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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O SATANICO DR. NO
O SATANICO DR. NO

 

                                                                                                                                             

 

 

 

 

 

XI - VIDA NO CANAVIAL


Seriam cerca de oito horas, pensou Bond. A não ser o coaxar dos sapos, tudo estava mergulhado em silêncio. No canto mais distante da clareira, ele podia vislumbrar o vulto de Quarrel.

Podia-se ouvir o tinir metálico, enquanto ele se ocupava em desmontar e secar a sua “Remington”.

Por entre as árvores podiam-se ver também as luzes distantes, vindas do depósito de guano, riscar caminhos luminosos e festivos sobre a superfície escura do lago. O desagradável vento desaparecera e o abominável cenário estava mergulhado em trevas. Estava bastante fresco. As roupas de Bond tinham secado no corpo. A comida tinha aquecido o seu estômago. Ele experimentou uma agradável sensação de conforto, sonolência e paz. O dia seguinte ainda estava muito longe e não apresentava problemas, a não ser uma boa dose de exercício físico. A vida, subitamente, pareceu-lhe fácil e boa.

A jovem estava a seu lado, metida no saco de dormir. Estava deitada de costas, com a cabeça descansando nas mãos, e olhando para o teto de estrelas. Ele apenas conseguia divisar os pálidos contornos de seu rosto. De repente, ela disse: James, você prometeu dizer-me o que significava tudo isso. Vamos. Eu não dormirei enquanto você não o disser.

Bond riu. — Eu direi se você também disser. Também quero saber o que você pretende.

— Pois não, não tenho segredos: mas você deve falar primeiro.

— Está certo. — Bond puxou os joelhos até a altura do queixo e passou os braços à volta deles. — Eu sou uma espécie de policial. Eles me enviam de Londres quando há alguma coisa de estranho acontecendo em alguma parte do mundo e que não interessa a ninguém. Bem, não faz muito tempo, um dos funcionários do Governador, em Kingston, um homem chamado Strangways, aliás meu amigo, desapareceu. Sua secretária, que era uma linda jovem, também desapareceu sem deixar vestígios. Muitos pensaram que eles tivessem fugido juntos, mas eu não acreditei nisso. Eu...”

Bond contou tudo com simplicidade, falando em homens bons e maus, como numa história de aventuras lida em algum livro. Depois terminou: Como você vê, Honey, temos de voltar a Jamaica, amanhã à noite, todos nós, na canoa, e então o Governador nos dará ouvidos e enviará um destacamento de soldados para apanhar este chinês. Espero que isso terá como conseqüência levá-lo à prisão. Ele com certeza também sabe disso, e essa é a razão pela qual procura aniquilar-nos. Essa é a história. Agora é a sua vez.

A jovem disse: Você parece viver uma vida muita excitante. Sua mulher não deve gostar que você fique fora tanto tempo. Ela não tem medo de que você se fira?

— Não sou casado. A única que se preocupa com a possibilidade de que eu me fira é a minha companhia de seguros.

Ela continuou sondando: Mas suponho que você tenha namoradas.

— Não permanentes.

— Oh!

Fez-se uma pausa. Quarrel se aproximou e disse: “Capitão, farei o primeiro quarto, se for melhor. Estarei na extremidade da restinga e virei chamá-lo à meia-noite. Então talvez o senhor possa ir até as cinco horas, quando nós nos poremos em marcha. Precisamos estar fora daqui antes que clareie o dia.

— Está bem — respondeu Bond. — Acorde-me se você vir alguma coisa. O revólver está em ordem?

— Perfeito — respondeu Quarrel com evidente mostra de contentamento. Depois, dirigindo-se à jovem disse com leve tom de insinuação: — Durma bem, senhorita. Em seguida, desapareceu silenciosamente nas sombras.

— Gosto de Quarrel — disse a jovem. E, após uma pausa: — Você quer realmente saber alguma coisa a meu respeito? A história não é tão excitante quanto a sua.

— É claro que quero. E não omita nada.

— Não há nada a omitir. Você poderia escrever toda a história de minha vida nas costas de um cartão postal. Para começar, nunca saí de Jamaica. Vivi toda a minha vida num lugar chamado Beau Desert, na costa setentrional, nas proximidades do Porto Morgan.

Bond riu. — É estranho: posso dizer o mesmo; pelo menos por enquanto. Não notei você pela região. Você vive em cima de uma árvore?

— Ah, imagino que você tenha ficado na casa da praia. Eu nunca chego até ali. Vivo na Casa Grande.

— Mas nada ficou dela. É uma ruína no meio dos canaviais.

— Eu vivo na adega. Tenho vivido ali desde a idade de cinco anos. Depois a casa se incendiou e meus pais morreram. Nada me lembro deles, por isso você não precisa manifestar pesar. A princípio vivi ali com a minha ama negra, mas depois ela morreu, quando eu tinha apenas quinze anos. Nos últimos cinco anos tenho vivido ali sozinha.

— Nossa Senhora! — Bond estava boquiaberto. — Mas não havia ninguém para tomar conta de você? Os seus pais não deixaram nenhum dinheiro?

— Nem um tostão. — Não havia o mínimo traço de amargura na voz da jovem — talvez orgulho, se houvesse alguma coisa. — Você sabe, os Riders eram uma das mais antigas famílias de Jamaica. O primeiro Rider recebera de Cromwell as terras de Beau Desert, por ter sido um dos que assinaram o veredicto de morte contra o rei Carlos. Ele construiu a Casa Grande e minha família viveu ora nela ora fora dela, desde aquela época. Mas depois veio a decadência do açúcar e eu acho que a propriedade foi pessimamente administrada, e, ao tempo em que meu pai tomou conta da herança, havia somente dívidas — hipotecas e outros ônus. Assim, quando meu pai e minha mãe morreram a propriedade foi vendida. Eu pouco me importei, pois era muito jovem. Minha ama deve ter sido maravilhosa. Quiseram que alguém me adotasse, mas a minha babá reuniu os pedaços de mobília que não tinham sido queimados e com eles nós nos instalamos da melhor forma no meio daquelas ruínas. Depois de algum tempo ninguém mais veio interferir conosco. Ela cosia um pouco e lavava para algumas freguesas da aldeia, ao mesmo tempo que plantava bananas e outras coisas, sem falar do grande pé de fruta-pão que havia diante da casa. Comíamos o que era a ração habitual do povo de Jamaica. E havia os pés de cana-de-açúcar à nossa volta. Ela fizera também uma rede para apanhar peixes, a qual nós recolhíamos todos os dias. Tudo corria bem e nós tínhamos o suficiente para comer. Ela ensinou-me a ler e escrever, como pôde. Tínhamos uma pilha de velhos livros que escapara ao incêndio, inclusive uma enciclopédia. Comecei com o A quando tinha apenas oito anos, e cheguei até o meio do T. — Ela disse um tanto na defensiva: — Aposto que sei mais do que você sobre muitas coisas.

— Estou certo de que sim. — Bond estava perdido na visão daquela jovem de cabelos de linho errando pelas ruínas de uma grande construção, com uma obstinada negra a vigiá-la e a chamá-la para receber as lições que deveriam ter sido um mistério para ela mesma. — Sua ama deve ter sido uma criatura extraordinária.

— Ela era um amor. — Era uma afirmação peremptória. — Pensei que fosse morrer quando ela faleceu. As coisas não foram tão fáceis para mim depois disso. Antes eu levava uma vida de criança, mas subitamente tive que crescer e fazer tudo por mim mesma. E os homens tentaram apanhar-me e atingir-me. Diziam que queriam fazer amor comigo. — Fez uma pausa e acrescentou: — Eu era bonita naquela época. Bond disse muito sério:

— Você é uma das jovens mais belas que já vi.

— Com este nariz? Não seja tolo.

— Você não compreende. — Bond tentou encontrar palavras nas quais ela pudesse crer. — É claro que qualquer pessoa pode ver que o seu nariz está quebrado; mas desde esta manhã dificilmente eu pude notá-lo. Quando se olha para uma pessoa, olha-se para os seus olhos ou para a sua boca. Nesses dois pontos se encontram a expressão. Um nariz quebrado não tem maior significação do que uma orelha torta. Narizes e orelhas são peças do mobiliário facial. Algumas são mais bonitas do que outras, mas não são tão importantes quanto o resto. Se você tivesse um nariz bonito, tão bonito como o resto, você seria a jovem mais bela de Jamaica.

— Você é sincero? — Sua voz era ansiosa. — Você acha que eu poderia ser bela? Sei que muita coisa em mim está bem, mas quando olho no espelho só vejo o meu nariz quebrado. Estou certa de que o mesmo ocorre com outras pessoas que são, que são — bem — mais ou menos aleijadas.

Bond disse com impaciência: — Você não é aleijada! Não diga tolices. E aliás você pode endireitá-lo mediante uma simples operação. Basta que você vá aos Estados Unidos e a coisa levará apenas uma semana.

Ela disse com irritação: — Como é que você quer que eu faça isso? Tenho cerca de quinze libras debaixo de uma pedra, na minha adega. Tenho ainda três saias, três blusas, uma faca e uma panela de peixe. Conheço muito bem essas operações. O médico de Porto Maria já pediu informações para mim. Ele é um homem muito bom e escreveu para os Estados Unidos. Pois para que a operação seja bem feita, eu teria que gastar cerca de quinhentas libras, sem falar da passagem para Nova York, a conta do hospital e tudo o mais.

