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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O SATANICO DR. NO
O SATANICO DR. NO

 

                                                                                                                                              

 

 

 

 

 

XIV - ENCONTRO COM O DR. NO


O relógio elétrico, no salão escuro e fresco, enterrado no coração da montanha, mostrava que eram quatro horas e trinta minutos.

Do lado de fora da montanha, Crab Key tinha transpirado mais um dia e mais um dia de mau cheiro tinha passado. Na extremidade oriental da ilha, os bandos de aves, dentre as quais se destacavam as garças da Luisiânia, os pelicanos, narcejas, pequenas garças, flamingos e espátulas, continuavam construindo os seus ninhos ou pescando nas águas rasas do lago. A maior parte das aves tinha sido tão incomodada durante aquele ano, que não tentaria mais construir os seus ninhos. Nos últimos meses eles tinham sido atacados a intervalos regulares pelo monstro que aparecia durante a noite para destruir os seus ninhos e abrigos. Este ano, muitas daquelas aves não teriam cria. Haveria ainda algumas tentativas migratórias e muitas aves morreriam em conseqüência da histeria nervosa que se apodera das colônias de aves quando não podem mais ter paz e isolamento.

Na outra extremidade da ilha, no campo de guano que dava à colina a sua aparência de cimo encoberto pela neve, o enorme bando de corvos marinhos tinha passado mais um dia empanturrando-se com peixe e pagando, em troca, o seu dízimo de trinta e três gramas de precioso adubo ao seu senhor e protetor. Nada tinha interferido com a sua estação de procriação. Agora eles estavam ruidosamente ocupados com as pilhas de gravetos sujos que iriam servir de material para a construção de seus ninhos — com cada pilha disposta a sessenta centímetros da mais próxima, pois os corvos marinhos são aves muito briguentas e esta é a distância mínima capaz de assegurar a paz na colônia. Em breve as fêmeas estariam pondo os três ovos, dos quais a população avícola de seu senhor seria acrescida de pelo menos dois filhotes.

Abaixo do pico, onde tinha sido iniciada a escavação, uma centena mais ou menos de negros e mulheres, que constituiriam a força de trabalho operacional, estava-se aproximando de seu período de trabalho diurno. Outros cinco metros cúbicos de guano tinham sido escavados no flanco da montanha, e mais vinte metros de terraplenagem tinham sido acrescentados ao nível da extração. Mais abaixo, o flanco da montanha parecia recoberto de terraços de vinhas, como na Itália setentrional, embora aqui não existam vinhas, mas apenas profundos terraços escavados no flanco da montanha. E aqui, ao invés do mau cheiro do gás dos pântanos, que se estendia a toda a ilha, havia um forte cheiro de amoníaco, e o terrível vento quente que mantinha as escavações secas soprava aquela poeira marrom esbranquiçada, recentemente extraída, para os olhos, orelhas e narizes dos sapadores. Mas os trabalhadores estavam acostumados com aquele cheiro e com aquela poeira, e assim o trabalho era considerado fácil e saudável. Não tinham queixas.

A última vagoneta de ferro pôs-se em movimento sobre os trilhos “Decauville” que desciam da montanha em direção à instalação de moagem e separação. Ouviu-se um apito e os trabalhadores puseram as picaretas no ombro e começaram a descer vagarosamente em direção aos barracões pré-fabricados, que constituíam os seus alojamentos.

No dia seguinte, do outro lado da montanha, o navio, que mensalmente aportava àquelas paragens, aproximar-se-ia do cais de águas profundas, que aqueles mesmos trabalhadores tinham ajudado a construir, há dez anos, mas que desde então jamais tinham visto. A chegada daquele navio significava sempre o recebimento de abastecimentos frescos, novas mercadorias e bijuterias na cantina dos trabalhadores. Seria também um feriado. Haveria dança, rum e algumas brigas. A vida era boa.

A vida era boa também para os chefes da turma exterior — todos chineses negros como os agentes que tinham dado caça a Bond, a Quarrel e à jovem. Eles também interrompiam o seu trabalho na garagem, nas oficinas e nos postos de vigia, passando-se para os recintos dos “oficiais”. A não ser certas tarefas de vigilância e certas necessidades de carregamento, o dia seguinte seria um feriado para a maioria daqueles homens. Teriam também as suas bebidas, suas danças e mais uma batelada mensal de garotas “de dentro”. Alguns “casamentos” no último lote continuariam por mais alguns meses ou semanas, conforme o gosto dos “maridos”, mas para os outros haveria uma nova oferta. Encontrar-se-iam ainda algumas das jovens mais velhas, que já tinham tido os seus filhos na creche, e estavam voltando para uma nova temporada de trabalho “fora”, assim como uma ou outra jovem que tinha acabado de chegar à maturidade sexual e que “vinha para fora” pela primeira vez. Com relação a estas últimas, verificar-se-iam algumas lutas, e possivelmente algum sangue seria derramado, mas, por fim, o recinto dos “oficiais” se aquietaria durante mais um período de um mês, retomando a sua vida comunal, com cada “oficial” dispondo de uma mulher para satisfazer as suas necessidades.

No âmago do coração fresco da montanha, muito abaixo da vida disciplinada que se desenrolava na superfície, Bond despertou em sua confortável cama. A luz no quarto da garota estava acesa e ele podia ouvir que ela estava andando. Bond atirou os pés para o chão e, evitando os fragmentos de vidro provenientes da lâmpada quebrada, dirigiu-se silenciosamente para o armário das roupas e vestiu o primeiro quimono que lhe caiu nas mãos. Depois, foi até a porta. Honey tinha posto uma pilha de quimonos sobre a cama e estava experimentando um por um diante do espelho. Naquele momento ela vestia um muito elegante, de seda azul-celeste, que parecia maravilhoso naquele fundo dourado que era a sua pele. Bond disse-lhe: — Este está bem.

Ela deu meia volta e levou a mão à boca. Em seguida baixou-a e disse: — Ah, era você! — Sorriu para ele: — Pensei que você nunca mais acordasse. Fui olhá-lo várias vezes e já tinha decidido acordá-lo às cinco horas. São quatro e meia e eu estou esfaimada. Você poderá pedir alguma coisa para nós?

— Sem dúvida. — Bond aproximou-se de sua cama. Ao passar por ela, enlaçou-a com o braço e arrastou-a consigo. Examinou os botões das campainhas e apertou o que tinha a tabuleta: “Sala de serviço”. Depois acrescentou: — E quando aos outros? Por que não havemos de receber cuidados completos?

Ela riu com galhofa: — Mas o que é uma manicura?

