: estava também coberto por um lodo negro, e o preto tingia o mar numa extensão de vinte metros à sua volta. Então Bond compreendeu: o polvo ferido tinha esvaziado a sua bolsa de tinta contra ele.

Mas onde estava o monstro? Voltaria? Bond esquadrinhou o mar. Nada, nada além da enorme mancha negra que se continuava ampliando. Nem uma só ondulação! Então, nada de esperar! Fugir dali o mais depressa possível! Ansiosamente, Bond olhou para a direita e para a esquerda. Para a esquerda era na direção do navio, mas também na direção do Dr. No, enquanto para a direita seria para o nada. Para instalar aquela tela de arame, os trabalhadores deviam ter vindo da esquerda, na direção do cais. Devia haver algum caminho até ali. Bond começou a se deslocar frenèticamente pelo cabo superior, em direção à rocha, a vinte metros de distância.

O espantalho negro e sangrento movimentava os braços e pernas quase automaticamente. O aparelho pensante e sensorial de Bond já não fazia mais parte de seu corpo. Movia-se ao lado de seu corpo ou acima dele, mantendo apenas o contato necessário para puxar os cordéis que faziam o boneco trabalhar. Bond era como um verme secionado, cujas duas metades continuassem arrastando-se para a frente, conquanto a vida os tivesse abandonado para ser substituída pela vida ilusória dos impulsos nervosos. Apenas, no caso de Bond, as duas metades ainda não estavam mortas. A vida tinha somente se ausentado delas. Tudo quanto ele precisava era um grama de esperança, um grama de confiança, de convicção de que ainda valeria a pena tentar sobreviver.

Bond chegou à rocha, e lentamente desceu pela tela até a última malha. Contemplou vagamente o brilho palpitante da água. O mar estava negro e impenetrável. Deveria arriscar-se? Sem dúvida! Não podia fazer nada enquanto não tivesse lavado aquela camada de lodo e sangue, sem falar do horrível cheiro de peixe. Sombriamente, fatalisticamente, ele tirou os farrapos de sua camisa e calças, pendurando-os no cabo. Olhou para baixo, para seu corpo marrom e branco, salpicado de vermelho. Instintivamente, procurou sentir seu pulso, que se apresentava lento mas regular. As firmes palpitações de vida reanimaram o seu espírito. Por que diabo estava ele se lamuriando? Estava vivo. As feridas e machucaduras em seu corpo não eram nada — absolutamente nada. Eram horríveis, mas nada estava quebrado. Por dentro do invólucro maltratado, a máquina estava trabalhando serena e seguramente. Cortes superficiais e esfoladuras, recordações sangrentas, cansaço mortal — estes seriam ferimentos dos quais se riria uma enfermeira experiente. Para a frente, seu bastardo! Para a frente! Limpe-se e levante-se. Conte as suas bênçãos. Pense na jovem. Pense no homem que você deverá encontrar e matar. Agarre-se à vida como se agarrou à faca entre os dentes. Acabe com esta autopiedade. Para o diabo com o que acaba de acontecer! Para dentro d’água e lave-se!

Dez minutos mais tarde, Bond, com seus farrapos molhados colados ao corpo já esfregado, e com os cabelos repuxados para fora dos olhos, galgava o cimo do penhasco.

Sim, era como ele tinha imaginado. Uma picada estreita e rochosa, feita pelos pés dos trabalhadores, descia para o outro lado, contornando a saliência do penhasco.

Das proximidades chegaram vários sons e ecos. Um guindaste estava trabalhando. Podia ouvir os ritmos variáveis de seu motor. Ouviam-se os barulhos peculiares, aos navios de ferro, bem como o ruído da água que era lançada ao mar por uma bomba de porão.

Bond olhou para cima, para o céu, que estava de um azul pálido. Nuvens manchadas de ouro e reflexos rosados derivavam em direção ao horizonte. Muito acima dele, os corvos marinhos esvoaçavam em torno da guaneira. Em breve estariam fazendo-se ao mar, em busca de alimentos. Talvez, agora, mesmo, estivessem vigiando os grupos de reconhecimento, longe, sobre o mar, na faina de localizarem os peixes. Seriam cerca de seis horas — a aurora de um belo dia.

Bond, deixando gotas de sangue atrás de si, seguiu o seu caminho cuidadosamente pela picada abaixo, beirando o sopé do penhasco. Para além da curva, a picada se infiltrava por um terreno cheio de pedras espalhadas. Os ruídos iam-se tornando mais altos. Bond ia avançando cuidadosamente, evitando pisar em pedras. Uma voz se fez ouvir surpreendentemente perto: ‘”Pronto para largar?” E logo uma resposta distante: “Pronto”. O motor do guindaste acelerou. Mais alguns metros. Mais um pedregulho; e mais outro. Agora!

Bond se ocultou por trás da rocha e cautelosamente meteu a cabeça para fora, a fim de observar.

 

CONTINUA

XVI - HORAS DE AGONIA


Uma voz, por trás de Bond, disse serenamente: — O jantar está servido.

Bond voltou-se para trás. O anunciante fora o guarda-costas, que tinha a seu lado outro homem que bem poderia ser seu irmão gêmeo. Ali ficaram eles, duas barricas de musculatura, com as mãos mergulhadas nas mangas dos quimonos, olhando, por cima da cabeça de Bond, para o Dr. No.

— Ah, já nove horas. — O Dr. No levantou-se lentamente e disse: — Vamos. Podemos continuar a nossa conversação em ambiente mais íntimo. Foi muita bondade dos senhores terem ouvido a minha história com paciência tão exemplar. Espero que a modéstia de minha cozinha e de minha adega não representem mais uma imposição.

Portas duplas tinham sido conservadas abertas por trás dos dois homens de jaquetas brancas. Bond e a jovem atravessaram-nas seguindo o Dr. No, indo ter a uma sala octogonal, com as paredes recobertas de painéis de mogno, e ao centro um candelabro de prata, sob o qual estava posta uma mesa para três pessoas. O tapete simples, azul-escuro, era luxuosamente espesso. O Dr. No tomou a cadeira central, de espaldar alto, e indicou cortesmente, com uma inclinação, a cadeira à sua direita para a jovem. Sentaram-se e abriram guardanapos de seda branca.

A cerimônia vazia e a encantadora sala deixavam Bond louco. Ansiava por despedaçar tudo aquilo com as próprias mãos, por passar o seu guardanapo de seda à volta do pescoço do Dr. No e apertá-lo até que aquelas lentes de contato saltassem daqueles malditos olhos negros.

Os dois guardas usavam luvas de algodão branco. Serviram as iguarias com suave eficiência que era instigada por uma ocasional palavra chinesa proferida pelo Dr. No.

A princípio o Dr. No parecia preocupado. Lentamente, ingeriu três taças de diferentes sopas, utilizando-se de uma colher dotada de um cabo curto e que se adaptava perfeitamente entre as pinças de sua mão mecânica. Bond esforçou-se por esconder os seus temores da jovem. Sentou-se afetando uma atitude de relaxamento e comeu e bebeu com forçado apetite. Falou ainda animadamente com a jovem sobre Jamaica — sobre aves e animais, assim como fores, que constituíam fáceis assuntos de conversação para Honeychile. De vez em quando os seus pés tocavam nos dela, sob a mesa. Ela quase chegou a ficar alegre. Bond pensou que ambos estavam fazendo uma bela imitação de namorados comprometidos, que estivessem saboreando um jantar oferecido por um tio detestável.

Bond não tinha a mínima idéia sobre se o seu fraco blefe tinha surtido algum efeito. Assim, não deu grande importância às suas possibilidades. O Dr. No, assim como a sua história, eram perfeitamente impenetráveis. A incrível biografa parecia verdadeira. Nem uma só palavra daquele relato era impossível. Talvez houvesse outras pessoas no mundo com os seus reinos particulares — reinos afastados dos caminhos trilhados por homens comuns, sem testemunhas, onde pudessem fazer o que bem entendessem. E que estaria planejando fazer o Dr. No, depois que tivesse esmagado as moscas que tinham vindo incomodá-lo? E se eles fossem mortos — e quando o fossem — Londres conseguiria recolher os fios que ele, Bond, tinha recolhido? Provavelmente conseguiria. Lá estava Pleydell-Smith, e as provas das frutas envenenadas. Mas até onde a substituição de Bond iria afetar o Dr. No? Não muito. O Dr. No daria de ombros ao desaparecimento de Bond e Quarrel. Nunca teria ouvido falar deles. E não haveria qualquer elo com a jovem. Em Porto Morgan, todos pensariam que ela se tinha afogado em suas expedições. Era difícil saber o que poderia interferir com o Dr. No — com o segundo capítulo de sua vida, qualquer que ele fosse.

Sob aquela conversa com a jovem, Bond foi-se preparando para o pior. Ao lado de seu prato havia algumas facas. Então chegaram as costeletas, perfeitamente cozidas, e Bond tocou em várias facas, hesitante, até que escolheu a do pão para cortá-las. Enquanto comia e conversava foi deslocando a grande lâmina de aço para perto do corpo. Um gesto largo da mão direita derrubou o seu copo de champanha e, numa fração de segundo, enquanto o copo se partia, sua mão esquerda enfiou a lâmina para dentro da manga do quimono. Em meio às suas desculpas, e à confusão que se seguiu, enquanto os guardas enxugavam a champanha derramada na mesa, Bond levantou o braço esquerdo e sentiu que a faca deslizava para baixo do braço e depois caía para dentro do quimono, ficando encostada às suas costelas. Quando acabou de comer as costeletas, apertou o cinto de seda, à volta da cintura, ao mesmo tempo que deslocava a faca para diante da barriga. A faca aninhou-se. confortàvelmente contra a sua pele e em pouco tempo o aço da lâmina foi-se tornando aquecido.

Por fim veio o café e a refeição foi dada por terminada. Os dois guardas se aproximaram e postaram-se por trás das cadeiras da jovem e de Bond. Tinham os braços cruzados sobre o peito, impassíveis, sem nenhum movimento, como carrascos.

O Dr. No pousou delicadamente a sua xícara no pires e descansou as duas pinças de aço sobre a mesa. Depois se endireitou um pouco na cadeira e virou o corpo, apenas uma polegada, em direção de Bond. Agora não havia o mínimo sinal de preocupação em seu rosto. Os olhos eram duros e diretos. A boca fina contraiu-se e abriu-se: — Apreciou o jantar, sr. Bond?

Bond apanhou um cigarro numa caixa de prata que estava à frente e acendeu-o. Depois, pôs-se a brincar com o isqueiro de prata que estava sobre a mesa. Sentia que más noticias iriam chegar. Pensou que deveria meter aquele isqueiro no bolso, de qualquer maneira. O fogo talvez viesse a ser mais uma arma. Respondeu com facilidade: — Sim, estava excelente. — Em seguida olhou para Honeychile. Curvou-se sobre a mesa e descansou os braços sobre ela, e logo cruzou-os, envolvendo o isqueiro com esta manobra. Sorriu para ela: — Espero ter pedido o que você gosta.

— Oh, sim, estava magnífico. — Para ela a recepção ainda estava continuando.

Bond fumava afanosamente, agitando mãos e braços, a fim de criar uma atmosfera de movimento. Voltou-se para o Dr. No, apagou o toco de seu cigarro e reclinou-se na cadeira. Cruzou os braços sobre o peito. O isqueiro já estava sob o seu sovaco esquerdo. Riu animadamente:

— E o que acontecerá agora, Dr. No?

— Podemos continuar com a nossa distração de após-jantar, sr. Bond. O leve sorriso contraiu-se e desapareceu.

— Examinei a sua proposta sob todos os aspectos. Não a aceito.

Bond deu de ombros e observou: — O senhor não é sensato.

— Não, sr. Bond. Receio que a sua proposta não passe de uma isca dourada. Em sua profissão não se atua como o senhor quer sugerir. Os agentes enviam relatórios rotineiros para o quartel-general. Mantêm seus chefes a par dos progressos das investigações que fazem. Conheço essas coisas. Os agentes secretos não se comportam como o senhor sugeriu ter agido. O senhor esteve lendo muitas novelas de aventuras, e o seu pequeno discurso mostrou com muita facilidade o papelão pintado. Não, sr. Bond, não aceito a sua história. Se ela for verdadeira, estou preparado para enfrentar as conseqüências. Tenho muita coisa em jogo para ser facilmente desviado de meu caminho. Que venham a polícia e os soldados. Onde estão o homem e a jovem? Que homem e que jovem? Não sei de nada. Por favor, retirem-se, os senhores estão prejudicando a minha guaneira. Onde estão as suas provas, o seu mandado de prisão? A lei inglesa é rigorosa, meus senhores. Voltem para casa e deixem-me em paz com os meus queridos corvos marinhos. Está vendo, sr. Bond? E digamos mesmo que o pior redunde em pior. Que um de meus agentes fale, o que é altamente improvável. (Bond lembrou-se da fortaleza da srta. Chung). Que tenho eu a perder? Mais duas mortes no libelo acusatório. Mas, sr. Bond, um homem só pode ser enforcado uma vez: — A elevada cabeça, em forma de pêra, agitava-se suavemente, de um lado para outro. — O senhor tem mais alguma coisa a dizer? Alguma pergunta? Ambos irão ter uma noite muito ocupada e o tempo de que dispõem está-se tornando escasso. Quanto a mim, devo ir dormir. O navio que chega mensalmente deverá atracar amanhã e eu terei que supervisionar o carregamento. Passarei todo o dia no cais. Certo, sr. Bond?

Bond olhou para Honeychile. Ela estava mortalmente pálida. Olhava com olhar esgazeado, esperando pelo milagre que ele deveria operar. Bond olhou para as próprias mãos e examinou cuidadosamente as unhas. Depois, disse, para ganhar tempo: — E então, após seu dia ocupado com o carregamento, o que virá em seu programa? Qual o novo capítulo que o senhor pensa escrever?

Bond não levantou o olhar. A profunda e serena voz autoritária caiu sobre ele como se tivesse vindo do céu escuro.

— Ah, sim, o senhor deve ter estado a pensar nisso.

O senhor tem o hábito da investigação. Os hábitos persistem até o fim, até as sombras. Admiro tais qualidades num homem que tem apenas algumas horas mais para viver. Por isso, dir-lhe-ei. Encetarei um novo capítulo, e isso o consolará. Há muito mais nesta ilha do que uma simples guaneira. O seu instinto não o enganou, sr. Bond.

O Dr. No fez uma pausa para dar mais ênfase ao que iria dizer e continuou: — Esta ilha, sr. Bond, está em vésperas de se transformar num dos mais valiosos centros de informação técnica do mundo.

— De fato? — Bond mantinha os olhos fixos em suas mãos.

— Sem dúvida que o senhor não ignora que Turks Island, a trezentas milhas, de distância daqui, através de Windward Passage, constitui o mais importante centro para a experimentação de projéteis teleguiados dos Estados Unidos?

— Sim, é um importante centro de experiências.

— Talvez o senhor tenha lido sobre os foguetes que recentemente se desviaram de sua rota? O “Snark” de múltiplas fases, por exemplo, que terminou o seu vôo nas florestas do Brasil, ao invés de ir perder-se nas profundezas do Atlântico Sul?

— Sim.

— O senhor se lembrará que ele se recusou a obedecer as instruções que lhe foram enviadas por rádio, no sentido de modificar a sua rota, e até mesmo de se destruir a si mesmo. Ele desenvolvera uma vontade própria.

— Lembro-me.

— Houve outras falhas, falhas decisivas, na longa lista dos protótipos — o Zuni, o Matador, o Petrel, o Regulus, o Bomarc — tantos nomes, outras tantas modificações, nem posso lembrar-me deles todos. Bem, sr. Bond, — o Dr. No mal podia esconder uma nota de orgulho em sua voz — talvez lhe interesse saber que a maioria desses fracassos foi causada de Crab Key.

— É verdade?

— Não me acredita? Não tem importância. Outros acreditam-no. Outros que viram o abandono de toda uma série, o Mastodonte, em virtude de seus freqüentes erros de navegação, sua incapacidade de obedecer às ordens enviadas pelo rádio, de Turks Island. Esses outros são os russos. Os russos são meus sócios nesta empreitada. Treinaram seis dos meus homens, sr. Bond. Exatamente neste momento tenho dois desses homens observando, estudando as freqüências de rádio, as faixas nas quais trabalham esses engenhos. Há um milhão de dólares de instalações, nas galerias rochosas, acima de nossas cabeças, sr. Bond, enviando sinais para a camada de Heavyside, aguardando os sinais, perturbando-os, contrabalançando faixas com outras faixas. E, de vez em quando, um foguete sobe em seu itinerário e aprofunda-se cem, quinhentas milhas, pelo Atlântico, enquanto nós anotamos cuidadosamente a sua trajetória, com a mesma perfeição com que isto é feito na Sala de Operações de Turks Island. Em seguida, subitamente, as nossas pulsações são enviadas ao foguete, o seu cérebro é perturbado, ele enlouquece e mergulha no mar, destruindo-se. Foi mais uma experiência que fracassou. Os operários levam a culpa, assim como os projetistas e os fabricantes. Há pânico no Pentágono. Outra coisa deve ser tentada, freqüências diversas, metais diversos, um cérebro eletrônico diferente. Naturalmente que também temos as nossas dificuldades. Assim é que assinalamos muitos disparos experimentais sem sermos capazes de chegar até o cérebro do novo engenho. Então, comunicamo-nos urgentemente com Moscou. Com efeito, eles deram-nos até uma máquina de cifras com as nossas freqüências e rotinas. E os russos continuam pensando, fazem sugestões, e nós as experimentamos. Por fim, sr. Bond, um belo dia, é como se atraíssemos a atenção de um homem perdido numa multidão. Lá no alto, na estratosfera, o foguete reconhece o nosso sinal. Somos reconhecidos e podemos falar com ele e modificar os seus pensamentos. — O Dr. No fez uma pausa e depois continuou: — O senhor não acha isso interessante, esta variante de meus negócios com o guano? Asseguro-lhe que é um negócio muito lucrativo, e podia sê-lo ainda mais. Talvez a China comunista venha a pagar mais pelos meus serviços. Quem sabe? Já tenho os meus agentes em campo, para sondagens.

Bond ergueu os olhos, olhando pensativamente para o Dr. No. Então ele tinha tido razão. Havia mesmo mais alguma coisa, muito mais, em tudo aquilo que os seus olhos tinham visto. Aquilo era uma grande partida, uma partida que explicava tudo, uma partida que no mercado internacional da espionagem bem valia a pena ser jogada. Bem, bem! Agora, as peças do quebra-cabeças tinham caído corretamente em seus lugares. Para isso tinha valido a pena, certamente, assustar alguns pássaros e eliminar algumas pessoas. Isolamento? Naturalmente que o Dr. No teria que matar a ele e à jovem. Poder? Sim, isso era poder. O Dr. No se tinha realmente lançado nos negócios.

Bond fixou os dois orifícios negros com um novo respeito, e observou: — O senhor terá que matar muito mais gente para manter isto em suas mãos, Dr. No. Isto vale muito dinheiro. O senhor tem aqui uma bela propriedade, superior ao que eu pensava, e as pessoas hão-de querer um pedaço deste bolo. Penso em quem será o primeiro a chegar até o senhor e matá-lo. Serão aqueles homens que estão lá em cima, treinados por Moscou? — e ele fez um gesto apontando para o teto. Depois continuou: — Eles são os técnicos. Eu me pergunto: o que Moscou estará lhes ordenando que façam? O senhor não poderia estar a par disso, poderia?

O Dr. No respondeu: — Vejo que continua subestimando meu valor, sr. Bond. O senhor é um homem obstinado e mais estúpido do que pensava. É claro que estou consciente dessas possibilidades. Separei um desses homens e transformei-o numa espécie de vigilante particular. Ele tem uma duplicata das cifras e da máquina. Vive em outra parte da montanha. Os outros pensam que ele morreu, mas ele está bem vivo a fiscalizar a cronometragem de rotina, e entrega-me diariamente uma cópia do tráfego que é registrado. Até agora os sinais emitidos por Moscou têm sido inocentes e não indicam qualquer conspiração. Penso em tudo isso constantemente, sr. Bond. Tomo precauções e ainda as multiplicarei para o futuro. Como disse, o senhor me tem subestimado.

— Não o subestimo, Dr. No. O senhor é um homem muito prudente, mas já há muitas pastas sobre o senhor. Em minha linha de atividades, a mesma coisa se aplica a mim, mas as suas pastas são muito perigosas. A chinesa, por exemplo. Não gostaria de ter uma com essa gente. A da FBI deve ser a menos penosa — roubo e falsa identidade. Mas o senhor conhece os russos tão bem quanto eu? Por enquanto o senhor é “o melhor amigo” deles. Mas os russos não têm sócios. Hão-de querer comprá-lo... — comprá-lo com um balaço. Depois vem a pasta que o senhor abriu com o meu serviço. O senhor quererá mesmo fazê-la mais volumosa? Eu não o faria se estivesse em seu lugar, Dr. No. O pessoal do meu serviço é muito obstinado. Se alguma coisa me acontecer e à jovem, o senhor verificará que Crab Key é uma ilha muito pequena e insignificante.

— Não se pode jogar grandes partidas sem assumir riscos, senhor Bond. Aceito os perigos e, até onde posso, procuro defender-me deles. Como vê — e a sua voz tinha um acento de cupidez — estou em vésperas de coisas muito maiores. O capítulo dois, ao qual já me referi, encerra promessa de prêmios que ninguém, a não ser um tolo, jogaria fora por ter medo. Já lhe disse que posso desviar os raios magnéticos por onde viajam os foguetes. Posso fazer com que estes mudem de rota e não obedeçam ao controle eletrônico. Que diria o senhor, se eu fosse ainda mais longe? Se eu os fizesse cair nesta ilha, a fim de recolher todos os segredos de sua construção? Atualmente, destróieres norte-americanos, nos confins do Atlântico Sul, recolhem esses foguetes quando eles esgotam o seu combustível e caem de pára-quedas sobre o mar. Algumas vezes os pára-quedas deixam de se abrir, e algumas vezes as instalações de autodestruição deixam de operar.

Ninguém em Turks Island se sentiria surpreendido se de vez em quando o protótipo de uma nova série saísse de sua trajetória e caísse perto de Crab Key. Antes de mais nada, isto seria atribuído a falhas mecânicas. Mais tarde talvez descobrissem que outros sinais, que não os seus, tinham estado a guiar os seus foguetes. Teria início, então uma guerra de freqüência. Tentariam e conseguiriam localizar a origem dos sinais falsos, mas assim que eu verificasse que eles estavam à minha caça, teria uma derradeira cartada. Os seus foguetes enlouqueceriam. Cairiam em Havana, em Kingston; dariam uma volta e despencariam sobre Miami. Mesmo sem as cargas detonantes, Sr. Bond, cinco toneladas de metal, chocando-se a mil milhas por hora, podem causar terríveis danos numa cidade super-povoada. E depois? Haveria pânico, haveria um clamor público. As experiências teriam de ser interrompidas. A base de Turks Island teria que fechar. E quanto não pagariam os russos para que isso acontecesse, sr. Bond? E quanto por protótipo que eu capturasse para eles? Digamos dez milhões de dólares por toda a operação? Vinte milhões? Seria uma vitória sem preço na corrida dos armamentos. Posso fazer o meu preço, não concorda, sr. Bond? E não concorda também que essas considerações tornam os seus argumentos e ameaças engraçadíssimos?

Bond não respondeu. Nada havia a dizer. Subitamente se viu em pensamento naquela sala tranqüila de Regents Park. Podia ouvir a chuva batendo suavemente contra a janela e a voz de M, impaciente e sarcástica, dizendo: “Oh, algum maldito negócio em torno de aves... umas férias ao sol lhe farão bem... investigações rotineiras.” E ele, Bond, tinha apanhado uma canoa, um caniço e um farnel de piquenique e partira — há quantos dias, há quantas semanas? — “para dar uma espiada”. Bem, ele tinha dado uma espiada na caixa de Pandora. E tinha tido as respostas, conhecera os segredos — e agora? Agora iriam mostrar-lhe polidamente o caminho para a sepultura, para onde ele levaria consigo o seus segredos arrancados e arrastados por ele em sua lunática aventura. Toda a amargura que lhe ia no íntimo aforou à boca, de modo que por um momento pensou que ia vomitar. Apanhou o copo e esvaziou todo o resto de champanha que nele havia. Depois disse asperamente: — Muito bem, Dr. No. Agora vamos ao cabaré. Qual é o programa — faca, bala, veneno, corda? Mas proceda rapidamente, já o vi bastante.

Os lábios do Dr. No se apertaram numa fina linha arroxeada. Os olhos eram duros como ônix, sob a bola de bilhar de sua fronte e crânio. A máscara de polidez tinha desaparecido. O Grande Inquisidor sentava-se na cadeira de alto espaldar. Tinha soado a hora para a “peine forte et dure”.

O Dr. No proferiu uma palavra e os dois guardas avançaram um passo e agarraram as suas vitimas pelos braços, acima dos cotovelos, mantendo-as imobilizadas para trás, apoiadas nos lados das cadeiras. Não houve resistência. Bond concentrou-se em manter o isqueiro sob o sovaco. As luvas brancas em seus bíceps pareciam faixas de aço. Sorriu para a jovem. — Desculpe-me por isso, Honey, — disse. — Receio que afinal de contas não possamos mais brincar juntos.

Os olhos da jovem, em seu rosto pálido, tinham ficado azul-escuros, pelo medo. Seus lábios tremiam, e ela perguntou: — Doerá muito?

— Silencio! — A voz do Dr. No soou como o estalar de um chicote. — Chega de tolices. Naturalmente que doerá. Estou interessado na dor. E estou igualmente interessado em descobrir quanto de dor o corpo humano pode suportar. De vez em quando faço experiências com os meus subordinados que devem ser punidos, e em intrusos como os senhores. Acarretaram-me os senhores grandes dificuldades. Em troca, pretendo causar-lhes uma grande soma de dor. Registrarei os níveis de suas resistências. Os fatos serão anotados, e um dia as minhas pesquisas serão relatadas ao mundo. As suas mortes terão servido à Ciência. Nunca desperdiço material humano. As experiências feitas pelos alemães com seres humanos vivos, durante a guerra, foram de grande proveito para a Ciência. Faz um ano que pus uma mulher para morrer da maneira que escolhi para a senhora. Ela era uma negra e durou três horas, mas morreu de terror. Queria agora fazer a experiência com uma mulher branca, para poder estabelecer uma comparação. Não me surpreendi quando a sua chegada me foi comunicada. Consigo sempre o que quero. — O Dr. No reclinou-se para trás na cadeira. Seus olhos estavam agora fixos na jovem, estudando-lhe as reações. Honeychile correspondia ao olhar, como que meio hipnotizada, como um rato do mato diante de uma cascavel.

Bond apertou os dentes.

— A senhora é uma jamaicana, por isso saberá o que quero dizer. Esta ilha chama-se Crab Key. Recebeu este nome porque está infestada de caranguejos — o que chamam em Jamaica “caranguejos negros”. A senhora os conhece. Pesam meio quilo, cada um, e têm o tamanho de um pires. Nesta época do ano eles saem aos milhares de seus esconderijos, próximos à costa, e sobem em direção à montanha. Lá, nos planaltos de coral, eles se alojam novamente em buracos da rocha, onde desovam. Avançam em exércitos de centenas, de cada vez. Atravessam tudo e sobre tudo. Em Jamaica eles invadem as casas e não se desviam de seu caminho. São como certos roedores da Noruega. É uma migração irresistível. — O Dr. No fez uma pausa. Em seguida acrescentou suavemente: — Mas há uma diferença. Os caranguejos devoram o que encontram em seu caminho. E agora, minha senhora, eles já estão em marcha. Estão galgando as faldas da montanha, às dezenas de milhares, em ondas negras e vermelho-laranja. Estão, neste momento, se apressando e se empurrando e arranhando a rocha acima de nós. E esta noite, no meio do seu caminho, eles vão encontrar o corpo nu de uma mulher sòlidamente preso — um banquete preparado para eles — e vão apalpar o corpo morno com suas pinças, e um deles dará o primeiro corte com suas garras de combate e então... e então...

A moça gemeu. Sua cabeça caiu para a frente sobre o peito. Desmaiara. O corpo de Bond inteiriçou-se na cadeira. Uma torrente de palavras obscenas escapou por entre seus dentes cerrados. As manoplas dos guardas pareciam-lhe ferro à volta dos braços. Nem sequer podia fazer deslizar os pés da cadeira no chão. Depois de um momento de luta, desistiu. Esperou que sua voz se acalmasse, e disse então, com todo o veneno que podia instilar nas palavras:

— Seu bastardo! Você há-de frigir no inferno se fizer isso!

O Dr. No sorriu fracamente.

— Senhor Bond, não acredito na existência do inferno. Procure consolar-se. Talvez eles comecem pela garganta ou pelo coração. O bater do pulso ainda os poderá atrair. Depois disso, tudo acabará depressa.

Proferiu então uma sentença em chinês. O guarda que estava atrás da cadeira da moça inclinou-se para a frente, levantou-a da cadeira como se fora uma criança e atirou-a por cima do ombro. Os belos cabelos caíam qual cascata de ouro entre os braços inertes. O guarda foi à porta, abriu-a e saiu, formando a fechá-la sem ruído.

Por um momento, reinou, silêncio na sala. Bond pensava somente na faca encostada ao seu ventre e no isqueiro debaixo da axila. Qual a extensão dos estragos que ele poderia causar com aqueles dois pedaços de metal? Poderia, de algum modo, aproximar-se do Dr. No?

O Dr. No continuou serenamente: — O senhor disse que o poder era uma ilusão, sr. Bond. Não modifica a sua opinião? O meu poder de escolher a morte que quiser para essa jovem certamente que não é uma ilusão. Todavia, passemos ao método de sua morte. Isso também encerra aspectos novos. Saiba, sr. Bond, que estou interessado na anatomia da coragem — do poder de resistência do corpo humano. Mas como medir a resistência humana? Como traçar um gráfico da vontade de sobrevivência, da tolerância à dor, da conquista do medo? Pensei muito nesse problema e acredito tê-lo solucionado. Trata-se, por enquanto, de um método incompleto e grosseiro, mas que será aperfeiçoado na medida em que as experiências se forem multiplicando. Preparei o senhor para essa experiência. Dei-lhe um sedativo, de modo que o seu corpo esteja descansado, e alimentei-o bem, de modo que possa estar no gozo completo de suas forças. Os futuros — como os chamarei — pacientes, terão as mesmas vantagens. Todos começarão nas mesmas condições. Depois disso, o restante será uma questão de coragem e do poder de resistência individuais.

O Dr. No fez uma pausa, enquanto observava o rosto de Bond. Depois prosseguiu: — Saiba ainda, sr. Bond, que justamente agora acabo de construir uma espécie de pista de obstáculos, uma espécie de pista de corrida contra a morte. Não direi mais sobre isso porque o elemento surpresa é um dos que aparecem na formação do medo. Os perigos desconhecidos são os piores, os que mais pressionam as reservas de coragem. E me alegro com a idéia de que a corrida de obstáculos que o senhor enfrentará contém um rico sortimento de coisas inesperadas. Será particularmente interessante sr. Bond, que um homem com as suas qualidades físicas seja o meu primeiro competidor. Será interessantíssimo ver até onde o senhor conseguirá alcançar, na pista que idealizei. Não há dúvida de que o senhor estabelecerá uma marca invejável para os futuros corredores. Tenho grandes esperanças no senhor. O senhor deverá ir muito longe, mas quando tombar, inevitavelmente, diante de um obstáculo, seu corpo será recolhido e eu examinarei meticulosamente os seus restos. Os dados assim colhidos serão registrados e o senhor representará o primeiro ponto de um gráfico. Algo honroso, não é, senhor Bond?

Bond nada respondeu. Que diabo significaria tudo aquilo? Em que poderia consistir aquela prova? Seria possível escapar dela com vida? Poderia escapar disso e salvar Honeychile antes que fosse demasiado tarde, ainda que para matá-la e assim salvá-la da tortura? Silenciosamente, Bond ia reunindo suas reservas de coragem, retemperando a mente contra o temor do desconhecido que já começava a envolver a sua garganta, e focalizando a sua vontade no alvo da sobrevivência. Acima de tudo, deveria apegar-se às suas armas.

O Dr. No levantou-se e afastou-se da cadeira. Caminhou vagarosamente até a porta e voltou-se. Seus olhos negros e ameaçadores fixavam Bond, pouco abaixo da armação da porta. A cabeça estava ligeiramente inclinada e os lábios finos tornaram a se mexer: — Faça uma boa corrida para mim, sr. Bond. Meus pensamentos, como se costuma dizer, o acompanharão.

O Dr. No afastou-se e a porta fechou-se suavemente por trás de seus costados amarelos.


XVII - O PROLONGADO GRITO


Havia um homem no elevador, cujas portas estavam abertas, à espera. James Bond, com os braços ainda torcidos, junto aos flancos, foi impelido para dentro do elevador. Agora, a sala de jantar estava vazia. Quando voltariam os guardas para desembaraçar a mesa e então notar o desaparecimento dos objetos subtraídos? As portas fecharam-se e o cabineiro ficou diante dos botões, de modo que Bond não pôde ver qual deles teria sido apertado. Sabia apenas que estavam, subindo, e tentou fazer um cálculo da distância percorrida. O elevador parou, e Bond teve a impressão de que o tempo gasto naquele percurso fora menor do que quando descera juntamente com Honeychile. As portas abriram-se para um corredor sem tapete, com uma pintura cinzenta e rústica nas paredes de granito. Esse corredor ia numa linha reta até uma distância de vinte metros.

— Espere aí — disse o guarda de Bond para o cabineiro — voltarei logo.

Bond foi conduzido ao longo do corredor, passando diante de portas marcadas com letras do alfabeto. Ouvia-se um leve zunido de maquinaria no ar, e, por trás de uma porta, Bond teve a impressão de ouvir descargas estáticas de equipamento eletrônico. Aquilo parecia vir da sala de máquinas, no coração da montanha. Logo chegaram à porta da extremidade do corredor que estava marcada com um Q negro. Ela estava entreaberta, de modo que logo se escancarou quando Bond foi empurrado através dela. Por trás daquela porta estava uma cela pintada de cinzento, com cerca de quinze pés quadrados. Nela nada havia, a não ser uma cadeira de madeira, sobre a qual estavam, lavadas e cuidadosamente dobradas, as calças pretas de Bond e a sua camisa azul.

O guarda soltou os braços de Bond, que logo se voltou e olhou para o rosto amarelo, sob os cabelos ondeados. Havia um leve sinal de curiosidade e prazer nos olhos marrons e úmidos. O homem estava de pé, segurando a maçaneta da porta. — Bem, aqui estamos, rapaz. Você está no ponto de partida. Poderá ficar aí sentado, apodrecendo, ou procurar uma saída e iniciar a corrida. Felicidades para você.

Bond pensou que valeria a pena tentá-lo. Deu ainda uma olhadela para além do guarda, onde o cabineiro ainda se conservava ao lado de suas portas abertas, observando-os.

Então disse suavemente: — Você não gostaria de ganhar dez mil dólares, garantidos, e uma passagem para qualquer lugar do mundo que desejasse? — Dito isso, observou cuidadosamente as reações do homem. A boca se abriu numa ampla careta, mostrando dentes escurecidos, desigualmente gastos pelos anos de mascagem de cana-de-açúcar.

— Muito obrigado, senhor. Prefiro continuar vivendo. — O homem fez menção de fechar a porta e Bond ainda gritou ansiosamente: — Podemos sair juntos daqui.

Os grossos lábios fizeram uma careta de desprezo, e o homem apenas disse: “Vá em frente!” E logo a porta se fechou com um duro estalido.

Bond deu de ombros, mas logo passou a examinar a porta. Era feita de metal e não havia maçaneta do lado de dentro. Bond preferiu não experimentar o ombro de encontro àquela barreira. Aproximou-se da cadeira, sentou-se sobre a pilha de suas roupas limpas, e olhou à volta da cela. As paredes eram inteiramente nuas, com exceção de uma grade para ventilação, feita de arame grosso, num dos cantos, logo abaixo do teto. Aquela abertura era maior que os seus ombros. Era, evidentemente, a entrada para a pista dos obstáculos. A única abertura restante, naquele recinto, era uma espécie de vigia de espesso vidro, logo acima da porta, e que não seria maior do que a cabeça de Bond. A luz, vinda do corredor, atravessava aquela grade e penetrava na cela. Nada mais havia. Não seria inteligente perder tempo. Seriam dez e meia. Lá fora, em alguma parte da falda da montanha, a jovem já deveria estar deitada, estendida sobre o chão, à espera do matraquear das pinças no coral cinzento. Bond apertou os dentes ao pensamento daquele corpo frágil e indefeso sob as estrelas. Bruscamente, pôs-se de pé. Que diabo estava ele fazendo ali sentado? O que quer que existisse do outro lado da grade deveria ser imediatamente enfrentado.

Bond apanhou a faca e o isqueiro, e tirou o quimono. Em seguida vestiu as calças e a camisa, enfiando o isqueiro no bolso. Experimentou o corte da faca com o polegar, e verificou que a lamina era bastante afiada. Seria ainda melhor se pudesse fazer uma ponta naquela lâmina. Ajoelhou-se no chão e começou a esfregar a extremidade arredondada da faca na laje do pavimento. Depois de um precioso quarto de hora, deu-se por satisfeito. Não era um estilete, mas que tanto serviria para cortar como para espetar. Colocou-a então entre os dentes e arrastou a cadeira para baixo da abertura gradeada. A grade? Supondo que pudesse arrancá-la pela base, aquele arame bem poderia ser esticado, de modo a formar uma lança, facultando-lhe assim uma terceira arma. Bond esticou os braços, com os dedos encurvados.

A coisa imediata de que tomou consciência foi uma dor de queimadura ao longo do braço e o choque de sua cabeça, ao atingir o chão de pedra. Ficou durante algum tempo estendido no solo, apenas com a lembrança de uma faísca azulada e o estalido e o chiado seco de eletricidade.

Depois de algum tempo, Bond pôs-se de joelhos e assim ficou por um momento. Em seguida baixou a cabeça e sacudiu-a lentamente de um lado para outro, como um animal ferido. Sentiu um leve odor de carne queimada. Levantou a mão direita à altura dos olhos e viu a mancha vermelha de uma queimadura aberta ao longo da parte interna dos dedos. A visão daquele ferimento trouxe-lhe também a consciência da dor. Bond proferiu uma imprecação. Vagarosamente pôs-se de pé. Dessa vez, olhou de soslaio, cautelosamente, para a grade, como se ela fosse feri-lo novamente. Irritado, encostou a cadeira na parede, apanhou a faca e com ela cortou uma faixa do quimono, envolvendo-a firmemente nos dedos. Em seguida tornou a subir na cadeira e olhou para a grade. Esperava-se que ele a atravessasse, e aquele choque tinha sido calculado apenas para amolecê-lo: era uma amostra do que estaria por vir. Com certeza o curto-circuito causado por ele já tinha posto fora de combate aquela armadilha. Olhou para a grade apenas por um instante, e já os dedos de sua mão esquerda a atingiam e atravessavam. Do outro lado não havia nada. Seria mesmo só aquela grade? Puxou a armação e ela cedeu uma polegada. Fez novo esforço e a grade foi arrancada do lugar, ficando pendurada por dois fios de cobre que desapareciam no interior da parede. Bond soltou a grade das pontas daqueles fios e desceu da cadeira. Havia um ponto de junção no arame de ferro, naquela grade, e Bond pôs-se a retificá-la, usando a cadeira como martelo.

Depois de dez minutos tinha à sua disposição um chuço recurvado de cerca de um metro de comprimento. Uma des extremidades, que tinha sido originalmente cortada por alicates, apresentava-se lacerada. Não atravessaria as roupas de um homem, mas teria efeito devastador no pescoço ou no rosto. Lançando mão de toda sua força e servindo-se da fresta inferior da porta metálica, Bond conseguiu fazer ainda um gancho com a extremidade rombuda daquele arame de ferro. Em seguida mediu-o com a perna e achou que aquela nova arma era demasiado longa. Em conseqüência, dobrou-a em dois e enfiou-a numa das pernas da calça. Agora, o chuço ia de sua cintura, onde fora pendurado, até o joelho. Voltou então para a cadeira e tornou a subir até a boca do ventilador, agora desobstruída. Não experimentou mais choque. Ergueu o corpo e introduziu-o naquele tubo que tinha mais quatro polegadas que a largura de seus ombros. Durante algum tempo deixou-se ficar, de barriga para baixo, a olhar para o interior da abertura. O túnel era circular e de metal polido. Bond apanhou o isqueiro, abençoando a inspiração que o fizera roubá-lo, e acionou-o. Sim, aquilo era folha de zinco que parecia nova. O túnel continuava em linha reta, sem qualquer característica especial, a não ser as costuras de junção das várias seções tubulares. Bond tornou a meter o isqueiro no bolso e foi-se arrastando para a frente.

Aquele deslizamento não foi difícil, e até mesmo uma brisa fresca, proveniente do sistema de ventilação, afagava o rosto de Bond. O ar não trazia nenhum cheiro de mar, sendo o seu odor o mesmo que caracteriza o ar de uma instalação de condicionamento de temperatura. O Dr. No devia ter lançado mão de um dos tubos do sistema para as suas experiências. Mas que armadilhas teria introduzido naquele tubo, a fim de pôr à prova as suas vítimas? Deviam ser engenhosas e dolorosíssimas — imaginadas para reduzir a resistência de suas vítimas. No final dos obstáculos, com certeza, a vítima seria surpreendida com o golpe de misericórdia — se é que lograsse chegar ao fim. Com efeito, haveria ali algo que não admitisse escapatória, pois nessa corrida não haveria prêmios, mas apenas padecimentos. A não ser, naturalmente, que o Dr. No tivesse subestimado a vontade de sobrevivência de seu desafeto. Essa, pensou Bond, era a sua única esperança — tentar vencer todos os obstáculos que se lhe deparassem, rompendo pelo menos até a última estacada.

Havia uma pálida luminosidade à sua frente. Bond foi-se arrastando cautelosamente, com todos os seus sentidos atuando como antenas. Aquela luminosidade foi-se tornando mais clara. Era o reflexo da luz que incidia sobre um dos lados da extremidade do tubo. Continuou avançando até que sua cabeça tocou naquela extremidade. Aí, Bond se torceu sobre as costas e olhou para cima. Sobre sua cabeça estava uma chaminé de cerca de cinqüenta metros de altura, em cujo topo havia uma claridade estável. Era como se alguém olhasse através de um comprido cano de canhão. Bond enfiou a cabeça por aquela chaminé e pôs-se de pé. Então, esperava-se que ele galgasse aquele tubo liso, sem qualquer apoio para os pés! Seria possível? Bond expandiu os ombros. Sim, eles lhe proporcionariam uma boa adesão às paredes laterais. Seus pés também o ajudariam na empreitada, embora escorregassem terrivelmente, a não ser nas orlas em que se soldavam os tubos. Bond deu de ombros e tirou os sapatos. Não adiantava monologar. Teria apenas que tentar.

Seis polegadas de cada vez, e o corpo de Bond começou a deslizar pela chaminé acima. A operação consistia em expandir os ombros para se fixar à chaminé, depois levantar os pés, unir os joelhos fortemente, e forçar os pés para fora, em direções opostas, contra o metal, e rapidamente contrair e expandir os ombros novamente, ao mesmo tempo que os pés escorregavam para baixo, deixando, entretanto, como saldo uma pequena progressão de algumas polegadas. E continuar repetindo, repetindo e repetindo a operação, até que os seus olhos fossem banhados pela luz que vira no topo da chaminé. De quando em quando pararia na saliência da solda dos tubos, a fim de descansar um pouco, recuperar o fôlego e medir o próximo avanço. E não havia que olhar para cima; apenas concentrar-se nas polegadas de metal que deveriam ser vencidas, uma a uma. Nada de preocupações com a luminosidade que pareceria nunca aumentar ou se aproximar. Também não deveria preocupar-se com a possibilidade de afrouxar a pressão dos ombros contra as paredes metálicas, indo esmagar os tornozelos no fundo da chaminé. E nenhuma preocupação com cãibras, com o inchaço dos ombros ou com as esfoladuras dos pés. Apenas ataque às polegadas prateadas, conquistando-as uma a uma.

Mas logo os pés começaram a suar e escorregar de modo desesperador. Por duas vezes Bond perdeu um metro, em virtude do escorregamento de seus ombros, que ficaram terrivelmente escalavrados com o atrito, antes de poder conseguir a freagem. Em certa altura teve mesmo que se deter durante algum tempo para esperar que o suor secasse com a corrente de ar que descia pela chaminé. Essa pausa durou dez minutos, durante os quais ele se viu apagadamente refletido na superfície metálica, com o rosto dividido ao meio pela faca que segurava entre os dentes. Ainda assim recusou-se a olhar para cima, a fim de ver quantos metros teria que vencer. Aquela derradeira seção poderia ser muito longa. Cuidadosamente Bond esfregou cada pé num cano de calça e recomeçou a batalha.

Agora, parte de sua mente sonhava, enquanto a outra se empenhava na luta. Nem mesmo estava consciente de que a luminosidade se ia acentuando lentamente e que a brisa se tornava mais forte. Via-se apenas como uma lagarta ferida, arrastando-se por um cano de descarga em direção a um ralo de banheira. O que veria quando atravessasse o ralo? Uma jovem nua se enxugando? Um homem fazendo a barba? A luz do sol filtrando-se para dentro de um banheiro Vazio?

A cabeça de Bond bateu de encontro a alguma coisa. O ralo estava obstruindo o orifício! O choque do desapontamento fez que escorregasse uma polegada, antes que seus ombros pudessem retê-lo firmemente. Então compreendeu que tinha chegado ao topo da chaminé! Agora notava a luz forte e o vento impetuoso. Ansiosamente, ele se alçou novamente até que a cabeça tocou em algo. O vento soprava contra sua orelha esquerda. Cautelosamente, voltou a cabeça para essa direção. Era outro tubo lateral. Acima de sua cabeça a luz se escoava através de uma espessa vigia. Tudo o que tinha a fazer era contornar aquela derivação, agarrando-se à orla do novo tubo, e, de qualquer maneira, encontrar forças para se introduzir naquele túnel lateral. Então poderia descansar um pouco, deitado.

Com redobrada cautela, nascida do pânico de que algo agora podia acontecer, de que poderia cometer um erro e ser precipitado no fundo da chaminé, Bond empreendeu a manobra, com suas últimas reservas de forças, e introduzindo-se na nova caverna caiu estirado com o rosto para baixo.

Mais tarde — quanto tempo mais tarde? — os olhos de Bond se abriram e seu corpo estremeceu. O frio o tinha despertado da total inconsciência em que o seu corpo o teria lançado. Penosamente, virou-se de costas, com pés e ombros doendo terrivelmente, e procurou reunir todas as forças mentais e físicas. Não tinha a mínima idéia da hora ou do lugar em que estaria no interior da montanha. Levantou a cabeça e olhou para trás, em direção à vigia, sobre o tubo vertical, do qual escapara. A luz era amarelada e o vidro parecia muito grosso. Lembrou-se da vigia existente na sala Q. Aquela vigia era absolutamente inquebrável, e esta também o seria, pensou ele.

Subitamente, por trás daquele vidro, distinguiu movimento. Enquanto observava, um par de olhos se materializaram, por trás de lâmpadas elétricas. Aqueles olhos pararam e fitaram-no, com o farolete parecendo um nariz entre aqueles dois olhos. Fixaram-no negligentemente e depois desapareceram. Os lábios de Bond explodiram numa imprecação. Então o seu progresso estava sendo observado para ser levado ao conhecimento do Dr. No.

Bond disse em voz alta: “Para o diabo com todos eles!”,, e voltou-se colérico sobre o ventre. Levantou a cabeça e olhou para a frente. O túnel desaparecia na escuridão. Para a frente! Não adianta nada perder tempo aqui. Apanhou a faca, colocou-a entre os dentes e foi abrindo caminho.

Em breve já não havia mais nenhuma luminosidade. Bond detinha-se de quando em quando para acender o isqueiro mas nada encontrava a não ser trevas. O ar começou a se tornar mais cálido, dentro do túnel, e, depois de uns cinqüenta metros talvez, decididamente quente. Havia mesmo cheiro de calor no ar, de calor metálico. Bond começou a suar.. Dentro de alguns minutos seu corpo estava completamente encharcado e ele tinha que parar para limpar os olhos. Deu uma volta à direita, no tubo, e, na nova seção, sentiu o metal bastante quente contra a sua pele. O cheiro de calor metálico era agora bem acentuado. Assim que enfiou a cabeça no novo túnel, tirou o isqueiro do bolso, acendeu-o e rapidamente recuou. Amargamente, considerou a nova dificuldade, medindo-a e amaldiçoando-a. A chama de seu isqueiro tinha iluminado uma seção de tubos de zinco descolorido. A nova dificuldade seria o calor!

Bond resmungou alto. Como a sua carne já esfolada poderia resistir àquilo? Como poderia proteger a pele contra o metal? Mas não havia solução satisfatória. Ou voltaria, ou continuaria ali parado ou, afinal, avançaria. Não havia outra decisão a tomar. Aliás, Bond começava a encontrar algum consolo em suas reflexões. Com efeito, não seria o calor que haveria de matá-lo, mas alguma mutilação. O metal aquecido não seria o seu campo de sacrifício — apenas mais uma prova para medir-lhe a resistência.

Bond pensou na jovem e no que ela estaria sofrendo. Oh, sim, para a frente com aquilo. Agora, vejamos...

Bond apanhou a faca e cortou toda a parte da frente da camisa, fazendo com ela várias faixas. A única esperança estaria em dar alguma proteção às partes de seu corpo que mais sofreriam a ação do calor, isto é, os pés e as mãos. Seus joelhos e cotovelos teriam de resistir apenas com a proteção normal da fina camada de roupa. E, assim, dispôs-se à luta, amaldiçoando-a.

Agora estava pronto. Um, dois, três...

Bond dobrou o ângulo do túnel e lançou-se contra o foco de calor.

Mantenha a barriga nua distante do chão! Contraia os ombros! Mãos, joelhos, pés; mãos. joelhos, pés. Mais depressa! Mais depressa! Sempre mais depressa, de modo que cada toque contra o chão seja rapidamente seguido por outro.

Os joelhos é que mais estavam sofrendo, agüentando a maior parte do peso do corpo. Agora, as mãos envoltas em panos estavam começando a chamuscar. Acendeu-se uma fagulha, e logo outra, e em seguida surgiram chamas, quando as fagulhas começaram a se deslocar. A fumaça que saía daquele envoltório de pano de suas mãos fazia que os seus olhos ardessem penosamente. Por Deus, ele não agüentaria mais! Não havia mais ar. Seus pulmões estavam a ponto de estourar. Agora as suas duas mãos estavam lançando fagulhas para os lados. O tecido devia estar quase acabado; então a carne começaria a queimar. Bond deu um guinada e seu ombro ferido tocou no metal. Um grito de dor ecoou no túnel, logo seguido de outros gritos proferidos regularmente, quando suas mãos, pés ou joelhos tocavam no metal escaldante. Agora ele estava liquidado. Era o fim. Mais alguns segundos e iria cair de borco, morrendo literalmente queimado. Não! Devia opor um supremo esforço de reação, ainda que aos berros, até que toda a carne tivesse sido queimada até os ossos. A pele dos joelhos já devia ter sido completamente destruída. Mais um pouco e as palmas de suas mãos estariam tocando no metal. Apenas o suor que corria de seus braços poderia manter úmido o pano de suas mãos. Grite, grite, grite! Isto aliviará a dor.” Isto dirá que você está vivo. Continue! Continue! Não pode durar muito mais. Não é aqui que você deverá morrer. Não fraqueje! Você não pode!

A mão direita de Bond tocou em alguma coisa que cedeu. Logo sentiu uma corrente de ar frio. A outra mão bateu então em sua cabeça. Ouviu-se um débil ruído. Bond sentiu a orla inferior de um anteparo de amianto, articulado na parte superior do tubo, e que agora se arrastava em suas costas. Tinha vencido aquela prova. Ouviu o barulho daquele anteparo fechando-se novamente, depois de ter dado passagem a todo o seu corpo. Suas mãos estavam agora encostadas numa sólida parede. Com os dedos, apalpou à direita e à esquerda. Era um desvio em ângulo reto. Seu corpo seguiu cegamente volta do desvio e o ar frio parecia penetrar em seus pulmões como lâminas de aço geladas. Prudentemente, encostou os dedos no metal. Estava frio! Com um gemido Bond caiu sobre o rosto e ficou quieto.

Algum tempo depois, a dor tornou a reavivá-lo. Bond voltou-se dolentemente, de costas. Vagamente notou uma vigia de vidro acima de sua cabeça, e vagamente percebeu aquele mesmo par de olhos a fitá-lo. Depois, deixou novamente que as ondas de trevas o submergissem.

Aos poucos, na escuridão, as bolhas feitas em toda a pele e os pés e ombros queimados começaram a endurecer. O suor tinha-se secado no corpo e nos farrapos da roupa, enquanto o ar penetrara nos pulmões superaquecidos, começando o seu insidioso trabalho. Mas o coração continuava batendo, forte e regularmente, por dentro da torturada carcaça, e os poderes mágicos do oxigênio levaram nova vida para dentro das artérias e veias, recarregando os nervos.

Depois de um tempo que lhe pareceu infinito, Bond despertou. Estremeceu, e, ao encontrarem-se os seus olhos com o outro par que o espreitava, por trás do vidro, a dor se apoderou dele e sacudiu-o como se fosse um rato. Esperou que aquela descarga de dor o matasse. Tentou novamente, e novamente, até que conseguiu aquilatar toda a força do adversário. Em seguida, para esconder-se da testemunha, voltou-se sobre o estômago e resistiu a toda a dor que vinha de dentro de si próprio. Continuou em expectativa, explorando o corpo para verificar-lhe as reações, pondo à prova a força de decisão que ainda tivesse restado nas baterias. Quanto mais poderia ainda agüentar? Os lábios de Bond desprenderam-se dos dentes e ele rosnou na escuridão. Era um som animal. Tinha chegado ao fim de suas reações humanas à dor e à adversidade. O Dr. No o tinha encurralado. Mas ainda restavam reservas de desespero animal e, num animal forte, essas reservas são consideráveis.

Lentamente, em verdadeira agonia, Bond deslizou mais alguns metros para fora do campo visual daqueles olhos e procurou o seu isqueiro, acendendo-o. À sua frente via apenas uma lua cheia negra, a boca circular que o levaria ao estômago da morte. Bond guardou o isqueiro, respirou profundamente e pôs-se sobre os joelhos e mãos. A dor não foi maior, apenas diferente. Lentamente, com movimentos duramente articulados, avançou.

O tecido de algodão de seus joelhos e de seus cotovelos tinha sido completamente queimado. Entorpecidamente, seu cérebro foi registrando a umidade à medida que suas bolhas se abriam contra o metal frio. Enquanto se movia, ia simultaneamente flexionando os dedos e os pés, sentindo-lhes a dor. Lentamente foi sabendo o que poderia fazer, o que doeria menos. Esta dor é suportável, refletiu ele consigo mesmo. Se eu tivesse sofrido um desastre de avião, eles diagnosticariam apenas contusões e queimaduras superficiais. Teria alta do hospital dentro de alguns dias. Não há nada de sério comigo. Sou um sobrevivente de desastre. Dói, mas não é nada. Pense nos pedaços de carnes dos outros passageiros. Dê-se por feliz. Tire isso de sua cabeça. Mas, por trás de todas essa reflexões, estava o pensamento de que, em verdade, ele ainda não experimentara o desastre, — que ainda estava a caminho dele, com sua resistência e sua capacidade muito reduzidas. Quando chegaria ele? Que caráter teria? E quanto mais ainda seria ele amolecido antes de chegar à arena do sacrifício?

à frente, na escuridão, aqueles pequeninos pontos vermelhos bem poderiam ser uma alucinação, manchas rubras diante de seus olhos, causadas pela exaustão. Bond parou e apertou os olhos. Balançou a cabeça. Não, aqueles pontinhos vermelhos ainda estavam lá. Vagarosamente, arrastou-se para mais perto deles. Agora não havia dúvida de que eles se estavam movendo. Bond deteve-se novamente. Alem das batidas de seu coração, ouvia uma espécie de murmúrio suave e delicado. Aqueles pontinhos do tamanho de uma cabeça de alfinete tinham aumentado. Agora haveria vinte ou trinta, deslocando-se para a frente e para trás, alguns rapidamente, outros mais vagarosamente, em todo o círculo negro que o esperava à frente. Susteve o fôlego, assim que conseguiu acender o isqueiro. Os pontinhos vermelhos tinham desaparecido. Substituindo-os, ele viu a um metro de distância, à sua frente, uma tela muito fina, quase da finura de musselina, bloqueando o túnel.

Bond continuou deslocando-se por centímetros, para diante, com o isqueiro aceso à frente. Aquilo era uma espécie de gaiola, com pequeninos animais no seu interior. Podia ouvir aqueles diminutos seres fugindo à luz. A um pé apenas da tela apagou a luz e esperou que seus olhos se acostumassem à escuridão. Enquanto esperava, escutando, pôde ouvir novamente os pequeninos animais aproximarem-se dele, e, gradualmente, aquela floresta de pequeninos pontinhos vermelhos começou a se juntar, fitando-o através da tela.

Que seria aquilo? Bond ouviu seu coração bater com força. Serpentes? Escorpiões? Centopéias?

Cuidadosamente, foi aproximando os olhos daquela floresta de pontos luminosos. Aproximou o isqueiro bem junto da tela e acendeu-o bruscamente. Pôde apreender, num relance, a visão de pequeninas patas que atravessavam a tela e de dezenas de pés cabeludos e de ventres igualmente cabeludos com a forma de sacos, tendo em determinado ponto grandes cabeças de insetos que pareciam cobertas de olhos. Os animais fugiam em precipitada corrida, abandonando a tela da frente para irem refugiar-se na extremidade oposta da gaiola, formando uma só massa cinza-marrom.

Bond olhou através da tela, movendo o isqueiro para a frente e para trás. Depois apagou-o para economizar gasolina, e deixou que a respiração saísse por entre os dentes, num tranqüilo suspiro.

Eram aranhas, gigantescas tarântulas, de três ou quatro polegadas de comprimento. Haveria umas vinte delas dentro daquela gaiola. E, de qualquer maneira, ele teria que passar por perto delas.

Bond ficou parado, descansando e pensando, enquanto os olhos vermelhos se iam reunindo outra vez diante de seu rosto.

Qual seria o grau de letalidade daqueles animais? Quanto das lendas em torno delas seria mito? Certamente que podiam matar animais, mas em que medida seriam mortais para o homem aquelas gigantescas aranhas? Bond deu de ombros. Lembrou-se da centopéia. O toque das tarântulas seria muito mais suave. Seriam como o toque das patas de ursinhos de brinquedo contra a pele humana — até que mordessem e esvaziassem os seus folículos venenosos no organismo da pessoa.

Mas, ainda aqui, seria esta a arena do sacrifício derradeira, montada pelo Dr. No? Uma mordida ou duas, talvez, para mandar uma pessoa para um delírio de dor. O horror de ter que atravessar a tela no escuro — o Dr. No não teria pensado no isqueiro de Bond — varando aquela floresta de olhos, esmagando alguns corpos moles mas sentindo as picadas de outros. E depois mais picadas das que tivessem ficado presas à roupa. Em seguida, a lenta agonia do veneno. Este deveria ter sido o caminho percorrido pela imaginação do Dr. No — para que a vítima prosseguisse aos gritos pelo seu caminho. Para quê? Para a barreira final?

Mas Bond tinha o isqueiro, a faca e o chuço de arame. Tudo o que iria precisar era nervos e uma precisão infinita.

Delicadamente abriu a tampa do isqueiro e, com o polegar e indicador, fez sair o pavio uma polegada. Acendeu-o, e quando as aranhas recuaram, furou a tela com a faca. Fez um buraco na armadura e cortou para os lados. Depois, apanhou a aba da tela, que assim se desprendera, e arrancou-a da armadura. A tarefa não foi difícil, pois a aba fendeu-se numa só peça, com um tecido de algodão. Tornou a colocar a faca entre os dentes e atravessou a abertura. As aranhas recuaram diante da chama e amontoaram-se umas sobre as outras. Bond retirou o chuço de arame de dentro das calças e bateu com o arame dobrado sobre aqueles corpos moles. Bateu e tornou a bater ferozmente, reduzindo os aracnídeos a uma pasta informe. Quando algumas das aranhas tentaram escapar em sua direção, ele acenou-lhes com a chama e esmagou as fugitivas, uma a uma. Agora, as aranhas vivas estavam atacando as mortas, e tudo quanto Bond tinha a fazer era terminar o massacre.

Lentamente todos aqueles movimentos convulsivos foram declinando até cessarem completamente. Estariam todas mortas? Estariam algumas simulando morte? A chama do isqueiro estava começando a morrer. Teria que enfrentar o risco. Avançou mais um pouco e atirou aquela massa escura e pegajosa para um lado. Depois tirou a faca de entre os dentes e abriu a segunda cortina, puxando a aba cortada para cima da pasta feita com os corpos das tarântulas. A chama bruxuleou e tornou-se apenas um revérbero vermelho. Bond reuniu suas forças, atirou o corpo sobre a massa encoberta e atravessou a segunda tela.

Não sabia se teria posto os joelhos e cotovelos sobre limalhas metálicas ou sobre as aranhas. Tudo o que sabia é que tinha atravessado aquela barreira. Arrastou-se ainda por alguns metros para a frente, no interior do túnel, e depois parou para descansar e reunir coragem.

Sobre a sua cabeça veio uma pálida luz. Bond torceu-se para um lado, ficando de costas, para ver o que já esperava. Os olhos amarelos e amendoados fixavam-no com profundo interesse. Lentamente, por trás do farolete, a cabeça moveu-se de um lado para outro. As pálpebras caíram numa piedade fingida. Um punho cerrado, com o polegar apontando para baixo, à guisa de despedida e aniquilamento, interpôs-se entre o farolete e o vidro. Em seguida foi retirado e a luz apagou-se. Bond voltou o rosto para baixo e descansou a testa no chão metálico e frio. Aquele gesto dizia-lhe que ele estava chegando ao obstáculo final, que os seus algozes tinham dado por encerradas as observações até virem recolher os seus restos. Bond sentiu ainda que naquele rosto não houvera um único indício de louvor pelo fato de ter logrado sobreviver até aquela etapa. Aqueles chineses negros odiavam-no. Apenas queriam que ele morresse, e tão miseravelmente quanto possível.

Os dentes de Bond bateram suavemente. Ele pensara na jovem e este pensamento dera-lhe forças. Ainda não estava morto. Que diabo! Ele não iria morrer! Não enquanto o coração não lhe fosse arrancado do corpo.

Bond retesou os músculos. Era tempo de continuar, a investida. Com redobrado cuidado, recolocou as armas em seus lugares, e penosamente recomeçou a avançar pela escuridão.

O túnel começava a inclinar-se ligeiramente para baixo, o que tornava a progressão mais fácil. Logo a inclinação tornou-se tão acentuada que Bond podia deslocar-se apenas em virtude de seu peso. Era uma bênção não ter que fazer aquele esforço derradeiro com os músculos. Vislumbrou um clarão acinzentado à sua frente, pouco mais que uma redução das trevas completas, mas aquilo prenunciava uma mudança, pois a qualidade do ar parecia diferente. Havia nele um odor novo. O que seria? O mar?

Súbito, Bond compreendeu que estava escorregando para baixo, ao longo do túnel. Expandiu os ombros e abriu os pés, procurando impedir a queda. Aquele esforço causou-lhe terríveis dores e o efeito foi mínimo. Agora o túnel começava a alargar-se e ele já não poderia mais diminuir o impulso da queda! Seu deslizamento tornava-se mais e mais acelerado. Agora via uma curva à frente — e era uma curva dirigida para baixo.

O corpo de Bond logo chegou. àquela curva e contornou-a. Deus do céu, ele estava mergulhando de cabeça para baixo! Desesperadamente, abriu os braços e pernas. O metal esfolou sua pele. Agora tinha perdido completamente o controle da situação e estava mergulhando para baixo, sempre pára baixo, no interior de um cano de canhão. Muito abaixo havia um circulo de luz cinzenta. Seria o ar livre? O mar? A luz subia vertiginosamente para ele! Lutou para recuperar o fôlego. Continue vivo, idiota! Continue vivo!

Primeiro a cabeça, e logo depois o corpo de Bond precipitaram-se pelo espaço, vencendo aceleradamente a distância de mais de cem pés que o separava da superfície do mar.


XVIII - ARENA DE SACRIFÍCIO


O corpo de Bond espadanejou o espelho de um mar de alvorada como o impacto de uma bomba.

Enquanto descia precipitadamente pelo tubo prateado, em direção ao disco de luz, o instinto dissera-lhe que retirasse a faca de entre os dentes e que pusesse as mãos para a frente, a fim de aparar a queda, assim como a cabeça para baixo e o corpo rígido. E, na última fração de segundo, quando ele viu o mar que se alteava ao ritmo das ondas, procurou sorver uma longa inspiração. En conseqüência, projetou-se na água como se estivesse dando um mergulho, com os braços estendidos abrindo-lhe um buraco através do qual passaram a sua cabeça e o corpo. Conquanto, quando chegou a vinte pés de profundidade, tivesse perdido os sentidos, o despencar a sessenta e cinco quilômetros por hora não conseguira matá-lo.

Lentamente o corpo foi voltando à superfície, e ficou, com a cabeça para baixo, a balançar-se suavemente nas pequeninas ondas causadas pelo seu próprio mergulho. A água que penetrou nos pulmões de certa forma contribuiu para enviar uma última mensagem ao cérebro. As pernas e braços agitaram-se desajeitadamente. Agora tinha conseguido voltar a cabeça para cima, com a água escorrendo da boca. Tornou a afundar, mas dessa vez, instintivamente, as pernas começaram a mover-se procurando manter o corpo à superfície da água. Por fim, a cabeça, horrivelmente sacudida pela tosse, conseguiu vir para fora da água e assim manter-se. Os braços e as pernas começaram a agitar-se dèbilmente, com os movimentos natatórios de um cão, e através da cortina vermelha e negra, os olhos injetados de sangue viram a linha da vida e disseram ao dolente cérebro que visasse àquele objetivo.

A arena de execução era uma estreita e profunda enseada, na base de um elevado penhasco. A corda de salvamento em direção à qual Bond lutava, embaraçado pelo chuço metido em sua calça, era representada por uma forte tela de arame, que se estendia por dois lados do penhasco, protegendo aquela enseada do mar aberto. Aquela rede, formada de quadrados, estava suspensa a um grosso cabo situado a dois metros acima da superfície da água. Para baixo, a tela desaparecia nas profundezas, cheia de incrustações de algas.

Bond conseguiu chegar ao arame, e a ele agarrou-se como que crucificado. Durante quinze minutos deixou-se ficar na mesma posição, com o corpo de quando em quando sacudido por vômitos, até que se sentiu bastante forte para virar a cabeça e verificar onde estava. Ofuscadamente, os seus olhos tomaram a altura do penhasco, sobre sua cabeça. O lugar estava obscurecido por uma sombra cinzenta, projetada pela montanha, mas ao largo, no mar, havia uma iridiscência de pérola provocada pela aurora, o que significava que para o resto do mundo o dia estava amanhecendo. Mas onde Bond se encontrava era escuro e triste.

Lerdamente, a mente de Bond começou a se interrogar sobre aquela tela de arame. Qual seria a sua finalidade, fechando aquela escura enseada e separando-a do mar? Seria para manter alguma coisa do lado de fora ou para mantê-la do lado de dentro? Bond olhou vagamente para baixo, procurando penetrar as profundezas do mar, à sua volta. As malhas de arame perdiam-se no nada, sob os seus pés. Havia pequeninos peixes à volta de suas pernas, abaixo da cintura. Que estariam eles fazendo? Pareciam estar-se alimentando, avançando contra seu corpo e depois recuando com fiapos negros na boca. Fiapos de que? De algodão de seus farrapos? Bond sacudiu a cabeça para clarear as idéias. Tornou a olhar para baixo. Não, aqueles peixes estavam-se alimentando com seu sangue.

Bond estremeceu. Sim, o sangue estava escorrendo de seu corpo, dos ombros, dos joelhos, dos pés, e misturando-se à água. Agora, pela primeira vez sentiu a dor causada pela água salgada em suas feridas e queimaduras. A dor tornou-se mais viva e estimulou a sua mente. Se esses pequeninos peixes estavam gostando de seu sangue, o que dizer dos tubarões? Seria essa a finalidade daquela tela de arame, isto é, evitar que os peixes devoradores de seres humanos pudessem escapar para o mar? Então por que eles ainda não se tinham lançado sobre ele? Para o diabo! A primeira coisa a fazer era subir pelo arame e ganhar o outro lado. Interpor aquela tela entre ele e o que quer que vivesse naquele escuro aquário.

Dèbilmente, pé após pé, lá se foi Bond subindo pela tela, até chegar ao cume e passar para o outro lado, onde poderia descansar sem preocupações. Colocou o espesso cabo sob a axila, e olhou para baixo, contemplando os peixes que ainda se nutriam com o sangue que continuava gotejando de seus pés.

Agora já não havia muito em Bond; pouquíssimas reservas teria ele. O último mergulho no tubo, o choque da queda, na água, e a quase morte, causada por afogamento, tinham-no esmagado como a uma esponja. Estava prestes a entregar-se, prestes a soltar um pequeno suspiro e depois escorregar para os doces braços da água. Como seria bom abandonar-se, finalmente, e descansar — sentir que o mar suavemente o levava para o seu leito.

Foi a explosiva fuga dos peixes que estavam sorvendo o seu sangue, sob os seus pés, que despertou Bond de seu sonho de morte. Alguma coisa tinha-se movido muito abaixo da superfície. Havia uma trêmula claridade muito distante, mas que avançava lentamente para a superfície, aproximando-se pelo lado interno da tela.

O corpo de Bond se enrijeceu. Ante a iminência do perigo, a vida voltou-lhe num ímpeto, expulsando a letargia e comunicando-lhe renovada vontade de sobreviver.

Bond abriu os dedos aos quais, há muito, o seu cérebro ordenara que não perdessem a faca. Fechou os dedos e agarrou o cabo daquela lâmina. Abaixou-se em seguida e tocou no gancho do chuço que ainda se mantinha no interior da calça. Sacudiu vivamente a cabeça e ficou com os olhos alertas. E agora?

Sob os seus pés a água estremeceu. Alguma coisa estava-se debatendo, no fundo, alguma coisa enorme. Algo grande, de cor cinza luminescente, tornou-se visível, detendo-se muito abaixo da superfície, na escuridão. Alguma coisa se projetou daquela massa, em direção à superfície, algo como se fosse um chicote da grossura do braço de Bond. A extremidade daquela tira inchava-se numa terminação oval e achatada, com marcas semelhantes a botões distribuídos a espaços regulares. Aquele tentáculo rodopiou na água, no lugar em que os peixes tinham estado, e logo se encolheu. Agora só se via a grande sombra cinzenta lá embaixo da superfície. Que estaria fazendo o animal? Estaria...? Estaria provando o seu sangue?

Como que em resposta àquela pergunta, dois olhos, tão grandes quanto bolas de futebol, foram avançando para cima até se porem no campo de visão de Bond. Aqueles enormes olhos pararam vinte pés abaixo da superfície e olharam tranqüilamente para cima, fixando-se no rosto de Bond.

A pele de Bond ficou arrepiada nas costas. Sua boca deixou escapar um palavrão! Então, aquela era a Ultima surpresa do Dr. No, o fim da corrida!

Bond ficou de olhos abertos, meio hipnotizado, olhando para baixo. Então aquele era o polvo gigante, o monstro mítico que podia arrastar navios para as profundezas do mar, o monstro de cinqüenta pés de comprimento que podia dar combate às baleias e que pesava uma tonelada ou mais. O que mais sabia ele a respeito daqueles animais? Que tinham dois longos tentáculos para laçar e outros dez para agarrar; que tinham um enorme bico rombudo por baixo de olhos que eram os únicos olhos, entre os peixes, a trabalharem segundo o principio da câmara fotográfica, como os do homem: que seu cérebro era eficiente; que o monstro podia fugir para trás a uma velocidade de trinta nós, por um sistema de jato-propulsão. Sabia ainda que os arpões podiam afundar-se em sua manta de gelatina sem causar nenhum mal ao monstro, e que... mas os grandes olhos esbugalhados, que ofereciam um alvo negro e branco, estavam-se elevando em sua direção. A superfície da água estremecia. Agora Bond podia ver uma floresta de tentáculos que saíam da cara do animal. Ondulavam diante dos olhos do monstro como uma ninhada de grossas serpentes. Bond podia ver-lhe as ventosas sob os tentáculos. Atrás da cabeça, a grande aba da manta de gelatina abria-se e fechava-se suavemente, e, por trás dela, o brilho do corpo perdia-se nas profundezas. Por Deus, a coisa era tão grande quanto uma locomotiva!

Muito devagar e discretamente Bond foi enfiando os pés e depois os braços através dos quadrados da tela de arame, protegendo-se e ancorando-se tão sòlidamente que os tentáculos teriam que arrancá-lo dali aos pedaços ou então arrastar com ele todo aquele arcabouço de metal. Olhou para a direita e para a esquerda. Para qualquer lado, teria que vencer vinte metros, antes de chegar à terra. Mas, qualquer movimento, ainda que pudesse empreende-lo, séria fatal. Devia ficar absolutamente imóvel, rezando para que o monstro perdesse o interesse e se afastasse. Se ele não perdesse o interesse... Suavemente os dedos de Bond apertaram a pequenina faca.

Os olhos do monstro continuavam fitando-o, fria e pacientemente. Delicadamente, como a tromba de um elefante, um daqueles longos tentáculos laçadores emergiu da superfície e foi galgando a tela em direção às pernas de Bond. Tocou num de seus pés, e Bond sentiu o áspero beijo daquelas ventosas. Não se mexeu. Não ousava abaixar-se e afrouxar o enlaçamento de seus braços à volta do arame. Docemente as ventosas entraram em ação, experimentando o rendimento daquela presa. Não era bastante. Como uma gigantesca lagarta, o tentáculo foi subindo por sua perna. Parou à altura do joelho ensangüentado e deteve-se, interessado. Os dentes de Bond estalaram com a dor. Ele bem podia imaginar a mensagem que tinha descido por aquele tentáculo até o cérebro do animal: sim, é bom para comer-se! E a ordem de retorno ao tentáculo: então traga-o.

As ventosas continuaram subindo pela coxa. A extremidade do tentáculo se aflou e em seguida dilatou-se a ponto de quase cobrir toda a espessura da coxa de Bond. Depois reduziu-se à grossura de um pulso. Aquele seria o alvo de Bond. Apenas teria que agüentar a dor e resistir ao horror daquela acometida, esperando que esse pulso chegasse ao alcance de um golpe.

 

* *
Uma brisa, a primeira suave brisa da madrugada, soprou sobre a superfície metálica da enseada, levantando pequenas ondas que iam beijar a rocha do penhasco. Um bando de corvos marinhos alçou vôo da guaneira, quinhentos pés acima da enseada, e cacarejando suavemente, avançou em direção ao mar. Quando as aves passaram sobre a enseada, o barulho que as tinha perturbado chegou aos ouvidos de Bond — o tríplice apito de um navio, que indica estar a embarcação pronta para receber a carga. Aquele som chegava do lado esquerdo de Bond. O cais deveria estar situado a pequena distância contornando o braço setentrional da enseada. O navio procedente de Antuérpia tinha chegado. Antuérpia! Uma região do mundo exterior — um mundo que estava a um milhão de quilômetros de distância, fora do alcance de Bond — com certeza para sempre fora de seu alcance. Exatamente para além daquele braço rochoso a tripulação estaria no refeitório, tomando o seu desjejum. O rádio estaria tocando. Haveria o chiado do toicinho defumado e ovos na frigideira, o cheiro do café...


* * *


As ventosas estavam em sua coxa. Bond podia ver dentro daqueles cálices córneos. Um cheiro de maresia estagnada chegou-lhe às narinas, quando aquela mão vagarosamente serpenteou para cima. Seria muito duro o tecido gelatinoso cinza-escuro, por trás daquela mão? Deveria usar agora a faca? Não, o golpe deveria ser rápido e seguro, atingindo toda a espessura, como se se cortasse uma corda. Não importaria que a sua própria pele fosse atingida.

Agora! Bond lançou um rápido golpe de vista àqueles dois enormes olhos, lá embaixo, tão pacientes e tão negligentes. Nesse momento, o outro tentáculo elevou-se da superfície da água e avançou em direção ao seu rosto. Bond recuou a cabeça e a mão se enroscou num fio de arame diante de seus olhos. Num segundo aquela garra se deslocaria para um braço ou ombro, e ele estaria liquidado. Agora!

O primeiro tentáculo estava sobre suas costelas. Quase sem fazer pontaria, a mão de Bond que empunhava a faca caiu rapidamente para baixo e transversalmente. Sentiu a lâmina afundar naquele pudim carnoso, e quase deixou que ela escapasse de sua mão, quando o tentáculo ferido chicoteou pelo ar, desaparecendo na água. Por um momento o mar foi agitado à sua volta. Agora, o outro tentáculo abandonou o arame e agarrou-se ao seu ventre. A mão aflada prendeu-se como uma sanguessuga, com toda a força de sua sucção furiosamente aplicada. Bond gritou ao sentir o contacto daquelas ventosas em sua carne. Golpeou loucamente, mais e mais. Por Deus, o seu estômago estava sendo arrancado para fora! A tela agitou-se com a luta. Aos seus pés a água fervilhava e espumava. Ele teria que ceder. Um derradeiro golpe, desta vez nas costas daquela mão disforme. Deu resultado! A mão se agitou no ar e desceu serpeante, deixando vinte círculos vermelhos sangrando em sua pele.

Bond não tinha tempo para se preocupar com aquilo. Agora a cabeça do monstro tinha emergido, e os seus olhos brilhantes fixavam-se nele, avermelhados, enfurecidos, e a floresta dos tentáculos sugadores começava a envolver-lhe os pés e as pernas, dilacerando-lhe as roupas, para logo retornar aos seus membros. Bond estava sendo arrastado para baixo, polegada por polegada. O arame estava penetrando em suas axilas. Podia até mesmo sentir a sua espinha sendo distendida. Se ele continuasse resistindo seria partido ao meio. Agora, os olhos e o grande bico triangular estavam fora d’água, e o bico procurava o seu pé. Havia uma esperança, apenas uma!

Bond meteu a faca entre os dentes e sua mão procurou o gancho do chuço de arame. Agarrou aquela arma, e desdobrou-a com as suas duas mãos. Teria que soltar um dos braços para poder abaixar-se e se aproximar do alvo. Se falhasse, entretanto, seria reduzido a pedaços sobre a tela.

Agora, antes que morresse com a dor! Agora, agora! Bond deixou todo o seu corpo escorregar por aquela escada de arame, para baixo, e desferiu uma violenta estocada. Pôde ver que o pontaço de sua lâmina penetrava pelo centro de um enorme globo ocular negro, e imediatamente todo o mar se intumesceu para ele, como uma fonte de negrume, enquanto seu corpo se mantinha pendurado de cabeça para baixo, seguro pelos joelhos, com o rosto apenas uma polegada acima da superfície.

Que teria acontecido? Teria ficado cego? Não podia ver nada. Seus olhos estavam ardendo e havia um gosto horrível de peixe podre em sua boca. Contudo, podia sentir o arame cortando-lhe os tendões dos joelhos. Então devia estar vivo! Estonteado, Bond deixou que o chuço caísse de sua mão, e procurou o arame mais próximo. Depois, agarrou-se com a outra mão um pouco mais acima, e, assim, vagarosamente, foi-se alçando até que conseguiu sentar-se no cabo superior da cerca. Clarões de luz chegaram-lhe aos olhos. Passou uma das mãos pelo rosto. Agora podia ver. Fixou a sua mão: estava negra e pegajosa. Olhou para o seu corpo: estava também coberto por um lodo negro, e o preto tingia o mar numa extensão de vinte metros à sua volta. Então Bond compreendeu: o polvo ferido tinha esvaziado a sua bolsa de tinta contra ele.

Mas onde estava o monstro? Voltaria? Bond esquadrinhou o mar. Nada, nada além da enorme mancha negra que se continuava ampliando. Nem uma só ondulação! Então, nada de esperar! Fugir dali o mais depressa possível! Ansiosamente, Bond olhou para a direita e para a esquerda. Para a esquerda era na direção do navio, mas também na direção do Dr. No, enquanto para a direita seria para o nada. Para instalar aquela tela de arame, os trabalhadores deviam ter vindo da esquerda, na direção do cais. Devia haver algum caminho até ali. Bond começou a se deslocar frenèticamente pelo cabo superior, em direção à rocha, a vinte metros de distância.