Sua voz tornou-se desesperançada: — Como é que você espera que eu possa ter todo esse dinheiro?

Bond já decidira sobre o que teria de ser feito, mas no momento apenas disse ternamente: — Bem, espero que se possam encontrar meios; mas, de qualquer maneira, prossiga com a sua história. Ela é muito excitante — muito mais interessante do que a minha. Você tinha chegado ao ponto em que a sua ama morreu. O que aconteceu depois?

A jovem recomeçou com relutância.

— Bem, a culpa é sua por ter interrompido. E você não deve falar de coisas que não compreende. Suponho que as pessoas lhe digam que você é simpático. Você deve também ter todas as namoradas que desejar. Bem, isso não aconteceria se você fosse vesgo ou tivesse um lábio leporino. — Na verdade, ele pôde ouvir o sorriso em sua voz: — Acho que quando voltarmos eu irei ter com o feiticeiro para que lhe faça uma mandinga e lhe dê alguma coisa assim. — E ela acrescentou tristemente: — Dessa forma, nós seremos mais parecidos.

Bond estendeu o braço e sua mão tocou nela: — Eu tenho outros planos. Mas continuemos, quero ouvir o resto da sua história.

— Bem, — disse a jovem com um suspiro. — Eu terei que me atrasar um pouco. Como você sabe, toda a propriedade é representada pela cana-de-açúcar e pela velha casa que está situada no meio da plantação. Bem, umas duas vezes por ano eles cortam a cana e mandam-na para o moinho. E quando eles o fazem, todos os animais e insetos que vivem nos canaviais entram em pânico e a maioria deles têm as suas tocas destruídas e são mortos. Na época da safra, alguns deles começaram a vir para as ruínas da casa, onde se escondiam. No princípio, minha babá ficava aterrorizada, pois lá vinham os mangustos, as cobras e os escorpiões, mas eu preparei dois quartos da adega para recebê-los. Não me assustei com eles, e eles nunca me fizeram mal. Pareciam compreender que eu estava cuidando deles. E devem ter contado aquilo aos seus amigos, ou alguma coisa parecida, pois depois de algum tempo era perfeitamente natural que todos viessem acantonar-se em seus dois quartos, onde ficavam até que os canaviais começassem novamente a crescer, quando então iam saindo e voltando para os campos. Dei-lhes toda a comida que podíamos pôr de lado, quando eles ficavam conosco, e todos se portavam muito bem, a não ser por algum odor e às vezes uma ou outra luta entre si. Mas eram muito mansos comigo. Naturalmente os cortadores de cana perceberam tudo e viam-me andando pelo lugar com cobras à volta do meu pescoço, e assim por diante, a ponto de ficarem aterrorizados comigo e me considerarem uma feiticeira. Por causa disso, eles nos deixaram completamente isoladas. Ela fez uma pausa, e depois recomeçou:

— Foi assim que aprendi tanta coisa sobre animais e insetos. Eu costumava ainda passar muito tempo no mar, aprendendo coisas sobre os animais marinhos, assim como sobre os pássaros. Se se chega a saber o que todas essas criaturas gostam de comer e do que têm medo, pode-se muito bem fazer amizade com elas. — Levantou os olhos para Bond e disse: Você não sabe o que perde ignorando todas essas coisas.

— Receio que perca muito — respondeu Bond com sinceridade. — Suponho que eles sejam muito melhores e mais interessantes que os homens.

Sobre isso nada sei — respondeu a jovem pensativa-mente. — Não conheço muitas pessoas. A maioria das que conheci foram detestáveis, mas acho que deve haver criaturas interessantes também. — Fez uma pausa, e prosseguiu: — Nunca pensei realmente que chegasse a gostar de alguma pessoa como gosto dos animais. Com exceção da babá, naturalmente. Até que... — Ela se interrompeu com um sorriso de timidez. — Bem, de qualquer forma, nós vivemos muito felizes juntas, até que eu fiz quinze anos, quando então a babá morreu e as coisas se tornaram muito difíceis. Havia um homem chamado Mander. Um homem horroroso. Era o capataz branco que servia aos proprietários da plantação. Ele vivia me procurando. Queria que eu fosse viver com ele, em sua casa de Porto Maria.

Eu o odiava, e costumava esconder-me sempre que ouvia o seu cavalo aproximando-se do canavial. Certa noite ele veio a pé e eu não o ouvi. Estava bêbado. Entrou na adega e lutou comigo porque não queria fazer o que ele desejava. Você sabe, as coisas que fazem as pessoas quando estão apaixonadas.

— Sim, já sei.

— Tentei matá-lo com a minha faca, mas ele era muito forte e deu-me um soco tão forte no rosto que me quebrou o nariz. Deixou-me inconsciente e acho que fez alguma coisa comigo. Sei que ele fez mesmo. No dia seguinte eu quis me matar quando vi o meu rosto e verifiquei o que ele me havia feito. Pensei que iria ter um filho. Teria sem dúvida me matado se tivesse tido um filho daquele homem. Em todo caso, não tive, e tudo continuou assim. Fui ao médico e ele fez o que pôde com o meu nariz e não me cobrou nada. Quanto ao resto, eu nada lhe contei, pois estava muito envergonhada. O homem não voltou mais. Eu esperei e nada fiz até a próxima colheita de cana-de-açúcar. Tinha um plano. Estava esperando que as aranhas viúvas-negras viessem procurar abrigo. Um belo dia elas chegaram. Apanhei a maior das fêmeas e á deixei numa caixa sem nada para comer. As fêmeas são terríveis. Então esperei que fizesse uma noite escura, sem luar. Na primeira noite dessas, apanhei a caixa com a aranha e caminhei até chegar à casa do homem. Estava muito escuro e eu me sentia aterrorizada com a possibilidade de encontrar algum assaltante pela estrada, mas não houve nada. Esperei em seu jardim, oculta entre os arbustos, até que ele se recolheu à cama. Então subi por uma árvore e ganhei a sacada; aguardei até que ele começasse a roncar e depois entrei pela janela. Ele estava nu, estendido na cama, sob o mosquiteiro. Levantei uma aba do filó, abri a caixa e sacudi-lhe a aranha sobre o ventre. Depois saí e voltei para casa.

— Deus do céu! — exclamou Bond reverentemente. — O que aconteceu com o homem?

Ela respondeu com satisfação: — Levou uma semana para morrer. Deve ter-lhe doído terrivelmente. Você sabe, a mordida dessa aranha é pavorosa. Os feiticeiros dizem que não há nada que se lhe compare. — Ela fez uma pausa, e como Bond não fizesse nenhum comentário, acrescentou: — Você não acha que eu fiz mal, não é?

— Bem, não faça disso um hábito — respondeu Bond suavemente. — Mas não posso culpá-la, diante do que ele tinha feito. E, depois, o que aconteceu?

— Bem, depois me estabeleci novamente — sua voz era firme. — Tive que me concentrar na tarefa de obter alimento suficiente, e naturalmente. — Acrescentou persuasivamente: — Eu tinha de fato um nariz muito bonito, antes. Você acha que os médicos podem torná-lo igualzinho ao que era antes?

— Eles poderão fazê-lo de qualquer forma que você quiser — disse Bond em tom definitivo. — Como é que você ganhou dinheiro?

— Foi graças à enciclopédia. Li nela que há pessoas que gostam de colecionar conchas marinhas e que as conchas raras podiam ser vendidas. Falei com o mestre-escola local, sem contar-lhe naturalmente o meu segredo, e ele descobriu para mim que havia uma revista norte-americana chamada “Nautilus”, dedicada aos colecionadores de conchas. Eu tinha apenas o dinheiro suficiente para tomar uma assinatura daquela revista e comecei a procurar as conchas que as pessoas pediam em seus anúncios. Escrevi a um comerciante de Miami e ele começou a comprar as minhas conchas. Foi emocionante. Naturalmente que cometi alguns erros, no princípio. Pensei, por exemplo, que as pessoas gostariam das conchas mais bonitas, mas esse não era o caso. Freqüentemente elas preferiam as conchas mais feias. Depois, quando achava conchas raras, punha-me a limpá-las e poli-las a fim de torná-las mais bonitas, mas isso também foi um erro. Os colecionadores querem as conchas exatamente como saem do mar, com o animal em seu interior também. Então consegui algum formol com o médico e o punha entre as conchas vivas, para que elas não tivessem mau cheiro, e depois mandava-as para o tal comerciante de Miami. Só aprendi bem o negócio de um ano para cá e já consegui quinze libras. Consegui esse resultado agora que sei como é que eles querem as conchas e se tivesse sorte, poderia fazer pelo menos cinqüenta libras por ano. Então, em dez anos poderia ir aos Estados Unidos e operar-me. Mas, continuou ela com intenso contentamento, tive uma notável maré de sorte. Fui a Crab Key pelo Natal, onde já tinha estado antes. Mas dessa vez eu encontrei essas conchas purpúreas. Não parecem grande coisa, mas eu enviei uma ou duas para Miami e o comerciante escreveu-me para dizer que compraria tantas dessas conchas quantas eu pudesse encontrar, e ao preço de até cinco dólares pelas perfeitas. Disse-me ainda que eu deveria manter segredo sobre o lugar de onde as tirava, pois de outra forma o “mercado seria estragado”, como disse ele, e os preços cairiam. É como se se tivesse uma mina de ouro particular. Agora serei capaz de juntar o dinheiro em cinco anos. Esse foi o motivo pelo qual tive grandes suspeitas de você, quando o encontrei na praia. Pensei que você tivesse vindo para roubar as minhas conchas.