— Alguém que trata de suas unhas. Devemos apresentar a nossa melhor aparência ao Dr. No. — No fundo da mente de Bond estava a preocupação de se apossar de alguma espécie de arma — um par de tesouras seria melhor do que nada. Qualquer coisa serviria.

Apertou mais dois botões. Em seguida deixou-a desprender-se de seus braços e correu os olhos pelo quarto. Alguém tinha entrado enquanto dormiam e retirara o serviço do desjejum. Havia um bandeja de bebidas, num aparador, junto à parede. Bond aproximou-se daquela peça e examinou-a. Tinha de tudo. Entre as garrafas estavam dois cardápios. Aqueles cardápios poderiam ter saído do restaurante do Savoy, de “21” ou do “Tour d’Argent”. Bond percorreu com os olhos uma daquelas listas. Começava com ‘”Caviar double de Beluga” e terminava com “Sorbet au Champagne”. Entre aqueles dois fechos de prata e ouro estavam todos os pratos cujos elementos constitutivos não eram afetados pelo processo de rápido congelamento. Bond lançou-o novamente sobre a bandeja. Certamente que não se poderia reclamar a qualidade do queijo utilizado na armadilha!

Ouviu-se uma batida na porta e a sofisticada May entrou, seguida por outras duas belas jovens chinesas. Bond dispensou bruscamente as suas amabilidades, pediu chá e torradas com manteiga para Honeychile e disse-lhes que tratassem das unhas e dos cabelos da jovem. Depois foi ao banheiro, tomou duas aspirinas e um banho frio de chuveiro. Tornou a vestir o quimono, julgou-se com uma aparência de idiota e voltou para o quarto. May, sorridente, perguntou-lhe se queria escolher o que gostaria de ter no jantar para si e para a sra. Bryce. Sem entusiasmo, Bond pediu caviar, costeletas grelhadas de carneiro e salada e ostras com toucinho frito. Quando Honeychile se recusou a fazer sugestões, escolheu para ela melão, frango assado à inglesa e sorvete de vanilina com creme de chocolate.

May fez o seu sorriso de covinhas, que significava entusiasmo e aprovação. — O Doutor pergunta se sete horas e quarenta e cinco minutos será uma hora conveniente — disse.

Bond aquiesceu laconicamente.

— Muito obrigada, sr. Bryce. Virei chamá-lo às sete e quarenta e quatro.

Bond encaminhou-se para onde Honeychile estava sendo atendida, na penteadeira, e ficou observando os operosos e delicados dedos ocupados em tratar dos cabelos e das unhas da jovem. Ela sorriu para ele excitadamente, pelo espelho. Ele disse com mau humor: — Não permita que elas a deixem muito parecida com uma macaca. — Depois encaminhou-se para a bandeja de bebidas. Serviu-se de um forte Bourbon com soda e levou o copo para o seu quarto. Sua intenção de se apoderar de uma arma ainda não se concretizara. As limas e tesouras estavam presas por uma corrente à cintura da manicura, da mesma forma que a tesoura da penteadora. Bond sentou-se em sua cama desfeita e absorveu-se em sombrias reflexões.

As mulheres se retiraram. A jovem olhou-o, mas quando sentiu que ele não levantaria a cabeça, voltou para o seu quarto e o deixou sozinho. Depois de algum tempo, entretanto, Bond entrou no quarto dela para apanhar mais um copo de bebida. Disse negligentemente: — Honey, você está maravilhosa! — Depois, olhou para o relógio da parede e voltou para beber mais um copo e pôr mais um daqueles ridículos quimonos, desta vez um todo negro.

Passados alguns minutos ouviu-se novamente a delicada batida na porta e os dois deixaram silenciosamente o quarto, ganhando o corredor. May parou diante do elevador, cujas portas tinham sido mantidas abertas por outra chinesa atenciosa. Ambos entraram e as portas se fecharam. Bond observou que aquele elevador era da marca “Waygood Otis”. Com efeito, tudo naquela prisão era luxuoso. Bond teve um estremecimento de desgosto. A reação da jovem não lhe passou despercebida, e voltando-se para ela disse: — Desculpe-me, Honey; estou com um pouco de dor de cabeça. — Não quis confessar-lhe que toda aquela luxuosa encenação estava começando a dar-lhe nos nervos; que não tinha a mínima idéia do que tudo aquilo poderia representar; que sabia que aquilo só poderia ser um mau augúrio; e que, finalmente, não tinha uma sombra de plano capaz de tirá-los daquela situação. E isso era o pior. Com efeito, nada deixava Bond mais deprimido do que saber que não tinha podido arquitetar a mínima linha de ataque ou defesa.

A jovem se aproximou dele, e disse: — Desculpe-me, James. Espero que isso passe. Você não está zangado comigo por alguma coisa?

Bond conseguiu esboçar um sorriso e responder: — Não; querida. Estou apenas aborrecido comigo mesmo. — Depois, abaixando a voz: — Agora, a respeito desta noite: deixe a falação comigo. Seja natural e não se preocupe com o Dr. No. Ele pode ser meio louco.

Ela fez um sinal de solene aquiescência: — Farei tudo o que puder.

O elevador parou, sem que Bond tivesse a mínima idéia da distância que tinham percorrido — talvez cem pés, talvez duzentos? As portas automáticas se abriram e Bond, juntamente com a jovem, saiu para uma ampla sala.

A peça estava vazia. Tinha um teto muito alto, cerca de sessenta pés de comprimento, e três das paredes cobertas por prateleiras de livros até o teto. A um primeiro olhar, a quarta parede parecia feita de vidro azul muito escuro. A sala parecia ser uma combinação de estúdio e biblioteca. Havia ainda a um canto um grande mesa coberta de papéis em desordem, e uma mesa central com revistas e jornais. Espalhadas em vários pontos, encontravam-se também confortáveis poltronas, como se vêem nos clubes, forradas de couro vermelho. O tapete era verde escuro, e a iluminação, de lâmpadas comuns, era velada. A única particularidade estranha estava na bandeja de bebidas e no aparador lateral, que estavam encostados no meio da longa parede de vidro, enquanto cadeiras e mesas avulsas, com cinzeiros, estavam dispostas em semicírculo à volta dela, de modo que a sala parecia ter como centro aquela parede vazia.