O espantalho negro e sangrento movimentava os braços e pernas quase automaticamente. O aparelho pensante e sensorial de Bond já não fazia mais parte de seu corpo. Movia-se ao lado de seu corpo ou acima dele, mantendo apenas o contato necessário para puxar os cordéis que faziam o boneco trabalhar. Bond era como um verme secionado, cujas duas metades continuassem arrastando-se para a frente, conquanto a vida os tivesse abandonado para ser substituída pela vida ilusória dos impulsos nervosos. Apenas, no caso de Bond, as duas metades ainda não estavam mortas. A vida tinha somente se ausentado delas. Tudo quanto ele precisava era um grama de esperança, um grama de confiança, de convicção de que ainda valeria a pena tentar sobreviver.

Bond chegou à rocha, e lentamente desceu pela tela até a última malha. Contemplou vagamente o brilho palpitante da água. O mar estava negro e impenetrável. Deveria arriscar-se? Sem dúvida! Não podia fazer nada enquanto não tivesse lavado aquela camada de lodo e sangue, sem falar do horrível cheiro de peixe. Sombriamente, fatalisticamente, ele tirou os farrapos de sua camisa e calças, pendurando-os no cabo. Olhou para baixo, para seu corpo marrom e branco, salpicado de vermelho. Instintivamente, procurou sentir seu pulso, que se apresentava lento mas regular. As firmes palpitações de vida reanimaram o seu espírito. Por que diabo estava ele se lamuriando? Estava vivo. As feridas e machucaduras em seu corpo não eram nada — absolutamente nada. Eram horríveis, mas nada estava quebrado. Por dentro do invólucro maltratado, a máquina estava trabalhando serena e seguramente. Cortes superficiais e esfoladuras, recordações sangrentas, cansaço mortal — estes seriam ferimentos dos quais se riria uma enfermeira experiente. Para a frente, seu bastardo! Para a frente! Limpe-se e levante-se. Conte as suas bênçãos. Pense na jovem. Pense no homem que você deverá encontrar e matar. Agarre-se à vida como se agarrou à faca entre os dentes. Acabe com esta autopiedade. Para o diabo com o que acaba de acontecer! Para dentro d’água e lave-se!

Dez minutos mais tarde, Bond, com seus farrapos molhados colados ao corpo já esfregado, e com os cabelos repuxados para fora dos olhos, galgava o cimo do penhasco.

Sim, era como ele tinha imaginado. Uma picada estreita e rochosa, feita pelos pés dos trabalhadores, descia para o outro lado, contornando a saliência do penhasco.

Das proximidades chegaram vários sons e ecos. Um guindaste estava trabalhando. Podia ouvir os ritmos variáveis de seu motor. Ouviam-se os barulhos peculiares, aos navios de ferro, bem como o ruído da água que era lançada ao mar por uma bomba de porão.

Bond olhou para cima, para o céu, que estava de um azul pálido. Nuvens manchadas de ouro e reflexos rosados derivavam em direção ao horizonte. Muito acima dele, os corvos marinhos esvoaçavam em torno da guaneira. Em breve estariam fazendo-se ao mar, em busca de alimentos. Talvez, agora, mesmo, estivessem vigiando os grupos de reconhecimento, longe, sobre o mar, na faina de localizarem os peixes. Seriam cerca de seis horas — a aurora de um belo dia.

Bond, deixando gotas de sangue atrás de si, seguiu o seu caminho cuidadosamente pela picada abaixo, beirando o sopé do penhasco. Para além da curva, a picada se infiltrava por um terreno cheio de pedras espalhadas. Os ruídos iam-se tornando mais altos. Bond ia avançando cuidadosamente, evitando pisar em pedras. Uma voz se fez ouvir surpreendentemente perto: ‘”Pronto para largar?” E logo uma resposta distante: “Pronto”. O motor do guindaste acelerou. Mais alguns metros. Mais um pedregulho; e mais outro. Agora!

Bond se ocultou por trás da rocha e cautelosamente meteu a cabeça para fora, a fim de observar.

 

CONTINUA

XVI - HORAS DE AGONIA


Uma voz, por trás de Bond, disse serenamente: — O jantar está servido.

Bond voltou-se para trás. O anunciante fora o guarda-costas, que tinha a seu lado outro homem que bem poderia ser seu irmão gêmeo. Ali ficaram eles, duas barricas de musculatura, com as mãos mergulhadas nas mangas dos quimonos, olhando, por cima da cabeça de Bond, para o Dr. No.

— Ah, já nove horas. — O Dr. No levantou-se lentamente e disse: — Vamos. Podemos continuar a nossa conversação em ambiente mais íntimo. Foi muita bondade dos senhores terem ouvido a minha história com paciência tão exemplar. Espero que a modéstia de minha cozinha e de minha adega não representem mais uma imposição.

Portas duplas tinham sido conservadas abertas por trás dos dois homens de jaquetas brancas. Bond e a jovem atravessaram-nas seguindo o Dr. No, indo ter a uma sala octogonal, com as paredes recobertas de painéis de mogno, e ao centro um candelabro de prata, sob o qual estava posta uma mesa para três pessoas. O tapete simples, azul-escuro, era luxuosamente espesso. O Dr. No tomou a cadeira central, de espaldar alto, e indicou cortesmente, com uma inclinação, a cadeira à sua direita para a jovem. Sentaram-se e abriram guardanapos de seda branca.

A cerimônia vazia e a encantadora sala deixavam Bond louco. Ansiava por despedaçar tudo aquilo com as próprias mãos, por passar o seu guardanapo de seda à volta do pescoço do Dr. No e apertá-lo até que aquelas lentes de contato saltassem daqueles malditos olhos negros.

Os dois guardas usavam luvas de algodão branco. Serviram as iguarias com suave eficiência que era instigada por uma ocasional palavra chinesa proferida pelo Dr. No.

A princípio o Dr. No parecia preocupado. Lentamente, ingeriu três taças de diferentes sopas, utilizando-se de uma colher dotada de um cabo curto e que se adaptava perfeitamente entre as pinças de sua mão mecânica. Bond esforçou-se por esconder os seus temores da jovem. Sentou-se afetando uma atitude de relaxamento e comeu e bebeu com forçado apetite. Falou ainda animadamente com a jovem sobre Jamaica — sobre aves e animais, assim como fores, que constituíam fáceis assuntos de conversação para Honeychile. De vez em quando os seus pés tocavam nos dela, sob a mesa. Ela quase chegou a ficar alegre. Bond pensou que ambos estavam fazendo uma bela imitação de namorados comprometidos, que estivessem saboreando um jantar oferecido por um tio detestável.

Bond não tinha a mínima idéia sobre se o seu fraco blefe tinha surtido algum efeito. Assim, não deu grande importância às suas possibilidades. O Dr. No, assim como a sua história, eram perfeitamente impenetráveis. A incrível biografa parecia verdadeira. Nem uma só palavra daquele relato era impossível. Talvez houvesse outras pessoas no mundo com os seus reinos particulares — reinos afastados dos caminhos trilhados por homens comuns, sem testemunhas, onde pudessem fazer o que bem entendessem. E que estaria planejando fazer o Dr. No, depois que tivesse esmagado as moscas que tinham vindo incomodá-lo? E se eles fossem mortos — e quando o fossem — Londres conseguiria recolher os fios que ele, Bond, tinha recolhido? Provavelmente conseguiria. Lá estava Pleydell-Smith, e as provas das frutas envenenadas. Mas até onde a substituição de Bond iria afetar o Dr. No? Não muito. O Dr. No daria de ombros ao desaparecimento de Bond e Quarrel. Nunca teria ouvido falar deles. E não haveria qualquer elo com a jovem. Em Porto Morgan, todos pensariam que ela se tinha afogado em suas expedições. Era difícil saber o que poderia interferir com o Dr. No — com o segundo capítulo de sua vida, qualquer que ele fosse.

Sob aquela conversa com a jovem, Bond foi-se preparando para o pior. Ao lado de seu prato havia algumas facas. Então chegaram as costeletas, perfeitamente cozidas, e Bond tocou em várias facas, hesitante, até que escolheu a do pão para cortá-las. Enquanto comia e conversava foi deslocando a grande lâmina de aço para perto do corpo. Um gesto largo da mão direita derrubou o seu copo de champanha e, numa fração de segundo, enquanto o copo se partia, sua mão esquerda enfiou a lâmina para dentro da manga do quimono. Em meio às suas desculpas, e à confusão que se seguiu, enquanto os guardas enxugavam a champanha derramada na mesa, Bond levantou o braço esquerdo e sentiu que a faca deslizava para baixo do braço e depois caía para dentro do quimono, ficando encostada às suas costelas. Quando acabou de comer as costeletas, apertou o cinto de seda, à volta da cintura, ao mesmo tempo que deslocava a faca para diante da barriga. A faca aninhou-se. confortàvelmente contra a sua pele e em pouco tempo o aço da lâmina foi-se tornando aquecido.

Por fim veio o café e a refeição foi dada por terminada. Os dois guardas se aproximaram e postaram-se por trás das cadeiras da jovem e de Bond. Tinham os braços cruzados sobre o peito, impassíveis, sem nenhum movimento, como carrascos.

O Dr. No pousou delicadamente a sua xícara no pires e descansou as duas pinças de aço sobre a mesa. Depois se endireitou um pouco na cadeira e virou o corpo, apenas uma polegada, em direção de Bond. Agora não havia o mínimo sinal de preocupação em seu rosto. Os olhos eram duros e diretos. A boca fina contraiu-se e abriu-se: — Apreciou o jantar, sr. Bond?

Bond apanhou um cigarro numa caixa de prata que estava à frente e acendeu-o. Depois, pôs-se a brincar com o isqueiro de prata que estava sobre a mesa. Sentia que más noticias iriam chegar. Pensou que deveria meter aquele isqueiro no bolso, de qualquer maneira. O fogo talvez viesse a ser mais uma arma. Respondeu com facilidade: — Sim, estava excelente. — Em seguida olhou para Honeychile. Curvou-se sobre a mesa e descansou os braços sobre ela, e logo cruzou-os, envolvendo o isqueiro com esta manobra. Sorriu para ela: — Espero ter pedido o que você gosta.

— Oh, sim, estava magnífico. — Para ela a recepção ainda estava continuando.

Bond fumava afanosamente, agitando mãos e braços, a fim de criar uma atmosfera de movimento. Voltou-se para o Dr. No, apagou o toco de seu cigarro e reclinou-se na cadeira. Cruzou os braços sobre o peito. O isqueiro já estava sob o seu sovaco esquerdo. Riu animadamente:

— E o que acontecerá agora, Dr. No?

— Podemos continuar com a nossa distração de após-jantar, sr. Bond. O leve sorriso contraiu-se e desapareceu.

— Examinei a sua proposta sob todos os aspectos. Não a aceito.

Bond deu de ombros e observou: — O senhor não é sensato.

— Não, sr. Bond. Receio que a sua proposta não passe de uma isca dourada. Em sua profissão não se atua como o senhor quer sugerir. Os agentes enviam relatórios rotineiros para o quartel-general. Mantêm seus chefes a par dos progressos das investigações que fazem. Conheço essas coisas. Os agentes secretos não se comportam como o senhor sugeriu ter agido. O senhor esteve lendo muitas novelas de aventuras, e o seu pequeno discurso mostrou com muita facilidade o papelão pintado. Não, sr. Bond, não aceito a sua história. Se ela for verdadeira, estou preparado para enfrentar as conseqüências. Tenho muita coisa em jogo para ser facilmente desviado de meu caminho. Que venham a polícia e os soldados. Onde estão o homem e a jovem? Que homem e que jovem? Não sei de nada. Por favor, retirem-se, os senhores estão prejudicando a minha guaneira. Onde estão as suas provas, o seu mandado de prisão? A lei inglesa é rigorosa, meus senhores. Voltem para casa e deixem-me em paz com os meus queridos corvos marinhos. Está vendo, sr. Bond? E digamos mesmo que o pior redunde em pior. Que um de meus agentes fale, o que é altamente improvável. (Bond lembrou-se da fortaleza da srta. Chung). Que tenho eu a perder? Mais duas mortes no libelo acusatório. Mas, sr. Bond, um homem só pode ser enforcado uma vez: — A elevada cabeça, em forma de pêra, agitava-se suavemente, de um lado para outro. — O senhor tem mais alguma coisa a dizer? Alguma pergunta? Ambos irão ter uma noite muito ocupada e o tempo de que dispõem está-se tornando escasso. Quanto a mim, devo ir dormir. O navio que chega mensalmente deverá atracar amanhã e eu terei que supervisionar o carregamento. Passarei todo o dia no cais. Certo, sr. Bond?

Bond olhou para Honeychile. Ela estava mortalmente pálida. Olhava com olhar esgazeado, esperando pelo milagre que ele deveria operar. Bond olhou para as próprias mãos e examinou cuidadosamente as unhas. Depois, disse, para ganhar tempo: — E então, após seu dia ocupado com o carregamento, o que virá em seu programa? Qual o novo capítulo que o senhor pensa escrever?

Bond não levantou o olhar. A profunda e serena voz autoritária caiu sobre ele como se tivesse vindo do céu escuro.

— Ah, sim, o senhor deve ter estado a pensar nisso.

O senhor tem o hábito da investigação. Os hábitos persistem até o fim, até as sombras. Admiro tais qualidades num homem que tem apenas algumas horas mais para viver. Por isso, dir-lhe-ei. Encetarei um novo capítulo, e isso o consolará. Há muito mais nesta ilha do que uma simples guaneira. O seu instinto não o enganou, sr. Bond.

O Dr. No fez uma pausa para dar mais ênfase ao que iria dizer e continuou: — Esta ilha, sr. Bond, está em vésperas de se transformar num dos mais valiosos centros de informação técnica do mundo.

— De fato? — Bond mantinha os olhos fixos em suas mãos.

— Sem dúvida que o senhor não ignora que Turks Island, a trezentas milhas, de distância daqui, através de Windward Passage, constitui o mais importante centro para a experimentação de projéteis teleguiados dos Estados Unidos?

— Sim, é um importante centro de experiências.

— Talvez o senhor tenha lido sobre os foguetes que recentemente se desviaram de sua rota? O “Snark” de múltiplas fases, por exemplo, que terminou o seu vôo nas florestas do Brasil, ao invés de ir perder-se nas profundezas do Atlântico Sul?

— Sim.

— O senhor se lembrará que ele se recusou a obedecer as instruções que lhe foram enviadas por rádio, no sentido de modificar a sua rota, e até mesmo de se destruir a si mesmo. Ele desenvolvera uma vontade própria.

— Lembro-me.

— Houve outras falhas, falhas decisivas, na longa lista dos protótipos — o Zuni, o Matador, o Petrel, o Regulus, o Bomarc — tantos nomes, outras tantas modificações, nem posso lembrar-me deles todos. Bem, sr. Bond, — o Dr. No mal podia esconder uma nota de orgulho em sua voz — talvez lhe interesse saber que a maioria desses fracassos foi causada de Crab Key.

— É verdade?

— Não me acredita? Não tem importância. Outros acreditam-no. Outros que viram o abandono de toda uma série, o Mastodonte, em virtude de seus freqüentes erros de navegação, sua incapacidade de obedecer às ordens enviadas pelo rádio, de Turks Island. Esses outros são os russos. Os russos são meus sócios nesta empreitada. Treinaram seis dos meus homens, sr. Bond. Exatamente neste momento tenho dois desses homens observando, estudando as freqüências de rádio, as faixas nas quais trabalham esses engenhos. Há um milhão de dólares de instalações, nas galerias rochosas, acima de nossas cabeças, sr. Bond, enviando sinais para a camada de Heavyside, aguardando os sinais, perturbando-os, contrabalançando faixas com outras faixas. E, de vez em quando, um foguete sobe em seu itinerário e aprofunda-se cem, quinhentas milhas, pelo Atlântico, enquanto nós anotamos cuidadosamente a sua trajetória, com a mesma perfeição com que isto é feito na Sala de Operações de Turks Island. Em seguida, subitamente, as nossas pulsações são enviadas ao foguete, o seu cérebro é perturbado, ele enlouquece e mergulha no mar, destruindo-se. Foi mais uma experiência que fracassou. Os operários levam a culpa, assim como os projetistas e os fabricantes. Há pânico no Pentágono. Outra coisa deve ser tentada, freqüências diversas, metais diversos, um cérebro eletrônico diferente. Naturalmente que também temos as nossas dificuldades. Assim é que assinalamos muitos disparos experimentais sem sermos capazes de chegar até o cérebro do novo engenho. Então, comunicamo-nos urgentemente com Moscou. Com efeito, eles deram-nos até uma máquina de cifras com as nossas freqüências e rotinas. E os russos continuam pensando, fazem sugestões, e nós as experimentamos. Por fim, sr. Bond, um belo dia, é como se atraíssemos a atenção de um homem perdido numa multidão. Lá no alto, na estratosfera, o foguete reconhece o nosso sinal. Somos reconhecidos e podemos falar com ele e modificar os seus pensamentos. — O Dr. No fez uma pausa e depois continuou: — O senhor não acha isso interessante, esta variante de meus negócios com o guano? Asseguro-lhe que é um negócio muito lucrativo, e podia sê-lo ainda mais. Talvez a China comunista venha a pagar mais pelos meus serviços. Quem sabe? Já tenho os meus agentes em campo, para sondagens.

Bond ergueu os olhos, olhando pensativamente para o Dr. No. Então ele tinha tido razão. Havia mesmo mais alguma coisa, muito mais, em tudo aquilo que os seus olhos tinham visto. Aquilo era uma grande partida, uma partida que explicava tudo, uma partida que no mercado internacional da espionagem bem valia a pena ser jogada. Bem, bem! Agora, as peças do quebra-cabeças tinham caído corretamente em seus lugares. Para isso tinha valido a pena, certamente, assustar alguns pássaros e eliminar algumas pessoas. Isolamento? Naturalmente que o Dr. No teria que matar a ele e à jovem. Poder? Sim, isso era poder. O Dr. No se tinha realmente lançado nos negócios.

Bond fixou os dois orifícios negros com um novo respeito, e observou: — O senhor terá que matar muito mais gente para manter isto em suas mãos, Dr. No. Isto vale muito dinheiro. O senhor tem aqui uma bela propriedade, superior ao que eu pensava, e as pessoas hão-de querer um pedaço deste bolo. Penso em quem será o primeiro a chegar até o senhor e matá-lo. Serão aqueles homens que estão lá em cima, treinados por Moscou? — e ele fez um gesto apontando para o teto. Depois continuou: — Eles são os técnicos. Eu me pergunto: o que Moscou estará lhes ordenando que façam? O senhor não poderia estar a par disso, poderia?

O Dr. No respondeu: — Vejo que continua subestimando meu valor, sr. Bond. O senhor é um homem obstinado e mais estúpido do que pensava. É claro que estou consciente dessas possibilidades. Separei um desses homens e transformei-o numa espécie de vigilante particular. Ele tem uma duplicata das cifras e da máquina. Vive em outra parte da montanha. Os outros pensam que ele morreu, mas ele está bem vivo a fiscalizar a cronometragem de rotina, e entrega-me diariamente uma cópia do tráfego que é registrado. Até agora os sinais emitidos por Moscou têm sido inocentes e não indicam qualquer conspiração. Penso em tudo isso constantemente, sr. Bond. Tomo precauções e ainda as multiplicarei para o futuro. Como disse, o senhor me tem subestimado.

— Não o subestimo, Dr. No. O senhor é um homem muito prudente, mas já há muitas pastas sobre o senhor. Em minha linha de atividades, a mesma coisa se aplica a mim, mas as suas pastas são muito perigosas. A chinesa, por exemplo. Não gostaria de ter uma com essa gente. A da FBI deve ser a menos penosa — roubo e falsa identidade. Mas o senhor conhece os russos tão bem quanto eu? Por enquanto o senhor é “o melhor amigo” deles. Mas os russos não têm sócios. Hão-de querer comprá-lo... — comprá-lo com um balaço. Depois vem a pasta que o senhor abriu com o meu serviço. O senhor quererá mesmo fazê-la mais volumosa? Eu não o faria se estivesse em seu lugar, Dr. No. O pessoal do meu serviço é muito obstinado. Se alguma coisa me acontecer e à jovem, o senhor verificará que Crab Key é uma ilha muito pequena e insignificante.

— Não se pode jogar grandes partidas sem assumir riscos, senhor Bond. Aceito os perigos e, até onde posso, procuro defender-me deles. Como vê — e a sua voz tinha um acento de cupidez — estou em vésperas de coisas muito maiores. O capítulo dois, ao qual já me referi, encerra promessa de prêmios que ninguém, a não ser um tolo, jogaria fora por ter medo. Já lhe disse que posso desviar os raios magnéticos por onde viajam os foguetes. Posso fazer com que estes mudem de rota e não obedeçam ao controle eletrônico. Que diria o senhor, se eu fosse ainda mais longe? Se eu os fizesse cair nesta ilha, a fim de recolher todos os segredos de sua construção? Atualmente, destróieres norte-americanos, nos confins do Atlântico Sul, recolhem esses foguetes quando eles esgotam o seu combustível e caem de pára-quedas sobre o mar. Algumas vezes os pára-quedas deixam de se abrir, e algumas vezes as instalações de autodestruição deixam de operar.

Ninguém em Turks Island se sentiria surpreendido se de vez em quando o protótipo de uma nova série saísse de sua trajetória e caísse perto de Crab Key. Antes de mais nada, isto seria atribuído a falhas mecânicas. Mais tarde talvez descobrissem que outros sinais, que não os seus, tinham estado a guiar os seus foguetes. Teria início, então uma guerra de freqüência. Tentariam e conseguiriam localizar a origem dos sinais falsos, mas assim que eu verificasse que eles estavam à minha caça, teria uma derradeira cartada. Os seus foguetes enlouqueceriam. Cairiam em Havana, em Kingston; dariam uma volta e despencariam sobre Miami. Mesmo sem as cargas detonantes, Sr. Bond, cinco toneladas de metal, chocando-se a mil milhas por hora, podem causar terríveis danos numa cidade super-povoada. E depois? Haveria pânico, haveria um clamor público. As experiências teriam de ser interrompidas. A base de Turks Island teria que fechar. E quanto não pagariam os russos para que isso acontecesse, sr. Bond? E quanto por protótipo que eu capturasse para eles? Digamos dez milhões de dólares por toda a operação? Vinte milhões? Seria uma vitória sem preço na corrida dos armamentos. Posso fazer o meu preço, não concorda, sr. Bond? E não concorda também que essas considerações tornam os seus argumentos e ameaças engraçadíssimos?

Bond não respondeu. Nada havia a dizer. Subitamente se viu em pensamento naquela sala tranqüila de Regents Park. Podia ouvir a chuva batendo suavemente contra a janela e a voz de M, impaciente e sarcástica, dizendo: “Oh, algum maldito negócio em torno de aves... umas férias ao sol lhe farão bem... investigações rotineiras.” E ele, Bond, tinha apanhado uma canoa, um caniço e um farnel de piquenique e partira — há quantos dias, há quantas semanas? — “para dar uma espiada”. Bem, ele tinha dado uma espiada na caixa de Pandora. E tinha tido as respostas, conhecera os segredos — e agora? Agora iriam mostrar-lhe polidamente o caminho para a sepultura, para onde ele levaria consigo o seus segredos arrancados e arrastados por ele em sua lunática aventura. Toda a amargura que lhe ia no íntimo aforou à boca, de modo que por um momento pensou que ia vomitar. Apanhou o copo e esvaziou todo o resto de champanha que nele havia. Depois disse asperamente: — Muito bem, Dr. No. Agora vamos ao cabaré. Qual é o programa — faca, bala, veneno, corda? Mas proceda rapidamente, já o vi bastante.

Os lábios do Dr. No se apertaram numa fina linha arroxeada. Os olhos eram duros como ônix, sob a bola de bilhar de sua fronte e crânio. A máscara de polidez tinha desaparecido. O Grande Inquisidor sentava-se na cadeira de alto espaldar. Tinha soado a hora para a “peine forte et dure”.

O Dr. No proferiu uma palavra e os dois guardas avançaram um passo e agarraram as suas vitimas pelos braços, acima dos cotovelos, mantendo-as imobilizadas para trás, apoiadas nos lados das cadeiras. Não houve resistência. Bond concentrou-se em manter o isqueiro sob o sovaco. As luvas brancas em seus bíceps pareciam faixas de aço. Sorriu para a jovem. — Desculpe-me por isso, Honey, — disse. — Receio que afinal de contas não possamos mais brincar juntos.

Os olhos da jovem, em seu rosto pálido, tinham ficado azul-escuros, pelo medo. Seus lábios tremiam, e ela perguntou: — Doerá muito?

— Silencio! — A voz do Dr. No soou como o estalar de um chicote. — Chega de tolices. Naturalmente que doerá. Estou interessado na dor. E estou igualmente interessado em descobrir quanto de dor o corpo humano pode suportar. De vez em quando faço experiências com os meus subordinados que devem ser punidos, e em intrusos como os senhores. Acarretaram-me os senhores grandes dificuldades. Em troca, pretendo causar-lhes uma grande soma de dor. Registrarei os níveis de suas resistências. Os fatos serão anotados, e um dia as minhas pesquisas serão relatadas ao mundo. As suas mortes terão servido à Ciência. Nunca desperdiço material humano. As experiências feitas pelos alemães com seres humanos vivos, durante a guerra, foram de grande proveito para a Ciência. Faz um ano que pus uma mulher para morrer da maneira que escolhi para a senhora. Ela era uma negra e durou três horas, mas morreu de terror. Queria agora fazer a experiência com uma mulher branca, para poder estabelecer uma comparação. Não me surpreendi quando a sua chegada me foi comunicada. Consigo sempre o que quero. — O Dr. No reclinou-se para trás na cadeira. Seus olhos estavam agora fixos na jovem, estudando-lhe as reações. Honeychile correspondia ao olhar, como que meio hipnotizada, como um rato do mato diante de uma cascavel.

Bond apertou os dentes.

— A senhora é uma jamaicana, por isso saberá o que quero dizer. Esta ilha chama-se Crab Key. Recebeu este nome porque está infestada de caranguejos — o que chamam em Jamaica “caranguejos negros”. A senhora os conhece. Pesam meio quilo, cada um, e têm o tamanho de um pires. Nesta época do ano eles saem aos milhares de seus esconderijos, próximos à costa, e sobem em direção à montanha. Lá, nos planaltos de coral, eles se alojam novamente em buracos da rocha, onde desovam. Avançam em exércitos de centenas, de cada vez. Atravessam tudo e sobre tudo. Em Jamaica eles invadem as casas e não se desviam de seu caminho. São como certos roedores da Noruega. É uma migração irresistível. — O Dr. No fez uma pausa. Em seguida acrescentou suavemente: — Mas há uma diferença. Os caranguejos devoram o que encontram em seu caminho. E agora, minha senhora, eles já estão em marcha. Estão galgando as faldas da montanha, às dezenas de milhares, em ondas negras e vermelho-laranja. Estão, neste momento, se apressando e se empurrando e arranhando a rocha acima de nós. E esta noite, no meio do seu caminho, eles vão encontrar o corpo nu de uma mulher sòlidamente preso — um banquete preparado para eles — e vão apalpar o corpo morno com suas pinças, e um deles dará o primeiro corte com suas garras de combate e então... e então...

A moça gemeu. Sua cabeça caiu para a frente sobre o peito. Desmaiara. O corpo de Bond inteiriçou-se na cadeira. Uma torrente de palavras obscenas escapou por entre seus dentes cerrados. As manoplas dos guardas pareciam-lhe ferro à volta dos braços. Nem sequer podia fazer deslizar os pés da cadeira no chão. Depois de um momento de luta, desistiu. Esperou que sua voz se acalmasse, e disse então, com todo o veneno que podia instilar nas palavras:

— Seu bastardo! Você há-de frigir no inferno se fizer isso!

O Dr. No sorriu fracamente.

— Senhor Bond, não acredito na existência do inferno. Procure consolar-se. Talvez eles comecem pela garganta ou pelo coração. O bater do pulso ainda os poderá atrair. Depois disso, tudo acabará depressa.

Proferiu então uma sentença em chinês. O guarda que estava atrás da cadeira da moça inclinou-se para a frente, levantou-a da cadeira como se fora uma criança e atirou-a por cima do ombro. Os belos cabelos caíam qual cascata de ouro entre os braços inertes. O guarda foi à porta, abriu-a e saiu, formando a fechá-la sem ruído.

Por um momento, reinou, silêncio na sala. Bond pensava somente na faca encostada ao seu ventre e no isqueiro debaixo da axila. Qual a extensão dos estragos que ele poderia causar com aqueles dois pedaços de metal? Poderia, de algum modo, aproximar-se do Dr. No?

O Dr. No continuou serenamente: — O senhor disse que o poder era uma ilusão, sr. Bond. Não modifica a sua opinião? O meu poder de escolher a morte que quiser para essa jovem certamente que não é uma ilusão. Todavia, passemos ao método de sua morte. Isso também encerra aspectos novos. Saiba, sr. Bond, que estou interessado na anatomia da coragem — do poder de resistência do corpo humano. Mas como medir a resistência humana? Como traçar um gráfico da vontade de sobrevivência, da tolerância à dor, da conquista do medo? Pensei muito nesse problema e acredito tê-lo solucionado. Trata-se, por enquanto, de um método incompleto e grosseiro, mas que será aperfeiçoado na medida em que as experiências se forem multiplicando. Preparei o senhor para essa experiência. Dei-lhe um sedativo, de modo que o seu corpo esteja descansado, e alimentei-o bem, de modo que possa estar no gozo completo de suas forças. Os futuros — como os chamarei — pacientes, terão as mesmas vantagens. Todos começarão nas mesmas condições. Depois disso, o restante será uma questão de coragem e do poder de resistência individuais.

O Dr. No fez uma pausa, enquanto observava o rosto de Bond. Depois prosseguiu: — Saiba ainda, sr. Bond, que justamente agora acabo de construir uma espécie de pista de obstáculos, uma espécie de pista de corrida contra a morte. Não direi mais sobre isso porque o elemento surpresa é um dos que aparecem na formação do medo. Os perigos desconhecidos são os piores, os que mais pressionam as reservas de coragem. E me alegro com a idéia de que a corrida de obstáculos que o senhor enfrentará contém um rico sortimento de coisas inesperadas. Será particularmente interessante sr. Bond, que um homem com as suas qualidades físicas seja o meu primeiro competidor. Será interessantíssimo ver até onde o senhor conseguirá alcançar, na pista que idealizei. Não há dúvida de que o senhor estabelecerá uma marca invejável para os futuros corredores. Tenho grandes esperanças no senhor. O senhor deverá ir muito longe, mas quando tombar, inevitavelmente, diante de um obstáculo, seu corpo será recolhido e eu examinarei meticulosamente os seus restos. Os dados assim colhidos serão registrados e o senhor representará o primeiro ponto de um gráfico. Algo honroso, não é, senhor Bond?

Bond nada respondeu. Que diabo significaria tudo aquilo? Em que poderia consistir aquela prova? Seria possível escapar dela com vida? Poderia escapar disso e salvar Honeychile antes que fosse demasiado tarde, ainda que para matá-la e assim salvá-la da tortura? Silenciosamente, Bond ia reunindo suas reservas de coragem, retemperando a mente contra o temor do desconhecido que já começava a envolver a sua garganta, e focalizando a sua vontade no alvo da sobrevivência. Acima de tudo, deveria apegar-se às suas armas.

O Dr. No levantou-se e afastou-se da cadeira. Caminhou vagarosamente até a porta e voltou-se. Seus olhos negros e ameaçadores fixavam Bond, pouco abaixo da armação da porta. A cabeça estava ligeiramente inclinada e os lábios finos tornaram a se mexer: — Faça uma boa corrida para mim, sr. Bond. Meus pensamentos, como se costuma dizer, o acompanharão.

O Dr. No afastou-se e a porta fechou-se suavemente por trás de seus costados amarelos.


XVII - O PROLONGADO GRITO


Havia um homem no elevador, cujas portas estavam abertas, à espera. James Bond, com os braços ainda torcidos, junto aos flancos, foi impelido para dentro do elevador. Agora, a sala de jantar estava vazia. Quando voltariam os guardas para desembaraçar a mesa e então notar o desaparecimento dos objetos subtraídos? As portas fecharam-se e o cabineiro ficou diante dos botões, de modo que Bond não pôde ver qual deles teria sido apertado. Sabia apenas que estavam, subindo, e tentou fazer um cálculo da distância percorrida. O elevador parou, e Bond teve a impressão de que o tempo gasto naquele percurso fora menor do que quando descera juntamente com Honeychile. As portas abriram-se para um corredor sem tapete, com uma pintura cinzenta e rústica nas paredes de granito. Esse corredor ia numa linha reta até uma distância de vinte metros.

— Espere aí — disse o guarda de Bond para o cabineiro — voltarei logo.

Bond foi conduzido ao longo do corredor, passando diante de portas marcadas com letras do alfabeto. Ouvia-se um leve zunido de maquinaria no ar, e, por trás de uma porta, Bond teve a impressão de ouvir descargas estáticas de equipamento eletrônico. Aquilo parecia vir da sala de máquinas, no coração da montanha. Logo chegaram à porta da extremidade do corredor que estava marcada com um Q negro. Ela estava entreaberta, de modo que logo se escancarou quando Bond foi empurrado através dela. Por trás daquela porta estava uma cela pintada de cinzento, com cerca de quinze pés quadrados. Nela nada havia, a não ser uma cadeira de madeira, sobre a qual estavam, lavadas e cuidadosamente dobradas, as calças pretas de Bond e a sua camisa azul.

O guarda soltou os braços de Bond, que logo se voltou e olhou para o rosto amarelo, sob os cabelos ondeados. Havia um leve sinal de curiosidade e prazer nos olhos marrons e úmidos. O homem estava de pé, segurando a maçaneta da porta. — Bem, aqui estamos, rapaz. Você está no ponto de partida. Poderá ficar aí sentado, apodrecendo, ou procurar uma saída e iniciar a corrida. Felicidades para você.

Bond pensou que valeria a pena tentá-lo. Deu ainda uma olhadela para além do guarda, onde o cabineiro ainda se conservava ao lado de suas portas abertas, observando-os.

Então disse suavemente: — Você não gostaria de ganhar dez mil dólares, garantidos, e uma passagem para qualquer lugar do mundo que desejasse? — Dito isso, observou cuidadosamente as reações do homem. A boca se abriu numa ampla careta, mostrando dentes escurecidos, desigualmente gastos pelos anos de mascagem de cana-de-açúcar.

— Muito obrigado, senhor. Prefiro continuar vivendo. — O homem fez menção de fechar a porta e Bond ainda gritou ansiosamente: — Podemos sair juntos daqui.

Os grossos lábios fizeram uma careta de desprezo, e o homem apenas disse: “Vá em frente!” E logo a porta se fechou com um duro estalido.

Bond deu de ombros, mas logo passou a examinar a porta. Era feita de metal e não havia maçaneta do lado de dentro. Bond preferiu não experimentar o ombro de encontro àquela barreira. Aproximou-se da cadeira, sentou-se sobre a pilha de suas roupas limpas, e olhou à volta da cela. As paredes eram inteiramente nuas, com exceção de uma grade para ventilação, feita de arame grosso, num dos cantos, logo abaixo do teto. Aquela abertura era maior que os seus ombros. Era, evidentemente, a entrada para a pista dos obstáculos. A única abertura restante, naquele recinto, era uma espécie de vigia de espesso vidro, logo acima da porta, e que não seria maior do que a cabeça de Bond. A luz, vinda do corredor, atravessava aquela grade e penetrava na cela. Nada mais havia. Não seria inteligente perder tempo. Seriam dez e meia. Lá fora, em alguma parte da falda da montanha, a jovem já deveria estar deitada, estendida sobre o chão, à espera do matraquear das pinças no coral cinzento. Bond apertou os dentes ao pensamento daquele corpo frágil e indefeso sob as estrelas. Bruscamente, pôs-se de pé. Que diabo estava ele fazendo ali sentado? O que quer que existisse do outro lado da grade deveria ser imediatamente enfrentado.

Bond apanhou a faca e o isqueiro, e tirou o quimono. Em seguida vestiu as calças e a camisa, enfiando o isqueiro no bolso. Experimentou o corte da faca com o polegar, e verificou que a lamina era bastante afiada. Seria ainda melhor se pudesse fazer uma ponta naquela lâmina. Ajoelhou-se no chão e começou a esfregar a extremidade arredondada da faca na laje do pavimento. Depois de um precioso quarto de hora, deu-se por satisfeito. Não era um estilete, mas que tanto serviria para cortar como para espetar. Colocou-a então entre os dentes e arrastou a cadeira para baixo da abertura gradeada. A grade? Supondo que pudesse arrancá-la pela base, aquele arame bem poderia ser esticado, de modo a formar uma lança, facultando-lhe assim uma terceira arma. Bond esticou os braços, com os dedos encurvados.

A coisa imediata de que tomou consciência foi uma dor de queimadura ao longo do braço e o choque de sua cabeça, ao atingir o chão de pedra. Ficou durante algum tempo estendido no solo, apenas com a lembrança de uma faísca azulada e o estalido e o chiado seco de eletricidade.

Depois de algum tempo, Bond pôs-se de joelhos e assim ficou por um momento. Em seguida baixou a cabeça e sacudiu-a lentamente de um lado para outro, como um animal ferido. Sentiu um leve odor de carne queimada. Levantou a mão direita à altura dos olhos e viu a mancha vermelha de uma queimadura aberta ao longo da parte interna dos dedos. A visão daquele ferimento trouxe-lhe também a consciência da dor. Bond proferiu uma imprecação. Vagarosamente pôs-se de pé. Dessa vez, olhou de soslaio, cautelosamente, para a grade, como se ela fosse feri-lo novamente. Irritado, encostou a cadeira na parede, apanhou a faca e com ela cortou uma faixa do quimono, envolvendo-a firmemente nos dedos. Em seguida tornou a subir na cadeira e olhou para a grade. Esperava-se que ele a atravessasse, e aquele choque tinha sido calculado apenas para amolecê-lo: era uma amostra do que estaria por vir. Com certeza o curto-circuito causado por ele já tinha posto fora de combate aquela armadilha. Olhou para a grade apenas por um instante, e já os dedos de sua mão esquerda a atingiam e atravessavam. Do outro lado não havia nada. Seria mesmo só aquela grade? Puxou a armação e ela cedeu uma polegada. Fez novo esforço e a grade foi arrancada do lugar, ficando pendurada por dois fios de cobre que desapareciam no interior da parede. Bond soltou a grade das pontas daqueles fios e desceu da cadeira. Havia um ponto de junção no arame de ferro, naquela grade, e Bond pôs-se a retificá-la, usando a cadeira como martelo.

Depois de dez minutos tinha à sua disposição um chuço recurvado de cerca de um metro de comprimento. Uma des extremidades, que tinha sido originalmente cortada por alicates, apresentava-se lacerada. Não atravessaria as roupas de um homem, mas teria efeito devastador no pescoço ou no rosto. Lançando mão de toda sua força e servindo-se da fresta inferior da porta metálica, Bond conseguiu fazer ainda um gancho com a extremidade rombuda daquele arame de ferro. Em seguida mediu-o com a perna e achou que aquela nova arma era demasiado longa. Em conseqüência, dobrou-a em dois e enfiou-a numa das pernas da calça. Agora, o chuço ia de sua cintura, onde fora pendurado, até o joelho. Voltou então para a cadeira e tornou a subir até a boca do ventilador, agora desobstruída. Não experimentou mais choque. Ergueu o corpo e introduziu-o naquele tubo que tinha mais quatro polegadas que a largura de seus ombros. Durante algum tempo deixou-se ficar, de barriga para baixo, a olhar para o interior da abertura. O túnel era circular e de metal polido. Bond apanhou o isqueiro, abençoando a inspiração que o fizera roubá-lo, e acionou-o. Sim, aquilo era folha de zinco que parecia nova. O túnel continuava em linha reta, sem qualquer característica especial, a não ser as costuras de junção das várias seções tubulares. Bond tornou a meter o isqueiro no bolso e foi-se arrastando para a frente.

Aquele deslizamento não foi difícil, e até mesmo uma brisa fresca, proveniente do sistema de ventilação, afagava o rosto de Bond. O ar não trazia nenhum cheiro de mar, sendo o seu odor o mesmo que caracteriza o ar de uma instalação de condicionamento de temperatura. O Dr. No devia ter lançado mão de um dos tubos do sistema para as suas experiências. Mas que armadilhas teria introduzido naquele tubo, a fim de pôr à prova as suas vítimas? Deviam ser engenhosas e dolorosíssimas — imaginadas para reduzir a resistência de suas vítimas. No final dos obstáculos, com certeza, a vítima seria surpreendida com o golpe de misericórdia — se é que lograsse chegar ao fim. Com efeito, haveria ali algo que não admitisse escapatória, pois nessa corrida não haveria prêmios, mas apenas padecimentos. A não ser, naturalmente, que o Dr. No tivesse subestimado a vontade de sobrevivência de seu desafeto. Essa, pensou Bond, era a sua única esperança — tentar vencer todos os obstáculos que se lhe deparassem, rompendo pelo menos até a última estacada.

Havia uma pálida luminosidade à sua frente. Bond foi-se arrastando cautelosamente, com todos os seus sentidos atuando como antenas. Aquela luminosidade foi-se tornando mais clara. Era o reflexo da luz que incidia sobre um dos lados da extremidade do tubo. Continuou avançando até que sua cabeça tocou naquela extremidade. Aí, Bond se torceu sobre as costas e olhou para cima. Sobre sua cabeça estava uma chaminé de cerca de cinqüenta metros de altura, em cujo topo havia uma claridade estável. Era como se alguém olhasse através de um comprido cano de canhão. Bond enfiou a cabeça por aquela chaminé e pôs-se de pé. Então, esperava-se que ele galgasse aquele tubo liso, sem qualquer apoio para os pés! Seria possível? Bond expandiu os ombros. Sim, eles lhe proporcionariam uma boa adesão às paredes laterais. Seus pés também o ajudariam na empreitada, embora escorregassem terrivelmente, a não ser nas orlas em que se soldavam os tubos. Bond deu de ombros e tirou os sapatos. Não adiantava monologar. Teria apenas que tentar.

Seis polegadas de cada vez, e o corpo de Bond começou a deslizar pela chaminé acima. A operação consistia em expandir os ombros para se fixar à chaminé, depois levantar os pés, unir os joelhos fortemente, e forçar os pés para fora, em direções opostas, contra o metal, e rapidamente contrair e expandir os ombros novamente, ao mesmo tempo que os pés escorregavam para baixo, deixando, entretanto, como saldo uma pequena progressão de algumas polegadas. E continuar repetindo, repetindo e repetindo a operação, até que os seus olhos fossem banhados pela luz que vira no topo da chaminé. De quando em quando pararia na saliência da solda dos tubos, a fim de descansar um pouco, recuperar o fôlego e medir o próximo avanço. E não havia que olhar para cima; apenas concentrar-se nas polegadas de metal que deveriam ser vencidas, uma a uma. Nada de preocupações com a luminosidade que pareceria nunca aumentar ou se aproximar. Também não deveria preocupar-se com a possibilidade de afrouxar a pressão dos ombros contra as paredes metálicas, indo esmagar os tornozelos no fundo da chaminé. E nenhuma preocupação com cãibras, com o inchaço dos ombros ou com as esfoladuras dos pés. Apenas ataque às polegadas prateadas, conquistando-as uma a uma.

Mas logo os pés começaram a suar e escorregar de modo desesperador. Por duas vezes Bond perdeu um metro, em virtude do escorregamento de seus ombros, que ficaram terrivelmente escalavrados com o atrito, antes de poder conseguir a freagem. Em certa altura teve mesmo que se deter durante algum tempo para esperar que o suor secasse com a corrente de ar que descia pela chaminé. Essa pausa durou dez minutos, durante os quais ele se viu apagadamente refletido na superfície metálica, com o rosto dividido ao meio pela faca que segurava entre os dentes. Ainda assim recusou-se a olhar para cima, a fim de ver quantos metros teria que vencer. Aquela derradeira seção poderia ser muito longa. Cuidadosamente Bond esfregou cada pé num cano de calça e recomeçou a batalha.

Agora, parte de sua mente sonhava, enquanto a outra se empenhava na luta. Nem mesmo estava consciente de que a luminosidade se ia acentuando lentamente e que a brisa se tornava mais forte. Via-se apenas como uma lagarta ferida, arrastando-se por um cano de descarga em direção a um ralo de banheira. O que veria quando atravessasse o ralo? Uma jovem nua se enxugando? Um homem fazendo a barba? A luz do sol filtrando-se para dentro de um banheiro Vazio?

A cabeça de Bond bateu de encontro a alguma coisa. O ralo estava obstruindo o orifício! O choque do desapontamento fez que escorregasse uma polegada, antes que seus ombros pudessem retê-lo firmemente. Então compreendeu que tinha chegado ao topo da chaminé! Agora notava a luz forte e o vento impetuoso. Ansiosamente, ele se alçou novamente até que a cabeça tocou em algo. O vento soprava contra sua orelha esquerda. Cautelosamente, voltou a cabeça para essa direção. Era outro tubo lateral. Acima de sua cabeça a luz se escoava através de uma espessa vigia. Tudo o que tinha a fazer era contornar aquela derivação, agarrando-se à orla do novo tubo, e, de qualquer maneira, encontrar forças para se introduzir naquele túnel lateral. Então poderia descansar um pouco, deitado.

Com redobrada cautela, nascida do pânico de que algo agora podia acontecer, de que poderia cometer um erro e ser precipitado no fundo da chaminé, Bond empreendeu a manobra, com suas últimas reservas de forças, e introduzindo-se na nova caverna caiu estirado com o rosto para baixo.

Mais tarde — quanto tempo mais tarde? — os olhos de Bond se abriram e seu corpo estremeceu. O frio o tinha despertado da total inconsciência em que o seu corpo o teria lançado. Penosamente, virou-se de costas, com pés e ombros doendo terrivelmente, e procurou reunir todas as forças mentais e físicas. Não tinha a mínima idéia da hora ou do lugar em que estaria no interior da montanha. Levantou a cabeça e olhou para trás, em direção à vigia, sobre o tubo vertical, do qual escapara. A luz era amarelada e o vidro parecia muito grosso. Lembrou-se da vigia existente na sala Q. Aquela vigia era absolutamente inquebrável, e esta também o seria, pensou ele.

Subitamente, por trás daquele vidro, distinguiu movimento. Enquanto observava, um par de olhos se materializaram, por trás de lâmpadas elétricas. Aqueles olhos pararam e fitaram-no, com o farolete parecendo um nariz entre aqueles dois olhos. Fixaram-no negligentemente e depois desapareceram. Os lábios de Bond explodiram numa imprecação. Então o seu progresso estava sendo observado para ser levado ao conhecimento do Dr. No.

Bond disse em voz alta: “Para o diabo com todos eles!”,, e voltou-se colérico sobre o ventre. Levantou a cabeça e olhou para a frente. O túnel desaparecia na escuridão. Para a frente! Não adianta nada perder tempo aqui. Apanhou a faca, colocou-a entre os dentes e foi abrindo caminho.

Em breve já não havia mais nenhuma luminosidade. Bond detinha-se de quando em quando para acender o isqueiro mas nada encontrava a não ser trevas. O ar começou a se tornar mais cálido, dentro do túnel, e, depois de uns cinqüenta metros talvez, decididamente quente. Havia mesmo cheiro de calor no ar, de calor metálico. Bond começou a suar.. Dentro de alguns minutos seu corpo estava completamente encharcado e ele tinha que parar para limpar os olhos. Deu uma volta à direita, no tubo, e, na nova seção, sentiu o metal bastante quente contra a sua pele. O cheiro de calor metálico era agora bem acentuado. Assim que enfiou a cabeça no novo túnel, tirou o isqueiro do bolso, acendeu-o e rapidamente recuou. Amargamente, considerou a nova dificuldade, medindo-a e amaldiçoando-a. A chama de seu isqueiro tinha iluminado uma seção de tubos de zinco descolorido. A nova dificuldade seria o calor!

Bond resmungou alto. Como a sua carne já esfolada poderia resistir àquilo? Como poderia proteger a pele contra o metal? Mas não havia solução satisfatória. Ou voltaria, ou continuaria ali parado ou, afinal, avançaria. Não havia outra decisão a tomar. Aliás, Bond começava a encontrar algum consolo em suas reflexões. Com efeito, não seria o calor que haveria de matá-lo, mas alguma mutilação. O metal aquecido não seria o seu campo de sacrifício — apenas mais uma prova para medir-lhe a resistência.

Bond pensou na jovem e no que ela estaria sofrendo. Oh, sim, para a frente com aquilo. Agora, vejamos...

Bond apanhou a faca e cortou toda a parte da frente da camisa, fazendo com ela várias faixas. A única esperança estaria em dar alguma proteção às partes de seu corpo que mais sofreriam a ação do calor, isto é, os pés e as mãos. Seus joelhos e cotovelos teriam de resistir apenas com a proteção normal da fina camada de roupa. E, assim, dispôs-se à luta, amaldiçoando-a.

Agora estava pronto. Um, dois, três...

Bond dobrou o ângulo do túnel e lançou-se contra o foco de calor.

Mantenha a barriga nua distante do chão! Contraia os ombros! Mãos, joelhos, pés; mãos. joelhos, pés. Mais depressa! Mais depressa! Sempre mais depressa, de modo que cada toque contra o chão seja rapidamente seguido por outro.

Os joelhos é que mais estavam sofrendo, agüentando a maior parte do peso do corpo. Agora, as mãos envoltas em panos estavam começando a chamuscar. Acendeu-se uma fagulha, e logo outra, e em seguida surgiram chamas, quando as fagulhas começaram a se deslocar. A fumaça que saía daquele envoltório de pano de suas mãos fazia que os seus olhos ardessem penosamente. Por Deus, ele não agüentaria mais! Não havia mais ar. Seus pulmões estavam a ponto de estourar. Agora as suas duas mãos estavam lançando fagulhas para os lados. O tecido devia estar quase acabado; então a carne começaria a queimar. Bond deu um guinada e seu ombro ferido tocou no metal. Um grito de dor ecoou no túnel, logo seguido de outros gritos proferidos regularmente, quando suas mãos, pés ou joelhos tocavam no metal escaldante. Agora ele estava liquidado. Era o fim. Mais alguns segundos e iria cair de borco, morrendo literalmente queimado. Não! Devia opor um supremo esforço de reação, ainda que aos berros, até que toda a carne tivesse sido queimada até os ossos. A pele dos joelhos já devia ter sido completamente destruída. Mais um pouco e as palmas de suas mãos estariam tocando no metal. Apenas o suor que corria de seus braços poderia manter úmido o pano de suas mãos. Grite, grite, grite! Isto aliviará a dor.” Isto dirá que você está vivo. Continue! Continue! Não pode durar muito mais. Não é aqui que você deverá morrer. Não fraqueje! Você não pode!

A mão direita de Bond tocou em alguma coisa que cedeu. Logo sentiu uma corrente de ar frio. A outra mão bateu então em sua cabeça. Ouviu-se um débil ruído. Bond sentiu a orla inferior de um anteparo de amianto, articulado na parte superior do tubo, e que agora se arrastava em suas costas. Tinha vencido aquela prova. Ouviu o barulho daquele anteparo fechando-se novamente, depois de ter dado passagem a todo o seu corpo. Suas mãos estavam agora encostadas numa sólida parede. Com os dedos, apalpou à direita e à esquerda. Era um desvio em ângulo reto. Seu corpo seguiu cegamente volta do desvio e o ar frio parecia penetrar em seus pulmões como lâminas de aço geladas. Prudentemente, encostou os dedos no metal. Estava frio! Com um gemido Bond caiu sobre o rosto e ficou quieto.

Algum tempo depois, a dor tornou a reavivá-lo. Bond voltou-se dolentemente, de costas. Vagamente notou uma vigia de vidro acima de sua cabeça, e vagamente percebeu aquele mesmo par de olhos a fitá-lo. Depois, deixou novamente que as ondas de trevas o submergissem.

Aos poucos, na escuridão, as bolhas feitas em toda a pele e os pés e ombros queimados começaram a endurecer. O suor tinha-se secado no corpo e nos farrapos da roupa, enquanto o ar penetrara nos pulmões superaquecidos, começando o seu insidioso trabalho. Mas o coração continuava batendo, forte e regularmente, por dentro da torturada carcaça, e os poderes mágicos do oxigênio levaram nova vida para dentro das artérias e veias, recarregando os nervos.

Depois de um tempo que lhe pareceu infinito, Bond despertou. Estremeceu, e, ao encontrarem-se os seus olhos com o outro par que o espreitava, por trás do vidro, a dor se apoderou dele e sacudiu-o como se fosse um rato. Esperou que aquela descarga de dor o matasse. Tentou novamente, e novamente, até que conseguiu aquilatar toda a força do adversário. Em seguida, para esconder-se da testemunha, voltou-se sobre o estômago e resistiu a toda a dor que vinha de dentro de si próprio. Continuou em expectativa, explorando o corpo para verificar-lhe as reações, pondo à prova a força de decisão que ainda tivesse restado nas baterias. Quanto mais poderia ainda agüentar? Os lábios de Bond desprenderam-se dos dentes e ele rosnou na escuridão. Era um som animal. Tinha chegado ao fim de suas reações humanas à dor e à adversidade. O Dr. No o tinha encurralado. Mas ainda restavam reservas de desespero animal e, num animal forte, essas reservas são consideráveis.

Lentamente, em verdadeira agonia, Bond deslizou mais alguns metros para fora do campo visual daqueles olhos e procurou o seu isqueiro, acendendo-o. À sua frente via apenas uma lua cheia negra, a boca circular que o levaria ao estômago da morte. Bond guardou o isqueiro, respirou profundamente e pôs-se sobre os joelhos e mãos. A dor não foi maior, apenas diferente. Lentamente, com movimentos duramente articulados, avançou.

O tecido de algodão de seus joelhos e de seus cotovelos tinha sido completamente queimado. Entorpecidamente, seu cérebro foi registrando a umidade à medida que suas bolhas se abriam contra o metal frio. Enquanto se movia, ia simultaneamente flexionando os dedos e os pés, sentindo-lhes a dor. Lentamente foi sabendo o que poderia fazer, o que doeria menos. Esta dor é suportável, refletiu ele consigo mesmo. Se eu tivesse sofrido um desastre de avião, eles diagnosticariam apenas contusões e queimaduras superficiais. Teria alta do hospital dentro de alguns dias. Não há nada de sério comigo. Sou um sobrevivente de desastre. Dói, mas não é nada. Pense nos pedaços de carnes dos outros passageiros. Dê-se por feliz. Tire isso de sua cabeça. Mas, por trás de todas essa reflexões, estava o pensamento de que, em verdade, ele ainda não experimentara o desastre, — que ainda estava a caminho dele, com sua resistência e sua capacidade muito reduzidas. Quando chegaria ele? Que caráter teria? E quanto mais ainda seria ele amolecido antes de chegar à arena do sacrifício?

à frente, na escuridão, aqueles pequeninos pontos vermelhos bem poderiam ser uma alucinação, manchas rubras diante de seus olhos, causadas pela exaustão. Bond parou e apertou os olhos. Balançou a cabeça. Não, aqueles pontinhos vermelhos ainda estavam lá. Vagarosamente, arrastou-se para mais perto deles. Agora não havia dúvida de que eles se estavam movendo. Bond deteve-se novamente. Alem das batidas de seu coração, ouvia uma espécie de murmúrio suave e delicado. Aqueles pontinhos do tamanho de uma cabeça de alfinete tinham aumentado. Agora haveria vinte ou trinta, deslocando-se para a frente e para trás, alguns rapidamente, outros mais vagarosamente, em todo o círculo negro que o esperava à frente. Susteve o fôlego, assim que conseguiu acender o isqueiro. Os pontinhos vermelhos tinham desaparecido. Substituindo-os, ele viu a um metro de distância, à sua frente, uma tela muito fina, quase da finura de musselina, bloqueando o túnel.

Bond continuou deslocando-se por centímetros, para diante, com o isqueiro aceso à frente. Aquilo era uma espécie de gaiola, com pequeninos animais no seu interior. Podia ouvir aqueles diminutos seres fugindo à luz. A um pé apenas da tela apagou a luz e esperou que seus olhos se acostumassem à escuridão. Enquanto esperava, escutando, pôde ouvir novamente os pequeninos animais aproximarem-se dele, e, gradualmente, aquela floresta de pequeninos pontinhos vermelhos começou a se juntar, fitando-o através da tela.

Que seria aquilo? Bond ouviu seu coração bater com força. Serpentes? Escorpiões? Centopéias?

Cuidadosamente, foi aproximando os olhos daquela floresta de pontos luminosos. Aproximou o isqueiro bem junto da tela e acendeu-o bruscamente. Pôde apreender, num relance, a visão de pequeninas patas que atravessavam a tela e de dezenas de pés cabeludos e de ventres igualmente cabeludos com a forma de sacos, tendo em determinado ponto grandes cabeças de insetos que pareciam cobertas de olhos. Os animais fugiam em precipitada corrida, abandonando a tela da frente para irem refugiar-se na extremidade oposta da gaiola, formando uma só massa cinza-marrom.

Bond olhou através da tela, movendo o isqueiro para a frente e para trás. Depois apagou-o para economizar gasolina, e deixou que a respiração saísse por entre os dentes, num tranqüilo suspiro.

Eram aranhas, gigantescas tarântulas, de três ou quatro polegadas de comprimento. Haveria umas vinte delas dentro daquela gaiola. E, de qualquer maneira, ele teria que passar por perto delas.

Bond ficou parado, descansando e pensando, enquanto os olhos vermelhos se iam reunindo outra vez diante de seu rosto.

Qual seria o grau de letalidade daqueles animais? Quanto das lendas em torno delas seria mito? Certamente que podiam matar animais, mas em que medida seriam mortais para o homem aquelas gigantescas aranhas? Bond deu de ombros. Lembrou-se da centopéia. O toque das tarântulas seria muito mais suave. Seriam como o toque das patas de ursinhos de brinquedo contra a pele humana — até que mordessem e esvaziassem os seus folículos venenosos no organismo da pessoa.

Mas, ainda aqui, seria esta a arena do sacrifício derradeira, montada pelo Dr. No? Uma mordida ou duas, talvez, para mandar uma pessoa para um delírio de dor. O horror de ter que atravessar a tela no escuro — o Dr. No não teria pensado no isqueiro de Bond — varando aquela floresta de olhos, esmagando alguns corpos moles mas sentindo as picadas de outros. E depois mais picadas das que tivessem ficado presas à roupa. Em seguida, a lenta agonia do veneno. Este deveria ter sido o caminho percorrido pela imaginação do Dr. No — para que a vítima prosseguisse aos gritos pelo seu caminho. Para quê? Para a barreira final?

Mas Bond tinha o isqueiro, a faca e o chuço de arame. Tudo o que iria precisar era nervos e uma precisão infinita.

Delicadamente abriu a tampa do isqueiro e, com o polegar e indicador, fez sair o pavio uma polegada. Acendeu-o, e quando as aranhas recuaram, furou a tela com a faca. Fez um buraco na armadura e cortou para os lados. Depois, apanhou a aba da tela, que assim se desprendera, e arrancou-a da armadura. A tarefa não foi difícil, pois a aba fendeu-se numa só peça, com um tecido de algodão. Tornou a colocar a faca entre os dentes e atravessou a abertura. As aranhas recuaram diante da chama e amontoaram-se umas sobre as outras. Bond retirou o chuço de arame de dentro das calças e bateu com o arame dobrado sobre aqueles corpos moles. Bateu e tornou a bater ferozmente, reduzindo os aracnídeos a uma pasta informe. Quando algumas das aranhas tentaram escapar em sua direção, ele acenou-lhes com a chama e esmagou as fugitivas, uma a uma. Agora, as aranhas vivas estavam atacando as mortas, e tudo quanto Bond tinha a fazer era terminar o massacre.

Lentamente todos aqueles movimentos convulsivos foram declinando até cessarem completamente. Estariam todas mortas? Estariam algumas simulando morte? A chama do isqueiro estava começando a morrer. Teria que enfrentar o risco. Avançou mais um pouco e atirou aquela massa escura e pegajosa para um lado. Depois tirou a faca de entre os dentes e abriu a segunda cortina, puxando a aba cortada para cima da pasta feita com os corpos das tarântulas. A chama bruxuleou e tornou-se apenas um revérbero vermelho. Bond reuniu suas forças, atirou o corpo sobre a massa encoberta e atravessou a segunda tela.

Não sabia se teria posto os joelhos e cotovelos sobre limalhas metálicas ou sobre as aranhas. Tudo o que sabia é que tinha atravessado aquela barreira. Arrastou-se ainda por alguns metros para a frente, no interior do túnel, e depois parou para descansar e reunir coragem.

Sobre a sua cabeça veio uma pálida luz. Bond torceu-se para um lado, ficando de costas, para ver o que já esperava. Os olhos amarelos e amendoados fixavam-no com profundo interesse. Lentamente, por trás do farolete, a cabeça moveu-se de um lado para outro. As pálpebras caíram numa piedade fingida. Um punho cerrado, com o polegar apontando para baixo, à guisa de despedida e aniquilamento, interpôs-se entre o farolete e o vidro. Em seguida foi retirado e a luz apagou-se. Bond voltou o rosto para baixo e descansou a testa no chão metálico e frio. Aquele gesto dizia-lhe que ele estava chegando ao obstáculo final, que os seus algozes tinham dado por encerradas as observações até virem recolher os seus restos. Bond sentiu ainda que naquele rosto não houvera um único indício de louvor pelo fato de ter logrado sobreviver até aquela etapa. Aqueles chineses negros odiavam-no. Apenas queriam que ele morresse, e tão miseravelmente quanto possível.

Os dentes de Bond bateram suavemente. Ele pensara na jovem e este pensamento dera-lhe forças. Ainda não estava morto. Que diabo! Ele não iria morrer! Não enquanto o coração não lhe fosse arrancado do corpo.

Bond retesou os músculos. Era tempo de continuar, a investida. Com redobrado cuidado, recolocou as armas em seus lugares, e penosamente recomeçou a avançar pela escuridão.

O túnel começava a inclinar-se ligeiramente para baixo, o que tornava a progressão mais fácil. Logo a inclinação tornou-se tão acentuada que Bond podia deslocar-se apenas em virtude de seu peso. Era uma bênção não ter que fazer aquele esforço derradeiro com os músculos. Vislumbrou um clarão acinzentado à sua frente, pouco mais que uma redução das trevas completas, mas aquilo prenunciava uma mudança, pois a qualidade do ar parecia diferente. Havia nele um odor novo. O que seria? O mar?

Súbito, Bond compreendeu que estava escorregando para baixo, ao longo do túnel. Expandiu os ombros e abriu os pés, procurando impedir a queda. Aquele esforço causou-lhe terríveis dores e o efeito foi mínimo. Agora o túnel começava a alargar-se e ele já não poderia mais diminuir o impulso da queda! Seu deslizamento tornava-se mais e mais acelerado. Agora via uma curva à frente — e era uma curva dirigida para baixo.

O corpo de Bond logo chegou. àquela curva e contornou-a. Deus do céu, ele estava mergulhando de cabeça para baixo! Desesperadamente, abriu os braços e pernas. O metal esfolou sua pele. Agora tinha perdido completamente o controle da situação e estava mergulhando para baixo, sempre pára baixo, no interior de um cano de canhão. Muito abaixo havia um circulo de luz cinzenta. Seria o ar livre? O mar? A luz subia vertiginosamente para ele! Lutou para recuperar o fôlego. Continue vivo, idiota! Continue vivo!

Primeiro a cabeça, e logo depois o corpo de Bond precipitaram-se pelo espaço, vencendo aceleradamente a distância de mais de cem pés que o separava da superfície do mar.


XVIII - ARENA DE SACRIFÍCIO


O corpo de Bond espadanejou o espelho de um mar de alvorada como o impacto de uma bomba.

Enquanto descia precipitadamente pelo tubo prateado, em direção ao disco de luz, o instinto dissera-lhe que retirasse a faca de entre os dentes e que pusesse as mãos para a frente, a fim de aparar a queda, assim como a cabeça para baixo e o corpo rígido. E, na última fração de segundo, quando ele viu o mar que se alteava ao ritmo das ondas, procurou sorver uma longa inspiração. En conseqüência, projetou-se na água como se estivesse dando um mergulho, com os braços estendidos abrindo-lhe um buraco através do qual passaram a sua cabeça e o corpo. Conquanto, quando chegou a vinte pés de profundidade, tivesse perdido os sentidos, o despencar a sessenta e cinco quilômetros por hora não conseguira matá-lo.

Lentamente o corpo foi voltando à superfície, e ficou, com a cabeça para baixo, a balançar-se suavemente nas pequeninas ondas causadas pelo seu próprio mergulho. A água que penetrou nos pulmões de certa forma contribuiu para enviar uma última mensagem ao cérebro. As pernas e braços agitaram-se desajeitadamente. Agora tinha conseguido voltar a cabeça para cima, com a água escorrendo da boca. Tornou a afundar, mas dessa vez, instintivamente, as pernas começaram a mover-se procurando manter o corpo à superfície da água. Por fim, a cabeça, horrivelmente sacudida pela tosse, conseguiu vir para fora da água e assim manter-se. Os braços e as pernas começaram a agitar-se dèbilmente, com os movimentos natatórios de um cão, e através da cortina vermelha e negra, os olhos injetados de sangue viram a linha da vida e disseram ao dolente cérebro que visasse àquele objetivo.

A arena de execução era uma estreita e profunda enseada, na base de um elevado penhasco. A corda de salvamento em direção à qual Bond lutava, embaraçado pelo chuço metido em sua calça, era representada por uma forte tela de arame, que se estendia por dois lados do penhasco, protegendo aquela enseada do mar aberto. Aquela rede, formada de quadrados, estava suspensa a um grosso cabo situado a dois metros acima da superfície da água. Para baixo, a tela desaparecia nas profundezas, cheia de incrustações de algas.

Bond conseguiu chegar ao arame, e a ele agarrou-se como que crucificado. Durante quinze minutos deixou-se ficar na mesma posição, com o corpo de quando em quando sacudido por vômitos, até que se sentiu bastante forte para virar a cabeça e verificar onde estava. Ofuscadamente, os seus olhos tomaram a altura do penhasco, sobre sua cabeça. O lugar estava obscurecido por uma sombra cinzenta, projetada pela montanha, mas ao largo, no mar, havia uma iridiscência de pérola provocada pela aurora, o que significava que para o resto do mundo o dia estava amanhecendo. Mas onde Bond se encontrava era escuro e triste.

Lerdamente, a mente de Bond começou a se interrogar sobre aquela tela de arame. Qual seria a sua finalidade, fechando aquela escura enseada e separando-a do mar? Seria para manter alguma coisa do lado de fora ou para mantê-la do lado de dentro? Bond olhou vagamente para baixo, procurando penetrar as profundezas do mar, à sua volta. As malhas de arame perdiam-se no nada, sob os seus pés. Havia pequeninos peixes à volta de suas pernas, abaixo da cintura. Que estariam eles fazendo? Pareciam estar-se alimentando, avançando contra seu corpo e depois recuando com fiapos negros na boca. Fiapos de que? De algodão de seus farrapos? Bond sacudiu a cabeça para clarear as idéias. Tornou a olhar para baixo. Não, aqueles peixes estavam-se alimentando com seu sangue.

Bond estremeceu. Sim, o sangue estava escorrendo de seu corpo, dos ombros, dos joelhos, dos pés, e misturando-se à água. Agora, pela primeira vez sentiu a dor causada pela água salgada em suas feridas e queimaduras. A dor tornou-se mais viva e estimulou a sua mente. Se esses pequeninos peixes estavam gostando de seu sangue, o que dizer dos tubarões? Seria essa a finalidade daquela tela de arame, isto é, evitar que os peixes devoradores de seres humanos pudessem escapar para o mar? Então por que eles ainda não se tinham lançado sobre ele? Para o diabo! A primeira coisa a fazer era subir pelo arame e ganhar o outro lado. Interpor aquela tela entre ele e o que quer que vivesse naquele escuro aquário.

Dèbilmente, pé após pé, lá se foi Bond subindo pela tela, até chegar ao cume e passar para o outro lado, onde poderia descansar sem preocupações. Colocou o espesso cabo sob a axila, e olhou para baixo, contemplando os peixes que ainda se nutriam com o sangue que continuava gotejando de seus pés.

Agora já não havia muito em Bond; pouquíssimas reservas teria ele. O último mergulho no tubo, o choque da queda, na água, e a quase morte, causada por afogamento, tinham-no esmagado como a uma esponja. Estava prestes a entregar-se, prestes a soltar um pequeno suspiro e depois escorregar para os doces braços da água. Como seria bom abandonar-se, finalmente, e descansar — sentir que o mar suavemente o levava para o seu leito.

Foi a explosiva fuga dos peixes que estavam sorvendo o seu sangue, sob os seus pés, que despertou Bond de seu sonho de morte. Alguma coisa tinha-se movido muito abaixo da superfície. Havia uma trêmula claridade muito distante, mas que avançava lentamente para a superfície, aproximando-se pelo lado interno da tela.

O corpo de Bond se enrijeceu. Ante a iminência do perigo, a vida voltou-lhe num ímpeto, expulsando a letargia e comunicando-lhe renovada vontade de sobreviver.

Bond abriu os dedos aos quais, há muito, o seu cérebro ordenara que não perdessem a faca. Fechou os dedos e agarrou o cabo daquela lâmina. Abaixou-se em seguida e tocou no gancho do chuço que ainda se mantinha no interior da calça. Sacudiu vivamente a cabeça e ficou com os olhos alertas. E agora?

Sob os seus pés a água estremeceu. Alguma coisa estava-se debatendo, no fundo, alguma coisa enorme. Algo grande, de cor cinza luminescente, tornou-se visível, detendo-se muito abaixo da superfície, na escuridão. Alguma coisa se projetou daquela massa, em direção à superfície, algo como se fosse um chicote da grossura do braço de Bond. A extremidade daquela tira inchava-se numa terminação oval e achatada, com marcas semelhantes a botões distribuídos a espaços regulares. Aquele tentáculo rodopiou na água, no lugar em que os peixes tinham estado, e logo se encolheu. Agora só se via a grande sombra cinzenta lá embaixo da superfície. Que estaria fazendo o animal? Estaria...? Estaria provando o seu sangue?

Como que em resposta àquela pergunta, dois olhos, tão grandes quanto bolas de futebol, foram avançando para cima até se porem no campo de visão de Bond. Aqueles enormes olhos pararam vinte pés abaixo da superfície e olharam tranqüilamente para cima, fixando-se no rosto de Bond.

A pele de Bond ficou arrepiada nas costas. Sua boca deixou escapar um palavrão! Então, aquela era a Ultima surpresa do Dr. No, o fim da corrida!

Bond ficou de olhos abertos, meio hipnotizado, olhando para baixo. Então aquele era o polvo gigante, o monstro mítico que podia arrastar navios para as profundezas do mar, o monstro de cinqüenta pés de comprimento que podia dar combate às baleias e que pesava uma tonelada ou mais. O que mais sabia ele a respeito daqueles animais? Que tinham dois longos tentáculos para laçar e outros dez para agarrar; que tinham um enorme bico rombudo por baixo de olhos que eram os únicos olhos, entre os peixes, a trabalharem segundo o principio da câmara fotográfica, como os do homem: que seu cérebro era eficiente; que o monstro podia fugir para trás a uma velocidade de trinta nós, por um sistema de jato-propulsão. Sabia ainda que os arpões podiam afundar-se em sua manta de gelatina sem causar nenhum mal ao monstro, e que... mas os grandes olhos esbugalhados, que ofereciam um alvo negro e branco, estavam-se elevando em sua direção. A superfície da água estremecia. Agora Bond podia ver uma floresta de tentáculos que saíam da cara do animal. Ondulavam diante dos olhos do monstro como uma ninhada de grossas serpentes. Bond podia ver-lhe as ventosas sob os tentáculos. Atrás da cabeça, a grande aba da manta de gelatina abria-se e fechava-se suavemente, e, por trás dela, o brilho do corpo perdia-se nas profundezas. Por Deus, a coisa era tão grande quanto uma locomotiva!

Muito devagar e discretamente Bond foi enfiando os pés e depois os braços através dos quadrados da tela de arame, protegendo-se e ancorando-se tão sòlidamente que os tentáculos teriam que arrancá-lo dali aos pedaços ou então arrastar com ele todo aquele arcabouço de metal. Olhou para a direita e para a esquerda. Para qualquer lado, teria que vencer vinte metros, antes de chegar à terra. Mas, qualquer movimento, ainda que pudesse empreende-lo, séria fatal. Devia ficar absolutamente imóvel, rezando para que o monstro perdesse o interesse e se afastasse. Se ele não perdesse o interesse... Suavemente os dedos de Bond apertaram a pequenina faca.

Os olhos do monstro continuavam fitando-o, fria e pacientemente. Delicadamente, como a tromba de um elefante, um daqueles longos tentáculos laçadores emergiu da superfície e foi galgando a tela em direção às pernas de Bond. Tocou num de seus pés, e Bond sentiu o áspero beijo daquelas ventosas. Não se mexeu. Não ousava abaixar-se e afrouxar o enlaçamento de seus braços à volta do arame. Docemente as ventosas entraram em ação, experimentando o rendimento daquela presa. Não era bastante. Como uma gigantesca lagarta, o tentáculo foi subindo por sua perna. Parou à altura do joelho ensangüentado e deteve-se, interessado. Os dentes de Bond estalaram com a dor. Ele bem podia imaginar a mensagem que tinha descido por aquele tentáculo até o cérebro do animal: sim, é bom para comer-se! E a ordem de retorno ao tentáculo: então traga-o.

As ventosas continuaram subindo pela coxa. A extremidade do tentáculo se aflou e em seguida dilatou-se a ponto de quase cobrir toda a espessura da coxa de Bond. Depois reduziu-se à grossura de um pulso. Aquele seria o alvo de Bond. Apenas teria que agüentar a dor e resistir ao horror daquela acometida, esperando que esse pulso chegasse ao alcance de um golpe.

 

* *
Uma brisa, a primeira suave brisa da madrugada, soprou sobre a superfície metálica da enseada, levantando pequenas ondas que iam beijar a rocha do penhasco. Um bando de corvos marinhos alçou vôo da guaneira, quinhentos pés acima da enseada, e cacarejando suavemente, avançou em direção ao mar. Quando as aves passaram sobre a enseada, o barulho que as tinha perturbado chegou aos ouvidos de Bond — o tríplice apito de um navio, que indica estar a embarcação pronta para receber a carga. Aquele som chegava do lado esquerdo de Bond. O cais deveria estar situado a pequena distância contornando o braço setentrional da enseada. O navio procedente de Antuérpia tinha chegado. Antuérpia! Uma região do mundo exterior — um mundo que estava a um milhão de quilômetros de distância, fora do alcance de Bond — com certeza para sempre fora de seu alcance. Exatamente para além daquele braço rochoso a tripulação estaria no refeitório, tomando o seu desjejum. O rádio estaria tocando. Haveria o chiado do toicinho defumado e ovos na frigideira, o cheiro do café...


* * *


As ventosas estavam em sua coxa. Bond podia ver dentro daqueles cálices córneos. Um cheiro de maresia estagnada chegou-lhe às narinas, quando aquela mão vagarosamente serpenteou para cima. Seria muito duro o tecido gelatinoso cinza-escuro, por trás daquela mão? Deveria usar agora a faca? Não, o golpe deveria ser rápido e seguro, atingindo toda a espessura, como se se cortasse uma corda. Não importaria que a sua própria pele fosse atingida.

Agora! Bond lançou um rápido golpe de vista àqueles dois enormes olhos, lá embaixo, tão pacientes e tão negligentes. Nesse momento, o outro tentáculo elevou-se da superfície da água e avançou em direção ao seu rosto. Bond recuou a cabeça e a mão se enroscou num fio de arame diante de seus olhos. Num segundo aquela garra se deslocaria para um braço ou ombro, e ele estaria liquidado. Agora!

O primeiro tentáculo estava sobre suas costelas. Quase sem fazer pontaria, a mão de Bond que empunhava a faca caiu rapidamente para baixo e transversalmente. Sentiu a lâmina afundar naquele pudim carnoso, e quase deixou que ela escapasse de sua mão, quando o tentáculo ferido chicoteou pelo ar, desaparecendo na água. Por um momento o mar foi agitado à sua volta. Agora, o outro tentáculo abandonou o arame e agarrou-se ao seu ventre. A mão aflada prendeu-se como uma sanguessuga, com toda a força de sua sucção furiosamente aplicada. Bond gritou ao sentir o contacto daquelas ventosas em sua carne. Golpeou loucamente, mais e mais. Por Deus, o seu estômago estava sendo arrancado para fora! A tela agitou-se com a luta. Aos seus pés a água fervilhava e espumava. Ele teria que ceder. Um derradeiro golpe, desta vez nas costas daquela mão disforme. Deu resultado! A mão se agitou no ar e desceu serpeante, deixando vinte círculos vermelhos sangrando em sua pele.

Bond não tinha tempo para se preocupar com aquilo. Agora a cabeça do monstro tinha emergido, e os seus olhos brilhantes fixavam-se nele, avermelhados, enfurecidos, e a floresta dos tentáculos sugadores começava a envolver-lhe os pés e as pernas, dilacerando-lhe as roupas, para logo retornar aos seus membros. Bond estava sendo arrastado para baixo, polegada por polegada. O arame estava penetrando em suas axilas. Podia até mesmo sentir a sua espinha sendo distendida. Se ele continuasse resistindo seria partido ao meio. Agora, os olhos e o grande bico triangular estavam fora d’água, e o bico procurava o seu pé. Havia uma esperança, apenas uma!

Bond meteu a faca entre os dentes e sua mão procurou o gancho do chuço de arame. Agarrou aquela arma, e desdobrou-a com as suas duas mãos. Teria que soltar um dos braços para poder abaixar-se e se aproximar do alvo. Se falhasse, entretanto, seria reduzido a pedaços sobre a tela.

Agora, antes que morresse com a dor! Agora, agora! Bond deixou todo o seu corpo escorregar por aquela escada de arame, para baixo, e desferiu uma violenta estocada. Pôde ver que o pontaço de sua lâmina penetrava pelo centro de um enorme globo ocular negro, e imediatamente todo o mar se intumesceu para ele, como uma fonte de negrume, enquanto seu corpo se mantinha pendurado de cabeça para baixo, seguro pelos joelhos, com o rosto apenas uma polegada acima da superfície.

Que teria acontecido? Teria ficado cego? Não podia ver nada. Seus olhos estavam ardendo e havia um gosto horrível de peixe podre em sua boca. Contudo, podia sentir o arame cortando-lhe os tendões dos joelhos. Então devia estar vivo! Estonteado, Bond deixou que o chuço caísse de sua mão, e procurou o arame mais próximo. Depois, agarrou-se com a outra mão um pouco mais acima, e, assim, vagarosamente, foi-se alçando até que conseguiu sentar-se no cabo superior da cerca. Clarões de luz chegaram-lhe aos olhos. Passou uma das mãos pelo rosto. Agora podia ver. Fixou a sua mão: estava negra e pegajosa. Olhou para o seu corpo: estava também coberto por um lodo negro, e o preto tingia o mar numa extensão de vinte metros à sua volta. Então Bond compreendeu: o polvo ferido tinha esvaziado a sua bolsa de tinta contra ele.

Mas onde estava o monstro? Voltaria? Bond esquadrinhou o mar. Nada, nada além da enorme mancha negra que se continuava ampliando. Nem uma só ondulação! Então, nada de esperar! Fugir dali o mais depressa possível! Ansiosamente, Bond olhou para a direita e para a esquerda. Para a esquerda era na direção do navio, mas também na direção do Dr. No, enquanto para a direita seria para o nada. Para instalar aquela tela de arame, os trabalhadores deviam ter vindo da esquerda, na direção do cais. Devia haver algum caminho até ali. Bond começou a se deslocar frenèticamente pelo cabo superior, em direção à rocha, a vinte metros de distância.