— Você me deu um susto, pois pensei que você fosse a garota do Dr. No.

— Muito obrigada.

— Mas depois que você tiver feito a operação, o que irá fazer? Você não pode continuar vivendo numa adega durante toda a vida.

— Pensei em me tornar uma prostituta. — Ela o disse como se tivesse dito “enfermeira” ou “secretária”.

— Oh, o que é que você quer dizer com isso? — Talvez ela já tivesse ouvido aquela expressão sem compreendê-la bem.

— Uma dessas jovens que possuem um bonito apartamento e lindas roupas. Você sabe o que quero dizer — acrescentou ela com impaciência. — Os homens telefonam, marcam encontro, chegam, fazem amor e pagam. Elas ganham cem dólares de cada vez, em Nova Iorque, onde pensei começar. Naturalmente — admitiu — terei de fazer por menos, no começo, até que aprenda a trabalhar bem. Quanto é que vocês pagam pelas que não têm experiência?

Bond riu. — Francamente, não me lembro. Há muito tempo que não me encontro com essas mulheres.

Ela suspirou. — Sim, suponho que você possa ter tantas mulheres quantas queira, por nada. Suponho que apenas os homens feios paguem, mas isso é inevitável. Qualquer espécie de trabalho nas grandes cidades deve ser horrível. Pelo menos pode-se ganhar muito mais como prostituta. Depois, poderia voltar para Jamaica e comprar Beau Desert. Seria bastante rica para encontrar um marido bonito e ter alguns filhos. Agora que encontrei essas conchas, penso que poderia estar de volta a Jamaica quando tivesse trinta anos. Não seria formidável?

— Gosto da última parte do plano, mas não tenho muita confiança na primeira. De qualquer forma, como é que você veio a saber dessa história de prostitutas? Encontrou isso na letra P, na enciclopédia?

— Claro que não; não seja tolo. Há uns dois anos houve em Nova Iorque um escândalo sobre elas, envolvendo também um “play-boy” chamado Jelke. Ele tinha toda uma cadeia de prostitutas, e eu li muito sobre o caso no “Gleaner”. O jornal deu inclusive os preços que elas cobravam e tudo o mais. De qualquer forma, há milhares dessas jovens em Kingston, embora não sejam tão boas. Recebem apenas cinco xelins e não têm um lugar apropriado para fazer amor, a não ser no mato. Minha babá chegou a falar-me delas. Disse-me que eu não deveria imitá-las, pois do contrário seria muito infeliz. É claro que seria, recebendo apenas cinco xelins. Mas por cem dólares!...

Bond observou: — Você não conseguiria guardar todo esse dinheiro. Precisaria ter uma espécie de gerente para arranjar os homens, e teria ainda de dar gorjetas à polícia, para deixá-la em paz. Por fim, poderia ir facilmente parar na cadeia se tudo não corresse bem. Na verdade, com tudo o que você sabe sobre animais, bem poderia ter um ótimo emprego, cuidando deles, em algum jardim zoológico norte-americano. E o que me diz do Instituto de Jamaica? Tenho certeza de que você gostaria mais de trabalhar ali. E poderia também facilmente encontrar um bom marido. De qualquer forma, você não deve mais pensar em ser prostituta. Você tem um belo corpo e deve guardá-lo para o homem que amar.

— Isso é o que dizem as pessoas nos livros — disse ela com ar de dúvida. — A dificuldade está em que não há nenhum homem para ser amado em Beau Desert. — Depois acrescentou timidamente: — Você é o único inglês com quem jamais falei. Gostei de você desde o princípio, e não me importo de dizer-lhe essas coisas agora. Penso que há muitas pessoas das quais chegaria a gostar se saísse daqui.

— É claro que há. Centenas. E você é uma garota formidável; o que pensei assim que a vi.

— Assim que viu as minhas nádegas, você quer dizer. — Sua voz estava-se tornando sonolenta, mas cheia de prazer.

Bond riu. — Bem, eram nádegas maravilhosas. E o outro lado também era maravilhoso. — O corpo de Bond começou a se agitar com a lembrança de como a vira pela primeira vez. Depois de um instante, disse com mau humor: — Agora vamos, Honey. Está na hora de dormir. Haverá muito tempo para conversarmos quando voltarmos a Jamaica.

— Haverá? — perguntou ela desconsoladamente. — Você promete?

— Prometo.

Ele a viu agitar-se dentro do saco de dormir. Olhou para baixo e apenas pôde divisar o seu pálido perfil voltado para ele. Ela deixou escapar o profundo suspiro de uma criança, antes de adormecer.

Reinava silêncio na clareira e o tempo estava esfriando. Bond descansou a cabeça sobre os joelhos unidos. Sabia que era inútil procurar dormir, pois sua mente estava cheia dos acontecimentos do dia e dessa extraordinária mulher Tarzan que aparecera em sua vida. Era como se algum animal muito bonito se lhe tivesse dedicado. E não largaria os cordéis enquanto não tivesse resolvido os problemas dela. Estava sentindo isso. Naturalmente que não haveria grandes dificuldades para a maioria de seus problemas. Quanto à operação, seria fácil arranjá-la, e até mesmo encontrar-lhe um emprego, com o auxílio de amigos, e um lar. Tinha dinheiro e haveria de comprar-lhe roupas, mandaria ajeitar os seus cabelos e a lançaria no grande mundo. Seria divertido. Mas quanto ao resto? Quanto ao desejo físico que sentia por ela? Não se podia fazer amor com uma criança. Mas, seria ela uma criança? Não haveria nada de infantil relativamente ao seu corpo ou à sua personalidade. Era perfeitamente adulta e bem inteligente, a seu modo, e muito mais capaz de tomar conta de si mesma do que qualquer outra jovem de vinte anos que Bond conhecera.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um puxão em sua manga. A vozinha disse: — Por que você não vai dormir? Não está sentindo frio?

— Não; estou bem.

— Aqui no saco de dormir está bom e quente. Você quer vir para cá? Tem bastante lugar.

— Não, obrigado, Honey. Estou bem.

Houve uma pausa, e depois ela disse num sussurro: — Se você está pensando... Quero dizer — você não precisa fazer amor comigo... Eu poderia dormir de costas para o seu peito.

— Honey, querida, vá dormir. Seria maravilhoso dormir assim com você, mas não esta noite. De qualquer maneira, em breve terei de render Quarrel.

— Muito bem, — disse ela com voz mal humorada. — Talvez quando voltarmos a Jamaica.

— Talvez.

— Prometa. Não dormirei enquanto você não prometer.

Bond disse desesperadamente: — Naturalmente que prometo. Agora, vá dormir, Honeychile.

A sua voz se fez ouvir outra vez, triunfante: — Agora você tem uma dívida comigo. Você prometeu. Boa-noite, querido James.

— Boa noite, querida Honey.


XII - A COISA


O aperto no braço de Bond era ansioso. Ele de um salto pôs-se de pé.

Quarrel sussurrou tensamente: — Alguma coisa está-se aproximando pela água, capitão! Com certeza é o dragão!

A jovem levantou-se e perguntou nervosamente: — Que aconteceu?

Bond apenas disse: — Fique aí, Honey! Não se mexa. Eu voltarei.

Internou-se pelos arbustos do lado oposto da montanha e correu pela restinga, com Quarrel ao lado.

Chegaram até a extremidade da restinga, a vinte metros da clareira, e pararam sob o abrigo dos últimos arbustos, que Bond apartou com as mãos para ter um melhor campo de visão.

O que seria aquilo? A meia milha de distância, atravessando o lago, vinha algo informe, com dois olhos brilhantes cor de laranja, e pupilas negras. Entre estes, onde deveria estar a boca, tremulava um metro de chama azul. A luminosidade cinzenta das estrelas deixava ver uma espécie de cabeça abaulada entre duas pequenas asas semelhantes às de um morcego. Aquela coisa estranha deixava escapar um ronco surdo e baixo, que abafava um outro ruído, uma espécie de vibração rítmica. Aquela massa avançava na direção deles, à velocidade de uns dezesseis quilômetros por hora, deixando atrás de si uma esteira de espuma.

Quarrel sussurrou:

— Nossa, capitão! Que coisa é aquela?

Bond continuou de pé e respondeu laconicamente: — Não sei exatamente. Uma espécie de trator arranjado para meter medo. Está trabalhando com um motor diesel, e por isso você pode deixar os dragões de lado. Agora, vejamos... — Bond falava como se para si mesmo. — Não adianta fugir. Aquilo se move mais depressa do que nós e sabemos que pode esmagar árvores e atravessar pântanos. Temos que lhe dar combate aqui mesmo. Quais serão os seus pontos fracos? Os motoristas. Com certeza, dispõem de proteção. Em todo caso, não sabemos muito sobre esse ponto. Quarrel, você começará a disparar contra aquela cúpula quando estiverem a uns duzentos metros de nós. Faça a pontaria cuidadosamente e continue atirando. Visarei os faróis quando estiverem a cinqüenta metros. Não se está movendo sobre lagartas. Deve ter alguma espécie de rodas gigantescas, provavelmente de avião. Visarei as rodas também. Fique aí. Ficarei dez metros para baixo. Naturalmente vão reagir e nós temos que manter as balas longe da garota. Está combinado? — Bond esticou o braço e apertou o enorme ombro de Quarrel. — E não se preocupe demais. Esqueça-se de dragões. Trata-se apenas de alguma trapaça do Dr. No. Mataremos os motoristas, tomaremos conta do veículo e ganharemos com ele a costa. Isso economizará as nossas solas. Está bem?