Os olhos de Bond perceberam um movimento naquele vidro escuro. Atravessou a sala e aproximou-se daquela parede. Um grupo de pequeninos peixes, perseguidos por um grande peixe, desapareceu naquele abismo azul escuro, como se tivessem desaparecido da superfície de uma tela. Que era aquilo? Um aquário? Bond olhou para cima. Um metro abaixo do teto, pequenas ondas estavam como que lambendo o vidro. Por sobre aquelas pequeninas ondulações via-se uma faixa azul-escura, mas de um azul mais acinzentado, pontilhada de faíscas de luz. Os contornos da Orion serviram de chave para o enigma. Não se tratava de um aquário. Aquilo era o próprio mar e o céu à noite.

Toda uma parede daquela sala tinha sido construída de vidro reforçado. Estavam sob o mar, contemplando o seu âmago, a vinte pés de profundidade.

Bond e a jovem estavam boquiabertos. Enquanto observavam, apareceram naquela tela dois enormes olhos arregalados. O brilho de uma cabeça dourada e de um flanco mostrou-se em seguida por um instante e desapareceu. Seria uma grande garupa? Um enxame prateado de anchovas deteve-se, agitou-se por um breve instante e desapareceu. Os tentáculos de sete metros de uma pisália ou “varavela” deslizaram vagarosamente por trás do vidro, despedindo reflexos violetas quando a luz incidia sobre eles. Ao alto, via-se agora a massa escura de seu ventre inferior e o contorno de sua bexiga inflada, velejando com a brisa.

Bond caminhou ao longo da parede, fascinado pela idéia de viver diante daquele quadro que se renovava lentamente, mas de maneira incessante. Uma grande concha de voluta avançava vagarosamente, a partir do nível do sol, e um cardume de peixes coloridos peixes-anjos e lúcios vermelhos como rubis chocavam-se e esfregavam-se entre si e de encontro a um canto do vidro, enquanto uma centopéia marinha atravessava aquele cenário, mordiscando as minúsculas algas que diariamente deviam nascer sobre a superfície exterior do vidro. Uma comprida sombra negra deteve-se bem no meio da janela e depois se afastou vagarosamente. Se se pudesse ver mais!

Obedientemente, dois grandes eixos de luz, partindo da tela, lançaram-se profundamente na água. Por um instante esquadrinharam a massa líquida; depois, convergiram sobre a sombra fugidia, e então pôde-se ver bem, em todos os seus detalhes, aquele torpedo cinza escuro de quase quatro metros, que era o corpo de um enorme tubarão. Bond pôde ver até os pequeninos olhos porcinos revolvendo-se inquisitivamente sob a luz dos projetores e a lenta pulsação das guelras. Por um segundo, o tubarão pôs-se em linha reta com o feixe luminoso e a meia-luz branca de sua boca mostrou-se sob a sua cabeça de réptil. Permaneceu apenas um instante naquela posição e depois, com urna viravolta elegante e de desprezo, a sua grande cauda negra voltou-se para os espectadores e com rapidíssimo estremecimento o tubarão desapareceu.

Os feixes de luz desapareceram e Bond voltou-se lentamente. Esperava encontrar o Dr. No, mas a sala continuava vazia. Aquele ambiente parecia estático e sem vida, em comparação com os mistérios que pulsavam do lado de fora. Bond olhou para trás. Como seria aquilo durante o dia, quando se poderia talvez ver até vinte metros de distância ou mais? E o que não seria durante uma tempestade, quando as vagas arrebentassem sem ruído sobre o vidro, mergulhando quase até o chão para depois emergirem e se afastarem? O que não seria também ao crepúsculo, quando os últimos raios dourados do sol brilhassem na metade superior da sala e as águas inferiores estivessem pululando com enxames de insetos aquáticos? Que homem extraordinário este que sonhara com aquela criação fantástica, e que notável proeza de engenharia ter concretizado aquela fantasia! Como o teria ele conseguido? Devia haver apenas uma maneira de levar aquele prodígio a bom termo. Com certeza construíra a parede de vidro, afundando-a com cuidado no penhasco, e depois fora removendo delicadamente, camada após camada de rocha, até que os mergulhadores chegassem finalmente ao vidro. Mas qual seria a espessura do vidro? Quem o fabricara para ele? Como fora transportado para a ilha? Quantos mergulhadores teriam sido utilizados? E quanto, Deus do céu, teria custado aquela peça?

— Um milhão de dólares.

Aquela resposta aos seus pensamentos fora dada por uma voz cavernosa com sotaque americano.

Bond virou-se lentamente, quase relutantemente, despregando os olhos da tela de vidro.

O Dr. No. Tinha entrado por uma porta situada atrás de sua mesa de trabalho. Ficou a olhar benevolentemente para ambos, com um fino sorriso nos lábios.

— Espero que vocês tenham estado a pensar no custo disso. Meus hóspedes geralmente pensam no lado material depois de uns quinze minutos de admiração. Vocês também o faziam?

— Sim.

Ainda sorrindo (Bond iria logo acostumar-se àquele fino sorriso), o Dr. No saiu lentamente detrás da mesa e avançou para eles. Parecia antes deslizar do que dar passos. Os seus joelhos não assinalavam o brilho dourado do quimono e nenhum pé se via sob a barra do vestuário.

A primeira impressão de Bond foi de magreza, altura e ereção. O Dr. No era pelo menos seis polegadas mais alto do que Bond, mas a pose tesa e inamovível de seu corpo fazia que parecesse ainda mais alto. A cabeça era um ovóide alongado e expandia-se num crânio completamente calvo que aflava para baixo até um queixo pontiagudo, de modo que a impressão dada pelo conjunto era a de uma gota d’água invertida, ou antes, uma gota de óleo, já que a pele do Dr. No era de um amarelo carregado e quase translúcido.

Era impossível dizer-se a idade do Dr. No: até onde Bond podia ver, não havia rugas em seu rosto. Era estranho ver-se uma testa tão lisa quanto o alto da cabeça. Mesmo as cavernosas depressões das maçãs de seu rosto pareciam tão lisas como o melhor marfim. Havia qualquer coisa das visões de Salvador Dali em suas sobrancelhas, que eram finas e negras, acentuadamente repuxadas para cima, como se tivessem sido pintadas, como parte do “make up” de um mágico. Por baixo daquelas sobrancelhas, olhos negros e oblíquos brilhavam sem pestanas. Pareciam-se com as bocas de dois pequenos revólveres, fitando de maneira direta e sem pestanejar, embora completamente desprovidos de expressão. O nariz aflado e comprido terminava muito perto de uma boca que, apesar do permanente sorriso, mostrava em sua conformação apenas crueldade e autoridade. O queixo era como que inclinado para trás, em direção ao pescoço. Mais tarde Bond deveria notar que ele raramente se deslocava levemente de sua posição central, dando a impressão de que a cabeça e as vértebras eram feitas de uma só peça.