O espantalho negro e sangrento movimentava os braços e pernas quase automaticamente. O aparelho pensante e sensorial de Bond já não fazia mais parte de seu corpo. Movia-se ao lado de seu corpo ou acima dele, mantendo apenas o contato necessário para puxar os cordéis que faziam o boneco trabalhar. Bond era como um verme secionado, cujas duas metades continuassem arrastando-se para a frente, conquanto a vida os tivesse abandonado para ser substituída pela vida ilusória dos impulsos nervosos. Apenas, no caso de Bond, as duas metades ainda não estavam mortas. A vida tinha somente se ausentado delas. Tudo quanto ele precisava era um grama de esperança, um grama de confiança, de convicção de que ainda valeria a pena tentar sobreviver.

Bond chegou à rocha, e lentamente desceu pela tela até a última malha. Contemplou vagamente o brilho palpitante da água. O mar estava negro e impenetrável. Deveria arriscar-se? Sem dúvida! Não podia fazer nada enquanto não tivesse lavado aquela camada de lodo e sangue, sem falar do horrível cheiro de peixe. Sombriamente, fatalisticamente, ele tirou os farrapos de sua camisa e calças, pendurando-os no cabo. Olhou para baixo, para seu corpo marrom e branco, salpicado de vermelho. Instintivamente, procurou sentir seu pulso, que se apresentava lento mas regular. As firmes palpitações de vida reanimaram o seu espírito. Por que diabo estava ele se lamuriando? Estava vivo. As feridas e machucaduras em seu corpo não eram nada — absolutamente nada. Eram horríveis, mas nada estava quebrado. Por dentro do invólucro maltratado, a máquina estava trabalhando serena e seguramente. Cortes superficiais e esfoladuras, recordações sangrentas, cansaço mortal — estes seriam ferimentos dos quais se riria uma enfermeira experiente. Para a frente, seu bastardo! Para a frente! Limpe-se e levante-se. Conte as suas bênçãos. Pense na jovem. Pense no homem que você deverá encontrar e matar. Agarre-se à vida como se agarrou à faca entre os dentes. Acabe com esta autopiedade. Para o diabo com o que acaba de acontecer! Para dentro d’água e lave-se!

Dez minutos mais tarde, Bond, com seus farrapos molhados colados ao corpo já esfregado, e com os cabelos repuxados para fora dos olhos, galgava o cimo do penhasco.

Sim, era como ele tinha imaginado. Uma picada estreita e rochosa, feita pelos pés dos trabalhadores, descia para o outro lado, contornando a saliência do penhasco.

Das proximidades chegaram vários sons e ecos. Um guindaste estava trabalhando. Podia ouvir os ritmos variáveis de seu motor. Ouviam-se os barulhos peculiares, aos navios de ferro, bem como o ruído da água que era lançada ao mar por uma bomba de porão.

Bond olhou para cima, para o céu, que estava de um azul pálido. Nuvens manchadas de ouro e reflexos rosados derivavam em direção ao horizonte. Muito acima dele, os corvos marinhos esvoaçavam em torno da guaneira. Em breve estariam fazendo-se ao mar, em busca de alimentos. Talvez, agora, mesmo, estivessem vigiando os grupos de reconhecimento, longe, sobre o mar, na faina de localizarem os peixes. Seriam cerca de seis horas — a aurora de um belo dia.

Bond, deixando gotas de sangue atrás de si, seguiu o seu caminho cuidadosamente pela picada abaixo, beirando o sopé do penhasco. Para além da curva, a picada se infiltrava por um terreno cheio de pedras espalhadas. Os ruídos iam-se tornando mais altos. Bond ia avançando cuidadosamente, evitando pisar em pedras. Uma voz se fez ouvir surpreendentemente perto: ‘”Pronto para largar?” E logo uma resposta distante: “Pronto”. O motor do guindaste acelerou. Mais alguns metros. Mais um pedregulho; e mais outro. Agora!

Bond se ocultou por trás da rocha e cautelosamente meteu a cabeça para fora, a fim de observar.

 

CONTINUA

XVI - HORAS DE AGONIA


Uma voz, por trás de Bond, disse serenamente: — O jantar está servido.

Bond voltou-se para trás. O anunciante fora o guarda-costas, que tinha a seu lado outro homem que bem poderia ser seu irmão gêmeo. Ali ficaram eles, duas barricas de musculatura, com as mãos mergulhadas nas mangas dos quimonos, olhando, por cima da cabeça de Bond, para o Dr. No.

— Ah, já nove horas. — O Dr. No levantou-se lentamente e disse: — Vamos. Podemos continuar a nossa conversação em ambiente mais íntimo. Foi muita bondade dos senhores terem ouvido a minha história com paciência tão exemplar. Espero que a modéstia de minha cozinha e de minha adega não representem mais uma imposição.

Portas duplas tinham sido conservadas abertas por trás dos dois homens de jaquetas brancas. Bond e a jovem atravessaram-nas seguindo o Dr. No, indo ter a uma sala octogonal, com as paredes recobertas de painéis de mogno, e ao centro um candelabro de prata, sob o qual estava posta uma mesa para três pessoas. O tapete simples, azul-escuro, era luxuosamente espesso. O Dr. No tomou a cadeira central, de espaldar alto, e indicou cortesmente, com uma inclinação, a cadeira à sua direita para a jovem. Sentaram-se e abriram guardanapos de seda branca.

A cerimônia vazia e a encantadora sala deixavam Bond louco. Ansiava por despedaçar tudo aquilo com as próprias mãos, por passar o seu guardanapo de seda à volta do pescoço do Dr. No e apertá-lo até que aquelas lentes de contato saltassem daqueles malditos olhos negros.

Os dois guardas usavam luvas de algodão branco. Serviram as iguarias com suave eficiência que era instigada por uma ocasional palavra chinesa proferida pelo Dr. No.

A princípio o Dr. No parecia preocupado. Lentamente, ingeriu três taças de diferentes sopas, utilizando-se de uma colher dotada de um cabo curto e que se adaptava perfeitamente entre as pinças de sua mão mecânica. Bond esforçou-se por esconder os seus temores da jovem. Sentou-se afetando uma atitude de relaxamento e comeu e bebeu com forçado apetite. Falou ainda animadamente com a jovem sobre Jamaica — sobre aves e animais, assim como fores, que constituíam fáceis assuntos de conversação para Honeychile. De vez em quando os seus pés tocavam nos dela, sob a mesa. Ela quase chegou a ficar alegre. Bond pensou que ambos estavam fazendo uma bela imitação de namorados comprometidos, que estivessem saboreando um jantar oferecido por um tio detestável.

Bond não tinha a mínima idéia sobre se o seu fraco blefe tinha surtido algum efeito. Assim, não deu grande importância às suas possibilidades. O Dr. No, assim como a sua história, eram perfeitamente impenetráveis. A incrível biografa parecia verdadeira. Nem uma só palavra daquele relato era impossível. Talvez houvesse outras pessoas no mundo com os seus reinos particulares — reinos afastados dos caminhos trilhados por homens comuns, sem testemunhas, onde pudessem fazer o que bem entendessem. E que estaria planejando fazer o Dr. No, depois que tivesse esmagado as moscas que tinham vindo incomodá-lo? E se eles fossem mortos — e quando o fossem — Londres conseguiria recolher os fios que ele, Bond, tinha recolhido? Provavelmente conseguiria. Lá estava Pleydell-Smith, e as provas das frutas envenenadas. Mas até onde a substituição de Bond iria afetar o Dr. No? Não muito. O Dr. No daria de ombros ao desaparecimento de Bond e Quarrel. Nunca teria ouvido falar deles. E não haveria qualquer elo com a jovem. Em Porto Morgan, todos pensariam que ela se tinha afogado em suas expedições. Era difícil saber o que poderia interferir com o Dr. No — com o segundo capítulo de sua vida, qualquer que ele fosse.

Sob aquela conversa com a jovem, Bond foi-se preparando para o pior. Ao lado de seu prato havia algumas facas. Então chegaram as costeletas, perfeitamente cozidas, e Bond tocou em várias facas, hesitante, até que escolheu a do pão para cortá-las. Enquanto comia e conversava foi deslocando a grande lâmina de aço para perto do corpo. Um gesto largo da mão direita derrubou o seu copo de champanha e, numa fração de segundo, enquanto o copo se partia, sua mão esquerda enfiou a lâmina para dentro da manga do quimono. Em meio às suas desculpas, e à confusão que se seguiu, enquanto os guardas enxugavam a champanha derramada na mesa, Bond levantou o braço esquerdo e sentiu que a faca deslizava para baixo do braço e depois caía para dentro do quimono, ficando encostada às suas costelas. Quando acabou de comer as costeletas, apertou o cinto de seda, à volta da cintura, ao mesmo tempo que deslocava a faca para diante da barriga. A faca aninhou-se. confortàvelmente contra a sua pele e em pouco tempo o aço da lâmina foi-se tornando aquecido.

Por fim veio o café e a refeição foi dada por terminada. Os dois guardas se aproximaram e postaram-se por trás das cadeiras da jovem e de Bond. Tinham os braços cruzados sobre o peito, impassíveis, sem nenhum movimento, como carrascos.

O Dr. No pousou delicadamente a sua xícara no pires e descansou as duas pinças de aço sobre a mesa. Depois se endireitou um pouco na cadeira e virou o corpo, apenas uma polegada, em direção de Bond. Agora não havia o mínimo sinal de preocupação em seu rosto. Os olhos eram duros e diretos. A boca fina contraiu-se e abriu-se: — Apreciou o jantar, sr. Bond?

Bond apanhou um cigarro numa caixa de prata que estava à frente e acendeu-o. Depois, pôs-se a brincar com o isqueiro de prata que estava sobre a mesa. Sentia que más noticias iriam chegar. Pensou que deveria meter aquele isqueiro no bolso, de qualquer maneira. O fogo talvez viesse a ser mais uma arma. Respondeu com facilidade: — Sim, estava excelente. — Em seguida olhou para Honeychile. Curvou-se sobre a mesa e descansou os braços sobre ela, e logo cruzou-os, envolvendo o isqueiro com esta manobra. Sorriu para ela: — Espero ter pedido o que você gosta.

— Oh, sim, estava magnífico. — Para ela a recepção ainda estava continuando.

Bond fumava afanosamente, agitando mãos e braços, a fim de criar uma atmosfera de movimento. Voltou-se para o Dr. No, apagou o toco de seu cigarro e reclinou-se na cadeira. Cruzou os braços sobre o peito. O isqueiro já estava sob o seu sovaco esquerdo. Riu animadamente:

— E o que acontecerá agora, Dr. No?

— Podemos continuar com a nossa distração de após-jantar, sr. Bond. O leve sorriso contraiu-se e desapareceu.

— Examinei a sua proposta sob todos os aspectos. Não a aceito.

Bond deu de ombros e observou: — O senhor não é sensato.

— Não, sr. Bond. Receio que a sua proposta não passe de uma isca dourada. Em sua profissão não se atua como o senhor quer sugerir. Os agentes enviam relatórios rotineiros para o quartel-general. Mantêm seus chefes a par dos progressos das investigações que fazem. Conheço essas coisas. Os agentes secretos não se comportam como o senhor sugeriu ter agido. O senhor esteve lendo muitas novelas de aventuras, e o seu pequeno discurso mostrou com muita facilidade o papelão pintado. Não, sr. Bond, não aceito a sua história. Se ela for verdadeira, estou preparado para enfrentar as conseqüências. Tenho muita coisa em jogo para ser facilmente desviado de meu caminho. Que venham a polícia e os soldados. Onde estão o homem e a jovem? Que homem e que jovem? Não sei de nada. Por favor, retirem-se, os senhores estão prejudicando a minha guaneira. Onde estão as suas provas, o seu mandado de prisão? A lei inglesa é rigorosa, meus senhores. Voltem para casa e deixem-me em paz com os meus queridos corvos marinhos. Está vendo, sr. Bond? E digamos mesmo que o pior redunde em pior. Que um de meus agentes fale, o que é altamente improvável. (Bond lembrou-se da fortaleza da srta. Chung). Que tenho eu a perder? Mais duas mortes no libelo acusatório. Mas, sr. Bond, um homem só pode ser enforcado uma vez: — A elevada cabeça, em forma de pêra, agitava-se suavemente, de um lado para outro. — O senhor tem mais alguma coisa a dizer? Alguma pergunta? Ambos irão ter uma noite muito ocupada e o tempo de que dispõem está-se tornando escasso. Quanto a mim, devo ir dormir. O navio que chega mensalmente deverá atracar amanhã e eu terei que supervisionar o carregamento. Passarei todo o dia no cais. Certo, sr. Bond?

Bond olhou para Honeychile. Ela estava mortalmente pálida. Olhava com olhar esgazeado, esperando pelo milagre que ele deveria operar. Bond olhou para as próprias mãos e examinou cuidadosamente as unhas. Depois, disse, para ganhar tempo: — E então, após seu dia ocupado com o carregamento, o que virá em seu programa? Qual o novo capítulo que o senhor pensa escrever?

Bond não levantou o olhar. A profunda e serena voz autoritária caiu sobre ele como se tivesse vindo do céu escuro.

— Ah, sim, o senhor deve ter estado a pensar nisso.

O senhor tem o hábito da investigação. Os hábitos persistem até o fim, até as sombras. Admiro tais qualidades num homem que tem apenas algumas horas mais para viver. Por isso, dir-lhe-ei. Encetarei um novo capítulo, e isso o consolará. Há muito mais nesta ilha do que uma simples guaneira. O seu instinto não o enganou, sr. Bond.

O Dr. No fez uma pausa para dar mais ênfase ao que iria dizer e continuou: — Esta ilha, sr. Bond, está em vésperas de se transformar num dos mais valiosos centros de informação técnica do mundo.

— De fato? — Bond mantinha os olhos fixos em suas mãos.

— Sem dúvida que o senhor não ignora que Turks Island, a trezentas milhas, de distância daqui, através de Windward Passage, constitui o mais importante centro para a experimentação de projéteis teleguiados dos Estados Unidos?

— Sim, é um importante centro de experiências.

— Talvez o senhor tenha lido sobre os foguetes que recentemente se desviaram de sua rota? O “Snark” de múltiplas fases, por exemplo, que terminou o seu vôo nas florestas do Brasil, ao invés de ir perder-se nas profundezas do Atlântico Sul?

— Sim.

— O senhor se lembrará que ele se recusou a obedecer as instruções que lhe foram enviadas por rádio, no sentido de modificar a sua rota, e até mesmo de se destruir a si mesmo. Ele desenvolvera uma vontade própria.

— Lembro-me.

— Houve outras falhas, falhas decisivas, na longa lista dos protótipos — o Zuni, o Matador, o Petrel, o Regulus, o Bomarc — tantos nomes, outras tantas modificações, nem posso lembrar-me deles todos. Bem, sr. Bond, — o Dr. No mal podia esconder uma nota de orgulho em sua voz — talvez lhe interesse saber que a maioria desses fracassos foi causada de Crab Key.

— É verdade?

— Não me acredita? Não tem importância. Outros acreditam-no. Outros que viram o abandono de toda uma série, o Mastodonte, em virtude de seus freqüentes erros de navegação, sua incapacidade de obedecer às ordens enviadas pelo rádio, de Turks Island. Esses outros são os russos. Os russos são meus sócios nesta empreitada. Treinaram seis dos meus homens, sr. Bond. Exatamente neste momento tenho dois desses homens observando, estudando as freqüências de rádio, as faixas nas quais trabalham esses engenhos. Há um milhão de dólares de instalações, nas galerias rochosas, acima de nossas cabeças, sr. Bond, enviando sinais para a camada de Heavyside, aguardando os sinais, perturbando-os, contrabalançando faixas com outras faixas. E, de vez em quando, um foguete sobe em seu itinerário e aprofunda-se cem, quinhentas milhas, pelo Atlântico, enquanto nós anotamos cuidadosamente a sua trajetória, com a mesma perfeição com que isto é feito na Sala de Operações de Turks Island. Em seguida, subitamente, as nossas pulsações são enviadas ao foguete, o seu cérebro é perturbado, ele enlouquece e mergulha no mar, destruindo-se. Foi mais uma experiência que fracassou. Os operários levam a culpa, assim como os projetistas e os fabricantes. Há pânico no Pentágono. Outra coisa deve ser tentada, freqüências diversas, metais diversos, um cérebro eletrônico diferente. Naturalmente que também temos as nossas dificuldades. Assim é que assinalamos muitos disparos experimentais sem sermos capazes de chegar até o cérebro do novo engenho. Então, comunicamo-nos urgentemente com Moscou. Com efeito, eles deram-nos até uma máquina de cifras com as nossas freqüências e rotinas. E os russos continuam pensando, fazem sugestões, e nós as experimentamos. Por fim, sr. Bond, um belo dia, é como se atraíssemos a atenção de um homem perdido numa multidão. Lá no alto, na estratosfera, o foguete reconhece o nosso sinal. Somos reconhecidos e podemos falar com ele e modificar os seus pensamentos. — O Dr. No fez uma pausa e depois continuou: — O senhor não acha isso interessante, esta variante de meus negócios com o guano? Asseguro-lhe que é um negócio muito lucrativo, e podia sê-lo ainda mais. Talvez a China comunista venha a pagar mais pelos meus serviços. Quem sabe? Já tenho os meus agentes em campo, para sondagens.

Bond ergueu os olhos, olhando pensativamente para o Dr. No. Então ele tinha tido razão. Havia mesmo mais alguma coisa, muito mais, em tudo aquilo que os seus olhos tinham visto. Aquilo era uma grande partida, uma partida que explicava tudo, uma partida que no mercado internacional da espionagem bem valia a pena ser jogada. Bem, bem! Agora, as peças do quebra-cabeças tinham caído corretamente em seus lugares. Para isso tinha valido a pena, certamente, assustar alguns pássaros e eliminar algumas pessoas. Isolamento? Naturalmente que o Dr. No teria que matar a ele e à jovem. Poder? Sim, isso era poder. O Dr. No se tinha realmente lançado nos negócios.

Bond fixou os dois orifícios negros com um novo respeito, e observou: — O senhor terá que matar muito mais gente para manter isto em suas mãos, Dr. No. Isto vale muito dinheiro. O senhor tem aqui uma bela propriedade, superior ao que eu pensava, e as pessoas hão-de querer um pedaço deste bolo. Penso em quem será o primeiro a chegar até o senhor e matá-lo. Serão aqueles homens que estão lá em cima, treinados por Moscou? — e ele fez um gesto apontando para o teto. Depois continuou: — Eles são os técnicos. Eu me pergunto: o que Moscou estará lhes ordenando que façam? O senhor não poderia estar a par disso, poderia?

O Dr. No respondeu: — Vejo que continua subestimando meu valor, sr. Bond. O senhor é um homem obstinado e mais estúpido do que pensava. É claro que estou consciente dessas possibilidades. Separei um desses homens e transformei-o numa espécie de vigilante particular. Ele tem uma duplicata das cifras e da máquina. Vive em outra parte da montanha. Os outros pensam que ele morreu, mas ele está bem vivo a fiscalizar a cronometragem de rotina, e entrega-me diariamente uma cópia do tráfego que é registrado. Até agora os sinais emitidos por Moscou têm sido inocentes e não indicam qualquer conspiração. Penso em tudo isso constantemente, sr. Bond. Tomo precauções e ainda as multiplicarei para o futuro. Como disse, o senhor me tem subestimado.

— Não o subestimo, Dr. No. O senhor é um homem muito prudente, mas já há muitas pastas sobre o senhor. Em minha linha de atividades, a mesma coisa se aplica a mim, mas as suas pastas são muito perigosas. A chinesa, por exemplo. Não gostaria de ter uma com essa gente. A da FBI deve ser a menos penosa — roubo e falsa identidade. Mas o senhor conhece os russos tão bem quanto eu? Por enquanto o senhor é “o melhor amigo” deles. Mas os russos não têm sócios. Hão-de querer comprá-lo... — comprá-lo com um balaço. Depois vem a pasta que o senhor abriu com o meu serviço. O senhor quererá mesmo fazê-la mais volumosa? Eu não o faria se estivesse em seu lugar, Dr. No. O pessoal do meu serviço é muito obstinado. Se alguma coisa me acontecer e à jovem, o senhor verificará que Crab Key é uma ilha muito pequena e insignificante.

— Não se pode jogar grandes partidas sem assumir riscos, senhor Bond. Aceito os perigos e, até onde posso, procuro defender-me deles. Como vê — e a sua voz tinha um acento de cupidez — estou em vésperas de coisas muito maiores. O capítulo dois, ao qual já me referi, encerra promessa de prêmios que ninguém, a não ser um tolo, jogaria fora por ter medo. Já lhe disse que posso desviar os raios magnéticos por onde viajam os foguetes. Posso fazer com que estes mudem de rota e não obedeçam ao controle eletrônico. Que diria o senhor, se eu fosse ainda mais longe? Se eu os fizesse cair nesta ilha, a fim de recolher todos os segredos de sua construção? Atualmente, destróieres norte-americanos, nos confins do Atlântico Sul, recolhem esses foguetes quando eles esgotam o seu combustível e caem de pára-quedas sobre o mar. Algumas vezes os pára-quedas deixam de se abrir, e algumas vezes as instalações de autodestruição deixam de operar.

Ninguém em Turks Island se sentiria surpreendido se de vez em quando o protótipo de uma nova série saísse de sua trajetória e caísse perto de Crab Key. Antes de mais nada, isto seria atribuído a falhas mecânicas. Mais tarde talvez descobrissem que outros sinais, que não os seus, tinham estado a guiar os seus foguetes. Teria início, então uma guerra de freqüência. Tentariam e conseguiriam localizar a origem dos sinais falsos, mas assim que eu verificasse que eles estavam à minha caça, teria uma derradeira cartada. Os seus foguetes enlouqueceriam. Cairiam em Havana, em Kingston; dariam uma volta e despencariam sobre Miami. Mesmo sem as cargas detonantes, Sr. Bond, cinco toneladas de metal, chocando-se a mil milhas por hora, podem causar terríveis danos numa cidade super-povoada. E depois? Haveria pânico, haveria um clamor público. As experiências teriam de ser interrompidas. A base de Turks Island teria que fechar. E quanto não pagariam os russos para que isso acontecesse, sr. Bond? E quanto por protótipo que eu capturasse para eles? Digamos dez milhões de dólares por toda a operação? Vinte milhões? Seria uma vitória sem preço na corrida dos armamentos. Posso fazer o meu preço, não concorda, sr. Bond? E não concorda também que essas considerações tornam os seus argumentos e ameaças engraçadíssimos?

Bond não respondeu. Nada havia a dizer. Subitamente se viu em pensamento naquela sala tranqüila de Regents Park. Podia ouvir a chuva batendo suavemente contra a janela e a voz de M, impaciente e sarcástica, dizendo: “Oh, algum maldito negócio em torno de aves... umas férias ao sol lhe farão bem... investigações rotineiras.” E ele, Bond, tinha apanhado uma canoa, um caniço e um farnel de piquenique e partira — há quantos dias, há quantas semanas? — “para dar uma espiada”. Bem, ele tinha dado uma espiada na caixa de Pandora. E tinha tido as respostas, conhecera os segredos — e agora? Agora iriam mostrar-lhe polidamente o caminho para a sepultura, para onde ele levaria consigo o seus segredos arrancados e arrastados por ele em sua lunática aventura. Toda a amargura que lhe ia no íntimo aforou à boca, de modo que por um momento pensou que ia vomitar. Apanhou o copo e esvaziou todo o resto de champanha que nele havia. Depois disse asperamente: — Muito bem, Dr. No. Agora vamos ao cabaré. Qual é o programa — faca, bala, veneno, corda? Mas proceda rapidamente, já o vi bastante.

Os lábios do Dr. No se apertaram numa fina linha arroxeada. Os olhos eram duros como ônix, sob a bola de bilhar de sua fronte e crânio. A máscara de polidez tinha desaparecido. O Grande Inquisidor sentava-se na cadeira de alto espaldar. Tinha soado a hora para a “peine forte et dure”.

O Dr. No proferiu uma palavra e os dois guardas avançaram um passo e agarraram as suas vitimas pelos braços, acima dos cotovelos, mantendo-as imobilizadas para trás, apoiadas nos lados das cadeiras. Não houve resistência. Bond concentrou-se em manter o isqueiro sob o sovaco. As luvas brancas em seus bíceps pareciam faixas de aço. Sorriu para a jovem. — Desculpe-me por isso, Honey, — disse. — Receio que afinal de contas não possamos mais brincar juntos.

Os olhos da jovem, em seu rosto pálido, tinham ficado azul-escuros, pelo medo. Seus lábios tremiam, e ela perguntou: — Doerá muito?

— Silencio! — A voz do Dr. No soou como o estalar de um chicote. — Chega de tolices. Naturalmente que doerá. Estou interessado na dor. E estou igualmente interessado em descobrir quanto de dor o corpo humano pode suportar. De vez em quando faço experiências com os meus subordinados que devem ser punidos, e em intrusos como os senhores. Acarretaram-me os senhores grandes dificuldades. Em troca, pretendo causar-lhes uma grande soma de dor. Registrarei os níveis de suas resistências. Os fatos serão anotados, e um dia as minhas pesquisas serão relatadas ao mundo. As suas mortes terão servido à Ciência. Nunca desperdiço material humano. As experiências feitas pelos alemães com seres humanos vivos, durante a guerra, foram de grande proveito para a Ciência. Faz um ano que pus uma mulher para morrer da maneira que escolhi para a senhora. Ela era uma negra e durou três horas, mas morreu de terror. Queria agora fazer a experiência com uma mulher branca, para poder estabelecer uma comparação. Não me surpreendi quando a sua chegada me foi comunicada. Consigo sempre o que quero. — O Dr. No reclinou-se para trás na cadeira. Seus olhos estavam agora fixos na jovem, estudando-lhe as reações. Honeychile correspondia ao olhar, como que meio hipnotizada, como um rato do mato diante de uma cascavel.

Bond apertou os dentes.

— A senhora é uma jamaicana, por isso saberá o que quero dizer. Esta ilha chama-se Crab Key. Recebeu este nome porque está infestada de caranguejos — o que chamam em Jamaica “caranguejos negros”. A senhora os conhece. Pesam meio quilo, cada um, e têm o tamanho de um pires. Nesta época do ano eles saem aos milhares de seus esconderijos, próximos à costa, e sobem em direção à montanha. Lá, nos planaltos de coral, eles se alojam novamente em buracos da rocha, onde desovam. Avançam em exércitos de centenas, de cada vez. Atravessam tudo e sobre tudo. Em Jamaica eles invadem as casas e não se desviam de seu caminho. São como certos roedores da Noruega. É uma migração irresistível. — O Dr. No fez uma pausa. Em seguida acrescentou suavemente: — Mas há uma diferença. Os caranguejos devoram o que encontram em seu caminho. E agora, minha senhora, eles já estão em marcha. Estão galgando as faldas da montanha, às dezenas de milhares, em ondas negras e vermelho-laranja. Estão, neste momento, se apressando e se empurrando e arranhando a rocha acima de nós. E esta noite, no meio do seu caminho, eles vão encontrar o corpo nu de uma mulher sòlidamente preso — um banquete preparado para eles — e vão apalpar o corpo morno com suas pinças, e um deles dará o primeiro corte com suas garras de combate e então... e então...

A moça gemeu. Sua cabeça caiu para a frente sobre o peito. Desmaiara. O corpo de Bond inteiriçou-se na cadeira. Uma torrente de palavras obscenas escapou por entre seus dentes cerrados. As manoplas dos guardas pareciam-lhe ferro à volta dos braços. Nem sequer podia fazer deslizar os pés da cadeira no chão. Depois de um momento de luta, desistiu. Esperou que sua voz se acalmasse, e disse então, com todo o veneno que podia instilar nas palavras:

— Seu bastardo! Você há-de frigir no inferno se fizer isso!

O Dr. No sorriu fracamente.

— Senhor Bond, não acredito na existência do inferno. Procure consolar-se. Talvez eles comecem pela garganta ou pelo coração. O bater do pulso ainda os poderá atrair. Depois disso, tudo acabará depressa.

Proferiu então uma sentença em chinês. O guarda que estava atrás da cadeira da moça inclinou-se para a frente, levantou-a da cadeira como se fora uma criança e atirou-a por cima do ombro. Os belos cabelos caíam qual cascata de ouro entre os braços inertes. O guarda foi à porta, abriu-a e saiu, formando a fechá-la sem ruído.

Por um momento, reinou, silêncio na sala. Bond pensava somente na faca encostada ao seu ventre e no isqueiro debaixo da axila. Qual a extensão dos estragos que ele poderia causar com aqueles dois pedaços de metal? Poderia, de algum modo, aproximar-se do Dr. No?

O Dr. No continuou serenamente: — O senhor disse que o poder era uma ilusão, sr. Bond. Não modifica a sua opinião? O meu poder de escolher a morte que quiser para essa jovem certamente que não é uma ilusão. Todavia, passemos ao método de sua morte. Isso também encerra aspectos novos. Saiba, sr. Bond, que estou interessado na anatomia da coragem — do poder de resistência do corpo humano. Mas como medir a resistência humana? Como traçar um gráfico da vontade de sobrevivência, da tolerância à dor, da conquista do medo? Pensei muito nesse problema e acredito tê-lo solucionado. Trata-se, por enquanto, de um método incompleto e grosseiro, mas que será aperfeiçoado na medida em que as experiências se forem multiplicando. Preparei o senhor para essa experiência. Dei-lhe um sedativo, de modo que o seu corpo esteja descansado, e alimentei-o bem, de modo que possa estar no gozo completo de suas forças. Os futuros — como os chamarei — pacientes, terão as mesmas vantagens. Todos começarão nas mesmas condições. Depois disso, o restante será uma questão de coragem e do poder de resistência individuais.

O Dr. No fez uma pausa, enquanto observava o rosto de Bond. Depois prosseguiu: — Saiba ainda, sr. Bond, que justamente agora acabo de construir uma espécie de pista de obstáculos, uma espécie de pista de corrida contra a morte. Não direi mais sobre isso porque o elemento surpresa é um dos que aparecem na formação do medo. Os perigos desconhecidos são os piores, os que mais pressionam as reservas de coragem. E me alegro com a idéia de que a corrida de obstáculos que o senhor enfrentará contém um rico sortimento de coisas inesperadas. Será particularmente interessante sr. Bond, que um homem com as suas qualidades físicas seja o meu primeiro competidor. Será interessantíssimo ver até onde o senhor conseguirá alcançar, na pista que idealizei. Não há dúvida de que o senhor estabelecerá uma marca invejável para os futuros corredores. Tenho grandes esperanças no senhor. O senhor deverá ir muito longe, mas quando tombar, inevitavelmente, diante de um obstáculo, seu corpo será recolhido e eu examinarei meticulosamente os seus restos. Os dados assim colhidos serão registrados e o senhor representará o primeiro ponto de um gráfico. Algo honroso, não é, senhor Bond?

Bond nada respondeu. Que diabo significaria tudo aquilo? Em que poderia consistir aquela prova? Seria possível escapar dela com vida? Poderia escapar disso e salvar Honeychile antes que fosse demasiado tarde, ainda que para matá-la e assim salvá-la da tortura? Silenciosamente, Bond ia reunindo suas reservas de coragem, retemperando a mente contra o temor do desconhecido que já começava a envolver a sua garganta, e focalizando a sua vontade no alvo da sobrevivência. Acima de tudo, deveria apegar-se às suas armas.

O Dr. No levantou-se e afastou-se da cadeira. Caminhou vagarosamente até a porta e voltou-se. Seus olhos negros e ameaçadores fixavam Bond, pouco abaixo da armação da porta. A cabeça estava ligeiramente inclinada e os lábios finos tornaram a se mexer: — Faça uma boa corrida para mim, sr. Bond. Meus pensamentos, como se costuma dizer, o acompanharão.

O Dr. No afastou-se e a porta fechou-se suavemente por trás de seus costados amarelos.


XVII - O PROLONGADO GRITO


Havia um homem no elevador, cujas portas estavam abertas, à espera. James Bond, com os braços ainda torcidos, junto aos flancos, foi impelido para dentro do elevador. Agora, a sala de jantar estava vazia. Quando voltariam os guardas para desembaraçar a mesa e então notar o desaparecimento dos objetos subtraídos? As portas fecharam-se e o cabineiro ficou diante dos botões, de modo que Bond não pôde ver qual deles teria sido apertado. Sabia apenas que estavam, subindo, e tentou fazer um cálculo da distância percorrida. O elevador parou, e Bond teve a impressão de que o tempo gasto naquele percurso fora menor do que quando descera juntamente com Honeychile. As portas abriram-se para um corredor sem tapete, com uma pintura cinzenta e rústica nas paredes de granito. Esse corredor ia numa linha reta até uma distância de vinte metros.

— Espere aí — disse o guarda de Bond para o cabineiro — voltarei logo.

Bond foi conduzido ao longo do corredor, passando diante de portas marcadas com letras do alfabeto. Ouvia-se um leve zunido de maquinaria no ar, e, por trás de uma porta, Bond teve a impressão de ouvir descargas estáticas de equipamento eletrônico. Aquilo parecia vir da sala de máquinas, no coração da montanha. Logo chegaram à porta da extremidade do corredor que estava marcada com um Q negro. Ela estava entreaberta, de modo que logo se escancarou quando Bond foi empurrado através dela. Por trás daquela porta estava uma cela pintada de cinzento, com cerca de quinze pés quadrados. Nela nada havia, a não ser uma cadeira de madeira, sobre a qual estavam, lavadas e cuidadosamente dobradas, as calças pretas de Bond e a sua camisa azul.

O guarda soltou os braços de Bond, que logo se voltou e olhou para o rosto amarelo, sob os cabelos ondeados. Havia um leve sinal de curiosidade e prazer nos olhos marrons e úmidos. O homem estava de pé, segurando a maçaneta da porta. — Bem, aqui estamos, rapaz. Você está no ponto de partida. Poderá ficar aí sentado, apodrecendo, ou procurar uma saída e iniciar a corrida. Felicidades para você.

Bond pensou que valeria a pena tentá-lo. Deu ainda uma olhadela para além do guarda, onde o cabineiro ainda se conservava ao lado de suas portas abertas, observando-os.

Então disse suavemente: — Você não gostaria de ganhar dez mil dólares, garantidos, e uma passagem para qualquer lugar do mundo que desejasse? — Dito isso, observou cuidadosamente as reações do homem. A boca se abriu numa ampla careta, mostrando dentes escurecidos, desigualmente gastos pelos anos de mascagem de cana-de-açúcar.

— Muito obrigado, senhor. Prefiro continuar vivendo. — O homem fez menção de fechar a porta e Bond ainda gritou ansiosamente: — Podemos sair juntos daqui.

Os grossos lábios fizeram uma careta de desprezo, e o homem apenas disse: “Vá em frente!” E logo a porta se fechou com um duro estalido.

Bond deu de ombros, mas logo passou a examinar a porta. Era feita de metal e não havia maçaneta do lado de dentro. Bond preferiu não experimentar o ombro de encontro àquela barreira. Aproximou-se da cadeira, sentou-se sobre a pilha de suas roupas limpas, e olhou à volta da cela. As paredes eram inteiramente nuas, com exceção de uma grade para ventilação, feita de arame grosso, num dos cantos, logo abaixo do teto. Aquela abertura era maior que os seus ombros. Era, evidentemente, a entrada para a pista dos obstáculos. A única abertura restante, naquele recinto, era uma espécie de vigia de espesso vidro, logo acima da porta, e que não seria maior do que a cabeça de Bond. A luz, vinda do corredor, atravessava aquela grade e penetrava na cela. Nada mais havia. Não seria inteligente perder tempo. Seriam dez e meia. Lá fora, em alguma parte da falda da montanha, a jovem já deveria estar deitada, estendida sobre o chão, à espera do matraquear das pinças no coral cinzento. Bond apertou os dentes ao pensamento daquele corpo frágil e indefeso sob as estrelas. Bruscamente, pôs-se de pé. Que diabo estava ele fazendo ali sentado? O que quer que existisse do outro lado da grade deveria ser imediatamente enfrentado.

Bond apanhou a faca e o isqueiro, e tirou o quimono. Em seguida vestiu as calças e a camisa, enfiando o isqueiro no bolso. Experimentou o corte da faca com o polegar, e verificou que a lamina era bastante afiada. Seria ainda melhor se pudesse fazer uma ponta naquela lâmina. Ajoelhou-se no chão e começou a esfregar a extremidade arredondada da faca na laje do pavimento. Depois de um precioso quarto de hora, deu-se por satisfeito. Não era um estilete, mas que tanto serviria para cortar como para espetar. Colocou-a então entre os dentes e arrastou a cadeira para baixo da abertura gradeada. A grade? Supondo que pudesse arrancá-la pela base, aquele arame bem poderia ser esticado, de modo a formar uma lança, facultando-lhe assim uma terceira arma. Bond esticou os braços, com os dedos encurvados.

A coisa imediata de que tomou consciência foi uma dor de queimadura ao longo do braço e o choque de sua cabeça, ao atingir o chão de pedra. Ficou durante algum tempo estendido no solo, apenas com a lembrança de uma faísca azulada e o estalido e o chiado seco de eletricidade.

Depois de algum tempo, Bond pôs-se de joelhos e assim ficou por um momento. Em seguida baixou a cabeça e sacudiu-a lentamente de um lado para outro, como um animal ferido. Sentiu um leve odor de carne queimada. Levantou a mão direita à altura dos olhos e viu a mancha vermelha de uma queimadura aberta ao longo da parte interna dos dedos. A visão daquele ferimento trouxe-lhe também a consciência da dor. Bond proferiu uma imprecação. Vagarosamente pôs-se de pé. Dessa vez, olhou de soslaio, cautelosamente, para a grade, como se ela fosse feri-lo novamente. Irritado, encostou a cadeira na parede, apanhou a faca e com ela cortou uma faixa do quimono, envolvendo-a firmemente nos dedos. Em seguida tornou a subir na cadeira e olhou para a grade. Esperava-se que ele a atravessasse, e aquele choque tinha sido calculado apenas para amolecê-lo: era uma amostra do que estaria por vir. Com certeza o curto-circuito causado por ele já tinha posto fora de combate aquela armadilha. Olhou para a grade apenas por um instante, e já os dedos de sua mão esquerda a atingiam e atravessavam. Do outro lado não havia nada. Seria mesmo só aquela grade? Puxou a armação e ela cedeu uma polegada. Fez novo esforço e a grade foi arrancada do lugar, ficando pendurada por dois fios de cobre que desapareciam no interior da parede. Bond soltou a grade das pontas daqueles fios e desceu da cadeira. Havia um ponto de junção no arame de ferro, naquela grade, e Bond pôs-se a retificá-la, usando a cadeira como martelo.

Depois de dez minutos tinha à sua disposição um chuço recurvado de cerca de um metro de comprimento. Uma des extremidades, que tinha sido originalmente cortada por alicates, apresentava-se lacerada. Não atravessaria as roupas de um homem, mas teria efeito devastador no pescoço ou no rosto. Lançando mão de toda sua força e servindo-se da fresta inferior da porta metálica, Bond conseguiu fazer ainda um gancho com a extremidade rombuda daquele arame de ferro. Em seguida mediu-o com a perna e achou que aquela nova arma era demasiado longa. Em conseqüência, dobrou-a em dois e enfiou-a numa das pernas da calça. Agora, o chuço ia de sua cintura, onde fora pendurado, até o joelho. Voltou então para a cadeira e tornou a subir até a boca do ventilador, agora desobstruída. Não experimentou mais choque. Ergueu o corpo e introduziu-o naquele tubo que tinha mais quatro polegadas que a largura de seus ombros. Durante algum tempo deixou-se ficar, de barriga para baixo, a olhar para o interior da abertura. O túnel era circular e de metal polido. Bond apanhou o isqueiro, abençoando a inspiração que o fizera roubá-lo, e acionou-o. Sim, aquilo era folha de zinco que parecia nova. O túnel continuava em linha reta, sem qualquer característica especial, a não ser as costuras de junção das várias seções tubulares. Bond tornou a meter o isqueiro no bolso e foi-se arrastando para a frente.

Aquele deslizamento não foi difícil, e até mesmo uma brisa fresca, proveniente do sistema de ventilação, afagava o rosto de Bond. O ar não trazia nenhum cheiro de mar, sendo o seu odor o mesmo que caracteriza o ar de uma instalação de condicionamento de temperatura. O Dr. No devia ter lançado mão de um dos tubos do sistema para as suas experiências. Mas que armadilhas teria introduzido naquele tubo, a fim de pôr à prova as suas vítimas? Deviam ser engenhosas e dolorosíssimas — imaginadas para reduzir a resistência de suas vítimas. No final dos obstáculos, com certeza, a vítima seria surpreendida com o golpe de misericórdia — se é que lograsse chegar ao fim. Com efeito, haveria ali algo que não admitisse escapatória, pois nessa corrida não haveria prêmios, mas apenas padecimentos. A não ser, naturalmente, que o Dr. No tivesse subestimado a vontade de sobrevivência de seu desafeto. Essa, pensou Bond, era a sua única esperança — tentar vencer todos os obstáculos que se lhe deparassem, rompendo pelo menos até a última estacada.

Havia uma pálida luminosidade à sua frente. Bond foi-se arrastando cautelosamente, com todos os seus sentidos atuando como antenas. Aquela luminosidade foi-se tornando mais clara. Era o reflexo da luz que incidia sobre um dos lados da extremidade do tubo. Continuou avançando até que sua cabeça tocou naquela extremidade. Aí, Bond se torceu sobre as costas e olhou para cima. Sobre sua cabeça estava uma chaminé de cerca de cinqüenta metros de altura, em cujo topo havia uma claridade estável. Era como se alguém olhasse através de um comprido cano de canhão. Bond enfiou a cabeça por aquela chaminé e pôs-se de pé. Então, esperava-se que ele galgasse aquele tubo liso, sem qualquer apoio para os pés! Seria possível? Bond expandiu os ombros. Sim, eles lhe proporcionariam uma boa adesão às paredes laterais. Seus pés também o ajudariam na empreitada, embora escorregassem terrivelmente, a não ser nas orlas em que se soldavam os tubos. Bond deu de ombros e tirou os sapatos. Não adiantava monologar. Teria apenas que tentar.

Seis polegadas de cada vez, e o corpo de Bond começou a deslizar pela chaminé acima. A operação consistia em expandir os ombros para se fixar à chaminé, depois levantar os pés, unir os joelhos fortemente, e forçar os pés para fora, em direções opostas, contra o metal, e rapidamente contrair e expandir os ombros novamente, ao mesmo tempo que os pés escorregavam para baixo, deixando, entretanto, como saldo uma pequena progressão de algumas polegadas. E continuar repetindo, repetindo e repetindo a operação, até que os seus olhos fossem banhados pela luz que vira no topo da chaminé. De quando em quando pararia na saliência da solda dos tubos, a fim de descansar um pouco, recuperar o fôlego e medir o próximo avanço. E não havia que olhar para cima; apenas concentrar-se nas polegadas de metal que deveriam ser vencidas, uma a uma. Nada de preocupações com a luminosidade que pareceria nunca aumentar ou se aproximar. Também não deveria preocupar-se com a possibilidade de afrouxar a pressão dos ombros contra as paredes metálicas, indo esmagar os tornozelos no fundo da chaminé. E nenhuma preocupação com cãibras, com o inchaço dos ombros ou com as esfoladuras dos pés. Apenas ataque às polegadas prateadas, conquistando-as uma a uma.

Mas logo os pés começaram a suar e escorregar de modo desesperador. Por duas vezes Bond perdeu um metro, em virtude do escorregamento de seus ombros, que ficaram terrivelmente escalavrados com o atrito, antes de poder conseguir a freagem. Em certa altura teve mesmo que se deter durante algum tempo para esperar que o suor secasse com a corrente de ar que descia pela chaminé. Essa pausa durou dez minutos, durante os quais ele se viu apagadamente refletido na superfície metálica, com o rosto dividido ao meio pela faca que segurava entre os dentes. Ainda assim recusou-se a olhar para cima, a fim de ver quantos metros teria que vencer. Aquela derradeira seção poderia ser muito longa. Cuidadosamente Bond esfregou cada pé num cano de calça e recomeçou a batalha.

Agora, parte de sua mente sonhava, enquanto a outra se empenhava na luta. Nem mesmo estava consciente de que a luminosidade se ia acentuando lentamente e que a brisa se tornava mais forte. Via-se apenas como uma lagarta ferida, arrastando-se por um cano de descarga em direção a um ralo de banheira. O que veria quando atravessasse o ralo? Uma jovem nua se enxugando? Um homem fazendo a barba? A luz do sol filtrando-se para dentro de um banheiro Vazio?

A cabeça de Bond bateu de encontro a alguma coisa. O ralo estava obstruindo o orifício! O choque do desapontamento fez que escorregasse uma polegada, antes que seus ombros pudessem retê-lo firmemente. Então compreendeu que tinha chegado ao topo da chaminé! Agora notava a luz forte e o vento impetuoso. Ansiosamente, ele se alçou novamente até que a cabeça tocou em algo. O vento soprava contra sua orelha esquerda. Cautelosamente, voltou a cabeça para essa direção. Era outro tubo lateral. Acima de sua cabeça a luz se escoava através de uma espessa vigia. Tudo o que tinha a fazer era contornar aquela derivação, agarrando-se à orla do novo tubo, e, de qualquer maneira, encontrar forças para se introduzir naquele túnel lateral. Então poderia descansar um pouco, deitado.

Com redobrada cautela, nascida do pânico de que algo agora podia acontecer, de que poderia cometer um erro e ser precipitado no fundo da chaminé, Bond empreendeu a manobra, com suas últimas reservas de forças, e introduzindo-se na nova caverna caiu estirado com o rosto para baixo.

Mais tarde — quanto tempo mais tarde? — os olhos de Bond se abriram e seu corpo estremeceu. O frio o tinha despertado da total inconsciência em que o seu corpo o teria lançado. Penosamente, virou-se de costas, com pés e ombros doendo terrivelmente, e procurou reunir todas as forças mentais e físicas. Não tinha a mínima idéia da hora ou do lugar em que estaria no interior da montanha. Levantou a cabeça e olhou para trás, em direção à vigia, sobre o tubo vertical, do qual escapara. A luz era amarelada e o vidro parecia muito grosso. Lembrou-se da vigia existente na sala Q. Aquela vigia era absolutamente inquebrável, e esta também o seria, pensou ele.

Subitamente, por trás daquele vidro, distinguiu movimento. Enquanto observava, um par de olhos se materializaram, por trás de lâmpadas elétricas. Aqueles olhos pararam e fitaram-no, com o farolete parecendo um nariz entre aqueles dois olhos. Fixaram-no negligentemente e depois desapareceram. Os lábios de Bond explodiram numa imprecação. Então o seu progresso estava sendo observado para ser levado ao conhecimento do Dr. No.

Bond disse em voz alta: “Para o diabo com todos eles!”,, e voltou-se colérico sobre o ventre. Levantou a cabeça e olhou para a frente. O túnel desaparecia na escuridão. Para a frente! Não adianta nada perder tempo aqui. Apanhou a faca, colocou-a entre os dentes e foi abrindo caminho.

Em breve já não havia mais nenhuma luminosidade. Bond detinha-se de quando em quando para acender o isqueiro mas nada encontrava a não ser trevas. O ar começou a se tornar mais cálido, dentro do túnel, e, depois de uns cinqüenta metros talvez, decididamente quente. Havia mesmo cheiro de calor no ar, de calor metálico. Bond começou a suar.. Dentro de alguns minutos seu corpo estava completamente encharcado e ele tinha que parar para limpar os olhos. Deu uma volta à direita, no tubo, e, na nova seção, sentiu o metal bastante quente contra a sua pele. O cheiro de calor metálico era agora bem acentuado. Assim que enfiou a cabeça no novo túnel, tirou o isqueiro do bolso, acendeu-o e rapidamente recuou. Amargamente, considerou a nova dificuldade, medindo-a e amaldiçoando-a. A chama de seu isqueiro tinha iluminado uma seção de tubos de zinco descolorido. A nova dificuldade seria o calor!

Bond resmungou alto. Como a sua carne já esfolada poderia resistir àquilo? Como poderia proteger a pele contra o metal? Mas não havia solução satisfatória. Ou voltaria, ou continuaria ali parado ou, afinal, avançaria. Não havia outra decisão a tomar. Aliás, Bond começava a encontrar algum consolo em suas reflexões. Com efeito, não seria o calor que haveria de matá-lo, mas alguma mutilação. O metal aquecido não seria o seu campo de sacrifício — apenas mais uma prova para medir-lhe a resistência.

Bond pensou na jovem e no que ela estaria sofrendo. Oh, sim, para a frente com aquilo. Agora, vejamos...

Bond apanhou a faca e cortou toda a parte da frente da camisa, fazendo com ela várias faixas. A única esperança estaria em dar alguma proteção às partes de seu corpo que mais sofreriam a ação do calor, isto é, os pés e as mãos. Seus joelhos e cotovelos teriam de resistir apenas com a proteção normal da fina camada de roupa. E, assim, dispôs-se à luta, amaldiçoando-a.

Agora estava pronto. Um, dois, três...

Bond dobrou o ângulo do túnel e lançou-se contra o foco de calor.

Mantenha a barriga nua distante do chão! Contraia os ombros! Mãos, joelhos, pés; mãos. joelhos, pés. Mais depressa! Mais depressa! Sempre mais depressa, de modo que cada toque contra o chão seja rapidamente seguido por outro.

Os joelhos é que mais estavam sofrendo, agüentando a maior parte do peso do corpo. Agora, as mãos envoltas em panos estavam começando a chamuscar. Acendeu-se uma fagulha, e logo outra, e em seguida surgiram chamas, quando as fagulhas começaram a se deslocar. A fumaça que saía daquele envoltório de pano de suas mãos fazia que os seus olhos ardessem penosamente. Por Deus, ele não agüentaria mais! Não havia mais ar. Seus pulmões estavam a ponto de estourar. Agora as suas duas mãos estavam lançando fagulhas para os lados. O tecido devia estar quase acabado; então a carne começaria a queimar. Bond deu um guinada e seu ombro ferido tocou no metal. Um grito de dor ecoou no túnel, logo seguido de outros gritos proferidos regularmente, quando suas mãos, pés ou joelhos tocavam no metal escaldante. Agora ele estava liquidado. Era o fim. Mais alguns segundos e iria cair de borco, morrendo literalmente queimado. Não! Devia opor um supremo esforço de reação, ainda que aos berros, até que toda a carne tivesse sido queimada até os ossos. A pele dos joelhos já devia ter sido completamente destruída. Mais um pouco e as palmas de suas mãos estariam tocando no metal. Apenas o suor que corria de seus braços poderia manter úmido o pano de suas mãos. Grite, grite, grite! Isto aliviará a dor.” Isto dirá que você está vivo. Continue! Continue! Não pode durar muito mais. Não é aqui que você deverá morrer. Não fraqueje! Você não pode!

A mão direita de Bond tocou em alguma coisa que cedeu. Logo sentiu uma corrente de ar frio. A outra mão bateu então em sua cabeça. Ouviu-se um débil ruído. Bond sentiu a orla inferior de um anteparo de amianto, articulado na parte superior do tubo, e que agora se arrastava em suas costas. Tinha vencido aquela prova. Ouviu o barulho daquele anteparo fechando-se novamente, depois de ter dado passagem a todo o seu corpo. Suas mãos estavam agora encostadas numa sólida parede. Com os dedos, apalpou à direita e à esquerda. Era um desvio em ângulo reto. Seu corpo seguiu cegamente volta do desvio e o ar frio parecia penetrar em seus pulmões como lâminas de aço geladas. Prudentemente, encostou os dedos no metal. Estava frio! Com um gemido Bond caiu sobre o rosto e ficou quieto.

Algum tempo depois, a dor tornou a reavivá-lo. Bond voltou-se dolentemente, de costas. Vagamente notou uma vigia de vidro acima de sua cabeça, e vagamente percebeu aquele mesmo par de olhos a fitá-lo. Depois, deixou novamente que as ondas de trevas o submergissem.

Aos poucos, na escuridão, as bolhas feitas em toda a pele e os pés e ombros queimados começaram a endurecer. O suor tinha-se secado no corpo e nos farrapos da roupa, enquanto o ar penetrara nos pulmões superaquecidos, começando o seu insidioso trabalho. Mas o coração continuava batendo, forte e regularmente, por dentro da torturada carcaça, e os poderes mágicos do oxigênio levaram nova vida para dentro das artérias e veias, recarregando os nervos.

Depois de um tempo que lhe pareceu infinito, Bond despertou. Estremeceu, e, ao encontrarem-se os seus olhos com o outro par que o espreitava, por trás do vidro, a dor se apoderou dele e sacudiu-o como se fosse um rato. Esperou que aquela descarga de dor o matasse. Tentou novamente, e novamente, até que conseguiu aquilatar toda a força do adversário. Em seguida, para esconder-se da testemunha, voltou-se sobre o estômago e resistiu a toda a dor que vinha de dentro de si próprio. Continuou em expectativa, explorando o corpo para verificar-lhe as reações, pondo à prova a força de decisão que ainda tivesse restado nas baterias. Quanto mais poderia ainda agüentar? Os lábios de Bond desprenderam-se dos dentes e ele rosnou na escuridão. Era um som animal. Tinha chegado ao fim de suas reações humanas à dor e à adversidade. O Dr. No o tinha encurralado. Mas ainda restavam reservas de desespero animal e, num animal forte, essas reservas são consideráveis.

Lentamente, em verdadeira agonia, Bond deslizou mais alguns metros para fora do campo visual daqueles olhos e procurou o seu isqueiro, acendendo-o. À sua frente via apenas uma lua cheia negra, a boca circular que o levaria ao estômago da morte. Bond guardou o isqueiro, respirou profundamente e pôs-se sobre os joelhos e mãos. A dor não foi maior, apenas diferente. Lentamente, com movimentos duramente articulados, avançou.

O tecido de algodão de seus joelhos e de seus cotovelos tinha sido completamente queimado. Entorpecidamente, seu cérebro foi registrando a umidade à medida que suas bolhas se abriam contra o metal frio. Enquanto se movia, ia simultaneamente flexionando os dedos e os pés, sentindo-lhes a dor. Lentamente foi sabendo o que poderia fazer, o que doeria menos. Esta dor é suportável, refletiu ele consigo mesmo. Se eu tivesse sofrido um desastre de avião, eles diagnosticariam apenas contusões e queimaduras superficiais. Teria alta do hospital dentro de alguns dias. Não há nada de sério comigo. Sou um sobrevivente de desastre. Dói, mas não é nada. Pense nos pedaços de carnes dos outros passageiros. Dê-se por feliz. Tire isso de sua cabeça. Mas, por trás de todas essa reflexões, estava o pensamento de que, em verdade, ele ainda não experimentara o desastre, — que ainda estava a caminho dele, com sua resistência e sua capacidade muito reduzidas. Quando chegaria ele? Que caráter teria? E quanto mais ainda seria ele amolecido antes de chegar à arena do sacrifício?

à frente, na escuridão, aqueles pequeninos pontos vermelhos bem poderiam ser uma alucinação, manchas rubras diante de seus olhos, causadas pela exaustão. Bond parou e apertou os olhos. Balançou a cabeça. Não, aqueles pontinhos vermelhos ainda estavam lá. Vagarosamente, arrastou-se para mais perto deles. Agora não havia dúvida de que eles se estavam movendo. Bond deteve-se novamente. Alem das batidas de seu coração, ouvia uma espécie de murmúrio suave e delicado. Aqueles pontinhos do tamanho de uma cabeça de alfinete tinham aumentado. Agora haveria vinte ou trinta, deslocando-se para a frente e para trás, alguns rapidamente, outros mais vagarosamente, em todo o círculo negro que o esperava à frente. Susteve o fôlego, assim que conseguiu acender o isqueiro. Os pontinhos vermelhos tinham desaparecido. Substituindo-os, ele viu a um metro de distância, à sua frente, uma tela muito fina, quase da finura de musselina, bloqueando o túnel.

Bond continuou deslocando-se por centímetros, para diante, com o isqueiro aceso à frente. Aquilo era uma espécie de gaiola, com pequeninos animais no seu interior. Podia ouvir aqueles diminutos seres fugindo à luz. A um pé apenas da tela apagou a luz e esperou que seus olhos se acostumassem à escuridão. Enquanto esperava, escutando, pôde ouvir novamente os pequeninos animais aproximarem-se dele, e, gradualmente, aquela floresta de pequeninos pontinhos vermelhos começou a se juntar, fitando-o através da tela.

Que seria aquilo? Bond ouviu seu coração bater com força. Serpentes? Escorpiões? Centopéias?

Cuidadosamente, foi aproximando os olhos daquela floresta de pontos luminosos. Aproximou o isqueiro bem junto da tela e acendeu-o bruscamente. Pôde apreender, num relance, a visão de pequeninas patas que atravessavam a tela e de dezenas de pés cabeludos e de ventres igualmente cabeludos com a forma de sacos, tendo em determinado ponto grandes cabeças de insetos que pareciam cobertas de olhos. Os animais fugiam em precipitada corrida, abandonando a tela da frente para irem refugiar-se na extremidade oposta da gaiola, formando uma só massa cinza-marrom.

Bond olhou através da tela, movendo o isqueiro para a frente e para trás. Depois apagou-o para economizar gasolina, e deixou que a respiração saísse por entre os dentes, num tranqüilo suspiro.

Eram aranhas, gigantescas tarântulas, de três ou quatro polegadas de comprimento. Haveria umas vinte delas dentro daquela gaiola. E, de qualquer maneira, ele teria que passar por perto delas.

Bond ficou parado, descansando e pensando, enquanto os olhos vermelhos se iam reunindo outra vez diante de seu rosto.

Qual seria o grau de letalidade daqueles animais? Quanto das lendas em torno delas seria mito? Certamente que podiam matar animais, mas em que medida seriam mortais para o homem aquelas gigantescas aranhas? Bond deu de ombros. Lembrou-se da centopéia. O toque das tarântulas seria muito mais suave. Seriam como o toque das patas de ursinhos de brinquedo contra a pele humana — até que mordessem e esvaziassem os seus folículos venenosos no organismo da pessoa.

Mas, ainda aqui, seria esta a arena do sacrifício derradeira, montada pelo Dr. No? Uma mordida ou duas, talvez, para mandar uma pessoa para um delírio de dor. O horror de ter que atravessar a tela no escuro — o Dr. No não teria pensado no isqueiro de Bond — varando aquela floresta de olhos, esmagando alguns corpos moles mas sentindo as picadas de outros. E depois mais picadas das que tivessem ficado presas à roupa. Em seguida, a lenta agonia do veneno. Este deveria ter sido o caminho percorrido pela imaginação do Dr. No — para que a vítima prosseguisse aos gritos pelo seu caminho. Para quê? Para a barreira final?

Mas Bond tinha o isqueiro, a faca e o chuço de arame. Tudo o que iria precisar era nervos e uma precisão infinita.

Delicadamente abriu a tampa do isqueiro e, com o polegar e indicador, fez sair o pavio uma polegada. Acendeu-o, e quando as aranhas recuaram, furou a tela com a faca. Fez um buraco na armadura e cortou para os lados. Depois, apanhou a aba da tela, que assim se desprendera, e arrancou-a da armadura. A tarefa não foi difícil, pois a aba fendeu-se numa só peça, com um tecido de algodão. Tornou a colocar a faca entre os dentes e atravessou a abertura. As aranhas recuaram diante da chama e amontoaram-se umas sobre as outras. Bond retirou o chuço de arame de dentro das calças e bateu com o arame dobrado sobre aqueles corpos moles. Bateu e tornou a bater ferozmente, reduzindo os aracnídeos a uma pasta informe. Quando algumas das aranhas tentaram escapar em sua direção, ele acenou-lhes com a chama e esmagou as fugitivas, uma a uma. Agora, as aranhas vivas estavam atacando as mortas, e tudo quanto Bond tinha a fazer era terminar o massacre.

Lentamente todos aqueles movimentos convulsivos foram declinando até cessarem completamente. Estariam todas mortas? Estariam algumas simulando morte? A chama do isqueiro estava começando a morrer. Teria que enfrentar o risco. Avançou mais um pouco e atirou aquela massa escura e pegajosa para um lado. Depois tirou a faca de entre os dentes e abriu a segunda cortina, puxando a aba cortada para cima da pasta feita com os corpos das tarântulas. A chama bruxuleou e tornou-se apenas um revérbero vermelho. Bond reuniu suas forças, atirou o corpo sobre a massa encoberta e atravessou a segunda tela.

Não sabia se teria posto os joelhos e cotovelos sobre limalhas metálicas ou sobre as aranhas. Tudo o que sabia é que tinha atravessado aquela barreira. Arrastou-se ainda por alguns metros para a frente, no interior do túnel, e depois parou para descansar e reunir coragem.

Sobre a sua cabeça veio uma pálida luz. Bond torceu-se para um lado, ficando de costas, para ver o que já esperava. Os olhos amarelos e amendoados fixavam-no com profundo interesse. Lentamente, por trás do farolete, a cabeça moveu-se de um lado para outro. As pálpebras caíram numa piedade fingida. Um punho cerrado, com o polegar apontando para baixo, à guisa de despedida e aniquilamento, interpôs-se entre o farolete e o vidro. Em seguida foi retirado e a luz apagou-se. Bond voltou o rosto para baixo e descansou a testa no chão metálico e frio. Aquele gesto dizia-lhe que ele estava chegando ao obstáculo final, que os seus algozes tinham dado por encerradas as observações até virem recolher os seus restos. Bond sentiu ainda que naquele rosto não houvera um único indício de louvor pelo fato de ter logrado sobreviver até aquela etapa. Aqueles chineses negros odiavam-no. Apenas queriam que ele morresse, e tão miseravelmente quanto possível.

Os dentes de Bond bateram suavemente. Ele pensara na jovem e este pensamento dera-lhe forças. Ainda não estava morto. Que diabo! Ele não iria morrer! Não enquanto o coração não lhe fosse arrancado do corpo.

Bond retesou os músculos. Era tempo de continuar, a investida. Com redobrado cuidado, recolocou as armas em seus lugares, e penosamente recomeçou a avançar pela escuridão.

O túnel começava a inclinar-se ligeiramente para baixo, o que tornava a progressão mais fácil. Logo a inclinação tornou-se tão acentuada que Bond podia deslocar-se apenas em virtude de seu peso. Era uma bênção não ter que fazer aquele esforço derradeiro com os músculos. Vislumbrou um clarão acinzentado à sua frente, pouco mais que uma redução das trevas completas, mas aquilo prenunciava uma mudança, pois a qualidade do ar parecia diferente. Havia nele um odor novo. O que seria? O mar?

Súbito, Bond compreendeu que estava escorregando para baixo, ao longo do túnel. Expandiu os ombros e abriu os pés, procurando impedir a queda. Aquele esforço causou-lhe terríveis dores e o efeito foi mínimo. Agora o túnel começava a alargar-se e ele já não poderia mais diminuir o impulso da queda! Seu deslizamento tornava-se mais e mais acelerado. Agora via uma curva à frente — e era uma curva dirigida para baixo.

O corpo de Bond logo chegou. àquela curva e contornou-a. Deus do céu, ele estava mergulhando de cabeça para baixo! Desesperadamente, abriu os braços e pernas. O metal esfolou sua pele. Agora tinha perdido completamente o controle da situação e estava mergulhando para baixo, sempre pára baixo, no interior de um cano de canhão. Muito abaixo havia um circulo de luz cinzenta. Seria o ar livre? O mar? A luz subia vertiginosamente para ele! Lutou para recuperar o fôlego. Continue vivo, idiota! Continue vivo!

Primeiro a cabeça, e logo depois o corpo de Bond precipitaram-se pelo espaço, vencendo aceleradamente a distância de mais de cem pés que o separava da superfície do mar.


XVIII - ARENA DE SACRIFÍCIO


O corpo de Bond espadanejou o espelho de um mar de alvorada como o impacto de uma bomba.

Enquanto descia precipitadamente pelo tubo prateado, em direção ao disco de luz, o instinto dissera-lhe que retirasse a faca de entre os dentes e que pusesse as mãos para a frente, a fim de aparar a queda, assim como a cabeça para baixo e o corpo rígido. E, na última fração de segundo, quando ele viu o mar que se alteava ao ritmo das ondas, procurou sorver uma longa inspiração. En conseqüência, projetou-se na água como se estivesse dando um mergulho, com os braços estendidos abrindo-lhe um buraco através do qual passaram a sua cabeça e o corpo. Conquanto, quando chegou a vinte pés de profundidade, tivesse perdido os sentidos, o despencar a sessenta e cinco quilômetros por hora não conseguira matá-lo.

Lentamente o corpo foi voltando à superfície, e ficou, com a cabeça para baixo, a balançar-se suavemente nas pequeninas ondas causadas pelo seu próprio mergulho. A água que penetrou nos pulmões de certa forma contribuiu para enviar uma última mensagem ao cérebro. As pernas e braços agitaram-se desajeitadamente. Agora tinha conseguido voltar a cabeça para cima, com a água escorrendo da boca. Tornou a afundar, mas dessa vez, instintivamente, as pernas começaram a mover-se procurando manter o corpo à superfície da água. Por fim, a cabeça, horrivelmente sacudida pela tosse, conseguiu vir para fora da água e assim manter-se. Os braços e as pernas começaram a agitar-se dèbilmente, com os movimentos natatórios de um cão, e através da cortina vermelha e negra, os olhos injetados de sangue viram a linha da vida e disseram ao dolente cérebro que visasse àquele objetivo.

A arena de execução era uma estreita e profunda enseada, na base de um elevado penhasco. A corda de salvamento em direção à qual Bond lutava, embaraçado pelo chuço metido em sua calça, era representada por uma forte tela de arame, que se estendia por dois lados do penhasco, protegendo aquela enseada do mar aberto. Aquela rede, formada de quadrados, estava suspensa a um grosso cabo situado a dois metros acima da superfície da água. Para baixo, a tela desaparecia nas profundezas, cheia de incrustações de algas.

Bond conseguiu chegar ao arame, e a ele agarrou-se como que crucificado. Durante quinze minutos deixou-se ficar na mesma posição, com o corpo de quando em quando sacudido por vômitos, até que se sentiu bastante forte para virar a cabeça e verificar onde estava. Ofuscadamente, os seus olhos tomaram a altura do penhasco, sobre sua cabeça. O lugar estava obscurecido por uma sombra cinzenta, projetada pela montanha, mas ao largo, no mar, havia uma iridiscência de pérola provocada pela aurora, o que significava que para o resto do mundo o dia estava amanhecendo. Mas onde Bond se encontrava era escuro e triste.

Lerdamente, a mente de Bond começou a se interrogar sobre aquela tela de arame. Qual seria a sua finalidade, fechando aquela escura enseada e separando-a do mar? Seria para manter alguma coisa do lado de fora ou para mantê-la do lado de dentro? Bond olhou vagamente para baixo, procurando penetrar as profundezas do mar, à sua volta. As malhas de arame perdiam-se no nada, sob os seus pés. Havia pequeninos peixes à volta de suas pernas, abaixo da cintura. Que estariam eles fazendo? Pareciam estar-se alimentando, avançando contra seu corpo e depois recuando com fiapos negros na boca. Fiapos de que? De algodão de seus farrapos? Bond sacudiu a cabeça para clarear as idéias. Tornou a olhar para baixo. Não, aqueles peixes estavam-se alimentando com seu sangue.

Bond estremeceu. Sim, o sangue estava escorrendo de seu corpo, dos ombros, dos joelhos, dos pés, e misturando-se à água. Agora, pela primeira vez sentiu a dor causada pela água salgada em suas feridas e queimaduras. A dor tornou-se mais viva e estimulou a sua mente. Se esses pequeninos peixes estavam gostando de seu sangue, o que dizer dos tubarões? Seria essa a finalidade daquela tela de arame, isto é, evitar que os peixes devoradores de seres humanos pudessem escapar para o mar? Então por que eles ainda não se tinham lançado sobre ele? Para o diabo! A primeira coisa a fazer era subir pelo arame e ganhar o outro lado. Interpor aquela tela entre ele e o que quer que vivesse naquele escuro aquário.

Dèbilmente, pé após pé, lá se foi Bond subindo pela tela, até chegar ao cume e passar para o outro lado, onde poderia descansar sem preocupações. Colocou o espesso cabo sob a axila, e olhou para baixo, contemplando os peixes que ainda se nutriam com o sangue que continuava gotejando de seus pés.

Agora já não havia muito em Bond; pouquíssimas reservas teria ele. O último mergulho no tubo, o choque da queda, na água, e a quase morte, causada por afogamento, tinham-no esmagado como a uma esponja. Estava prestes a entregar-se, prestes a soltar um pequeno suspiro e depois escorregar para os doces braços da água. Como seria bom abandonar-se, finalmente, e descansar — sentir que o mar suavemente o levava para o seu leito.

Foi a explosiva fuga dos peixes que estavam sorvendo o seu sangue, sob os seus pés, que despertou Bond de seu sonho de morte. Alguma coisa tinha-se movido muito abaixo da superfície. Havia uma trêmula claridade muito distante, mas que avançava lentamente para a superfície, aproximando-se pelo lado interno da tela.

O corpo de Bond se enrijeceu. Ante a iminência do perigo, a vida voltou-lhe num ímpeto, expulsando a letargia e comunicando-lhe renovada vontade de sobreviver.

Bond abriu os dedos aos quais, há muito, o seu cérebro ordenara que não perdessem a faca. Fechou os dedos e agarrou o cabo daquela lâmina. Abaixou-se em seguida e tocou no gancho do chuço que ainda se mantinha no interior da calça. Sacudiu vivamente a cabeça e ficou com os olhos alertas. E agora?

Sob os seus pés a água estremeceu. Alguma coisa estava-se debatendo, no fundo, alguma coisa enorme. Algo grande, de cor cinza luminescente, tornou-se visível, detendo-se muito abaixo da superfície, na escuridão. Alguma coisa se projetou daquela massa, em direção à superfície, algo como se fosse um chicote da grossura do braço de Bond. A extremidade daquela tira inchava-se numa terminação oval e achatada, com marcas semelhantes a botões distribuídos a espaços regulares. Aquele tentáculo rodopiou na água, no lugar em que os peixes tinham estado, e logo se encolheu. Agora só se via a grande sombra cinzenta lá embaixo da superfície. Que estaria fazendo o animal? Estaria...? Estaria provando o seu sangue?

Como que em resposta àquela pergunta, dois olhos, tão grandes quanto bolas de futebol, foram avançando para cima até se porem no campo de visão de Bond. Aqueles enormes olhos pararam vinte pés abaixo da superfície e olharam tranqüilamente para cima, fixando-se no rosto de Bond.

A pele de Bond ficou arrepiada nas costas. Sua boca deixou escapar um palavrão! Então, aquela era a Ultima surpresa do Dr. No, o fim da corrida!

Bond ficou de olhos abertos, meio hipnotizado, olhando para baixo. Então aquele era o polvo gigante, o monstro mítico que podia arrastar navios para as profundezas do mar, o monstro de cinqüenta pés de comprimento que podia dar combate às baleias e que pesava uma tonelada ou mais. O que mais sabia ele a respeito daqueles animais? Que tinham dois longos tentáculos para laçar e outros dez para agarrar; que tinham um enorme bico rombudo por baixo de olhos que eram os únicos olhos, entre os peixes, a trabalharem segundo o principio da câmara fotográfica, como os do homem: que seu cérebro era eficiente; que o monstro podia fugir para trás a uma velocidade de trinta nós, por um sistema de jato-propulsão. Sabia ainda que os arpões podiam afundar-se em sua manta de gelatina sem causar nenhum mal ao monstro, e que... mas os grandes olhos esbugalhados, que ofereciam um alvo negro e branco, estavam-se elevando em sua direção. A superfície da água estremecia. Agora Bond podia ver uma floresta de tentáculos que saíam da cara do animal. Ondulavam diante dos olhos do monstro como uma ninhada de grossas serpentes. Bond podia ver-lhe as ventosas sob os tentáculos. Atrás da cabeça, a grande aba da manta de gelatina abria-se e fechava-se suavemente, e, por trás dela, o brilho do corpo perdia-se nas profundezas. Por Deus, a coisa era tão grande quanto uma locomotiva!

Muito devagar e discretamente Bond foi enfiando os pés e depois os braços através dos quadrados da tela de arame, protegendo-se e ancorando-se tão sòlidamente que os tentáculos teriam que arrancá-lo dali aos pedaços ou então arrastar com ele todo aquele arcabouço de metal. Olhou para a direita e para a esquerda. Para qualquer lado, teria que vencer vinte metros, antes de chegar à terra. Mas, qualquer movimento, ainda que pudesse empreende-lo, séria fatal. Devia ficar absolutamente imóvel, rezando para que o monstro perdesse o interesse e se afastasse. Se ele não perdesse o interesse... Suavemente os dedos de Bond apertaram a pequenina faca.

Os olhos do monstro continuavam fitando-o, fria e pacientemente. Delicadamente, como a tromba de um elefante, um daqueles longos tentáculos laçadores emergiu da superfície e foi galgando a tela em direção às pernas de Bond. Tocou num de seus pés, e Bond sentiu o áspero beijo daquelas ventosas. Não se mexeu. Não ousava abaixar-se e afrouxar o enlaçamento de seus braços à volta do arame. Docemente as ventosas entraram em ação, experimentando o rendimento daquela presa. Não era bastante. Como uma gigantesca lagarta, o tentáculo foi subindo por sua perna. Parou à altura do joelho ensangüentado e deteve-se, interessado. Os dentes de Bond estalaram com a dor. Ele bem podia imaginar a mensagem que tinha descido por aquele tentáculo até o cérebro do animal: sim, é bom para comer-se! E a ordem de retorno ao tentáculo: então traga-o.

As ventosas continuaram subindo pela coxa. A extremidade do tentáculo se aflou e em seguida dilatou-se a ponto de quase cobrir toda a espessura da coxa de Bond. Depois reduziu-se à grossura de um pulso. Aquele seria o alvo de Bond. Apenas teria que agüentar a dor e resistir ao horror daquela acometida, esperando que esse pulso chegasse ao alcance de um golpe.

 

* *
Uma brisa, a primeira suave brisa da madrugada, soprou sobre a superfície metálica da enseada, levantando pequenas ondas que iam beijar a rocha do penhasco. Um bando de corvos marinhos alçou vôo da guaneira, quinhentos pés acima da enseada, e cacarejando suavemente, avançou em direção ao mar. Quando as aves passaram sobre a enseada, o barulho que as tinha perturbado chegou aos ouvidos de Bond — o tríplice apito de um navio, que indica estar a embarcação pronta para receber a carga. Aquele som chegava do lado esquerdo de Bond. O cais deveria estar situado a pequena distância contornando o braço setentrional da enseada. O navio procedente de Antuérpia tinha chegado. Antuérpia! Uma região do mundo exterior — um mundo que estava a um milhão de quilômetros de distância, fora do alcance de Bond — com certeza para sempre fora de seu alcance. Exatamente para além daquele braço rochoso a tripulação estaria no refeitório, tomando o seu desjejum. O rádio estaria tocando. Haveria o chiado do toicinho defumado e ovos na frigideira, o cheiro do café...


* * *


As ventosas estavam em sua coxa. Bond podia ver dentro daqueles cálices córneos. Um cheiro de maresia estagnada chegou-lhe às narinas, quando aquela mão vagarosamente serpenteou para cima. Seria muito duro o tecido gelatinoso cinza-escuro, por trás daquela mão? Deveria usar agora a faca? Não, o golpe deveria ser rápido e seguro, atingindo toda a espessura, como se se cortasse uma corda. Não importaria que a sua própria pele fosse atingida.

Agora! Bond lançou um rápido golpe de vista àqueles dois enormes olhos, lá embaixo, tão pacientes e tão negligentes. Nesse momento, o outro tentáculo elevou-se da superfície da água e avançou em direção ao seu rosto. Bond recuou a cabeça e a mão se enroscou num fio de arame diante de seus olhos. Num segundo aquela garra se deslocaria para um braço ou ombro, e ele estaria liquidado. Agora!

O primeiro tentáculo estava sobre suas costelas. Quase sem fazer pontaria, a mão de Bond que empunhava a faca caiu rapidamente para baixo e transversalmente. Sentiu a lâmina afundar naquele pudim carnoso, e quase deixou que ela escapasse de sua mão, quando o tentáculo ferido chicoteou pelo ar, desaparecendo na água. Por um momento o mar foi agitado à sua volta. Agora, o outro tentáculo abandonou o arame e agarrou-se ao seu ventre. A mão aflada prendeu-se como uma sanguessuga, com toda a força de sua sucção furiosamente aplicada. Bond gritou ao sentir o contacto daquelas ventosas em sua carne. Golpeou loucamente, mais e mais. Por Deus, o seu estômago estava sendo arrancado para fora! A tela agitou-se com a luta. Aos seus pés a água fervilhava e espumava. Ele teria que ceder. Um derradeiro golpe, desta vez nas costas daquela mão disforme. Deu resultado! A mão se agitou no ar e desceu serpeante, deixando vinte círculos vermelhos sangrando em sua pele.

Bond não tinha tempo para se preocupar com aquilo. Agora a cabeça do monstro tinha emergido, e os seus olhos brilhantes fixavam-se nele, avermelhados, enfurecidos, e a floresta dos tentáculos sugadores começava a envolver-lhe os pés e as pernas, dilacerando-lhe as roupas, para logo retornar aos seus membros. Bond estava sendo arrastado para baixo, polegada por polegada. O arame estava penetrando em suas axilas. Podia até mesmo sentir a sua espinha sendo distendida. Se ele continuasse resistindo seria partido ao meio. Agora, os olhos e o grande bico triangular estavam fora d’água, e o bico procurava o seu pé. Havia uma esperança, apenas uma!

Bond meteu a faca entre os dentes e sua mão procurou o gancho do chuço de arame. Agarrou aquela arma, e desdobrou-a com as suas duas mãos. Teria que soltar um dos braços para poder abaixar-se e se aproximar do alvo. Se falhasse, entretanto, seria reduzido a pedaços sobre a tela.

Agora, antes que morresse com a dor! Agora, agora! Bond deixou todo o seu corpo escorregar por aquela escada de arame, para baixo, e desferiu uma violenta estocada. Pôde ver que o pontaço de sua lâmina penetrava pelo centro de um enorme globo ocular negro, e imediatamente todo o mar se intumesceu para ele, como uma fonte de negrume, enquanto seu corpo se mantinha pendurado de cabeça para baixo, seguro pelos joelhos, com o rosto apenas uma polegada acima da superfície.

Que teria acontecido? Teria ficado cego? Não podia ver nada. Seus olhos estavam ardendo e havia um gosto horrível de peixe podre em sua boca. Contudo, podia sentir o arame cortando-lhe os tendões dos joelhos. Então devia estar vivo! Estonteado, Bond deixou que o chuço caísse de sua mão, e procurou o arame mais próximo. Depois, agarrou-se com a outra mão um pouco mais acima, e, assim, vagarosamente, foi-se alçando até que conseguiu sentar-se no cabo superior da cerca. Clarões de luz chegaram-lhe aos olhos. Passou uma das mãos pelo rosto. Agora podia ver. Fixou a sua mão: estava negra e pegajosa. Olhou para o seu corpo: estava também coberto por um lodo negro, e o preto tingia o mar numa extensão de vinte metros à sua volta. Então Bond compreendeu: o polvo ferido tinha esvaziado a sua bolsa de tinta contra ele.

Mas onde estava o monstro? Voltaria? Bond esquadrinhou o mar. Nada, nada além da enorme mancha negra que se continuava ampliando. Nem uma só ondulação! Então, nada de esperar! Fugir dali o mais depressa possível! Ansiosamente, Bond olhou para a direita e para a esquerda. Para a esquerda era na direção do navio, mas também na direção do Dr. No, enquanto para a direita seria para o nada. Para instalar aquela tela de arame, os trabalhadores deviam ter vindo da esquerda, na direção do cais. Devia haver algum caminho até ali. Bond começou a se deslocar frenèticamente pelo cabo superior, em direção à rocha, a vinte metros de distância.

O espantalho negro e sangrento movimentava os braços e pernas quase automaticamente. O aparelho pensante e sensorial de Bond já não fazia mais parte de seu corpo. Movia-se ao lado de seu corpo ou acima dele, mantendo apenas o contato necessário para puxar os cordéis que faziam o boneco trabalhar. Bond era como um verme secionado, cujas duas metades continuassem arrastando-se para a frente, conquanto a vida os tivesse abandonado para ser substituída pela vida ilusória dos impulsos nervosos. Apenas, no caso de Bond, as duas metades ainda não estavam mortas. A vida tinha somente se ausentado delas. Tudo quanto ele precisava era um grama de esperança, um grama de confiança, de convicção de que ainda valeria a pena tentar sobreviver.