Quarrel deu uma breve risada. — Está bem, capitão. Desde que o senhor assim o diz. Mas que Nosso Senhor saiba também que aquilo não é dragão!

Bond desceu pela restinga e se internou pelos arbustos, até que encontrou um ponto de onde podia ter um bom campo de tiro. Disse suavemente: — Honey!

— Sim, James — e a voz dela deixou transparecer alívio.

— Faça um buraco na areia como fizemos na praia. Faça-o por trás de raízes grossas e fique lá deitada. Talvez haja um tiroteio. Não tenha medo de dragões. Isto é apenas um veículo pintado, dirigido por alguns dos homens do Dr. No. Não se assuste. Estou aqui perto.

— Muito bem, James. Tenha cuidado! — A voz agora deixava transparecer um vivo temor.

Bond curvou-se, apoiando um joelho no chão, sobre as folhas e a areia, e olhou para fora.

Agora o veículo achava-se a uns trezentos metros de distância, e os seus faróis amarelos estavam iluminando a areia. Chamas azuis continuavam saindo da boca daquele engenho. Saíam de uma espécie de longo focinho, no qual se pintaram mandíbulas entreabertas, para darem ao todo a aparência de dragão. Um lança-chamas! Aquilo explicava as árvores queimadas e a história do administrador. A coloração azul da chama seria dada por alguma espécie de queimador, disposto adiante do lança-chamas.

Bond teve que admitir que aquela visão era algo de terrível, à medida que o veículo avançava pelo lago raso. Evidentemente fora calculado para infundir terror. Ele mesmo ter-se-ia assustado, não fora a vibração rítmica do motor diesel. Mas até que ponto aquilo seria vulnerável para homens que não fossem dominados pelo pânico?

A resposta ele a teve quase imediatamente. Ouviu-se o estampido da “Remington” de Quarrel. Uma centelha saiu da cabina encimada pela cúpula e logo se ouviu um ruído metálico. Quarrel disparou mais um tiro e, logo em seguida, uma rajada. As balas chocaram-se inutilmente de encontro à cabina. Não houve mesmo uma simples redução de velocidade. O monstro continuava avançando para o ponto de onde tinham partido os disparos. Bond descansou o cano de seu “Smith & Wesson” no braço, e fez cuidadosa pontaria. O profundo ruído surdo de sua arma fez-se ouvir por sobre o matraquear da “Remington” de Quarrel. Um dos faróis fora atingido e despedaçara-se. Bond disparou mais quatro tiros contra o outro e atingiu-o com o quinto e último disparo de seu revólver. O fantástico aparelho parecia continuar não dando importância, e foi avançando para o lugar de onde tinham partido os disparos do “Smith & Wesson”. Bond tornou a carregar a arma e começou a atirar contra os pneumáticos, sob as asas negro e ouro. A distância agora era de apenas trinta metros e podia jurar que já atingira mais de uma vez a roda mais próxima, sem nenhum resultado. Seria borracha sólida? O primeiro estremecimento de medo percorreu a pele de Bond.

Carregou mais uma vez. Seria aquela coisa maldita vulnerável pela retaguarda? Deveria correr para o lago e tentar uma abordagem? Avançou um passo, através dos arbustos, mas logo ficou imóvel, incapaz de prosseguir.

Subitamente, daquele focinho ameaçador, uma língua de fogo azulada tinha sido lançada na direção do esconderijo de Quarrel. À direita de Bond, no mato, surgira apenas uma chama laranja e vermelha, simultaneamente com um estranho urro, que imediatamente silenciou. Satisfeita, aquela língua de fogo se recolhera à sua boca. Agora aquilo fizera um movimento de rotação sobre o seu eixo e parará completamente. O buraco azulado da boca apontava diretamente para Bond.

Bond deixou-se ficar, esperando pelo horroroso fim. Olhou através das mandíbulas da morte e viu o brilhante f-lamento vermelho do queimador, bem no fundo do comprido tubo. Pensou no corpo de Quarrel — mas não havia tempo para pensar em Quarrel — e imaginou-o completamente carbonizado. Dentro em pouco ele também se incendiaria como uma tocha. Um único berro seria arrancado dele e os seus membros se encolheriam na pose de dançarino dos corpos queimados. Depois viria a vez de Honey. Meu Deus, para o quê ele os havia arrastado! Por que fora tão insano a ponto de enfrentar aquele homem com todo o seu arsenal? Por que não aceitara a advertência que lhe fora feita pelo longo dedo que o alcançara já em Jamaica? Bond trincou os dentes. Vamos, canalhas. Depressa.

Ouviu-se a sonoridade de um alto-falante, que anunciava metàlicamente: “Saia daí, inglês. E a boneca também. Depressa ou será frito no inferno, como o seu amigo”. Para dar mais força àquela ordem, uma língua de fogo foi lançada em sua direção. Bond deu um passo atrás para recuar daquele intenso calor. Sentiu o corpo da garota de encontro às suas costas. Ela disse historicamente: — Tive que vir, tive que vir.

Bond disse: — Está bem, Honey. Fique atrás de mim.

Ele tinha-se decidido. Não havia alternativa. Mesmo que a morte viesse mais tarde, não poderia ser pior do que aquela morte diante do lança-chamas. Bond apanhou a mão da jovem e puxou-a consigo para fora, saindo para a areia.

A voz se fez ouvir novamente: — Pare aí, camarada. E deixe cair o lança-ervilhas. Nada de truques, senão os caranguejos terão um bom almoço.

Bond deixou cair a sua arma. Lá se fora o “Smith & Wesson”. O “Beretta” não teria tido melhor sorte: A jovem lastimou-se, e Bond apertou a sua mão. — Agüente, Honey, — disse ele. — Nós nos livraremos disso.

Bond troçou de si mesmo por causa daquela mentira. Ouviu-se o ruído de uma porta de ferro que se abria. Por trás da cúpula, um homem saltou para a água e caminhou até eles, com um revólver na mão. Ao mesmo tempo ia-se mantendo fora da linha de fogo do lança-chamas. A trêmula chama azul iluminou o seu rosto. Era um chinês negro, de enorme estatura, vestindo apenas calças. Alguma coisa balançava em sua mão esquerda, e quando ele se aproximou mais, Bond pôde ver que eram algemas.

O homem deteve-se a alguns metros de distância e disse:

— Levantem os braços. Punhos juntos e caminhem em minha direção. Você primeiro, inglês. Devagar ou receberá mais um umbigo.

Bond obedeceu e quando estava a um passo do homem, este prendeu o revólver entre os dentes, e esticou os braços e atou os seus pulsos com as algemas. Bond examinou aquele rosto iluminado pelas chamas azuis. Era uma cara brutal, com olhos estrábicos. O agente do Dr. No fitou-o com desprezo. — Bastardo imbecil! — disse.

Bond deu as costas ao homem e começou a se afastar. Ia ver o corpo de Quarrel. Tinha que lhe dizer adeus. Ouviu-se o ruído de um disparo e uma bala jogou-lhe areia nos pés. Bond parou, e voltando-se lentamente disse:

— Não fique nervoso. Vou dar uma espiada no homem que você acabou de assassinar. Voltarei.

O homem abaixou o revólver e riu grosseiramente: — Muito bem. Divirta-se. Desculpe se não temos uma coroa. Volte logo, se não daremos uma amostra à boneca. Dois minutos.

Bond caminhou em direção ao cerrado de arbustos fumegantes. Ali chegando, olhou para baixo. Seus olhos e boca se contraíram. Sim, tinha sido bem como ele imaginara. Pior, mesmo. Disse docemente: — Perdoe-me, Quarrel. — Com o pé soltou um pouco de areia, que colheu com as mãos algemadas e verteu-a sobre os restos dos olhos de Quarrel. Depois caminhou lentamente, de volta, e ficou ao lado da jovem.

O homem empurrou-os para a frente com o revólver. Deram a volta por trás da máquina, onde havia uma pequena porta quadrada. Uma voz do interior disse: — Entrem e sentem-se no chão. Não toquem em nada ou ficarão com os dedos partidos.

Com dificuldade, arrastaram-se para dentro daquela caixa de ferro, que cheirava a óleo e suor. Havia lugar apenas para que ambos se sentassem com as pernas encolhidas, de joelhos para cima. O homem que empunhava o revólver e que vinha atrás deles saltou por último para dentro do carro e fechou a porta. Ligou uma lâmpada e sentou-se num assento de ferro, ao lado do chofer. — Muito bem, Sam, vamos andando. Você pode apagar o fogo. Há luz bastante para dirigir — disse.

Na painel de controle podia-se ver uma fileira de mostradores. O motorista esticou a mão e deslocou para baixo um par de interruptores. Engrenou o motor e olhou através de uma estreita fresta, cortada na parede de ferro, diante dele. Bond sentiu que o veículo dava uma volta. Ouviu-se um movimento mais rápido do motor, e o veículo avançou.

O ombro da jovem apertou-se de encontro ao de Bond.

— Para onde estão eles nos levando? — O seu sussurro traía um estremecimento.

Bond voltou a cabeça e olhou para ela. Era a primeira vez que podia ver os seus cabelos depois de secos. Estavam desfeitos pelo sono, mas não eram mais mechas de rabichos empastados. Caíam densamente até os ombros, onde terminavam em anéis voltados para dentro. Eram do mais pálido louro acinzentado e despediam reflexos quase prateados sob a luz elétrica. Ela olhou para o alto, para ele. A pele, à volta dos olhos e nos cantos da boca, mostrava-se lívida de medo.