Aquela figura bizarra dava a impressão de um verme gigantesco e venenoso, envolto numa película metálica cinzenta, e Bond não se teria surpreendido se visse aquele ser arrastar-se pelo tapete que pisava.

O Dr. No chegou a três passos deles e deteve-se. O talho naquela comprida face descerrou-se: — Perdoem-me por não lhes apertar a mão. — Lentamente as mangas se abriram e ele acompanhou o gesto com as palavras: — Não tenho mãos.

Os dois pares de pinças de aço avançaram de seus tocos e foram mantidas a certa altura, como as patas de um louva-Deus, para que os visitantes as examinassem. Depois as duas mangas tornaram a fechar-se.

Bond sentiu que a jovem ao seu lado tivera um estremecimento.

As negras órbitas tinham-se voltado para ela, fixando-se em seu nariz, e a voz acrescentou impessoalmente: — É um infortúnio. — Depois os olhos se desviaram para Bond: — O senhor estava admirando o meu aquário. — Era uma declaração, não uma pergunta. — Os homens apreciam os animais e as aves. Resolvi apreciar também os peixes. Encontro neles muito mais variedades e acho-os muito mais interessantes. Estou certo de que ambos compartilham o meu entusiasmo.

Bond disse: — Felicito-o por tudo isso. Nunca esquecerei esta sala.

— Não. — E aquela negativa era mais uma declaração, talvez com uma sardônica inflexão. — Mas nós teremos muito sobre o que falar. E muito pouco tempo. Por favor, sentem-se. Aceita uma bebida? Os cigarros estão ao lado de suas cadeiras.

O Dr. No aproximou-se de uma alta cadeira de couro e poder-se-ia dizer que se dobrou ao meio, para nela sentar. Bond ocupou a cadeira oposta, e a jovem sentou-se entre ambos, um pouco para trás.

Bond sentiu um leve movimento atrás de si. Olhou por cima do ombro e viu um chinês negro, com o físico de um lutador, que se mantinha de pé junto à bandeja de bebidas. Vestia calças pretas e uma elegante jaqueta branca. Dois olhos negros em feitio de amêndoa numa face de lua cheia encontraram-se com os seus e logo se afastaram desatentamente.

O Dr. No disse: — Este é meu guarda-costas. É um técnico em muitas coisas. Não há nenhum mistério em sua súbita aparição. Eu sempre trago comigo um pequeno transmissor portátil — e o Dr. No baixou o queixo em direção ao peito. — Dessa forma posso chamá-lo sempre que ele se torna necessário. O que desejará a jovem?.

Ele não dissera “sua esposa”. Bond voltou-se para Honeychile. Seus olhos estavam arregalados e fixos. Ela disse suavemente: Uma Coca-Cola, por favor.

Bond teve um momento de alívio. Pelo menos ela não se estava deixando esmagar pela representação. Bond acrescentou: — E eu gostaria de um Vodka médio e Martini seco — com uma fatia de casca de limão. Sacudido, mas não batido, por favor. Preferiria vodka russo ou polonês.

O Dr. No acentuou um pouco mais o seu fino sorriso e disse: — Vejo que o senhor também é um homem que sabe o que quer. Neste momento os seus desejos serão satisfeitos. Não acha que geralmente assim acontece? Quando alguém quer alguma coisa, consegue-o. Esta tem sido a minha experiência.

— As pequenas coisas.

— Se se falha com as grandes coisas, isto significa apenas que não se têm grandes ambições. Concentração — eis tudo. As aptidões vêm, e as ferramentas forjam-se por si mesmas. “Dê-me um ponto de apoio e eu deslocarei o mundo” — mas apenas se existir a vontade de deslocar o mundo. — Depois os finos lábios baixaram nos cantos, com desprezo:

— Mas isto é palração; o que estamos fazendo é conversar; mas em vez disso falemos. Ambos nós, estou certo, preferimos falar a conversar. O Martini está a seu gosto? O senhor já tem cigarros — bastantes e da marca apropriada para excitar o seu câncer? Que assim seja. Samsam, ponha o batedor ao lado do homem e outra garrafa de Coca-Cola ao lado da jovem. Agora devem ser oito e dez. Jantaremos exatamente às nove horas. —. O Dr. No sentou levemente mais erecto em sua cadeira. Inclinou-se para a frente, fixando os olhos em Bond. Houve um momento de silêncio na sala. Depois o Dr. No disse: — E agora, Sr. James Bond, do Serviço Secreto, contemo-nos os nossos segredos. Primeiro, para mostrar-lhe que não escondo os meus, vou contá-los. Depois o senhor me contará os seus. — Os olhos do Dr. No brilhavam sombriamente. — Mas contemo-nos a verdade. — Uma pinça saiu de sua ampla manga e manteve-se avançada. Fez uma pausa:

— Assim farei, mas o senhor deve proceder da mesma forma, pois se não o fizer — e apontou com a pinça para seus próprios olhos — estes saberão que o senhor está mentindo.

O Dr. No aproximara a pinça de aço de seus olhos e tocara-os delicadamente. Cada um daqueles olhos emitiu então uma abafado tinido. — Estes — acrescentou o Dr. No — vêem tudo.


XV - A CAIXA DE PANDORA


James Bond apanhou o seu copo e bebeu pensativa-mente. Era inútil continuar blefando. De qualquer forma a sua história de representante da Sociedade Audubon era muito inconsistente e com muita facilidade poderia ser destruída por quem quer que entendesse de pássaros. Era evidente que a sua máscara tinha sido reduzida a pedaços. Agora devia concentrar-se em proteger a jovem. Para começar, devia infundir-lhe coragem.

Bond sorriu para o Dr. No, e disse: — Conheço o seu contato em King’s House, a senhorita Taro. Ela é seu agente. Registrei esse fato e ele será divulgado em certas circunstâncias — a expressão do Dr. No não traiu nenhum interesse

— como acontecerá com outros fatos. Mas se é que devemos falar francamente, façamo-lo sem quaisquer outros efeitos teatrais. O senhor é um homem interessante, mas não é necessário fazer-se mais interessante do que já é. O senhor teve o infortúnio de perder as mãos. Usa mãos mecânicas. Muitos homens, feridos durante a guerra, usam-nas também. O senhor usa também lentes de contato, ao invés de óculos, e transmissor, ao invés de uma campainha para chamar os seus empregados. Não há dúvida de que se utilizará ainda de outros engenhosos truques. Mas, Dr. No, o senhor continua sendo um homem que come, dorme e defeca como qualquer um de nós. Portanto, cessemos com os truques de magia, por favor. Não sou um dos seus mineiros de guano e não me deixarei impressionar por eles.