Bond chegou à rocha, e lentamente desceu pela tela até a última malha. Contemplou vagamente o brilho palpitante da água. O mar estava negro e impenetrável. Deveria arriscar-se? Sem dúvida! Não podia fazer nada enquanto não tivesse lavado aquela camada de lodo e sangue, sem falar do horrível cheiro de peixe. Sombriamente, fatalisticamente, ele tirou os farrapos de sua camisa e calças, pendurando-os no cabo. Olhou para baixo, para seu corpo marrom e branco, salpicado de vermelho. Instintivamente, procurou sentir seu pulso, que se apresentava lento mas regular. As firmes palpitações de vida reanimaram o seu espírito. Por que diabo estava ele se lamuriando? Estava vivo. As feridas e machucaduras em seu corpo não eram nada — absolutamente nada. Eram horríveis, mas nada estava quebrado. Por dentro do invólucro maltratado, a máquina estava trabalhando serena e seguramente. Cortes superficiais e esfoladuras, recordações sangrentas, cansaço mortal — estes seriam ferimentos dos quais se riria uma enfermeira experiente. Para a frente, seu bastardo! Para a frente! Limpe-se e levante-se. Conte as suas bênçãos. Pense na jovem. Pense no homem que você deverá encontrar e matar. Agarre-se à vida como se agarrou à faca entre os dentes. Acabe com esta autopiedade. Para o diabo com o que acaba de acontecer! Para dentro d’água e lave-se!

Dez minutos mais tarde, Bond, com seus farrapos molhados colados ao corpo já esfregado, e com os cabelos repuxados para fora dos olhos, galgava o cimo do penhasco.

Sim, era como ele tinha imaginado. Uma picada estreita e rochosa, feita pelos pés dos trabalhadores, descia para o outro lado, contornando a saliência do penhasco.

Das proximidades chegaram vários sons e ecos. Um guindaste estava trabalhando. Podia ouvir os ritmos variáveis de seu motor. Ouviam-se os barulhos peculiares, aos navios de ferro, bem como o ruído da água que era lançada ao mar por uma bomba de porão.

Bond olhou para cima, para o céu, que estava de um azul pálido. Nuvens manchadas de ouro e reflexos rosados derivavam em direção ao horizonte. Muito acima dele, os corvos marinhos esvoaçavam em torno da guaneira. Em breve estariam fazendo-se ao mar, em busca de alimentos. Talvez, agora, mesmo, estivessem vigiando os grupos de reconhecimento, longe, sobre o mar, na faina de localizarem os peixes. Seriam cerca de seis horas — a aurora de um belo dia.

Bond, deixando gotas de sangue atrás de si, seguiu o seu caminho cuidadosamente pela picada abaixo, beirando o sopé do penhasco. Para além da curva, a picada se infiltrava por um terreno cheio de pedras espalhadas. Os ruídos iam-se tornando mais altos. Bond ia avançando cuidadosamente, evitando pisar em pedras. Uma voz se fez ouvir surpreendentemente perto: ‘”Pronto para largar?” E logo uma resposta distante: “Pronto”. O motor do guindaste acelerou. Mais alguns metros. Mais um pedregulho; e mais outro. Agora!

Bond se ocultou por trás da rocha e cautelosamente meteu a cabeça para fora, a fim de observar.

 

CONTINUA

XVI - HORAS DE AGONIA


Uma voz, por trás de Bond, disse serenamente: — O jantar está servido.

Bond voltou-se para trás. O anunciante fora o guarda-costas, que tinha a seu lado outro homem que bem poderia ser seu irmão gêmeo. Ali ficaram eles, duas barricas de musculatura, com as mãos mergulhadas nas mangas dos quimonos, olhando, por cima da cabeça de Bond, para o Dr. No.

— Ah, já nove horas. — O Dr. No levantou-se lentamente e disse: — Vamos. Podemos continuar a nossa conversação em ambiente mais íntimo. Foi muita bondade dos senhores terem ouvido a minha história com paciência tão exemplar. Espero que a modéstia de minha cozinha e de minha adega não representem mais uma imposição.

Portas duplas tinham sido conservadas abertas por trás dos dois homens de jaquetas brancas. Bond e a jovem atravessaram-nas seguindo o Dr. No, indo ter a uma sala octogonal, com as paredes recobertas de painéis de mogno, e ao centro um candelabro de prata, sob o qual estava posta uma mesa para três pessoas. O tapete simples, azul-escuro, era luxuosamente espesso. O Dr. No tomou a cadeira central, de espaldar alto, e indicou cortesmente, com uma inclinação, a cadeira à sua direita para a jovem. Sentaram-se e abriram guardanapos de seda branca.

A cerimônia vazia e a encantadora sala deixavam Bond louco. Ansiava por despedaçar tudo aquilo com as próprias mãos, por passar o seu guardanapo de seda à volta do pescoço do Dr. No e apertá-lo até que aquelas lentes de contato saltassem daqueles malditos olhos negros.

Os dois guardas usavam luvas de algodão branco. Serviram as iguarias com suave eficiência que era instigada por uma ocasional palavra chinesa proferida pelo Dr. No.

A princípio o Dr. No parecia preocupado. Lentamente, ingeriu três taças de diferentes sopas, utilizando-se de uma colher dotada de um cabo curto e que se adaptava perfeitamente entre as pinças de sua mão mecânica. Bond esforçou-se por esconder os seus temores da jovem. Sentou-se afetando uma atitude de relaxamento e comeu e bebeu com forçado apetite. Falou ainda animadamente com a jovem sobre Jamaica — sobre aves e animais, assim como fores, que constituíam fáceis assuntos de conversação para Honeychile. De vez em quando os seus pés tocavam nos dela, sob a mesa. Ela quase chegou a ficar alegre. Bond pensou que ambos estavam fazendo uma bela imitação de namorados comprometidos, que estivessem saboreando um jantar oferecido por um tio detestável.

Bond não tinha a mínima idéia sobre se o seu fraco blefe tinha surtido algum efeito. Assim, não deu grande importância às suas possibilidades. O Dr. No, assim como a sua história, eram perfeitamente impenetráveis. A incrível biografa parecia verdadeira. Nem uma só palavra daquele relato era impossível. Talvez houvesse outras pessoas no mundo com os seus reinos particulares — reinos afastados dos caminhos trilhados por homens comuns, sem testemunhas, onde pudessem fazer o que bem entendessem. E que estaria planejando fazer o Dr. No, depois que tivesse esmagado as moscas que tinham vindo incomodá-lo? E se eles fossem mortos — e quando o fossem — Londres conseguiria recolher os fios que ele, Bond, tinha recolhido? Provavelmente conseguiria. Lá estava Pleydell-Smith, e as provas das frutas envenenadas. Mas até onde a substituição de Bond iria afetar o Dr. No? Não muito. O Dr. No daria de ombros ao desaparecimento de Bond e Quarrel. Nunca teria ouvido falar deles. E não haveria qualquer elo com a jovem. Em Porto Morgan, todos pensariam que ela se tinha afogado em suas expedições. Era difícil saber o que poderia interferir com o Dr. No — com o segundo capítulo de sua vida, qualquer que ele fosse.

Sob aquela conversa com a jovem, Bond foi-se preparando para o pior. Ao lado de seu prato havia algumas facas. Então chegaram as costeletas, perfeitamente cozidas, e Bond tocou em várias facas, hesitante, até que escolheu a do pão para cortá-las. Enquanto comia e conversava foi deslocando a grande lâmina de aço para perto do corpo. Um gesto largo da mão direita derrubou o seu copo de champanha e, numa fração de segundo, enquanto o copo se partia, sua mão esquerda enfiou a lâmina para dentro da manga do quimono. Em meio às suas desculpas, e à confusão que se seguiu, enquanto os guardas enxugavam a champanha derramada na mesa, Bond levantou o braço esquerdo e sentiu que a faca deslizava para baixo do braço e depois caía para dentro do quimono, ficando encostada às suas costelas. Quando acabou de comer as costeletas, apertou o cinto de seda, à volta da cintura, ao mesmo tempo que deslocava a faca para diante da barriga. A faca aninhou-se. confortàvelmente contra a sua pele e em pouco tempo o aço da lâmina foi-se tornando aquecido.

Por fim veio o café e a refeição foi dada por terminada. Os dois guardas se aproximaram e postaram-se por trás das cadeiras da jovem e de Bond. Tinham os braços cruzados sobre o peito, impassíveis, sem nenhum movimento, como carrascos.

O Dr. No pousou delicadamente a sua xícara no pires e descansou as duas pinças de aço sobre a mesa. Depois se endireitou um pouco na cadeira e virou o corpo, apenas uma polegada, em direção de Bond. Agora não havia o mínimo sinal de preocupação em seu rosto. Os olhos eram duros e diretos. A boca fina contraiu-se e abriu-se: — Apreciou o jantar, sr. Bond?

Bond apanhou um cigarro numa caixa de prata que estava à frente e acendeu-o. Depois, pôs-se a brincar com o isqueiro de prata que estava sobre a mesa. Sentia que más noticias iriam chegar. Pensou que deveria meter aquele isqueiro no bolso, de qualquer maneira. O fogo talvez viesse a ser mais uma arma. Respondeu com facilidade: — Sim, estava excelente. — Em seguida olhou para Honeychile. Curvou-se sobre a mesa e descansou os braços sobre ela, e logo cruzou-os, envolvendo o isqueiro com esta manobra. Sorriu para ela: — Espero ter pedido o que você gosta.

— Oh, sim, estava magnífico. — Para ela a recepção ainda estava continuando.

Bond fumava afanosamente, agitando mãos e braços, a fim de criar uma atmosfera de movimento. Voltou-se para o Dr. No, apagou o toco de seu cigarro e reclinou-se na cadeira. Cruzou os braços sobre o peito. O isqueiro já estava sob o seu sovaco esquerdo. Riu animadamente:

— E o que acontecerá agora, Dr. No?

— Podemos continuar com a nossa distração de após-jantar, sr. Bond. O leve sorriso contraiu-se e desapareceu.

— Examinei a sua proposta sob todos os aspectos. Não a aceito.

Bond deu de ombros e observou: — O senhor não é sensato.

— Não, sr. Bond. Receio que a sua proposta não passe de uma isca dourada. Em sua profissão não se atua como o senhor quer sugerir. Os agentes enviam relatórios rotineiros para o quartel-general. Mantêm seus chefes a par dos progressos das investigações que fazem. Conheço essas coisas. Os agentes secretos não se comportam como o senhor sugeriu ter agido. O senhor esteve lendo muitas novelas de aventuras, e o seu pequeno discurso mostrou com muita facilidade o papelão pintado. Não, sr. Bond, não aceito a sua história. Se ela for verdadeira, estou preparado para enfrentar as conseqüências. Tenho muita coisa em jogo para ser facilmente desviado de meu caminho. Que venham a polícia e os soldados. Onde estão o homem e a jovem? Que homem e que jovem? Não sei de nada. Por favor, retirem-se, os senhores estão prejudicando a minha guaneira. Onde estão as suas provas, o seu mandado de prisão? A lei inglesa é rigorosa, meus senhores. Voltem para casa e deixem-me em paz com os meus queridos corvos marinhos. Está vendo, sr. Bond? E digamos mesmo que o pior redunde em pior. Que um de meus agentes fale, o que é altamente improvável. (Bond lembrou-se da fortaleza da srta. Chung). Que tenho eu a perder? Mais duas mortes no libelo acusatório. Mas, sr. Bond, um homem só pode ser enforcado uma vez: — A elevada cabeça, em forma de pêra, agitava-se suavemente, de um lado para outro. — O senhor tem mais alguma coisa a dizer? Alguma pergunta? Ambos irão ter uma noite muito ocupada e o tempo de que dispõem está-se tornando escasso. Quanto a mim, devo ir dormir. O navio que chega mensalmente deverá atracar amanhã e eu terei que supervisionar o carregamento. Passarei todo o dia no cais. Certo, sr. Bond?

Bond olhou para Honeychile. Ela estava mortalmente pálida. Olhava com olhar esgazeado, esperando pelo milagre que ele deveria operar. Bond olhou para as próprias mãos e examinou cuidadosamente as unhas. Depois, disse, para ganhar tempo: — E então, após seu dia ocupado com o carregamento, o que virá em seu programa? Qual o novo capítulo que o senhor pensa escrever?

Bond não levantou o olhar. A profunda e serena voz autoritária caiu sobre ele como se tivesse vindo do céu escuro.

— Ah, sim, o senhor deve ter estado a pensar nisso.

O senhor tem o hábito da investigação. Os hábitos persistem até o fim, até as sombras. Admiro tais qualidades num homem que tem apenas algumas horas mais para viver. Por isso, dir-lhe-ei. Encetarei um novo capítulo, e isso o consolará. Há muito mais nesta ilha do que uma simples guaneira. O seu instinto não o enganou, sr. Bond.

O Dr. No fez uma pausa para dar mais ênfase ao que iria dizer e continuou: — Esta ilha, sr. Bond, está em vésperas de se transformar num dos mais valiosos centros de informação técnica do mundo.

— De fato? — Bond mantinha os olhos fixos em suas mãos.

— Sem dúvida que o senhor não ignora que Turks Island, a trezentas milhas, de distância daqui, através de Windward Passage, constitui o mais importante centro para a experimentação de projéteis teleguiados dos Estados Unidos?

— Sim, é um importante centro de experiências.

— Talvez o senhor tenha lido sobre os foguetes que recentemente se desviaram de sua rota? O “Snark” de múltiplas fases, por exemplo, que terminou o seu vôo nas florestas do Brasil, ao invés de ir perder-se nas profundezas do Atlântico Sul?

— Sim.

— O senhor se lembrará que ele se recusou a obedecer as instruções que lhe foram enviadas por rádio, no sentido de modificar a sua rota, e até mesmo de se destruir a si mesmo. Ele desenvolvera uma vontade própria.

— Lembro-me.

— Houve outras falhas, falhas decisivas, na longa lista dos protótipos — o Zuni, o Matador, o Petrel, o Regulus, o Bomarc — tantos nomes, outras tantas modificações, nem posso lembrar-me deles todos. Bem, sr. Bond, — o Dr. No mal podia esconder uma nota de orgulho em sua voz — talvez lhe interesse saber que a maioria desses fracassos foi causada de Crab Key.

— É verdade?

— Não me acredita? Não tem importância. Outros acreditam-no. Outros que viram o abandono de toda uma série, o Mastodonte, em virtude de seus freqüentes erros de navegação, sua incapacidade de obedecer às ordens enviadas pelo rádio, de Turks Island. Esses outros são os russos. Os russos são meus sócios nesta empreitada. Treinaram seis dos meus homens, sr. Bond. Exatamente neste momento tenho dois desses homens observando, estudando as freqüências de rádio, as faixas nas quais trabalham esses engenhos. Há um milhão de dólares de instalações, nas galerias rochosas, acima de nossas cabeças, sr. Bond, enviando sinais para a camada de Heavyside, aguardando os sinais, perturbando-os, contrabalançando faixas com outras faixas. E, de vez em quando, um foguete sobe em seu itinerário e aprofunda-se cem, quinhentas milhas, pelo Atlântico, enquanto nós anotamos cuidadosamente a sua trajetória, com a mesma perfeição com que isto é feito na Sala de Operações de Turks Island. Em seguida, subitamente, as nossas pulsações são enviadas ao foguete, o seu cérebro é perturbado, ele enlouquece e mergulha no mar, destruindo-se. Foi mais uma experiência que fracassou. Os operários levam a culpa, assim como os projetistas e os fabricantes. Há pânico no Pentágono. Outra coisa deve ser tentada, freqüências diversas, metais diversos, um cérebro eletrônico diferente. Naturalmente que também temos as nossas dificuldades. Assim é que assinalamos muitos disparos experimentais sem sermos capazes de chegar até o cérebro do novo engenho. Então, comunicamo-nos urgentemente com Moscou. Com efeito, eles deram-nos até uma máquina de cifras com as nossas freqüências e rotinas. E os russos continuam pensando, fazem sugestões, e nós as experimentamos. Por fim, sr. Bond, um belo dia, é como se atraíssemos a atenção de um homem perdido numa multidão. Lá no alto, na estratosfera, o foguete reconhece o nosso sinal. Somos reconhecidos e podemos falar com ele e modificar os seus pensamentos. — O Dr. No fez uma pausa e depois continuou: — O senhor não acha isso interessante, esta variante de meus negócios com o guano? Asseguro-lhe que é um negócio muito lucrativo, e podia sê-lo ainda mais. Talvez a China comunista venha a pagar mais pelos meus serviços. Quem sabe? Já tenho os meus agentes em campo, para sondagens.

Bond ergueu os olhos, olhando pensativamente para o Dr. No. Então ele tinha tido razão. Havia mesmo mais alguma coisa, muito mais, em tudo aquilo que os seus olhos tinham visto. Aquilo era uma grande partida, uma partida que explicava tudo, uma partida que no mercado internacional da espionagem bem valia a pena ser jogada. Bem, bem! Agora, as peças do quebra-cabeças tinham caído corretamente em seus lugares. Para isso tinha valido a pena, certamente, assustar alguns pássaros e eliminar algumas pessoas. Isolamento? Naturalmente que o Dr. No teria que matar a ele e à jovem. Poder? Sim, isso era poder. O Dr. No se tinha realmente lançado nos negócios.

Bond fixou os dois orifícios negros com um novo respeito, e observou: — O senhor terá que matar muito mais gente para manter isto em suas mãos, Dr. No. Isto vale muito dinheiro. O senhor tem aqui uma bela propriedade, superior ao que eu pensava, e as pessoas hão-de querer um pedaço deste bolo. Penso em quem será o primeiro a chegar até o senhor e matá-lo. Serão aqueles homens que estão lá em cima, treinados por Moscou? — e ele fez um gesto apontando para o teto. Depois continuou: — Eles são os técnicos. Eu me pergunto: o que Moscou estará lhes ordenando que façam? O senhor não poderia estar a par disso, poderia?

O Dr. No respondeu: — Vejo que continua subestimando meu valor, sr. Bond. O senhor é um homem obstinado e mais estúpido do que pensava. É claro que estou consciente dessas possibilidades. Separei um desses homens e transformei-o numa espécie de vigilante particular. Ele tem uma duplicata das cifras e da máquina. Vive em outra parte da montanha. Os outros pensam que ele morreu, mas ele está bem vivo a fiscalizar a cronometragem de rotina, e entrega-me diariamente uma cópia do tráfego que é registrado. Até agora os sinais emitidos por Moscou têm sido inocentes e não indicam qualquer conspiração. Penso em tudo isso constantemente, sr. Bond. Tomo precauções e ainda as multiplicarei para o futuro. Como disse, o senhor me tem subestimado.

— Não o subestimo, Dr. No. O senhor é um homem muito prudente, mas já há muitas pastas sobre o senhor. Em minha linha de atividades, a mesma coisa se aplica a mim, mas as suas pastas são muito perigosas. A chinesa, por exemplo. Não gostaria de ter uma com essa gente. A da FBI deve ser a menos penosa — roubo e falsa identidade. Mas o senhor conhece os russos tão bem quanto eu? Por enquanto o senhor é “o melhor amigo” deles. Mas os russos não têm sócios. Hão-de querer comprá-lo... — comprá-lo com um balaço. Depois vem a pasta que o senhor abriu com o meu serviço. O senhor quererá mesmo fazê-la mais volumosa? Eu não o faria se estivesse em seu lugar, Dr. No. O pessoal do meu serviço é muito obstinado. Se alguma coisa me acontecer e à jovem, o senhor verificará que Crab Key é uma ilha muito pequena e insignificante.

— Não se pode jogar grandes partidas sem assumir riscos, senhor Bond. Aceito os perigos e, até onde posso, procuro defender-me deles. Como vê — e a sua voz tinha um acento de cupidez — estou em vésperas de coisas muito maiores. O capítulo dois, ao qual já me referi, encerra promessa de prêmios que ninguém, a não ser um tolo, jogaria fora por ter medo. Já lhe disse que posso desviar os raios magnéticos por onde viajam os foguetes. Posso fazer com que estes mudem de rota e não obedeçam ao controle eletrônico. Que diria o senhor, se eu fosse ainda mais longe? Se eu os fizesse cair nesta ilha, a fim de recolher todos os segredos de sua construção? Atualmente, destróieres norte-americanos, nos confins do Atlântico Sul, recolhem esses foguetes quando eles esgotam o seu combustível e caem de pára-quedas sobre o mar. Algumas vezes os pára-quedas deixam de se abrir, e algumas vezes as instalações de autodestruição deixam de operar.

Ninguém em Turks Island se sentiria surpreendido se de vez em quando o protótipo de uma nova série saísse de sua trajetória e caísse perto de Crab Key. Antes de mais nada, isto seria atribuído a falhas mecânicas. Mais tarde talvez descobrissem que outros sinais, que não os seus, tinham estado a guiar os seus foguetes. Teria início, então uma guerra de freqüência. Tentariam e conseguiriam localizar a origem dos sinais falsos, mas assim que eu verificasse que eles estavam à minha caça, teria uma derradeira cartada. Os seus foguetes enlouqueceriam. Cairiam em Havana, em Kingston; dariam uma volta e despencariam sobre Miami. Mesmo sem as cargas detonantes, Sr. Bond, cinco toneladas de metal, chocando-se a mil milhas por hora, podem causar terríveis danos numa cidade super-povoada. E depois? Haveria pânico, haveria um clamor público. As experiências teriam de ser interrompidas. A base de Turks Island teria que fechar. E quanto não pagariam os russos para que isso acontecesse, sr. Bond? E quanto por protótipo que eu capturasse para eles? Digamos dez milhões de dólares por toda a operação? Vinte milhões? Seria uma vitória sem preço na corrida dos armamentos. Posso fazer o meu preço, não concorda, sr. Bond? E não concorda também que essas considerações tornam os seus argumentos e ameaças engraçadíssimos?

Bond não respondeu. Nada havia a dizer. Subitamente se viu em pensamento naquela sala tranqüila de Regents Park. Podia ouvir a chuva batendo suavemente contra a janela e a voz de M, impaciente e sarcástica, dizendo: “Oh, algum maldito negócio em torno de aves... umas férias ao sol lhe farão bem... investigações rotineiras.” E ele, Bond, tinha apanhado uma canoa, um caniço e um farnel de piquenique e partira — há quantos dias, há quantas semanas? — “para dar uma espiada”. Bem, ele tinha dado uma espiada na caixa de Pandora. E tinha tido as respostas, conhecera os segredos — e agora? Agora iriam mostrar-lhe polidamente o caminho para a sepultura, para onde ele levaria consigo o seus segredos arrancados e arrastados por ele em sua lunática aventura. Toda a amargura que lhe ia no íntimo aforou à boca, de modo que por um momento pensou que ia vomitar. Apanhou o copo e esvaziou todo o resto de champanha que nele havia. Depois disse asperamente: — Muito bem, Dr. No. Agora vamos ao cabaré. Qual é o programa — faca, bala, veneno, corda? Mas proceda rapidamente, já o vi bastante.

Os lábios do Dr. No se apertaram numa fina linha arroxeada. Os olhos eram duros como ônix, sob a bola de bilhar de sua fronte e crânio. A máscara de polidez tinha desaparecido. O Grande Inquisidor sentava-se na cadeira de alto espaldar. Tinha soado a hora para a “peine forte et dure”.

O Dr. No proferiu uma palavra e os dois guardas avançaram um passo e agarraram as suas vitimas pelos braços, acima dos cotovelos, mantendo-as imobilizadas para trás, apoiadas nos lados das cadeiras. Não houve resistência. Bond concentrou-se em manter o isqueiro sob o sovaco. As luvas brancas em seus bíceps pareciam faixas de aço. Sorriu para a jovem. — Desculpe-me por isso, Honey, — disse. — Receio que afinal de contas não possamos mais brincar juntos.

Os olhos da jovem, em seu rosto pálido, tinham ficado azul-escuros, pelo medo. Seus lábios tremiam, e ela perguntou: — Doerá muito?

— Silencio! — A voz do Dr. No soou como o estalar de um chicote. — Chega de tolices. Naturalmente que doerá. Estou interessado na dor. E estou igualmente interessado em descobrir quanto de dor o corpo humano pode suportar. De vez em quando faço experiências com os meus subordinados que devem ser punidos, e em intrusos como os senhores. Acarretaram-me os senhores grandes dificuldades. Em troca, pretendo causar-lhes uma grande soma de dor. Registrarei os níveis de suas resistências. Os fatos serão anotados, e um dia as minhas pesquisas serão relatadas ao mundo. As suas mortes terão servido à Ciência. Nunca desperdiço material humano. As experiências feitas pelos alemães com seres humanos vivos, durante a guerra, foram de grande proveito para a Ciência. Faz um ano que pus uma mulher para morrer da maneira que escolhi para a senhora. Ela era uma negra e durou três horas, mas morreu de terror. Queria agora fazer a experiência com uma mulher branca, para poder estabelecer uma comparação. Não me surpreendi quando a sua chegada me foi comunicada. Consigo sempre o que quero. — O Dr. No reclinou-se para trás na cadeira. Seus olhos estavam agora fixos na jovem, estudando-lhe as reações. Honeychile correspondia ao olhar, como que meio hipnotizada, como um rato do mato diante de uma cascavel.

Bond apertou os dentes.

— A senhora é uma jamaicana, por isso saberá o que quero dizer. Esta ilha chama-se Crab Key. Recebeu este nome porque está infestada de caranguejos — o que chamam em Jamaica “caranguejos negros”. A senhora os conhece. Pesam meio quilo, cada um, e têm o tamanho de um pires. Nesta época do ano eles saem aos milhares de seus esconderijos, próximos à costa, e sobem em direção à montanha. Lá, nos planaltos de coral, eles se alojam novamente em buracos da rocha, onde desovam. Avançam em exércitos de centenas, de cada vez. Atravessam tudo e sobre tudo. Em Jamaica eles invadem as casas e não se desviam de seu caminho. São como certos roedores da Noruega. É uma migração irresistível. — O Dr. No fez uma pausa. Em seguida acrescentou suavemente: — Mas há uma diferença. Os caranguejos devoram o que encontram em seu caminho. E agora, minha senhora, eles já estão em marcha. Estão galgando as faldas da montanha, às dezenas de milhares, em ondas negras e vermelho-laranja. Estão, neste momento, se apressando e se empurrando e arranhando a rocha acima de nós. E esta noite, no meio do seu caminho, eles vão encontrar o corpo nu de uma mulher sòlidamente preso — um banquete preparado para eles — e vão apalpar o corpo morno com suas pinças, e um deles dará o primeiro corte com suas garras de combate e então... e então...

A moça gemeu. Sua cabeça caiu para a frente sobre o peito. Desmaiara. O corpo de Bond inteiriçou-se na cadeira. Uma torrente de palavras obscenas escapou por entre seus dentes cerrados. As manoplas dos guardas pareciam-lhe ferro à volta dos braços. Nem sequer podia fazer deslizar os pés da cadeira no chão. Depois de um momento de luta, desistiu. Esperou que sua voz se acalmasse, e disse então, com todo o veneno que podia instilar nas palavras:

— Seu bastardo! Você há-de frigir no inferno se fizer isso!

O Dr. No sorriu fracamente.

— Senhor Bond, não acredito na existência do inferno. Procure consolar-se. Talvez eles comecem pela garganta ou pelo coração. O bater do pulso ainda os poderá atrair. Depois disso, tudo acabará depressa.

Proferiu então uma sentença em chinês. O guarda que estava atrás da cadeira da moça inclinou-se para a frente, levantou-a da cadeira como se fora uma criança e atirou-a por cima do ombro. Os belos cabelos caíam qual cascata de ouro entre os braços inertes. O guarda foi à porta, abriu-a e saiu, formando a fechá-la sem ruído.

Por um momento, reinou, silêncio na sala. Bond pensava somente na faca encostada ao seu ventre e no isqueiro debaixo da axila. Qual a extensão dos estragos que ele poderia causar com aqueles dois pedaços de metal? Poderia, de algum modo, aproximar-se do Dr. No?

O Dr. No continuou serenamente: — O senhor disse que o poder era uma ilusão, sr. Bond. Não modifica a sua opinião? O meu poder de escolher a morte que quiser para essa jovem certamente que não é uma ilusão. Todavia, passemos ao método de sua morte. Isso também encerra aspectos novos. Saiba, sr. Bond, que estou interessado na anatomia da coragem — do poder de resistência do corpo humano. Mas como medir a resistência humana? Como traçar um gráfico da vontade de sobrevivência, da tolerância à dor, da conquista do medo? Pensei muito nesse problema e acredito tê-lo solucionado. Trata-se, por enquanto, de um método incompleto e grosseiro, mas que será aperfeiçoado na medida em que as experiências se forem multiplicando. Preparei o senhor para essa experiência. Dei-lhe um sedativo, de modo que o seu corpo esteja descansado, e alimentei-o bem, de modo que possa estar no gozo completo de suas forças. Os futuros — como os chamarei — pacientes, terão as mesmas vantagens. Todos começarão nas mesmas condições. Depois disso, o restante será uma questão de coragem e do poder de resistência individuais.

O Dr. No fez uma pausa, enquanto observava o rosto de Bond. Depois prosseguiu: — Saiba ainda, sr. Bond, que justamente agora acabo de construir uma espécie de pista de obstáculos, uma espécie de pista de corrida contra a morte. Não direi mais sobre isso porque o elemento surpresa é um dos que aparecem na formação do medo. Os perigos desconhecidos são os piores, os que mais pressionam as reservas de coragem. E me alegro com a idéia de que a corrida de obstáculos que o senhor enfrentará contém um rico sortimento de coisas inesperadas. Será particularmente interessante sr. Bond, que um homem com as suas qualidades físicas seja o meu primeiro competidor. Será interessantíssimo ver até onde o senhor conseguirá alcançar, na pista que idealizei. Não há dúvida de que o senhor estabelecerá uma marca invejável para os futuros corredores. Tenho grandes esperanças no senhor. O senhor deverá ir muito longe, mas quando tombar, inevitavelmente, diante de um obstáculo, seu corpo será recolhido e eu examinarei meticulosamente os seus restos. Os dados assim colhidos serão registrados e o senhor representará o primeiro ponto de um gráfico. Algo honroso, não é, senhor Bond?

Bond nada respondeu. Que diabo significaria tudo aquilo? Em que poderia consistir aquela prova? Seria possível escapar dela com vida? Poderia escapar disso e salvar Honeychile antes que fosse demasiado tarde, ainda que para matá-la e assim salvá-la da tortura? Silenciosamente, Bond ia reunindo suas reservas de coragem, retemperando a mente contra o temor do desconhecido que já começava a envolver a sua garganta, e focalizando a sua vontade no alvo da sobrevivência. Acima de tudo, deveria apegar-se às suas armas.

O Dr. No levantou-se e afastou-se da cadeira. Caminhou vagarosamente até a porta e voltou-se. Seus olhos negros e ameaçadores fixavam Bond, pouco abaixo da armação da porta. A cabeça estava ligeiramente inclinada e os lábios finos tornaram a se mexer: — Faça uma boa corrida para mim, sr. Bond. Meus pensamentos, como se costuma dizer, o acompanharão.

O Dr. No afastou-se e a porta fechou-se suavemente por trás de seus costados amarelos.


XVII - O PROLONGADO GRITO


Havia um homem no elevador, cujas portas estavam abertas, à espera. James Bond, com os braços ainda torcidos, junto aos flancos, foi impelido para dentro do elevador. Agora, a sala de jantar estava vazia. Quando voltariam os guardas para desembaraçar a mesa e então notar o desaparecimento dos objetos subtraídos? As portas fecharam-se e o cabineiro ficou diante dos botões, de modo que Bond não pôde ver qual deles teria sido apertado. Sabia apenas que estavam, subindo, e tentou fazer um cálculo da distância percorrida. O elevador parou, e Bond teve a impressão de que o tempo gasto naquele percurso fora menor do que quando descera juntamente com Honeychile. As portas abriram-se para um corredor sem tapete, com uma pintura cinzenta e rústica nas paredes de granito. Esse corredor ia numa linha reta até uma distância de vinte metros.

— Espere aí — disse o guarda de Bond para o cabineiro — voltarei logo.

Bond foi conduzido ao longo do corredor, passando diante de portas marcadas com letras do alfabeto. Ouvia-se um leve zunido de maquinaria no ar, e, por trás de uma porta, Bond teve a impressão de ouvir descargas estáticas de equipamento eletrônico. Aquilo parecia vir da sala de máquinas, no coração da montanha. Logo chegaram à porta da extremidade do corredor que estava marcada com um Q negro. Ela estava entreaberta, de modo que logo se escancarou quando Bond foi empurrado através dela. Por trás daquela porta estava uma cela pintada de cinzento, com cerca de quinze pés quadrados. Nela nada havia, a não ser uma cadeira de madeira, sobre a qual estavam, lavadas e cuidadosamente dobradas, as calças pretas de Bond e a sua camisa azul.

O guarda soltou os braços de Bond, que logo se voltou e olhou para o rosto amarelo, sob os cabelos ondeados. Havia um leve sinal de curiosidade e prazer nos olhos marrons e úmidos. O homem estava de pé, segurando a maçaneta da porta. — Bem, aqui estamos, rapaz. Você está no ponto de partida. Poderá ficar aí sentado, apodrecendo, ou procurar uma saída e iniciar a corrida. Felicidades para você.

Bond pensou que valeria a pena tentá-lo. Deu ainda uma olhadela para além do guarda, onde o cabineiro ainda se conservava ao lado de suas portas abertas, observando-os.

Então disse suavemente: — Você não gostaria de ganhar dez mil dólares, garantidos, e uma passagem para qualquer lugar do mundo que desejasse? — Dito isso, observou cuidadosamente as reações do homem. A boca se abriu numa ampla careta, mostrando dentes escurecidos, desigualmente gastos pelos anos de mascagem de cana-de-açúcar.

— Muito obrigado, senhor. Prefiro continuar vivendo. — O homem fez menção de fechar a porta e Bond ainda gritou ansiosamente: — Podemos sair juntos daqui.

Os grossos lábios fizeram uma careta de desprezo, e o homem apenas disse: “Vá em frente!” E logo a porta se fechou com um duro estalido.

Bond deu de ombros, mas logo passou a examinar a porta. Era feita de metal e não havia maçaneta do lado de dentro. Bond preferiu não experimentar o ombro de encontro àquela barreira. Aproximou-se da cadeira, sentou-se sobre a pilha de suas roupas limpas, e olhou à volta da cela. As paredes eram inteiramente nuas, com exceção de uma grade para ventilação, feita de arame grosso, num dos cantos, logo abaixo do teto. Aquela abertura era maior que os seus ombros. Era, evidentemente, a entrada para a pista dos obstáculos. A única abertura restante, naquele recinto, era uma espécie de vigia de espesso vidro, logo acima da porta, e que não seria maior do que a cabeça de Bond. A luz, vinda do corredor, atravessava aquela grade e penetrava na cela. Nada mais havia. Não seria inteligente perder tempo. Seriam dez e meia. Lá fora, em alguma parte da falda da montanha, a jovem já deveria estar deitada, estendida sobre o chão, à espera do matraquear das pinças no coral cinzento. Bond apertou os dentes ao pensamento daquele corpo frágil e indefeso sob as estrelas. Bruscamente, pôs-se de pé. Que diabo estava ele fazendo ali sentado? O que quer que existisse do outro lado da grade deveria ser imediatamente enfrentado.

Bond apanhou a faca e o isqueiro, e tirou o quimono. Em seguida vestiu as calças e a camisa, enfiando o isqueiro no bolso. Experimentou o corte da faca com o polegar, e verificou que a lamina era bastante afiada. Seria ainda melhor se pudesse fazer uma ponta naquela lâmina. Ajoelhou-se no chão e começou a esfregar a extremidade arredondada da faca na laje do pavimento. Depois de um precioso quarto de hora, deu-se por satisfeito. Não era um estilete, mas que tanto serviria para cortar como para espetar. Colocou-a então entre os dentes e arrastou a cadeira para baixo da abertura gradeada. A grade? Supondo que pudesse arrancá-la pela base, aquele arame bem poderia ser esticado, de modo a formar uma lança, facultando-lhe assim uma terceira arma. Bond esticou os braços, com os dedos encurvados.

A coisa imediata de que tomou consciência foi uma dor de queimadura ao longo do braço e o choque de sua cabeça, ao atingir o chão de pedra. Ficou durante algum tempo estendido no solo, apenas com a lembrança de uma faísca azulada e o estalido e o chiado seco de eletricidade.

Depois de algum tempo, Bond pôs-se de joelhos e assim ficou por um momento. Em seguida baixou a cabeça e sacudiu-a lentamente de um lado para outro, como um animal ferido. Sentiu um leve odor de carne queimada. Levantou a mão direita à altura dos olhos e viu a mancha vermelha de uma queimadura aberta ao longo da parte interna dos dedos. A visão daquele ferimento trouxe-lhe também a consciência da dor. Bond proferiu uma imprecação. Vagarosamente pôs-se de pé. Dessa vez, olhou de soslaio, cautelosamente, para a grade, como se ela fosse feri-lo novamente. Irritado, encostou a cadeira na parede, apanhou a faca e com ela cortou uma faixa do quimono, envolvendo-a firmemente nos dedos. Em seguida tornou a subir na cadeira e olhou para a grade. Esperava-se que ele a atravessasse, e aquele choque tinha sido calculado apenas para amolecê-lo: era uma amostra do que estaria por vir. Com certeza o curto-circuito causado por ele já tinha posto fora de combate aquela armadilha. Olhou para a grade apenas por um instante, e já os dedos de sua mão esquerda a atingiam e atravessavam. Do outro lado não havia nada. Seria mesmo só aquela grade? Puxou a armação e ela cedeu uma polegada. Fez novo esforço e a grade foi arrancada do lugar, ficando pendurada por dois fios de cobre que desapareciam no interior da parede. Bond soltou a grade das pontas daqueles fios e desceu da cadeira. Havia um ponto de junção no arame de ferro, naquela grade, e Bond pôs-se a retificá-la, usando a cadeira como martelo.

Depois de dez minutos tinha à sua disposição um chuço recurvado de cerca de um metro de comprimento. Uma des extremidades, que tinha sido originalmente cortada por alicates, apresentava-se lacerada. Não atravessaria as roupas de um homem, mas teria efeito devastador no pescoço ou no rosto. Lançando mão de toda sua força e servindo-se da fresta inferior da porta metálica, Bond conseguiu fazer ainda um gancho com a extremidade rombuda daquele arame de ferro. Em seguida mediu-o com a perna e achou que aquela nova arma era demasiado longa. Em conseqüência, dobrou-a em dois e enfiou-a numa das pernas da calça. Agora, o chuço ia de sua cintura, onde fora pendurado, até o joelho. Voltou então para a cadeira e tornou a subir até a boca do ventilador, agora desobstruída. Não experimentou mais choque. Ergueu o corpo e introduziu-o naquele tubo que tinha mais quatro polegadas que a largura de seus ombros. Durante algum tempo deixou-se ficar, de barriga para baixo, a olhar para o interior da abertura. O túnel era circular e de metal polido. Bond apanhou o isqueiro, abençoando a inspiração que o fizera roubá-lo, e acionou-o. Sim, aquilo era folha de zinco que parecia nova. O túnel continuava em linha reta, sem qualquer característica especial, a não ser as costuras de junção das várias seções tubulares. Bond tornou a meter o isqueiro no bolso e foi-se arrastando para a frente.

Aquele deslizamento não foi difícil, e até mesmo uma brisa fresca, proveniente do sistema de ventilação, afagava o rosto de Bond. O ar não trazia nenhum cheiro de mar, sendo o seu odor o mesmo que caracteriza o ar de uma instalação de condicionamento de temperatura. O Dr. No devia ter lançado mão de um dos tubos do sistema para as suas experiências. Mas que armadilhas teria introduzido naquele tubo, a fim de pôr à prova as suas vítimas? Deviam ser engenhosas e dolorosíssimas — imaginadas para reduzir a resistência de suas vítimas. No final dos obstáculos, com certeza, a vítima seria surpreendida com o golpe de misericórdia — se é que lograsse chegar ao fim. Com efeito, haveria ali algo que não admitisse escapatória, pois nessa corrida não haveria prêmios, mas apenas padecimentos. A não ser, naturalmente, que o Dr. No tivesse subestimado a vontade de sobrevivência de seu desafeto. Essa, pensou Bond, era a sua única esperança — tentar vencer todos os obstáculos que se lhe deparassem, rompendo pelo menos até a última estacada.

Havia uma pálida luminosidade à sua frente. Bond foi-se arrastando cautelosamente, com todos os seus sentidos atuando como antenas. Aquela luminosidade foi-se tornando mais clara. Era o reflexo da luz que incidia sobre um dos lados da extremidade do tubo. Continuou avançando até que sua cabeça tocou naquela extremidade. Aí, Bond se torceu sobre as costas e olhou para cima. Sobre sua cabeça estava uma chaminé de cerca de cinqüenta metros de altura, em cujo topo havia uma claridade estável. Era como se alguém olhasse através de um comprido cano de canhão. Bond enfiou a cabeça por aquela chaminé e pôs-se de pé. Então, esperava-se que ele galgasse aquele tubo liso, sem qualquer apoio para os pés! Seria possível? Bond expandiu os ombros. Sim, eles lhe proporcionariam uma boa adesão às paredes laterais. Seus pés também o ajudariam na empreitada, embora escorregassem terrivelmente, a não ser nas orlas em que se soldavam os tubos. Bond deu de ombros e tirou os sapatos. Não adiantava monologar. Teria apenas que tentar.

Seis polegadas de cada vez, e o corpo de Bond começou a deslizar pela chaminé acima. A operação consistia em expandir os ombros para se fixar à chaminé, depois levantar os pés, unir os joelhos fortemente, e forçar os pés para fora, em direções opostas, contra o metal, e rapidamente contrair e expandir os ombros novamente, ao mesmo tempo que os pés escorregavam para baixo, deixando, entretanto, como saldo uma pequena progressão de algumas polegadas. E continuar repetindo, repetindo e repetindo a operação, até que os seus olhos fossem banhados pela luz que vira no topo da chaminé. De quando em quando pararia na saliência da solda dos tubos, a fim de descansar um pouco, recuperar o fôlego e medir o próximo avanço. E não havia que olhar para cima; apenas concentrar-se nas polegadas de metal que deveriam ser vencidas, uma a uma. Nada de preocupações com a luminosidade que pareceria nunca aumentar ou se aproximar. Também não deveria preocupar-se com a possibilidade de afrouxar a pressão dos ombros contra as paredes metálicas, indo esmagar os tornozelos no fundo da chaminé. E nenhuma preocupação com cãibras, com o inchaço dos ombros ou com as esfoladuras dos pés. Apenas ataque às polegadas prateadas, conquistando-as uma a uma.

Mas logo os pés começaram a suar e escorregar de modo desesperador. Por duas vezes Bond perdeu um metro, em virtude do escorregamento de seus ombros, que ficaram terrivelmente escalavrados com o atrito, antes de poder conseguir a freagem. Em certa altura teve mesmo que se deter durante algum tempo para esperar que o suor secasse com a corrente de ar que descia pela chaminé. Essa pausa durou dez minutos, durante os quais ele se viu apagadamente refletido na superfície metálica, com o rosto dividido ao meio pela faca que segurava entre os dentes. Ainda assim recusou-se a olhar para cima, a fim de ver quantos metros teria que vencer. Aquela derradeira seção poderia ser muito longa. Cuidadosamente Bond esfregou cada pé num cano de calça e recomeçou a batalha.

Agora, parte de sua mente sonhava, enquanto a outra se empenhava na luta. Nem mesmo estava consciente de que a luminosidade se ia acentuando lentamente e que a brisa se tornava mais forte. Via-se apenas como uma lagarta ferida, arrastando-se por um cano de descarga em direção a um ralo de banheira. O que veria quando atravessasse o ralo? Uma jovem nua se enxugando? Um homem fazendo a barba? A luz do sol filtrando-se para dentro de um banheiro Vazio?

A cabeça de Bond bateu de encontro a alguma coisa. O ralo estava obstruindo o orifício! O choque do desapontamento fez que escorregasse uma polegada, antes que seus ombros pudessem retê-lo firmemente. Então compreendeu que tinha chegado ao topo da chaminé! Agora notava a luz forte e o vento impetuoso. Ansiosamente, ele se alçou novamente até que a cabeça tocou em algo. O vento soprava contra sua orelha esquerda. Cautelosamente, voltou a cabeça para essa direção. Era outro tubo lateral. Acima de sua cabeça a luz se escoava através de uma espessa vigia. Tudo o que tinha a fazer era contornar aquela derivação, agarrando-se à orla do novo tubo, e, de qualquer maneira, encontrar forças para se introduzir naquele túnel lateral. Então poderia descansar um pouco, deitado.

Com redobrada cautela, nascida do pânico de que algo agora podia acontecer, de que poderia cometer um erro e ser precipitado no fundo da chaminé, Bond empreendeu a manobra, com suas últimas reservas de forças, e introduzindo-se na nova caverna caiu estirado com o rosto para baixo.

Mais tarde — quanto tempo mais tarde? — os olhos de Bond se abriram e seu corpo estremeceu. O frio o tinha despertado da total inconsciência em que o seu corpo o teria lançado. Penosamente, virou-se de costas, com pés e ombros doendo terrivelmente, e procurou reunir todas as forças mentais e físicas. Não tinha a mínima idéia da hora ou do lugar em que estaria no interior da montanha. Levantou a cabeça e olhou para trás, em direção à vigia, sobre o tubo vertical, do qual escapara. A luz era amarelada e o vidro parecia muito grosso. Lembrou-se da vigia existente na sala Q. Aquela vigia era absolutamente inquebrável, e esta também o seria, pensou ele.

Subitamente, por trás daquele vidro, distinguiu movimento. Enquanto observava, um par de olhos se materializaram, por trás de lâmpadas elétricas. Aqueles olhos pararam e fitaram-no, com o farolete parecendo um nariz entre aqueles dois olhos. Fixaram-no negligentemente e depois desapareceram. Os lábios de Bond explodiram numa imprecação. Então o seu progresso estava sendo observado para ser levado ao conhecimento do Dr. No.

Bond disse em voz alta: “Para o diabo com todos eles!”,, e voltou-se colérico sobre o ventre. Levantou a cabeça e olhou para a frente. O túnel desaparecia na escuridão. Para a frente! Não adianta nada perder tempo aqui. Apanhou a faca, colocou-a entre os dentes e foi abrindo caminho.

Em breve já não havia mais nenhuma luminosidade. Bond detinha-se de quando em quando para acender o isqueiro mas nada encontrava a não ser trevas. O ar começou a se tornar mais cálido, dentro do túnel, e, depois de uns cinqüenta metros talvez, decididamente quente. Havia mesmo cheiro de calor no ar, de calor metálico. Bond começou a suar.. Dentro de alguns minutos seu corpo estava completamente encharcado e ele tinha que parar para limpar os olhos. Deu uma volta à direita, no tubo, e, na nova seção, sentiu o metal bastante quente contra a sua pele. O cheiro de calor metálico era agora bem acentuado. Assim que enfiou a cabeça no novo túnel, tirou o isqueiro do bolso, acendeu-o e rapidamente recuou. Amargamente, considerou a nova dificuldade, medindo-a e amaldiçoando-a. A chama de seu isqueiro tinha iluminado uma seção de tubos de zinco descolorido. A nova dificuldade seria o calor!

Bond resmungou alto. Como a sua carne já esfolada poderia resistir àquilo? Como poderia proteger a pele contra o metal? Mas não havia solução satisfatória. Ou voltaria, ou continuaria ali parado ou, afinal, avançaria. Não havia outra decisão a tomar. Aliás, Bond começava a encontrar algum consolo em suas reflexões. Com efeito, não seria o calor que haveria de matá-lo, mas alguma mutilação. O metal aquecido não seria o seu campo de sacrifício — apenas mais uma prova para medir-lhe a resistência.

Bond pensou na jovem e no que ela estaria sofrendo. Oh, sim, para a frente com aquilo. Agora, vejamos...

Bond apanhou a faca e cortou toda a parte da frente da camisa, fazendo com ela várias faixas. A única esperança estaria em dar alguma proteção às partes de seu corpo que mais sofreriam a ação do calor, isto é, os pés e as mãos. Seus joelhos e cotovelos teriam de resistir apenas com a proteção normal da fina camada de roupa. E, assim, dispôs-se à luta, amaldiçoando-a.

Agora estava pronto. Um, dois, três...

Bond dobrou o ângulo do túnel e lançou-se contra o foco de calor.

Mantenha a barriga nua distante do chão! Contraia os ombros! Mãos, joelhos, pés; mãos. joelhos, pés. Mais depressa! Mais depressa! Sempre mais depressa, de modo que cada toque contra o chão seja rapidamente seguido por outro.

Os joelhos é que mais estavam sofrendo, agüentando a maior parte do peso do corpo. Agora, as mãos envoltas em panos estavam começando a chamuscar. Acendeu-se uma fagulha, e logo outra, e em seguida surgiram chamas, quando as fagulhas começaram a se deslocar. A fumaça que saía daquele envoltório de pano de suas mãos fazia que os seus olhos ardessem penosamente. Por Deus, ele não agüentaria mais! Não havia mais ar. Seus pulmões estavam a ponto de estourar. Agora as suas duas mãos estavam lançando fagulhas para os lados. O tecido devia estar quase acabado; então a carne começaria a queimar. Bond deu um guinada e seu ombro ferido tocou no metal. Um grito de dor ecoou no túnel, logo seguido de outros gritos proferidos regularmente, quando suas mãos, pés ou joelhos tocavam no metal escaldante. Agora ele estava liquidado. Era o fim. Mais alguns segundos e iria cair de borco, morrendo literalmente queimado. Não! Devia opor um supremo esforço de reação, ainda que aos berros, até que toda a carne tivesse sido queimada até os ossos. A pele dos joelhos já devia ter sido completamente destruída. Mais um pouco e as palmas de suas mãos estariam tocando no metal. Apenas o suor que corria de seus braços poderia manter úmido o pano de suas mãos. Grite, grite, grite! Isto aliviará a dor.” Isto dirá que você está vivo. Continue! Continue! Não pode durar muito mais. Não é aqui que você deverá morrer. Não fraqueje! Você não pode!

A mão direita de Bond tocou em alguma coisa que cedeu. Logo sentiu uma corrente de ar frio. A outra mão bateu então em sua cabeça. Ouviu-se um débil ruído. Bond sentiu a orla inferior de um anteparo de amianto, articulado na parte superior do tubo, e que agora se arrastava em suas costas. Tinha vencido aquela prova. Ouviu o barulho daquele anteparo fechando-se novamente, depois de ter dado passagem a todo o seu corpo. Suas mãos estavam agora encostadas numa sólida parede. Com os dedos, apalpou à direita e à esquerda. Era um desvio em ângulo reto. Seu corpo seguiu cegamente volta do desvio e o ar frio parecia penetrar em seus pulmões como lâminas de aço geladas. Prudentemente, encostou os dedos no metal. Estava frio! Com um gemido Bond caiu sobre o rosto e ficou quieto.

Algum tempo depois, a dor tornou a reavivá-lo. Bond voltou-se dolentemente, de costas. Vagamente notou uma vigia de vidro acima de sua cabeça, e vagamente percebeu aquele mesmo par de olhos a fitá-lo. Depois, deixou novamente que as ondas de trevas o submergissem.

Aos poucos, na escuridão, as bolhas feitas em toda a pele e os pés e ombros queimados começaram a endurecer. O suor tinha-se secado no corpo e nos farrapos da roupa, enquanto o ar penetrara nos pulmões superaquecidos, começando o seu insidioso trabalho. Mas o coração continuava batendo, forte e regularmente, por dentro da torturada carcaça, e os poderes mágicos do oxigênio levaram nova vida para dentro das artérias e veias, recarregando os nervos.

Depois de um tempo que lhe pareceu infinito, Bond despertou. Estremeceu, e, ao encontrarem-se os seus olhos com o outro par que o espreitava, por trás do vidro, a dor se apoderou dele e sacudiu-o como se fosse um rato. Esperou que aquela descarga de dor o matasse. Tentou novamente, e novamente, até que conseguiu aquilatar toda a força do adversário. Em seguida, para esconder-se da testemunha, voltou-se sobre o estômago e resistiu a toda a dor que vinha de dentro de si próprio. Continuou em expectativa, explorando o corpo para verificar-lhe as reações, pondo à prova a força de decisão que ainda tivesse restado nas baterias. Quanto mais poderia ainda agüentar? Os lábios de Bond desprenderam-se dos dentes e ele rosnou na escuridão. Era um som animal. Tinha chegado ao fim de suas reações humanas à dor e à adversidade. O Dr. No o tinha encurralado. Mas ainda restavam reservas de desespero animal e, num animal forte, essas reservas são consideráveis.

Lentamente, em verdadeira agonia, Bond deslizou mais alguns metros para fora do campo visual daqueles olhos e procurou o seu isqueiro, acendendo-o. À sua frente via apenas uma lua cheia negra, a boca circular que o levaria ao estômago da morte. Bond guardou o isqueiro, respirou profundamente e pôs-se sobre os joelhos e mãos. A dor não foi maior, apenas diferente. Lentamente, com movimentos duramente articulados, avançou.

O tecido de algodão de seus joelhos e de seus cotovelos tinha sido completamente queimado. Entorpecidamente, seu cérebro foi registrando a umidade à medida que suas bolhas se abriam contra o metal frio. Enquanto se movia, ia simultaneamente flexionando os dedos e os pés, sentindo-lhes a dor. Lentamente foi sabendo o que poderia fazer, o que doeria menos. Esta dor é suportável, refletiu ele consigo mesmo. Se eu tivesse sofrido um desastre de avião, eles diagnosticariam apenas contusões e queimaduras superficiais. Teria alta do hospital dentro de alguns dias. Não há nada de sério comigo. Sou um sobrevivente de desastre. Dói, mas não é nada. Pense nos pedaços de carnes dos outros passageiros. Dê-se por feliz. Tire isso de sua cabeça. Mas, por trás de todas essa reflexões, estava o pensamento de que, em verdade, ele ainda não experimentara o desastre, — que ainda estava a caminho dele, com sua resistência e sua capacidade muito reduzidas. Quando chegaria ele? Que caráter teria? E quanto mais ainda seria ele amolecido antes de chegar à arena do sacrifício?

à frente, na escuridão, aqueles pequeninos pontos vermelhos bem poderiam ser uma alucinação, manchas rubras diante de seus olhos, causadas pela exaustão. Bond parou e apertou os olhos. Balançou a cabeça. Não, aqueles pontinhos vermelhos ainda estavam lá. Vagarosamente, arrastou-se para mais perto deles. Agora não havia dúvida de que eles se estavam movendo. Bond deteve-se novamente. Alem das batidas de seu coração, ouvia uma espécie de murmúrio suave e delicado. Aqueles pontinhos do tamanho de uma cabeça de alfinete tinham aumentado. Agora haveria vinte ou trinta, deslocando-se para a frente e para trás, alguns rapidamente, outros mais vagarosamente, em todo o círculo negro que o esperava à frente. Susteve o fôlego, assim que conseguiu acender o isqueiro. Os pontinhos vermelhos tinham desaparecido. Substituindo-os, ele viu a um metro de distância, à sua frente, uma tela muito fina, quase da finura de musselina, bloqueando o túnel.

Bond continuou deslocando-se por centímetros, para diante, com o isqueiro aceso à frente. Aquilo era uma espécie de gaiola, com pequeninos animais no seu interior. Podia ouvir aqueles diminutos seres fugindo à luz. A um pé apenas da tela apagou a luz e esperou que seus olhos se acostumassem à escuridão. Enquanto esperava, escutando, pôde ouvir novamente os pequeninos animais aproximarem-se dele, e, gradualmente, aquela floresta de pequeninos pontinhos vermelhos começou a se juntar, fitando-o através da tela.

Que seria aquilo? Bond ouviu seu coração bater com força. Serpentes? Escorpiões? Centopéias?

Cuidadosamente, foi aproximando os olhos daquela floresta de pontos luminosos. Aproximou o isqueiro bem junto da tela e acendeu-o bruscamente. Pôde apreender, num relance, a visão de pequeninas patas que atravessavam a tela e de dezenas de pés cabeludos e de ventres igualmente cabeludos com a forma de sacos, tendo em determinado ponto grandes cabeças de insetos que pareciam cobertas de olhos. Os animais fugiam em precipitada corrida, abandonando a tela da frente para irem refugiar-se na extremidade oposta da gaiola, formando uma só massa cinza-marrom.

Bond olhou através da tela, movendo o isqueiro para a frente e para trás. Depois apagou-o para economizar gasolina, e deixou que a respiração saísse por entre os dentes, num tranqüilo suspiro.

Eram aranhas, gigantescas tarântulas, de três ou quatro polegadas de comprimento. Haveria umas vinte delas dentro daquela gaiola. E, de qualquer maneira, ele teria que passar por perto delas.

Bond ficou parado, descansando e pensando, enquanto os olhos vermelhos se iam reunindo outra vez diante de seu rosto.

Qual seria o grau de letalidade daqueles animais? Quanto das lendas em torno delas seria mito? Certamente que podiam matar animais, mas em que medida seriam mortais para o homem aquelas gigantescas aranhas? Bond deu de ombros. Lembrou-se da centopéia. O toque das tarântulas seria muito mais suave. Seriam como o toque das patas de ursinhos de brinquedo contra a pele humana — até que mordessem e esvaziassem os seus folículos venenosos no organismo da pessoa.

Mas, ainda aqui, seria esta a arena do sacrifício derradeira, montada pelo Dr. No? Uma mordida ou duas, talvez, para mandar uma pessoa para um delírio de dor. O horror de ter que atravessar a tela no escuro — o Dr. No não teria pensado no isqueiro de Bond — varando aquela floresta de olhos, esmagando alguns corpos moles mas sentindo as picadas de outros. E depois mais picadas das que tivessem ficado presas à roupa. Em seguida, a lenta agonia do veneno. Este deveria ter sido o caminho percorrido pela imaginação do Dr. No — para que a vítima prosseguisse aos gritos pelo seu caminho. Para quê? Para a barreira final?

Mas Bond tinha o isqueiro, a faca e o chuço de arame. Tudo o que iria precisar era nervos e uma precisão infinita.

Delicadamente abriu a tampa do isqueiro e, com o polegar e indicador, fez sair o pavio uma polegada. Acendeu-o, e quando as aranhas recuaram, furou a tela com a faca. Fez um buraco na armadura e cortou para os lados. Depois, apanhou a aba da tela, que assim se desprendera, e arrancou-a da armadura. A tarefa não foi difícil, pois a aba fendeu-se numa só peça, com um tecido de algodão. Tornou a colocar a faca entre os dentes e atravessou a abertura. As aranhas recuaram diante da chama e amontoaram-se umas sobre as outras. Bond retirou o chuço de arame de dentro das calças e bateu com o arame dobrado sobre aqueles corpos moles. Bateu e tornou a bater ferozmente, reduzindo os aracnídeos a uma pasta informe. Quando algumas das aranhas tentaram escapar em sua direção, ele acenou-lhes com a chama e esmagou as fugitivas, uma a uma. Agora, as aranhas vivas estavam atacando as mortas, e tudo quanto Bond tinha a fazer era terminar o massacre.

Lentamente todos aqueles movimentos convulsivos foram declinando até cessarem completamente. Estariam todas mortas? Estariam algumas simulando morte? A chama do isqueiro estava começando a morrer. Teria que enfrentar o risco. Avançou mais um pouco e atirou aquela massa escura e pegajosa para um lado. Depois tirou a faca de entre os dentes e abriu a segunda cortina, puxando a aba cortada para cima da pasta feita com os corpos das tarântulas. A chama bruxuleou e tornou-se apenas um revérbero vermelho. Bond reuniu suas forças, atirou o corpo sobre a massa encoberta e atravessou a segunda tela.

Não sabia se teria posto os joelhos e cotovelos sobre limalhas metálicas ou sobre as aranhas. Tudo o que sabia é que tinha atravessado aquela barreira. Arrastou-se ainda por alguns metros para a frente, no interior do túnel, e depois parou para descansar e reunir coragem.

Sobre a sua cabeça veio uma pálida luz. Bond torceu-se para um lado, ficando de costas, para ver o que já esperava. Os olhos amarelos e amendoados fixavam-no com profundo interesse. Lentamente, por trás do farolete, a cabeça moveu-se de um lado para outro. As pálpebras caíram numa piedade fingida. Um punho cerrado, com o polegar apontando para baixo, à guisa de despedida e aniquilamento, interpôs-se entre o farolete e o vidro. Em seguida foi retirado e a luz apagou-se. Bond voltou o rosto para baixo e descansou a testa no chão metálico e frio. Aquele gesto dizia-lhe que ele estava chegando ao obstáculo final, que os seus algozes tinham dado por encerradas as observações até virem recolher os seus restos. Bond sentiu ainda que naquele rosto não houvera um único indício de louvor pelo fato de ter logrado sobreviver até aquela etapa. Aqueles chineses negros odiavam-no. Apenas queriam que ele morresse, e tão miseravelmente quanto possível.

Os dentes de Bond bateram suavemente. Ele pensara na jovem e este pensamento dera-lhe forças. Ainda não estava morto. Que diabo! Ele não iria morrer! Não enquanto o coração não lhe fosse arrancado do corpo.

Bond retesou os músculos. Era tempo de continuar, a investida. Com redobrado cuidado, recolocou as armas em seus lugares, e penosamente recomeçou a avançar pela escuridão.

O túnel começava a inclinar-se ligeiramente para baixo, o que tornava a progressão mais fácil. Logo a inclinação tornou-se tão acentuada que Bond podia deslocar-se apenas em virtude de seu peso. Era uma bênção não ter que fazer aquele esforço derradeiro com os músculos. Vislumbrou um clarão acinzentado à sua frente, pouco mais que uma redução das trevas completas, mas aquilo prenunciava uma mudança, pois a qualidade do ar parecia diferente. Havia nele um odor novo. O que seria? O mar?

Súbito, Bond compreendeu que estava escorregando para baixo, ao longo do túnel. Expandiu os ombros e abriu os pés, procurando impedir a queda. Aquele esforço causou-lhe terríveis dores e o efeito foi mínimo. Agora o túnel começava a alargar-se e ele já não poderia mais diminuir o impulso da queda! Seu deslizamento tornava-se mais e mais acelerado. Agora via uma curva à frente — e era uma curva dirigida para baixo.

O corpo de Bond logo chegou. àquela curva e contornou-a. Deus do céu, ele estava mergulhando de cabeça para baixo! Desesperadamente, abriu os braços e pernas. O metal esfolou sua pele. Agora tinha perdido completamente o controle da situação e estava mergulhando para baixo, sempre pára baixo, no interior de um cano de canhão. Muito abaixo havia um circulo de luz cinzenta. Seria o ar livre? O mar? A luz subia vertiginosamente para ele! Lutou para recuperar o fôlego. Continue vivo, idiota! Continue vivo!

Primeiro a cabeça, e logo depois o corpo de Bond precipitaram-se pelo espaço, vencendo aceleradamente a distância de mais de cem pés que o separava da superfície do mar.


XVIII - ARENA DE SACRIFÍCIO


O corpo de Bond espadanejou o espelho de um mar de alvorada como o impacto de uma bomba.

Enquanto descia precipitadamente pelo tubo prateado, em direção ao disco de luz, o instinto dissera-lhe que retirasse a faca de entre os dentes e que pusesse as mãos para a frente, a fim de aparar a queda, assim como a cabeça para baixo e o corpo rígido. E, na última fração de segundo, quando ele viu o mar que se alteava ao ritmo das ondas, procurou sorver uma longa inspiração. En conseqüência, projetou-se na água como se estivesse dando um mergulho, com os braços estendidos abrindo-lhe um buraco através do qual passaram a sua cabeça e o corpo. Conquanto, quando chegou a vinte pés de profundidade, tivesse perdido os sentidos, o despencar a sessenta e cinco quilômetros por hora não conseguira matá-lo.

Lentamente o corpo foi voltando à superfície, e ficou, com a cabeça para baixo, a balançar-se suavemente nas pequeninas ondas causadas pelo seu próprio mergulho. A água que penetrou nos pulmões de certa forma contribuiu para enviar uma última mensagem ao cérebro. As pernas e braços agitaram-se desajeitadamente. Agora tinha conseguido voltar a cabeça para cima, com a água escorrendo da boca. Tornou a afundar, mas dessa vez, instintivamente, as pernas começaram a mover-se procurando manter o corpo à superfície da água. Por fim, a cabeça, horrivelmente sacudida pela tosse, conseguiu vir para fora da água e assim manter-se. Os braços e as pernas começaram a agitar-se dèbilmente, com os movimentos natatórios de um cão, e através da cortina vermelha e negra, os olhos injetados de sangue viram a linha da vida e disseram ao dolente cérebro que visasse àquele objetivo.

A arena de execução era uma estreita e profunda enseada, na base de um elevado penhasco. A corda de salvamento em direção à qual Bond lutava, embaraçado pelo chuço metido em sua calça, era representada por uma forte tela de arame, que se estendia por dois lados do penhasco, protegendo aquela enseada do mar aberto. Aquela rede, formada de quadrados, estava suspensa a um grosso cabo situado a dois metros acima da superfície da água. Para baixo, a tela desaparecia nas profundezas, cheia de incrustações de algas.

Bond conseguiu chegar ao arame, e a ele agarrou-se como que crucificado. Durante quinze minutos deixou-se ficar na mesma posição, com o corpo de quando em quando sacudido por vômitos, até que se sentiu bastante forte para virar a cabeça e verificar onde estava. Ofuscadamente, os seus olhos tomaram a altura do penhasco, sobre sua cabeça. O lugar estava obscurecido por uma sombra cinzenta, projetada pela montanha, mas ao largo, no mar, havia uma iridiscência de pérola provocada pela aurora, o que significava que para o resto do mundo o dia estava amanhecendo. Mas onde Bond se encontrava era escuro e triste.

Lerdamente, a mente de Bond começou a se interrogar sobre aquela tela de arame. Qual seria a sua finalidade, fechando aquela escura enseada e separando-a do mar? Seria para manter alguma coisa do lado de fora ou para mantê-la do lado de dentro? Bond olhou vagamente para baixo, procurando penetrar as profundezas do mar, à sua volta. As malhas de arame perdiam-se no nada, sob os seus pés. Havia pequeninos peixes à volta de suas pernas, abaixo da cintura. Que estariam eles fazendo? Pareciam estar-se alimentando, avançando contra seu corpo e depois recuando com fiapos negros na boca. Fiapos de que? De algodão de seus farrapos? Bond sacudiu a cabeça para clarear as idéias. Tornou a olhar para baixo. Não, aqueles peixes estavam-se alimentando com seu sangue.

Bond estremeceu. Sim, o sangue estava escorrendo de seu corpo, dos ombros, dos joelhos, dos pés, e misturando-se à água. Agora, pela primeira vez sentiu a dor causada pela água salgada em suas feridas e queimaduras. A dor tornou-se mais viva e estimulou a sua mente. Se esses pequeninos peixes estavam gostando de seu sangue, o que dizer dos tubarões? Seria essa a finalidade daquela tela de arame, isto é, evitar que os peixes devoradores de seres humanos pudessem escapar para o mar? Então por que eles ainda não se tinham lançado sobre ele? Para o diabo! A primeira coisa a fazer era subir pelo arame e ganhar o outro lado. Interpor aquela tela entre ele e o que quer que vivesse naquele escuro aquário.

Dèbilmente, pé após pé, lá se foi Bond subindo pela tela, até chegar ao cume e passar para o outro lado, onde poderia descansar sem preocupações. Colocou o espesso cabo sob a axila, e olhou para baixo, contemplando os peixes que ainda se nutriam com o sangue que continuava gotejando de seus pés.

Agora já não havia muito em Bond; pouquíssimas reservas teria ele. O último mergulho no tubo, o choque da queda, na água, e a quase morte, causada por afogamento, tinham-no esmagado como a uma esponja. Estava prestes a entregar-se, prestes a soltar um pequeno suspiro e depois escorregar para os doces braços da água. Como seria bom abandonar-se, finalmente, e descansar — sentir que o mar suavemente o levava para o seu leito.

Foi a explosiva fuga dos peixes que estavam sorvendo o seu sangue, sob os seus pés, que despertou Bond de seu sonho de morte. Alguma coisa tinha-se movido muito abaixo da superfície. Havia uma trêmula claridade muito distante, mas que avançava lentamente para a superfície, aproximando-se pelo lado interno da tela.

O corpo de Bond se enrijeceu. Ante a iminência do perigo, a vida voltou-lhe num ímpeto, expulsando a letargia e comunicando-lhe renovada vontade de sobreviver.

Bond abriu os dedos aos quais, há muito, o seu cérebro ordenara que não perdessem a faca. Fechou os dedos e agarrou o cabo daquela lâmina. Abaixou-se em seguida e tocou no gancho do chuço que ainda se mantinha no interior da calça. Sacudiu vivamente a cabeça e ficou com os olhos alertas. E agora?

Sob os seus pés a água estremeceu. Alguma coisa estava-se debatendo, no fundo, alguma coisa enorme. Algo grande, de cor cinza luminescente, tornou-se visível, detendo-se muito abaixo da superfície, na escuridão. Alguma coisa se projetou daquela massa, em direção à superfície, algo como se fosse um chicote da grossura do braço de Bond. A extremidade daquela tira inchava-se numa terminação oval e achatada, com marcas semelhantes a botões distribuídos a espaços regulares. Aquele tentáculo rodopiou na água, no lugar em que os peixes tinham estado, e logo se encolheu. Agora só se via a grande sombra cinzenta lá embaixo da superfície. Que estaria fazendo o animal? Estaria...? Estaria provando o seu sangue?

Como que em resposta àquela pergunta, dois olhos, tão grandes quanto bolas de futebol, foram avançando para cima até se porem no campo de visão de Bond. Aqueles enormes olhos pararam vinte pés abaixo da superfície e olharam tranqüilamente para cima, fixando-se no rosto de Bond.

A pele de Bond ficou arrepiada nas costas. Sua boca deixou escapar um palavrão! Então, aquela era a Ultima surpresa do Dr. No, o fim da corrida!

Bond ficou de olhos abertos, meio hipnotizado, olhando para baixo. Então aquele era o polvo gigante, o monstro mítico que podia arrastar navios para as profundezas do mar, o monstro de cinqüenta pés de comprimento que podia dar combate às baleias e que pesava uma tonelada ou mais. O que mais sabia ele a respeito daqueles animais? Que tinham dois longos tentáculos para laçar e outros dez para agarrar; que tinham um enorme bico rombudo por baixo de olhos que eram os únicos olhos, entre os peixes, a trabalharem segundo o principio da câmara fotográfica, como os do homem: que seu cérebro era eficiente; que o monstro podia fugir para trás a uma velocidade de trinta nós, por um sistema de jato-propulsão. Sabia ainda que os arpões podiam afundar-se em sua manta de gelatina sem causar nenhum mal ao monstro, e que... mas os grandes olhos esbugalhados, que ofereciam um alvo negro e branco, estavam-se elevando em sua direção. A superfície da água estremecia. Agora Bond podia ver uma floresta de tentáculos que saíam da cara do animal. Ondulavam diante dos olhos do monstro como uma ninhada de grossas serpentes. Bond podia ver-lhe as ventosas sob os tentáculos. Atrás da cabeça, a grande aba da manta de gelatina abria-se e fechava-se suavemente, e, por trás dela, o brilho do corpo perdia-se nas profundezas. Por Deus, a coisa era tão grande quanto uma locomotiva!

Muito devagar e discretamente Bond foi enfiando os pés e depois os braços através dos quadrados da tela de arame, protegendo-se e ancorando-se tão sòlidamente que os tentáculos teriam que arrancá-lo dali aos pedaços ou então arrastar com ele todo aquele arcabouço de metal. Olhou para a direita e para a esquerda. Para qualquer lado, teria que vencer vinte metros, antes de chegar à terra. Mas, qualquer movimento, ainda que pudesse empreende-lo, séria fatal. Devia ficar absolutamente imóvel, rezando para que o monstro perdesse o interesse e se afastasse. Se ele não perdesse o interesse... Suavemente os dedos de Bond apertaram a pequenina faca.

Os olhos do monstro continuavam fitando-o, fria e pacientemente. Delicadamente, como a tromba de um elefante, um daqueles longos tentáculos laçadores emergiu da superfície e foi galgando a tela em direção às pernas de Bond. Tocou num de seus pés, e Bond sentiu o áspero beijo daquelas ventosas. Não se mexeu. Não ousava abaixar-se e afrouxar o enlaçamento de seus braços à volta do arame. Docemente as ventosas entraram em ação, experimentando o rendimento daquela presa. Não era bastante. Como uma gigantesca lagarta, o tentáculo foi subindo por sua perna. Parou à altura do joelho ensangüentado e deteve-se, interessado. Os dentes de Bond estalaram com a dor. Ele bem podia imaginar a mensagem que tinha descido por aquele tentáculo até o cérebro do animal: sim, é bom para comer-se! E a ordem de retorno ao tentáculo: então traga-o.

As ventosas continuaram subindo pela coxa. A extremidade do tentáculo se aflou e em seguida dilatou-se a ponto de quase cobrir toda a espessura da coxa de Bond. Depois reduziu-se à grossura de um pulso. Aquele seria o alvo de Bond. Apenas teria que agüentar a dor e resistir ao horror daquela acometida, esperando que esse pulso chegasse ao alcance de um golpe.

 

* *
Uma brisa, a primeira suave brisa da madrugada, soprou sobre a superfície metálica da enseada, levantando pequenas ondas que iam beijar a rocha do penhasco. Um bando de corvos marinhos alçou vôo da guaneira, quinhentos pés acima da enseada, e cacarejando suavemente, avançou em direção ao mar. Quando as aves passaram sobre a enseada, o barulho que as tinha perturbado chegou aos ouvidos de Bond — o tríplice apito de um navio, que indica estar a embarcação pronta para receber a carga. Aquele som chegava do lado esquerdo de Bond. O cais deveria estar situado a pequena distância contornando o braço setentrional da enseada. O navio procedente de Antuérpia tinha chegado. Antuérpia! Uma região do mundo exterior — um mundo que estava a um milhão de quilômetros de distância, fora do alcance de Bond — com certeza para sempre fora de seu alcance. Exatamente para além daquele braço rochoso a tripulação estaria no refeitório, tomando o seu desjejum. O rádio estaria tocando. Haveria o chiado do toicinho defumado e ovos na frigideira, o cheiro do café...


* * *


As ventosas estavam em sua coxa. Bond podia ver dentro daqueles cálices córneos. Um cheiro de maresia estagnada chegou-lhe às narinas, quando aquela mão vagarosamente serpenteou para cima. Seria muito duro o tecido gelatinoso cinza-escuro, por trás daquela mão? Deveria usar agora a faca? Não, o golpe deveria ser rápido e seguro, atingindo toda a espessura, como se se cortasse uma corda. Não importaria que a sua própria pele fosse atingida.

Agora! Bond lançou um rápido golpe de vista àqueles dois enormes olhos, lá embaixo, tão pacientes e tão negligentes. Nesse momento, o outro tentáculo elevou-se da superfície da água e avançou em direção ao seu rosto. Bond recuou a cabeça e a mão se enroscou num fio de arame diante de seus olhos. Num segundo aquela garra se deslocaria para um braço ou ombro, e ele estaria liquidado. Agora!

O primeiro tentáculo estava sobre suas costelas. Quase sem fazer pontaria, a mão de Bond que empunhava a faca caiu rapidamente para baixo e transversalmente. Sentiu a lâmina afundar naquele pudim carnoso, e quase deixou que ela escapasse de sua mão, quando o tentáculo ferido chicoteou pelo ar, desaparecendo na água. Por um momento o mar foi agitado à sua volta. Agora, o outro tentáculo abandonou o arame e agarrou-se ao seu ventre. A mão aflada prendeu-se como uma sanguessuga, com toda a força de sua sucção furiosamente aplicada. Bond gritou ao sentir o contacto daquelas ventosas em sua carne. Golpeou loucamente, mais e mais. Por Deus, o seu estômago estava sendo arrancado para fora! A tela agitou-se com a luta. Aos seus pés a água fervilhava e espumava. Ele teria que ceder. Um derradeiro golpe, desta vez nas costas daquela mão disforme. Deu resultado! A mão se agitou no ar e desceu serpeante, deixando vinte círculos vermelhos sangrando em sua pele.

Bond não tinha tempo para se preocupar com aquilo. Agora a cabeça do monstro tinha emergido, e os seus olhos brilhantes fixavam-se nele, avermelhados, enfurecidos, e a floresta dos tentáculos sugadores começava a envolver-lhe os pés e as pernas, dilacerando-lhe as roupas, para logo retornar aos seus membros. Bond estava sendo arrastado para baixo, polegada por polegada. O arame estava penetrando em suas axilas. Podia até mesmo sentir a sua espinha sendo distendida. Se ele continuasse resistindo seria partido ao meio. Agora, os olhos e o grande bico triangular estavam fora d’água, e o bico procurava o seu pé. Havia uma esperança, apenas uma!

Bond meteu a faca entre os dentes e sua mão procurou o gancho do chuço de arame. Agarrou aquela arma, e desdobrou-a com as suas duas mãos. Teria que soltar um dos braços para poder abaixar-se e se aproximar do alvo. Se falhasse, entretanto, seria reduzido a pedaços sobre a tela.

Agora, antes que morresse com a dor! Agora, agora! Bond deixou todo o seu corpo escorregar por aquela escada de arame, para baixo, e desferiu uma violenta estocada. Pôde ver que o pontaço de sua lâmina penetrava pelo centro de um enorme globo ocular negro, e imediatamente todo o mar se intumesceu para ele, como uma fonte de negrume, enquanto seu corpo se mantinha pendurado de cabeça para baixo, seguro pelos joelhos, com o rosto apenas uma polegada acima da superfície.

Que teria acontecido? Teria ficado cego? Não podia ver nada. Seus olhos estavam ardendo e havia um gosto horrível de peixe podre em sua boca. Contudo, podia sentir o arame cortando-lhe os tendões dos joelhos. Então devia estar vivo! Estonteado, Bond deixou que o chuço caísse de sua mão, e procurou o arame mais próximo. Depois, agarrou-se com a outra mão um pouco mais acima, e, assim, vagarosamente, foi-se alçando até que conseguiu sentar-se no cabo superior da cerca. Clarões de luz chegaram-lhe aos olhos. Passou uma das mãos pelo rosto. Agora podia ver. Fixou a sua mão: estava negra e pegajosa. Olhou para o seu corpo: estava também coberto por um lodo negro, e o preto tingia o mar numa extensão de vinte metros à sua volta. Então Bond compreendeu: o polvo ferido tinha esvaziado a sua bolsa de tinta contra ele.

Mas onde estava o monstro? Voltaria? Bond esquadrinhou o mar. Nada, nada além da enorme mancha negra que se continuava ampliando. Nem uma só ondulação! Então, nada de esperar! Fugir dali o mais depressa possível! Ansiosamente, Bond olhou para a direita e para a esquerda. Para a esquerda era na direção do navio, mas também na direção do Dr. No, enquanto para a direita seria para o nada. Para instalar aquela tela de arame, os trabalhadores deviam ter vindo da esquerda, na direção do cais. Devia haver algum caminho até ali. Bond começou a se deslocar frenèticamente pelo cabo superior, em direção à rocha, a vinte metros de distância.

O espantalho negro e sangrento movimentava os braços e pernas quase automaticamente. O aparelho pensante e sensorial de Bond já não fazia mais parte de seu corpo. Movia-se ao lado de seu corpo ou acima dele, mantendo apenas o contato necessário para puxar os cordéis que faziam o boneco trabalhar. Bond era como um verme secionado, cujas duas metades continuassem arrastando-se para a frente, conquanto a vida os tivesse abandonado para ser substituída pela vida ilusória dos impulsos nervosos. Apenas, no caso de Bond, as duas metades ainda não estavam mortas. A vida tinha somente se ausentado delas. Tudo quanto ele precisava era um grama de esperança, um grama de confiança, de convicção de que ainda valeria a pena tentar sobreviver.

Bond chegou à rocha, e lentamente desceu pela tela até a última malha. Contemplou vagamente o brilho palpitante da água. O mar estava negro e impenetrável. Deveria arriscar-se? Sem dúvida! Não podia fazer nada enquanto não tivesse lavado aquela camada de lodo e sangue, sem falar do horrível cheiro de peixe. Sombriamente, fatalisticamente, ele tirou os farrapos de sua camisa e calças, pendurando-os no cabo. Olhou para baixo, para seu corpo marrom e branco, salpicado de vermelho. Instintivamente, procurou sentir seu pulso, que se apresentava lento mas regular. As firmes palpitações de vida reanimaram o seu espírito. Por que diabo estava ele se lamuriando? Estava vivo. As feridas e machucaduras em seu corpo não eram nada — absolutamente nada. Eram horríveis, mas nada estava quebrado. Por dentro do invólucro maltratado, a máquina estava trabalhando serena e seguramente. Cortes superficiais e esfoladuras, recordações sangrentas, cansaço mortal — estes seriam ferimentos dos quais se riria uma enfermeira experiente. Para a frente, seu bastardo! Para a frente! Limpe-se e levante-se. Conte as suas bênçãos. Pense na jovem. Pense no homem que você deverá encontrar e matar. Agarre-se à vida como se agarrou à faca entre os dentes. Acabe com esta autopiedade. Para o diabo com o que acaba de acontecer! Para dentro d’água e lave-se!