Bond deu de ombros, procurando aparentar uma indiferença que não sentia!. Sussurrou: — Oh, espero que vamos ver o Dr. No. Não se preocupe demais, Honey. Esses homens não passam de pequenos bandidos. Com ele, as coisas serão diferentes. Quando estivermos diante dele, não diga nada, falarei por nos dois. — Ele apertou o seu ombro e disse: — Gosto da maneira por que você penteia o seu cabelo, e fico contente porque você não o apara muito curto.

Um pouco da tenção desapareceu do rosto dela. — Como é que você pode pensar em coisas como essa? — Deu um leve sorriso para ele, e acrescentou: — Mas estou contente por você gostar de meu penteado. Lavo os meus cabelos com óleo de coco uma vez por semana.

À lembrança de sua outra vida, seus olhos ficaram brilhantes. Ela baixou a cabeça para as mãos algemadas, a fim de esconder as lágrimas. Sussurrou quase para si mesma: — Tentarei ser brava. Tudo estará bem, desde que você esteja lá.

Bond aconchegou-se a ela. Levantou suas mãos algemadas até a altura dos olhos e examinou as algemas. Eram do tipo usado pela polícia norte-americana. Contraiu sua mão esquerda, a mais fina das duas, e tentou fazê-la deslizar pelo anel de aço. Mesmo o suor de sua pele de nada adiantou. Era inútil.

Os dois homens sentavam-se em seus bancos de ferro, indiferentes, e com as costas voltadas para eles. Sabiam que dominavam inteiramente a situação. Não havia possibilidade de que Bond oferecesse qualquer incômodo. Não poderia levantar-se ou dar o necessário impulso aos seus punhos para causar qualquer mal às cabeças de seus adversários, utilizando as algemas. Se conseguisse abrir a porta e pular para a água, o que lograria com isso? Imediatamente eles sentiriam a brisa fresca, nas costas, e parariam a máquina para queimá-lo na água ou içá-lo novamente. Bond aborrecia-se em pensar que os homens pouco se preocupavam com ele, pois sabiam tê-lo completamente em seu poder. Também não gostou da idéia de que aqueles homens eram bastante inteligentes para saber que ele não representava nenhuma ameaça. Indivíduos mais estúpidos teriam ficado em cima deles, de revólver em punho, tê-los-iam surrado, a ele e à jovem, barbaramente, e talvez os tivessem deixado inconscientes. Aqueles dois conheciam o ofício. Eram profissionais, ou tinham sido treinados para o serem.

Os dois homens não falaram. Não houve nenhum comentário sobre o quão hábil eles tinham sido, ou quanto ao seu cansaço ou destino. Apenas dirigiam a máquina serenamente, ultimando com eficiência a sua tarefa.

Bond continuava sem a mínima idéia do que seria aquilo. Sob a tinta negra e dourada, assim como sob o resto daquela fantasia, a máquina parecia uma espécie de trator, como ele nunca vira. Não tinha conseguido descobrir nomes de marcas comerciais, nos pneumáticos, pois estivera muito escuro, mas certamente que deveriam ser de borracha sólida ou porosa. Atrás havia um pequena roda para dar estabilidade ao conjunto. Uma espécie de barbatana de ferro fora ainda acrescentada e pintada também de preto e ouro, a fim de ajudar a dar a aparência de dragão. Os altos pára-lamas tinham sofrido um prolongamento, na forma de curtas asas voltadas para trás. Uma comprida cabeça de dragão, feita em metal, fora fixada ao radiador e os faróis receberam pontos centrais negros, para parecerem olhos. Era tudo, sem falar da cabina que fora recoberta com uma cúpula blindada e dotada de um lança-chamas. Era, como pensara Bond, um trator preparado para assustar e queimar — embora não pudesse atinar porque estava dotado de um lança-chamas e não de uma metralhadora. Era, evidentemente, a única espécie de veículo que poderia percorrer a ilha. Suas gigantescas rodas podiam avançar sobre os mangues, pântanos e ainda atravessar o lago raso. Galgaria também os agrestes planaltos de coral e, desde que andasse à noite, o calor experimentado na cabina seria pelo menos tolerável.

Bond ficara impressionado. Impressionado pelo toque de profissionalismo. O Dr. No era sem dúvida um homem que se preocupava intensamente com as coisas. Em pouco iria encontrá-lo. E em breve estaria diante do segredo do Dr. No. Então, o que aconteceria? Bond sorriu amargamente. Sim, não o deixariam sair dali com o seu conhecimento. Certamente seria morto, a menos que pudesse fugir ou conseguir a sua liberdade por meios persuasivos. E o que aconteceria à jovem? Poderia ele provar sua inocência e conseguir com que ela fosse poupada? Possivelmente, mas nunca mais ela teria permissão para deixar a ilha. Ali teria de ficar para o resto da vida, como amante ou mulher de um dos homens, ou do próprio Dr. No, se ela o impressionasse.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um trecho do percurso mais difícil, como se podia sentir pela trepidação. Tinham atravessado o lago e estavam no caminho que levava para o alto da montanha, junto às cabanas. A cabina vibrava e a máquina começou a galgar o terreno. Dentro de cinco minutos estariam lá.

O ajudante do motorista olhou por sobre o ombro para Bond e a jovem. Bond sorriu confiantemente para ele dizendo: Você receberá uma medalha por isso.

Os olhos amarelos e marrons olharam impassivelmente dentro dos dele, enquanto os lábios arroxeados e oleosos se fenderam num sorriso no qual havia um ódio repousado: Feche a boca, se... Depois, deu-lhe as costas.

A jovem tocou-o com o cotovelo e sussurrou: — Por que eles são tão rudes? Por que nos odeiam tanto?

Bond esboçou um sorriso e disse: — Acho que é porque lhes causamos medo. Talvez ainda estejam com medo, e isto porque não parecemos ter medo deles. Devemos mantê-los assim.

A jovem aconchegou-se a ele e disse: — Tentarei.

Agora a subida estava-se tornando mais íngreme. Uma luz azul-acinzentada atravessava as frestas da armadura. A madrugada se aproximava. Fora, em breve estaria começando mais um dia de calor abrasador, de execrável vento, carregado com o cheiro de gás dos pântanos. Bond pensou em Quarrel, o bravo gigante que não mais veria aquele dia, e com o qual eles deveriam agora estar caminhando através dos pauis de mangues. Quarrel tinha pressentido a morte, mas apesar disso tinha acompanhado Bond sem qualquer objeção. Sua fé em Bond tinha sido maior do que o seu medo. E Bond tinha-lhe faltado. Seria ele ainda o causador da morte da jovem?

O motorista esticou o braço em direção ao painel e na parte dianteira do veículo fez-se ouvir o breve zunido de uma sirena de polícia, que foi desaparecendo num gemido fúnebre. Mais um minuto e o veículo parava, continuando o motor em regime neutro. O homem apertou um interruptor e tirou um microfone de um gancho, a seu lado. Falou por aquele microfone e Bond pôde ouvir a sua voz aumentada, do lado de fora, por um altofalante. — Tudo bem. Apanhamos o inglês e a garota. O outro homem morreu. Isso é tudo. Abram. — Bond ouviu que uma porta se deslocava para o lado, sobre rolamentos. O motorista embreou e eles avançaram lentamente para a frente, parando alguns metros adiante. O motorista desligou o motor. Ouviu-se o ruído metálico da tranca e a porta foi aberta pelo lado de fora. Uma lufada de ar fresco e uma luz mais brilhante penetraram na cabina. Várias mãos agarraram Bond e arrastaram-no para trás, até um chão de cimento. Bond agora estava de pé e sentia o cano de um revólver encostado ao seu flanco. Uma voz disse: — Fique onde está. Nada de espertezas. — Bond olhou para o homem. Era mais um chinês negro, do mesmo tipo que os outros. Os olhos amarelos examinaram-no com curiosidade. Bond virou-se com indiferença. Outro homem estava cutucando a jovem com a arma. Bond disse asperamente: — Deixe a garota em paz! Em seguida, caminhou e pôs-se ao lado da jovem. Os dois homens pareceram surpresos. Deixaram-se ficar de pé, apontando as armas com hesitação.

Bond olhou à volta. Estavam numa das cabanas pré-fabricadas que ele vira do rio. Era ao mesmo tempo uma garagem e uma oficina. O “dragão” tinha sido colocado sobre um fosso de vistoria, no chão de concreto. Um motor de popa desmontado estava sobre uma das bancadas. Longos tubos de luz fluorescente estavam afixados ao teto e o ambiente estava impregnado do cheiro de óleo e fumaça de exaustor. O motorista e o seu companheiro examinavam a máquina. Em seguida deram alguns passos pelo galpão, como se andassem sem propósito.

Um dos guardas anunciou: — Enviei a mensagem. A ordem é que eles sejam levados. Foi tudo bem?

O ajudante de motorista, que parecia o homem mais responsável, ali presente, disse: — Sem dúvida. Alguns disparos. Os faróis foram partidos. Talvez haja alguns furos nos pneumáticos. Ponha os rapazes em ação — uma vistoria completa. Conduzirei esses dois e tirarei um cochilo. — E, voltando-se para Bond: — Bem, vamos andando — e indicou o caminho que saía do longo galpão.