O Dr. No inclinou um pouco a cabeça. — Falou com muita bravura, senhor Bond. Aceito a admoestação. Não há dúvida de que desenvolvi maneirismos desagradáveis por ter vivido tanto tempo na companhia de macacos. Mas não tome esses maneirismos por blefe. Sou um técnico. Preparo a ferramenta para o material. Possuo também uma série de ferramentas para trabalhar com materiais refratários. Entretanto, — o Dr. No levantou uma polegada as suas mangas e depois as deixou cair no colo — continuemos nossa conversa. É um raro prazer ter-se um ouvinte inteligente e vou contar-lhe a história de um dos homens mais notáveis do mundo. O senhor será a primeira pessoa a ouvi-la. Não a contei antes. O senhor será a única pessoa que encontrei capaz de apreciar a minha história e também — o Dr. No fez uma pausa para que se não perdesse o significado das últimas palavras — guardá-la para si.” Depois, continuou: — A segunda dessas considerações também se aplica à jovem.

Então a coisa era essa. Não houvera, a mínima dúvida, na mente de Bond, de que aquele homem era um assassino e que iria travar-se um duelo de morte. Tinha nutrido também a sua habitual fé cega de que venceria aquele duelo — pelo menos até o momento em que o lança-chamas tinha apontado em sua direção. A partir daquele momento começara a duvidar. Agora sabia bastante: aquele homem era demasiado forte e demasiadamente bem equipado.

Bond disse: — Não há necessidade de que a jovem ouça isto. Ela nada tem a ver comigo. Encontrei-a ontem, na praia. É uma jamaicana de Porto Morgan e dedica-se à pesca de conchas. Os seus homens destruíram a canoa dela, por isso tive que trazê-la comigo. Mande-a agora embora e depois para casa. Ela nada falará. Poderá jurá-lo.

A jovem interrompeu-o corajosamente: — Eu falarei! Direi tudo. Não sairei daqui e vou ficar com você.

Bond olhou-a, e disse friamente: — Eu não a quero.

O Dr. No disse suavemente: — Não perca o seu fôlego com heroísmos. Ninguém que já chegou a esta ilha dela saiu. Compreende? Ninguém — nem mesmo o mais humilde pescador. Não discuta comigo, nem tente enganar-me. Seria completamente inútil.

Bond examinou aquele rosto. Não havia nele ódio ou obstinação — nada além de uma suprema indiferença. Olhou para a jovem e sorriu, dizendo: — Muito bem, Honey. Sentiria bastante se você fosse embora. Fiquemos juntos para ouvir o que o maníaco tem a dizer.

A garota fez um sinal de feliz assentimento. Era como se o seu amado tivesse ameaçado expulsá-la do cinema e depois perdoado.

O Dr. No disse na mesma voz suave e ressonante: — O senhor tem razão, senhor Bond. Isto é exatamente o que sou: um maníaco. Todos os grandes homens são maníacos. Estão possuídos por uma mania que os impele para a frente até atingirem o seu objetivo. Os grandes cientistas, os grandes artistas, filósofos, os chefes religiosos — são todos maníacos. O que mais, a não ser uma concentração de propósitos, poderia ter fornecido o foco para o seu gênio, ou os teria mantido na trilha de seus objetivos? Mania, meu caro senhor Bond, é uma coisa tão preciosa quanto o gênio. A dissipação da energia, a fragmentação da visão, a perda de impulso, a falta de continuidade — esses são os vícios do rebanho. — O Dr. No sentou-se levemente reclinado para trás. — Não possuo esses vícios. Sou, como o senhor corretamente o diz, um maníaco — um maníaco, senhor Bond, com a mania do poder. Isto — e os buracos negros brilharam fixamente sobre Bond, através das lentes de contato — tem sido a significação de minha vida. Este o motivo pelo qual aqui estou, e da existência disto aqui.

Bond apanhou o seu copo e esvaziou-o. Depois, encheu-o novamente. Em seguida disse: — Não estou surpreendido. É a velha questão de pensar que se é o rei da Inglaterra, ou o presidente dos Estados Unidos, ou Deus. O hospício está cheio dessa gente. A única diferença está em que, ao invés de ter sido trancafiado, o senhor construiu o seu próprio hospício e nele se encerrou. Mas por que o fez? Por que o sentar-se aqui, isoladamente, lhe dá a ilusão do poder?

Um sentimento de irritação agitou os cantos daquela fina boca. — Senhor Bond, poder é soberania. O primeiro princípio de Clausewitz era o ter-se uma base segura. Desta avança-se com liberdade de ação. As duas coisas juntas constituem a soberania. Garanti essas duas coisas e muito mais. Ninguém no mundo as possui em tão alto grau. Ninguém pode tê-las. O mundo é demasiado público. Tais coisas apenas podem ser salvaguardadas em segredo. O senhor fala de reis e presidentes. Quanto poder possuem eles? Tanto quanto os seus povos lhes derem. Quem no mundo tem poder de vida ou morte sobre os seus súditos? Agora que Stalin está morto, poderá o senhor citar alguém a não ser eu? E como possuo esse poder e essa soberania? Graças ao isolamento. Graças ao fato de que ninguém sabe. Graças ao fato de que não tenho que dar satisfações a ninguém.

Bond deu de ombros. Depois comentou: — Isto não passa de ilusão do poder, Dr. No. Qualquer homem armado de um revólver tem o poder de vida e morte sobre o seu vizinho. Outras pessoas que não o senhor têm assassinado em segredo e escapado livres. Por fim, geralmente, recebem a retribuição. Um poder mais alto do que o deles é sobre eles exercido pela comunidade. Isto também lhe acontecerá, Dr. No. Digo-lhe que a sua busca de poder é uma ilusão, porque o próprio poder é uma ilusão.

O Dr. No disse serenamente: — Assim também a beleza, senhor Bond. Assim também a arte, assim também o dinheiro. E, também, provavelmente a vida. Esses conceitos são relativos. Sou versado em Filosofa, Ética e Lógica — mais do que o senhor, posso dizê-lo. Mas deixemos de lado esse debate estéril. Voltemos ao meu ponto de partida, com a minha mania pelo poder, ou, se o prefere, pela ilusão do poder. E, por favor, sr. Bond, — viu-se novamente acentuar-se o seu permanente sorriso — não pense que meia-hora de conversação com o senhor alterará os padrões de minha vida. Procure interessar-se, antes, na história de minha luta por, digamos, uma ilusão.