Dez minutos mais tarde, Bond, com seus farrapos molhados colados ao corpo já esfregado, e com os cabelos repuxados para fora dos olhos, galgava o cimo do penhasco.

Sim, era como ele tinha imaginado. Uma picada estreita e rochosa, feita pelos pés dos trabalhadores, descia para o outro lado, contornando a saliência do penhasco.

Das proximidades chegaram vários sons e ecos. Um guindaste estava trabalhando. Podia ouvir os ritmos variáveis de seu motor. Ouviam-se os barulhos peculiares, aos navios de ferro, bem como o ruído da água que era lançada ao mar por uma bomba de porão.

Bond olhou para cima, para o céu, que estava de um azul pálido. Nuvens manchadas de ouro e reflexos rosados derivavam em direção ao horizonte. Muito acima dele, os corvos marinhos esvoaçavam em torno da guaneira. Em breve estariam fazendo-se ao mar, em busca de alimentos. Talvez, agora, mesmo, estivessem vigiando os grupos de reconhecimento, longe, sobre o mar, na faina de localizarem os peixes. Seriam cerca de seis horas — a aurora de um belo dia.

Bond, deixando gotas de sangue atrás de si, seguiu o seu caminho cuidadosamente pela picada abaixo, beirando o sopé do penhasco. Para além da curva, a picada se infiltrava por um terreno cheio de pedras espalhadas. Os ruídos iam-se tornando mais altos. Bond ia avançando cuidadosamente, evitando pisar em pedras. Uma voz se fez ouvir surpreendentemente perto: ‘”Pronto para largar?” E logo uma resposta distante: “Pronto”. O motor do guindaste acelerou. Mais alguns metros. Mais um pedregulho; e mais outro. Agora!

Bond se ocultou por trás da rocha e cautelosamente meteu a cabeça para fora, a fim de observar.

 

CONTINUA

XVI - HORAS DE AGONIA


Uma voz, por trás de Bond, disse serenamente: — O jantar está servido.

Bond voltou-se para trás. O anunciante fora o guarda-costas, que tinha a seu lado outro homem que bem poderia ser seu irmão gêmeo. Ali ficaram eles, duas barricas de musculatura, com as mãos mergulhadas nas mangas dos quimonos, olhando, por cima da cabeça de Bond, para o Dr. No.

— Ah, já nove horas. — O Dr. No levantou-se lentamente e disse: — Vamos. Podemos continuar a nossa conversação em ambiente mais íntimo. Foi muita bondade dos senhores terem ouvido a minha história com paciência tão exemplar. Espero que a modéstia de minha cozinha e de minha adega não representem mais uma imposição.

Portas duplas tinham sido conservadas abertas por trás dos dois homens de jaquetas brancas. Bond e a jovem atravessaram-nas seguindo o Dr. No, indo ter a uma sala octogonal, com as paredes recobertas de painéis de mogno, e ao centro um candelabro de prata, sob o qual estava posta uma mesa para três pessoas. O tapete simples, azul-escuro, era luxuosamente espesso. O Dr. No tomou a cadeira central, de espaldar alto, e indicou cortesmente, com uma inclinação, a cadeira à sua direita para a jovem. Sentaram-se e abriram guardanapos de seda branca.

A cerimônia vazia e a encantadora sala deixavam Bond louco. Ansiava por despedaçar tudo aquilo com as próprias mãos, por passar o seu guardanapo de seda à volta do pescoço do Dr. No e apertá-lo até que aquelas lentes de contato saltassem daqueles malditos olhos negros.

Os dois guardas usavam luvas de algodão branco. Serviram as iguarias com suave eficiência que era instigada por uma ocasional palavra chinesa proferida pelo Dr. No.

A princípio o Dr. No parecia preocupado. Lentamente, ingeriu três taças de diferentes sopas, utilizando-se de uma colher dotada de um cabo curto e que se adaptava perfeitamente entre as pinças de sua mão mecânica. Bond esforçou-se por esconder os seus temores da jovem. Sentou-se afetando uma atitude de relaxamento e comeu e bebeu com forçado apetite. Falou ainda animadamente com a jovem sobre Jamaica — sobre aves e animais, assim como fores, que constituíam fáceis assuntos de conversação para Honeychile. De vez em quando os seus pés tocavam nos dela, sob a mesa. Ela quase chegou a ficar alegre. Bond pensou que ambos estavam fazendo uma bela imitação de namorados comprometidos, que estivessem saboreando um jantar oferecido por um tio detestável.

Bond não tinha a mínima idéia sobre se o seu fraco blefe tinha surtido algum efeito. Assim, não deu grande importância às suas possibilidades. O Dr. No, assim como a sua história, eram perfeitamente impenetráveis. A incrível biografa parecia verdadeira. Nem uma só palavra daquele relato era impossível. Talvez houvesse outras pessoas no mundo com os seus reinos particulares — reinos afastados dos caminhos trilhados por homens comuns, sem testemunhas, onde pudessem fazer o que bem entendessem. E que estaria planejando fazer o Dr. No, depois que tivesse esmagado as moscas que tinham vindo incomodá-lo? E se eles fossem mortos — e quando o fossem — Londres conseguiria recolher os fios que ele, Bond, tinha recolhido? Provavelmente conseguiria. Lá estava Pleydell-Smith, e as provas das frutas envenenadas. Mas até onde a substituição de Bond iria afetar o Dr. No? Não muito. O Dr. No daria de ombros ao desaparecimento de Bond e Quarrel. Nunca teria ouvido falar deles. E não haveria qualquer elo com a jovem. Em Porto Morgan, todos pensariam que ela se tinha afogado em suas expedições. Era difícil saber o que poderia interferir com o Dr. No — com o segundo capítulo de sua vida, qualquer que ele fosse.

Sob aquela conversa com a jovem, Bond foi-se preparando para o pior. Ao lado de seu prato havia algumas facas. Então chegaram as costeletas, perfeitamente cozidas, e Bond tocou em várias facas, hesitante, até que escolheu a do pão para cortá-las. Enquanto comia e conversava foi deslocando a grande lâmina de aço para perto do corpo. Um gesto largo da mão direita derrubou o seu copo de champanha e, numa fração de segundo, enquanto o copo se partia, sua mão esquerda enfiou a lâmina para dentro da manga do quimono. Em meio às suas desculpas, e à confusão que se seguiu, enquanto os guardas enxugavam a champanha derramada na mesa, Bond levantou o braço esquerdo e sentiu que a faca deslizava para baixo do braço e depois caía para dentro do quimono, ficando encostada às suas costelas. Quando acabou de comer as costeletas, apertou o cinto de seda, à volta da cintura, ao mesmo tempo que deslocava a faca para diante da barriga. A faca aninhou-se. confortàvelmente contra a sua pele e em pouco tempo o aço da lâmina foi-se tornando aquecido.

Por fim veio o café e a refeição foi dada por terminada. Os dois guardas se aproximaram e postaram-se por trás das cadeiras da jovem e de Bond. Tinham os braços cruzados sobre o peito, impassíveis, sem nenhum movimento, como carrascos.

O Dr. No pousou delicadamente a sua xícara no pires e descansou as duas pinças de aço sobre a mesa. Depois se endireitou um pouco na cadeira e virou o corpo, apenas uma polegada, em direção de Bond. Agora não havia o mínimo sinal de preocupação em seu rosto. Os olhos eram duros e diretos. A boca fina contraiu-se e abriu-se: — Apreciou o jantar, sr. Bond?

Bond apanhou um cigarro numa caixa de prata que estava à frente e acendeu-o. Depois, pôs-se a brincar com o isqueiro de prata que estava sobre a mesa. Sentia que más noticias iriam chegar. Pensou que deveria meter aquele isqueiro no bolso, de qualquer maneira. O fogo talvez viesse a ser mais uma arma. Respondeu com facilidade: — Sim, estava excelente. — Em seguida olhou para Honeychile. Curvou-se sobre a mesa e descansou os braços sobre ela, e logo cruzou-os, envolvendo o isqueiro com esta manobra. Sorriu para ela: — Espero ter pedido o que você gosta.

— Oh, sim, estava magnífico. — Para ela a recepção ainda estava continuando.

Bond fumava afanosamente, agitando mãos e braços, a fim de criar uma atmosfera de movimento. Voltou-se para o Dr. No, apagou o toco de seu cigarro e reclinou-se na cadeira. Cruzou os braços sobre o peito. O isqueiro já estava sob o seu sovaco esquerdo. Riu animadamente:

— E o que acontecerá agora, Dr. No?

— Podemos continuar com a nossa distração de após-jantar, sr. Bond. O leve sorriso contraiu-se e desapareceu.

— Examinei a sua proposta sob todos os aspectos. Não a aceito.

Bond deu de ombros e observou: — O senhor não é sensato.

— Não, sr. Bond. Receio que a sua proposta não passe de uma isca dourada. Em sua profissão não se atua como o senhor quer sugerir. Os agentes enviam relatórios rotineiros para o quartel-general. Mantêm seus chefes a par dos progressos das investigações que fazem. Conheço essas coisas. Os agentes secretos não se comportam como o senhor sugeriu ter agido. O senhor esteve lendo muitas novelas de aventuras, e o seu pequeno discurso mostrou com muita facilidade o papelão pintado. Não, sr. Bond, não aceito a sua história. Se ela for verdadeira, estou preparado para enfrentar as conseqüências. Tenho muita coisa em jogo para ser facilmente desviado de meu caminho. Que venham a polícia e os soldados. Onde estão o homem e a jovem? Que homem e que jovem? Não sei de nada. Por favor, retirem-se, os senhores estão prejudicando a minha guaneira. Onde estão as suas provas, o seu mandado de prisão? A lei inglesa é rigorosa, meus senhores. Voltem para casa e deixem-me em paz com os meus queridos corvos marinhos. Está vendo, sr. Bond? E digamos mesmo que o pior redunde em pior. Que um de meus agentes fale, o que é altamente improvável. (Bond lembrou-se da fortaleza da srta. Chung). Que tenho eu a perder? Mais duas mortes no libelo acusatório. Mas, sr. Bond, um homem só pode ser enforcado uma vez: — A elevada cabeça, em forma de pêra, agitava-se suavemente, de um lado para outro. — O senhor tem mais alguma coisa a dizer? Alguma pergunta? Ambos irão ter uma noite muito ocupada e o tempo de que dispõem está-se tornando escasso. Quanto a mim, devo ir dormir. O navio que chega mensalmente deverá atracar amanhã e eu terei que supervisionar o carregamento. Passarei todo o dia no cais. Certo, sr. Bond?

Bond olhou para Honeychile. Ela estava mortalmente pálida. Olhava com olhar esgazeado, esperando pelo milagre que ele deveria operar. Bond olhou para as próprias mãos e examinou cuidadosamente as unhas. Depois, disse, para ganhar tempo: — E então, após seu dia ocupado com o carregamento, o que virá em seu programa? Qual o novo capítulo que o senhor pensa escrever?

Bond não levantou o olhar. A profunda e serena voz autoritária caiu sobre ele como se tivesse vindo do céu escuro.

— Ah, sim, o senhor deve ter estado a pensar nisso.

O senhor tem o hábito da investigação. Os hábitos persistem até o fim, até as sombras. Admiro tais qualidades num homem que tem apenas algumas horas mais para viver. Por isso, dir-lhe-ei. Encetarei um novo capítulo, e isso o consolará. Há muito mais nesta ilha do que uma simples guaneira. O seu instinto não o enganou, sr. Bond.

O Dr. No fez uma pausa para dar mais ênfase ao que iria dizer e continuou: — Esta ilha, sr. Bond, está em vésperas de se transformar num dos mais valiosos centros de informação técnica do mundo.

— De fato? — Bond mantinha os olhos fixos em suas mãos.

— Sem dúvida que o senhor não ignora que Turks Island, a trezentas milhas, de distância daqui, através de Windward Passage, constitui o mais importante centro para a experimentação de projéteis teleguiados dos Estados Unidos?

— Sim, é um importante centro de experiências.

— Talvez o senhor tenha lido sobre os foguetes que recentemente se desviaram de sua rota? O “Snark” de múltiplas fases, por exemplo, que terminou o seu vôo nas florestas do Brasil, ao invés de ir perder-se nas profundezas do Atlântico Sul?

— Sim.

— O senhor se lembrará que ele se recusou a obedecer as instruções que lhe foram enviadas por rádio, no sentido de modificar a sua rota, e até mesmo de se destruir a si mesmo. Ele desenvolvera uma vontade própria.

— Lembro-me.

— Houve outras falhas, falhas decisivas, na longa lista dos protótipos — o Zuni, o Matador, o Petrel, o Regulus, o Bomarc — tantos nomes, outras tantas modificações, nem posso lembrar-me deles todos. Bem, sr. Bond, — o Dr. No mal podia esconder uma nota de orgulho em sua voz — talvez lhe interesse saber que a maioria desses fracassos foi causada de Crab Key.

— É verdade?

— Não me acredita? Não tem importância. Outros acreditam-no. Outros que viram o abandono de toda uma série, o Mastodonte, em virtude de seus freqüentes erros de navegação, sua incapacidade de obedecer às ordens enviadas pelo rádio, de Turks Island. Esses outros são os russos. Os russos são meus sócios nesta empreitada. Treinaram seis dos meus homens, sr. Bond. Exatamente neste momento tenho dois desses homens observando, estudando as freqüências de rádio, as faixas nas quais trabalham esses engenhos. Há um milhão de dólares de instalações, nas galerias rochosas, acima de nossas cabeças, sr. Bond, enviando sinais para a camada de Heavyside, aguardando os sinais, perturbando-os, contrabalançando faixas com outras faixas. E, de vez em quando, um foguete sobe em seu itinerário e aprofunda-se cem, quinhentas milhas, pelo Atlântico, enquanto nós anotamos cuidadosamente a sua trajetória, com a mesma perfeição com que isto é feito na Sala de Operações de Turks Island. Em seguida, subitamente, as nossas pulsações são enviadas ao foguete, o seu cérebro é perturbado, ele enlouquece e mergulha no mar, destruindo-se. Foi mais uma experiência que fracassou. Os operários levam a culpa, assim como os projetistas e os fabricantes. Há pânico no Pentágono. Outra coisa deve ser tentada, freqüências diversas, metais diversos, um cérebro eletrônico diferente. Naturalmente que também temos as nossas dificuldades. Assim é que assinalamos muitos disparos experimentais sem sermos capazes de chegar até o cérebro do novo engenho. Então, comunicamo-nos urgentemente com Moscou. Com efeito, eles deram-nos até uma máquina de cifras com as nossas freqüências e rotinas. E os russos continuam pensando, fazem sugestões, e nós as experimentamos. Por fim, sr. Bond, um belo dia, é como se atraíssemos a atenção de um homem perdido numa multidão. Lá no alto, na estratosfera, o foguete reconhece o nosso sinal. Somos reconhecidos e podemos falar com ele e modificar os seus pensamentos. — O Dr. No fez uma pausa e depois continuou: — O senhor não acha isso interessante, esta variante de meus negócios com o guano? Asseguro-lhe que é um negócio muito lucrativo, e podia sê-lo ainda mais. Talvez a China comunista venha a pagar mais pelos meus serviços. Quem sabe? Já tenho os meus agentes em campo, para sondagens.

Bond ergueu os olhos, olhando pensativamente para o Dr. No. Então ele tinha tido razão. Havia mesmo mais alguma coisa, muito mais, em tudo aquilo que os seus olhos tinham visto. Aquilo era uma grande partida, uma partida que explicava tudo, uma partida que no mercado internacional da espionagem bem valia a pena ser jogada. Bem, bem! Agora, as peças do quebra-cabeças tinham caído corretamente em seus lugares. Para isso tinha valido a pena, certamente, assustar alguns pássaros e eliminar algumas pessoas. Isolamento? Naturalmente que o Dr. No teria que matar a ele e à jovem. Poder? Sim, isso era poder. O Dr. No se tinha realmente lançado nos negócios.

Bond fixou os dois orifícios negros com um novo respeito, e observou: — O senhor terá que matar muito mais gente para manter isto em suas mãos, Dr. No. Isto vale muito dinheiro. O senhor tem aqui uma bela propriedade, superior ao que eu pensava, e as pessoas hão-de querer um pedaço deste bolo. Penso em quem será o primeiro a chegar até o senhor e matá-lo. Serão aqueles homens que estão lá em cima, treinados por Moscou? — e ele fez um gesto apontando para o teto. Depois continuou: — Eles são os técnicos. Eu me pergunto: o que Moscou estará lhes ordenando que façam? O senhor não poderia estar a par disso, poderia?

O Dr. No respondeu: — Vejo que continua subestimando meu valor, sr. Bond. O senhor é um homem obstinado e mais estúpido do que pensava. É claro que estou consciente dessas possibilidades. Separei um desses homens e transformei-o numa espécie de vigilante particular. Ele tem uma duplicata das cifras e da máquina. Vive em outra parte da montanha. Os outros pensam que ele morreu, mas ele está bem vivo a fiscalizar a cronometragem de rotina, e entrega-me diariamente uma cópia do tráfego que é registrado. Até agora os sinais emitidos por Moscou têm sido inocentes e não indicam qualquer conspiração. Penso em tudo isso constantemente, sr. Bond. Tomo precauções e ainda as multiplicarei para o futuro. Como disse, o senhor me tem subestimado.

— Não o subestimo, Dr. No. O senhor é um homem muito prudente, mas já há muitas pastas sobre o senhor. Em minha linha de atividades, a mesma coisa se aplica a mim, mas as suas pastas são muito perigosas. A chinesa, por exemplo. Não gostaria de ter uma com essa gente. A da FBI deve ser a menos penosa — roubo e falsa identidade. Mas o senhor conhece os russos tão bem quanto eu? Por enquanto o senhor é “o melhor amigo” deles. Mas os russos não têm sócios. Hão-de querer comprá-lo... — comprá-lo com um balaço. Depois vem a pasta que o senhor abriu com o meu serviço. O senhor quererá mesmo fazê-la mais volumosa? Eu não o faria se estivesse em seu lugar, Dr. No. O pessoal do meu serviço é muito obstinado. Se alguma coisa me acontecer e à jovem, o senhor verificará que Crab Key é uma ilha muito pequena e insignificante.

— Não se pode jogar grandes partidas sem assumir riscos, senhor Bond. Aceito os perigos e, até onde posso, procuro defender-me deles. Como vê — e a sua voz tinha um acento de cupidez — estou em vésperas de coisas muito maiores. O capítulo dois, ao qual já me referi, encerra promessa de prêmios que ninguém, a não ser um tolo, jogaria fora por ter medo. Já lhe disse que posso desviar os raios magnéticos por onde viajam os foguetes. Posso fazer com que estes mudem de rota e não obedeçam ao controle eletrônico. Que diria o senhor, se eu fosse ainda mais longe? Se eu os fizesse cair nesta ilha, a fim de recolher todos os segredos de sua construção? Atualmente, destróieres norte-americanos, nos confins do Atlântico Sul, recolhem esses foguetes quando eles esgotam o seu combustível e caem de pára-quedas sobre o mar. Algumas vezes os pára-quedas deixam de se abrir, e algumas vezes as instalações de autodestruição deixam de operar.

Ninguém em Turks Island se sentiria surpreendido se de vez em quando o protótipo de uma nova série saísse de sua trajetória e caísse perto de Crab Key. Antes de mais nada, isto seria atribuído a falhas mecânicas. Mais tarde talvez descobrissem que outros sinais, que não os seus, tinham estado a guiar os seus foguetes. Teria início, então uma guerra de freqüência. Tentariam e conseguiriam localizar a origem dos sinais falsos, mas assim que eu verificasse que eles estavam à minha caça, teria uma derradeira cartada. Os seus foguetes enlouqueceriam. Cairiam em Havana, em Kingston; dariam uma volta e despencariam sobre Miami. Mesmo sem as cargas detonantes, Sr. Bond, cinco toneladas de metal, chocando-se a mil milhas por hora, podem causar terríveis danos numa cidade super-povoada. E depois? Haveria pânico, haveria um clamor público. As experiências teriam de ser interrompidas. A base de Turks Island teria que fechar. E quanto não pagariam os russos para que isso acontecesse, sr. Bond? E quanto por protótipo que eu capturasse para eles? Digamos dez milhões de dólares por toda a operação? Vinte milhões? Seria uma vitória sem preço na corrida dos armamentos. Posso fazer o meu preço, não concorda, sr. Bond? E não concorda também que essas considerações tornam os seus argumentos e ameaças engraçadíssimos?

Bond não respondeu. Nada havia a dizer. Subitamente se viu em pensamento naquela sala tranqüila de Regents Park. Podia ouvir a chuva batendo suavemente contra a janela e a voz de M, impaciente e sarcástica, dizendo: “Oh, algum maldito negócio em torno de aves... umas férias ao sol lhe farão bem... investigações rotineiras.” E ele, Bond, tinha apanhado uma canoa, um caniço e um farnel de piquenique e partira — há quantos dias, há quantas semanas? — “para dar uma espiada”. Bem, ele tinha dado uma espiada na caixa de Pandora. E tinha tido as respostas, conhecera os segredos — e agora? Agora iriam mostrar-lhe polidamente o caminho para a sepultura, para onde ele levaria consigo o seus segredos arrancados e arrastados por ele em sua lunática aventura. Toda a amargura que lhe ia no íntimo aforou à boca, de modo que por um momento pensou que ia vomitar. Apanhou o copo e esvaziou todo o resto de champanha que nele havia. Depois disse asperamente: — Muito bem, Dr. No. Agora vamos ao cabaré. Qual é o programa — faca, bala, veneno, corda? Mas proceda rapidamente, já o vi bastante.

Os lábios do Dr. No se apertaram numa fina linha arroxeada. Os olhos eram duros como ônix, sob a bola de bilhar de sua fronte e crânio. A máscara de polidez tinha desaparecido. O Grande Inquisidor sentava-se na cadeira de alto espaldar. Tinha soado a hora para a “peine forte et dure”.

O Dr. No proferiu uma palavra e os dois guardas avançaram um passo e agarraram as suas vitimas pelos braços, acima dos cotovelos, mantendo-as imobilizadas para trás, apoiadas nos lados das cadeiras. Não houve resistência. Bond concentrou-se em manter o isqueiro sob o sovaco. As luvas brancas em seus bíceps pareciam faixas de aço. Sorriu para a jovem. — Desculpe-me por isso, Honey, — disse. — Receio que afinal de contas não possamos mais brincar juntos.

Os olhos da jovem, em seu rosto pálido, tinham ficado azul-escuros, pelo medo. Seus lábios tremiam, e ela perguntou: — Doerá muito?

— Silencio! — A voz do Dr. No soou como o estalar de um chicote. — Chega de tolices. Naturalmente que doerá. Estou interessado na dor. E estou igualmente interessado em descobrir quanto de dor o corpo humano pode suportar. De vez em quando faço experiências com os meus subordinados que devem ser punidos, e em intrusos como os senhores. Acarretaram-me os senhores grandes dificuldades. Em troca, pretendo causar-lhes uma grande soma de dor. Registrarei os níveis de suas resistências. Os fatos serão anotados, e um dia as minhas pesquisas serão relatadas ao mundo. As suas mortes terão servido à Ciência. Nunca desperdiço material humano. As experiências feitas pelos alemães com seres humanos vivos, durante a guerra, foram de grande proveito para a Ciência. Faz um ano que pus uma mulher para morrer da maneira que escolhi para a senhora. Ela era uma negra e durou três horas, mas morreu de terror. Queria agora fazer a experiência com uma mulher branca, para poder estabelecer uma comparação. Não me surpreendi quando a sua chegada me foi comunicada. Consigo sempre o que quero. — O Dr. No reclinou-se para trás na cadeira. Seus olhos estavam agora fixos na jovem, estudando-lhe as reações. Honeychile correspondia ao olhar, como que meio hipnotizada, como um rato do mato diante de uma cascavel.

Bond apertou os dentes.

— A senhora é uma jamaicana, por isso saberá o que quero dizer. Esta ilha chama-se Crab Key. Recebeu este nome porque está infestada de caranguejos — o que chamam em Jamaica “caranguejos negros”. A senhora os conhece. Pesam meio quilo, cada um, e têm o tamanho de um pires. Nesta época do ano eles saem aos milhares de seus esconderijos, próximos à costa, e sobem em direção à montanha. Lá, nos planaltos de coral, eles se alojam novamente em buracos da rocha, onde desovam. Avançam em exércitos de centenas, de cada vez. Atravessam tudo e sobre tudo. Em Jamaica eles invadem as casas e não se desviam de seu caminho. São como certos roedores da Noruega. É uma migração irresistível. — O Dr. No fez uma pausa. Em seguida acrescentou suavemente: — Mas há uma diferença. Os caranguejos devoram o que encontram em seu caminho. E agora, minha senhora, eles já estão em marcha. Estão galgando as faldas da montanha, às dezenas de milhares, em ondas negras e vermelho-laranja. Estão, neste momento, se apressando e se empurrando e arranhando a rocha acima de nós. E esta noite, no meio do seu caminho, eles vão encontrar o corpo nu de uma mulher sòlidamente preso — um banquete preparado para eles — e vão apalpar o corpo morno com suas pinças, e um deles dará o primeiro corte com suas garras de combate e então... e então...

A moça gemeu. Sua cabeça caiu para a frente sobre o peito. Desmaiara. O corpo de Bond inteiriçou-se na cadeira. Uma torrente de palavras obscenas escapou por entre seus dentes cerrados. As manoplas dos guardas pareciam-lhe ferro à volta dos braços. Nem sequer podia fazer deslizar os pés da cadeira no chão. Depois de um momento de luta, desistiu. Esperou que sua voz se acalmasse, e disse então, com todo o veneno que podia instilar nas palavras:

— Seu bastardo! Você há-de frigir no inferno se fizer isso!

O Dr. No sorriu fracamente.

— Senhor Bond, não acredito na existência do inferno. Procure consolar-se. Talvez eles comecem pela garganta ou pelo coração. O bater do pulso ainda os poderá atrair. Depois disso, tudo acabará depressa.

Proferiu então uma sentença em chinês. O guarda que estava atrás da cadeira da moça inclinou-se para a frente, levantou-a da cadeira como se fora uma criança e atirou-a por cima do ombro. Os belos cabelos caíam qual cascata de ouro entre os braços inertes. O guarda foi à porta, abriu-a e saiu, formando a fechá-la sem ruído.

Por um momento, reinou, silêncio na sala. Bond pensava somente na faca encostada ao seu ventre e no isqueiro debaixo da axila. Qual a extensão dos estragos que ele poderia causar com aqueles dois pedaços de metal? Poderia, de algum modo, aproximar-se do Dr. No?

O Dr. No continuou serenamente: — O senhor disse que o poder era uma ilusão, sr. Bond. Não modifica a sua opinião? O meu poder de escolher a morte que quiser para essa jovem certamente que não é uma ilusão. Todavia, passemos ao método de sua morte. Isso também encerra aspectos novos. Saiba, sr. Bond, que estou interessado na anatomia da coragem — do poder de resistência do corpo humano. Mas como medir a resistência humana? Como traçar um gráfico da vontade de sobrevivência, da tolerância à dor, da conquista do medo? Pensei muito nesse problema e acredito tê-lo solucionado. Trata-se, por enquanto, de um método incompleto e grosseiro, mas que será aperfeiçoado na medida em que as experiências se forem multiplicando. Preparei o senhor para essa experiência. Dei-lhe um sedativo, de modo que o seu corpo esteja descansado, e alimentei-o bem, de modo que possa estar no gozo completo de suas forças. Os futuros — como os chamarei — pacientes, terão as mesmas vantagens. Todos começarão nas mesmas condições. Depois disso, o restante será uma questão de coragem e do poder de resistência individuais.

O Dr. No fez uma pausa, enquanto observava o rosto de Bond. Depois prosseguiu: — Saiba ainda, sr. Bond, que justamente agora acabo de construir uma espécie de pista de obstáculos, uma espécie de pista de corrida contra a morte. Não direi mais sobre isso porque o elemento surpresa é um dos que aparecem na formação do medo. Os perigos desconhecidos são os piores, os que mais pressionam as reservas de coragem. E me alegro com a idéia de que a corrida de obstáculos que o senhor enfrentará contém um rico sortimento de coisas inesperadas. Será particularmente interessante sr. Bond, que um homem com as suas qualidades físicas seja o meu primeiro competidor. Será interessantíssimo ver até onde o senhor conseguirá alcançar, na pista que idealizei. Não há dúvida de que o senhor estabelecerá uma marca invejável para os futuros corredores. Tenho grandes esperanças no senhor. O senhor deverá ir muito longe, mas quando tombar, inevitavelmente, diante de um obstáculo, seu corpo será recolhido e eu examinarei meticulosamente os seus restos. Os dados assim colhidos serão registrados e o senhor representará o primeiro ponto de um gráfico. Algo honroso, não é, senhor Bond?

Bond nada respondeu. Que diabo significaria tudo aquilo? Em que poderia consistir aquela prova? Seria possível escapar dela com vida? Poderia escapar disso e salvar Honeychile antes que fosse demasiado tarde, ainda que para matá-la e assim salvá-la da tortura? Silenciosamente, Bond ia reunindo suas reservas de coragem, retemperando a mente contra o temor do desconhecido que já começava a envolver a sua garganta, e focalizando a sua vontade no alvo da sobrevivência. Acima de tudo, deveria apegar-se às suas armas.

O Dr. No levantou-se e afastou-se da cadeira. Caminhou vagarosamente até a porta e voltou-se. Seus olhos negros e ameaçadores fixavam Bond, pouco abaixo da armação da porta. A cabeça estava ligeiramente inclinada e os lábios finos tornaram a se mexer: — Faça uma boa corrida para mim, sr. Bond. Meus pensamentos, como se costuma dizer, o acompanharão.

O Dr. No afastou-se e a porta fechou-se suavemente por trás de seus costados amarelos.


XVII - O PROLONGADO GRITO


Havia um homem no elevador, cujas portas estavam abertas, à espera. James Bond, com os braços ainda torcidos, junto aos flancos, foi impelido para dentro do elevador. Agora, a sala de jantar estava vazia. Quando voltariam os guardas para desembaraçar a mesa e então notar o desaparecimento dos objetos subtraídos? As portas fecharam-se e o cabineiro ficou diante dos botões, de modo que Bond não pôde ver qual deles teria sido apertado. Sabia apenas que estavam, subindo, e tentou fazer um cálculo da distância percorrida. O elevador parou, e Bond teve a impressão de que o tempo gasto naquele percurso fora menor do que quando descera juntamente com Honeychile. As portas abriram-se para um corredor sem tapete, com uma pintura cinzenta e rústica nas paredes de granito. Esse corredor ia numa linha reta até uma distância de vinte metros.

— Espere aí — disse o guarda de Bond para o cabineiro — voltarei logo.

Bond foi conduzido ao longo do corredor, passando diante de portas marcadas com letras do alfabeto. Ouvia-se um leve zunido de maquinaria no ar, e, por trás de uma porta, Bond teve a impressão de ouvir descargas estáticas de equipamento eletrônico. Aquilo parecia vir da sala de máquinas, no coração da montanha. Logo chegaram à porta da extremidade do corredor que estava marcada com um Q negro. Ela estava entreaberta, de modo que logo se escancarou quando Bond foi empurrado através dela. Por trás daquela porta estava uma cela pintada de cinzento, com cerca de quinze pés quadrados. Nela nada havia, a não ser uma cadeira de madeira, sobre a qual estavam, lavadas e cuidadosamente dobradas, as calças pretas de Bond e a sua camisa azul.

O guarda soltou os braços de Bond, que logo se voltou e olhou para o rosto amarelo, sob os cabelos ondeados. Havia um leve sinal de curiosidade e prazer nos olhos marrons e úmidos. O homem estava de pé, segurando a maçaneta da porta. — Bem, aqui estamos, rapaz. Você está no ponto de partida. Poderá ficar aí sentado, apodrecendo, ou procurar uma saída e iniciar a corrida. Felicidades para você.

Bond pensou que valeria a pena tentá-lo. Deu ainda uma olhadela para além do guarda, onde o cabineiro ainda se conservava ao lado de suas portas abertas, observando-os.

Então disse suavemente: — Você não gostaria de ganhar dez mil dólares, garantidos, e uma passagem para qualquer lugar do mundo que desejasse? — Dito isso, observou cuidadosamente as reações do homem. A boca se abriu numa ampla careta, mostrando dentes escurecidos, desigualmente gastos pelos anos de mascagem de cana-de-açúcar.

— Muito obrigado, senhor. Prefiro continuar vivendo. — O homem fez menção de fechar a porta e Bond ainda gritou ansiosamente: — Podemos sair juntos daqui.

Os grossos lábios fizeram uma careta de desprezo, e o homem apenas disse: “Vá em frente!” E logo a porta se fechou com um duro estalido.

Bond deu de ombros, mas logo passou a examinar a porta. Era feita de metal e não havia maçaneta do lado de dentro. Bond preferiu não experimentar o ombro de encontro àquela barreira. Aproximou-se da cadeira, sentou-se sobre a pilha de suas roupas limpas, e olhou à volta da cela. As paredes eram inteiramente nuas, com exceção de uma grade para ventilação, feita de arame grosso, num dos cantos, logo abaixo do teto. Aquela abertura era maior que os seus ombros. Era, evidentemente, a entrada para a pista dos obstáculos. A única abertura restante, naquele recinto, era uma espécie de vigia de espesso vidro, logo acima da porta, e que não seria maior do que a cabeça de Bond. A luz, vinda do corredor, atravessava aquela grade e penetrava na cela. Nada mais havia. Não seria inteligente perder tempo. Seriam dez e meia. Lá fora, em alguma parte da falda da montanha, a jovem já deveria estar deitada, estendida sobre o chão, à espera do matraquear das pinças no coral cinzento. Bond apertou os dentes ao pensamento daquele corpo frágil e indefeso sob as estrelas. Bruscamente, pôs-se de pé. Que diabo estava ele fazendo ali sentado? O que quer que existisse do outro lado da grade deveria ser imediatamente enfrentado.

Bond apanhou a faca e o isqueiro, e tirou o quimono. Em seguida vestiu as calças e a camisa, enfiando o isqueiro no bolso. Experimentou o corte da faca com o polegar, e verificou que a lamina era bastante afiada. Seria ainda melhor se pudesse fazer uma ponta naquela lâmina. Ajoelhou-se no chão e começou a esfregar a extremidade arredondada da faca na laje do pavimento. Depois de um precioso quarto de hora, deu-se por satisfeito. Não era um estilete, mas que tanto serviria para cortar como para espetar. Colocou-a então entre os dentes e arrastou a cadeira para baixo da abertura gradeada. A grade? Supondo que pudesse arrancá-la pela base, aquele arame bem poderia ser esticado, de modo a formar uma lança, facultando-lhe assim uma terceira arma. Bond esticou os braços, com os dedos encurvados.

A coisa imediata de que tomou consciência foi uma dor de queimadura ao longo do braço e o choque de sua cabeça, ao atingir o chão de pedra. Ficou durante algum tempo estendido no solo, apenas com a lembrança de uma faísca azulada e o estalido e o chiado seco de eletricidade.

Depois de algum tempo, Bond pôs-se de joelhos e assim ficou por um momento. Em seguida baixou a cabeça e sacudiu-a lentamente de um lado para outro, como um animal ferido. Sentiu um leve odor de carne queimada. Levantou a mão direita à altura dos olhos e viu a mancha vermelha de uma queimadura aberta ao longo da parte interna dos dedos. A visão daquele ferimento trouxe-lhe também a consciência da dor. Bond proferiu uma imprecação. Vagarosamente pôs-se de pé. Dessa vez, olhou de soslaio, cautelosamente, para a grade, como se ela fosse feri-lo novamente. Irritado, encostou a cadeira na parede, apanhou a faca e com ela cortou uma faixa do quimono, envolvendo-a firmemente nos dedos. Em seguida tornou a subir na cadeira e olhou para a grade. Esperava-se que ele a atravessasse, e aquele choque tinha sido calculado apenas para amolecê-lo: era uma amostra do que estaria por vir. Com certeza o curto-circuito causado por ele já tinha posto fora de combate aquela armadilha. Olhou para a grade apenas por um instante, e já os dedos de sua mão esquerda a atingiam e atravessavam. Do outro lado não havia nada. Seria mesmo só aquela grade? Puxou a armação e ela cedeu uma polegada. Fez novo esforço e a grade foi arrancada do lugar, ficando pendurada por dois fios de cobre que desapareciam no interior da parede. Bond soltou a grade das pontas daqueles fios e desceu da cadeira. Havia um ponto de junção no arame de ferro, naquela grade, e Bond pôs-se a retificá-la, usando a cadeira como martelo.

Depois de dez minutos tinha à sua disposição um chuço recurvado de cerca de um metro de comprimento. Uma des extremidades, que tinha sido originalmente cortada por alicates, apresentava-se lacerada. Não atravessaria as roupas de um homem, mas teria efeito devastador no pescoço ou no rosto. Lançando mão de toda sua força e servindo-se da fresta inferior da porta metálica, Bond conseguiu fazer ainda um gancho com a extremidade rombuda daquele arame de ferro. Em seguida mediu-o com a perna e achou que aquela nova arma era demasiado longa. Em conseqüência, dobrou-a em dois e enfiou-a numa das pernas da calça. Agora, o chuço ia de sua cintura, onde fora pendurado, até o joelho. Voltou então para a cadeira e tornou a subir até a boca do ventilador, agora desobstruída. Não experimentou mais choque. Ergueu o corpo e introduziu-o naquele tubo que tinha mais quatro polegadas que a largura de seus ombros. Durante algum tempo deixou-se ficar, de barriga para baixo, a olhar para o interior da abertura. O túnel era circular e de metal polido. Bond apanhou o isqueiro, abençoando a inspiração que o fizera roubá-lo, e acionou-o. Sim, aquilo era folha de zinco que parecia nova. O túnel continuava em linha reta, sem qualquer característica especial, a não ser as costuras de junção das várias seções tubulares. Bond tornou a meter o isqueiro no bolso e foi-se arrastando para a frente.

Aquele deslizamento não foi difícil, e até mesmo uma brisa fresca, proveniente do sistema de ventilação, afagava o rosto de Bond. O ar não trazia nenhum cheiro de mar, sendo o seu odor o mesmo que caracteriza o ar de uma instalação de condicionamento de temperatura. O Dr. No devia ter lançado mão de um dos tubos do sistema para as suas experiências. Mas que armadilhas teria introduzido naquele tubo, a fim de pôr à prova as suas vítimas? Deviam ser engenhosas e dolorosíssimas — imaginadas para reduzir a resistência de suas vítimas. No final dos obstáculos, com certeza, a vítima seria surpreendida com o golpe de misericórdia — se é que lograsse chegar ao fim. Com efeito, haveria ali algo que não admitisse escapatória, pois nessa corrida não haveria prêmios, mas apenas padecimentos. A não ser, naturalmente, que o Dr. No tivesse subestimado a vontade de sobrevivência de seu desafeto. Essa, pensou Bond, era a sua única esperança — tentar vencer todos os obstáculos que se lhe deparassem, rompendo pelo menos até a última estacada.

Havia uma pálida luminosidade à sua frente. Bond foi-se arrastando cautelosamente, com todos os seus sentidos atuando como antenas. Aquela luminosidade foi-se tornando mais clara. Era o reflexo da luz que incidia sobre um dos lados da extremidade do tubo. Continuou avançando até que sua cabeça tocou naquela extremidade. Aí, Bond se torceu sobre as costas e olhou para cima. Sobre sua cabeça estava uma chaminé de cerca de cinqüenta metros de altura, em cujo topo havia uma claridade estável. Era como se alguém olhasse através de um comprido cano de canhão. Bond enfiou a cabeça por aquela chaminé e pôs-se de pé. Então, esperava-se que ele galgasse aquele tubo liso, sem qualquer apoio para os pés! Seria possível? Bond expandiu os ombros. Sim, eles lhe proporcionariam uma boa adesão às paredes laterais. Seus pés também o ajudariam na empreitada, embora escorregassem terrivelmente, a não ser nas orlas em que se soldavam os tubos. Bond deu de ombros e tirou os sapatos. Não adiantava monologar. Teria apenas que tentar.

Seis polegadas de cada vez, e o corpo de Bond começou a deslizar pela chaminé acima. A operação consistia em expandir os ombros para se fixar à chaminé, depois levantar os pés, unir os joelhos fortemente, e forçar os pés para fora, em direções opostas, contra o metal, e rapidamente contrair e expandir os ombros novamente, ao mesmo tempo que os pés escorregavam para baixo, deixando, entretanto, como saldo uma pequena progressão de algumas polegadas. E continuar repetindo, repetindo e repetindo a operação, até que os seus olhos fossem banhados pela luz que vira no topo da chaminé. De quando em quando pararia na saliência da solda dos tubos, a fim de descansar um pouco, recuperar o fôlego e medir o próximo avanço. E não havia que olhar para cima; apenas concentrar-se nas polegadas de metal que deveriam ser vencidas, uma a uma. Nada de preocupações com a luminosidade que pareceria nunca aumentar ou se aproximar. Também não deveria preocupar-se com a possibilidade de afrouxar a pressão dos ombros contra as paredes metálicas, indo esmagar os tornozelos no fundo da chaminé. E nenhuma preocupação com cãibras, com o inchaço dos ombros ou com as esfoladuras dos pés. Apenas ataque às polegadas prateadas, conquistando-as uma a uma.

Mas logo os pés começaram a suar e escorregar de modo desesperador. Por duas vezes Bond perdeu um metro, em virtude do escorregamento de seus ombros, que ficaram terrivelmente escalavrados com o atrito, antes de poder conseguir a freagem. Em certa altura teve mesmo que se deter durante algum tempo para esperar que o suor secasse com a corrente de ar que descia pela chaminé. Essa pausa durou dez minutos, durante os quais ele se viu apagadamente refletido na superfície metálica, com o rosto dividido ao meio pela faca que segurava entre os dentes. Ainda assim recusou-se a olhar para cima, a fim de ver quantos metros teria que vencer. Aquela derradeira seção poderia ser muito longa. Cuidadosamente Bond esfregou cada pé num cano de calça e recomeçou a batalha.

Agora, parte de sua mente sonhava, enquanto a outra se empenhava na luta. Nem mesmo estava consciente de que a luminosidade se ia acentuando lentamente e que a brisa se tornava mais forte. Via-se apenas como uma lagarta ferida, arrastando-se por um cano de descarga em direção a um ralo de banheira. O que veria quando atravessasse o ralo? Uma jovem nua se enxugando? Um homem fazendo a barba? A luz do sol filtrando-se para dentro de um banheiro Vazio?

A cabeça de Bond bateu de encontro a alguma coisa. O ralo estava obstruindo o orifício! O choque do desapontamento fez que escorregasse uma polegada, antes que seus ombros pudessem retê-lo firmemente. Então compreendeu que tinha chegado ao topo da chaminé! Agora notava a luz forte e o vento impetuoso. Ansiosamente, ele se alçou novamente até que a cabeça tocou em algo. O vento soprava contra sua orelha esquerda. Cautelosamente, voltou a cabeça para essa direção. Era outro tubo lateral. Acima de sua cabeça a luz se escoava através de uma espessa vigia. Tudo o que tinha a fazer era contornar aquela derivação, agarrando-se à orla do novo tubo, e, de qualquer maneira, encontrar forças para se introduzir naquele túnel lateral. Então poderia descansar um pouco, deitado.

Com redobrada cautela, nascida do pânico de que algo agora podia acontecer, de que poderia cometer um erro e ser precipitado no fundo da chaminé, Bond empreendeu a manobra, com suas últimas reservas de forças, e introduzindo-se na nova caverna caiu estirado com o rosto para baixo.

Mais tarde — quanto tempo mais tarde? — os olhos de Bond se abriram e seu corpo estremeceu. O frio o tinha despertado da total inconsciência em que o seu corpo o teria lançado. Penosamente, virou-se de costas, com pés e ombros doendo terrivelmente, e procurou reunir todas as forças mentais e físicas. Não tinha a mínima idéia da hora ou do lugar em que estaria no interior da montanha. Levantou a cabeça e olhou para trás, em direção à vigia, sobre o tubo vertical, do qual escapara. A luz era amarelada e o vidro parecia muito grosso. Lembrou-se da vigia existente na sala Q. Aquela vigia era absolutamente inquebrável, e esta também o seria, pensou ele.

Subitamente, por trás daquele vidro, distinguiu movimento. Enquanto observava, um par de olhos se materializaram, por trás de lâmpadas elétricas. Aqueles olhos pararam e fitaram-no, com o farolete parecendo um nariz entre aqueles dois olhos. Fixaram-no negligentemente e depois desapareceram. Os lábios de Bond explodiram numa imprecação. Então o seu progresso estava sendo observado para ser levado ao conhecimento do Dr. No.

Bond disse em voz alta: “Para o diabo com todos eles!”,, e voltou-se colérico sobre o ventre. Levantou a cabeça e olhou para a frente. O túnel desaparecia na escuridão. Para a frente! Não adianta nada perder tempo aqui. Apanhou a faca, colocou-a entre os dentes e foi abrindo caminho.

Em breve já não havia mais nenhuma luminosidade. Bond detinha-se de quando em quando para acender o isqueiro mas nada encontrava a não ser trevas. O ar começou a se tornar mais cálido, dentro do túnel, e, depois de uns cinqüenta metros talvez, decididamente quente. Havia mesmo cheiro de calor no ar, de calor metálico. Bond começou a suar.. Dentro de alguns minutos seu corpo estava completamente encharcado e ele tinha que parar para limpar os olhos. Deu uma volta à direita, no tubo, e, na nova seção, sentiu o metal bastante quente contra a sua pele. O cheiro de calor metálico era agora bem acentuado. Assim que enfiou a cabeça no novo túnel, tirou o isqueiro do bolso, acendeu-o e rapidamente recuou. Amargamente, considerou a nova dificuldade, medindo-a e amaldiçoando-a. A chama de seu isqueiro tinha iluminado uma seção de tubos de zinco descolorido. A nova dificuldade seria o calor!

Bond resmungou alto. Como a sua carne já esfolada poderia resistir àquilo? Como poderia proteger a pele contra o metal? Mas não havia solução satisfatória. Ou voltaria, ou continuaria ali parado ou, afinal, avançaria. Não havia outra decisão a tomar. Aliás, Bond começava a encontrar algum consolo em suas reflexões. Com efeito, não seria o calor que haveria de matá-lo, mas alguma mutilação. O metal aquecido não seria o seu campo de sacrifício — apenas mais uma prova para medir-lhe a resistência.

Bond pensou na jovem e no que ela estaria sofrendo. Oh, sim, para a frente com aquilo. Agora, vejamos...

Bond apanhou a faca e cortou toda a parte da frente da camisa, fazendo com ela várias faixas. A única esperança estaria em dar alguma proteção às partes de seu corpo que mais sofreriam a ação do calor, isto é, os pés e as mãos. Seus joelhos e cotovelos teriam de resistir apenas com a proteção normal da fina camada de roupa. E, assim, dispôs-se à luta, amaldiçoando-a.

Agora estava pronto. Um, dois, três...

Bond dobrou o ângulo do túnel e lançou-se contra o foco de calor.

Mantenha a barriga nua distante do chão! Contraia os ombros! Mãos, joelhos, pés; mãos. joelhos, pés. Mais depressa! Mais depressa! Sempre mais depressa, de modo que cada toque contra o chão seja rapidamente seguido por outro.

Os joelhos é que mais estavam sofrendo, agüentando a maior parte do peso do corpo. Agora, as mãos envoltas em panos estavam começando a chamuscar. Acendeu-se uma fagulha, e logo outra, e em seguida surgiram chamas, quando as fagulhas começaram a se deslocar. A fumaça que saía daquele envoltório de pano de suas mãos fazia que os seus olhos ardessem penosamente. Por Deus, ele não agüentaria mais! Não havia mais ar. Seus pulmões estavam a ponto de estourar. Agora as suas duas mãos estavam lançando fagulhas para os lados. O tecido devia estar quase acabado; então a carne começaria a queimar. Bond deu um guinada e seu ombro ferido tocou no metal. Um grito de dor ecoou no túnel, logo seguido de outros gritos proferidos regularmente, quando suas mãos, pés ou joelhos tocavam no metal escaldante. Agora ele estava liquidado. Era o fim. Mais alguns segundos e iria cair de borco, morrendo literalmente queimado. Não! Devia opor um supremo esforço de reação, ainda que aos berros, até que toda a carne tivesse sido queimada até os ossos. A pele dos joelhos já devia ter sido completamente destruída. Mais um pouco e as palmas de suas mãos estariam tocando no metal. Apenas o suor que corria de seus braços poderia manter úmido o pano de suas mãos. Grite, grite, grite! Isto aliviará a dor.” Isto dirá que você está vivo. Continue! Continue! Não pode durar muito mais. Não é aqui que você deverá morrer. Não fraqueje! Você não pode!

A mão direita de Bond tocou em alguma coisa que cedeu. Logo sentiu uma corrente de ar frio. A outra mão bateu então em sua cabeça. Ouviu-se um débil ruído. Bond sentiu a orla inferior de um anteparo de amianto, articulado na parte superior do tubo, e que agora se arrastava em suas costas. Tinha vencido aquela prova. Ouviu o barulho daquele anteparo fechando-se novamente, depois de ter dado passagem a todo o seu corpo. Suas mãos estavam agora encostadas numa sólida parede. Com os dedos, apalpou à direita e à esquerda. Era um desvio em ângulo reto. Seu corpo seguiu cegamente volta do desvio e o ar frio parecia penetrar em seus pulmões como lâminas de aço geladas. Prudentemente, encostou os dedos no metal. Estava frio! Com um gemido Bond caiu sobre o rosto e ficou quieto.

Algum tempo depois, a dor tornou a reavivá-lo. Bond voltou-se dolentemente, de costas. Vagamente notou uma vigia de vidro acima de sua cabeça, e vagamente percebeu aquele mesmo par de olhos a fitá-lo. Depois, deixou novamente que as ondas de trevas o submergissem.

Aos poucos, na escuridão, as bolhas feitas em toda a pele e os pés e ombros queimados começaram a endurecer. O suor tinha-se secado no corpo e nos farrapos da roupa, enquanto o ar penetrara nos pulmões superaquecidos, começando o seu insidioso trabalho. Mas o coração continuava batendo, forte e regularmente, por dentro da torturada carcaça, e os poderes mágicos do oxigênio levaram nova vida para dentro das artérias e veias, recarregando os nervos.

Depois de um tempo que lhe pareceu infinito, Bond despertou. Estremeceu, e, ao encontrarem-se os seus olhos com o outro par que o espreitava, por trás do vidro, a dor se apoderou dele e sacudiu-o como se fosse um rato. Esperou que aquela descarga de dor o matasse. Tentou novamente, e novamente, até que conseguiu aquilatar toda a força do adversário. Em seguida, para esconder-se da testemunha, voltou-se sobre o estômago e resistiu a toda a dor que vinha de dentro de si próprio. Continuou em expectativa, explorando o corpo para verificar-lhe as reações, pondo à prova a força de decisão que ainda tivesse restado nas baterias. Quanto mais poderia ainda agüentar? Os lábios de Bond desprenderam-se dos dentes e ele rosnou na escuridão. Era um som animal. Tinha chegado ao fim de suas reações humanas à dor e à adversidade. O Dr. No o tinha encurralado. Mas ainda restavam reservas de desespero animal e, num animal forte, essas reservas são consideráveis.

Lentamente, em verdadeira agonia, Bond deslizou mais alguns metros para fora do campo visual daqueles olhos e procurou o seu isqueiro, acendendo-o. À sua frente via apenas uma lua cheia negra, a boca circular que o levaria ao estômago da morte. Bond guardou o isqueiro, respirou profundamente e pôs-se sobre os joelhos e mãos. A dor não foi maior, apenas diferente. Lentamente, com movimentos duramente articulados, avançou.

O tecido de algodão de seus joelhos e de seus cotovelos tinha sido completamente queimado. Entorpecidamente, seu cérebro foi registrando a umidade à medida que suas bolhas se abriam contra o metal frio. Enquanto se movia, ia simultaneamente flexionando os dedos e os pés, sentindo-lhes a dor. Lentamente foi sabendo o que poderia fazer, o que doeria menos. Esta dor é suportável, refletiu ele consigo mesmo. Se eu tivesse sofrido um desastre de avião, eles diagnosticariam apenas contusões e queimaduras superficiais. Teria alta do hospital dentro de alguns dias. Não há nada de sério comigo. Sou um sobrevivente de desastre. Dói, mas não é nada. Pense nos pedaços de carnes dos outros passageiros. Dê-se por feliz. Tire isso de sua cabeça. Mas, por trás de todas essa reflexões, estava o pensamento de que, em verdade, ele ainda não experimentara o desastre, — que ainda estava a caminho dele, com sua resistência e sua capacidade muito reduzidas. Quando chegaria ele? Que caráter teria? E quanto mais ainda seria ele amolecido antes de chegar à arena do sacrifício?

à frente, na escuridão, aqueles pequeninos pontos vermelhos bem poderiam ser uma alucinação, manchas rubras diante de seus olhos, causadas pela exaustão. Bond parou e apertou os olhos. Balançou a cabeça. Não, aqueles pontinhos vermelhos ainda estavam lá. Vagarosamente, arrastou-se para mais perto deles. Agora não havia dúvida de que eles se estavam movendo. Bond deteve-se novamente. Alem das batidas de seu coração, ouvia uma espécie de murmúrio suave e delicado. Aqueles pontinhos do tamanho de uma cabeça de alfinete tinham aumentado. Agora haveria vinte ou trinta, deslocando-se para a frente e para trás, alguns rapidamente, outros mais vagarosamente, em todo o círculo negro que o esperava à frente. Susteve o fôlego, assim que conseguiu acender o isqueiro. Os pontinhos vermelhos tinham desaparecido. Substituindo-os, ele viu a um metro de distância, à sua frente, uma tela muito fina, quase da finura de musselina, bloqueando o túnel.

Bond continuou deslocando-se por centímetros, para diante, com o isqueiro aceso à frente. Aquilo era uma espécie de gaiola, com pequeninos animais no seu interior. Podia ouvir aqueles diminutos seres fugindo à luz. A um pé apenas da tela apagou a luz e esperou que seus olhos se acostumassem à escuridão. Enquanto esperava, escutando, pôde ouvir novamente os pequeninos animais aproximarem-se dele, e, gradualmente, aquela floresta de pequeninos pontinhos vermelhos começou a se juntar, fitando-o através da tela.

Que seria aquilo? Bond ouviu seu coração bater com força. Serpentes? Escorpiões? Centopéias?

Cuidadosamente, foi aproximando os olhos daquela floresta de pontos luminosos. Aproximou o isqueiro bem junto da tela e acendeu-o bruscamente. Pôde apreender, num relance, a visão de pequeninas patas que atravessavam a tela e de dezenas de pés cabeludos e de ventres igualmente cabeludos com a forma de sacos, tendo em determinado ponto grandes cabeças de insetos que pareciam cobertas de olhos. Os animais fugiam em precipitada corrida, abandonando a tela da frente para irem refugiar-se na extremidade oposta da gaiola, formando uma só massa cinza-marrom.

Bond olhou através da tela, movendo o isqueiro para a frente e para trás. Depois apagou-o para economizar gasolina, e deixou que a respiração saísse por entre os dentes, num tranqüilo suspiro.

Eram aranhas, gigantescas tarântulas, de três ou quatro polegadas de comprimento. Haveria umas vinte delas dentro daquela gaiola. E, de qualquer maneira, ele teria que passar por perto delas.

Bond ficou parado, descansando e pensando, enquanto os olhos vermelhos se iam reunindo outra vez diante de seu rosto.

Qual seria o grau de letalidade daqueles animais? Quanto das lendas em torno delas seria mito? Certamente que podiam matar animais, mas em que medida seriam mortais para o homem aquelas gigantescas aranhas? Bond deu de ombros. Lembrou-se da centopéia. O toque das tarântulas seria muito mais suave. Seriam como o toque das patas de ursinhos de brinquedo contra a pele humana — até que mordessem e esvaziassem os seus folículos venenosos no organismo da pessoa.

Mas, ainda aqui, seria esta a arena do sacrifício derradeira, montada pelo Dr. No? Uma mordida ou duas, talvez, para mandar uma pessoa para um delírio de dor. O horror de ter que atravessar a tela no escuro — o Dr. No não teria pensado no isqueiro de Bond — varando aquela floresta de olhos, esmagando alguns corpos moles mas sentindo as picadas de outros. E depois mais picadas das que tivessem ficado presas à roupa. Em seguida, a lenta agonia do veneno. Este deveria ter sido o caminho percorrido pela imaginação do Dr. No — para que a vítima prosseguisse aos gritos pelo seu caminho. Para quê? Para a barreira final?

Mas Bond tinha o isqueiro, a faca e o chuço de arame. Tudo o que iria precisar era nervos e uma precisão infinita.

Delicadamente abriu a tampa do isqueiro e, com o polegar e indicador, fez sair o pavio uma polegada. Acendeu-o, e quando as aranhas recuaram, furou a tela com a faca. Fez um buraco na armadura e cortou para os lados. Depois, apanhou a aba da tela, que assim se desprendera, e arrancou-a da armadura. A tarefa não foi difícil, pois a aba fendeu-se numa só peça, com um tecido de algodão. Tornou a colocar a faca entre os dentes e atravessou a abertura. As aranhas recuaram diante da chama e amontoaram-se umas sobre as outras. Bond retirou o chuço de arame de dentro das calças e bateu com o arame dobrado sobre aqueles corpos moles. Bateu e tornou a bater ferozmente, reduzindo os aracnídeos a uma pasta informe. Quando algumas das aranhas tentaram escapar em sua direção, ele acenou-lhes com a chama e esmagou as fugitivas, uma a uma. Agora, as aranhas vivas estavam atacando as mortas, e tudo quanto Bond tinha a fazer era terminar o massacre.

Lentamente todos aqueles movimentos convulsivos foram declinando até cessarem completamente. Estariam todas mortas? Estariam algumas simulando morte? A chama do isqueiro estava começando a morrer. Teria que enfrentar o risco. Avançou mais um pouco e atirou aquela massa escura e pegajosa para um lado. Depois tirou a faca de entre os dentes e abriu a segunda cortina, puxando a aba cortada para cima da pasta feita com os corpos das tarântulas. A chama bruxuleou e tornou-se apenas um revérbero vermelho. Bond reuniu suas forças, atirou o corpo sobre a massa encoberta e atravessou a segunda tela.

Não sabia se teria posto os joelhos e cotovelos sobre limalhas metálicas ou sobre as aranhas. Tudo o que sabia é que tinha atravessado aquela barreira. Arrastou-se ainda por alguns metros para a frente, no interior do túnel, e depois parou para descansar e reunir coragem.

Sobre a sua cabeça veio uma pálida luz. Bond torceu-se para um lado, ficando de costas, para ver o que já esperava. Os olhos amarelos e amendoados fixavam-no com profundo interesse. Lentamente, por trás do farolete, a cabeça moveu-se de um lado para outro. As pálpebras caíram numa piedade fingida. Um punho cerrado, com o polegar apontando para baixo, à guisa de despedida e aniquilamento, interpôs-se entre o farolete e o vidro. Em seguida foi retirado e a luz apagou-se. Bond voltou o rosto para baixo e descansou a testa no chão metálico e frio. Aquele gesto dizia-lhe que ele estava chegando ao obstáculo final, que os seus algozes tinham dado por encerradas as observações até virem recolher os seus restos. Bond sentiu ainda que naquele rosto não houvera um único indício de louvor pelo fato de ter logrado sobreviver até aquela etapa. Aqueles chineses negros odiavam-no. Apenas queriam que ele morresse, e tão miseravelmente quanto possível.

Os dentes de Bond bateram suavemente. Ele pensara na jovem e este pensamento dera-lhe forças. Ainda não estava morto. Que diabo! Ele não iria morrer! Não enquanto o coração não lhe fosse arrancado do corpo.

Bond retesou os músculos. Era tempo de continuar, a investida. Com redobrado cuidado, recolocou as armas em seus lugares, e penosamente recomeçou a avançar pela escuridão.

O túnel começava a inclinar-se ligeiramente para baixo, o que tornava a progressão mais fácil. Logo a inclinação tornou-se tão acentuada que Bond podia deslocar-se apenas em virtude de seu peso. Era uma bênção não ter que fazer aquele esforço derradeiro com os músculos. Vislumbrou um clarão acinzentado à sua frente, pouco mais que uma redução das trevas completas, mas aquilo prenunciava uma mudança, pois a qualidade do ar parecia diferente. Havia nele um odor novo. O que seria? O mar?

Súbito, Bond compreendeu que estava escorregando para baixo, ao longo do túnel. Expandiu os ombros e abriu os pés, procurando impedir a queda. Aquele esforço causou-lhe terríveis dores e o efeito foi mínimo. Agora o túnel começava a alargar-se e ele já não poderia mais diminuir o impulso da queda! Seu deslizamento tornava-se mais e mais acelerado. Agora via uma curva à frente — e era uma curva dirigida para baixo.

O corpo de Bond logo chegou. àquela curva e contornou-a. Deus do céu, ele estava mergulhando de cabeça para baixo! Desesperadamente, abriu os braços e pernas. O metal esfolou sua pele. Agora tinha perdido completamente o controle da situação e estava mergulhando para baixo, sempre pára baixo, no interior de um cano de canhão. Muito abaixo havia um circulo de luz cinzenta. Seria o ar livre? O mar? A luz subia vertiginosamente para ele! Lutou para recuperar o fôlego. Continue vivo, idiota! Continue vivo!

Primeiro a cabeça, e logo depois o corpo de Bond precipitaram-se pelo espaço, vencendo aceleradamente a distância de mais de cem pés que o separava da superfície do mar.


XVIII - ARENA DE SACRIFÍCIO


O corpo de Bond espadanejou o espelho de um mar de alvorada como o impacto de uma bomba.

Enquanto descia precipitadamente pelo tubo prateado, em direção ao disco de luz, o instinto dissera-lhe que retirasse a faca de entre os dentes e que pusesse as mãos para a frente, a fim de aparar a queda, assim como a cabeça para baixo e o corpo rígido. E, na última fração de segundo, quando ele viu o mar que se alteava ao ritmo das ondas, procurou sorver uma longa inspiração. En conseqüência, projetou-se na água como se estivesse dando um mergulho, com os braços estendidos abrindo-lhe um buraco através do qual passaram a sua cabeça e o corpo. Conquanto, quando chegou a vinte pés de profundidade, tivesse perdido os sentidos, o despencar a sessenta e cinco quilômetros por hora não conseguira matá-lo.

Lentamente o corpo foi voltando à superfície, e ficou, com a cabeça para baixo, a balançar-se suavemente nas pequeninas ondas causadas pelo seu próprio mergulho. A água que penetrou nos pulmões de certa forma contribuiu para enviar uma última mensagem ao cérebro. As pernas e braços agitaram-se desajeitadamente. Agora tinha conseguido voltar a cabeça para cima, com a água escorrendo da boca. Tornou a afundar, mas dessa vez, instintivamente, as pernas começaram a mover-se procurando manter o corpo à superfície da água. Por fim, a cabeça, horrivelmente sacudida pela tosse, conseguiu vir para fora da água e assim manter-se. Os braços e as pernas começaram a agitar-se dèbilmente, com os movimentos natatórios de um cão, e através da cortina vermelha e negra, os olhos injetados de sangue viram a linha da vida e disseram ao dolente cérebro que visasse àquele objetivo.

A arena de execução era uma estreita e profunda enseada, na base de um elevado penhasco. A corda de salvamento em direção à qual Bond lutava, embaraçado pelo chuço metido em sua calça, era representada por uma forte tela de arame, que se estendia por dois lados do penhasco, protegendo aquela enseada do mar aberto. Aquela rede, formada de quadrados, estava suspensa a um grosso cabo situado a dois metros acima da superfície da água. Para baixo, a tela desaparecia nas profundezas, cheia de incrustações de algas.

Bond conseguiu chegar ao arame, e a ele agarrou-se como que crucificado. Durante quinze minutos deixou-se ficar na mesma posição, com o corpo de quando em quando sacudido por vômitos, até que se sentiu bastante forte para virar a cabeça e verificar onde estava. Ofuscadamente, os seus olhos tomaram a altura do penhasco, sobre sua cabeça. O lugar estava obscurecido por uma sombra cinzenta, projetada pela montanha, mas ao largo, no mar, havia uma iridiscência de pérola provocada pela aurora, o que significava que para o resto do mundo o dia estava amanhecendo. Mas onde Bond se encontrava era escuro e triste.

Lerdamente, a mente de Bond começou a se interrogar sobre aquela tela de arame. Qual seria a sua finalidade, fechando aquela escura enseada e separando-a do mar? Seria para manter alguma coisa do lado de fora ou para mantê-la do lado de dentro? Bond olhou vagamente para baixo, procurando penetrar as profundezas do mar, à sua volta. As malhas de arame perdiam-se no nada, sob os seus pés. Havia pequeninos peixes à volta de suas pernas, abaixo da cintura. Que estariam eles fazendo? Pareciam estar-se alimentando, avançando contra seu corpo e depois recuando com fiapos negros na boca. Fiapos de que? De algodão de seus farrapos? Bond sacudiu a cabeça para clarear as idéias. Tornou a olhar para baixo. Não, aqueles peixes estavam-se alimentando com seu sangue.

Bond estremeceu. Sim, o sangue estava escorrendo de seu corpo, dos ombros, dos joelhos, dos pés, e misturando-se à água. Agora, pela primeira vez sentiu a dor causada pela água salgada em suas feridas e queimaduras. A dor tornou-se mais viva e estimulou a sua mente. Se esses pequeninos peixes estavam gostando de seu sangue, o que dizer dos tubarões? Seria essa a finalidade daquela tela de arame, isto é, evitar que os peixes devoradores de seres humanos pudessem escapar para o mar? Então por que eles ainda não se tinham lançado sobre ele? Para o diabo! A primeira coisa a fazer era subir pelo arame e ganhar o outro lado. Interpor aquela tela entre ele e o que quer que vivesse naquele escuro aquário.

Dèbilmente, pé após pé, lá se foi Bond subindo pela tela, até chegar ao cume e passar para o outro lado, onde poderia descansar sem preocupações. Colocou o espesso cabo sob a axila, e olhou para baixo, contemplando os peixes que ainda se nutriam com o sangue que continuava gotejando de seus pés.

Agora já não havia muito em Bond; pouquíssimas reservas teria ele. O último mergulho no tubo, o choque da queda, na água, e a quase morte, causada por afogamento, tinham-no esmagado como a uma esponja. Estava prestes a entregar-se, prestes a soltar um pequeno suspiro e depois escorregar para os doces braços da água. Como seria bom abandonar-se, finalmente, e descansar — sentir que o mar suavemente o levava para o seu leito.

Foi a explosiva fuga dos peixes que estavam sorvendo o seu sangue, sob os seus pés, que despertou Bond de seu sonho de morte. Alguma coisa tinha-se movido muito abaixo da superfície. Havia uma trêmula claridade muito distante, mas que avançava lentamente para a superfície, aproximando-se pelo lado interno da tela.

O corpo de Bond se enrijeceu. Ante a iminência do perigo, a vida voltou-lhe num ímpeto, expulsando a letargia e comunicando-lhe renovada vontade de sobreviver.

Bond abriu os dedos aos quais, há muito, o seu cérebro ordenara que não perdessem a faca. Fechou os dedos e agarrou o cabo daquela lâmina. Abaixou-se em seguida e tocou no gancho do chuço que ainda se mantinha no interior da calça. Sacudiu vivamente a cabeça e ficou com os olhos alertas. E agora?

Sob os seus pés a água estremeceu. Alguma coisa estava-se debatendo, no fundo, alguma coisa enorme. Algo grande, de cor cinza luminescente, tornou-se visível, detendo-se muito abaixo da superfície, na escuridão. Alguma coisa se projetou daquela massa, em direção à superfície, algo como se fosse um chicote da grossura do braço de Bond. A extremidade daquela tira inchava-se numa terminação oval e achatada, com marcas semelhantes a botões distribuídos a espaços regulares. Aquele tentáculo rodopiou na água, no lugar em que os peixes tinham estado, e logo se encolheu. Agora só se via a grande sombra cinzenta lá embaixo da superfície. Que estaria fazendo o animal? Estaria...? Estaria provando o seu sangue?

Como que em resposta àquela pergunta, dois olhos, tão grandes quanto bolas de futebol, foram avançando para cima até se porem no campo de visão de Bond. Aqueles enormes olhos pararam vinte pés abaixo da superfície e olharam tranqüilamente para cima, fixando-se no rosto de Bond.

A pele de Bond ficou arrepiada nas costas. Sua boca deixou escapar um palavrão! Então, aquela era a Ultima surpresa do Dr. No, o fim da corrida!

Bond ficou de olhos abertos, meio hipnotizado, olhando para baixo. Então aquele era o polvo gigante, o monstro mítico que podia arrastar navios para as profundezas do mar, o monstro de cinqüenta pés de comprimento que podia dar combate às baleias e que pesava uma tonelada ou mais. O que mais sabia ele a respeito daqueles animais? Que tinham dois longos tentáculos para laçar e outros dez para agarrar; que tinham um enorme bico rombudo por baixo de olhos que eram os únicos olhos, entre os peixes, a trabalharem segundo o principio da câmara fotográfica, como os do homem: que seu cérebro era eficiente; que o monstro podia fugir para trás a uma velocidade de trinta nós, por um sistema de jato-propulsão. Sabia ainda que os arpões podiam afundar-se em sua manta de gelatina sem causar nenhum mal ao monstro, e que... mas os grandes olhos esbugalhados, que ofereciam um alvo negro e branco, estavam-se elevando em sua direção. A superfície da água estremecia. Agora Bond podia ver uma floresta de tentáculos que saíam da cara do animal. Ondulavam diante dos olhos do monstro como uma ninhada de grossas serpentes. Bond podia ver-lhe as ventosas sob os tentáculos. Atrás da cabeça, a grande aba da manta de gelatina abria-se e fechava-se suavemente, e, por trás dela, o brilho do corpo perdia-se nas profundezas. Por Deus, a coisa era tão grande quanto uma locomotiva!

Muito devagar e discretamente Bond foi enfiando os pés e depois os braços através dos quadrados da tela de arame, protegendo-se e ancorando-se tão sòlidamente que os tentáculos teriam que arrancá-lo dali aos pedaços ou então arrastar com ele todo aquele arcabouço de metal. Olhou para a direita e para a esquerda. Para qualquer lado, teria que vencer vinte metros, antes de chegar à terra. Mas, qualquer movimento, ainda que pudesse empreende-lo, séria fatal. Devia ficar absolutamente imóvel, rezando para que o monstro perdesse o interesse e se afastasse. Se ele não perdesse o interesse... Suavemente os dedos de Bond apertaram a pequenina faca.

Os olhos do monstro continuavam fitando-o, fria e pacientemente. Delicadamente, como a tromba de um elefante, um daqueles longos tentáculos laçadores emergiu da superfície e foi galgando a tela em direção às pernas de Bond. Tocou num de seus pés, e Bond sentiu o áspero beijo daquelas ventosas. Não se mexeu. Não ousava abaixar-se e afrouxar o enlaçamento de seus braços à volta do arame. Docemente as ventosas entraram em ação, experimentando o rendimento daquela presa. Não era bastante. Como uma gigantesca lagarta, o tentáculo foi subindo por sua perna. Parou à altura do joelho ensangüentado e deteve-se, interessado. Os dentes de Bond estalaram com a dor. Ele bem podia imaginar a mensagem que tinha descido por aquele tentáculo até o cérebro do animal: sim, é bom para comer-se! E a ordem de retorno ao tentáculo: então traga-o.

As ventosas continuaram subindo pela coxa. A extremidade do tentáculo se aflou e em seguida dilatou-se a ponto de quase cobrir toda a espessura da coxa de Bond. Depois reduziu-se à grossura de um pulso. Aquele seria o alvo de Bond. Apenas teria que agüentar a dor e resistir ao horror daquela acometida, esperando que esse pulso chegasse ao alcance de um golpe.

 

* *
Uma brisa, a primeira suave brisa da madrugada, soprou sobre a superfície metálica da enseada, levantando pequenas ondas que iam beijar a rocha do penhasco. Um bando de corvos marinhos alçou vôo da guaneira, quinhentos pés acima da enseada, e cacarejando suavemente, avançou em direção ao mar. Quando as aves passaram sobre a enseada, o barulho que as tinha perturbado chegou aos ouvidos de Bond — o tríplice apito de um navio, que indica estar a embarcação pronta para receber a carga. Aquele som chegava do lado esquerdo de Bond. O cais deveria estar situado a pequena distância contornando o braço setentrional da enseada. O navio procedente de Antuérpia tinha chegado. Antuérpia! Uma região do mundo exterior — um mundo que estava a um milhão de quilômetros de distância, fora do alcance de Bond — com certeza para sempre fora de seu alcance. Exatamente para além daquele braço rochoso a tripulação estaria no refeitório, tomando o seu desjejum. O rádio estaria tocando. Haveria o chiado do toicinho defumado e ovos na frigideira, o cheiro do café...


* * *


As ventosas estavam em sua coxa. Bond podia ver dentro daqueles cálices córneos. Um cheiro de maresia estagnada chegou-lhe às narinas, quando aquela mão vagarosamente serpenteou para cima. Seria muito duro o tecido gelatinoso cinza-escuro, por trás daquela mão? Deveria usar agora a faca? Não, o golpe deveria ser rápido e seguro, atingindo toda a espessura, como se se cortasse uma corda. Não importaria que a sua própria pele fosse atingida.

Agora! Bond lançou um rápido golpe de vista àqueles dois enormes olhos, lá embaixo, tão pacientes e tão negligentes. Nesse momento, o outro tentáculo elevou-se da superfície da água e avançou em direção ao seu rosto. Bond recuou a cabeça e a mão se enroscou num fio de arame diante de seus olhos. Num segundo aquela garra se deslocaria para um braço ou ombro, e ele estaria liquidado. Agora!

O primeiro tentáculo estava sobre suas costelas. Quase sem fazer pontaria, a mão de Bond que empunhava a faca caiu rapidamente para baixo e transversalmente. Sentiu a lâmina afundar naquele pudim carnoso, e quase deixou que ela escapasse de sua mão, quando o tentáculo ferido chicoteou pelo ar, desaparecendo na água. Por um momento o mar foi agitado à sua volta. Agora, o outro tentáculo abandonou o arame e agarrou-se ao seu ventre. A mão aflada prendeu-se como uma sanguessuga, com toda a força de sua sucção furiosamente aplicada. Bond gritou ao sentir o contacto daquelas ventosas em sua carne. Golpeou loucamente, mais e mais. Por Deus, o seu estômago estava sendo arrancado para fora! A tela agitou-se com a luta. Aos seus pés a água fervilhava e espumava. Ele teria que ceder. Um derradeiro golpe, desta vez nas costas daquela mão disforme. Deu resultado! A mão se agitou no ar e desceu serpeante, deixando vinte círculos vermelhos sangrando em sua pele.

Bond não tinha tempo para se preocupar com aquilo. Agora a cabeça do monstro tinha emergido, e os seus olhos brilhantes fixavam-se nele, avermelhados, enfurecidos, e a floresta dos tentáculos sugadores começava a envolver-lhe os pés e as pernas, dilacerando-lhe as roupas, para logo retornar aos seus membros. Bond estava sendo arrastado para baixo, polegada por polegada. O arame estava penetrando em suas axilas. Podia até mesmo sentir a sua espinha sendo distendida. Se ele continuasse resistindo seria partido ao meio. Agora, os olhos e o grande bico triangular estavam fora d’água, e o bico procurava o seu pé. Havia uma esperança, apenas uma!

Bond meteu a faca entre os dentes e sua mão procurou o gancho do chuço de arame. Agarrou aquela arma, e desdobrou-a com as suas duas mãos. Teria que soltar um dos braços para poder abaixar-se e se aproximar do alvo. Se falhasse, entretanto, seria reduzido a pedaços sobre a tela.

Agora, antes que morresse com a dor! Agora, agora! Bond deixou todo o seu corpo escorregar por aquela escada de arame, para baixo, e desferiu uma violenta estocada. Pôde ver que o pontaço de sua lâmina penetrava pelo centro de um enorme globo ocular negro, e imediatamente todo o mar se intumesceu para ele, como uma fonte de negrume, enquanto seu corpo se mantinha pendurado de cabeça para baixo, seguro pelos joelhos, com o rosto apenas uma polegada acima da superfície.

Que teria acontecido? Teria ficado cego? Não podia ver nada. Seus olhos estavam ardendo e havia um gosto horrível de peixe podre em sua boca. Contudo, podia sentir o arame cortando-lhe os tendões dos joelhos. Então devia estar vivo! Estonteado, Bond deixou que o chuço caísse de sua mão, e procurou o arame mais próximo. Depois, agarrou-se com a outra mão um pouco mais acima, e, assim, vagarosamente, foi-se alçando até que conseguiu sentar-se no cabo superior da cerca. Clarões de luz chegaram-lhe aos olhos. Passou uma das mãos pelo rosto. Agora podia ver. Fixou a sua mão: estava negra e pegajosa. Olhou para o seu corpo: estava também coberto por um lodo negro, e o preto tingia o mar numa extensão de vinte metros à sua volta. Então Bond compreendeu: o polvo ferido tinha esvaziado a sua bolsa de tinta contra ele.

Mas onde estava o monstro? Voltaria? Bond esquadrinhou o mar. Nada, nada além da enorme mancha negra que se continuava ampliando. Nem uma só ondulação! Então, nada de esperar! Fugir dali o mais depressa possível! Ansiosamente, Bond olhou para a direita e para a esquerda. Para a esquerda era na direção do navio, mas também na direção do Dr. No, enquanto para a direita seria para o nada. Para instalar aquela tela de arame, os trabalhadores deviam ter vindo da esquerda, na direção do cais. Devia haver algum caminho até ali. Bond começou a se deslocar frenèticamente pelo cabo superior, em direção à rocha, a vinte metros de distância.

O espantalho negro e sangrento movimentava os braços e pernas quase automaticamente. O aparelho pensante e sensorial de Bond já não fazia mais parte de seu corpo. Movia-se ao lado de seu corpo ou acima dele, mantendo apenas o contato necessário para puxar os cordéis que faziam o boneco trabalhar. Bond era como um verme secionado, cujas duas metades continuassem arrastando-se para a frente, conquanto a vida os tivesse abandonado para ser substituída pela vida ilusória dos impulsos nervosos. Apenas, no caso de Bond, as duas metades ainda não estavam mortas. A vida tinha somente se ausentado delas. Tudo quanto ele precisava era um grama de esperança, um grama de confiança, de convicção de que ainda valeria a pena tentar sobreviver.

Bond chegou à rocha, e lentamente desceu pela tela até a última malha. Contemplou vagamente o brilho palpitante da água. O mar estava negro e impenetrável. Deveria arriscar-se? Sem dúvida! Não podia fazer nada enquanto não tivesse lavado aquela camada de lodo e sangue, sem falar do horrível cheiro de peixe. Sombriamente, fatalisticamente, ele tirou os farrapos de sua camisa e calças, pendurando-os no cabo. Olhou para baixo, para seu corpo marrom e branco, salpicado de vermelho. Instintivamente, procurou sentir seu pulso, que se apresentava lento mas regular. As firmes palpitações de vida reanimaram o seu espírito. Por que diabo estava ele se lamuriando? Estava vivo. As feridas e machucaduras em seu corpo não eram nada — absolutamente nada. Eram horríveis, mas nada estava quebrado. Por dentro do invólucro maltratado, a máquina estava trabalhando serena e seguramente. Cortes superficiais e esfoladuras, recordações sangrentas, cansaço mortal — estes seriam ferimentos dos quais se riria uma enfermeira experiente. Para a frente, seu bastardo! Para a frente! Limpe-se e levante-se. Conte as suas bênçãos. Pense na jovem. Pense no homem que você deverá encontrar e matar. Agarre-se à vida como se agarrou à faca entre os dentes. Acabe com esta autopiedade. Para o diabo com o que acaba de acontecer! Para dentro d’água e lave-se!