Bond disse: — Vá andando você; e cuidado com os modos. Diga àqueles macacos que tirem as armas de cima de nós. Podem disparar por engano. Parecem bastante idiotas.

O homem se aproximou, e os outros os acompanharam logo atrás. O ódio brilhava em seus olhos. O chefe levantou o punho cerrado, tão grande quanto um pequeno malho e chegou-o à altura do nariz de Bond. Procurava controlar-se com esforço, e disse: — Ouça, senhor. Às vezes, nós, os rapazes, temos permissão para participar da festa final. Estou rezando para que essa seja uma dessas vezes. Certa ocasião fizemos com que a coisa durasse toda uma semana. E se eu o pego...

Riu e os seus olhos brilharam com crueldade. Olhou para o lado de Bond, fixando a garota. Seus olhos pareciam transformados em bocas que agitavam os lábios. Enfiou as mãos nos bolsos laterais das calças. A ponta de sua língua mostrava-se muito vermelha, entre os lábios arroxeados. Voltando-se para os companheiros disse: — Que tal, rapazes?

Os três homens estavam olhando também para a jovem. Fizeram um sinal de assentimento, como crianças diante de uma árvore de Natal.

Bond desejou atirar-se como um louco sobre eles, golpeando as suas caras com os punhos algemados e aceitando a sua vingança sangrenta. Não fosse pela jovem, bem que o teria feito. Mas tudo o que tinha conseguido com suas corajosas palavras fora amedrontá-la. Disse apenas: — Muito bem, muito bem. Vocês são quatro e nós somos dois, ainda por cima com as mãos atadas. Vamos, não queremos atingi-los. Apenas não nos empurrem muito de um lado para outro. O Dr. No poderia não ficar satisfeito.

Àquele nome, os rostos dos homens se modificaram. Três pares de olhos passaram apàticamente de Bond para o chefe. Por um segundo, este olhou com desconfiança para Bond, intrigado, tentando descobrir se Bond teria alguma influência junto ao Dr. No. Sua boca abriu-se para dizer algo, mas logo pareceu pensar melhor, e apenas disse de maneira incerta: — Bem, bem, estávamos simplesmente brincando. — Voltou-se para os homens, em busca de confirmação: — Não é?

— Sem dúvida, sem dúvida! — foi a resposta dada por um coro áspero, e os homens desviaram o olhar.

O chefe disse com mau humor: — Por aqui, senhor. — E ele mesmo pôs-se a caminho, percorrendo o comprido galpão.

Bond segurou o pulso da jovem e seguiu o chefe. Estava impressionado com a reação causada naqueles homens pelo nome do Dr. No. Aquilo era alguma coisa a lembrar se eles tivessem que se haver novamente com aquela turma.

O homem chegou a uma porta de madeira situada na extremidade do galpão. Ao lado havia um botão de campainha que ele pressionou duas vezes e esperou. Ouviu-se um estalido e a porta se abriu, mostrando dez metros de uma passagem rochosa, mas atapetada e que ia dar, na outra extremidade, em outra porta mais elegante e pintada de creme.

O homem ficou de lado. Siga em frente, senhor — disse; — bata na porta e será atendido pela recepcionista. — Não havia nenhuma ironia em sua voz e seus olhos se mostravam impassíveis.

Bond conduziu Honey pela passagem. Ouviu que a porta se fechava às suas costas. Deteve-se por um momento e fitou-a, perguntando-lhe: — E agora?

Ela riu, trêmula, mas respondeu: — Ê bom sentir-se tapete sob os pés.

Bond apertou o seu pulso. Andou até a porta pintada de creme e bateu.

A porta abriu-se e Bond entrou com a jovem ao lado. Quando se deteve instantaneamente, não chegou a perceber o encontrão que lhe dava a jovem, pois continuou estarrecido.


XIII - GAIOLA DE OURO


Era a espécie de sala de recepção que as maiores corporações norte-americanas possuem no andar em que se situa o escritório do presidente, em seus arranha-céus de Nova Iorque. Suas proporções eram agradáveis, com cerca de vinte pés quadrados. O chão era todo recoberto pelo mais espesso tapete Wilton cor-de-vinho. O teto e as paredes estavam pintados numa suave tonalidade cinza pombo. Viam-se ainda reproduções litográficas de esboços de balé de Degas penduradas em séries, nas paredes, e a iluminação era feita com altos e modernos jogos de abajures de seda verde-escuro, imitando a forma de elegantes barricas.

À direita de Bond estavam uma larga mesa de mogno, com o tampo recoberto com couro verde, outras peças que se harmonizavam perfeitamente com a mesa, e um caro sistema de intercomunicações. Duas cadeiras altas, de antiquado, aguardavam os visitantes. Do outro lado da sala via-se uma mesa do tipo refeitório, sobre a qual estavam várias revistas com capas em cores vivas e mais duas cadeiras. Tanto na mesa de escritório, como na outra, viam-se vasos de hibiscos. O ar era fresco e impregnado de leve fragrância.

Duas mulheres estavam naquela sala. Por trás da mesa de trabalho, empunhando uma caneta que descansava sobre um formulário impresso, estava sentada uma jovem chinesa, de aspecto eficiente, com óculos de armação de chifre, sob uma franja de cabelos negros cortados curtos. Em seus olhos e em sua boca havia o sorriso padrão de boas-vindas que qualquer recepcionista exibe — a um tempo claro, obsequioso e inquisitivo.

Ainda com a mão na maçaneta da porta pela qual eles tinham passado, e esperando que os recém-chegados se adiantassem mais, a fim de que ela a pudesse fechar, estava uma mulher mais velha, com aspecto de matrona, e que deveria ter cerca de quarenta e cinco anos. Era fácil ver-se que também tinha sangue chinês. Sua aparência, saudável, de farto busto, era viva e quase excessivamente graciosa. O seu “pince-nez” de lentes cortadas em quadrado brilhava com o desejo da recepcionista de os pôr à vontade.

Ambas as mulheres vestiam roupas imaculadamente alvas, com meias brancas e sapatos de camurça branca como costumam apresentar-se as auxiliares empregadas nos mais luxuosos salões de beleza norte-americanos. Havia um que de suave e pálido em suas peles, como se elas raramente saíssem para o ar-livre.

Bond observou o ambiente, enquanto a mulher junto à porta lhe dizia frases convencionais de boas-vindas, como se eles tivessem sido colhidos por uma tempestade o chegado com atraso a uma festa.

— Oh, coitados! Nós não sabíamos quando vocês iriam chegar. A todo momento nos diziam que vocês já estavam a caminho... primeiro à hora do chá, ontem, depois na hora do jantar, e apenas há uma hora fomos informadas de que vocês chegariam à hora do desjejum. Devem estar com fome. Venham aqui e ajudem a irmã Rosa a preencher o formulário; depois eu os prepararei para a cama. Devem estar muito cansados.

Ia dizendo aquilo com voz doce e cacarejante, ao mesmo tempo que fechava a porta e os levava para junto da mesa e os fazia sentar nas cadeiras. Depois disse: — Bem, eu sou a irmã Lírio, e esta é a irmã Rosa. Ela irá fazer-lhes apenas algumas perguntas. Agora, aceitam um cigarro? — e pegou uma caixa de couro trabalhado que estava em cima da mesa. Abriu-a e pô-la diante deles. A caixa tinha três divisões, e a chinesinha explicou apontando com um dedo: “Esses são americanos, esses são ingleses e esses turcos.” Ela apanhou um luxuoso isqueiro de mesa e esperou.

Bond estendeu as mãos algemadas para tirar um cigarro turco.

A irmã Lírio deu um gritinho de espanto: — Oh, mas francamente. — Parecia sinceramente embaraçada. — Irmã Rosa, dê-me a chave, depressa. Já disse por várias vezes que os pacientes não devem ser trazidos dessa maneira. — Havia impaciência e aborrecimento em sua voz. — Francamente, aquela gente lá de fora! Já era tempo que eles fossem chamados à ordem.

A irmã Rosa estava tão embaraçada quanto a irmã Lírio. Rapidamente remexeu dentro de uma gaveta e entregou uma chave à irmã Lírio, que com muitas desculpas e cheia de dedos abriu os dois pares de algemas e, afastando-se para trás da mesa, deixou aquelas duas pulseiras de aço caírem dentro da cesta de papéis como se fossem ataduras sujas.

— Obrigado, — disse Bond, que não sabia como enfrentar aquela situação, a não ser procurando desempenhar um papel qualquer na comédia que se estava representando. Ele estendeu o braço, apanhou um cigarro e acendeu-o. Lançou um olhar para Honeyehile Rider, que parecia estonteada e nervosamente apertava com as mãos os braços de sua cadeira. Bond dirigiu-lhe um sorriso de conforto.

— Agora, por favor; — disse a irmã Rosa e inclinou-se sobre um comprido formulário impresso em papel caro. — Prometo ser o mais rápida que puder. O seu nome, sr... sr...

— Bryce, John Bryce.

Ela escreveu a resposta com grande concentração. — Endereço permanente?

— Aos cuidados do Jardim Zoológico Real, Regents Park, Londres, Inglaterra.

— Profissão?

— Ornitologista.

— Oh, meu Deus!, poderia o senhor soletrar isso? Bond atendeu-a.

— Muito obrigada. Agora, vejamos, objeto da viagem?

— Aves — respondeu Bond. — Sou também representante da Sociedade Audubon de Nova Iorque. Eles arrendaram parte desta ilha.