— Prossiga. — Bond olhou para a jovem e os seus olhos se encontraram. Ela levou a mão à boca, como que para esconder um bocejo. Bond sorriu para ela e pensou quanto o Dr. No se divertiria destruindo-lhe aquela pose de indiferença.

O Dr. No disse com benevolência: — Procurarei não aborrecê-lo. Os fatos são muito mais interessantes do que as teorias, não acha? — O Dr. No não estava esperando resposta. Seus olhos agora se tinham fixado na elegante concha que agora tinha vencido metade da janela de vidro, no seio do mar. Algum pequeno peixe prateado mergulhou no abismo negro; uma pequenina luminosidade azul e fosforescente vagueou sem destino. No alto, à altura do teto, aparecia o brilho das estrelas, que resplandeciam através do vidro.

O artificialismo da cena, no interior da sala — as três pessoas sentadas em cadeiras confortáveis, as bebidas no aparador, o luxuoso tapete, as luzes veladas, subitamente assumiram para Bond um tom de comicidade. Mesmo o drama que a situação encerrava, o perigo, eram coisas frágeis em comparação com a progressão da concha do lado de fora do vidro. Supondo-se que o vidro arrebentasse, que as pressões tivessem sido mal calculadas, que a mão-de-obra apresentasse defeitos, ou que o mar resolvesse apoiar-se mais pesadamente sobre aquela tela vítrea?

O Dr. No disse: — Eu fui o único filho de um missionário metodista alemão e de uma jovem chinesa de boa família. Nasci em Pequim, mas no que se costumava dizer ser “o lado errado do tapete”. Eu representava um estorvo. Uma tia de minha mãe foi paga para criar-me. — O Dr. No fez uma pausa. — Nenhum amor, como vê, senhor Bond. Falta de cuidados paternos. — E prosseguiu: — A semente tinha sido lançada. Fui trabalhar em Xangai e envolvi-me com os Tongs e com os seus métodos ilícitos. Gostava das conspirações, dos assaltos, assassínios, incêndios premeditados das propriedades seguradas, pois isso representava para mim a revolta contra a figura do pai que me tinha traído. Gostava da morte e da destruição de pessoas e coisas. Tornei-me adepto da técnica na criminalidade — se desejar usar este nome. Depois, surgiram dificuldades e tive que ser afastado do caminho, mas os Tongs consideravam-me demasiado valioso para ser morto. Fui então contrabandeado para os Estados Unidos, estabelecendo-me em Nova Iorque. Tinha uma carta de apresentação, em código, para um dos dois mais poderosos Tongs da América, os Hip Sings. Nunca soube o que dizia aquela carta, mas fui imediatamente empregado como um auxiliar confidencial. No momento oportuno, na idade de trinta anos, fui promovido a uma espécie de tesoureiro. O tesouro continha mais de um milhão de dólares e eu cobiçava aquele dinheiro. Foi quando começaram as grandes guerras dos Tongs, nos últimos anos da década de 1920/30. Os dois grandes Tongs de Nova Iorque, o meu próprio, isto é, o dos Hip Sings, e o nosso rival, os On Lee Ongs, chocaram-se em terríveis combates. Em semanas, centenas foram mortos de lado a lado, e as suas casas e propriedades queimadas. Foi um período de tortura, assassínio e incêndios, do qual participei com verdadeiro prazer. Por fim, vieram os destacamentos de choque, e quase toda a força policial de Nova Iorque foi mobilizada. Os dois exércitos clandestinos foram atacados isoladamente, os quartéis-generais dos dois Tongs sofreram incursões e os seus chefes foram enviados para a cadeia. Eu recebi um aviso relativamente à incursão que iria realizar-se contra o meu próprio Tong. Algumas horas antes que ela se efetuasse, fui ao cofre forte, apoderei-me de um milhão de dólares, em ouro, e desapareci em Harlem, procurando ocultar-me cuidadosamente. Não obstante, fui tolo, pois deveria ter deixado os Estados Unidos, atingindo o canto mais remoto da terra. Até mesmo de dentro de suas celas de condenados, em Sing-Sing, os chefes do meu Tong lograram alcançar-me, golpeando-me. Os assassinos vieram durante a noite. Recusei-me a dizer onde estava o ouro e eles me torturaram durante toda a noite. Por fim, quando viram que não podiam vencer a minha resistência cortaram-me as mãos, para mostrar que o cadáver era o de um ladrão. Depois dispararam contra o meu coração e fugiram. Desconheciam, entretanto, um detalhe a meu respeito. Sou um dos homens, em cada milhão, que tem o coração do lado direito do peito. Tal é a proporção: um contra um milhão. Graças a isso, escapei. Por pura força de vontade sobrevivi à operação e aos meses de tratamento no hospital. E durante todo aquele tempo planejei como fugir com o dinheiro, como guardá-lo e o que fazer dele.

O Dr. No fez uma pausa. Suas têmporas estavam ligeiramente coradas. Seu corpo remexia-se dentro do quimono. Suas recordações certamente o tinham excitado. Por um momento fechou os olhos, compondo-se. Bond pensou: Agora! Saltarei sobre ele, matando-o? Quebro o meu copo e faça-o com um caco?

Os olhos se abriram e perguntaram: — Não os estou incomodando? Com certeza? Por um momento acreditei que a atenção dos senhores se dispersava.

— Não. — A oportunidade já tinha passado. Chegariam outras? Bond mediu bem as polegadas do salto e observou que a veia jugular estava bem à mostra, sobre a gola do quimono.