Dez minutos mais tarde, Bond, com seus farrapos molhados colados ao corpo já esfregado, e com os cabelos repuxados para fora dos olhos, galgava o cimo do penhasco.

Sim, era como ele tinha imaginado. Uma picada estreita e rochosa, feita pelos pés dos trabalhadores, descia para o outro lado, contornando a saliência do penhasco.

Das proximidades chegaram vários sons e ecos. Um guindaste estava trabalhando. Podia ouvir os ritmos variáveis de seu motor. Ouviam-se os barulhos peculiares, aos navios de ferro, bem como o ruído da água que era lançada ao mar por uma bomba de porão.

Bond olhou para cima, para o céu, que estava de um azul pálido. Nuvens manchadas de ouro e reflexos rosados derivavam em direção ao horizonte. Muito acima dele, os corvos marinhos esvoaçavam em torno da guaneira. Em breve estariam fazendo-se ao mar, em busca de alimentos. Talvez, agora, mesmo, estivessem vigiando os grupos de reconhecimento, longe, sobre o mar, na faina de localizarem os peixes. Seriam cerca de seis horas — a aurora de um belo dia.

Bond, deixando gotas de sangue atrás de si, seguiu o seu caminho cuidadosamente pela picada abaixo, beirando o sopé do penhasco. Para além da curva, a picada se infiltrava por um terreno cheio de pedras espalhadas. Os ruídos iam-se tornando mais altos. Bond ia avançando cuidadosamente, evitando pisar em pedras. Uma voz se fez ouvir surpreendentemente perto: ‘”Pronto para largar?” E logo uma resposta distante: “Pronto”. O motor do guindaste acelerou. Mais alguns metros. Mais um pedregulho; e mais outro. Agora!

Bond se ocultou por trás da rocha e cautelosamente meteu a cabeça para fora, a fim de observar.

 

CONTINUA

XVI - HORAS DE AGONIA


Uma voz, por trás de Bond, disse serenamente: — O jantar está servido.

Bond voltou-se para trás. O anunciante fora o guarda-costas, que tinha a seu lado outro homem que bem poderia ser seu irmão gêmeo. Ali ficaram eles, duas barricas de musculatura, com as mãos mergulhadas nas mangas dos quimonos, olhando, por cima da cabeça de Bond, para o Dr. No.

— Ah, já nove horas. — O Dr. No levantou-se lentamente e disse: — Vamos. Podemos continuar a nossa conversação em ambiente mais íntimo. Foi muita bondade dos senhores terem ouvido a minha história com paciência tão exemplar. Espero que a modéstia de minha cozinha e de minha adega não representem mais uma imposição.

Portas duplas tinham sido conservadas abertas por trás dos dois homens de jaquetas brancas. Bond e a jovem atravessaram-nas seguindo o Dr. No, indo ter a uma sala octogonal, com as paredes recobertas de painéis de mogno, e ao centro um candelabro de prata, sob o qual estava posta uma mesa para três pessoas. O tapete simples, azul-escuro, era luxuosamente espesso. O Dr. No tomou a cadeira central, de espaldar alto, e indicou cortesmente, com uma inclinação, a cadeira à sua direita para a jovem. Sentaram-se e abriram guardanapos de seda branca.

A cerimônia vazia e a encantadora sala deixavam Bond louco. Ansiava por despedaçar tudo aquilo com as próprias mãos, por passar o seu guardanapo de seda à volta do pescoço do Dr. No e apertá-lo até que aquelas lentes de contato saltassem daqueles malditos olhos negros.

Os dois guardas usavam luvas de algodão branco. Serviram as iguarias com suave eficiência que era instigada por uma ocasional palavra chinesa proferida pelo Dr. No.

A princípio o Dr. No parecia preocupado. Lentamente, ingeriu três taças de diferentes sopas, utilizando-se de uma colher dotada de um cabo curto e que se adaptava perfeitamente entre as pinças de sua mão mecânica. Bond esforçou-se por esconder os seus temores da jovem. Sentou-se afetando uma atitude de relaxamento e comeu e bebeu com forçado apetite. Falou ainda animadamente com a jovem sobre Jamaica — sobre aves e animais, assim como fores, que constituíam fáceis assuntos de conversação para Honeychile. De vez em quando os seus pés tocavam nos dela, sob a mesa. Ela quase chegou a ficar alegre. Bond pensou que ambos estavam fazendo uma bela imitação de namorados comprometidos, que estivessem saboreando um jantar oferecido por um tio detestável.

Bond não tinha a mínima idéia sobre se o seu fraco blefe tinha surtido algum efeito. Assim, não deu grande importância às suas possibilidades. O Dr. No, assim como a sua história, eram perfeitamente impenetráveis. A incrível biografa parecia verdadeira. Nem uma só palavra daquele relato era impossível. Talvez houvesse outras pessoas no mundo com os seus reinos particulares — reinos afastados dos caminhos trilhados por homens comuns, sem testemunhas, onde pudessem fazer o que bem entendessem. E que estaria planejando fazer o Dr. No, depois que tivesse esmagado as moscas que tinham vindo incomodá-lo? E se eles fossem mortos — e quando o fossem — Londres conseguiria recolher os fios que ele, Bond, tinha recolhido? Provavelmente conseguiria. Lá estava Pleydell-Smith, e as provas das frutas envenenadas. Mas até onde a substituição de Bond iria afetar o Dr. No? Não muito. O Dr. No daria de ombros ao desaparecimento de Bond e Quarrel. Nunca teria ouvido falar deles. E não haveria qualquer elo com a jovem. Em Porto Morgan, todos pensariam que ela se tinha afogado em suas expedições. Era difícil saber o que poderia interferir com o Dr. No — com o segundo capítulo de sua vida, qualquer que ele fosse.

Sob aquela conversa com a jovem, Bond foi-se preparando para o pior. Ao lado de seu prato havia algumas facas. Então chegaram as costeletas, perfeitamente cozidas, e Bond tocou em várias facas, hesitante, até que escolheu a do pão para cortá-las. Enquanto comia e conversava foi deslocando a grande lâmina de aço para perto do corpo. Um gesto largo da mão direita derrubou o seu copo de champanha e, numa fração de segundo, enquanto o copo se partia, sua mão esquerda enfiou a lâmina para dentro da manga do quimono. Em meio às suas desculpas, e à confusão que se seguiu, enquanto os guardas enxugavam a champanha derramada na mesa, Bond levantou o braço esquerdo e sentiu que a faca deslizava para baixo do braço e depois caía para dentro do quimono, ficando encostada às suas costelas. Quando acabou de comer as costeletas, apertou o cinto de seda, à volta da cintura, ao mesmo tempo que deslocava a faca para diante da barriga. A faca aninhou-se. confortàvelmente contra a sua pele e em pouco tempo o aço da lâmina foi-se tornando aquecido.

Por fim veio o café e a refeição foi dada por terminada. Os dois guardas se aproximaram e postaram-se por trás das cadeiras da jovem e de Bond. Tinham os braços cruzados sobre o peito, impassíveis, sem nenhum movimento, como carrascos.

O Dr. No pousou delicadamente a sua xícara no pires e descansou as duas pinças de aço sobre a mesa. Depois se endireitou um pouco na cadeira e virou o corpo, apenas uma polegada, em direção de Bond. Agora não havia o mínimo sinal de preocupação em seu rosto. Os olhos eram duros e diretos. A boca fina contraiu-se e abriu-se: — Apreciou o jantar, sr. Bond?

Bond apanhou um cigarro numa caixa de prata que estava à frente e acendeu-o. Depois, pôs-se a brincar com o isqueiro de prata que estava sobre a mesa. Sentia que más noticias iriam chegar. Pensou que deveria meter aquele isqueiro no bolso, de qualquer maneira. O fogo talvez viesse a ser mais uma arma. Respondeu com facilidade: — Sim, estava excelente. — Em seguida olhou para Honeychile. Curvou-se sobre a mesa e descansou os braços sobre ela, e logo cruzou-os, envolvendo o isqueiro com esta manobra. Sorriu para ela: — Espero ter pedido o que você gosta.

— Oh, sim, estava magnífico. — Para ela a recepção ainda estava continuando.

Bond fumava afanosamente, agitando mãos e braços, a fim de criar uma atmosfera de movimento. Voltou-se para o Dr. No, apagou o toco de seu cigarro e reclinou-se na cadeira. Cruzou os braços sobre o peito. O isqueiro já estava sob o seu sovaco esquerdo. Riu animadamente:

— E o que acontecerá agora, Dr. No?

— Podemos continuar com a nossa distração de após-jantar, sr. Bond. O leve sorriso contraiu-se e desapareceu.

— Examinei a sua proposta sob todos os aspectos. Não a aceito.

Bond deu de ombros e observou: — O senhor não é sensato.

— Não, sr. Bond. Receio que a sua proposta não passe de uma isca dourada. Em sua profissão não se atua como o senhor quer sugerir. Os agentes enviam relatórios rotineiros para o quartel-general. Mantêm seus chefes a par dos progressos das investigações que fazem. Conheço essas coisas. Os agentes secretos não se comportam como o senhor sugeriu ter agido. O senhor esteve lendo muitas novelas de aventuras, e o seu pequeno discurso mostrou com muita facilidade o papelão pintado. Não, sr. Bond, não aceito a sua história. Se ela for verdadeira, estou preparado para enfrentar as conseqüências. Tenho muita coisa em jogo para ser facilmente desviado de meu caminho. Que venham a polícia e os soldados. Onde estão o homem e a jovem? Que homem e que jovem? Não sei de nada. Por favor, retirem-se, os senhores estão prejudicando a minha guaneira. Onde estão as suas provas, o seu mandado de prisão? A lei inglesa é rigorosa, meus senhores. Voltem para casa e deixem-me em paz com os meus queridos corvos marinhos. Está vendo, sr. Bond? E digamos mesmo que o pior redunde em pior. Que um de meus agentes fale, o que é altamente improvável. (Bond lembrou-se da fortaleza da srta. Chung). Que tenho eu a perder? Mais duas mortes no libelo acusatório. Mas, sr. Bond, um homem só pode ser enforcado uma vez: — A elevada cabeça, em forma de pêra, agitava-se suavemente, de um lado para outro. — O senhor tem mais alguma coisa a dizer? Alguma pergunta? Ambos irão ter uma noite muito ocupada e o tempo de que dispõem está-se tornando escasso. Quanto a mim, devo ir dormir. O navio que chega mensalmente deverá atracar amanhã e eu terei que supervisionar o carregamento. Passarei todo o dia no cais. Certo, sr. Bond?

Bond olhou para Honeychile. Ela estava mortalmente pálida. Olhava com olhar esgazeado, esperando pelo milagre que ele deveria operar. Bond olhou para as próprias mãos e examinou cuidadosamente as unhas. Depois, disse, para ganhar tempo: — E então, após seu dia ocupado com o carregamento, o que virá em seu programa? Qual o novo capítulo que o senhor pensa escrever?

Bond não levantou o olhar. A profunda e serena voz autoritária caiu sobre ele como se tivesse vindo do céu escuro.

— Ah, sim, o senhor deve ter estado a pensar nisso.

O senhor tem o hábito da investigação. Os hábitos persistem até o fim, até as sombras. Admiro tais qualidades num homem que tem apenas algumas horas mais para viver. Por isso, dir-lhe-ei. Encetarei um novo capítulo, e isso o consolará. Há muito mais nesta ilha do que uma simples guaneira. O seu instinto não o enganou, sr. Bond.

O Dr. No fez uma pausa para dar mais ênfase ao que iria dizer e continuou: — Esta ilha, sr. Bond, está em vésperas de se transformar num dos mais valiosos centros de informação técnica do mundo.

— De fato? — Bond mantinha os olhos fixos em suas mãos.

— Sem dúvida que o senhor não ignora que Turks Island, a trezentas milhas, de distância daqui, através de Windward Passage, constitui o mais importante centro para a experimentação de projéteis teleguiados dos Estados Unidos?

— Sim, é um importante centro de experiências.

— Talvez o senhor tenha lido sobre os foguetes que recentemente se desviaram de sua rota? O “Snark” de múltiplas fases, por exemplo, que terminou o seu vôo nas florestas do Brasil, ao invés de ir perder-se nas profundezas do Atlântico Sul?

— Sim.

— O senhor se lembrará que ele se recusou a obedecer as instruções que lhe foram enviadas por rádio, no sentido de modificar a sua rota, e até mesmo de se destruir a si mesmo. Ele desenvolvera uma vontade própria.

— Lembro-me.

— Houve outras falhas, falhas decisivas, na longa lista dos protótipos — o Zuni, o Matador, o Petrel, o Regulus, o Bomarc — tantos nomes, outras tantas modificações, nem posso lembrar-me deles todos. Bem, sr. Bond, — o Dr. No mal podia esconder uma nota de orgulho em sua voz — talvez lhe interesse saber que a maioria desses fracassos foi causada de Crab Key.

— É verdade?

— Não me acredita? Não tem importância. Outros acreditam-no. Outros que viram o abandono de toda uma série, o Mastodonte, em virtude de seus freqüentes erros de navegação, sua incapacidade de obedecer às ordens enviadas pelo rádio, de Turks Island. Esses outros são os russos. Os russos são meus sócios nesta empreitada. Treinaram seis dos meus homens, sr. Bond. Exatamente neste momento tenho dois desses homens observando, estudando as freqüências de rádio, as faixas nas quais trabalham esses engenhos. Há um milhão de dólares de instalações, nas galerias rochosas, acima de nossas cabeças, sr. Bond, enviando sinais para a camada de Heavyside, aguardando os sinais, perturbando-os, contrabalançando faixas com outras faixas. E, de vez em quando, um foguete sobe em seu itinerário e aprofunda-se cem, quinhentas milhas, pelo Atlântico, enquanto nós anotamos cuidadosamente a sua trajetória, com a mesma perfeição com que isto é feito na Sala de Operações de Turks Island. Em seguida, subitamente, as nossas pulsações são enviadas ao foguete, o seu cérebro é perturbado, ele enlouquece e mergulha no mar, destruindo-se. Foi mais uma experiência que fracassou. Os operários levam a culpa, assim como os projetistas e os fabricantes. Há pânico no Pentágono. Outra coisa deve ser tentada, freqüências diversas, metais diversos, um cérebro eletrônico diferente. Naturalmente que também temos as nossas dificuldades. Assim é que assinalamos muitos disparos experimentais sem sermos capazes de chegar até o cérebro do novo engenho. Então, comunicamo-nos urgentemente com Moscou. Com efeito, eles deram-nos até uma máquina de cifras com as nossas freqüências e rotinas. E os russos continuam pensando, fazem sugestões, e nós as experimentamos. Por fim, sr. Bond, um belo dia, é como se atraíssemos a atenção de um homem perdido numa multidão. Lá no alto, na estratosfera, o foguete reconhece o nosso sinal. Somos reconhecidos e podemos falar com ele e modificar os seus pensamentos. — O Dr. No fez uma pausa e depois continuou: — O senhor não acha isso interessante, esta variante de meus negócios com o guano? Asseguro-lhe que é um negócio muito lucrativo, e podia sê-lo ainda mais. Talvez a China comunista venha a pagar mais pelos meus serviços. Quem sabe? Já tenho os meus agentes em campo, para sondagens.

Bond ergueu os olhos, olhando pensativamente para o Dr. No. Então ele tinha tido razão. Havia mesmo mais alguma coisa, muito mais, em tudo aquilo que os seus olhos tinham visto. Aquilo era uma grande partida, uma partida que explicava tudo, uma partida que no mercado internacional da espionagem bem valia a pena ser jogada. Bem, bem! Agora, as peças do quebra-cabeças tinham caído corretamente em seus lugares. Para isso tinha valido a pena, certamente, assustar alguns pássaros e eliminar algumas pessoas. Isolamento? Naturalmente que o Dr. No teria que matar a ele e à jovem. Poder? Sim, isso era poder. O Dr. No se tinha realmente lançado nos negócios.

Bond fixou os dois orifícios negros com um novo respeito, e observou: — O senhor terá que matar muito mais gente para manter isto em suas mãos, Dr. No. Isto vale muito dinheiro. O senhor tem aqui uma bela propriedade, superior ao que eu pensava, e as pessoas hão-de querer um pedaço deste bolo. Penso em quem será o primeiro a chegar até o senhor e matá-lo. Serão aqueles homens que estão lá em cima, treinados por Moscou? — e ele fez um gesto apontando para o teto. Depois continuou: — Eles são os técnicos. Eu me pergunto: o que Moscou estará lhes ordenando que façam? O senhor não poderia estar a par disso, poderia?

O Dr. No respondeu: — Vejo que continua subestimando meu valor, sr. Bond. O senhor é um homem obstinado e mais estúpido do que pensava. É claro que estou consciente dessas possibilidades. Separei um desses homens e transformei-o numa espécie de vigilante particular. Ele tem uma duplicata das cifras e da máquina. Vive em outra parte da montanha. Os outros pensam que ele morreu, mas ele está bem vivo a fiscalizar a cronometragem de rotina, e entrega-me diariamente uma cópia do tráfego que é registrado. Até agora os sinais emitidos por Moscou têm sido inocentes e não indicam qualquer conspiração. Penso em tudo isso constantemente, sr. Bond. Tomo precauções e ainda as multiplicarei para o futuro. Como disse, o senhor me tem subestimado.

— Não o subestimo, Dr. No. O senhor é um homem muito prudente, mas já há muitas pastas sobre o senhor. Em minha linha de atividades, a mesma coisa se aplica a mim, mas as suas pastas são muito perigosas. A chinesa, por exemplo. Não gostaria de ter uma com essa gente. A da FBI deve ser a menos penosa — roubo e falsa identidade. Mas o senhor conhece os russos tão bem quanto eu? Por enquanto o senhor é “o melhor amigo” deles. Mas os russos não têm sócios. Hão-de querer comprá-lo... — comprá-lo com um balaço. Depois vem a pasta que o senhor abriu com o meu serviço. O senhor quererá mesmo fazê-la mais volumosa? Eu não o faria se estivesse em seu lugar, Dr. No. O pessoal do meu serviço é muito obstinado. Se alguma coisa me acontecer e à jovem, o senhor verificará que Crab Key é uma ilha muito pequena e insignificante.

— Não se pode jogar grandes partidas sem assumir riscos, senhor Bond. Aceito os perigos e, até onde posso, procuro defender-me deles. Como vê — e a sua voz tinha um acento de cupidez — estou em vésperas de coisas muito maiores. O capítulo dois, ao qual já me referi, encerra promessa de prêmios que ninguém, a não ser um tolo, jogaria fora por ter medo. Já lhe disse que posso desviar os raios magnéticos por onde viajam os foguetes. Posso fazer com que estes mudem de rota e não obedeçam ao controle eletrônico. Que diria o senhor, se eu fosse ainda mais longe? Se eu os fizesse cair nesta ilha, a fim de recolher todos os segredos de sua construção? Atualmente, destróieres norte-americanos, nos confins do Atlântico Sul, recolhem esses foguetes quando eles esgotam o seu combustível e caem de pára-quedas sobre o mar. Algumas vezes os pára-quedas deixam de se abrir, e algumas vezes as instalações de autodestruição deixam de operar.

Ninguém em Turks Island se sentiria surpreendido se de vez em quando o protótipo de uma nova série saísse de sua trajetória e caísse perto de Crab Key. Antes de mais nada, isto seria atribuído a falhas mecânicas. Mais tarde talvez descobrissem que outros sinais, que não os seus, tinham estado a guiar os seus foguetes. Teria início, então uma guerra de freqüência. Tentariam e conseguiriam localizar a origem dos sinais falsos, mas assim que eu verificasse que eles estavam à minha caça, teria uma derradeira cartada. Os seus foguetes enlouqueceriam. Cairiam em Havana, em Kingston; dariam uma volta e despencariam sobre Miami. Mesmo sem as cargas detonantes, Sr. Bond, cinco toneladas de metal, chocando-se a mil milhas por hora, podem causar terríveis danos numa cidade super-povoada. E depois? Haveria pânico, haveria um clamor público. As experiências teriam de ser interrompidas. A base de Turks Island teria que fechar. E quanto não pagariam os russos para que isso acontecesse, sr. Bond? E quanto por protótipo que eu capturasse para eles? Digamos dez milhões de dólares por toda a operação? Vinte milhões? Seria uma vitória sem preço na corrida dos armamentos. Posso fazer o meu preço, não concorda, sr. Bond? E não concorda também que essas considerações tornam os seus argumentos e ameaças engraçadíssimos?

Bond não respondeu. Nada havia a dizer. Subitamente se viu em pensamento naquela sala tranqüila de Regents Park. Podia ouvir a chuva batendo suavemente contra a janela e a voz de M, impaciente e sarcástica, dizendo: “Oh, algum maldito negócio em torno de aves... umas férias ao sol lhe farão bem... investigações rotineiras.” E ele, Bond, tinha apanhado uma canoa, um caniço e um farnel de piquenique e partira — há quantos dias, há quantas semanas? — “para dar uma espiada”. Bem, ele tinha dado uma espiada na caixa de Pandora. E tinha tido as respostas, conhecera os segredos — e agora? Agora iriam mostrar-lhe polidamente o caminho para a sepultura, para onde ele levaria consigo o seus segredos arrancados e arrastados por ele em sua lunática aventura. Toda a amargura que lhe ia no íntimo aforou à boca, de modo que por um momento pensou que ia vomitar. Apanhou o copo e esvaziou todo o resto de champanha que nele havia. Depois disse asperamente: — Muito bem, Dr. No. Agora vamos ao cabaré. Qual é o programa — faca, bala, veneno, corda? Mas proceda rapidamente, já o vi bastante.

Os lábios do Dr. No se apertaram numa fina linha arroxeada. Os olhos eram duros como ônix, sob a bola de bilhar de sua fronte e crânio. A máscara de polidez tinha desaparecido. O Grande Inquisidor sentava-se na cadeira de alto espaldar. Tinha soado a hora para a “peine forte et dure”.

O Dr. No proferiu uma palavra e os dois guardas avançaram um passo e agarraram as suas vitimas pelos braços, acima dos cotovelos, mantendo-as imobilizadas para trás, apoiadas nos lados das cadeiras. Não houve resistência. Bond concentrou-se em manter o isqueiro sob o sovaco. As luvas brancas em seus bíceps pareciam faixas de aço. Sorriu para a jovem. — Desculpe-me por isso, Honey, — disse. — Receio que afinal de contas não possamos mais brincar juntos.

Os olhos da jovem, em seu rosto pálido, tinham ficado azul-escuros, pelo medo. Seus lábios tremiam, e ela perguntou: — Doerá muito?

— Silencio! — A voz do Dr. No soou como o estalar de um chicote. — Chega de tolices. Naturalmente que doerá. Estou interessado na dor. E estou igualmente interessado em descobrir quanto de dor o corpo humano pode suportar. De vez em quando faço experiências com os meus subordinados que devem ser punidos, e em intrusos como os senhores. Acarretaram-me os senhores grandes dificuldades. Em troca, pretendo causar-lhes uma grande soma de dor. Registrarei os níveis de suas resistências. Os fatos serão anotados, e um dia as minhas pesquisas serão relatadas ao mundo. As suas mortes terão servido à Ciência. Nunca desperdiço material humano. As experiências feitas pelos alemães com seres humanos vivos, durante a guerra, foram de grande proveito para a Ciência. Faz um ano que pus uma mulher para morrer da maneira que escolhi para a senhora. Ela era uma negra e durou três horas, mas morreu de terror. Queria agora fazer a experiência com uma mulher branca, para poder estabelecer uma comparação. Não me surpreendi quando a sua chegada me foi comunicada. Consigo sempre o que quero. — O Dr. No reclinou-se para trás na cadeira. Seus olhos estavam agora fixos na jovem, estudando-lhe as reações. Honeychile correspondia ao olhar, como que meio hipnotizada, como um rato do mato diante de uma cascavel.

Bond apertou os dentes.

— A senhora é uma jamaicana, por isso saberá o que quero dizer. Esta ilha chama-se Crab Key. Recebeu este nome porque está infestada de caranguejos — o que chamam em Jamaica “caranguejos negros”. A senhora os conhece. Pesam meio quilo, cada um, e têm o tamanho de um pires. Nesta época do ano eles saem aos milhares de seus esconderijos, próximos à costa, e sobem em direção à montanha. Lá, nos planaltos de coral, eles se alojam novamente em buracos da rocha, onde desovam. Avançam em exércitos de centenas, de cada vez. Atravessam tudo e sobre tudo. Em Jamaica eles invadem as casas e não se desviam de seu caminho. São como certos roedores da Noruega. É uma migração irresistível. — O Dr. No fez uma pausa. Em seguida acrescentou suavemente: — Mas há uma diferença. Os caranguejos devoram o que encontram em seu caminho. E agora, minha senhora, eles já estão em marcha. Estão galgando as faldas da montanha, às dezenas de milhares, em ondas negras e vermelho-laranja. Estão, neste momento, se apressando e se empurrando e arranhando a rocha acima de nós. E esta noite, no meio do seu caminho, eles vão encontrar o corpo nu de uma mulher sòlidamente preso — um banquete preparado para eles — e vão apalpar o corpo morno com suas pinças, e um deles dará o primeiro corte com suas garras de combate e então... e então...

A moça gemeu. Sua cabeça caiu para a frente sobre o peito. Desmaiara. O corpo de Bond inteiriçou-se na cadeira. Uma torrente de palavras obscenas escapou por entre seus dentes cerrados. As manoplas dos guardas pareciam-lhe ferro à volta dos braços. Nem sequer podia fazer deslizar os pés da cadeira no chão. Depois de um momento de luta, desistiu. Esperou que sua voz se acalmasse, e disse então, com todo o veneno que podia instilar nas palavras:

— Seu bastardo! Você há-de frigir no inferno se fizer isso!

O Dr. No sorriu fracamente.

— Senhor Bond, não acredito na existência do inferno. Procure consolar-se. Talvez eles comecem pela garganta ou pelo coração. O bater do pulso ainda os poderá atrair. Depois disso, tudo acabará depressa.

Proferiu então uma sentença em chinês. O guarda que estava atrás da cadeira da moça inclinou-se para a frente, levantou-a da cadeira como se fora uma criança e atirou-a por cima do ombro. Os belos cabelos caíam qual cascata de ouro entre os braços inertes. O guarda foi à porta, abriu-a e saiu, formando a fechá-la sem ruído.

Por um momento, reinou, silêncio na sala. Bond pensava somente na faca encostada ao seu ventre e no isqueiro debaixo da axila. Qual a extensão dos estragos que ele poderia causar com aqueles dois pedaços de metal? Poderia, de algum modo, aproximar-se do Dr. No?

O Dr. No continuou serenamente: — O senhor disse que o poder era uma ilusão, sr. Bond. Não modifica a sua opinião? O meu poder de escolher a morte que quiser para essa jovem certamente que não é uma ilusão. Todavia, passemos ao método de sua morte. Isso também encerra aspectos novos. Saiba, sr. Bond, que estou interessado na anatomia da coragem — do poder de resistência do corpo humano. Mas como medir a resistência humana? Como traçar um gráfico da vontade de sobrevivência, da tolerância à dor, da conquista do medo? Pensei muito nesse problema e acredito tê-lo solucionado. Trata-se, por enquanto, de um método incompleto e grosseiro, mas que será aperfeiçoado na medida em que as experiências se forem multiplicando. Preparei o senhor para essa experiência. Dei-lhe um sedativo, de modo que o seu corpo esteja descansado, e alimentei-o bem, de modo que possa estar no gozo completo de suas forças. Os futuros — como os chamarei — pacientes, terão as mesmas vantagens. Todos começarão nas mesmas condições. Depois disso, o restante será uma questão de coragem e do poder de resistência individuais.

O Dr. No fez uma pausa, enquanto observava o rosto de Bond. Depois prosseguiu: — Saiba ainda, sr. Bond, que justamente agora acabo de construir uma espécie de pista de obstáculos, uma espécie de pista de corrida contra a morte. Não direi mais sobre isso porque o elemento surpresa é um dos que aparecem na formação do medo. Os perigos desconhecidos são os piores, os que mais pressionam as reservas de coragem. E me alegro com a idéia de que a corrida de obstáculos que o senhor enfrentará contém um rico sortimento de coisas inesperadas. Será particularmente interessante sr. Bond, que um homem com as suas qualidades físicas seja o meu primeiro competidor. Será interessantíssimo ver até onde o senhor conseguirá alcançar, na pista que idealizei. Não há dúvida de que o senhor estabelecerá uma marca invejável para os futuros corredores. Tenho grandes esperanças no senhor. O senhor deverá ir muito longe, mas quando tombar, inevitavelmente, diante de um obstáculo, seu corpo será recolhido e eu examinarei meticulosamente os seus restos. Os dados assim colhidos serão registrados e o senhor representará o primeiro ponto de um gráfico. Algo honroso, não é, senhor Bond?

Bond nada respondeu. Que diabo significaria tudo aquilo? Em que poderia consistir aquela prova? Seria possível escapar dela com vida? Poderia escapar disso e salvar Honeychile antes que fosse demasiado tarde, ainda que para matá-la e assim salvá-la da tortura? Silenciosamente, Bond ia reunindo suas reservas de coragem, retemperando a mente contra o temor do desconhecido que já começava a envolver a sua garganta, e focalizando a sua vontade no alvo da sobrevivência. Acima de tudo, deveria apegar-se às suas armas.

O Dr. No levantou-se e afastou-se da cadeira. Caminhou vagarosamente até a porta e voltou-se. Seus olhos negros e ameaçadores fixavam Bond, pouco abaixo da armação da porta. A cabeça estava ligeiramente inclinada e os lábios finos tornaram a se mexer: — Faça uma boa corrida para mim, sr. Bond. Meus pensamentos, como se costuma dizer, o acompanharão.

O Dr. No afastou-se e a porta fechou-se suavemente por trás de seus costados amarelos.


XVII - O PROLONGADO GRITO


Havia um homem no elevador, cujas portas estavam abertas, à espera. James Bond, com os braços ainda torcidos, junto aos flancos, foi impelido para dentro do elevador. Agora, a sala de jantar estava vazia. Quando voltariam os guardas para desembaraçar a mesa e então notar o desaparecimento dos objetos subtraídos? As portas fecharam-se e o cabineiro ficou diante dos botões, de modo que Bond não pôde ver qual deles teria sido apertado. Sabia apenas que estavam, subindo, e tentou fazer um cálculo da distância percorrida. O elevador parou, e Bond teve a impressão de que o tempo gasto naquele percurso fora menor do que quando descera juntamente com Honeychile. As portas abriram-se para um corredor sem tapete, com uma pintura cinzenta e rústica nas paredes de granito. Esse corredor ia numa linha reta até uma distância de vinte metros.

— Espere aí — disse o guarda de Bond para o cabineiro — voltarei logo.

Bond foi conduzido ao longo do corredor, passando diante de portas marcadas com letras do alfabeto. Ouvia-se um leve zunido de maquinaria no ar, e, por trás de uma porta, Bond teve a impressão de ouvir descargas estáticas de equipamento eletrônico. Aquilo parecia vir da sala de máquinas, no coração da montanha. Logo chegaram à porta da extremidade do corredor que estava marcada com um Q negro. Ela estava entreaberta, de modo que logo se escancarou quando Bond foi empurrado através dela. Por trás daquela porta estava uma cela pintada de cinzento, com cerca de quinze pés quadrados. Nela nada havia, a não ser uma cadeira de madeira, sobre a qual estavam, lavadas e cuidadosamente dobradas, as calças pretas de Bond e a sua camisa azul.

O guarda soltou os braços de Bond, que logo se voltou e olhou para o rosto amarelo, sob os cabelos ondeados. Havia um leve sinal de curiosidade e prazer nos olhos marrons e úmidos. O homem estava de pé, segurando a maçaneta da porta. — Bem, aqui estamos, rapaz. Você está no ponto de partida. Poderá ficar aí sentado, apodrecendo, ou procurar uma saída e iniciar a corrida. Felicidades para você.

Bond pensou que valeria a pena tentá-lo. Deu ainda uma olhadela para além do guarda, onde o cabineiro ainda se conservava ao lado de suas portas abertas, observando-os.

Então disse suavemente: — Você não gostaria de ganhar dez mil dólares, garantidos, e uma passagem para qualquer lugar do mundo que desejasse? — Dito isso, observou cuidadosamente as reações do homem. A boca se abriu numa ampla careta, mostrando dentes escurecidos, desigualmente gastos pelos anos de mascagem de cana-de-açúcar.

— Muito obrigado, senhor. Prefiro continuar vivendo. — O homem fez menção de fechar a porta e Bond ainda gritou ansiosamente: — Podemos sair juntos daqui.

Os grossos lábios fizeram uma careta de desprezo, e o homem apenas disse: “Vá em frente!” E logo a porta se fechou com um duro estalido.

Bond deu de ombros, mas logo passou a examinar a porta. Era feita de metal e não havia maçaneta do lado de dentro. Bond preferiu não experimentar o ombro de encontro àquela barreira. Aproximou-se da cadeira, sentou-se sobre a pilha de suas roupas limpas, e olhou à volta da cela. As paredes eram inteiramente nuas, com exceção de uma grade para ventilação, feita de arame grosso, num dos cantos, logo abaixo do teto. Aquela abertura era maior que os seus ombros. Era, evidentemente, a entrada para a pista dos obstáculos. A única abertura restante, naquele recinto, era uma espécie de vigia de espesso vidro, logo acima da porta, e que não seria maior do que a cabeça de Bond. A luz, vinda do corredor, atravessava aquela grade e penetrava na cela. Nada mais havia. Não seria inteligente perder tempo. Seriam dez e meia. Lá fora, em alguma parte da falda da montanha, a jovem já deveria estar deitada, estendida sobre o chão, à espera do matraquear das pinças no coral cinzento. Bond apertou os dentes ao pensamento daquele corpo frágil e indefeso sob as estrelas. Bruscamente, pôs-se de pé. Que diabo estava ele fazendo ali sentado? O que quer que existisse do outro lado da grade deveria ser imediatamente enfrentado.

Bond apanhou a faca e o isqueiro, e tirou o quimono. Em seguida vestiu as calças e a camisa, enfiando o isqueiro no bolso. Experimentou o corte da faca com o polegar, e verificou que a lamina era bastante afiada. Seria ainda melhor se pudesse fazer uma ponta naquela lâmina. Ajoelhou-se no chão e começou a esfregar a extremidade arredondada da faca na laje do pavimento. Depois de um precioso quarto de hora, deu-se por satisfeito. Não era um estilete, mas que tanto serviria para cortar como para espetar. Colocou-a então entre os dentes e arrastou a cadeira para baixo da abertura gradeada. A grade? Supondo que pudesse arrancá-la pela base, aquele arame bem poderia ser esticado, de modo a formar uma lança, facultando-lhe assim uma terceira arma. Bond esticou os braços, com os dedos encurvados.

A coisa imediata de que tomou consciência foi uma dor de queimadura ao longo do braço e o choque de sua cabeça, ao atingir o chão de pedra. Ficou durante algum tempo estendido no solo, apenas com a lembrança de uma faísca azulada e o estalido e o chiado seco de eletricidade.

Depois de algum tempo, Bond pôs-se de joelhos e assim ficou por um momento. Em seguida baixou a cabeça e sacudiu-a lentamente de um lado para outro, como um animal ferido. Sentiu um leve odor de carne queimada. Levantou a mão direita à altura dos olhos e viu a mancha vermelha de uma queimadura aberta ao longo da parte interna dos dedos. A visão daquele ferimento trouxe-lhe também a consciência da dor. Bond proferiu uma imprecação. Vagarosamente pôs-se de pé. Dessa vez, olhou de soslaio, cautelosamente, para a grade, como se ela fosse feri-lo novamente. Irritado, encostou a cadeira na parede, apanhou a faca e com ela cortou uma faixa do quimono, envolvendo-a firmemente nos dedos. Em seguida tornou a subir na cadeira e olhou para a grade. Esperava-se que ele a atravessasse, e aquele choque tinha sido calculado apenas para amolecê-lo: era uma amostra do que estaria por vir. Com certeza o curto-circuito causado por ele já tinha posto fora de combate aquela armadilha. Olhou para a grade apenas por um instante, e já os dedos de sua mão esquerda a atingiam e atravessavam. Do outro lado não havia nada. Seria mesmo só aquela grade? Puxou a armação e ela cedeu uma polegada. Fez novo esforço e a grade foi arrancada do lugar, ficando pendurada por dois fios de cobre que desapareciam no interior da parede. Bond soltou a grade das pontas daqueles fios e desceu da cadeira. Havia um ponto de junção no arame de ferro, naquela grade, e Bond pôs-se a retificá-la, usando a cadeira como martelo.

Depois de dez minutos tinha à sua disposição um chuço recurvado de cerca de um metro de comprimento. Uma des extremidades, que tinha sido originalmente cortada por alicates, apresentava-se lacerada. Não atravessaria as roupas de um homem, mas teria efeito devastador no pescoço ou no rosto. Lançando mão de toda sua força e servindo-se da fresta inferior da porta metálica, Bond conseguiu fazer ainda um gancho com a extremidade rombuda daquele arame de ferro. Em seguida mediu-o com a perna e achou que aquela nova arma era demasiado longa. Em conseqüência, dobrou-a em dois e enfiou-a numa das pernas da calça. Agora, o chuço ia de sua cintura, onde fora pendurado, até o joelho. Voltou então para a cadeira e tornou a subir até a boca do ventilador, agora desobstruída. Não experimentou mais choque. Ergueu o corpo e introduziu-o naquele tubo que tinha mais quatro polegadas que a largura de seus ombros. Durante algum tempo deixou-se ficar, de barriga para baixo, a olhar para o interior da abertura. O túnel era circular e de metal polido. Bond apanhou o isqueiro, abençoando a inspiração que o fizera roubá-lo, e acionou-o. Sim, aquilo era folha de zinco que parecia nova. O túnel continuava em linha reta, sem qualquer característica especial, a não ser as costuras de junção das várias seções tubulares. Bond tornou a meter o isqueiro no bolso e foi-se arrastando para a frente.

Aquele deslizamento não foi difícil, e até mesmo uma brisa fresca, proveniente do sistema de ventilação, afagava o rosto de Bond. O ar não trazia nenhum cheiro de mar, sendo o seu odor o mesmo que caracteriza o ar de uma instalação de condicionamento de temperatura. O Dr. No devia ter lançado mão de um dos tubos do sistema para as suas experiências. Mas que armadilhas teria introduzido naquele tubo, a fim de pôr à prova as suas vítimas? Deviam ser engenhosas e dolorosíssimas — imaginadas para reduzir a resistência de suas vítimas. No final dos obstáculos, com certeza, a vítima seria surpreendida com o golpe de misericórdia — se é que lograsse chegar ao fim. Com efeito, haveria ali algo que não admitisse escapatória, pois nessa corrida não haveria prêmios, mas apenas padecimentos. A não ser, naturalmente, que o Dr. No tivesse subestimado a vontade de sobrevivência de seu desafeto. Essa, pensou Bond, era a sua única esperança — tentar vencer todos os obstáculos que se lhe deparassem, rompendo pelo menos até a última estacada.

Havia uma pálida luminosidade à sua frente. Bond foi-se arrastando cautelosamente, com todos os seus sentidos atuando como antenas. Aquela luminosidade foi-se tornando mais clara. Era o reflexo da luz que incidia sobre um dos lados da extremidade do tubo. Continuou avançando até que sua cabeça tocou naquela extremidade. Aí, Bond se torceu sobre as costas e olhou para cima. Sobre sua cabeça estava uma chaminé de cerca de cinqüenta metros de altura, em cujo topo havia uma claridade estável. Era como se alguém olhasse através de um comprido cano de canhão. Bond enfiou a cabeça por aquela chaminé e pôs-se de pé. Então, esperava-se que ele galgasse aquele tubo liso, sem qualquer apoio para os pés! Seria possível? Bond expandiu os ombros. Sim, eles lhe proporcionariam uma boa adesão às paredes laterais. Seus pés também o ajudariam na empreitada, embora escorregassem terrivelmente, a não ser nas orlas em que se soldavam os tubos. Bond deu de ombros e tirou os sapatos. Não adiantava monologar. Teria apenas que tentar.

Seis polegadas de cada vez, e o corpo de Bond começou a deslizar pela chaminé acima. A operação consistia em expandir os ombros para se fixar à chaminé, depois levantar os pés, unir os joelhos fortemente, e forçar os pés para fora, em direções opostas, contra o metal, e rapidamente contrair e expandir os ombros novamente, ao mesmo tempo que os pés escorregavam para baixo, deixando, entretanto, como saldo uma pequena progressão de algumas polegadas. E continuar repetindo, repetindo e repetindo a operação, até que os seus olhos fossem banhados pela luz que vira no topo da chaminé. De quando em quando pararia na saliência da solda dos tubos, a fim de descansar um pouco, recuperar o fôlego e medir o próximo avanço. E não havia que olhar para cima; apenas concentrar-se nas polegadas de metal que deveriam ser vencidas, uma a uma. Nada de preocupações com a luminosidade que pareceria nunca aumentar ou se aproximar. Também não deveria preocupar-se com a possibilidade de afrouxar a pressão dos ombros contra as paredes metálicas, indo esmagar os tornozelos no fundo da chaminé. E nenhuma preocupação com cãibras, com o inchaço dos ombros ou com as esfoladuras dos pés. Apenas ataque às polegadas prateadas, conquistando-as uma a uma.

Mas logo os pés começaram a suar e escorregar de modo desesperador. Por duas vezes Bond perdeu um metro, em virtude do escorregamento de seus ombros, que ficaram terrivelmente escalavrados com o atrito, antes de poder conseguir a freagem. Em certa altura teve mesmo que se deter durante algum tempo para esperar que o suor secasse com a corrente de ar que descia pela chaminé. Essa pausa durou dez minutos, durante os quais ele se viu apagadamente refletido na superfície metálica, com o rosto dividido ao meio pela faca que segurava entre os dentes. Ainda assim recusou-se a olhar para cima, a fim de ver quantos metros teria que vencer. Aquela derradeira seção poderia ser muito longa. Cuidadosamente Bond esfregou cada pé num cano de calça e recomeçou a batalha.

Agora, parte de sua mente sonhava, enquanto a outra se empenhava na luta. Nem mesmo estava consciente de que a luminosidade se ia acentuando lentamente e que a brisa se tornava mais forte. Via-se apenas como uma lagarta ferida, arrastando-se por um cano de descarga em direção a um ralo de banheira. O que veria quando atravessasse o ralo? Uma jovem nua se enxugando? Um homem fazendo a barba? A luz do sol filtrando-se para dentro de um banheiro Vazio?

A cabeça de Bond bateu de encontro a alguma coisa. O ralo estava obstruindo o orifício! O choque do desapontamento fez que escorregasse uma polegada, antes que seus ombros pudessem retê-lo firmemente. Então compreendeu que tinha chegado ao topo da chaminé! Agora notava a luz forte e o vento impetuoso. Ansiosamente, ele se alçou novamente até que a cabeça tocou em algo. O vento soprava contra sua orelha esquerda. Cautelosamente, voltou a cabeça para essa direção. Era outro tubo lateral. Acima de sua cabeça a luz se escoava através de uma espessa vigia. Tudo o que tinha a fazer era contornar aquela derivação, agarrando-se à orla do novo tubo, e, de qualquer maneira, encontrar forças para se introduzir naquele túnel lateral. Então poderia descansar um pouco, deitado.

Com redobrada cautela, nascida do pânico de que algo agora podia acontecer, de que poderia cometer um erro e ser precipitado no fundo da chaminé, Bond empreendeu a manobra, com suas últimas reservas de forças, e introduzindo-se na nova caverna caiu estirado com o rosto para baixo.

Mais tarde — quanto tempo mais tarde? — os olhos de Bond se abriram e seu corpo estremeceu. O frio o tinha despertado da total inconsciência em que o seu corpo o teria lançado. Penosamente, virou-se de costas, com pés e ombros doendo terrivelmente, e procurou reunir todas as forças mentais e físicas. Não tinha a mínima idéia da hora ou do lugar em que estaria no interior da montanha. Levantou a cabeça e olhou para trás, em direção à vigia, sobre o tubo vertical, do qual escapara. A luz era amarelada e o vidro parecia muito grosso. Lembrou-se da vigia existente na sala Q. Aquela vigia era absolutamente inquebrável, e esta também o seria, pensou ele.

Subitamente, por trás daquele vidro, distinguiu movimento. Enquanto observava, um par de olhos se materializaram, por trás de lâmpadas elétricas. Aqueles olhos pararam e fitaram-no, com o farolete parecendo um nariz entre aqueles dois olhos. Fixaram-no negligentemente e depois desapareceram. Os lábios de Bond explodiram numa imprecação. Então o seu progresso estava sendo observado para ser levado ao conhecimento do Dr. No.

Bond disse em voz alta: “Para o diabo com todos eles!”,, e voltou-se colérico sobre o ventre. Levantou a cabeça e olhou para a frente. O túnel desaparecia na escuridão. Para a frente! Não adianta nada perder tempo aqui. Apanhou a faca, colocou-a entre os dentes e foi abrindo caminho.

Em breve já não havia mais nenhuma luminosidade. Bond detinha-se de quando em quando para acender o isqueiro mas nada encontrava a não ser trevas. O ar começou a se tornar mais cálido, dentro do túnel, e, depois de uns cinqüenta metros talvez, decididamente quente. Havia mesmo cheiro de calor no ar, de calor metálico. Bond começou a suar.. Dentro de alguns minutos seu corpo estava completamente encharcado e ele tinha que parar para limpar os olhos. Deu uma volta à direita, no tubo, e, na nova seção, sentiu o metal bastante quente contra a sua pele. O cheiro de calor metálico era agora bem acentuado. Assim que enfiou a cabeça no novo túnel, tirou o isqueiro do bolso, acendeu-o e rapidamente recuou. Amargamente, considerou a nova dificuldade, medindo-a e amaldiçoando-a. A chama de seu isqueiro tinha iluminado uma seção de tubos de zinco descolorido. A nova dificuldade seria o calor!

Bond resmungou alto. Como a sua carne já esfolada poderia resistir àquilo? Como poderia proteger a pele contra o metal? Mas não havia solução satisfatória. Ou voltaria, ou continuaria ali parado ou, afinal, avançaria. Não havia outra decisão a tomar. Aliás, Bond começava a encontrar algum consolo em suas reflexões. Com efeito, não seria o calor que haveria de matá-lo, mas alguma mutilação. O metal aquecido não seria o seu campo de sacrifício — apenas mais uma prova para medir-lhe a resistência.

Bond pensou na jovem e no que ela estaria sofrendo. Oh, sim, para a frente com aquilo. Agora, vejamos...

Bond apanhou a faca e cortou toda a parte da frente da camisa, fazendo com ela várias faixas. A única esperança estaria em dar alguma proteção às partes de seu corpo que mais sofreriam a ação do calor, isto é, os pés e as mãos. Seus joelhos e cotovelos teriam de resistir apenas com a proteção normal da fina camada de roupa. E, assim, dispôs-se à luta, amaldiçoando-a.

Agora estava pronto. Um, dois, três...

Bond dobrou o ângulo do túnel e lançou-se contra o foco de calor.

Mantenha a barriga nua distante do chão! Contraia os ombros! Mãos, joelhos, pés; mãos. joelhos, pés. Mais depressa! Mais depressa! Sempre mais depressa, de modo que cada toque contra o chão seja rapidamente seguido por outro.

Os joelhos é que mais estavam sofrendo, agüentando a maior parte do peso do corpo. Agora, as mãos envoltas em panos estavam começando a chamuscar. Acendeu-se uma fagulha, e logo outra, e em seguida surgiram chamas, quando as fagulhas começaram a se deslocar. A fumaça que saía daquele envoltório de pano de suas mãos fazia que os seus olhos ardessem penosamente. Por Deus, ele não agüentaria mais! Não havia mais ar. Seus pulmões estavam a ponto de estourar. Agora as suas duas mãos estavam lançando fagulhas para os lados. O tecido devia estar quase acabado; então a carne começaria a queimar. Bond deu um guinada e seu ombro ferido tocou no metal. Um grito de dor ecoou no túnel, logo seguido de outros gritos proferidos regularmente, quando suas mãos, pés ou joelhos tocavam no metal escaldante. Agora ele estava liquidado. Era o fim. Mais alguns segundos e iria cair de borco, morrendo literalmente queimado. Não! Devia opor um supremo esforço de reação, ainda que aos berros, até que toda a carne tivesse sido queimada até os ossos. A pele dos joelhos já devia ter sido completamente destruída. Mais um pouco e as palmas de suas mãos estariam tocando no metal. Apenas o suor que corria de seus braços poderia manter úmido o pano de suas mãos. Grite, grite, grite! Isto aliviará a dor.” Isto dirá que você está vivo. Continue! Continue! Não pode durar muito mais. Não é aqui que você deverá morrer. Não fraqueje! Você não pode!

A mão direita de Bond tocou em alguma coisa que cedeu. Logo sentiu uma corrente de ar frio. A outra mão bateu então em sua cabeça. Ouviu-se um débil ruído. Bond sentiu a orla inferior de um anteparo de amianto, articulado na parte superior do tubo, e que agora se arrastava em suas costas. Tinha vencido aquela prova. Ouviu o barulho daquele anteparo fechando-se novamente, depois de ter dado passagem a todo o seu corpo. Suas mãos estavam agora encostadas numa sólida parede. Com os dedos, apalpou à direita e à esquerda. Era um desvio em ângulo reto. Seu corpo seguiu cegamente volta do desvio e o ar frio parecia penetrar em seus pulmões como lâminas de aço geladas. Prudentemente, encostou os dedos no metal. Estava frio! Com um gemido Bond caiu sobre o rosto e ficou quieto.

Algum tempo depois, a dor tornou a reavivá-lo. Bond voltou-se dolentemente, de costas. Vagamente notou uma vigia de vidro acima de sua cabeça, e vagamente percebeu aquele mesmo par de olhos a fitá-lo. Depois, deixou novamente que as ondas de trevas o submergissem.

Aos poucos, na escuridão, as bolhas feitas em toda a pele e os pés e ombros queimados começaram a endurecer. O suor tinha-se secado no corpo e nos farrapos da roupa, enquanto o ar penetrara nos pulmões superaquecidos, começando o seu insidioso trabalho. Mas o coração continuava batendo, forte e regularmente, por dentro da torturada carcaça, e os poderes mágicos do oxigênio levaram nova vida para dentro das artérias e veias, recarregando os nervos.

Depois de um tempo que lhe pareceu infinito, Bond despertou. Estremeceu, e, ao encontrarem-se os seus olhos com o outro par que o espreitava, por trás do vidro, a dor se apoderou dele e sacudiu-o como se fosse um rato. Esperou que aquela descarga de dor o matasse. Tentou novamente, e novamente, até que conseguiu aquilatar toda a força do adversário. Em seguida, para esconder-se da testemunha, voltou-se sobre o estômago e resistiu a toda a dor que vinha de dentro de si próprio. Continuou em expectativa, explorando o corpo para verificar-lhe as reações, pondo à prova a força de decisão que ainda tivesse restado nas baterias. Quanto mais poderia ainda agüentar? Os lábios de Bond desprenderam-se dos dentes e ele rosnou na escuridão. Era um som animal. Tinha chegado ao fim de suas reações humanas à dor e à adversidade. O Dr. No o tinha encurralado. Mas ainda restavam reservas de desespero animal e, num animal forte, essas reservas são consideráveis.

Lentamente, em verdadeira agonia, Bond deslizou mais alguns metros para fora do campo visual daqueles olhos e procurou o seu isqueiro, acendendo-o. À sua frente via apenas uma lua cheia negra, a boca circular que o levaria ao estômago da morte. Bond guardou o isqueiro, respirou profundamente e pôs-se sobre os joelhos e mãos. A dor não foi maior, apenas diferente. Lentamente, com movimentos duramente articulados, avançou.

O tecido de algodão de seus joelhos e de seus cotovelos tinha sido completamente queimado. Entorpecidamente, seu cérebro foi registrando a umidade à medida que suas bolhas se abriam contra o metal frio. Enquanto se movia, ia simultaneamente flexionando os dedos e os pés, sentindo-lhes a dor. Lentamente foi sabendo o que poderia fazer, o que doeria menos. Esta dor é suportável, refletiu ele consigo mesmo. Se eu tivesse sofrido um desastre de avião, eles diagnosticariam apenas contusões e queimaduras superficiais. Teria alta do hospital dentro de alguns dias. Não há nada de sério comigo. Sou um sobrevivente de desastre. Dói, mas não é nada. Pense nos pedaços de carnes dos outros passageiros. Dê-se por feliz. Tire isso de sua cabeça. Mas, por trás de todas essa reflexões, estava o pensamento de que, em verdade, ele ainda não experimentara o desastre, — que ainda estava a caminho dele, com sua resistência e sua capacidade muito reduzidas. Quando chegaria ele? Que caráter teria? E quanto mais ainda seria ele amolecido antes de chegar à arena do sacrifício?

à frente, na escuridão, aqueles pequeninos pontos vermelhos bem poderiam ser uma alucinação, manchas rubras diante de seus olhos, causadas pela exaustão. Bond parou e apertou os olhos. Balançou a cabeça. Não, aqueles pontinhos vermelhos ainda estavam lá. Vagarosamente, arrastou-se para mais perto deles. Agora não havia dúvida de que eles se estavam movendo. Bond deteve-se novamente. Alem das batidas de seu coração, ouvia uma espécie de murmúrio suave e delicado. Aqueles pontinhos do tamanho de uma cabeça de alfinete tinham aumentado. Agora haveria vinte ou trinta, deslocando-se para a frente e para trás, alguns rapidamente, outros mais vagarosamente, em todo o círculo negro que o esperava à frente. Susteve o fôlego, assim que conseguiu acender o isqueiro. Os pontinhos vermelhos tinham desaparecido. Substituindo-os, ele viu a um metro de distância, à sua frente, uma tela muito fina, quase da finura de musselina, bloqueando o túnel.

Bond continuou deslocando-se por centímetros, para diante, com o isqueiro aceso à frente. Aquilo era uma espécie de gaiola, com pequeninos animais no seu interior. Podia ouvir aqueles diminutos seres fugindo à luz. A um pé apenas da tela apagou a luz e esperou que seus olhos se acostumassem à escuridão. Enquanto esperava, escutando, pôde ouvir novamente os pequeninos animais aproximarem-se dele, e, gradualmente, aquela floresta de pequeninos pontinhos vermelhos começou a se juntar, fitando-o através da tela.

Que seria aquilo? Bond ouviu seu coração bater com força. Serpentes? Escorpiões? Centopéias?

Cuidadosamente, foi aproximando os olhos daquela floresta de pontos luminosos. Aproximou o isqueiro bem junto da tela e acendeu-o bruscamente. Pôde apreender, num relance, a visão de pequeninas patas que atravessavam a tela e de dezenas de pés cabeludos e de ventres igualmente cabeludos com a forma de sacos, tendo em determinado ponto grandes cabeças de insetos que pareciam cobertas de olhos. Os animais fugiam em precipitada corrida, abandonando a tela da frente para irem refugiar-se na extremidade oposta da gaiola, formando uma só massa cinza-marrom.

Bond olhou através da tela, movendo o isqueiro para a frente e para trás. Depois apagou-o para economizar gasolina, e deixou que a respiração saísse por entre os dentes, num tranqüilo suspiro.

Eram aranhas, gigantescas tarântulas, de três ou quatro polegadas de comprimento. Haveria umas vinte delas dentro daquela gaiola. E, de qualquer maneira, ele teria que passar por perto delas.

Bond ficou parado, descansando e pensando, enquanto os olhos vermelhos se iam reunindo outra vez diante de seu rosto.

Qual seria o grau de letalidade daqueles animais? Quanto das lendas em torno delas seria mito? Certamente que podiam matar animais, mas em que medida seriam mortais para o homem aquelas gigantescas aranhas? Bond deu de ombros. Lembrou-se da centopéia. O toque das tarântulas seria muito mais suave. Seriam como o toque das patas de ursinhos de brinquedo contra a pele humana — até que mordessem e esvaziassem os seus folículos venenosos no organismo da pessoa.

Mas, ainda aqui, seria esta a arena do sacrifício derradeira, montada pelo Dr. No? Uma mordida ou duas, talvez, para mandar uma pessoa para um delírio de dor. O horror de ter que atravessar a tela no escuro — o Dr. No não teria pensado no isqueiro de Bond — varando aquela floresta de olhos, esmagando alguns corpos moles mas sentindo as picadas de outros. E depois mais picadas das que tivessem ficado presas à roupa. Em seguida, a lenta agonia do veneno. Este deveria ter sido o caminho percorrido pela imaginação do Dr. No — para que a vítima prosseguisse aos gritos pelo seu caminho. Para quê? Para a barreira final?

Mas Bond tinha o isqueiro, a faca e o chuço de arame. Tudo o que iria precisar era nervos e uma precisão infinita.

Delicadamente abriu a tampa do isqueiro e, com o polegar e indicador, fez sair o pavio uma polegada. Acendeu-o, e quando as aranhas recuaram, furou a tela com a faca. Fez um buraco na armadura e cortou para os lados. Depois, apanhou a aba da tela, que assim se desprendera, e arrancou-a da armadura. A tarefa não foi difícil, pois a aba fendeu-se numa só peça, com um tecido de algodão. Tornou a colocar a faca entre os dentes e atravessou a abertura. As aranhas recuaram diante da chama e amontoaram-se umas sobre as outras. Bond retirou o chuço de arame de dentro das calças e bateu com o arame dobrado sobre aqueles corpos moles. Bateu e tornou a bater ferozmente, reduzindo os aracnídeos a uma pasta informe. Quando algumas das aranhas tentaram escapar em sua direção, ele acenou-lhes com a chama e esmagou as fugitivas, uma a uma. Agora, as aranhas vivas estavam atacando as mortas, e tudo quanto Bond tinha a fazer era terminar o massacre.

Lentamente todos aqueles movimentos convulsivos foram declinando até cessarem completamente. Estariam todas mortas? Estariam algumas simulando morte? A chama do isqueiro estava começando a morrer. Teria que enfrentar o risco. Avançou mais um pouco e atirou aquela massa escura e pegajosa para um lado. Depois tirou a faca de entre os dentes e abriu a segunda cortina, puxando a aba cortada para cima da pasta feita com os corpos das tarântulas. A chama bruxuleou e tornou-se apenas um revérbero vermelho. Bond reuniu suas forças, atirou o corpo sobre a massa encoberta e atravessou a segunda tela.

Não sabia se teria posto os joelhos e cotovelos sobre limalhas metálicas ou sobre as aranhas. Tudo o que sabia é que tinha atravessado aquela barreira. Arrastou-se ainda por alguns metros para a frente, no interior do túnel, e depois parou para descansar e reunir coragem.

Sobre a sua cabeça veio uma pálida luz. Bond torceu-se para um lado, ficando de costas, para ver o que já esperava. Os olhos amarelos e amendoados fixavam-no com profundo interesse. Lentamente, por trás do farolete, a cabeça moveu-se de um lado para outro. As pálpebras caíram numa piedade fingida. Um punho cerrado, com o polegar apontando para baixo, à guisa de despedida e aniquilamento, interpôs-se entre o farolete e o vidro. Em seguida foi retirado e a luz apagou-se. Bond voltou o rosto para baixo e descansou a testa no chão metálico e frio. Aquele gesto dizia-lhe que ele estava chegando ao obstáculo final, que os seus algozes tinham dado por encerradas as observações até virem recolher os seus restos. Bond sentiu ainda que naquele rosto não houvera um único indício de louvor pelo fato de ter logrado sobreviver até aquela etapa. Aqueles chineses negros odiavam-no. Apenas queriam que ele morresse, e tão miseravelmente quanto possível.

Os dentes de Bond bateram suavemente. Ele pensara na jovem e este pensamento dera-lhe forças. Ainda não estava morto. Que diabo! Ele não iria morrer! Não enquanto o coração não lhe fosse arrancado do corpo.

Bond retesou os músculos. Era tempo de continuar, a investida. Com redobrado cuidado, recolocou as armas em seus lugares, e penosamente recomeçou a avançar pela escuridão.

O túnel começava a inclinar-se ligeiramente para baixo, o que tornava a progressão mais fácil. Logo a inclinação tornou-se tão acentuada que Bond podia deslocar-se apenas em virtude de seu peso. Era uma bênção não ter que fazer aquele esforço derradeiro com os músculos. Vislumbrou um clarão acinzentado à sua frente, pouco mais que uma redução das trevas completas, mas aquilo prenunciava uma mudança, pois a qualidade do ar parecia diferente. Havia nele um odor novo. O que seria? O mar?

Súbito, Bond compreendeu que estava escorregando para baixo, ao longo do túnel. Expandiu os ombros e abriu os pés, procurando impedir a queda. Aquele esforço causou-lhe terríveis dores e o efeito foi mínimo. Agora o túnel começava a alargar-se e ele já não poderia mais diminuir o impulso da queda! Seu deslizamento tornava-se mais e mais acelerado. Agora via uma curva à frente — e era uma curva dirigida para baixo.

O corpo de Bond logo chegou. àquela curva e contornou-a. Deus do céu, ele estava mergulhando de cabeça para baixo! Desesperadamente, abriu os braços e pernas. O metal esfolou sua pele. Agora tinha perdido completamente o controle da situação e estava mergulhando para baixo, sempre pára baixo, no interior de um cano de canhão. Muito abaixo havia um circulo de luz cinzenta. Seria o ar livre? O mar? A luz subia vertiginosamente para ele! Lutou para recuperar o fôlego. Continue vivo, idiota! Continue vivo!

Primeiro a cabeça, e logo depois o corpo de Bond precipitaram-se pelo espaço, vencendo aceleradamente a distância de mais de cem pés que o separava da superfície do mar.


XVIII - ARENA DE SACRIFÍCIO


O corpo de Bond espadanejou o espelho de um mar de alvorada como o impacto de uma bomba.

Enquanto descia precipitadamente pelo tubo prateado, em direção ao disco de luz, o instinto dissera-lhe que retirasse a faca de entre os dentes e que pusesse as mãos para a frente, a fim de aparar a queda, assim como a cabeça para baixo e o corpo rígido. E, na última fração de segundo, quando ele viu o mar que se alteava ao ritmo das ondas, procurou sorver uma longa inspiração. En conseqüência, projetou-se na água como se estivesse dando um mergulho, com os braços estendidos abrindo-lhe um buraco através do qual passaram a sua cabeça e o corpo. Conquanto, quando chegou a vinte pés de profundidade, tivesse perdido os sentidos, o despencar a sessenta e cinco quilômetros por hora não conseguira matá-lo.

Lentamente o corpo foi voltando à superfície, e ficou, com a cabeça para baixo, a balançar-se suavemente nas pequeninas ondas causadas pelo seu próprio mergulho. A água que penetrou nos pulmões de certa forma contribuiu para enviar uma última mensagem ao cérebro. As pernas e braços agitaram-se desajeitadamente. Agora tinha conseguido voltar a cabeça para cima, com a água escorrendo da boca. Tornou a afundar, mas dessa vez, instintivamente, as pernas começaram a mover-se procurando manter o corpo à superfície da água. Por fim, a cabeça, horrivelmente sacudida pela tosse, conseguiu vir para fora da água e assim manter-se. Os braços e as pernas começaram a agitar-se dèbilmente, com os movimentos natatórios de um cão, e através da cortina vermelha e negra, os olhos injetados de sangue viram a linha da vida e disseram ao dolente cérebro que visasse àquele objetivo.

A arena de execução era uma estreita e profunda enseada, na base de um elevado penhasco. A corda de salvamento em direção à qual Bond lutava, embaraçado pelo chuço metido em sua calça, era representada por uma forte tela de arame, que se estendia por dois lados do penhasco, protegendo aquela enseada do mar aberto. Aquela rede, formada de quadrados, estava suspensa a um grosso cabo situado a dois metros acima da superfície da água. Para baixo, a tela desaparecia nas profundezas, cheia de incrustações de algas.

Bond conseguiu chegar ao arame, e a ele agarrou-se como que crucificado. Durante quinze minutos deixou-se ficar na mesma posição, com o corpo de quando em quando sacudido por vômitos, até que se sentiu bastante forte para virar a cabeça e verificar onde estava. Ofuscadamente, os seus olhos tomaram a altura do penhasco, sobre sua cabeça. O lugar estava obscurecido por uma sombra cinzenta, projetada pela montanha, mas ao largo, no mar, havia uma iridiscência de pérola provocada pela aurora, o que significava que para o resto do mundo o dia estava amanhecendo. Mas onde Bond se encontrava era escuro e triste.

Lerdamente, a mente de Bond começou a se interrogar sobre aquela tela de arame. Qual seria a sua finalidade, fechando aquela escura enseada e separando-a do mar? Seria para manter alguma coisa do lado de fora ou para mantê-la do lado de dentro? Bond olhou vagamente para baixo, procurando penetrar as profundezas do mar, à sua volta. As malhas de arame perdiam-se no nada, sob os seus pés. Havia pequeninos peixes à volta de suas pernas, abaixo da cintura. Que estariam eles fazendo? Pareciam estar-se alimentando, avançando contra seu corpo e depois recuando com fiapos negros na boca. Fiapos de que? De algodão de seus farrapos? Bond sacudiu a cabeça para clarear as idéias. Tornou a olhar para baixo. Não, aqueles peixes estavam-se alimentando com seu sangue.

Bond estremeceu. Sim, o sangue estava escorrendo de seu corpo, dos ombros, dos joelhos, dos pés, e misturando-se à água. Agora, pela primeira vez sentiu a dor causada pela água salgada em suas feridas e queimaduras. A dor tornou-se mais viva e estimulou a sua mente. Se esses pequeninos peixes estavam gostando de seu sangue, o que dizer dos tubarões? Seria essa a finalidade daquela tela de arame, isto é, evitar que os peixes devoradores de seres humanos pudessem escapar para o mar? Então por que eles ainda não se tinham lançado sobre ele? Para o diabo! A primeira coisa a fazer era subir pelo arame e ganhar o outro lado. Interpor aquela tela entre ele e o que quer que vivesse naquele escuro aquário.

Dèbilmente, pé após pé, lá se foi Bond subindo pela tela, até chegar ao cume e passar para o outro lado, onde poderia descansar sem preocupações. Colocou o espesso cabo sob a axila, e olhou para baixo, contemplando os peixes que ainda se nutriam com o sangue que continuava gotejando de seus pés.

Agora já não havia muito em Bond; pouquíssimas reservas teria ele. O último mergulho no tubo, o choque da queda, na água, e a quase morte, causada por afogamento, tinham-no esmagado como a uma esponja. Estava prestes a entregar-se, prestes a soltar um pequeno suspiro e depois escorregar para os doces braços da água. Como seria bom abandonar-se, finalmente, e descansar — sentir que o mar suavemente o levava para o seu leito.

Foi a explosiva fuga dos peixes que estavam sorvendo o seu sangue, sob os seus pés, que despertou Bond de seu sonho de morte. Alguma coisa tinha-se movido muito abaixo da superfície. Havia uma trêmula claridade muito distante, mas que avançava lentamente para a superfície, aproximando-se pelo lado interno da tela.

O corpo de Bond se enrijeceu. Ante a iminência do perigo, a vida voltou-lhe num ímpeto, expulsando a letargia e comunicando-lhe renovada vontade de sobreviver.

Bond abriu os dedos aos quais, há muito, o seu cérebro ordenara que não perdessem a faca. Fechou os dedos e agarrou o cabo daquela lâmina. Abaixou-se em seguida e tocou no gancho do chuço que ainda se mantinha no interior da calça. Sacudiu vivamente a cabeça e ficou com os olhos alertas. E agora?

Sob os seus pés a água estremeceu. Alguma coisa estava-se debatendo, no fundo, alguma coisa enorme. Algo grande, de cor cinza luminescente, tornou-se visível, detendo-se muito abaixo da superfície, na escuridão. Alguma coisa se projetou daquela massa, em direção à superfície, algo como se fosse um chicote da grossura do braço de Bond. A extremidade daquela tira inchava-se numa terminação oval e achatada, com marcas semelhantes a botões distribuídos a espaços regulares. Aquele tentáculo rodopiou na água, no lugar em que os peixes tinham estado, e logo se encolheu. Agora só se via a grande sombra cinzenta lá embaixo da superfície. Que estaria fazendo o animal? Estaria...? Estaria provando o seu sangue?

Como que em resposta àquela pergunta, dois olhos, tão grandes quanto bolas de futebol, foram avançando para cima até se porem no campo de visão de Bond. Aqueles enormes olhos pararam vinte pés abaixo da superfície e olharam tranqüilamente para cima, fixando-se no rosto de Bond.

A pele de Bond ficou arrepiada nas costas. Sua boca deixou escapar um palavrão! Então, aquela era a Ultima surpresa do Dr. No, o fim da corrida!

Bond ficou de olhos abertos, meio hipnotizado, olhando para baixo. Então aquele era o polvo gigante, o monstro mítico que podia arrastar navios para as profundezas do mar, o monstro de cinqüenta pés de comprimento que podia dar combate às baleias e que pesava uma tonelada ou mais. O que mais sabia ele a respeito daqueles animais? Que tinham dois longos tentáculos para laçar e outros dez para agarrar; que tinham um enorme bico rombudo por baixo de olhos que eram os únicos olhos, entre os peixes, a trabalharem segundo o principio da câmara fotográfica, como os do homem: que seu cérebro era eficiente; que o monstro podia fugir para trás a uma velocidade de trinta nós, por um sistema de jato-propulsão. Sabia ainda que os arpões podiam afundar-se em sua manta de gelatina sem causar nenhum mal ao monstro, e que... mas os grandes olhos esbugalhados, que ofereciam um alvo negro e branco, estavam-se elevando em sua direção. A superfície da água estremecia. Agora Bond podia ver uma floresta de tentáculos que saíam da cara do animal. Ondulavam diante dos olhos do monstro como uma ninhada de grossas serpentes. Bond podia ver-lhe as ventosas sob os tentáculos. Atrás da cabeça, a grande aba da manta de gelatina abria-se e fechava-se suavemente, e, por trás dela, o brilho do corpo perdia-se nas profundezas. Por Deus, a coisa era tão grande quanto uma locomotiva!

Muito devagar e discretamente Bond foi enfiando os pés e depois os braços através dos quadrados da tela de arame, protegendo-se e ancorando-se tão sòlidamente que os tentáculos teriam que arrancá-lo dali aos pedaços ou então arrastar com ele todo aquele arcabouço de metal. Olhou para a direita e para a esquerda. Para qualquer lado, teria que vencer vinte metros, antes de chegar à terra. Mas, qualquer movimento, ainda que pudesse empreende-lo, séria fatal. Devia ficar absolutamente imóvel, rezando para que o monstro perdesse o interesse e se afastasse. Se ele não perdesse o interesse... Suavemente os dedos de Bond apertaram a pequenina faca.

Os olhos do monstro continuavam fitando-o, fria e pacientemente. Delicadamente, como a tromba de um elefante, um daqueles longos tentáculos laçadores emergiu da superfície e foi galgando a tela em direção às pernas de Bond. Tocou num de seus pés, e Bond sentiu o áspero beijo daquelas ventosas. Não se mexeu. Não ousava abaixar-se e afrouxar o enlaçamento de seus braços à volta do arame. Docemente as ventosas entraram em ação, experimentando o rendimento daquela presa. Não era bastante. Como uma gigantesca lagarta, o tentáculo foi subindo por sua perna. Parou à altura do joelho ensangüentado e deteve-se, interessado. Os dentes de Bond estalaram com a dor. Ele bem podia imaginar a mensagem que tinha descido por aquele tentáculo até o cérebro do animal: sim, é bom para comer-se! E a ordem de retorno ao tentáculo: então traga-o.

As ventosas continuaram subindo pela coxa. A extremidade do tentáculo se aflou e em seguida dilatou-se a ponto de quase cobrir toda a espessura da coxa de Bond. Depois reduziu-se à grossura de um pulso. Aquele seria o alvo de Bond. Apenas teria que agüentar a dor e resistir ao horror daquela acometida, esperando que esse pulso chegasse ao alcance de um golpe.

 

* *
Uma brisa, a primeira suave brisa da madrugada, soprou sobre a superfície metálica da enseada, levantando pequenas ondas que iam beijar a rocha do penhasco. Um bando de corvos marinhos alçou vôo da guaneira, quinhentos pés acima da enseada, e cacarejando suavemente, avançou em direção ao mar. Quando as aves passaram sobre a enseada, o barulho que as tinha perturbado chegou aos ouvidos de Bond — o tríplice apito de um navio, que indica estar a embarcação pronta para receber a carga. Aquele som chegava do lado esquerdo de Bond. O cais deveria estar situado a pequena distância contornando o braço setentrional da enseada. O navio procedente de Antuérpia tinha chegado. Antuérpia! Uma região do mundo exterior — um mundo que estava a um milhão de quilômetros de distância, fora do alcance de Bond — com certeza para sempre fora de seu alcance. Exatamente para além daquele braço rochoso a tripulação estaria no refeitório, tomando o seu desjejum. O rádio estaria tocando. Haveria o chiado do toicinho defumado e ovos na frigideira, o cheiro do café...


* * *


As ventosas estavam em sua coxa. Bond podia ver dentro daqueles cálices córneos. Um cheiro de maresia estagnada chegou-lhe às narinas, quando aquela mão vagarosamente serpenteou para cima. Seria muito duro o tecido gelatinoso cinza-escuro, por trás daquela mão? Deveria usar agora a faca? Não, o golpe deveria ser rápido e seguro, atingindo toda a espessura, como se se cortasse uma corda. Não importaria que a sua própria pele fosse atingida.

Agora! Bond lançou um rápido golpe de vista àqueles dois enormes olhos, lá embaixo, tão pacientes e tão negligentes. Nesse momento, o outro tentáculo elevou-se da superfície da água e avançou em direção ao seu rosto. Bond recuou a cabeça e a mão se enroscou num fio de arame diante de seus olhos. Num segundo aquela garra se deslocaria para um braço ou ombro, e ele estaria liquidado. Agora!

O primeiro tentáculo estava sobre suas costelas. Quase sem fazer pontaria, a mão de Bond que empunhava a faca caiu rapidamente para baixo e transversalmente. Sentiu a lâmina afundar naquele pudim carnoso, e quase deixou que ela escapasse de sua mão, quando o tentáculo ferido chicoteou pelo ar, desaparecendo na água. Por um momento o mar foi agitado à sua volta. Agora, o outro tentáculo abandonou o arame e agarrou-se ao seu ventre. A mão aflada prendeu-se como uma sanguessuga, com toda a força de sua sucção furiosamente aplicada. Bond gritou ao sentir o contacto daquelas ventosas em sua carne. Golpeou loucamente, mais e mais. Por Deus, o seu estômago estava sendo arrancado para fora! A tela agitou-se com a luta. Aos seus pés a água fervilhava e espumava. Ele teria que ceder. Um derradeiro golpe, desta vez nas costas daquela mão disforme. Deu resultado! A mão se agitou no ar e desceu serpeante, deixando vinte círculos vermelhos sangrando em sua pele.

Bond não tinha tempo para se preocupar com aquilo. Agora a cabeça do monstro tinha emergido, e os seus olhos brilhantes fixavam-se nele, avermelhados, enfurecidos, e a floresta dos tentáculos sugadores começava a envolver-lhe os pés e as pernas, dilacerando-lhe as roupas, para logo retornar aos seus membros. Bond estava sendo arrastado para baixo, polegada por polegada. O arame estava penetrando em suas axilas. Podia até mesmo sentir a sua espinha sendo distendida. Se ele continuasse resistindo seria partido ao meio. Agora, os olhos e o grande bico triangular estavam fora d’água, e o bico procurava o seu pé. Havia uma esperança, apenas uma!

Bond meteu a faca entre os dentes e sua mão procurou o gancho do chuço de arame. Agarrou aquela arma, e desdobrou-a com as suas duas mãos. Teria que soltar um dos braços para poder abaixar-se e se aproximar do alvo. Se falhasse, entretanto, seria reduzido a pedaços sobre a tela.

Agora, antes que morresse com a dor! Agora, agora! Bond deixou todo o seu corpo escorregar por aquela escada de arame, para baixo, e desferiu uma violenta estocada. Pôde ver que o pontaço de sua lâmina penetrava pelo centro de um enorme globo ocular negro, e imediatamente todo o mar se intumesceu para ele, como uma fonte de negrume, enquanto seu corpo se mantinha pendurado de cabeça para baixo, seguro pelos joelhos, com o rosto apenas uma polegada acima da superfície.

Que teria acontecido? Teria ficado cego? Não podia ver nada. Seus olhos estavam ardendo e havia um gosto horrível de peixe podre em sua boca. Contudo, podia sentir o arame cortando-lhe os tendões dos joelhos. Então devia estar vivo! Estonteado, Bond deixou que o chuço caísse de sua mão, e procurou o arame mais próximo. Depois, agarrou-se com a outra mão um pouco mais acima, e, assim, vagarosamente, foi-se alçando até que conseguiu sentar-se no cabo superior da cerca. Clarões de luz chegaram-lhe aos olhos. Passou uma das mãos pelo rosto. Agora podia ver. Fixou a sua mão: estava negra e pegajosa. Olhou para o seu corpo: estava também coberto por um lodo negro, e o preto tingia o mar numa extensão de vinte metros à sua volta. Então Bond compreendeu: o polvo ferido tinha esvaziado a sua bolsa de tinta contra ele.

Mas onde estava o monstro? Voltaria? Bond esquadrinhou o mar. Nada, nada além da enorme mancha negra que se continuava ampliando. Nem uma só ondulação! Então, nada de esperar! Fugir dali o mais depressa possível! Ansiosamente, Bond olhou para a direita e para a esquerda. Para a esquerda era na direção do navio, mas também na direção do Dr. No, enquanto para a direita seria para o nada. Para instalar aquela tela de arame, os trabalhadores deviam ter vindo da esquerda, na direção do cais. Devia haver algum caminho até ali. Bond começou a se deslocar frenèticamente pelo cabo superior, em direção à rocha, a vinte metros de distância.

O espantalho negro e sangrento movimentava os braços e pernas quase automaticamente. O aparelho pensante e sensorial de Bond já não fazia mais parte de seu corpo. Movia-se ao lado de seu corpo ou acima dele, mantendo apenas o contato necessário para puxar os cordéis que faziam o boneco trabalhar. Bond era como um verme secionado, cujas duas metades continuassem arrastando-se para a frente, conquanto a vida os tivesse abandonado para ser substituída pela vida ilusória dos impulsos nervosos. Apenas, no caso de Bond, as duas metades ainda não estavam mortas. A vida tinha somente se ausentado delas. Tudo quanto ele precisava era um grama de esperança, um grama de confiança, de convicção de que ainda valeria a pena tentar sobreviver.

Bond chegou à rocha, e lentamente desceu pela tela até a última malha. Contemplou vagamente o brilho palpitante da água. O mar estava negro e impenetrável. Deveria arriscar-se? Sem dúvida! Não podia fazer nada enquanto não tivesse lavado aquela camada de lodo e sangue, sem falar do horrível cheiro de peixe. Sombriamente, fatalisticamente, ele tirou os farrapos de sua camisa e calças, pendurando-os no cabo. Olhou para baixo, para seu corpo marrom e branco, salpicado de vermelho. Instintivamente, procurou sentir seu pulso, que se apresentava lento mas regular. As firmes palpitações de vida reanimaram o seu espírito. Por que diabo estava ele se lamuriando? Estava vivo. As feridas e machucaduras em seu corpo não eram nada — absolutamente nada. Eram horríveis, mas nada estava quebrado. Por dentro do invólucro maltratado, a máquina estava trabalhando serena e seguramente. Cortes superficiais e esfoladuras, recordações sangrentas, cansaço mortal — estes seriam ferimentos dos quais se riria uma enfermeira experiente. Para a frente, seu bastardo! Para a frente! Limpe-se e levante-se. Conte as suas bênçãos. Pense na jovem. Pense no homem que você deverá encontrar e matar. Agarre-se à vida como se agarrou à faca entre os dentes. Acabe com esta autopiedade. Para o diabo com o que acaba de acontecer! Para dentro d’água e lave-se!

Dez minutos mais tarde, Bond, com seus farrapos molhados colados ao corpo já esfregado, e com os cabelos repuxados para fora dos olhos, galgava o cimo do penhasco.

Sim, era como ele tinha imaginado. Uma picada estreita e rochosa, feita pelos pés dos trabalhadores, descia para o outro lado, contornando a saliência do penhasco.

Das proximidades chegaram vários sons e ecos. Um guindaste estava trabalhando. Podia ouvir os ritmos variáveis de seu motor. Ouviam-se os barulhos peculiares, aos navios de ferro, bem como o ruído da água que era lançada ao mar por uma bomba de porão.