— Oh, sem dúvida. — Bond observou que a pena escrevia exatamente o que ele dizia. Depois da última palavra ela pôs um claro ponto de interrogação entre parênteses.

— E — a irmã Rosa sorriu polidamente em direção a Honeyehile — a sua esposa? Ela também está interessada em pássaros?

— Sim, sem dúvida.

— O seu primeiro nome?

— Honeyehile.

A irmã Rosa estava encantada. — Que nome lindo! — Ela voltou a escrever apressadamente. — E agora os parentes mais próximos de ambos, e estará tudo acabado.

Bond deu o verdadeiro nome de M como o parente mais próximo de ambos. Apresentou-o como “tio” e indicou o seu endereço como sendo “Diretor-Gerente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres.”

A irmã Rosa acabou de escrever e disse: — Pronto, está tudo feito. Muito obrigada, sr. Bryce, e espero que ambos apreciem a permanência aqui.

— Muito obrigado. Estou certo de que apreciaremos. — Bond levantou-se e Honeyehile fez o mesmo, ainda com expressão vazia.

A irmã Lírio disse: — Agora, venham comigo, queridos.

— Ela caminhou até uma porta na parede distante e deteve-se com a mão na maçaneta talhada em vidro. — Oh, meu Deus, — disse —, não é que agora me esqueci do número de seus quartos? É o apartamento creme, não é, irmã?

— Isso mesmo. Catorze e quinze.

— Obrigada, querida. E agora — ela abriu a porta — se vocês quiserem me seguir... Receio que seja uma caminhada um pouco longa. — Fechou a porta, por trás deles, e pôs-se à frente, indicando o caminho. — O Doutor tem falado várias vezes em instalar uma dessas escadas rolantes, ou algo de parecido, mas sabem como são os homens ocupados: — Ela riu alegremente. — Ele tem tantas outras coisas em que pensar!

— Sim, acredito, — disse Bond polidamente.

Bond tomou a mão da jovem e seguiram ambos a maternal e agitada chinesa através de cem metros de um alto corredor, do mesmo estilo da sala de recepção, mas que era iluminado a freqüentes intervalos por caros tubos luminosos fixados às paredes.

Bond respondia com polidos monossílabos aos comentários ocasionais que a irmã Lírio lhe lançava por sobre os ombros. Toda a sua mente se concentrava nas extraordinárias circunstâncias de sua recepção. Tinha certeza de que aquelas duas mulheres tinham sido sinceras. Nenhum só olhar ou palavra conseguira registrar que estivesse fora de propósito. Evidentemente aquilo era alguma espécie de fachada, mas de qualquer forma uma fachada sólida, meticulosamente apoiada pelo cenário e pelo elenco. A ausência de ressonância, na sala, e agora no corredor, estava a indicar que eles tinham deixado o galpão pré-fabricado para se internarem no flanco da montanha e agora estavam atravessando a sua base. Segundo o seu palpite estavam mesmo andando em direção oeste — em direção à penedia na qual terminava a ilha. Não havia umidade nas paredes e o ar parecia fresco e puro, com uma brisa a afagá-los. Muito dinheiro e uma bela realização de engenharia tinham sido os responsáveis por aquilo. A palidez das duas mulheres estava a sugerir que passavam a maior parte do tempo internadas no âmago da montanha. Do que a irmã dissera, parecia que elas faziam parte de um grupo de funcionários internos que nada tinham a ver com o destacamento de choque do exterior, e que talvez não soubessem a espécie de homens que eles eram.

Aquilo era grotesco, concluiu Bond ao se aproximar de uma porta, na extremidade do corredor, perigosamente grotesco, mas em nada adiantava pensar nisso no momento. Ele apenas podia seguir o papel que lhe tinha sido destinado. Pelo menos, aquilo era melhor do que os bastidores, na arena exterior da ilha.

Junto à porta, a irmã Lírio fez soar uma campainha. Já eram esperados e a porta abriu-se imediatamente. Uma encantadora jovem chinesa, de quimono lilás e branco, ficou a sorrir e a curvar-se, como se deve esperar que o façam as jovens chinesas. E, mais uma vez só havia calor e um sentimento de boas-vindas naquele rosto pálido como uma for. A irmã Lírio exclamou: — Aqui estão eles, finalmente, May! São o senhor e a senhora John Bryce. E sei que ambos devem estar exaustos, por isso devemos levá-los imediatamente aos seus aposentos, para que possam repousar e dormir. — Voltando-se para Bond: — Esta é May, muito boazinha. Ela tratará de ambos. Qualquer coisa que queiram é só tocar a campainha que May atenderá. É uma espécie de favorita de todos os nossos hóspedes.

Hóspedes!, pensou Bond. Essa é a segunda vez que ela usa a palavra. Sorriu polidamente para a jovem, e disse;

— Muito prazer; sim, certamente que gostaríamos de ir para os nossos aposentos.

May envolveu-os num cálido sorriso, e disse em voz baixa e atraente: — Espero que ambos se sintam bem, sr. Bryce. Tomei a liberdade de mandar vir uma refeição assim que soube que os senhores iam chegar. Vamos...? — Corredores saiam para a esquerda e a direita de portas duplas de elevadores, instalados na parede oposta. A jovem adiantou-se, caminhando na frente, para a direita, logo seguida de Bond e Honeyehile, que tinham atrás a irmã Lírio.

Ao longo do corredor, dos dois lados, viam-se portas numeradas. A decoração era feita no mais pálido cor-de-rosa, com um tapete cinza-pombo. Os números nas portas eram superiores a dez. O corredor terminava abruptamente, com duas portas, uma em frente a outra, com a numeração catorze e quinze. A irmã May abriu a porta catorze e o casal a seguiu, entrando na peça.

Era um lindo quarto de casal, em moderno estilo Mia-mi, com paredes verde-escuro, chão encerado de mogno escuro, com um ou outro espesso tapete branco e bem desenhado mobiliário de bambu com um tecido “chintz” de grandes rosas vermelhas sobre fundo branco. Havia uma porta de comunicação para um quarto de vestir masculino e outra que dava para um banheiro moderno e extremamente luxuoso, com uma banheira de descida e um bidê.

Era como se tivessem sido introduzidos num apartamento do mais moderno hotel da Flórida, com exceção de dois detalhes que não passaram despercebidos a Bond. Não havia janelas e nenhuma maçaneta interior nas portas.

May olhou com expressão de expectativa, de um para o outro.

Bond voltou-se para Honeyehile e sorriu-lhe: — Parece muito confortável, não acha, querida?

A jovem brincava com a barra da saia e fez um sinal de assentimento sem olhar para Bond.

Ouviu-se uma tímida batida na porta e outra jovem, tão linda quanto May, entrou carregando uma bandeja que se equilibrava sobre as palmas das mãos. A jovem descansou a bandeja sobre a mesa do centro e puxou duas cadeiras. Retirou a toalha de linho imaculadamente limpa e saiu. Sentiu-se um delicioso cheiro de fiambre e café.

May e a irmã Lírio também se encaminharam para a porta. A mulher mais idosa se deteve por um instante e disse:

— E agora nós os deixaremos em paz. Se desejarem alguma coisa, basta tocar a campainha. Os interruptores estão ao lado da cama. Ah, outra coisa, poderão encontrar roupa limpa nos aparadores. Receio que sejam apenas de estilo chinês,

— acrescentou, como a desculpar-se —, mas espero que os tamanhos satisfaçam. A rouparia só recebeu as medidas ontem à noite. O Dr. deu ordens severas para que os senhores não fossem perturbados. Ficará encantado se puderem reunir-se a ele, esta noite, para o jantar. Deseja, entretanto, que tenham todo o resto do dia à vontade, a fim de que melhor se ambientem, compreendem? — Fez uma pausa e olhou para um e para outro, com um sorriso indagador. — Posso dizer que os senhores...?

— Sim, por favor, — disse Bond. — Pode dizer ao D., que teremos muito prazer em jantar com ele.

— Oh, sei que ficará contente. — Com uma derradeira mesura, as duas chinesas se retiraram e fecharam a porta.

Bond voltou-se para Honeyehile, que parecia embaraçada e ainda evitava os seus olhos. Ocorreu então a Bond que talvez jamais tivesse ela tido um tratamento tão cortês ou visto tanto luxo em sua vida. Para ela, tudo aquilo devia ser muito mais estranho e aterrador do que o que tinham passado ao lado de fora. Ela continuou na mesma posição, brincando com a barra da saia. Podiam-se notar vestígios de suor seco, sal e poeira em seu rosto. Suas pernas nuas estavam sujas e Bond observou que os dedos de seus pés se moviam, suavemente, ao pisarem nervosamente o maravilhoso e espesso tapete.

Bond riu. Riu com gosto ao pensamento de que os temores da jovem tivessem sido abafados pelas preocupações de etiqueta e comportamento, e riu-se também da figura que ambos faziam — ela em farrapos e ele com a suja camisa azul, as calças pretas e os sapatos de lona enlameados.

Aproximou-se dela e segurou-lhe mãos. Estavam frias. Disse: — Honey, somos um par de espantalhos, mas há apenas um problema básico. Devemos tomar o nosso desjejum primeiro, enquanto está quente, ou tiraremos antes esses farrapos e tomaremos um banho, tomando a nossa refeição fria? Não se preocupe com mais nada. Estamos aqui nessa maravilhosa casinha e isto é tudo o que importa. O que faremos, então?