Os finos lábios arroxeados tornaram a fender-se e a história continuou: — Era, senhor Bond, o momento para decisões firmes e claras. Quando eles me deixaram sair fui ter com Silberstein, o maior comerciante de selos em Nova Iorque. Comprei um envelope, apenas um envelope, cheio dos mais raros selos do mundo. Foram necessárias semanas para reuni-los todos. Mas eu não me importei com o que tive de pagar nas praças de Nova Iorque, Londres, Paris e Zurique. Queria que o meu ouro se tornasse extremamente móvel. Investi-o todo nesses selos. Já tinha previsto a Grande Guerra, e sabia que uma de suas conseqüências seria a inflação. Sabia que o melhor se valorizaria ou pelo menos conservaria o seu valor. Entrementes, procurava mudar a minha aparência. Fiz que todos os meus cabelos fossem arrancados pelas raízes, meu espesso nariz aflasse, minha boca tornada maior e meus lábios afinados. Não podia tornar-me mais baixo, de modo que me tornei mais alto. Passei a usar sapatos especiais. Modifiquei toda a minha aparência. Deixei de lado as minhas pinças mecânicas e passei a usar mãos de cera dentro de luvas. Mudei o meu nome para Julius No — o Julius, de meu pai, e o No como rejeição dele e de toda e qualquer autoridade. Joguei fora meus óculos e comecei a usar lentes de contato. — um dos primeiros pares que foram fabricados. Em seguida fui a Milwaukee, onde não se encontram chineses, e inscrevi-me na faculdade de medicina. Escondi-me assim no mundo acadêmico, no mundo das bibliotecas e dos laboratórios, das aulas e dos acampamentos estudantis. E ali, também, senhor Bond, perdi-me no estudo do corpo e da mente humana. Por que? Porque desejava saber do quanto é capaz este barro. Queria conhecer os meus instrumentos, antes de começar a empregá-los na consecução de meu próximo objetivo — segurança total contra a fraqueza física, contra os perigos materiais e contra os azares da vida. Então, sr. Bond, daquela base segura, couraçado até mesmo contra as setas fundas e ocasionais do mundo, eu me lançaria à conquista do poder — o poder, sr. Bond, de fazer aos outros o que me fora feito, o poder de vida e morte, o poder de julgar, de decidir, o poder da independência absoluta relativamente a qualquer autoridade. Porque isso, sr. Bond, queira o senhor apreciá-lo ou não, é a essência do poder temporal.

Bond esticou o braço e serviu-se de mais uma dose de bebida. Depois, olhou para Honeychile. Ela parecia senhora de si e indiferente — como se a sua mente estivesse ocupada com outras coisas. Ela riu para ele.

O Dr. No disse com benevolência: — Espero que o senhor não esteja com fome. Tenha um pouco mais de paciência. Serei breve. Então, se ainda se recorda, eu estava em Milwaukee. Com o correr do tempo, completei os meus estudos e deixei os Estados Unidos, deslocando-me, por etapas fáceis, ao redor de todo o mundo. Intitulei-me “médico”, porque os médicos recebem confidencias e podem fazer perguntas sem despertar suspeitas. Estava procurando um lugar apropriado para o meu quartel-general. Tinha que ser um lugar seguro com relação à guerra que se aproximava; devia ser uma ilha, e estritamente particular, além de capaz de desenvolvimento industrial. Por fim, comprei Crab Key e aqui estou há catorze anos. Estes têm sido anos seguros e frutíferos, sem nuvens no horizonte. Enamorei-me da idéia de transformar os excrementos de pássaros em ouro, e ataquei o problema com paixão. Esta parecia-me a indústria ideal, pois havia uma procura permanente pelo produto, e as aves não reclamam nenhum cuidado, a não ser que as deixem em paz. Cada uma delas representa uma fábrica transformadora de peixe em adubo. A extração do guano é apenas uma questão de não estragar o produto mediante uma extração indiscriminada. O único problema é, na verdade, o custo da mão-de-obra. Estávamos em 1942. O trabalhador braçal ganhava, em Jamaica e em Cuba, apenas dez xelins por semana, e eu tentei uma centena deles a vir para a ilha mediante pagamento de doze xelins por semana. Com o guano a cinqüenta dólares a tonelada, eu estava muito bem colocado, mas sob uma condição, isto é, que os preços permanecessem estáveis. Consegui isto isolando completamente a minha propriedade do mundo inflacionário. Métodos brutais tiveram que ser empregados, de vez em quando, mas o resultado foi que os meus trabalhadores estão satisfeitos com os meus salários, pois representam os salários mais elevados que jamais tiveram. Trouxe para cá uma dúzia de negros chineses, com suas famílias, para atuarem como capatazes. Recebem uma libra por semana. São rijos e merecedores de confiança. Por vezes tive que ser violento com eles, mas logo aprenderam. Automaticamente a minha população foi aumentando, e acrescentei-lhe alguns engenheiros e construtores. Começamos a trabalhar na montanha e contratei especialistas com elevados salários. Tais especialistas eram mantidos afastados dos outros trabalhadores. Viviam no interior da montanha, enquanto durasse o seu trabalho, depois deixavam a ilha por navio. Foram eles que fizeram a instalação elétrica, puseram a ventilação e instalaram o elevador. Construíram ainda esta sala. O acabamento, cortinas e o resto, veio de toda parte do mundo. Foram ainda esses técnicos que construíram essa fachada de sanatório que serve para ocultar as minhas operações, no caso de um dia haver um naufrágio ou de o governador de Jamaica resolver fazer-me uma visita. — E aqueles lábios brilharam com um sorriso: — O senhor deve concordar em que sou capaz, se quiser, de conferir a mais distinta recepção a qualquer visitante — uma sábia precaução para o futuro! E, gradualmente, metòdicamente, minha fortaleza foi sendo construída, enquanto as aves iam defecando em seu teto. Mas foi duro, sr. Bond. — Os seus olhos negros não procuravam simpatia ou louvor. — Contudo, no fim do ano passado, todos os trabalhos foram terminados. Uma base segura e bem camuflada tinha sido terminada. Estava pronto para dar o próximo passo — a extensão do meu poder para o mundo exterior.

O Dr. No fez uma pausa. Levantou os braços, uma polegada, e deixou-os cair novamente no colo. — Sr. Bond, eu disse que não houve uma só nuvem nos céus durante estes últimos catorze anos. Mas, na verdade, houve sempre uma nuvem, durante todo o tempo, abaixo do horizonte. E o senhor sabe que nuvem foi essa? Foi uma ave, um ridículo pássaro chamado espátula rosada! Não o fatigarei com detalhes, sr. Bond, uma vez que já está a par de algumas circunstâncias. Os dois guardas, a milhas de distância do lago, eram abastecidos de Cuba por meio de lanchas. Ocasionalmente, ornitologistas procedentes dos Estados Unidos chegavam também de lancha e passavam alguns dias no acampamento. Não me importei com isso, já que aquela área estava bastante distanciada dos meus homens, e eu não permitia que os guardas se aproximassem de minhas instalações. Não havia nenhum contato. Desde o princípio tornei claro à sociedade Audubon que não me avistaria com os seus representantes. E então o que aconteceu? Um belo dia, como um raio que caísse de um belo céu, recebo uma carta que me foi trazida pela lancha mensal. A espátula rosada tornara-se uma ave-maravilha para o mundo, e a Sociedade Audubon comunicava-me que pretendia construir um hotel na área que arrendara, nas proximidades do rio pelo qual o senhor subiu. Amantes de aves, procedentes de todo o mundo, viriam para observar os pássaros e seriam tirados filmes. Crab Key, diziam-me eles em sua carta persuasiva e lisonjeira, tornar-se-ia um lugar famoso.