Bond olhou para cima, para o céu, que estava de um azul pálido. Nuvens manchadas de ouro e reflexos rosados derivavam em direção ao horizonte. Muito acima dele, os corvos marinhos esvoaçavam em torno da guaneira. Em breve estariam fazendo-se ao mar, em busca de alimentos. Talvez, agora, mesmo, estivessem vigiando os grupos de reconhecimento, longe, sobre o mar, na faina de localizarem os peixes. Seriam cerca de seis horas — a aurora de um belo dia.

Bond, deixando gotas de sangue atrás de si, seguiu o seu caminho cuidadosamente pela picada abaixo, beirando o sopé do penhasco. Para além da curva, a picada se infiltrava por um terreno cheio de pedras espalhadas. Os ruídos iam-se tornando mais altos. Bond ia avançando cuidadosamente, evitando pisar em pedras. Uma voz se fez ouvir surpreendentemente perto: ‘”Pronto para largar?” E logo uma resposta distante: “Pronto”. O motor do guindaste acelerou. Mais alguns metros. Mais um pedregulho; e mais outro. Agora!

Bond se ocultou por trás da rocha e cautelosamente meteu a cabeça para fora, a fim de observar.

 

CONTINUA

XVI - HORAS DE AGONIA


Uma voz, por trás de Bond, disse serenamente: — O jantar está servido.

Bond voltou-se para trás. O anunciante fora o guarda-costas, que tinha a seu lado outro homem que bem poderia ser seu irmão gêmeo. Ali ficaram eles, duas barricas de musculatura, com as mãos mergulhadas nas mangas dos quimonos, olhando, por cima da cabeça de Bond, para o Dr. No.

— Ah, já nove horas. — O Dr. No levantou-se lentamente e disse: — Vamos. Podemos continuar a nossa conversação em ambiente mais íntimo. Foi muita bondade dos senhores terem ouvido a minha história com paciência tão exemplar. Espero que a modéstia de minha cozinha e de minha adega não representem mais uma imposição.

Portas duplas tinham sido conservadas abertas por trás dos dois homens de jaquetas brancas. Bond e a jovem atravessaram-nas seguindo o Dr. No, indo ter a uma sala octogonal, com as paredes recobertas de painéis de mogno, e ao centro um candelabro de prata, sob o qual estava posta uma mesa para três pessoas. O tapete simples, azul-escuro, era luxuosamente espesso. O Dr. No tomou a cadeira central, de espaldar alto, e indicou cortesmente, com uma inclinação, a cadeira à sua direita para a jovem. Sentaram-se e abriram guardanapos de seda branca.

A cerimônia vazia e a encantadora sala deixavam Bond louco. Ansiava por despedaçar tudo aquilo com as próprias mãos, por passar o seu guardanapo de seda à volta do pescoço do Dr. No e apertá-lo até que aquelas lentes de contato saltassem daqueles malditos olhos negros.

Os dois guardas usavam luvas de algodão branco. Serviram as iguarias com suave eficiência que era instigada por uma ocasional palavra chinesa proferida pelo Dr. No.

A princípio o Dr. No parecia preocupado. Lentamente, ingeriu três taças de diferentes sopas, utilizando-se de uma colher dotada de um cabo curto e que se adaptava perfeitamente entre as pinças de sua mão mecânica. Bond esforçou-se por esconder os seus temores da jovem. Sentou-se afetando uma atitude de relaxamento e comeu e bebeu com forçado apetite. Falou ainda animadamente com a jovem sobre Jamaica — sobre aves e animais, assim como fores, que constituíam fáceis assuntos de conversação para Honeychile. De vez em quando os seus pés tocavam nos dela, sob a mesa. Ela quase chegou a ficar alegre. Bond pensou que ambos estavam fazendo uma bela imitação de namorados comprometidos, que estivessem saboreando um jantar oferecido por um tio detestável.

Bond não tinha a mínima idéia sobre se o seu fraco blefe tinha surtido algum efeito. Assim, não deu grande importância às suas possibilidades. O Dr. No, assim como a sua história, eram perfeitamente impenetráveis. A incrível biografa parecia verdadeira. Nem uma só palavra daquele relato era impossível. Talvez houvesse outras pessoas no mundo com os seus reinos particulares — reinos afastados dos caminhos trilhados por homens comuns, sem testemunhas, onde pudessem fazer o que bem entendessem. E que estaria planejando fazer o Dr. No, depois que tivesse esmagado as moscas que tinham vindo incomodá-lo? E se eles fossem mortos — e quando o fossem — Londres conseguiria recolher os fios que ele, Bond, tinha recolhido? Provavelmente conseguiria. Lá estava Pleydell-Smith, e as provas das frutas envenenadas. Mas até onde a substituição de Bond iria afetar o Dr. No? Não muito. O Dr. No daria de ombros ao desaparecimento de Bond e Quarrel. Nunca teria ouvido falar deles. E não haveria qualquer elo com a jovem. Em Porto Morgan, todos pensariam que ela se tinha afogado em suas expedições. Era difícil saber o que poderia interferir com o Dr. No — com o segundo capítulo de sua vida, qualquer que ele fosse.

Sob aquela conversa com a jovem, Bond foi-se preparando para o pior. Ao lado de seu prato havia algumas facas. Então chegaram as costeletas, perfeitamente cozidas, e Bond tocou em várias facas, hesitante, até que escolheu a do pão para cortá-las. Enquanto comia e conversava foi deslocando a grande lâmina de aço para perto do corpo. Um gesto largo da mão direita derrubou o seu copo de champanha e, numa fração de segundo, enquanto o copo se partia, sua mão esquerda enfiou a lâmina para dentro da manga do quimono. Em meio às suas desculpas, e à confusão que se seguiu, enquanto os guardas enxugavam a champanha derramada na mesa, Bond levantou o braço esquerdo e sentiu que a faca deslizava para baixo do braço e depois caía para dentro do quimono, ficando encostada às suas costelas. Quando acabou de comer as costeletas, apertou o cinto de seda, à volta da cintura, ao mesmo tempo que deslocava a faca para diante da barriga. A faca aninhou-se. confortàvelmente contra a sua pele e em pouco tempo o aço da lâmina foi-se tornando aquecido.

Por fim veio o café e a refeição foi dada por terminada. Os dois guardas se aproximaram e postaram-se por trás das cadeiras da jovem e de Bond. Tinham os braços cruzados sobre o peito, impassíveis, sem nenhum movimento, como carrascos.

O Dr. No pousou delicadamente a sua xícara no pires e descansou as duas pinças de aço sobre a mesa. Depois se endireitou um pouco na cadeira e virou o corpo, apenas uma polegada, em direção de Bond. Agora não havia o mínimo sinal de preocupação em seu rosto. Os olhos eram duros e diretos. A boca fina contraiu-se e abriu-se: — Apreciou o jantar, sr. Bond?

Bond apanhou um cigarro numa caixa de prata que estava à frente e acendeu-o. Depois, pôs-se a brincar com o isqueiro de prata que estava sobre a mesa. Sentia que más noticias iriam chegar. Pensou que deveria meter aquele isqueiro no bolso, de qualquer maneira. O fogo talvez viesse a ser mais uma arma. Respondeu com facilidade: — Sim, estava excelente. — Em seguida olhou para Honeychile. Curvou-se sobre a mesa e descansou os braços sobre ela, e logo cruzou-os, envolvendo o isqueiro com esta manobra. Sorriu para ela: — Espero ter pedido o que você gosta.

— Oh, sim, estava magnífico. — Para ela a recepção ainda estava continuando.

Bond fumava afanosamente, agitando mãos e braços, a fim de criar uma atmosfera de movimento. Voltou-se para o Dr. No, apagou o toco de seu cigarro e reclinou-se na cadeira. Cruzou os braços sobre o peito. O isqueiro já estava sob o seu sovaco esquerdo. Riu animadamente:

— E o que acontecerá agora, Dr. No?

— Podemos continuar com a nossa distração de após-jantar, sr. Bond. O leve sorriso contraiu-se e desapareceu.

— Examinei a sua proposta sob todos os aspectos. Não a aceito.

Bond deu de ombros e observou: — O senhor não é sensato.

— Não, sr. Bond. Receio que a sua proposta não passe de uma isca dourada. Em sua profissão não se atua como o senhor quer sugerir. Os agentes enviam relatórios rotineiros para o quartel-general. Mantêm seus chefes a par dos progressos das investigações que fazem. Conheço essas coisas. Os agentes secretos não se comportam como o senhor sugeriu ter agido. O senhor esteve lendo muitas novelas de aventuras, e o seu pequeno discurso mostrou com muita facilidade o papelão pintado. Não, sr. Bond, não aceito a sua história. Se ela for verdadeira, estou preparado para enfrentar as conseqüências. Tenho muita coisa em jogo para ser facilmente desviado de meu caminho. Que venham a polícia e os soldados. Onde estão o homem e a jovem? Que homem e que jovem? Não sei de nada. Por favor, retirem-se, os senhores estão prejudicando a minha guaneira. Onde estão as suas provas, o seu mandado de prisão? A lei inglesa é rigorosa, meus senhores. Voltem para casa e deixem-me em paz com os meus queridos corvos marinhos. Está vendo, sr. Bond? E digamos mesmo que o pior redunde em pior. Que um de meus agentes fale, o que é altamente improvável. (Bond lembrou-se da fortaleza da srta. Chung). Que tenho eu a perder? Mais duas mortes no libelo acusatório. Mas, sr. Bond, um homem só pode ser enforcado uma vez: — A elevada cabeça, em forma de pêra, agitava-se suavemente, de um lado para outro. — O senhor tem mais alguma coisa a dizer? Alguma pergunta? Ambos irão ter uma noite muito ocupada e o tempo de que dispõem está-se tornando escasso. Quanto a mim, devo ir dormir. O navio que chega mensalmente deverá atracar amanhã e eu terei que supervisionar o carregamento. Passarei todo o dia no cais. Certo, sr. Bond?

Bond olhou para Honeychile. Ela estava mortalmente pálida. Olhava com olhar esgazeado, esperando pelo milagre que ele deveria operar. Bond olhou para as próprias mãos e examinou cuidadosamente as unhas. Depois, disse, para ganhar tempo: — E então, após seu dia ocupado com o carregamento, o que virá em seu programa? Qual o novo capítulo que o senhor pensa escrever?

Bond não levantou o olhar. A profunda e serena voz autoritária caiu sobre ele como se tivesse vindo do céu escuro.

— Ah, sim, o senhor deve ter estado a pensar nisso.

O senhor tem o hábito da investigação. Os hábitos persistem até o fim, até as sombras. Admiro tais qualidades num homem que tem apenas algumas horas mais para viver. Por isso, dir-lhe-ei. Encetarei um novo capítulo, e isso o consolará. Há muito mais nesta ilha do que uma simples guaneira. O seu instinto não o enganou, sr. Bond.

O Dr. No fez uma pausa para dar mais ênfase ao que iria dizer e continuou: — Esta ilha, sr. Bond, está em vésperas de se transformar num dos mais valiosos centros de informação técnica do mundo.

— De fato? — Bond mantinha os olhos fixos em suas mãos.

— Sem dúvida que o senhor não ignora que Turks Island, a trezentas milhas, de distância daqui, através de Windward Passage, constitui o mais importante centro para a experimentação de projéteis teleguiados dos Estados Unidos?

— Sim, é um importante centro de experiências.

— Talvez o senhor tenha lido sobre os foguetes que recentemente se desviaram de sua rota? O “Snark” de múltiplas fases, por exemplo, que terminou o seu vôo nas florestas do Brasil, ao invés de ir perder-se nas profundezas do Atlântico Sul?

— Sim.

— O senhor se lembrará que ele se recusou a obedecer as instruções que lhe foram enviadas por rádio, no sentido de modificar a sua rota, e até mesmo de se destruir a si mesmo. Ele desenvolvera uma vontade própria.

— Lembro-me.

— Houve outras falhas, falhas decisivas, na longa lista dos protótipos — o Zuni, o Matador, o Petrel, o Regulus, o Bomarc — tantos nomes, outras tantas modificações, nem posso lembrar-me deles todos. Bem, sr. Bond, — o Dr. No mal podia esconder uma nota de orgulho em sua voz — talvez lhe interesse saber que a maioria desses fracassos foi causada de Crab Key.

— É verdade?

— Não me acredita? Não tem importância. Outros acreditam-no. Outros que viram o abandono de toda uma série, o Mastodonte, em virtude de seus freqüentes erros de navegação, sua incapacidade de obedecer às ordens enviadas pelo rádio, de Turks Island. Esses outros são os russos. Os russos são meus sócios nesta empreitada. Treinaram seis dos meus homens, sr. Bond. Exatamente neste momento tenho dois desses homens observando, estudando as freqüências de rádio, as faixas nas quais trabalham esses engenhos. Há um milhão de dólares de instalações, nas galerias rochosas, acima de nossas cabeças, sr. Bond, enviando sinais para a camada de Heavyside, aguardando os sinais, perturbando-os, contrabalançando faixas com outras faixas. E, de vez em quando, um foguete sobe em seu itinerário e aprofunda-se cem, quinhentas milhas, pelo Atlântico, enquanto nós anotamos cuidadosamente a sua trajetória, com a mesma perfeição com que isto é feito na Sala de Operações de Turks Island. Em seguida, subitamente, as nossas pulsações são enviadas ao foguete, o seu cérebro é perturbado, ele enlouquece e mergulha no mar, destruindo-se. Foi mais uma experiência que fracassou. Os operários levam a culpa, assim como os projetistas e os fabricantes. Há pânico no Pentágono. Outra coisa deve ser tentada, freqüências diversas, metais diversos, um cérebro eletrônico diferente. Naturalmente que também temos as nossas dificuldades. Assim é que assinalamos muitos disparos experimentais sem sermos capazes de chegar até o cérebro do novo engenho. Então, comunicamo-nos urgentemente com Moscou. Com efeito, eles deram-nos até uma máquina de cifras com as nossas freqüências e rotinas. E os russos continuam pensando, fazem sugestões, e nós as experimentamos. Por fim, sr. Bond, um belo dia, é como se atraíssemos a atenção de um homem perdido numa multidão. Lá no alto, na estratosfera, o foguete reconhece o nosso sinal. Somos reconhecidos e podemos falar com ele e modificar os seus pensamentos. — O Dr. No fez uma pausa e depois continuou: — O senhor não acha isso interessante, esta variante de meus negócios com o guano? Asseguro-lhe que é um negócio muito lucrativo, e podia sê-lo ainda mais. Talvez a China comunista venha a pagar mais pelos meus serviços. Quem sabe? Já tenho os meus agentes em campo, para sondagens.

Bond ergueu os olhos, olhando pensativamente para o Dr. No. Então ele tinha tido razão. Havia mesmo mais alguma coisa, muito mais, em tudo aquilo que os seus olhos tinham visto. Aquilo era uma grande partida, uma partida que explicava tudo, uma partida que no mercado internacional da espionagem bem valia a pena ser jogada. Bem, bem! Agora, as peças do quebra-cabeças tinham caído corretamente em seus lugares. Para isso tinha valido a pena, certamente, assustar alguns pássaros e eliminar algumas pessoas. Isolamento? Naturalmente que o Dr. No teria que matar a ele e à jovem. Poder? Sim, isso era poder. O Dr. No se tinha realmente lançado nos negócios.

Bond fixou os dois orifícios negros com um novo respeito, e observou: — O senhor terá que matar muito mais gente para manter isto em suas mãos, Dr. No. Isto vale muito dinheiro. O senhor tem aqui uma bela propriedade, superior ao que eu pensava, e as pessoas hão-de querer um pedaço deste bolo. Penso em quem será o primeiro a chegar até o senhor e matá-lo. Serão aqueles homens que estão lá em cima, treinados por Moscou? — e ele fez um gesto apontando para o teto. Depois continuou: — Eles são os técnicos. Eu me pergunto: o que Moscou estará lhes ordenando que façam? O senhor não poderia estar a par disso, poderia?

O Dr. No respondeu: — Vejo que continua subestimando meu valor, sr. Bond. O senhor é um homem obstinado e mais estúpido do que pensava. É claro que estou consciente dessas possibilidades. Separei um desses homens e transformei-o numa espécie de vigilante particular. Ele tem uma duplicata das cifras e da máquina. Vive em outra parte da montanha. Os outros pensam que ele morreu, mas ele está bem vivo a fiscalizar a cronometragem de rotina, e entrega-me diariamente uma cópia do tráfego que é registrado. Até agora os sinais emitidos por Moscou têm sido inocentes e não indicam qualquer conspiração. Penso em tudo isso constantemente, sr. Bond. Tomo precauções e ainda as multiplicarei para o futuro. Como disse, o senhor me tem subestimado.

— Não o subestimo, Dr. No. O senhor é um homem muito prudente, mas já há muitas pastas sobre o senhor. Em minha linha de atividades, a mesma coisa se aplica a mim, mas as suas pastas são muito perigosas. A chinesa, por exemplo. Não gostaria de ter uma com essa gente. A da FBI deve ser a menos penosa — roubo e falsa identidade. Mas o senhor conhece os russos tão bem quanto eu? Por enquanto o senhor é “o melhor amigo” deles. Mas os russos não têm sócios. Hão-de querer comprá-lo... — comprá-lo com um balaço. Depois vem a pasta que o senhor abriu com o meu serviço. O senhor quererá mesmo fazê-la mais volumosa? Eu não o faria se estivesse em seu lugar, Dr. No. O pessoal do meu serviço é muito obstinado. Se alguma coisa me acontecer e à jovem, o senhor verificará que Crab Key é uma ilha muito pequena e insignificante.

— Não se pode jogar grandes partidas sem assumir riscos, senhor Bond. Aceito os perigos e, até onde posso, procuro defender-me deles. Como vê — e a sua voz tinha um acento de cupidez — estou em vésperas de coisas muito maiores. O capítulo dois, ao qual já me referi, encerra promessa de prêmios que ninguém, a não ser um tolo, jogaria fora por ter medo. Já lhe disse que posso desviar os raios magnéticos por onde viajam os foguetes. Posso fazer com que estes mudem de rota e não obedeçam ao controle eletrônico. Que diria o senhor, se eu fosse ainda mais longe? Se eu os fizesse cair nesta ilha, a fim de recolher todos os segredos de sua construção? Atualmente, destróieres norte-americanos, nos confins do Atlântico Sul, recolhem esses foguetes quando eles esgotam o seu combustível e caem de pára-quedas sobre o mar. Algumas vezes os pára-quedas deixam de se abrir, e algumas vezes as instalações de autodestruição deixam de operar.

Ninguém em Turks Island se sentiria surpreendido se de vez em quando o protótipo de uma nova série saísse de sua trajetória e caísse perto de Crab Key. Antes de mais nada, isto seria atribuído a falhas mecânicas. Mais tarde talvez descobrissem que outros sinais, que não os seus, tinham estado a guiar os seus foguetes. Teria início, então uma guerra de freqüência. Tentariam e conseguiriam localizar a origem dos sinais falsos, mas assim que eu verificasse que eles estavam à minha caça, teria uma derradeira cartada. Os seus foguetes enlouqueceriam. Cairiam em Havana, em Kingston; dariam uma volta e despencariam sobre Miami. Mesmo sem as cargas detonantes, Sr. Bond, cinco toneladas de metal, chocando-se a mil milhas por hora, podem causar terríveis danos numa cidade super-povoada. E depois? Haveria pânico, haveria um clamor público. As experiências teriam de ser interrompidas. A base de Turks Island teria que fechar. E quanto não pagariam os russos para que isso acontecesse, sr. Bond? E quanto por protótipo que eu capturasse para eles? Digamos dez milhões de dólares por toda a operação? Vinte milhões? Seria uma vitória sem preço na corrida dos armamentos. Posso fazer o meu preço, não concorda, sr. Bond? E não concorda também que essas considerações tornam os seus argumentos e ameaças engraçadíssimos?

Bond não respondeu. Nada havia a dizer. Subitamente se viu em pensamento naquela sala tranqüila de Regents Park. Podia ouvir a chuva batendo suavemente contra a janela e a voz de M, impaciente e sarcástica, dizendo: “Oh, algum maldito negócio em torno de aves... umas férias ao sol lhe farão bem... investigações rotineiras.” E ele, Bond, tinha apanhado uma canoa, um caniço e um farnel de piquenique e partira — há quantos dias, há quantas semanas? — “para dar uma espiada”. Bem, ele tinha dado uma espiada na caixa de Pandora. E tinha tido as respostas, conhecera os segredos — e agora? Agora iriam mostrar-lhe polidamente o caminho para a sepultura, para onde ele levaria consigo o seus segredos arrancados e arrastados por ele em sua lunática aventura. Toda a amargura que lhe ia no íntimo aforou à boca, de modo que por um momento pensou que ia vomitar. Apanhou o copo e esvaziou todo o resto de champanha que nele havia. Depois disse asperamente: — Muito bem, Dr. No. Agora vamos ao cabaré. Qual é o programa — faca, bala, veneno, corda? Mas proceda rapidamente, já o vi bastante.

Os lábios do Dr. No se apertaram numa fina linha arroxeada. Os olhos eram duros como ônix, sob a bola de bilhar de sua fronte e crânio. A máscara de polidez tinha desaparecido. O Grande Inquisidor sentava-se na cadeira de alto espaldar. Tinha soado a hora para a “peine forte et dure”.

O Dr. No proferiu uma palavra e os dois guardas avançaram um passo e agarraram as suas vitimas pelos braços, acima dos cotovelos, mantendo-as imobilizadas para trás, apoiadas nos lados das cadeiras. Não houve resistência. Bond concentrou-se em manter o isqueiro sob o sovaco. As luvas brancas em seus bíceps pareciam faixas de aço. Sorriu para a jovem. — Desculpe-me por isso, Honey, — disse. — Receio que afinal de contas não possamos mais brincar juntos.

Os olhos da jovem, em seu rosto pálido, tinham ficado azul-escuros, pelo medo. Seus lábios tremiam, e ela perguntou: — Doerá muito?

— Silencio! — A voz do Dr. No soou como o estalar de um chicote. — Chega de tolices. Naturalmente que doerá. Estou interessado na dor. E estou igualmente interessado em descobrir quanto de dor o corpo humano pode suportar. De vez em quando faço experiências com os meus subordinados que devem ser punidos, e em intrusos como os senhores. Acarretaram-me os senhores grandes dificuldades. Em troca, pretendo causar-lhes uma grande soma de dor. Registrarei os níveis de suas resistências. Os fatos serão anotados, e um dia as minhas pesquisas serão relatadas ao mundo. As suas mortes terão servido à Ciência. Nunca desperdiço material humano. As experiências feitas pelos alemães com seres humanos vivos, durante a guerra, foram de grande proveito para a Ciência. Faz um ano que pus uma mulher para morrer da maneira que escolhi para a senhora. Ela era uma negra e durou três horas, mas morreu de terror. Queria agora fazer a experiência com uma mulher branca, para poder estabelecer uma comparação. Não me surpreendi quando a sua chegada me foi comunicada. Consigo sempre o que quero. — O Dr. No reclinou-se para trás na cadeira. Seus olhos estavam agora fixos na jovem, estudando-lhe as reações. Honeychile correspondia ao olhar, como que meio hipnotizada, como um rato do mato diante de uma cascavel.

Bond apertou os dentes.

— A senhora é uma jamaicana, por isso saberá o que quero dizer. Esta ilha chama-se Crab Key. Recebeu este nome porque está infestada de caranguejos — o que chamam em Jamaica “caranguejos negros”. A senhora os conhece. Pesam meio quilo, cada um, e têm o tamanho de um pires. Nesta época do ano eles saem aos milhares de seus esconderijos, próximos à costa, e sobem em direção à montanha. Lá, nos planaltos de coral, eles se alojam novamente em buracos da rocha, onde desovam. Avançam em exércitos de centenas, de cada vez. Atravessam tudo e sobre tudo. Em Jamaica eles invadem as casas e não se desviam de seu caminho. São como certos roedores da Noruega. É uma migração irresistível. — O Dr. No fez uma pausa. Em seguida acrescentou suavemente: — Mas há uma diferença. Os caranguejos devoram o que encontram em seu caminho. E agora, minha senhora, eles já estão em marcha. Estão galgando as faldas da montanha, às dezenas de milhares, em ondas negras e vermelho-laranja. Estão, neste momento, se apressando e se empurrando e arranhando a rocha acima de nós. E esta noite, no meio do seu caminho, eles vão encontrar o corpo nu de uma mulher sòlidamente preso — um banquete preparado para eles — e vão apalpar o corpo morno com suas pinças, e um deles dará o primeiro corte com suas garras de combate e então... e então...

A moça gemeu. Sua cabeça caiu para a frente sobre o peito. Desmaiara. O corpo de Bond inteiriçou-se na cadeira. Uma torrente de palavras obscenas escapou por entre seus dentes cerrados. As manoplas dos guardas pareciam-lhe ferro à volta dos braços. Nem sequer podia fazer deslizar os pés da cadeira no chão. Depois de um momento de luta, desistiu. Esperou que sua voz se acalmasse, e disse então, com todo o veneno que podia instilar nas palavras:

— Seu bastardo! Você há-de frigir no inferno se fizer isso!

O Dr. No sorriu fracamente.

— Senhor Bond, não acredito na existência do inferno. Procure consolar-se. Talvez eles comecem pela garganta ou pelo coração. O bater do pulso ainda os poderá atrair. Depois disso, tudo acabará depressa.

Proferiu então uma sentença em chinês. O guarda que estava atrás da cadeira da moça inclinou-se para a frente, levantou-a da cadeira como se fora uma criança e atirou-a por cima do ombro. Os belos cabelos caíam qual cascata de ouro entre os braços inertes. O guarda foi à porta, abriu-a e saiu, formando a fechá-la sem ruído.

Por um momento, reinou, silêncio na sala. Bond pensava somente na faca encostada ao seu ventre e no isqueiro debaixo da axila. Qual a extensão dos estragos que ele poderia causar com aqueles dois pedaços de metal? Poderia, de algum modo, aproximar-se do Dr. No?

O Dr. No continuou serenamente: — O senhor disse que o poder era uma ilusão, sr. Bond. Não modifica a sua opinião? O meu poder de escolher a morte que quiser para essa jovem certamente que não é uma ilusão. Todavia, passemos ao método de sua morte. Isso também encerra aspectos novos. Saiba, sr. Bond, que estou interessado na anatomia da coragem — do poder de resistência do corpo humano. Mas como medir a resistência humana? Como traçar um gráfico da vontade de sobrevivência, da tolerância à dor, da conquista do medo? Pensei muito nesse problema e acredito tê-lo solucionado. Trata-se, por enquanto, de um método incompleto e grosseiro, mas que será aperfeiçoado na medida em que as experiências se forem multiplicando. Preparei o senhor para essa experiência. Dei-lhe um sedativo, de modo que o seu corpo esteja descansado, e alimentei-o bem, de modo que possa estar no gozo completo de suas forças. Os futuros — como os chamarei — pacientes, terão as mesmas vantagens. Todos começarão nas mesmas condições. Depois disso, o restante será uma questão de coragem e do poder de resistência individuais.

O Dr. No fez uma pausa, enquanto observava o rosto de Bond. Depois prosseguiu: — Saiba ainda, sr. Bond, que justamente agora acabo de construir uma espécie de pista de obstáculos, uma espécie de pista de corrida contra a morte. Não direi mais sobre isso porque o elemento surpresa é um dos que aparecem na formação do medo. Os perigos desconhecidos são os piores, os que mais pressionam as reservas de coragem. E me alegro com a idéia de que a corrida de obstáculos que o senhor enfrentará contém um rico sortimento de coisas inesperadas. Será particularmente interessante sr. Bond, que um homem com as suas qualidades físicas seja o meu primeiro competidor. Será interessantíssimo ver até onde o senhor conseguirá alcançar, na pista que idealizei. Não há dúvida de que o senhor estabelecerá uma marca invejável para os futuros corredores. Tenho grandes esperanças no senhor. O senhor deverá ir muito longe, mas quando tombar, inevitavelmente, diante de um obstáculo, seu corpo será recolhido e eu examinarei meticulosamente os seus restos. Os dados assim colhidos serão registrados e o senhor representará o primeiro ponto de um gráfico. Algo honroso, não é, senhor Bond?

Bond nada respondeu. Que diabo significaria tudo aquilo? Em que poderia consistir aquela prova? Seria possível escapar dela com vida? Poderia escapar disso e salvar Honeychile antes que fosse demasiado tarde, ainda que para matá-la e assim salvá-la da tortura? Silenciosamente, Bond ia reunindo suas reservas de coragem, retemperando a mente contra o temor do desconhecido que já começava a envolver a sua garganta, e focalizando a sua vontade no alvo da sobrevivência. Acima de tudo, deveria apegar-se às suas armas.

O Dr. No levantou-se e afastou-se da cadeira. Caminhou vagarosamente até a porta e voltou-se. Seus olhos negros e ameaçadores fixavam Bond, pouco abaixo da armação da porta. A cabeça estava ligeiramente inclinada e os lábios finos tornaram a se mexer: — Faça uma boa corrida para mim, sr. Bond. Meus pensamentos, como se costuma dizer, o acompanharão.

O Dr. No afastou-se e a porta fechou-se suavemente por trás de seus costados amarelos.


XVII - O PROLONGADO GRITO


Havia um homem no elevador, cujas portas estavam abertas, à espera. James Bond, com os braços ainda torcidos, junto aos flancos, foi impelido para dentro do elevador. Agora, a sala de jantar estava vazia. Quando voltariam os guardas para desembaraçar a mesa e então notar o desaparecimento dos objetos subtraídos? As portas fecharam-se e o cabineiro ficou diante dos botões, de modo que Bond não pôde ver qual deles teria sido apertado. Sabia apenas que estavam, subindo, e tentou fazer um cálculo da distância percorrida. O elevador parou, e Bond teve a impressão de que o tempo gasto naquele percurso fora menor do que quando descera juntamente com Honeychile. As portas abriram-se para um corredor sem tapete, com uma pintura cinzenta e rústica nas paredes de granito. Esse corredor ia numa linha reta até uma distância de vinte metros.

— Espere aí — disse o guarda de Bond para o cabineiro — voltarei logo.

Bond foi conduzido ao longo do corredor, passando diante de portas marcadas com letras do alfabeto. Ouvia-se um leve zunido de maquinaria no ar, e, por trás de uma porta, Bond teve a impressão de ouvir descargas estáticas de equipamento eletrônico. Aquilo parecia vir da sala de máquinas, no coração da montanha. Logo chegaram à porta da extremidade do corredor que estava marcada com um Q negro. Ela estava entreaberta, de modo que logo se escancarou quando Bond foi empurrado através dela. Por trás daquela porta estava uma cela pintada de cinzento, com cerca de quinze pés quadrados. Nela nada havia, a não ser uma cadeira de madeira, sobre a qual estavam, lavadas e cuidadosamente dobradas, as calças pretas de Bond e a sua camisa azul.

O guarda soltou os braços de Bond, que logo se voltou e olhou para o rosto amarelo, sob os cabelos ondeados. Havia um leve sinal de curiosidade e prazer nos olhos marrons e úmidos. O homem estava de pé, segurando a maçaneta da porta. — Bem, aqui estamos, rapaz. Você está no ponto de partida. Poderá ficar aí sentado, apodrecendo, ou procurar uma saída e iniciar a corrida. Felicidades para você.

Bond pensou que valeria a pena tentá-lo. Deu ainda uma olhadela para além do guarda, onde o cabineiro ainda se conservava ao lado de suas portas abertas, observando-os.

Então disse suavemente: — Você não gostaria de ganhar dez mil dólares, garantidos, e uma passagem para qualquer lugar do mundo que desejasse? — Dito isso, observou cuidadosamente as reações do homem. A boca se abriu numa ampla careta, mostrando dentes escurecidos, desigualmente gastos pelos anos de mascagem de cana-de-açúcar.

— Muito obrigado, senhor. Prefiro continuar vivendo. — O homem fez menção de fechar a porta e Bond ainda gritou ansiosamente: — Podemos sair juntos daqui.

Os grossos lábios fizeram uma careta de desprezo, e o homem apenas disse: “Vá em frente!” E logo a porta se fechou com um duro estalido.

Bond deu de ombros, mas logo passou a examinar a porta. Era feita de metal e não havia maçaneta do lado de dentro. Bond preferiu não experimentar o ombro de encontro àquela barreira. Aproximou-se da cadeira, sentou-se sobre a pilha de suas roupas limpas, e olhou à volta da cela. As paredes eram inteiramente nuas, com exceção de uma grade para ventilação, feita de arame grosso, num dos cantos, logo abaixo do teto. Aquela abertura era maior que os seus ombros. Era, evidentemente, a entrada para a pista dos obstáculos. A única abertura restante, naquele recinto, era uma espécie de vigia de espesso vidro, logo acima da porta, e que não seria maior do que a cabeça de Bond. A luz, vinda do corredor, atravessava aquela grade e penetrava na cela. Nada mais havia. Não seria inteligente perder tempo. Seriam dez e meia. Lá fora, em alguma parte da falda da montanha, a jovem já deveria estar deitada, estendida sobre o chão, à espera do matraquear das pinças no coral cinzento. Bond apertou os dentes ao pensamento daquele corpo frágil e indefeso sob as estrelas. Bruscamente, pôs-se de pé. Que diabo estava ele fazendo ali sentado? O que quer que existisse do outro lado da grade deveria ser imediatamente enfrentado.

Bond apanhou a faca e o isqueiro, e tirou o quimono. Em seguida vestiu as calças e a camisa, enfiando o isqueiro no bolso. Experimentou o corte da faca com o polegar, e verificou que a lamina era bastante afiada. Seria ainda melhor se pudesse fazer uma ponta naquela lâmina. Ajoelhou-se no chão e começou a esfregar a extremidade arredondada da faca na laje do pavimento. Depois de um precioso quarto de hora, deu-se por satisfeito. Não era um estilete, mas que tanto serviria para cortar como para espetar. Colocou-a então entre os dentes e arrastou a cadeira para baixo da abertura gradeada. A grade? Supondo que pudesse arrancá-la pela base, aquele arame bem poderia ser esticado, de modo a formar uma lança, facultando-lhe assim uma terceira arma. Bond esticou os braços, com os dedos encurvados.

A coisa imediata de que tomou consciência foi uma dor de queimadura ao longo do braço e o choque de sua cabeça, ao atingir o chão de pedra. Ficou durante algum tempo estendido no solo, apenas com a lembrança de uma faísca azulada e o estalido e o chiado seco de eletricidade.

Depois de algum tempo, Bond pôs-se de joelhos e assim ficou por um momento. Em seguida baixou a cabeça e sacudiu-a lentamente de um lado para outro, como um animal ferido. Sentiu um leve odor de carne queimada. Levantou a mão direita à altura dos olhos e viu a mancha vermelha de uma queimadura aberta ao longo da parte interna dos dedos. A visão daquele ferimento trouxe-lhe também a consciência da dor. Bond proferiu uma imprecação. Vagarosamente pôs-se de pé. Dessa vez, olhou de soslaio, cautelosamente, para a grade, como se ela fosse feri-lo novamente. Irritado, encostou a cadeira na parede, apanhou a faca e com ela cortou uma faixa do quimono, envolvendo-a firmemente nos dedos. Em seguida tornou a subir na cadeira e olhou para a grade. Esperava-se que ele a atravessasse, e aquele choque tinha sido calculado apenas para amolecê-lo: era uma amostra do que estaria por vir. Com certeza o curto-circuito causado por ele já tinha posto fora de combate aquela armadilha. Olhou para a grade apenas por um instante, e já os dedos de sua mão esquerda a atingiam e atravessavam. Do outro lado não havia nada. Seria mesmo só aquela grade? Puxou a armação e ela cedeu uma polegada. Fez novo esforço e a grade foi arrancada do lugar, ficando pendurada por dois fios de cobre que desapareciam no interior da parede. Bond soltou a grade das pontas daqueles fios e desceu da cadeira. Havia um ponto de junção no arame de ferro, naquela grade, e Bond pôs-se a retificá-la, usando a cadeira como martelo.

Depois de dez minutos tinha à sua disposição um chuço recurvado de cerca de um metro de comprimento. Uma des extremidades, que tinha sido originalmente cortada por alicates, apresentava-se lacerada. Não atravessaria as roupas de um homem, mas teria efeito devastador no pescoço ou no rosto. Lançando mão de toda sua força e servindo-se da fresta inferior da porta metálica, Bond conseguiu fazer ainda um gancho com a extremidade rombuda daquele arame de ferro. Em seguida mediu-o com a perna e achou que aquela nova arma era demasiado longa. Em conseqüência, dobrou-a em dois e enfiou-a numa das pernas da calça. Agora, o chuço ia de sua cintura, onde fora pendurado, até o joelho. Voltou então para a cadeira e tornou a subir até a boca do ventilador, agora desobstruída. Não experimentou mais choque. Ergueu o corpo e introduziu-o naquele tubo que tinha mais quatro polegadas que a largura de seus ombros. Durante algum tempo deixou-se ficar, de barriga para baixo, a olhar para o interior da abertura. O túnel era circular e de metal polido. Bond apanhou o isqueiro, abençoando a inspiração que o fizera roubá-lo, e acionou-o. Sim, aquilo era folha de zinco que parecia nova. O túnel continuava em linha reta, sem qualquer característica especial, a não ser as costuras de junção das várias seções tubulares. Bond tornou a meter o isqueiro no bolso e foi-se arrastando para a frente.

Aquele deslizamento não foi difícil, e até mesmo uma brisa fresca, proveniente do sistema de ventilação, afagava o rosto de Bond. O ar não trazia nenhum cheiro de mar, sendo o seu odor o mesmo que caracteriza o ar de uma instalação de condicionamento de temperatura. O Dr. No devia ter lançado mão de um dos tubos do sistema para as suas experiências. Mas que armadilhas teria introduzido naquele tubo, a fim de pôr à prova as suas vítimas? Deviam ser engenhosas e dolorosíssimas — imaginadas para reduzir a resistência de suas vítimas. No final dos obstáculos, com certeza, a vítima seria surpreendida com o golpe de misericórdia — se é que lograsse chegar ao fim. Com efeito, haveria ali algo que não admitisse escapatória, pois nessa corrida não haveria prêmios, mas apenas padecimentos. A não ser, naturalmente, que o Dr. No tivesse subestimado a vontade de sobrevivência de seu desafeto. Essa, pensou Bond, era a sua única esperança — tentar vencer todos os obstáculos que se lhe deparassem, rompendo pelo menos até a última estacada.

Havia uma pálida luminosidade à sua frente. Bond foi-se arrastando cautelosamente, com todos os seus sentidos atuando como antenas. Aquela luminosidade foi-se tornando mais clara. Era o reflexo da luz que incidia sobre um dos lados da extremidade do tubo. Continuou avançando até que sua cabeça tocou naquela extremidade. Aí, Bond se torceu sobre as costas e olhou para cima. Sobre sua cabeça estava uma chaminé de cerca de cinqüenta metros de altura, em cujo topo havia uma claridade estável. Era como se alguém olhasse através de um comprido cano de canhão. Bond enfiou a cabeça por aquela chaminé e pôs-se de pé. Então, esperava-se que ele galgasse aquele tubo liso, sem qualquer apoio para os pés! Seria possível? Bond expandiu os ombros. Sim, eles lhe proporcionariam uma boa adesão às paredes laterais. Seus pés também o ajudariam na empreitada, embora escorregassem terrivelmente, a não ser nas orlas em que se soldavam os tubos. Bond deu de ombros e tirou os sapatos. Não adiantava monologar. Teria apenas que tentar.

Seis polegadas de cada vez, e o corpo de Bond começou a deslizar pela chaminé acima. A operação consistia em expandir os ombros para se fixar à chaminé, depois levantar os pés, unir os joelhos fortemente, e forçar os pés para fora, em direções opostas, contra o metal, e rapidamente contrair e expandir os ombros novamente, ao mesmo tempo que os pés escorregavam para baixo, deixando, entretanto, como saldo uma pequena progressão de algumas polegadas. E continuar repetindo, repetindo e repetindo a operação, até que os seus olhos fossem banhados pela luz que vira no topo da chaminé. De quando em quando pararia na saliência da solda dos tubos, a fim de descansar um pouco, recuperar o fôlego e medir o próximo avanço. E não havia que olhar para cima; apenas concentrar-se nas polegadas de metal que deveriam ser vencidas, uma a uma. Nada de preocupações com a luminosidade que pareceria nunca aumentar ou se aproximar. Também não deveria preocupar-se com a possibilidade de afrouxar a pressão dos ombros contra as paredes metálicas, indo esmagar os tornozelos no fundo da chaminé. E nenhuma preocupação com cãibras, com o inchaço dos ombros ou com as esfoladuras dos pés. Apenas ataque às polegadas prateadas, conquistando-as uma a uma.

Mas logo os pés começaram a suar e escorregar de modo desesperador. Por duas vezes Bond perdeu um metro, em virtude do escorregamento de seus ombros, que ficaram terrivelmente escalavrados com o atrito, antes de poder conseguir a freagem. Em certa altura teve mesmo que se deter durante algum tempo para esperar que o suor secasse com a corrente de ar que descia pela chaminé. Essa pausa durou dez minutos, durante os quais ele se viu apagadamente refletido na superfície metálica, com o rosto dividido ao meio pela faca que segurava entre os dentes. Ainda assim recusou-se a olhar para cima, a fim de ver quantos metros teria que vencer. Aquela derradeira seção poderia ser muito longa. Cuidadosamente Bond esfregou cada pé num cano de calça e recomeçou a batalha.

Agora, parte de sua mente sonhava, enquanto a outra se empenhava na luta. Nem mesmo estava consciente de que a luminosidade se ia acentuando lentamente e que a brisa se tornava mais forte. Via-se apenas como uma lagarta ferida, arrastando-se por um cano de descarga em direção a um ralo de banheira. O que veria quando atravessasse o ralo? Uma jovem nua se enxugando? Um homem fazendo a barba? A luz do sol filtrando-se para dentro de um banheiro Vazio?

A cabeça de Bond bateu de encontro a alguma coisa. O ralo estava obstruindo o orifício! O choque do desapontamento fez que escorregasse uma polegada, antes que seus ombros pudessem retê-lo firmemente. Então compreendeu que tinha chegado ao topo da chaminé! Agora notava a luz forte e o vento impetuoso. Ansiosamente, ele se alçou novamente até que a cabeça tocou em algo. O vento soprava contra sua orelha esquerda. Cautelosamente, voltou a cabeça para essa direção. Era outro tubo lateral. Acima de sua cabeça a luz se escoava através de uma espessa vigia. Tudo o que tinha a fazer era contornar aquela derivação, agarrando-se à orla do novo tubo, e, de qualquer maneira, encontrar forças para se introduzir naquele túnel lateral. Então poderia descansar um pouco, deitado.

Com redobrada cautela, nascida do pânico de que algo agora podia acontecer, de que poderia cometer um erro e ser precipitado no fundo da chaminé, Bond empreendeu a manobra, com suas últimas reservas de forças, e introduzindo-se na nova caverna caiu estirado com o rosto para baixo.

Mais tarde — quanto tempo mais tarde? — os olhos de Bond se abriram e seu corpo estremeceu. O frio o tinha despertado da total inconsciência em que o seu corpo o teria lançado. Penosamente, virou-se de costas, com pés e ombros doendo terrivelmente, e procurou reunir todas as forças mentais e físicas. Não tinha a mínima idéia da hora ou do lugar em que estaria no interior da montanha. Levantou a cabeça e olhou para trás, em direção à vigia, sobre o tubo vertical, do qual escapara. A luz era amarelada e o vidro parecia muito grosso. Lembrou-se da vigia existente na sala Q. Aquela vigia era absolutamente inquebrável, e esta também o seria, pensou ele.

Subitamente, por trás daquele vidro, distinguiu movimento. Enquanto observava, um par de olhos se materializaram, por trás de lâmpadas elétricas. Aqueles olhos pararam e fitaram-no, com o farolete parecendo um nariz entre aqueles dois olhos. Fixaram-no negligentemente e depois desapareceram. Os lábios de Bond explodiram numa imprecação. Então o seu progresso estava sendo observado para ser levado ao conhecimento do Dr. No.

Bond disse em voz alta: “Para o diabo com todos eles!”,, e voltou-se colérico sobre o ventre. Levantou a cabeça e olhou para a frente. O túnel desaparecia na escuridão. Para a frente! Não adianta nada perder tempo aqui. Apanhou a faca, colocou-a entre os dentes e foi abrindo caminho.

Em breve já não havia mais nenhuma luminosidade. Bond detinha-se de quando em quando para acender o isqueiro mas nada encontrava a não ser trevas. O ar começou a se tornar mais cálido, dentro do túnel, e, depois de uns cinqüenta metros talvez, decididamente quente. Havia mesmo cheiro de calor no ar, de calor metálico. Bond começou a suar.. Dentro de alguns minutos seu corpo estava completamente encharcado e ele tinha que parar para limpar os olhos. Deu uma volta à direita, no tubo, e, na nova seção, sentiu o metal bastante quente contra a sua pele. O cheiro de calor metálico era agora bem acentuado. Assim que enfiou a cabeça no novo túnel, tirou o isqueiro do bolso, acendeu-o e rapidamente recuou. Amargamente, considerou a nova dificuldade, medindo-a e amaldiçoando-a. A chama de seu isqueiro tinha iluminado uma seção de tubos de zinco descolorido. A nova dificuldade seria o calor!

Bond resmungou alto. Como a sua carne já esfolada poderia resistir àquilo? Como poderia proteger a pele contra o metal? Mas não havia solução satisfatória. Ou voltaria, ou continuaria ali parado ou, afinal, avançaria. Não havia outra decisão a tomar. Aliás, Bond começava a encontrar algum consolo em suas reflexões. Com efeito, não seria o calor que haveria de matá-lo, mas alguma mutilação. O metal aquecido não seria o seu campo de sacrifício — apenas mais uma prova para medir-lhe a resistência.

Bond pensou na jovem e no que ela estaria sofrendo. Oh, sim, para a frente com aquilo. Agora, vejamos...

Bond apanhou a faca e cortou toda a parte da frente da camisa, fazendo com ela várias faixas. A única esperança estaria em dar alguma proteção às partes de seu corpo que mais sofreriam a ação do calor, isto é, os pés e as mãos. Seus joelhos e cotovelos teriam de resistir apenas com a proteção normal da fina camada de roupa. E, assim, dispôs-se à luta, amaldiçoando-a.

Agora estava pronto. Um, dois, três...

Bond dobrou o ângulo do túnel e lançou-se contra o foco de calor.

Mantenha a barriga nua distante do chão! Contraia os ombros! Mãos, joelhos, pés; mãos. joelhos, pés. Mais depressa! Mais depressa! Sempre mais depressa, de modo que cada toque contra o chão seja rapidamente seguido por outro.

Os joelhos é que mais estavam sofrendo, agüentando a maior parte do peso do corpo. Agora, as mãos envoltas em panos estavam começando a chamuscar. Acendeu-se uma fagulha, e logo outra, e em seguida surgiram chamas, quando as fagulhas começaram a se deslocar. A fumaça que saía daquele envoltório de pano de suas mãos fazia que os seus olhos ardessem penosamente. Por Deus, ele não agüentaria mais! Não havia mais ar. Seus pulmões estavam a ponto de estourar. Agora as suas duas mãos estavam lançando fagulhas para os lados. O tecido devia estar quase acabado; então a carne começaria a queimar. Bond deu um guinada e seu ombro ferido tocou no metal. Um grito de dor ecoou no túnel, logo seguido de outros gritos proferidos regularmente, quando suas mãos, pés ou joelhos tocavam no metal escaldante. Agora ele estava liquidado. Era o fim. Mais alguns segundos e iria cair de borco, morrendo literalmente queimado. Não! Devia opor um supremo esforço de reação, ainda que aos berros, até que toda a carne tivesse sido queimada até os ossos. A pele dos joelhos já devia ter sido completamente destruída. Mais um pouco e as palmas de suas mãos estariam tocando no metal. Apenas o suor que corria de seus braços poderia manter úmido o pano de suas mãos. Grite, grite, grite! Isto aliviará a dor.” Isto dirá que você está vivo. Continue! Continue! Não pode durar muito mais. Não é aqui que você deverá morrer. Não fraqueje! Você não pode!

A mão direita de Bond tocou em alguma coisa que cedeu. Logo sentiu uma corrente de ar frio. A outra mão bateu então em sua cabeça. Ouviu-se um débil ruído. Bond sentiu a orla inferior de um anteparo de amianto, articulado na parte superior do tubo, e que agora se arrastava em suas costas. Tinha vencido aquela prova. Ouviu o barulho daquele anteparo fechando-se novamente, depois de ter dado passagem a todo o seu corpo. Suas mãos estavam agora encostadas numa sólida parede. Com os dedos, apalpou à direita e à esquerda. Era um desvio em ângulo reto. Seu corpo seguiu cegamente volta do desvio e o ar frio parecia penetrar em seus pulmões como lâminas de aço geladas. Prudentemente, encostou os dedos no metal. Estava frio! Com um gemido Bond caiu sobre o rosto e ficou quieto.

Algum tempo depois, a dor tornou a reavivá-lo. Bond voltou-se dolentemente, de costas. Vagamente notou uma vigia de vidro acima de sua cabeça, e vagamente percebeu aquele mesmo par de olhos a fitá-lo. Depois, deixou novamente que as ondas de trevas o submergissem.

Aos poucos, na escuridão, as bolhas feitas em toda a pele e os pés e ombros queimados começaram a endurecer. O suor tinha-se secado no corpo e nos farrapos da roupa, enquanto o ar penetrara nos pulmões superaquecidos, começando o seu insidioso trabalho. Mas o coração continuava batendo, forte e regularmente, por dentro da torturada carcaça, e os poderes mágicos do oxigênio levaram nova vida para dentro das artérias e veias, recarregando os nervos.

Depois de um tempo que lhe pareceu infinito, Bond despertou. Estremeceu, e, ao encontrarem-se os seus olhos com o outro par que o espreitava, por trás do vidro, a dor se apoderou dele e sacudiu-o como se fosse um rato. Esperou que aquela descarga de dor o matasse. Tentou novamente, e novamente, até que conseguiu aquilatar toda a força do adversário. Em seguida, para esconder-se da testemunha, voltou-se sobre o estômago e resistiu a toda a dor que vinha de dentro de si próprio. Continuou em expectativa, explorando o corpo para verificar-lhe as reações, pondo à prova a força de decisão que ainda tivesse restado nas baterias. Quanto mais poderia ainda agüentar? Os lábios de Bond desprenderam-se dos dentes e ele rosnou na escuridão. Era um som animal. Tinha chegado ao fim de suas reações humanas à dor e à adversidade. O Dr. No o tinha encurralado. Mas ainda restavam reservas de desespero animal e, num animal forte, essas reservas são consideráveis.

Lentamente, em verdadeira agonia, Bond deslizou mais alguns metros para fora do campo visual daqueles olhos e procurou o seu isqueiro, acendendo-o. À sua frente via apenas uma lua cheia negra, a boca circular que o levaria ao estômago da morte. Bond guardou o isqueiro, respirou profundamente e pôs-se sobre os joelhos e mãos. A dor não foi maior, apenas diferente. Lentamente, com movimentos duramente articulados, avançou.

O tecido de algodão de seus joelhos e de seus cotovelos tinha sido completamente queimado. Entorpecidamente, seu cérebro foi registrando a umidade à medida que suas bolhas se abriam contra o metal frio. Enquanto se movia, ia simultaneamente flexionando os dedos e os pés, sentindo-lhes a dor. Lentamente foi sabendo o que poderia fazer, o que doeria menos. Esta dor é suportável, refletiu ele consigo mesmo. Se eu tivesse sofrido um desastre de avião, eles diagnosticariam apenas contusões e queimaduras superficiais. Teria alta do hospital dentro de alguns dias. Não há nada de sério comigo. Sou um sobrevivente de desastre. Dói, mas não é nada. Pense nos pedaços de carnes dos outros passageiros. Dê-se por feliz. Tire isso de sua cabeça. Mas, por trás de todas essa reflexões, estava o pensamento de que, em verdade, ele ainda não experimentara o desastre, — que ainda estava a caminho dele, com sua resistência e sua capacidade muito reduzidas. Quando chegaria ele? Que caráter teria? E quanto mais ainda seria ele amolecido antes de chegar à arena do sacrifício?

à frente, na escuridão, aqueles pequeninos pontos vermelhos bem poderiam ser uma alucinação, manchas rubras diante de seus olhos, causadas pela exaustão. Bond parou e apertou os olhos. Balançou a cabeça. Não, aqueles pontinhos vermelhos ainda estavam lá. Vagarosamente, arrastou-se para mais perto deles. Agora não havia dúvida de que eles se estavam movendo. Bond deteve-se novamente. Alem das batidas de seu coração, ouvia uma espécie de murmúrio suave e delicado. Aqueles pontinhos do tamanho de uma cabeça de alfinete tinham aumentado. Agora haveria vinte ou trinta, deslocando-se para a frente e para trás, alguns rapidamente, outros mais vagarosamente, em todo o círculo negro que o esperava à frente. Susteve o fôlego, assim que conseguiu acender o isqueiro. Os pontinhos vermelhos tinham desaparecido. Substituindo-os, ele viu a um metro de distância, à sua frente, uma tela muito fina, quase da finura de musselina, bloqueando o túnel.

Bond continuou deslocando-se por centímetros, para diante, com o isqueiro aceso à frente. Aquilo era uma espécie de gaiola, com pequeninos animais no seu interior. Podia ouvir aqueles diminutos seres fugindo à luz. A um pé apenas da tela apagou a luz e esperou que seus olhos se acostumassem à escuridão. Enquanto esperava, escutando, pôde ouvir novamente os pequeninos animais aproximarem-se dele, e, gradualmente, aquela floresta de pequeninos pontinhos vermelhos começou a se juntar, fitando-o através da tela.

Que seria aquilo? Bond ouviu seu coração bater com força. Serpentes? Escorpiões? Centopéias?

Cuidadosamente, foi aproximando os olhos daquela floresta de pontos luminosos. Aproximou o isqueiro bem junto da tela e acendeu-o bruscamente. Pôde apreender, num relance, a visão de pequeninas patas que atravessavam a tela e de dezenas de pés cabeludos e de ventres igualmente cabeludos com a forma de sacos, tendo em determinado ponto grandes cabeças de insetos que pareciam cobertas de olhos. Os animais fugiam em precipitada corrida, abandonando a tela da frente para irem refugiar-se na extremidade oposta da gaiola, formando uma só massa cinza-marrom.

Bond olhou através da tela, movendo o isqueiro para a frente e para trás. Depois apagou-o para economizar gasolina, e deixou que a respiração saísse por entre os dentes, num tranqüilo suspiro.

Eram aranhas, gigantescas tarântulas, de três ou quatro polegadas de comprimento. Haveria umas vinte delas dentro daquela gaiola. E, de qualquer maneira, ele teria que passar por perto delas.

Bond ficou parado, descansando e pensando, enquanto os olhos vermelhos se iam reunindo outra vez diante de seu rosto.

Qual seria o grau de letalidade daqueles animais? Quanto das lendas em torno delas seria mito? Certamente que podiam matar animais, mas em que medida seriam mortais para o homem aquelas gigantescas aranhas? Bond deu de ombros. Lembrou-se da centopéia. O toque das tarântulas seria muito mais suave. Seriam como o toque das patas de ursinhos de brinquedo contra a pele humana — até que mordessem e esvaziassem os seus folículos venenosos no organismo da pessoa.

Mas, ainda aqui, seria esta a arena do sacrifício derradeira, montada pelo Dr. No? Uma mordida ou duas, talvez, para mandar uma pessoa para um delírio de dor. O horror de ter que atravessar a tela no escuro — o Dr. No não teria pensado no isqueiro de Bond — varando aquela floresta de olhos, esmagando alguns corpos moles mas sentindo as picadas de outros. E depois mais picadas das que tivessem ficado presas à roupa. Em seguida, a lenta agonia do veneno. Este deveria ter sido o caminho percorrido pela imaginação do Dr. No — para que a vítima prosseguisse aos gritos pelo seu caminho. Para quê? Para a barreira final?

Mas Bond tinha o isqueiro, a faca e o chuço de arame. Tudo o que iria precisar era nervos e uma precisão infinita.

Delicadamente abriu a tampa do isqueiro e, com o polegar e indicador, fez sair o pavio uma polegada. Acendeu-o, e quando as aranhas recuaram, furou a tela com a faca. Fez um buraco na armadura e cortou para os lados. Depois, apanhou a aba da tela, que assim se desprendera, e arrancou-a da armadura. A tarefa não foi difícil, pois a aba fendeu-se numa só peça, com um tecido de algodão. Tornou a colocar a faca entre os dentes e atravessou a abertura. As aranhas recuaram diante da chama e amontoaram-se umas sobre as outras. Bond retirou o chuço de arame de dentro das calças e bateu com o arame dobrado sobre aqueles corpos moles. Bateu e tornou a bater ferozmente, reduzindo os aracnídeos a uma pasta informe. Quando algumas das aranhas tentaram escapar em sua direção, ele acenou-lhes com a chama e esmagou as fugitivas, uma a uma. Agora, as aranhas vivas estavam atacando as mortas, e tudo quanto Bond tinha a fazer era terminar o massacre.

Lentamente todos aqueles movimentos convulsivos foram declinando até cessarem completamente. Estariam todas mortas? Estariam algumas simulando morte? A chama do isqueiro estava começando a morrer. Teria que enfrentar o risco. Avançou mais um pouco e atirou aquela massa escura e pegajosa para um lado. Depois tirou a faca de entre os dentes e abriu a segunda cortina, puxando a aba cortada para cima da pasta feita com os corpos das tarântulas. A chama bruxuleou e tornou-se apenas um revérbero vermelho. Bond reuniu suas forças, atirou o corpo sobre a massa encoberta e atravessou a segunda tela.

Não sabia se teria posto os joelhos e cotovelos sobre limalhas metálicas ou sobre as aranhas. Tudo o que sabia é que tinha atravessado aquela barreira. Arrastou-se ainda por alguns metros para a frente, no interior do túnel, e depois parou para descansar e reunir coragem.

Sobre a sua cabeça veio uma pálida luz. Bond torceu-se para um lado, ficando de costas, para ver o que já esperava. Os olhos amarelos e amendoados fixavam-no com profundo interesse. Lentamente, por trás do farolete, a cabeça moveu-se de um lado para outro. As pálpebras caíram numa piedade fingida. Um punho cerrado, com o polegar apontando para baixo, à guisa de despedida e aniquilamento, interpôs-se entre o farolete e o vidro. Em seguida foi retirado e a luz apagou-se. Bond voltou o rosto para baixo e descansou a testa no chão metálico e frio. Aquele gesto dizia-lhe que ele estava chegando ao obstáculo final, que os seus algozes tinham dado por encerradas as observações até virem recolher os seus restos. Bond sentiu ainda que naquele rosto não houvera um único indício de louvor pelo fato de ter logrado sobreviver até aquela etapa. Aqueles chineses negros odiavam-no. Apenas queriam que ele morresse, e tão miseravelmente quanto possível.

Os dentes de Bond bateram suavemente. Ele pensara na jovem e este pensamento dera-lhe forças. Ainda não estava morto. Que diabo! Ele não iria morrer! Não enquanto o coração não lhe fosse arrancado do corpo.

Bond retesou os músculos. Era tempo de continuar, a investida. Com redobrado cuidado, recolocou as armas em seus lugares, e penosamente recomeçou a avançar pela escuridão.

O túnel começava a inclinar-se ligeiramente para baixo, o que tornava a progressão mais fácil. Logo a inclinação tornou-se tão acentuada que Bond podia deslocar-se apenas em virtude de seu peso. Era uma bênção não ter que fazer aquele esforço derradeiro com os músculos. Vislumbrou um clarão acinzentado à sua frente, pouco mais que uma redução das trevas completas, mas aquilo prenunciava uma mudança, pois a qualidade do ar parecia diferente. Havia nele um odor novo. O que seria? O mar?

Súbito, Bond compreendeu que estava escorregando para baixo, ao longo do túnel. Expandiu os ombros e abriu os pés, procurando impedir a queda. Aquele esforço causou-lhe terríveis dores e o efeito foi mínimo. Agora o túnel começava a alargar-se e ele já não poderia mais diminuir o impulso da queda! Seu deslizamento tornava-se mais e mais acelerado. Agora via uma curva à frente — e era uma curva dirigida para baixo.

O corpo de Bond logo chegou. àquela curva e contornou-a. Deus do céu, ele estava mergulhando de cabeça para baixo! Desesperadamente, abriu os braços e pernas. O metal esfolou sua pele. Agora tinha perdido completamente o controle da situação e estava mergulhando para baixo, sempre pára baixo, no interior de um cano de canhão. Muito abaixo havia um circulo de luz cinzenta. Seria o ar livre? O mar? A luz subia vertiginosamente para ele! Lutou para recuperar o fôlego. Continue vivo, idiota! Continue vivo!

Primeiro a cabeça, e logo depois o corpo de Bond precipitaram-se pelo espaço, vencendo aceleradamente a distância de mais de cem pés que o separava da superfície do mar.


XVIII - ARENA DE SACRIFÍCIO


O corpo de Bond espadanejou o espelho de um mar de alvorada como o impacto de uma bomba.

Enquanto descia precipitadamente pelo tubo prateado, em direção ao disco de luz, o instinto dissera-lhe que retirasse a faca de entre os dentes e que pusesse as mãos para a frente, a fim de aparar a queda, assim como a cabeça para baixo e o corpo rígido. E, na última fração de segundo, quando ele viu o mar que se alteava ao ritmo das ondas, procurou sorver uma longa inspiração. En conseqüência, projetou-se na água como se estivesse dando um mergulho, com os braços estendidos abrindo-lhe um buraco através do qual passaram a sua cabeça e o corpo. Conquanto, quando chegou a vinte pés de profundidade, tivesse perdido os sentidos, o despencar a sessenta e cinco quilômetros por hora não conseguira matá-lo.

Lentamente o corpo foi voltando à superfície, e ficou, com a cabeça para baixo, a balançar-se suavemente nas pequeninas ondas causadas pelo seu próprio mergulho. A água que penetrou nos pulmões de certa forma contribuiu para enviar uma última mensagem ao cérebro. As pernas e braços agitaram-se desajeitadamente. Agora tinha conseguido voltar a cabeça para cima, com a água escorrendo da boca. Tornou a afundar, mas dessa vez, instintivamente, as pernas começaram a mover-se procurando manter o corpo à superfície da água. Por fim, a cabeça, horrivelmente sacudida pela tosse, conseguiu vir para fora da água e assim manter-se. Os braços e as pernas começaram a agitar-se dèbilmente, com os movimentos natatórios de um cão, e através da cortina vermelha e negra, os olhos injetados de sangue viram a linha da vida e disseram ao dolente cérebro que visasse àquele objetivo.

A arena de execução era uma estreita e profunda enseada, na base de um elevado penhasco. A corda de salvamento em direção à qual Bond lutava, embaraçado pelo chuço metido em sua calça, era representada por uma forte tela de arame, que se estendia por dois lados do penhasco, protegendo aquela enseada do mar aberto. Aquela rede, formada de quadrados, estava suspensa a um grosso cabo situado a dois metros acima da superfície da água. Para baixo, a tela desaparecia nas profundezas, cheia de incrustações de algas.

Bond conseguiu chegar ao arame, e a ele agarrou-se como que crucificado. Durante quinze minutos deixou-se ficar na mesma posição, com o corpo de quando em quando sacudido por vômitos, até que se sentiu bastante forte para virar a cabeça e verificar onde estava. Ofuscadamente, os seus olhos tomaram a altura do penhasco, sobre sua cabeça. O lugar estava obscurecido por uma sombra cinzenta, projetada pela montanha, mas ao largo, no mar, havia uma iridiscência de pérola provocada pela aurora, o que significava que para o resto do mundo o dia estava amanhecendo. Mas onde Bond se encontrava era escuro e triste.

Lerdamente, a mente de Bond começou a se interrogar sobre aquela tela de arame. Qual seria a sua finalidade, fechando aquela escura enseada e separando-a do mar? Seria para manter alguma coisa do lado de fora ou para mantê-la do lado de dentro? Bond olhou vagamente para baixo, procurando penetrar as profundezas do mar, à sua volta. As malhas de arame perdiam-se no nada, sob os seus pés. Havia pequeninos peixes à volta de suas pernas, abaixo da cintura. Que estariam eles fazendo? Pareciam estar-se alimentando, avançando contra seu corpo e depois recuando com fiapos negros na boca. Fiapos de que? De algodão de seus farrapos? Bond sacudiu a cabeça para clarear as idéias. Tornou a olhar para baixo. Não, aqueles peixes estavam-se alimentando com seu sangue.

Bond estremeceu. Sim, o sangue estava escorrendo de seu corpo, dos ombros, dos joelhos, dos pés, e misturando-se à água. Agora, pela primeira vez sentiu a dor causada pela água salgada em suas feridas e queimaduras. A dor tornou-se mais viva e estimulou a sua mente. Se esses pequeninos peixes estavam gostando de seu sangue, o que dizer dos tubarões? Seria essa a finalidade daquela tela de arame, isto é, evitar que os peixes devoradores de seres humanos pudessem escapar para o mar? Então por que eles ainda não se tinham lançado sobre ele? Para o diabo! A primeira coisa a fazer era subir pelo arame e ganhar o outro lado. Interpor aquela tela entre ele e o que quer que vivesse naquele escuro aquário.

Dèbilmente, pé após pé, lá se foi Bond subindo pela tela, até chegar ao cume e passar para o outro lado, onde poderia descansar sem preocupações. Colocou o espesso cabo sob a axila, e olhou para baixo, contemplando os peixes que ainda se nutriam com o sangue que continuava gotejando de seus pés.

Agora já não havia muito em Bond; pouquíssimas reservas teria ele. O último mergulho no tubo, o choque da queda, na água, e a quase morte, causada por afogamento, tinham-no esmagado como a uma esponja. Estava prestes a entregar-se, prestes a soltar um pequeno suspiro e depois escorregar para os doces braços da água. Como seria bom abandonar-se, finalmente, e descansar — sentir que o mar suavemente o levava para o seu leito.

Foi a explosiva fuga dos peixes que estavam sorvendo o seu sangue, sob os seus pés, que despertou Bond de seu sonho de morte. Alguma coisa tinha-se movido muito abaixo da superfície. Havia uma trêmula claridade muito distante, mas que avançava lentamente para a superfície, aproximando-se pelo lado interno da tela.

O corpo de Bond se enrijeceu. Ante a iminência do perigo, a vida voltou-lhe num ímpeto, expulsando a letargia e comunicando-lhe renovada vontade de sobreviver.

Bond abriu os dedos aos quais, há muito, o seu cérebro ordenara que não perdessem a faca. Fechou os dedos e agarrou o cabo daquela lâmina. Abaixou-se em seguida e tocou no gancho do chuço que ainda se mantinha no interior da calça. Sacudiu vivamente a cabeça e ficou com os olhos alertas. E agora?

Sob os seus pés a água estremeceu. Alguma coisa estava-se debatendo, no fundo, alguma coisa enorme. Algo grande, de cor cinza luminescente, tornou-se visível, detendo-se muito abaixo da superfície, na escuridão. Alguma coisa se projetou daquela massa, em direção à superfície, algo como se fosse um chicote da grossura do braço de Bond. A extremidade daquela tira inchava-se numa terminação oval e achatada, com marcas semelhantes a botões distribuídos a espaços regulares. Aquele tentáculo rodopiou na água, no lugar em que os peixes tinham estado, e logo se encolheu. Agora só se via a grande sombra cinzenta lá embaixo da superfície. Que estaria fazendo o animal? Estaria...? Estaria provando o seu sangue?

Como que em resposta àquela pergunta, dois olhos, tão grandes quanto bolas de futebol, foram avançando para cima até se porem no campo de visão de Bond. Aqueles enormes olhos pararam vinte pés abaixo da superfície e olharam tranqüilamente para cima, fixando-se no rosto de Bond.

A pele de Bond ficou arrepiada nas costas. Sua boca deixou escapar um palavrão! Então, aquela era a Ultima surpresa do Dr. No, o fim da corrida!

Bond ficou de olhos abertos, meio hipnotizado, olhando para baixo. Então aquele era o polvo gigante, o monstro mítico que podia arrastar navios para as profundezas do mar, o monstro de cinqüenta pés de comprimento que podia dar combate às baleias e que pesava uma tonelada ou mais. O que mais sabia ele a respeito daqueles animais? Que tinham dois longos tentáculos para laçar e outros dez para agarrar; que tinham um enorme bico rombudo por baixo de olhos que eram os únicos olhos, entre os peixes, a trabalharem segundo o principio da câmara fotográfica, como os do homem: que seu cérebro era eficiente; que o monstro podia fugir para trás a uma velocidade de trinta nós, por um sistema de jato-propulsão. Sabia ainda que os arpões podiam afundar-se em sua manta de gelatina sem causar nenhum mal ao monstro, e que... mas os grandes olhos esbugalhados, que ofereciam um alvo negro e branco, estavam-se elevando em sua direção. A superfície da água estremecia. Agora Bond podia ver uma floresta de tentáculos que saíam da cara do animal. Ondulavam diante dos olhos do monstro como uma ninhada de grossas serpentes. Bond podia ver-lhe as ventosas sob os tentáculos. Atrás da cabeça, a grande aba da manta de gelatina abria-se e fechava-se suavemente, e, por trás dela, o brilho do corpo perdia-se nas profundezas. Por Deus, a coisa era tão grande quanto uma locomotiva!

Muito devagar e discretamente Bond foi enfiando os pés e depois os braços através dos quadrados da tela de arame, protegendo-se e ancorando-se tão sòlidamente que os tentáculos teriam que arrancá-lo dali aos pedaços ou então arrastar com ele todo aquele arcabouço de metal. Olhou para a direita e para a esquerda. Para qualquer lado, teria que vencer vinte metros, antes de chegar à terra. Mas, qualquer movimento, ainda que pudesse empreende-lo, séria fatal. Devia ficar absolutamente imóvel, rezando para que o monstro perdesse o interesse e se afastasse. Se ele não perdesse o interesse... Suavemente os dedos de Bond apertaram a pequenina faca.

Os olhos do monstro continuavam fitando-o, fria e pacientemente. Delicadamente, como a tromba de um elefante, um daqueles longos tentáculos laçadores emergiu da superfície e foi galgando a tela em direção às pernas de Bond. Tocou num de seus pés, e Bond sentiu o áspero beijo daquelas ventosas. Não se mexeu. Não ousava abaixar-se e afrouxar o enlaçamento de seus braços à volta do arame. Docemente as ventosas entraram em ação, experimentando o rendimento daquela presa. Não era bastante. Como uma gigantesca lagarta, o tentáculo foi subindo por sua perna. Parou à altura do joelho ensangüentado e deteve-se, interessado. Os dentes de Bond estalaram com a dor. Ele bem podia imaginar a mensagem que tinha descido por aquele tentáculo até o cérebro do animal: sim, é bom para comer-se! E a ordem de retorno ao tentáculo: então traga-o.

As ventosas continuaram subindo pela coxa. A extremidade do tentáculo se aflou e em seguida dilatou-se a ponto de quase cobrir toda a espessura da coxa de Bond. Depois reduziu-se à grossura de um pulso. Aquele seria o alvo de Bond. Apenas teria que agüentar a dor e resistir ao horror daquela acometida, esperando que esse pulso chegasse ao alcance de um golpe.

 

* *
Uma brisa, a primeira suave brisa da madrugada, soprou sobre a superfície metálica da enseada, levantando pequenas ondas que iam beijar a rocha do penhasco. Um bando de corvos marinhos alçou vôo da guaneira, quinhentos pés acima da enseada, e cacarejando suavemente, avançou em direção ao mar. Quando as aves passaram sobre a enseada, o barulho que as tinha perturbado chegou aos ouvidos de Bond — o tríplice apito de um navio, que indica estar a embarcação pronta para receber a carga. Aquele som chegava do lado esquerdo de Bond. O cais deveria estar situado a pequena distância contornando o braço setentrional da enseada. O navio procedente de Antuérpia tinha chegado. Antuérpia! Uma região do mundo exterior — um mundo que estava a um milhão de quilômetros de distância, fora do alcance de Bond — com certeza para sempre fora de seu alcance. Exatamente para além daquele braço rochoso a tripulação estaria no refeitório, tomando o seu desjejum. O rádio estaria tocando. Haveria o chiado do toicinho defumado e ovos na frigideira, o cheiro do café...


* * *


As ventosas estavam em sua coxa. Bond podia ver dentro daqueles cálices córneos. Um cheiro de maresia estagnada chegou-lhe às narinas, quando aquela mão vagarosamente serpenteou para cima. Seria muito duro o tecido gelatinoso cinza-escuro, por trás daquela mão? Deveria usar agora a faca? Não, o golpe deveria ser rápido e seguro, atingindo toda a espessura, como se se cortasse uma corda. Não importaria que a sua própria pele fosse atingida.

Agora! Bond lançou um rápido golpe de vista àqueles dois enormes olhos, lá embaixo, tão pacientes e tão negligentes. Nesse momento, o outro tentáculo elevou-se da superfície da água e avançou em direção ao seu rosto. Bond recuou a cabeça e a mão se enroscou num fio de arame diante de seus olhos. Num segundo aquela garra se deslocaria para um braço ou ombro, e ele estaria liquidado. Agora!

O primeiro tentáculo estava sobre suas costelas. Quase sem fazer pontaria, a mão de Bond que empunhava a faca caiu rapidamente para baixo e transversalmente. Sentiu a lâmina afundar naquele pudim carnoso, e quase deixou que ela escapasse de sua mão, quando o tentáculo ferido chicoteou pelo ar, desaparecendo na água. Por um momento o mar foi agitado à sua volta. Agora, o outro tentáculo abandonou o arame e agarrou-se ao seu ventre. A mão aflada prendeu-se como uma sanguessuga, com toda a força de sua sucção furiosamente aplicada. Bond gritou ao sentir o contacto daquelas ventosas em sua carne. Golpeou loucamente, mais e mais. Por Deus, o seu estômago estava sendo arrancado para fora! A tela agitou-se com a luta. Aos seus pés a água fervilhava e espumava. Ele teria que ceder. Um derradeiro golpe, desta vez nas costas daquela mão disforme. Deu resultado! A mão se agitou no ar e desceu serpeante, deixando vinte círculos vermelhos sangrando em sua pele.

Bond não tinha tempo para se preocupar com aquilo. Agora a cabeça do monstro tinha emergido, e os seus olhos brilhantes fixavam-se nele, avermelhados, enfurecidos, e a floresta dos tentáculos sugadores começava a envolver-lhe os pés e as pernas, dilacerando-lhe as roupas, para logo retornar aos seus membros. Bond estava sendo arrastado para baixo, polegada por polegada. O arame estava penetrando em suas axilas. Podia até mesmo sentir a sua espinha sendo distendida. Se ele continuasse resistindo seria partido ao meio. Agora, os olhos e o grande bico triangular estavam fora d’água, e o bico procurava o seu pé. Havia uma esperança, apenas uma!

Bond meteu a faca entre os dentes e sua mão procurou o gancho do chuço de arame. Agarrou aquela arma, e desdobrou-a com as suas duas mãos. Teria que soltar um dos braços para poder abaixar-se e se aproximar do alvo. Se falhasse, entretanto, seria reduzido a pedaços sobre a tela.

Agora, antes que morresse com a dor! Agora, agora! Bond deixou todo o seu corpo escorregar por aquela escada de arame, para baixo, e desferiu uma violenta estocada. Pôde ver que o pontaço de sua lâmina penetrava pelo centro de um enorme globo ocular negro, e imediatamente todo o mar se intumesceu para ele, como uma fonte de negrume, enquanto seu corpo se mantinha pendurado de cabeça para baixo, seguro pelos joelhos, com o rosto apenas uma polegada acima da superfície.

Que teria acontecido? Teria ficado cego? Não podia ver nada. Seus olhos estavam ardendo e havia um gosto horrível de peixe podre em sua boca. Contudo, podia sentir o arame cortando-lhe os tendões dos joelhos. Então devia estar vivo! Estonteado, Bond deixou que o chuço caísse de sua mão, e procurou o arame mais próximo. Depois, agarrou-se com a outra mão um pouco mais acima, e, assim, vagarosamente, foi-se alçando até que conseguiu sentar-se no cabo superior da cerca. Clarões de luz chegaram-lhe aos olhos. Passou uma das mãos pelo rosto. Agora podia ver. Fixou a sua mão: estava negra e pegajosa. Olhou para o seu corpo: estava também coberto por um lodo negro, e o preto tingia o mar numa extensão de vinte metros à sua volta. Então Bond compreendeu: o polvo ferido tinha esvaziado a sua bolsa de tinta contra ele.

Mas onde estava o monstro? Voltaria? Bond esquadrinhou o mar. Nada, nada além da enorme mancha negra que se continuava ampliando. Nem uma só ondulação! Então, nada de esperar! Fugir dali o mais depressa possível! Ansiosamente, Bond olhou para a direita e para a esquerda. Para a esquerda era na direção do navio, mas também na direção do Dr. No, enquanto para a direita seria para o nada. Para instalar aquela tela de arame, os trabalhadores deviam ter vindo da esquerda, na direção do cais. Devia haver algum caminho até ali. Bond começou a se deslocar frenèticamente pelo cabo superior, em direção à rocha, a vinte metros de distância.

O espantalho negro e sangrento movimentava os braços e pernas quase automaticamente. O aparelho pensante e sensorial de Bond já não fazia mais parte de seu corpo. Movia-se ao lado de seu corpo ou acima dele, mantendo apenas o contato necessário para puxar os cordéis que faziam o boneco trabalhar. Bond era como um verme secionado, cujas duas metades continuassem arrastando-se para a frente, conquanto a vida os tivesse abandonado para ser substituída pela vida ilusória dos impulsos nervosos. Apenas, no caso de Bond, as duas metades ainda não estavam mortas. A vida tinha somente se ausentado delas. Tudo quanto ele precisava era um grama de esperança, um grama de confiança, de convicção de que ainda valeria a pena tentar sobreviver.

Bond chegou à rocha, e lentamente desceu pela tela até a última malha. Contemplou vagamente o brilho palpitante da água. O mar estava negro e impenetrável. Deveria arriscar-se? Sem dúvida! Não podia fazer nada enquanto não tivesse lavado aquela camada de lodo e sangue, sem falar do horrível cheiro de peixe. Sombriamente, fatalisticamente, ele tirou os farrapos de sua camisa e calças, pendurando-os no cabo. Olhou para baixo, para seu corpo marrom e branco, salpicado de vermelho. Instintivamente, procurou sentir seu pulso, que se apresentava lento mas regular. As firmes palpitações de vida reanimaram o seu espírito. Por que diabo estava ele se lamuriando? Estava vivo. As feridas e machucaduras em seu corpo não eram nada — absolutamente nada. Eram horríveis, mas nada estava quebrado. Por dentro do invólucro maltratado, a máquina estava trabalhando serena e seguramente. Cortes superficiais e esfoladuras, recordações sangrentas, cansaço mortal — estes seriam ferimentos dos quais se riria uma enfermeira experiente. Para a frente, seu bastardo! Para a frente! Limpe-se e levante-se. Conte as suas bênçãos. Pense na jovem. Pense no homem que você deverá encontrar e matar. Agarre-se à vida como se agarrou à faca entre os dentes. Acabe com esta autopiedade. Para o diabo com o que acaba de acontecer! Para dentro d’água e lave-se!

Dez minutos mais tarde, Bond, com seus farrapos molhados colados ao corpo já esfregado, e com os cabelos repuxados para fora dos olhos, galgava o cimo do penhasco.

Sim, era como ele tinha imaginado. Uma picada estreita e rochosa, feita pelos pés dos trabalhadores, descia para o outro lado, contornando a saliência do penhasco.

Das proximidades chegaram vários sons e ecos. Um guindaste estava trabalhando. Podia ouvir os ritmos variáveis de seu motor. Ouviam-se os barulhos peculiares, aos navios de ferro, bem como o ruído da água que era lançada ao mar por uma bomba de porão.

Bond olhou para cima, para o céu, que estava de um azul pálido. Nuvens manchadas de ouro e reflexos rosados derivavam em direção ao horizonte. Muito acima dele, os corvos marinhos esvoaçavam em torno da guaneira. Em breve estariam fazendo-se ao mar, em busca de alimentos. Talvez, agora, mesmo, estivessem vigiando os grupos de reconhecimento, longe, sobre o mar, na faina de localizarem os peixes. Seriam cerca de seis horas — a aurora de um belo dia.