— Senhor Bond — e os braços do Dr. No ergueram-se e baixaram para trás, enquanto uma expressão irônica aforava em seu sorriso — será crível isto? Este isolamento que eu tinha conseguido! Os planos que tinha para o futuro! Tudo aniquilado por causa de um grupo de mulheres velhas e suas aves! Examinei o contrato de arrendamento e escrevi à Sociedade, oferecendo-lhe uma grande soma para comprá-lo. Recusaram. Então passei a estudar essas aves e conhecer-lhes os hábitos. Subitamente descobri a solução. E era fácil. O homem sempre fora o maior agente predatório dessas aves. As espátulas são aves extremamente tímidas e se assustam facilmente. Mandei vir da Flórida um trator para pântanos — o veículo que é empregado na prospecção de petróleo e que é capaz de atravessar qualquer tipo de terreno. Adaptei-o para causar medo e queimar — não somente aves, mas também seres humanos. E, numa noite de dezembro, o meu veículo saiu, atravessou o lago, destruiu as instalações da Sociedade e ambos os guardas foram dados como mortos, embora mais tarde se tenha sabido que um conseguira escapar para morrer em Jamaica. Os ninhos das aves foram destruídos e o terror espalhado entre elas. Êxito total! Desenvolveu-se uma histeria nas espátulas e morriam aos milhares. Foi quando recebi um pedido para que um avião aterrasse em minha pista, pois pretendia-se levar a cabo uma investigação. Resolvi concordar com aquele pedido, pois esta atitude me parecera mais sábia. Mas arquitetei um acidente. Um caminhão fugiu ao controle e atravessou a pista no momento em que o aparelho estava aterrando. Todos os indícios do caminhão foram removidos e os cadáveres foram colocados reverentemente dentro de caixões, depois do que comuniquei a tragédia. Como esperava, houve mais investigações. Chegou um destróier e eu recebi o comandante com toda cortesia. Ele e seus oficiais foram trazidos pelo mar e depois por terra até aqui. Viram os destroços do acidente e os meus homens sugeriram que os guardas talvez tivessem enlouquecido em virtude da solidão, tendo lutado entre si. Possivelmente o sobrevivente teria deitado fogo às instalações e fugido em sua canoa de pesca. A pista de aterragem foi cuidadosamente examinada e os meus homens informaram que o avião aterrara com grande velocidade. Os pneumáticos talvez tivessem arrebentado no primeiro impacto. Por fim, veio a cerimônia da entrega dos corpos. Tudo muito triste, mas os oficiais se deram por satisfeitos. O destróier se fez ao largo e a paz voltou a reinar na ilha.

O Dr. No tossiu delicadamente. Olhou para Bond, depois para a jovem, e, novamente, para Bond. — E esta, meus amigos, é a minha história — ou antes o primeiro capítulo do que eu espero venha a ser uma saga muito comprida e interessante. O isolamento foi restabelecido. Agora não existem mais espátulas rosadas e por isso não haverá também guardas. Não há dúvida de que a Sociedade Audubon aceitará a minha oferta, cobrindo o período final de seu arrendamento. De qualquer forma, se recomeçar as suas operações, outras desgraças lhe cairão sobre a cabeça. Isto foi-me uma advertência. Não haverá mais interferências.

— Interessante — disse Bond. — Uma história muito interessante. Esse então foi o motivo pelo qual Strangways teve de ser eliminado? Que fez o senhor com ele e a garota?

— Estão no fundo do Reservatório de Mona. Encarreguei disso três dos meus melhores homens. Disponho de uma máquina pequena mas muito eficiente em Jamaica. Preciso dela. Por outro lado, estabeleci uma estreita vigilância sobre os serviços secretos, em Jamaica e em Cuba. Isso se tornou necessário para as minhas operações ulteriores. O seu sr. Strangways começou a suspeitar e tornou-se inquiridor. Felizmente, na ocasião, os hábitos desse homem me eram conhecidos. A sua morte e a de sua colega eram apenas uma questão de coordenação. Esperava desembaraçar-me do senhor com a mesma presteza, mas o senhor foi mais feliz. Contudo, sabia a espécie de homem que o senhor era, graças aos arquivos existentes em King’s House. Pensei que a mosca viria procurar a aranha. Preparei-me então para recebê-lo. Quando a sua canoa apareceu na tela do radar, sabia que não me escaparia mais.

Bond disse: — O seu radar não é muito eficiente, pois foram duas as canoas. A que o senhor viu foi a canoa da jovem. E eu já lhe disse que ela nada tinha a ver comigo.

— Então ela foi infeliz. Acontece que estou precisando de uma mulher branca para uma pequena experiência. Como concordamos antes, sr. Bond, tem-se geralmente o que se procura.

Bond olhou pensativamente para o Dr. No. Refletiu se valeria mesmo a pena tentar um golpe contra este homem inexpugnável. Valeria a pena perder tempo com ameaças ou blefes? Bond nada mais tinha senão um miserável dois de paus sob a sua manga, e o pensamento de jogá-lo quase o entediava. Todavia, com negligência e indiferença, lançou-o sobre a mesa.

— Então, agora quem está sem sorte é o senhor, Dr. No. Agora o senhor já é uma pasta de arquivo em Londres. As minhas reflexões sobre esse caso, as provas da colocação de veneno nas frutas, a centopéia, o acidente com o carro, tudo isto foi cuidadosamente registrado. Da mesma forma o estão os nomes da srta. Chung e da srta. Taro. Foram deixadas instruções, com certa pessoa em Jamaica, segundo as quais o meu relatório deveria ser aberto e levado ao conhecimento das autoridades competentes se eu não voltasse de Crab Key dentro de três dias.”

Bond fez uma pausa. O rosto do Dr. No estava impassível. Nem um só movimento nos olhos ou na boca. A veia jugular pulsava regularmente. Bond inclinou-se para a frente e disse suavemente: — Apenas por causa da jovem, Dr. No, eu lhe oferecerei uma negociação. Em troca de nosso seguro retorno a Jamaica, dou-lhe uma semana de dianteira. O senhor poderá tomar o seu avião, recolher o seu envelope de selos e procurar escapar.

Bond recostou-se no espaldar da caldeira, e perguntou: — Algum interesse na minha proposta, Dr. No?

 

 

                                        CONTINUA