Bond, deixando gotas de sangue atrás de si, seguiu o seu caminho cuidadosamente pela picada abaixo, beirando o sopé do penhasco. Para além da curva, a picada se infiltrava por um terreno cheio de pedras espalhadas. Os ruídos iam-se tornando mais altos. Bond ia avançando cuidadosamente, evitando pisar em pedras. Uma voz se fez ouvir surpreendentemente perto: ‘”Pronto para largar?” E logo uma resposta distante: “Pronto”. O motor do guindaste acelerou. Mais alguns metros. Mais um pedregulho; e mais outro. Agora!

Bond se ocultou por trás da rocha e cautelosamente meteu a cabeça para fora, a fim de observar.

 

CONTINUA

XVI - HORAS DE AGONIA


Uma voz, por trás de Bond, disse serenamente: — O jantar está servido.

Bond voltou-se para trás. O anunciante fora o guarda-costas, que tinha a seu lado outro homem que bem poderia ser seu irmão gêmeo. Ali ficaram eles, duas barricas de musculatura, com as mãos mergulhadas nas mangas dos quimonos, olhando, por cima da cabeça de Bond, para o Dr. No.

— Ah, já nove horas. — O Dr. No levantou-se lentamente e disse: — Vamos. Podemos continuar a nossa conversação em ambiente mais íntimo. Foi muita bondade dos senhores terem ouvido a minha história com paciência tão exemplar. Espero que a modéstia de minha cozinha e de minha adega não representem mais uma imposição.

Portas duplas tinham sido conservadas abertas por trás dos dois homens de jaquetas brancas. Bond e a jovem atravessaram-nas seguindo o Dr. No, indo ter a uma sala octogonal, com as paredes recobertas de painéis de mogno, e ao centro um candelabro de prata, sob o qual estava posta uma mesa para três pessoas. O tapete simples, azul-escuro, era luxuosamente espesso. O Dr. No tomou a cadeira central, de espaldar alto, e indicou cortesmente, com uma inclinação, a cadeira à sua direita para a jovem. Sentaram-se e abriram guardanapos de seda branca.

A cerimônia vazia e a encantadora sala deixavam Bond louco. Ansiava por despedaçar tudo aquilo com as próprias mãos, por passar o seu guardanapo de seda à volta do pescoço do Dr. No e apertá-lo até que aquelas lentes de contato saltassem daqueles malditos olhos negros.

Os dois guardas usavam luvas de algodão branco. Serviram as iguarias com suave eficiência que era instigada por uma ocasional palavra chinesa proferida pelo Dr. No.

A princípio o Dr. No parecia preocupado. Lentamente, ingeriu três taças de diferentes sopas, utilizando-se de uma colher dotada de um cabo curto e que se adaptava perfeitamente entre as pinças de sua mão mecânica. Bond esforçou-se por esconder os seus temores da jovem. Sentou-se afetando uma atitude de relaxamento e comeu e bebeu com forçado apetite. Falou ainda animadamente com a jovem sobre Jamaica — sobre aves e animais, assim como fores, que constituíam fáceis assuntos de conversação para Honeychile. De vez em quando os seus pés tocavam nos dela, sob a mesa. Ela quase chegou a ficar alegre. Bond pensou que ambos estavam fazendo uma bela imitação de namorados comprometidos, que estivessem saboreando um jantar oferecido por um tio detestável.

Bond não tinha a mínima idéia sobre se o seu fraco blefe tinha surtido algum efeito. Assim, não deu grande importância às suas possibilidades. O Dr. No, assim como a sua história, eram perfeitamente impenetráveis. A incrível biografa parecia verdadeira. Nem uma só palavra daquele relato era impossível. Talvez houvesse outras pessoas no mundo com os seus reinos particulares — reinos afastados dos caminhos trilhados por homens comuns, sem testemunhas, onde pudessem fazer o que bem entendessem. E que estaria planejando fazer o Dr. No, depois que tivesse esmagado as moscas que tinham vindo incomodá-lo? E se eles fossem mortos — e quando o fossem — Londres conseguiria recolher os fios que ele, Bond, tinha recolhido? Provavelmente conseguiria. Lá estava Pleydell-Smith, e as provas das frutas envenenadas. Mas até onde a substituição de Bond iria afetar o Dr. No? Não muito. O Dr. No daria de ombros ao desaparecimento de Bond e Quarrel. Nunca teria ouvido falar deles. E não haveria qualquer elo com a jovem. Em Porto Morgan, todos pensariam que ela se tinha afogado em suas expedições. Era difícil saber o que poderia interferir com o Dr. No — com o segundo capítulo de sua vida, qualquer que ele fosse.

Sob aquela conversa com a jovem, Bond foi-se preparando para o pior. Ao lado de seu prato havia algumas facas. Então chegaram as costeletas, perfeitamente cozidas, e Bond tocou em várias facas, hesitante, até que escolheu a do pão para cortá-las. Enquanto comia e conversava foi deslocando a grande lâmina de aço para perto do corpo. Um gesto largo da mão direita derrubou o seu copo de champanha e, numa fração de segundo, enquanto o copo se partia, sua mão esquerda enfiou a lâmina para dentro da manga do quimono. Em meio às suas desculpas, e à confusão que se seguiu, enquanto os guardas enxugavam a champanha derramada na mesa, Bond levantou o braço esquerdo e sentiu que a faca deslizava para baixo do braço e depois caía para dentro do quimono, ficando encostada às suas costelas. Quando acabou de comer as costeletas, apertou o cinto de seda, à volta da cintura, ao mesmo tempo que deslocava a faca para diante da barriga. A faca aninhou-se. confortàvelmente contra a sua pele e em pouco tempo o aço da lâmina foi-se tornando aquecido.

Por fim veio o café e a refeição foi dada por terminada. Os dois guardas se aproximaram e postaram-se por trás das cadeiras da jovem e de Bond. Tinham os braços cruzados sobre o peito, impassíveis, sem nenhum movimento, como carrascos.

O Dr. No pousou delicadamente a sua xícara no pires e descansou as duas pinças de aço sobre a mesa. Depois se endireitou um pouco na cadeira e virou o corpo, apenas uma polegada, em direção de Bond. Agora não havia o mínimo sinal de preocupação em seu rosto. Os olhos eram duros e diretos. A boca fina contraiu-se e abriu-se: — Apreciou o jantar, sr. Bond?

Bond apanhou um cigarro numa caixa de prata que estava à frente e acendeu-o. Depois, pôs-se a brincar com o isqueiro de prata que estava sobre a mesa. Sentia que más noticias iriam chegar. Pensou que deveria meter aquele isqueiro no bolso, de qualquer maneira. O fogo talvez viesse a ser mais uma arma. Respondeu com facilidade: — Sim, estava excelente. — Em seguida olhou para Honeychile. Curvou-se sobre a mesa e descansou os braços sobre ela, e logo cruzou-os, envolvendo o isqueiro com esta manobra. Sorriu para ela: — Espero ter pedido o que você gosta.

— Oh, sim, estava magnífico. — Para ela a recepção ainda estava continuando.

Bond fumava afanosamente, agitando mãos e braços, a fim de criar uma atmosfera de movimento. Voltou-se para o Dr. No, apagou o toco de seu cigarro e reclinou-se na cadeira. Cruzou os braços sobre o peito. O isqueiro já estava sob o seu sovaco esquerdo. Riu animadamente:

— E o que acontecerá agora, Dr. No?

— Podemos continuar com a nossa distração de após-jantar, sr. Bond. O leve sorriso contraiu-se e desapareceu.

— Examinei a sua proposta sob todos os aspectos. Não a aceito.

Bond deu de ombros e observou: — O senhor não é sensato.

— Não, sr. Bond. Receio que a sua proposta não passe de uma isca dourada. Em sua profissão não se atua como o senhor quer sugerir. Os agentes enviam relatórios rotineiros para o quartel-general. Mantêm seus chefes a par dos progressos das investigações que fazem. Conheço essas coisas. Os agentes secretos não se comportam como o senhor sugeriu ter agido. O senhor esteve lendo muitas novelas de aventuras, e o seu pequeno discurso mostrou com muita facilidade o papelão pintado. Não, sr. Bond, não aceito a sua história. Se ela for verdadeira, estou preparado para enfrentar as conseqüências. Tenho muita coisa em jogo para ser facilmente desviado de meu caminho. Que venham a polícia e os soldados. Onde estão o homem e a jovem? Que homem e que jovem? Não sei de nada. Por favor, retirem-se, os senhores estão prejudicando a minha guaneira. Onde estão as suas provas, o seu mandado de prisão? A lei inglesa é rigorosa, meus senhores. Voltem para casa e deixem-me em paz com os meus queridos corvos marinhos. Está vendo, sr. Bond? E digamos mesmo que o pior redunde em pior. Que um de meus agentes fale, o que é altamente improvável. (Bond lembrou-se da fortaleza da srta. Chung). Que tenho eu a perder? Mais duas mortes no libelo acusatório. Mas, sr. Bond, um homem só pode ser enforcado uma vez: — A elevada cabeça, em forma de pêra, agitava-se suavemente, de um lado para outro. — O senhor tem mais alguma coisa a dizer? Alguma pergunta? Ambos irão ter uma noite muito ocupada e o tempo de que dispõem está-se tornando escasso. Quanto a mim, devo ir dormir. O navio que chega mensalmente deverá atracar amanhã e eu terei que supervisionar o carregamento. Passarei todo o dia no cais. Certo, sr. Bond?

Bond olhou para Honeychile. Ela estava mortalmente pálida. Olhava com olhar esgazeado, esperando pelo milagre que ele deveria operar. Bond olhou para as próprias mãos e examinou cuidadosamente as unhas. Depois, disse, para ganhar tempo: — E então, após seu dia ocupado com o carregamento, o que virá em seu programa? Qual o novo capítulo que o senhor pensa escrever?

Bond não levantou o olhar. A profunda e serena voz autoritária caiu sobre ele como se tivesse vindo do céu escuro.

— Ah, sim, o senhor deve ter estado a pensar nisso.

O senhor tem o hábito da investigação. Os hábitos persistem até o fim, até as sombras. Admiro tais qualidades num homem que tem apenas algumas horas mais para viver. Por isso, dir-lhe-ei. Encetarei um novo capítulo, e isso o consolará. Há muito mais nesta ilha do que uma simples guaneira. O seu instinto não o enganou, sr. Bond.

O Dr. No fez uma pausa para dar mais ênfase ao que iria dizer e continuou: — Esta ilha, sr. Bond, está em vésperas de se transformar num dos mais valiosos centros de informação técnica do mundo.

— De fato? — Bond mantinha os olhos fixos em suas mãos.

— Sem dúvida que o senhor não ignora que Turks Island, a trezentas milhas, de distância daqui, através de Windward Passage, constitui o mais importante centro para a experimentação de projéteis teleguiados dos Estados Unidos?

— Sim, é um importante centro de experiências.

— Talvez o senhor tenha lido sobre os foguetes que recentemente se desviaram de sua rota? O “Snark” de múltiplas fases, por exemplo, que terminou o seu vôo nas florestas do Brasil, ao invés de ir perder-se nas profundezas do Atlântico Sul?

— Sim.

— O senhor se lembrará que ele se recusou a obedecer as instruções que lhe foram enviadas por rádio, no sentido de modificar a sua rota, e até mesmo de se destruir a si mesmo. Ele desenvolvera uma vontade própria.

— Lembro-me.

— Houve outras falhas, falhas decisivas, na longa lista dos protótipos — o Zuni, o Matador, o Petrel, o Regulus, o Bomarc — tantos nomes, outras tantas modificações, nem posso lembrar-me deles todos. Bem, sr. Bond, — o Dr. No mal podia esconder uma nota de orgulho em sua voz — talvez lhe interesse saber que a maioria desses fracassos foi causada de Crab Key.

— É verdade?

— Não me acredita? Não tem importância. Outros acreditam-no. Outros que viram o abandono de toda uma série, o Mastodonte, em virtude de seus freqüentes erros de navegação, sua incapacidade de obedecer às ordens enviadas pelo rádio, de Turks Island. Esses outros são os russos. Os russos são meus sócios nesta empreitada. Treinaram seis dos meus homens, sr. Bond. Exatamente neste momento tenho dois desses homens observando, estudando as freqüências de rádio, as faixas nas quais trabalham esses engenhos. Há um milhão de dólares de instalações, nas galerias rochosas, acima de nossas cabeças, sr. Bond, enviando sinais para a camada de Heavyside, aguardando os sinais, perturbando-os, contrabalançando faixas com outras faixas. E, de vez em quando, um foguete sobe em seu itinerário e aprofunda-se cem, quinhentas milhas, pelo Atlântico, enquanto nós anotamos cuidadosamente a sua trajetória, com a mesma perfeição com que isto é feito na Sala de Operações de Turks Island. Em seguida, subitamente, as nossas pulsações são enviadas ao foguete, o seu cérebro é perturbado, ele enlouquece e mergulha no mar, destruindo-se. Foi mais uma experiência que fracassou. Os operários levam a culpa, assim como os projetistas e os fabricantes. Há pânico no Pentágono. Outra coisa deve ser tentada, freqüências diversas, metais diversos, um cérebro eletrônico diferente. Naturalmente que também temos as nossas dificuldades. Assim é que assinalamos muitos disparos experimentais sem sermos capazes de chegar até o cérebro do novo engenho. Então, comunicamo-nos urgentemente com Moscou. Com efeito, eles deram-nos até uma máquina de cifras com as nossas freqüências e rotinas. E os russos continuam pensando, fazem sugestões, e nós as experimentamos. Por fim, sr. Bond, um belo dia, é como se atraíssemos a atenção de um homem perdido numa multidão. Lá no alto, na estratosfera, o foguete reconhece o nosso sinal. Somos reconhecidos e podemos falar com ele e modificar os seus pensamentos. — O Dr. No fez uma pausa e depois continuou: — O senhor não acha isso interessante, esta variante de meus negócios com o guano? Asseguro-lhe que é um negócio muito lucrativo, e podia sê-lo ainda mais. Talvez a China comunista venha a pagar mais pelos meus serviços. Quem sabe? Já tenho os meus agentes em campo, para sondagens.

Bond ergueu os olhos, olhando pensativamente para o Dr. No. Então ele tinha tido razão. Havia mesmo mais alguma coisa, muito mais, em tudo aquilo que os seus olhos tinham visto. Aquilo era uma grande partida, uma partida que explicava tudo, uma partida que no mercado internacional da espionagem bem valia a pena ser jogada. Bem, bem! Agora, as peças do quebra-cabeças tinham caído corretamente em seus lugares. Para isso tinha valido a pena, certamente, assustar alguns pássaros e eliminar algumas pessoas. Isolamento? Naturalmente que o Dr. No teria que matar a ele e à jovem. Poder? Sim, isso era poder. O Dr. No se tinha realmente lançado nos negócios.

Bond fixou os dois orifícios negros com um novo respeito, e observou: — O senhor terá que matar muito mais gente para manter isto em suas mãos, Dr. No. Isto vale muito dinheiro. O senhor tem aqui uma bela propriedade, superior ao que eu pensava, e as pessoas hão-de querer um pedaço deste bolo. Penso em quem será o primeiro a chegar até o senhor e matá-lo. Serão aqueles homens que estão lá em cima, treinados por Moscou? — e ele fez um gesto apontando para o teto. Depois continuou: — Eles são os técnicos. Eu me pergunto: o que Moscou estará lhes ordenando que façam? O senhor não poderia estar a par disso, poderia?

O Dr. No respondeu: — Vejo que continua subestimando meu valor, sr. Bond. O senhor é um homem obstinado e mais estúpido do que pensava. É claro que estou consciente dessas possibilidades. Separei um desses homens e transformei-o numa espécie de vigilante particular. Ele tem uma duplicata das cifras e da máquina. Vive em outra parte da montanha. Os outros pensam que ele morreu, mas ele está bem vivo a fiscalizar a cronometragem de rotina, e entrega-me diariamente uma cópia do tráfego que é registrado. Até agora os sinais emitidos por Moscou têm sido inocentes e não indicam qualquer conspiração. Penso em tudo isso constantemente, sr. Bond. Tomo precauções e ainda as multiplicarei para o futuro. Como disse, o senhor me tem subestimado.

— Não o subestimo, Dr. No. O senhor é um homem muito prudente, mas já há muitas pastas sobre o senhor. Em minha linha de atividades, a mesma coisa se aplica a mim, mas as suas pastas são muito perigosas. A chinesa, por exemplo. Não gostaria de ter uma com essa gente. A da FBI deve ser a menos penosa — roubo e falsa identidade. Mas o senhor conhece os russos tão bem quanto eu? Por enquanto o senhor é “o melhor amigo” deles. Mas os russos não têm sócios. Hão-de querer comprá-lo... — comprá-lo com um balaço. Depois vem a pasta que o senhor abriu com o meu serviço. O senhor quererá mesmo fazê-la mais volumosa? Eu não o faria se estivesse em seu lugar, Dr. No. O pessoal do meu serviço é muito obstinado. Se alguma coisa me acontecer e à jovem, o senhor verificará que Crab Key é uma ilha muito pequena e insignificante.

— Não se pode jogar grandes partidas sem assumir riscos, senhor Bond. Aceito os perigos e, até onde posso, procuro defender-me deles. Como vê — e a sua voz tinha um acento de cupidez — estou em vésperas de coisas muito maiores. O capítulo dois, ao qual já me referi, encerra promessa de prêmios que ninguém, a não ser um tolo, jogaria fora por ter medo. Já lhe disse que posso desviar os raios magnéticos por onde viajam os foguetes. Posso fazer com que estes mudem de rota e não obedeçam ao controle eletrônico. Que diria o senhor, se eu fosse ainda mais longe? Se eu os fizesse cair nesta ilha, a fim de recolher todos os segredos de sua construção? Atualmente, destróieres norte-americanos, nos confins do Atlântico Sul, recolhem esses foguetes quando eles esgotam o seu combustível e caem de pára-quedas sobre o mar. Algumas vezes os pára-quedas deixam de se abrir, e algumas vezes as instalações de autodestruição deixam de operar.

Ninguém em Turks Island se sentiria surpreendido se de vez em quando o protótipo de uma nova série saísse de sua trajetória e caísse perto de Crab Key. Antes de mais nada, isto seria atribuído a falhas mecânicas. Mais tarde talvez descobrissem que outros sinais, que não os seus, tinham estado a guiar os seus foguetes. Teria início, então uma guerra de freqüência. Tentariam e conseguiriam localizar a origem dos sinais falsos, mas assim que eu verificasse que eles estavam à minha caça, teria uma derradeira cartada. Os seus foguetes enlouqueceriam. Cairiam em Havana, em Kingston; dariam uma volta e despencariam sobre Miami. Mesmo sem as cargas detonantes, Sr. Bond, cinco toneladas de metal, chocando-se a mil milhas por hora, podem causar terríveis danos numa cidade super-povoada. E depois? Haveria pânico, haveria um clamor público. As experiências teriam de ser interrompidas. A base de Turks Island teria que fechar. E quanto não pagariam os russos para que isso acontecesse, sr. Bond? E quanto por protótipo que eu capturasse para eles? Digamos dez milhões de dólares por toda a operação? Vinte milhões? Seria uma vitória sem preço na corrida dos armamentos. Posso fazer o meu preço, não concorda, sr. Bond? E não concorda também que essas considerações tornam os seus argumentos e ameaças engraçadíssimos?

Bond não respondeu. Nada havia a dizer. Subitamente se viu em pensamento naquela sala tranqüila de Regents Park. Podia ouvir a chuva batendo suavemente contra a janela e a voz de M, impaciente e sarcástica, dizendo: “Oh, algum maldito negócio em torno de aves... umas férias ao sol lhe farão bem... investigações rotineiras.” E ele, Bond, tinha apanhado uma canoa, um caniço e um farnel de piquenique e partira — há quantos dias, há quantas semanas? — “para dar uma espiada”. Bem, ele tinha dado uma espiada na caixa de Pandora. E tinha tido as respostas, conhecera os segredos — e agora? Agora iriam mostrar-lhe polidamente o caminho para a sepultura, para onde ele levaria consigo o seus segredos arrancados e arrastados por ele em sua lunática aventura. Toda a amargura que lhe ia no íntimo aforou à boca, de modo que por um momento pensou que ia vomitar. Apanhou o copo e esvaziou todo o resto de champanha que nele havia. Depois disse asperamente: — Muito bem, Dr. No. Agora vamos ao cabaré. Qual é o programa — faca, bala, veneno, corda? Mas proceda rapidamente, já o vi bastante.

Os lábios do Dr. No se apertaram numa fina linha arroxeada. Os olhos eram duros como ônix, sob a bola de bilhar de sua fronte e crânio. A máscara de polidez tinha desaparecido. O Grande Inquisidor sentava-se na cadeira de alto espaldar. Tinha soado a hora para a “peine forte et dure”.

O Dr. No proferiu uma palavra e os dois guardas avançaram um passo e agarraram as suas vitimas pelos braços, acima dos cotovelos, mantendo-as imobilizadas para trás, apoiadas nos lados das cadeiras. Não houve resistência. Bond concentrou-se em manter o isqueiro sob o sovaco. As luvas brancas em seus bíceps pareciam faixas de aço. Sorriu para a jovem. — Desculpe-me por isso, Honey, — disse. — Receio que afinal de contas não possamos mais brincar juntos.

Os olhos da jovem, em seu rosto pálido, tinham ficado azul-escuros, pelo medo. Seus lábios tremiam, e ela perguntou: — Doerá muito?

— Silencio! — A voz do Dr. No soou como o estalar de um chicote. — Chega de tolices. Naturalmente que doerá. Estou interessado na dor. E estou igualmente interessado em descobrir quanto de dor o corpo humano pode suportar. De vez em quando faço experiências com os meus subordinados que devem ser punidos, e em intrusos como os senhores. Acarretaram-me os senhores grandes dificuldades. Em troca, pretendo causar-lhes uma grande soma de dor. Registrarei os níveis de suas resistências. Os fatos serão anotados, e um dia as minhas pesquisas serão relatadas ao mundo. As suas mortes terão servido à Ciência. Nunca desperdiço material humano. As experiências feitas pelos alemães com seres humanos vivos, durante a guerra, foram de grande proveito para a Ciência. Faz um ano que pus uma mulher para morrer da maneira que escolhi para a senhora. Ela era uma negra e durou três horas, mas morreu de terror. Queria agora fazer a experiência com uma mulher branca, para poder estabelecer uma comparação. Não me surpreendi quando a sua chegada me foi comunicada. Consigo sempre o que quero. — O Dr. No reclinou-se para trás na cadeira. Seus olhos estavam agora fixos na jovem, estudando-lhe as reações. Honeychile correspondia ao olhar, como que meio hipnotizada, como um rato do mato diante de uma cascavel.

Bond apertou os dentes.

— A senhora é uma jamaicana, por isso saberá o que quero dizer. Esta ilha chama-se Crab Key. Recebeu este nome porque está infestada de caranguejos — o que chamam em Jamaica “caranguejos negros”. A senhora os conhece. Pesam meio quilo, cada um, e têm o tamanho de um pires. Nesta época do ano eles saem aos milhares de seus esconderijos, próximos à costa, e sobem em direção à montanha. Lá, nos planaltos de coral, eles se alojam novamente em buracos da rocha, onde desovam. Avançam em exércitos de centenas, de cada vez. Atravessam tudo e sobre tudo. Em Jamaica eles invadem as casas e não se desviam de seu caminho. São como certos roedores da Noruega. É uma migração irresistível. — O Dr. No fez uma pausa. Em seguida acrescentou suavemente: — Mas há uma diferença. Os caranguejos devoram o que encontram em seu caminho. E agora, minha senhora, eles já estão em marcha. Estão galgando as faldas da montanha, às dezenas de milhares, em ondas negras e vermelho-laranja. Estão, neste momento, se apressando e se empurrando e arranhando a rocha acima de nós. E esta noite, no meio do seu caminho, eles vão encontrar o corpo nu de uma mulher sòlidamente preso — um banquete preparado para eles — e vão apalpar o corpo morno com suas pinças, e um deles dará o primeiro corte com suas garras de combate e então... e então...

A moça gemeu. Sua cabeça caiu para a frente sobre o peito. Desmaiara. O corpo de Bond inteiriçou-se na cadeira. Uma torrente de palavras obscenas escapou por entre seus dentes cerrados. As manoplas dos guardas pareciam-lhe ferro à volta dos braços. Nem sequer podia fazer deslizar os pés da cadeira no chão. Depois de um momento de luta, desistiu. Esperou que sua voz se acalmasse, e disse então, com todo o veneno que podia instilar nas palavras:

— Seu bastardo! Você há-de frigir no inferno se fizer isso!

O Dr. No sorriu fracamente.

— Senhor Bond, não acredito na existência do inferno. Procure consolar-se. Talvez eles comecem pela garganta ou pelo coração. O bater do pulso ainda os poderá atrair. Depois disso, tudo acabará depressa.

Proferiu então uma sentença em chinês. O guarda que estava atrás da cadeira da moça inclinou-se para a frente, levantou-a da cadeira como se fora uma criança e atirou-a por cima do ombro. Os belos cabelos caíam qual cascata de ouro entre os braços inertes. O guarda foi à porta, abriu-a e saiu, formando a fechá-la sem ruído.

Por um momento, reinou, silêncio na sala. Bond pensava somente na faca encostada ao seu ventre e no isqueiro debaixo da axila. Qual a extensão dos estragos que ele poderia causar com aqueles dois pedaços de metal? Poderia, de algum modo, aproximar-se do Dr. No?

O Dr. No continuou serenamente: — O senhor disse que o poder era uma ilusão, sr. Bond. Não modifica a sua opinião? O meu poder de escolher a morte que quiser para essa jovem certamente que não é uma ilusão. Todavia, passemos ao método de sua morte. Isso também encerra aspectos novos. Saiba, sr. Bond, que estou interessado na anatomia da coragem — do poder de resistência do corpo humano. Mas como medir a resistência humana? Como traçar um gráfico da vontade de sobrevivência, da tolerância à dor, da conquista do medo? Pensei muito nesse problema e acredito tê-lo solucionado. Trata-se, por enquanto, de um método incompleto e grosseiro, mas que será aperfeiçoado na medida em que as experiências se forem multiplicando. Preparei o senhor para essa experiência. Dei-lhe um sedativo, de modo que o seu corpo esteja descansado, e alimentei-o bem, de modo que possa estar no gozo completo de suas forças. Os futuros — como os chamarei — pacientes, terão as mesmas vantagens. Todos começarão nas mesmas condições. Depois disso, o restante será uma questão de coragem e do poder de resistência individuais.

O Dr. No fez uma pausa, enquanto observava o rosto de Bond. Depois prosseguiu: — Saiba ainda, sr. Bond, que justamente agora acabo de construir uma espécie de pista de obstáculos, uma espécie de pista de corrida contra a morte. Não direi mais sobre isso porque o elemento surpresa é um dos que aparecem na formação do medo. Os perigos desconhecidos são os piores, os que mais pressionam as reservas de coragem. E me alegro com a idéia de que a corrida de obstáculos que o senhor enfrentará contém um rico sortimento de coisas inesperadas. Será particularmente interessante sr. Bond, que um homem com as suas qualidades físicas seja o meu primeiro competidor. Será interessantíssimo ver até onde o senhor conseguirá alcançar, na pista que idealizei. Não há dúvida de que o senhor estabelecerá uma marca invejável para os futuros corredores. Tenho grandes esperanças no senhor. O senhor deverá ir muito longe, mas quando tombar, inevitavelmente, diante de um obstáculo, seu corpo será recolhido e eu examinarei meticulosamente os seus restos. Os dados assim colhidos serão registrados e o senhor representará o primeiro ponto de um gráfico. Algo honroso, não é, senhor Bond?

Bond nada respondeu. Que diabo significaria tudo aquilo? Em que poderia consistir aquela prova? Seria possível escapar dela com vida? Poderia escapar disso e salvar Honeychile antes que fosse demasiado tarde, ainda que para matá-la e assim salvá-la da tortura? Silenciosamente, Bond ia reunindo suas reservas de coragem, retemperando a mente contra o temor do desconhecido que já começava a envolver a sua garganta, e focalizando a sua vontade no alvo da sobrevivência. Acima de tudo, deveria apegar-se às suas armas.

O Dr. No levantou-se e afastou-se da cadeira. Caminhou vagarosamente até a porta e voltou-se. Seus olhos negros e ameaçadores fixavam Bond, pouco abaixo da armação da porta. A cabeça estava ligeiramente inclinada e os lábios finos tornaram a se mexer: — Faça uma boa corrida para mim, sr. Bond. Meus pensamentos, como se costuma dizer, o acompanharão.

O Dr. No afastou-se e a porta fechou-se suavemente por trás de seus costados amarelos.


XVII - O PROLONGADO GRITO


Havia um homem no elevador, cujas portas estavam abertas, à espera. James Bond, com os braços ainda torcidos, junto aos flancos, foi impelido para dentro do elevador. Agora, a sala de jantar estava vazia. Quando voltariam os guardas para desembaraçar a mesa e então notar o desaparecimento dos objetos subtraídos? As portas fecharam-se e o cabineiro ficou diante dos botões, de modo que Bond não pôde ver qual deles teria sido apertado. Sabia apenas que estavam, subindo, e tentou fazer um cálculo da distância percorrida. O elevador parou, e Bond teve a impressão de que o tempo gasto naquele percurso fora menor do que quando descera juntamente com Honeychile. As portas abriram-se para um corredor sem tapete, com uma pintura cinzenta e rústica nas paredes de granito. Esse corredor ia numa linha reta até uma distância de vinte metros.

— Espere aí — disse o guarda de Bond para o cabineiro — voltarei logo.

Bond foi conduzido ao longo do corredor, passando diante de portas marcadas com letras do alfabeto. Ouvia-se um leve zunido de maquinaria no ar, e, por trás de uma porta, Bond teve a impressão de ouvir descargas estáticas de equipamento eletrônico. Aquilo parecia vir da sala de máquinas, no coração da montanha. Logo chegaram à porta da extremidade do corredor que estava marcada com um Q negro. Ela estava entreaberta, de modo que logo se escancarou quando Bond foi empurrado através dela. Por trás daquela porta estava uma cela pintada de cinzento, com cerca de quinze pés quadrados. Nela nada havia, a não ser uma cadeira de madeira, sobre a qual estavam, lavadas e cuidadosamente dobradas, as calças pretas de Bond e a sua camisa azul.

O guarda soltou os braços de Bond, que logo se voltou e olhou para o rosto amarelo, sob os cabelos ondeados. Havia um leve sinal de curiosidade e prazer nos olhos marrons e úmidos. O homem estava de pé, segurando a maçaneta da porta. — Bem, aqui estamos, rapaz. Você está no ponto de partida. Poderá ficar aí sentado, apodrecendo, ou procurar uma saída e iniciar a corrida. Felicidades para você.

Bond pensou que valeria a pena tentá-lo. Deu ainda uma olhadela para além do guarda, onde o cabineiro ainda se conservava ao lado de suas portas abertas, observando-os.

Então disse suavemente: — Você não gostaria de ganhar dez mil dólares, garantidos, e uma passagem para qualquer lugar do mundo que desejasse? — Dito isso, observou cuidadosamente as reações do homem. A boca se abriu numa ampla careta, mostrando dentes escurecidos, desigualmente gastos pelos anos de mascagem de cana-de-açúcar.

— Muito obrigado, senhor. Prefiro continuar vivendo. — O homem fez menção de fechar a porta e Bond ainda gritou ansiosamente: — Podemos sair juntos daqui.

Os grossos lábios fizeram uma careta de desprezo, e o homem apenas disse: “Vá em frente!” E logo a porta se fechou com um duro estalido.

Bond deu de ombros, mas logo passou a examinar a porta. Era feita de metal e não havia maçaneta do lado de dentro. Bond preferiu não experimentar o ombro de encontro àquela barreira. Aproximou-se da cadeira, sentou-se sobre a pilha de suas roupas limpas, e olhou à volta da cela. As paredes eram inteiramente nuas, com exceção de uma grade para ventilação, feita de arame grosso, num dos cantos, logo abaixo do teto. Aquela abertura era maior que os seus ombros. Era, evidentemente, a entrada para a pista dos obstáculos. A única abertura restante, naquele recinto, era uma espécie de vigia de espesso vidro, logo acima da porta, e que não seria maior do que a cabeça de Bond. A luz, vinda do corredor, atravessava aquela grade e penetrava na cela. Nada mais havia. Não seria inteligente perder tempo. Seriam dez e meia. Lá fora, em alguma parte da falda da montanha, a jovem já deveria estar deitada, estendida sobre o chão, à espera do matraquear das pinças no coral cinzento. Bond apertou os dentes ao pensamento daquele corpo frágil e indefeso sob as estrelas. Bruscamente, pôs-se de pé. Que diabo estava ele fazendo ali sentado? O que quer que existisse do outro lado da grade deveria ser imediatamente enfrentado.

Bond apanhou a faca e o isqueiro, e tirou o quimono. Em seguida vestiu as calças e a camisa, enfiando o isqueiro no bolso. Experimentou o corte da faca com o polegar, e verificou que a lamina era bastante afiada. Seria ainda melhor se pudesse fazer uma ponta naquela lâmina. Ajoelhou-se no chão e começou a esfregar a extremidade arredondada da faca na laje do pavimento. Depois de um precioso quarto de hora, deu-se por satisfeito. Não era um estilete, mas que tanto serviria para cortar como para espetar. Colocou-a então entre os dentes e arrastou a cadeira para baixo da abertura gradeada. A grade? Supondo que pudesse arrancá-la pela base, aquele arame bem poderia ser esticado, de modo a formar uma lança, facultando-lhe assim uma terceira arma. Bond esticou os braços, com os dedos encurvados.

A coisa imediata de que tomou consciência foi uma dor de queimadura ao longo do braço e o choque de sua cabeça, ao atingir o chão de pedra. Ficou durante algum tempo estendido no solo, apenas com a lembrança de uma faísca azulada e o estalido e o chiado seco de eletricidade.

Depois de algum tempo, Bond pôs-se de joelhos e assim ficou por um momento. Em seguida baixou a cabeça e sacudiu-a lentamente de um lado para outro, como um animal ferido. Sentiu um leve odor de carne queimada. Levantou a mão direita à altura dos olhos e viu a mancha vermelha de uma queimadura aberta ao longo da parte interna dos dedos. A visão daquele ferimento trouxe-lhe também a consciência da dor. Bond proferiu uma imprecação. Vagarosamente pôs-se de pé. Dessa vez, olhou de soslaio, cautelosamente, para a grade, como se ela fosse feri-lo novamente. Irritado, encostou a cadeira na parede, apanhou a faca e com ela cortou uma faixa do quimono, envolvendo-a firmemente nos dedos. Em seguida tornou a subir na cadeira e olhou para a grade. Esperava-se que ele a atravessasse, e aquele choque tinha sido calculado apenas para amolecê-lo: era uma amostra do que estaria por vir. Com certeza o curto-circuito causado por ele já tinha posto fora de combate aquela armadilha. Olhou para a grade apenas por um instante, e já os dedos de sua mão esquerda a atingiam e atravessavam. Do outro lado não havia nada. Seria mesmo só aquela grade? Puxou a armação e ela cedeu uma polegada. Fez novo esforço e a grade foi arrancada do lugar, ficando pendurada por dois fios de cobre que desapareciam no interior da parede. Bond soltou a grade das pontas daqueles fios e desceu da cadeira. Havia um ponto de junção no arame de ferro, naquela grade, e Bond pôs-se a retificá-la, usando a cadeira como martelo.

Depois de dez minutos tinha à sua disposição um chuço recurvado de cerca de um metro de comprimento. Uma des extremidades, que tinha sido originalmente cortada por alicates, apresentava-se lacerada. Não atravessaria as roupas de um homem, mas teria efeito devastador no pescoço ou no rosto. Lançando mão de toda sua força e servindo-se da fresta inferior da porta metálica, Bond conseguiu fazer ainda um gancho com a extremidade rombuda daquele arame de ferro. Em seguida mediu-o com a perna e achou que aquela nova arma era demasiado longa. Em conseqüência, dobrou-a em dois e enfiou-a numa das pernas da calça. Agora, o chuço ia de sua cintura, onde fora pendurado, até o joelho. Voltou então para a cadeira e tornou a subir até a boca do ventilador, agora desobstruída. Não experimentou mais choque. Ergueu o corpo e introduziu-o naquele tubo que tinha mais quatro polegadas que a largura de seus ombros. Durante algum tempo deixou-se ficar, de barriga para baixo, a olhar para o interior da abertura. O túnel era circular e de metal polido. Bond apanhou o isqueiro, abençoando a inspiração que o fizera roubá-lo, e acionou-o. Sim, aquilo era folha de zinco que parecia nova. O túnel continuava em linha reta, sem qualquer característica especial, a não ser as costuras de junção das várias seções tubulares. Bond tornou a meter o isqueiro no bolso e foi-se arrastando para a frente.

Aquele deslizamento não foi difícil, e até mesmo uma brisa fresca, proveniente do sistema de ventilação, afagava o rosto de Bond. O ar não trazia nenhum cheiro de mar, sendo o seu odor o mesmo que caracteriza o ar de uma instalação de condicionamento de temperatura. O Dr. No devia ter lançado mão de um dos tubos do sistema para as suas experiências. Mas que armadilhas teria introduzido naquele tubo, a fim de pôr à prova as suas vítimas? Deviam ser engenhosas e dolorosíssimas — imaginadas para reduzir a resistência de suas vítimas. No final dos obstáculos, com certeza, a vítima seria surpreendida com o golpe de misericórdia — se é que lograsse chegar ao fim. Com efeito, haveria ali algo que não admitisse escapatória, pois nessa corrida não haveria prêmios, mas apenas padecimentos. A não ser, naturalmente, que o Dr. No tivesse subestimado a vontade de sobrevivência de seu desafeto. Essa, pensou Bond, era a sua única esperança — tentar vencer todos os obstáculos que se lhe deparassem, rompendo pelo menos até a última estacada.

Havia uma pálida luminosidade à sua frente. Bond foi-se arrastando cautelosamente, com todos os seus sentidos atuando como antenas. Aquela luminosidade foi-se tornando mais clara. Era o reflexo da luz que incidia sobre um dos lados da extremidade do tubo. Continuou avançando até que sua cabeça tocou naquela extremidade. Aí, Bond se torceu sobre as costas e olhou para cima. Sobre sua cabeça estava uma chaminé de cerca de cinqüenta metros de altura, em cujo topo havia uma claridade estável. Era como se alguém olhasse através de um comprido cano de canhão. Bond enfiou a cabeça por aquela chaminé e pôs-se de pé. Então, esperava-se que ele galgasse aquele tubo liso, sem qualquer apoio para os pés! Seria possível? Bond expandiu os ombros. Sim, eles lhe proporcionariam uma boa adesão às paredes laterais. Seus pés também o ajudariam na empreitada, embora escorregassem terrivelmente, a não ser nas orlas em que se soldavam os tubos. Bond deu de ombros e tirou os sapatos. Não adiantava monologar. Teria apenas que tentar.

Seis polegadas de cada vez, e o corpo de Bond começou a deslizar pela chaminé acima. A operação consistia em expandir os ombros para se fixar à chaminé, depois levantar os pés, unir os joelhos fortemente, e forçar os pés para fora, em direções opostas, contra o metal, e rapidamente contrair e expandir os ombros novamente, ao mesmo tempo que os pés escorregavam para baixo, deixando, entretanto, como saldo uma pequena progressão de algumas polegadas. E continuar repetindo, repetindo e repetindo a operação, até que os seus olhos fossem banhados pela luz que vira no topo da chaminé. De quando em quando pararia na saliência da solda dos tubos, a fim de descansar um pouco, recuperar o fôlego e medir o próximo avanço. E não havia que olhar para cima; apenas concentrar-se nas polegadas de metal que deveriam ser vencidas, uma a uma. Nada de preocupações com a luminosidade que pareceria nunca aumentar ou se aproximar. Também não deveria preocupar-se com a possibilidade de afrouxar a pressão dos ombros contra as paredes metálicas, indo esmagar os tornozelos no fundo da chaminé. E nenhuma preocupação com cãibras, com o inchaço dos ombros ou com as esfoladuras dos pés. Apenas ataque às polegadas prateadas, conquistando-as uma a uma.

Mas logo os pés começaram a suar e escorregar de modo desesperador. Por duas vezes Bond perdeu um metro, em virtude do escorregamento de seus ombros, que ficaram terrivelmente escalavrados com o atrito, antes de poder conseguir a freagem. Em certa altura teve mesmo que se deter durante algum tempo para esperar que o suor secasse com a corrente de ar que descia pela chaminé. Essa pausa durou dez minutos, durante os quais ele se viu apagadamente refletido na superfície metálica, com o rosto dividido ao meio pela faca que segurava entre os dentes. Ainda assim recusou-se a olhar para cima, a fim de ver quantos metros teria que vencer. Aquela derradeira seção poderia ser muito longa. Cuidadosamente Bond esfregou cada pé num cano de calça e recomeçou a batalha.

Agora, parte de sua mente sonhava, enquanto a outra se empenhava na luta. Nem mesmo estava consciente de que a luminosidade se ia acentuando lentamente e que a brisa se tornava mais forte. Via-se apenas como uma lagarta ferida, arrastando-se por um cano de descarga em direção a um ralo de banheira. O que veria quando atravessasse o ralo? Uma jovem nua se enxugando? Um homem fazendo a barba? A luz do sol filtrando-se para dentro de um banheiro Vazio?

A cabeça de Bond bateu de encontro a alguma coisa. O ralo estava obstruindo o orifício! O choque do desapontamento fez que escorregasse uma polegada, antes que seus ombros pudessem retê-lo firmemente. Então compreendeu que tinha chegado ao topo da chaminé! Agora notava a luz forte e o vento impetuoso. Ansiosamente, ele se alçou novamente até que a cabeça tocou em algo. O vento soprava contra sua orelha esquerda. Cautelosamente, voltou a cabeça para essa direção. Era outro tubo lateral. Acima de sua cabeça a luz se escoava através de uma espessa vigia. Tudo o que tinha a fazer era contornar aquela derivação, agarrando-se à orla do novo tubo, e, de qualquer maneira, encontrar forças para se introduzir naquele túnel lateral. Então poderia descansar um pouco, deitado.

Com redobrada cautela, nascida do pânico de que algo agora podia acontecer, de que poderia cometer um erro e ser precipitado no fundo da chaminé, Bond empreendeu a manobra, com suas últimas reservas de forças, e introduzindo-se na nova caverna caiu estirado com o rosto para baixo.

Mais tarde — quanto tempo mais tarde? — os olhos de Bond se abriram e seu corpo estremeceu. O frio o tinha despertado da total inconsciência em que o seu corpo o teria lançado. Penosamente, virou-se de costas, com pés e ombros doendo terrivelmente, e procurou reunir todas as forças mentais e físicas. Não tinha a mínima idéia da hora ou do lugar em que estaria no interior da montanha. Levantou a cabeça e olhou para trás, em direção à vigia, sobre o tubo vertical, do qual escapara. A luz era amarelada e o vidro parecia muito grosso. Lembrou-se da vigia existente na sala Q. Aquela vigia era absolutamente inquebrável, e esta também o seria, pensou ele.

Subitamente, por trás daquele vidro, distinguiu movimento. Enquanto observava, um par de olhos se materializaram, por trás de lâmpadas elétricas. Aqueles olhos pararam e fitaram-no, com o farolete parecendo um nariz entre aqueles dois olhos. Fixaram-no negligentemente e depois desapareceram. Os lábios de Bond explodiram numa imprecação. Então o seu progresso estava sendo observado para ser levado ao conhecimento do Dr. No.

Bond disse em voz alta: “Para o diabo com todos eles!”,, e voltou-se colérico sobre o ventre. Levantou a cabeça e olhou para a frente. O túnel desaparecia na escuridão. Para a frente! Não adianta nada perder tempo aqui. Apanhou a faca, colocou-a entre os dentes e foi abrindo caminho.

Em breve já não havia mais nenhuma luminosidade. Bond detinha-se de quando em quando para acender o isqueiro mas nada encontrava a não ser trevas. O ar começou a se tornar mais cálido, dentro do túnel, e, depois de uns cinqüenta metros talvez, decididamente quente. Havia mesmo cheiro de calor no ar, de calor metálico. Bond começou a suar.. Dentro de alguns minutos seu corpo estava completamente encharcado e ele tinha que parar para limpar os olhos. Deu uma volta à direita, no tubo, e, na nova seção, sentiu o metal bastante quente contra a sua pele. O cheiro de calor metálico era agora bem acentuado. Assim que enfiou a cabeça no novo túnel, tirou o isqueiro do bolso, acendeu-o e rapidamente recuou. Amargamente, considerou a nova dificuldade, medindo-a e amaldiçoando-a. A chama de seu isqueiro tinha iluminado uma seção de tubos de zinco descolorido. A nova dificuldade seria o calor!

Bond resmungou alto. Como a sua carne já esfolada poderia resistir àquilo? Como poderia proteger a pele contra o metal? Mas não havia solução satisfatória. Ou voltaria, ou continuaria ali parado ou, afinal, avançaria. Não havia outra decisão a tomar. Aliás, Bond começava a encontrar algum consolo em suas reflexões. Com efeito, não seria o calor que haveria de matá-lo, mas alguma mutilação. O metal aquecido não seria o seu campo de sacrifício — apenas mais uma prova para medir-lhe a resistência.

Bond pensou na jovem e no que ela estaria sofrendo. Oh, sim, para a frente com aquilo. Agora, vejamos...

Bond apanhou a faca e cortou toda a parte da frente da camisa, fazendo com ela várias faixas. A única esperança estaria em dar alguma proteção às partes de seu corpo que mais sofreriam a ação do calor, isto é, os pés e as mãos. Seus joelhos e cotovelos teriam de resistir apenas com a proteção normal da fina camada de roupa. E, assim, dispôs-se à luta, amaldiçoando-a.

Agora estava pronto. Um, dois, três...

Bond dobrou o ângulo do túnel e lançou-se contra o foco de calor.

Mantenha a barriga nua distante do chão! Contraia os ombros! Mãos, joelhos, pés; mãos. joelhos, pés. Mais depressa! Mais depressa! Sempre mais depressa, de modo que cada toque contra o chão seja rapidamente seguido por outro.

Os joelhos é que mais estavam sofrendo, agüentando a maior parte do peso do corpo. Agora, as mãos envoltas em panos estavam começando a chamuscar. Acendeu-se uma fagulha, e logo outra, e em seguida surgiram chamas, quando as fagulhas começaram a se deslocar. A fumaça que saía daquele envoltório de pano de suas mãos fazia que os seus olhos ardessem penosamente. Por Deus, ele não agüentaria mais! Não havia mais ar. Seus pulmões estavam a ponto de estourar. Agora as suas duas mãos estavam lançando fagulhas para os lados. O tecido devia estar quase acabado; então a carne começaria a queimar. Bond deu um guinada e seu ombro ferido tocou no metal. Um grito de dor ecoou no túnel, logo seguido de outros gritos proferidos regularmente, quando suas mãos, pés ou joelhos tocavam no metal escaldante. Agora ele estava liquidado. Era o fim. Mais alguns segundos e iria cair de borco, morrendo literalmente queimado. Não! Devia opor um supremo esforço de reação, ainda que aos berros, até que toda a carne tivesse sido queimada até os ossos. A pele dos joelhos já devia ter sido completamente destruída. Mais um pouco e as palmas de suas mãos estariam tocando no metal. Apenas o suor que corria de seus braços poderia manter úmido o pano de suas mãos. Grite, grite, grite! Isto aliviará a dor.” Isto dirá que você está vivo. Continue! Continue! Não pode durar muito mais. Não é aqui que você deverá morrer. Não fraqueje! Você não pode!

A mão direita de Bond tocou em alguma coisa que cedeu. Logo sentiu uma corrente de ar frio. A outra mão bateu então em sua cabeça. Ouviu-se um débil ruído. Bond sentiu a orla inferior de um anteparo de amianto, articulado na parte superior do tubo, e que agora se arrastava em suas costas. Tinha vencido aquela prova. Ouviu o barulho daquele anteparo fechando-se novamente, depois de ter dado passagem a todo o seu corpo. Suas mãos estavam agora encostadas numa sólida parede. Com os dedos, apalpou à direita e à esquerda. Era um desvio em ângulo reto. Seu corpo seguiu cegamente volta do desvio e o ar frio parecia penetrar em seus pulmões como lâminas de aço geladas. Prudentemente, encostou os dedos no metal. Estava frio! Com um gemido Bond caiu sobre o rosto e ficou quieto.

Algum tempo depois, a dor tornou a reavivá-lo. Bond voltou-se dolentemente, de costas. Vagamente notou uma vigia de vidro acima de sua cabeça, e vagamente percebeu aquele mesmo par de olhos a fitá-lo. Depois, deixou novamente que as ondas de trevas o submergissem.

Aos poucos, na escuridão, as bolhas feitas em toda a pele e os pés e ombros queimados começaram a endurecer. O suor tinha-se secado no corpo e nos farrapos da roupa, enquanto o ar penetrara nos pulmões superaquecidos, começando o seu insidioso trabalho. Mas o coração continuava batendo, forte e regularmente, por dentro da torturada carcaça, e os poderes mágicos do oxigênio levaram nova vida para dentro das artérias e veias, recarregando os nervos.

Depois de um tempo que lhe pareceu infinito, Bond despertou. Estremeceu, e, ao encontrarem-se os seus olhos com o outro par que o espreitava, por trás do vidro, a dor se apoderou dele e sacudiu-o como se fosse um rato. Esperou que aquela descarga de dor o matasse. Tentou novamente, e novamente, até que conseguiu aquilatar toda a força do adversário. Em seguida, para esconder-se da testemunha, voltou-se sobre o estômago e resistiu a toda a dor que vinha de dentro de si próprio. Continuou em expectativa, explorando o corpo para verificar-lhe as reações, pondo à prova a força de decisão que ainda tivesse restado nas baterias. Quanto mais poderia ainda agüentar? Os lábios de Bond desprenderam-se dos dentes e ele rosnou na escuridão. Era um som animal. Tinha chegado ao fim de suas reações humanas à dor e à adversidade. O Dr. No o tinha encurralado. Mas ainda restavam reservas de desespero animal e, num animal forte, essas reservas são consideráveis.

Lentamente, em verdadeira agonia, Bond deslizou mais alguns metros para fora do campo visual daqueles olhos e procurou o seu isqueiro, acendendo-o. À sua frente via apenas uma lua cheia negra, a boca circular que o levaria ao estômago da morte. Bond guardou o isqueiro, respirou profundamente e pôs-se sobre os joelhos e mãos. A dor não foi maior, apenas diferente. Lentamente, com movimentos duramente articulados, avançou.

O tecido de algodão de seus joelhos e de seus cotovelos tinha sido completamente queimado. Entorpecidamente, seu cérebro foi registrando a umidade à medida que suas bolhas se abriam contra o metal frio. Enquanto se movia, ia simultaneamente flexionando os dedos e os pés, sentindo-lhes a dor. Lentamente foi sabendo o que poderia fazer, o que doeria menos. Esta dor é suportável, refletiu ele consigo mesmo. Se eu tivesse sofrido um desastre de avião, eles diagnosticariam apenas contusões e queimaduras superficiais. Teria alta do hospital dentro de alguns dias. Não há nada de sério comigo. Sou um sobrevivente de desastre. Dói, mas não é nada. Pense nos pedaços de carnes dos outros passageiros. Dê-se por feliz. Tire isso de sua cabeça. Mas, por trás de todas essa reflexões, estava o pensamento de que, em verdade, ele ainda não experimentara o desastre, — que ainda estava a caminho dele, com sua resistência e sua capacidade muito reduzidas. Quando chegaria ele? Que caráter teria? E quanto mais ainda seria ele amolecido antes de chegar à arena do sacrifício?

à frente, na escuridão, aqueles pequeninos pontos vermelhos bem poderiam ser uma alucinação, manchas rubras diante de seus olhos, causadas pela exaustão. Bond parou e apertou os olhos. Balançou a cabeça. Não, aqueles pontinhos vermelhos ainda estavam lá. Vagarosamente, arrastou-se para mais perto deles. Agora não havia dúvida de que eles se estavam movendo. Bond deteve-se novamente. Alem das batidas de seu coração, ouvia uma espécie de murmúrio suave e delicado. Aqueles pontinhos do tamanho de uma cabeça de alfinete tinham aumentado. Agora haveria vinte ou trinta, deslocando-se para a frente e para trás, alguns rapidamente, outros mais vagarosamente, em todo o círculo negro que o esperava à frente. Susteve o fôlego, assim que conseguiu acender o isqueiro. Os pontinhos vermelhos tinham desaparecido. Substituindo-os, ele viu a um metro de distância, à sua frente, uma tela muito fina, quase da finura de musselina, bloqueando o túnel.

Bond continuou deslocando-se por centímetros, para diante, com o isqueiro aceso à frente. Aquilo era uma espécie de gaiola, com pequeninos animais no seu interior. Podia ouvir aqueles diminutos seres fugindo à luz. A um pé apenas da tela apagou a luz e esperou que seus olhos se acostumassem à escuridão. Enquanto esperava, escutando, pôde ouvir novamente os pequeninos animais aproximarem-se dele, e, gradualmente, aquela floresta de pequeninos pontinhos vermelhos começou a se juntar, fitando-o através da tela.

Que seria aquilo? Bond ouviu seu coração bater com força. Serpentes? Escorpiões? Centopéias?

Cuidadosamente, foi aproximando os olhos daquela floresta de pontos luminosos. Aproximou o isqueiro bem junto da tela e acendeu-o bruscamente. Pôde apreender, num relance, a visão de pequeninas patas que atravessavam a tela e de dezenas de pés cabeludos e de ventres igualmente cabeludos com a forma de sacos, tendo em determinado ponto grandes cabeças de insetos que pareciam cobertas de olhos. Os animais fugiam em precipitada corrida, abandonando a tela da frente para irem refugiar-se na extremidade oposta da gaiola, formando uma só massa cinza-marrom.

Bond olhou através da tela, movendo o isqueiro para a frente e para trás. Depois apagou-o para economizar gasolina, e deixou que a respiração saísse por entre os dentes, num tranqüilo suspiro.

Eram aranhas, gigantescas tarântulas, de três ou quatro polegadas de comprimento. Haveria umas vinte delas dentro daquela gaiola. E, de qualquer maneira, ele teria que passar por perto delas.

Bond ficou parado, descansando e pensando, enquanto os olhos vermelhos se iam reunindo outra vez diante de seu rosto.

Qual seria o grau de letalidade daqueles animais? Quanto das lendas em torno delas seria mito? Certamente que podiam matar animais, mas em que medida seriam mortais para o homem aquelas gigantescas aranhas? Bond deu de ombros. Lembrou-se da centopéia. O toque das tarântulas seria muito mais suave. Seriam como o toque das patas de ursinhos de brinquedo contra a pele humana — até que mordessem e esvaziassem os seus folículos venenosos no organismo da pessoa.

Mas, ainda aqui, seria esta a arena do sacrifício derradeira, montada pelo Dr. No? Uma mordida ou duas, talvez, para mandar uma pessoa para um delírio de dor. O horror de ter que atravessar a tela no escuro — o Dr. No não teria pensado no isqueiro de Bond — varando aquela floresta de olhos, esmagando alguns corpos moles mas sentindo as picadas de outros. E depois mais picadas das que tivessem ficado presas à roupa. Em seguida, a lenta agonia do veneno. Este deveria ter sido o caminho percorrido pela imaginação do Dr. No — para que a vítima prosseguisse aos gritos pelo seu caminho. Para quê? Para a barreira final?

Mas Bond tinha o isqueiro, a faca e o chuço de arame. Tudo o que iria precisar era nervos e uma precisão infinita.

Delicadamente abriu a tampa do isqueiro e, com o polegar e indicador, fez sair o pavio uma polegada. Acendeu-o, e quando as aranhas recuaram, furou a tela com a faca. Fez um buraco na armadura e cortou para os lados. Depois, apanhou a aba da tela, que assim se desprendera, e arrancou-a da armadura. A tarefa não foi difícil, pois a aba fendeu-se numa só peça, com um tecido de algodão. Tornou a colocar a faca entre os dentes e atravessou a abertura. As aranhas recuaram diante da chama e amontoaram-se umas sobre as outras. Bond retirou o chuço de arame de dentro das calças e bateu com o arame dobrado sobre aqueles corpos moles. Bateu e tornou a bater ferozmente, reduzindo os aracnídeos a uma pasta informe. Quando algumas das aranhas tentaram escapar em sua direção, ele acenou-lhes com a chama e esmagou as fugitivas, uma a uma. Agora, as aranhas vivas estavam atacando as mortas, e tudo quanto Bond tinha a fazer era terminar o massacre.

Lentamente todos aqueles movimentos convulsivos foram declinando até cessarem completamente. Estariam todas mortas? Estariam algumas simulando morte? A chama do isqueiro estava começando a morrer. Teria que enfrentar o risco. Avançou mais um pouco e atirou aquela massa escura e pegajosa para um lado. Depois tirou a faca de entre os dentes e abriu a segunda cortina, puxando a aba cortada para cima da pasta feita com os corpos das tarântulas. A chama bruxuleou e tornou-se apenas um revérbero vermelho. Bond reuniu suas forças, atirou o corpo sobre a massa encoberta e atravessou a segunda tela.

Não sabia se teria posto os joelhos e cotovelos sobre limalhas metálicas ou sobre as aranhas. Tudo o que sabia é que tinha atravessado aquela barreira. Arrastou-se ainda por alguns metros para a frente, no interior do túnel, e depois parou para descansar e reunir coragem.

Sobre a sua cabeça veio uma pálida luz. Bond torceu-se para um lado, ficando de costas, para ver o que já esperava. Os olhos amarelos e amendoados fixavam-no com profundo interesse. Lentamente, por trás do farolete, a cabeça moveu-se de um lado para outro. As pálpebras caíram numa piedade fingida. Um punho cerrado, com o polegar apontando para baixo, à guisa de despedida e aniquilamento, interpôs-se entre o farolete e o vidro. Em seguida foi retirado e a luz apagou-se. Bond voltou o rosto para baixo e descansou a testa no chão metálico e frio. Aquele gesto dizia-lhe que ele estava chegando ao obstáculo final, que os seus algozes tinham dado por encerradas as observações até virem recolher os seus restos. Bond sentiu ainda que naquele rosto não houvera um único indício de louvor pelo fato de ter logrado sobreviver até aquela etapa. Aqueles chineses negros odiavam-no. Apenas queriam que ele morresse, e tão miseravelmente quanto possível.

Os dentes de Bond bateram suavemente. Ele pensara na jovem e este pensamento dera-lhe forças. Ainda não estava morto. Que diabo! Ele não iria morrer! Não enquanto o coração não lhe fosse arrancado do corpo.

Bond retesou os músculos. Era tempo de continuar, a investida. Com redobrado cuidado, recolocou as armas em seus lugares, e penosamente recomeçou a avançar pela escuridão.

O túnel começava a inclinar-se ligeiramente para baixo, o que tornava a progressão mais fácil. Logo a inclinação tornou-se tão acentuada que Bond podia deslocar-se apenas em virtude de seu peso. Era uma bênção não ter que fazer aquele esforço derradeiro com os músculos. Vislumbrou um clarão acinzentado à sua frente, pouco mais que uma redução das trevas completas, mas aquilo prenunciava uma mudança, pois a qualidade do ar parecia diferente. Havia nele um odor novo. O que seria? O mar?

Súbito, Bond compreendeu que estava escorregando para baixo, ao longo do túnel. Expandiu os ombros e abriu os pés, procurando impedir a queda. Aquele esforço causou-lhe terríveis dores e o efeito foi mínimo. Agora o túnel começava a alargar-se e ele já não poderia mais diminuir o impulso da queda! Seu deslizamento tornava-se mais e mais acelerado. Agora via uma curva à frente — e era uma curva dirigida para baixo.

O corpo de Bond logo chegou. àquela curva e contornou-a. Deus do céu, ele estava mergulhando de cabeça para baixo! Desesperadamente, abriu os braços e pernas. O metal esfolou sua pele. Agora tinha perdido completamente o controle da situação e estava mergulhando para baixo, sempre pára baixo, no interior de um cano de canhão. Muito abaixo havia um circulo de luz cinzenta. Seria o ar livre? O mar? A luz subia vertiginosamente para ele! Lutou para recuperar o fôlego. Continue vivo, idiota! Continue vivo!

Primeiro a cabeça, e logo depois o corpo de Bond precipitaram-se pelo espaço, vencendo aceleradamente a distância de mais de cem pés que o separava da superfície do mar.


XVIII - ARENA DE SACRIFÍCIO


O corpo de Bond espadanejou o espelho de um mar de alvorada como o impacto de uma bomba.

Enquanto descia precipitadamente pelo tubo prateado, em direção ao disco de luz, o instinto dissera-lhe que retirasse a faca de entre os dentes e que pusesse as mãos para a frente, a fim de aparar a queda, assim como a cabeça para baixo e o corpo rígido. E, na última fração de segundo, quando ele viu o mar que se alteava ao ritmo das ondas, procurou sorver uma longa inspiração. En conseqüência, projetou-se na água como se estivesse dando um mergulho, com os braços estendidos abrindo-lhe um buraco através do qual passaram a sua cabeça e o corpo. Conquanto, quando chegou a vinte pés de profundidade, tivesse perdido os sentidos, o despencar a sessenta e cinco quilômetros por hora não conseguira matá-lo.

Lentamente o corpo foi voltando à superfície, e ficou, com a cabeça para baixo, a balançar-se suavemente nas pequeninas ondas causadas pelo seu próprio mergulho. A água que penetrou nos pulmões de certa forma contribuiu para enviar uma última mensagem ao cérebro. As pernas e braços agitaram-se desajeitadamente. Agora tinha conseguido voltar a cabeça para cima, com a água escorrendo da boca. Tornou a afundar, mas dessa vez, instintivamente, as pernas começaram a mover-se procurando manter o corpo à superfície da água. Por fim, a cabeça, horrivelmente sacudida pela tosse, conseguiu vir para fora da água e assim manter-se. Os braços e as pernas começaram a agitar-se dèbilmente, com os movimentos natatórios de um cão, e através da cortina vermelha e negra, os olhos injetados de sangue viram a linha da vida e disseram ao dolente cérebro que visasse àquele objetivo.

A arena de execução era uma estreita e profunda enseada, na base de um elevado penhasco. A corda de salvamento em direção à qual Bond lutava, embaraçado pelo chuço metido em sua calça, era representada por uma forte tela de arame, que se estendia por dois lados do penhasco, protegendo aquela enseada do mar aberto. Aquela rede, formada de quadrados, estava suspensa a um grosso cabo situado a dois metros acima da superfície da água. Para baixo, a tela desaparecia nas profundezas, cheia de incrustações de algas.

Bond conseguiu chegar ao arame, e a ele agarrou-se como que crucificado. Durante quinze minutos deixou-se ficar na mesma posição, com o corpo de quando em quando sacudido por vômitos, até que se sentiu bastante forte para virar a cabeça e verificar onde estava. Ofuscadamente, os seus olhos tomaram a altura do penhasco, sobre sua cabeça. O lugar estava obscurecido por uma sombra cinzenta, projetada pela montanha, mas ao largo, no mar, havia uma iridiscência de pérola provocada pela aurora, o que significava que para o resto do mundo o dia estava amanhecendo. Mas onde Bond se encontrava era escuro e triste.

Lerdamente, a mente de Bond começou a se interrogar sobre aquela tela de arame. Qual seria a sua finalidade, fechando aquela escura enseada e separando-a do mar? Seria para manter alguma coisa do lado de fora ou para mantê-la do lado de dentro? Bond olhou vagamente para baixo, procurando penetrar as profundezas do mar, à sua volta. As malhas de arame perdiam-se no nada, sob os seus pés. Havia pequeninos peixes à volta de suas pernas, abaixo da cintura. Que estariam eles fazendo? Pareciam estar-se alimentando, avançando contra seu corpo e depois recuando com fiapos negros na boca. Fiapos de que? De algodão de seus farrapos? Bond sacudiu a cabeça para clarear as idéias. Tornou a olhar para baixo. Não, aqueles peixes estavam-se alimentando com seu sangue.

Bond estremeceu. Sim, o sangue estava escorrendo de seu corpo, dos ombros, dos joelhos, dos pés, e misturando-se à água. Agora, pela primeira vez sentiu a dor causada pela água salgada em suas feridas e queimaduras. A dor tornou-se mais viva e estimulou a sua mente. Se esses pequeninos peixes estavam gostando de seu sangue, o que dizer dos tubarões? Seria essa a finalidade daquela tela de arame, isto é, evitar que os peixes devoradores de seres humanos pudessem escapar para o mar? Então por que eles ainda não se tinham lançado sobre ele? Para o diabo! A primeira coisa a fazer era subir pelo arame e ganhar o outro lado. Interpor aquela tela entre ele e o que quer que vivesse naquele escuro aquário.

Dèbilmente, pé após pé, lá se foi Bond subindo pela tela, até chegar ao cume e passar para o outro lado, onde poderia descansar sem preocupações. Colocou o espesso cabo sob a axila, e olhou para baixo, contemplando os peixes que ainda se nutriam com o sangue que continuava gotejando de seus pés.

Agora já não havia muito em Bond; pouquíssimas reservas teria ele. O último mergulho no tubo, o choque da queda, na água, e a quase morte, causada por afogamento, tinham-no esmagado como a uma esponja. Estava prestes a entregar-se, prestes a soltar um pequeno suspiro e depois escorregar para os doces braços da água. Como seria bom abandonar-se, finalmente, e descansar — sentir que o mar suavemente o levava para o seu leito.

Foi a explosiva fuga dos peixes que estavam sorvendo o seu sangue, sob os seus pés, que despertou Bond de seu sonho de morte. Alguma coisa tinha-se movido muito abaixo da superfície. Havia uma trêmula claridade muito distante, mas que avançava lentamente para a superfície, aproximando-se pelo lado interno da tela.

O corpo de Bond se enrijeceu. Ante a iminência do perigo, a vida voltou-lhe num ímpeto, expulsando a letargia e comunicando-lhe renovada vontade de sobreviver.

Bond abriu os dedos aos quais, há muito, o seu cérebro ordenara que não perdessem a faca. Fechou os dedos e agarrou o cabo daquela lâmina. Abaixou-se em seguida e tocou no gancho do chuço que ainda se mantinha no interior da calça. Sacudiu vivamente a cabeça e ficou com os olhos alertas. E agora?

Sob os seus pés a água estremeceu. Alguma coisa estava-se debatendo, no fundo, alguma coisa enorme. Algo grande, de cor cinza luminescente, tornou-se visível, detendo-se muito abaixo da superfície, na escuridão. Alguma coisa se projetou daquela massa, em direção à superfície, algo como se fosse um chicote da grossura do braço de Bond. A extremidade daquela tira inchava-se numa terminação oval e achatada, com marcas semelhantes a botões distribuídos a espaços regulares. Aquele tentáculo rodopiou na água, no lugar em que os peixes tinham estado, e logo se encolheu. Agora só se via a grande sombra cinzenta lá embaixo da superfície. Que estaria fazendo o animal? Estaria...? Estaria provando o seu sangue?

Como que em resposta àquela pergunta, dois olhos, tão grandes quanto bolas de futebol, foram avançando para cima até se porem no campo de visão de Bond. Aqueles enormes olhos pararam vinte pés abaixo da superfície e olharam tranqüilamente para cima, fixando-se no rosto de Bond.

A pele de Bond ficou arrepiada nas costas. Sua boca deixou escapar um palavrão! Então, aquela era a Ultima surpresa do Dr. No, o fim da corrida!

Bond ficou de olhos abertos, meio hipnotizado, olhando para baixo. Então aquele era o polvo gigante, o monstro mítico que podia arrastar navios para as profundezas do mar, o monstro de cinqüenta pés de comprimento que podia dar combate às baleias e que pesava uma tonelada ou mais. O que mais sabia ele a respeito daqueles animais? Que tinham dois longos tentáculos para laçar e outros dez para agarrar; que tinham um enorme bico rombudo por baixo de olhos que eram os únicos olhos, entre os peixes, a trabalharem segundo o principio da câmara fotográfica, como os do homem: que seu cérebro era eficiente; que o monstro podia fugir para trás a uma velocidade de trinta nós, por um sistema de jato-propulsão. Sabia ainda que os arpões podiam afundar-se em sua manta de gelatina sem causar nenhum mal ao monstro, e que... mas os grandes olhos esbugalhados, que ofereciam um alvo negro e branco, estavam-se elevando em sua direção. A superfície da água estremecia. Agora Bond podia ver uma floresta de tentáculos que saíam da cara do animal. Ondulavam diante dos olhos do monstro como uma ninhada de grossas serpentes. Bond podia ver-lhe as ventosas sob os tentáculos. Atrás da cabeça, a grande aba da manta de gelatina abria-se e fechava-se suavemente, e, por trás dela, o brilho do corpo perdia-se nas profundezas. Por Deus, a coisa era tão grande quanto uma locomotiva!

Muito devagar e discretamente Bond foi enfiando os pés e depois os braços através dos quadrados da tela de arame, protegendo-se e ancorando-se tão sòlidamente que os tentáculos teriam que arrancá-lo dali aos pedaços ou então arrastar com ele todo aquele arcabouço de metal. Olhou para a direita e para a esquerda. Para qualquer lado, teria que vencer vinte metros, antes de chegar à terra. Mas, qualquer movimento, ainda que pudesse empreende-lo, séria fatal. Devia ficar absolutamente imóvel, rezando para que o monstro perdesse o interesse e se afastasse. Se ele não perdesse o interesse... Suavemente os dedos de Bond apertaram a pequenina faca.

Os olhos do monstro continuavam fitando-o, fria e pacientemente. Delicadamente, como a tromba de um elefante, um daqueles longos tentáculos laçadores emergiu da superfície e foi galgando a tela em direção às pernas de Bond. Tocou num de seus pés, e Bond sentiu o áspero beijo daquelas ventosas. Não se mexeu. Não ousava abaixar-se e afrouxar o enlaçamento de seus braços à volta do arame. Docemente as ventosas entraram em ação, experimentando o rendimento daquela presa. Não era bastante. Como uma gigantesca lagarta, o tentáculo foi subindo por sua perna. Parou à altura do joelho ensangüentado e deteve-se, interessado. Os dentes de Bond estalaram com a dor. Ele bem podia imaginar a mensagem que tinha descido por aquele tentáculo até o cérebro do animal: sim, é bom para comer-se! E a ordem de retorno ao tentáculo: então traga-o.

As ventosas continuaram subindo pela coxa. A extremidade do tentáculo se aflou e em seguida dilatou-se a ponto de quase cobrir toda a espessura da coxa de Bond. Depois reduziu-se à grossura de um pulso. Aquele seria o alvo de Bond. Apenas teria que agüentar a dor e resistir ao horror daquela acometida, esperando que esse pulso chegasse ao alcance de um golpe.

 

* *
Uma brisa, a primeira suave brisa da madrugada, soprou sobre a superfície metálica da enseada, levantando pequenas ondas que iam beijar a rocha do penhasco. Um bando de corvos marinhos alçou vôo da guaneira, quinhentos pés acima da enseada, e cacarejando suavemente, avançou em direção ao mar. Quando as aves passaram sobre a enseada, o barulho que as tinha perturbado chegou aos ouvidos de Bond — o tríplice apito de um navio, que indica estar a embarcação pronta para receber a carga. Aquele som chegava do lado esquerdo de Bond. O cais deveria estar situado a pequena distância contornando o braço setentrional da enseada. O navio procedente de Antuérpia tinha chegado. Antuérpia! Uma região do mundo exterior — um mundo que estava a um milhão de quilômetros de distância, fora do alcance de Bond — com certeza para sempre fora de seu alcance. Exatamente para além daquele braço rochoso a tripulação estaria no refeitório, tomando o seu desjejum. O rádio estaria tocando. Haveria o chiado do toicinho defumado e ovos na frigideira, o cheiro do café...


* * *


As ventosas estavam em sua coxa. Bond podia ver dentro daqueles cálices córneos. Um cheiro de maresia estagnada chegou-lhe às narinas, quando aquela mão vagarosamente serpenteou para cima. Seria muito duro o tecido gelatinoso cinza-escuro, por trás daquela mão? Deveria usar agora a faca? Não, o golpe deveria ser rápido e seguro, atingindo toda a espessura, como se se cortasse uma corda. Não importaria que a sua própria pele fosse atingida.

Agora! Bond lançou um rápido golpe de vista àqueles dois enormes olhos, lá embaixo, tão pacientes e tão negligentes. Nesse momento, o outro tentáculo elevou-se da superfície da água e avançou em direção ao seu rosto. Bond recuou a cabeça e a mão se enroscou num fio de arame diante de seus olhos. Num segundo aquela garra se deslocaria para um braço ou ombro, e ele estaria liquidado. Agora!

O primeiro tentáculo estava sobre suas costelas. Quase sem fazer pontaria, a mão de Bond que empunhava a faca caiu rapidamente para baixo e transversalmente. Sentiu a lâmina afundar naquele pudim carnoso, e quase deixou que ela escapasse de sua mão, quando o tentáculo ferido chicoteou pelo ar, desaparecendo na água. Por um momento o mar foi agitado à sua volta. Agora, o outro tentáculo abandonou o arame e agarrou-se ao seu ventre. A mão aflada prendeu-se como uma sanguessuga, com toda a força de sua sucção furiosamente aplicada. Bond gritou ao sentir o contacto daquelas ventosas em sua carne. Golpeou loucamente, mais e mais. Por Deus, o seu estômago estava sendo arrancado para fora! A tela agitou-se com a luta. Aos seus pés a água fervilhava e espumava. Ele teria que ceder. Um derradeiro golpe, desta vez nas costas daquela mão disforme. Deu resultado! A mão se agitou no ar e desceu serpeante, deixando vinte círculos vermelhos sangrando em sua pele.

Bond não tinha tempo para se preocupar com aquilo. Agora a cabeça do monstro tinha emergido, e os seus olhos brilhantes fixavam-se nele, avermelhados, enfurecidos, e a floresta dos tentáculos sugadores começava a envolver-lhe os pés e as pernas, dilacerando-lhe as roupas, para logo retornar aos seus membros. Bond estava sendo arrastado para baixo, polegada por polegada. O arame estava penetrando em suas axilas. Podia até mesmo sentir a sua espinha sendo distendida. Se ele continuasse resistindo seria partido ao meio. Agora, os olhos e o grande bico triangular estavam fora d’água, e o bico procurava o seu pé. Havia uma esperança, apenas uma!

Bond meteu a faca entre os dentes e sua mão procurou o gancho do chuço de arame. Agarrou aquela arma, e desdobrou-a com as suas duas mãos. Teria que soltar um dos braços para poder abaixar-se e se aproximar do alvo. Se falhasse, entretanto, seria reduzido a pedaços sobre a tela.

Agora, antes que morresse com a dor! Agora, agora! Bond deixou todo o seu corpo escorregar por aquela escada de arame, para baixo, e desferiu uma violenta estocada. Pôde ver que o pontaço de sua lâmina penetrava pelo centro de um enorme globo ocular negro, e imediatamente todo o mar se intumesceu para ele, como uma fonte de negrume, enquanto seu corpo se mantinha pendurado de cabeça para baixo, seguro pelos joelhos, com o rosto apenas uma polegada acima da superfície.

Que teria acontecido? Teria ficado cego? Não podia ver nada. Seus olhos estavam ardendo e havia um gosto horrível de peixe podre em sua boca. Contudo, podia sentir o arame cortando-lhe os tendões dos joelhos. Então devia estar vivo! Estonteado, Bond deixou que o chuço caísse de sua mão, e procurou o arame mais próximo. Depois, agarrou-se com a outra mão um pouco mais acima, e, assim, vagarosamente, foi-se alçando até que conseguiu sentar-se no cabo superior da cerca. Clarões de luz chegaram-lhe aos olhos. Passou uma das mãos pelo rosto. Agora podia ver. Fixou a sua mão: estava negra e pegajosa. Olhou para o seu corpo: estava também coberto por um lodo negro, e o preto tingia o mar numa extensão de vinte metros à sua volta. Então Bond compreendeu: o polvo ferido tinha esvaziado a sua bolsa de tinta contra ele.

Mas onde estava o monstro? Voltaria? Bond esquadrinhou o mar. Nada, nada além da enorme mancha negra que se continuava ampliando. Nem uma só ondulação! Então, nada de esperar! Fugir dali o mais depressa possível! Ansiosamente, Bond olhou para a direita e para a esquerda. Para a esquerda era na direção do navio, mas também na direção do Dr. No, enquanto para a direita seria para o nada. Para instalar aquela tela de arame, os trabalhadores deviam ter vindo da esquerda, na direção do cais. Devia haver algum caminho até ali. Bond começou a se deslocar frenèticamente pelo cabo superior, em direção à rocha, a vinte metros de distância.

O espantalho negro e sangrento movimentava os braços e pernas quase automaticamente. O aparelho pensante e sensorial de Bond já não fazia mais parte de seu corpo. Movia-se ao lado de seu corpo ou acima dele, mantendo apenas o contato necessário para puxar os cordéis que faziam o boneco trabalhar. Bond era como um verme secionado, cujas duas metades continuassem arrastando-se para a frente, conquanto a vida os tivesse abandonado para ser substituída pela vida ilusória dos impulsos nervosos. Apenas, no caso de Bond, as duas metades ainda não estavam mortas. A vida tinha somente se ausentado delas. Tudo quanto ele precisava era um grama de esperança, um grama de confiança, de convicção de que ainda valeria a pena tentar sobreviver.

Bond chegou à rocha, e lentamente desceu pela tela até a última malha. Contemplou vagamente o brilho palpitante da água. O mar estava negro e impenetrável. Deveria arriscar-se? Sem dúvida! Não podia fazer nada enquanto não tivesse lavado aquela camada de lodo e sangue, sem falar do horrível cheiro de peixe. Sombriamente, fatalisticamente, ele tirou os farrapos de sua camisa e calças, pendurando-os no cabo. Olhou para baixo, para seu corpo marrom e branco, salpicado de vermelho. Instintivamente, procurou sentir seu pulso, que se apresentava lento mas regular. As firmes palpitações de vida reanimaram o seu espírito. Por que diabo estava ele se lamuriando? Estava vivo. As feridas e machucaduras em seu corpo não eram nada — absolutamente nada. Eram horríveis, mas nada estava quebrado. Por dentro do invólucro maltratado, a máquina estava trabalhando serena e seguramente. Cortes superficiais e esfoladuras, recordações sangrentas, cansaço mortal — estes seriam ferimentos dos quais se riria uma enfermeira experiente. Para a frente, seu bastardo! Para a frente! Limpe-se e levante-se. Conte as suas bênçãos. Pense na jovem. Pense no homem que você deverá encontrar e matar. Agarre-se à vida como se agarrou à faca entre os dentes. Acabe com esta autopiedade. Para o diabo com o que acaba de acontecer! Para dentro d’água e lave-se!

Dez minutos mais tarde, Bond, com seus farrapos molhados colados ao corpo já esfregado, e com os cabelos repuxados para fora dos olhos, galgava o cimo do penhasco.

Sim, era como ele tinha imaginado. Uma picada estreita e rochosa, feita pelos pés dos trabalhadores, descia para o outro lado, contornando a saliência do penhasco.

Das proximidades chegaram vários sons e ecos. Um guindaste estava trabalhando. Podia ouvir os ritmos variáveis de seu motor. Ouviam-se os barulhos peculiares, aos navios de ferro, bem como o ruído da água que era lançada ao mar por uma bomba de porão.

Bond olhou para cima, para o céu, que estava de um azul pálido. Nuvens manchadas de ouro e reflexos rosados derivavam em direção ao horizonte. Muito acima dele, os corvos marinhos esvoaçavam em torno da guaneira. Em breve estariam fazendo-se ao mar, em busca de alimentos. Talvez, agora, mesmo, estivessem vigiando os grupos de reconhecimento, longe, sobre o mar, na faina de localizarem os peixes. Seriam cerca de seis horas — a aurora de um belo dia.

Bond, deixando gotas de sangue atrás de si, seguiu o seu caminho cuidadosamente pela picada abaixo, beirando o sopé do penhasco. Para além da curva, a picada se infiltrava por um terreno cheio de pedras espalhadas. Os ruídos iam-se tornando mais altos. Bond ia avançando cuidadosamente, evitando pisar em pedras. Uma voz se fez ouvir surpreendentemente perto: ‘”Pronto para largar?” E logo uma resposta distante: “Pronto”. O motor do guindaste acelerou. Mais alguns metros. Mais um pedregulho; e mais outro. Agora!

Bond se ocultou por trás da rocha e cautelosamente meteu a cabeça para fora, a fim de observar.

 

 

                                         CONTINUA