Ela sorriu hesitante. Seus olhos azuis fixavam-se no rosto dele, na ânsia de obter segurança. Depois disse: — Você não está preocupado com o que nos possa acontecer? — Fez um sinal para o quarto e acrescentou: — Não acha que tudo isso pode ser uma armadilha?

— Se se trata de uma armadilha, já caímos nela. Agora nada mais podemos fazer senão comer a isca. A única questão que subsiste é a de saber se a comeremos quente ou fria. — Apertou-lhe as mãos e continuou: — Seriamente, Honey. Deixe as preocupações comigo. Pense apenas onde estávamos apenas há uma hora. Isso aqui não é melhor? Agora, decidamos a única coisa realmente importante. Banho ou desjejum?

Ela respondeu com relutância: — Bem, se você acha... Quero dizer — preferiria antes lavar-me. — Mas logo acrescentou: — Você terá que ajudar-me. — E sacudiu a cabeça em direção ao banheiro, dizendo: Não sei como mexer numa coisa dessas. Como é que se faz?

Bond respondeu com toda seriedade: — É muito fácil. Vou preparar tudo para você. Enquanto você estivar tomando o seu banho tomarei o meu desjejum. Ao mesmo tempo tratarei de fazer com que o seu não esfrie.

Bond aproximou-se de um dos armários embutidos e abriu a porta. No interior havia uma meia dúzia de quimonos, alguns de seda e outros de linho. Apanhou um de linho, ao acaso. Depois, voltando-se para ela, disse: — Tire suas roupas e meta-se nisso aqui, enquanto preparo o seu banho. Mais tarde você escolherá as coisas que preferir, para a cama e para o jantar.

Ela respondeu com gratidão: — Oh, sim, James. Se você apenas me mostrasse... — E logo começou a desabotoar a saia.

Bond pensou em tomá-la nos braços e beijá-la, mas, ao invés disso, disse abruptamente: — ótimo, Honey — e, adiantando-se para o banheiro, abriu as torneiras.

Havia de tudo naquele banheiro: essência para banhos Floris Lime, para homens, e pastilhas de Guarlain para o banho de senhoras. Esfarelou uma pastilha na água e imediatamente o banheiro perfumou-se como uma loja de orquídeas. O sabonete era o Sapoceti de Guarlain “Fleurs des Alpes”. Num pequeno armário de remédios, atrás de um espelho, em cima da pia, podiam-se encontrar tubos de pasta, escovas de dente e palitos “Steradent”, água “Rose” para lavagem bucal, aspirina e leite de magnésia. Havia também um aparelho de barbear elétrico, loção “Lentheric” para barba, e duas escovas de náilon para cabelos e pentes. Tudo era novo e ainda não tinha sido tocado.

Bond olhou para o seu rosto sujo e sem barbear, no espelho, e riu sardonicamente para os próprios olhos, cinzentos, de pária queimado pelo sol. O revestimento da pílula certamente que era do melhor açúcar. Seria inteligente esperar que o remédio, no interior daquela pílula, fosse dos mais amargos.

Tocou a água, com a mão, a fim de sentir a temperatura. Talvez estivesse muito quente para quem jamais tinha tomado antes um banho quente. Deixou então que corresse um pouco mais de água fria. Ao inclinar-se, sentiu que dois braços lhe eram passados em torno do pescoço. Endireitou-se. Aquele corpo dourado resplandecia no banheiro todo revestido de ladrilhos brancos. Ela beijou-o impetuosamente nos lábios. Ele passou-lhe os braços à volta da cintura e esmagou-a de encontro a seu corpo, com o coração aos pulos. Ela disse sem fôlego, ao seu ouvido: — Achei estranhas as roupas chinesas, mas de qualquer maneira você disse à mulher que nós éramos casados.

Uma das mãos de Bond estava pousada sobre o seu seio esquerdo, cujo mamilo estava completamente endurecido pela paixão. O ventre da jovem se comprimia contra o seu. Por que não? Por que não? Não seja tolo! Este é um momento louco para isso. Vocês dois estão diante de um perigo mortal. Você deve continuar frio como gelo, para ter alguma possibilidade de se livrar dessa enrascada. Mais tarde! Mais tarde! Não seja fraco.

Bond retirou a mão do seio dela e espalmou-a à volta de seu pescoço. Esfregou o rosto de encontro ao dela e depois aproximou a boca da boca da jovem e deu-lhe um prolongado beijo.

Afastou-se depois e manteve-a à distância de um braço. Por um momento ambos se olharam, com os olhos brilhando de desejo. Ela respirava ofegantemente, com os lábios entreabertos, de modo que ele podia ver-lhe o brilho dos dentes. Ele disse com a voz trêmula: — Honey, entre no banho antes que eu lhe dê uma surra.

Ela sorriu e sem nada dizer entrou na banheira e deitou-se em todo seu comprimento. Do fundo da banheira ergueu os olhos para ele. Os cabelos louros, em seu corpo, brilhavam como moedas de ouro. Ela disse provocadoramente: — Você tem que me esfregar. Não sei como devo fazer, e você terá que mostrar-me.

Bond respondeu desesperadamente: — Cale a boca, Honey, e deixe de namoros. Apanhe a esponja, o sabonete e comece logo a se esfregar. Que diabo! Isso não é o momento de se fazer amor. Vou tomar o meu desjejum. — Esticou a mão para a porta e segurou na maçaneta. Ela disse docemente: — James! — Ele olhou para trás e viu que ela lhe fazia uma careta, com a língua de fora. Retribuiu com uma careta selvagem e bateu a porta com força.

Em seguida, Bond dirigiu-se para o quarto de vestir e deixou-se ficar durante algum tempo, de pé, no centro da peça, esperando que as batidas de seu coração se acalmassem. Esfregou as mãos no rosto e sacudiu a cabeça, procurando esquecê-la.

Para clarear a mente, percorreu ainda cuidadosamente as duas peças, procurando saídas, possíveis armas, microfones, qualquer coisa enfim que lhe aumentasse o conhecimento da situação em que se achava. Nada disso, entretanto, pôde encontrar. Na parede havia um relógio elétrico que marcava oito e meia e uma série de botões de campainhas, ao lado da cama de casal. Esses botões traziam a indicação de “Sala de serviço”, “cabeleireiro”, “manicure”, “empregada”. Não havia telefone. Bem no alto, a um canto de ambas as peças, viam-se as grades de um pequeno ventilador. Cada uma dessas grades era de dois pés quadrados. Tudo inútil. As portas pareciam ser feitas de algum metal leve, pintadas para combinarem com as paredes. Bond jogou todo o peso de seu corpo contra uma delas, mas ela não cedeu um só milímetro. Bond esfregou o ombro. Aquele lugar era uma verdadeira prisão. Não adiantava discutir a situação. A armadilha tinha-se fechado hermèticamente sobre eles. Agora, a única coisa que restava aos ratos era tirarem o melhor proveito possível da isca de queijo.

Bond sentou-se à mesa do desjejum, sobre a qual estava uma grande jarra com suco de abacaxi, metida num pequeno balde de prata cheio de cubos de gelo. Serviu-se rapidamente e levantou a tampa de uma travessa. Ali estavam ovos mexidos sobre torradas, quatro fatias de toucinho defumado, um rim grelhado e o que parecia quatro salsichas inglesas de carne de porco. Havia também duas torradas quentes, pãezinhos conservados quentes dentro de guardanapos, geléia de laranja e morango e mel. O café estava quase fervendo numa grande garrafa térmica, e o creme exalava um odor fresco e agradável.

Do banheiro vinham as notas da canção “Marion” que a jovem estava cantarolando. Bond resolveu não dar ouvidos à cantoria e concentrou-se nos ovos.

Dez minutos depois, Bond ouviu que a porta do banheiro se abria. Descansou uma torrada que tinha numa das mãos e cobriu os olhos com a outra. Ela riu e disse: — Ele é um covarde. Tem medo de uma simples jovem. — Em seguida Bond ouviu-a a remexer nos armários. Ela continuava falando, em parte consigo mesma: — Não sei porque ele está assustado. Naturalmente que se eu lutasse com ele facilmente o dominaria. Talvez esteja com medo disso. Talvez não seja realmente muito forte, embora seus braços e peito pareçam bastante rijos. Contudo, ainda não vi o resto. Talvez seja fraco. Sim, deve ser isso. Essa é a razão pela qual não ousa despir-se na minha frente. Hum, agora vamos ver, será que ele gostaria de mim com essas roupas? — Ela elevou a voz: — Querido James, você gostaria de me ver de branco, com pássaros azul-pálido esvoaçando sobre o meu corpo?

— Sim, bolas! Agora acabe com essa conversa e venha comer. Estou começando a sentir sono.

Ela soltou uma exclamação: — Oh, se você quer dizer que já está na hora de irmos para a cama, naturalmente que me apressarei.

Ouviu-se uma agitação de passos apressados e Bond logo a via sentar-se diante de si. Ele deixou cair as mãos e ela sorriu-lhe. Estava linda. Seu cabelo estava escovado e penteado de um dos lados caindo sobre o rosto, e do outro com as madeixas puxadas para trás da orelha. Sua pele brilhava de frescura e os grandes olhos azuis resplandeciam de felicidade. Agora Bond estava gostando daquele nariz quebrado. Tinha-se tornado parte de seus pensamentos relativamente a ela, e subitamente lhe ocorreu perguntar-se por que estaria ele triste quando ela era tão imaculadamente bela quanto tantas outras lindas jovens. Sentou-se circunspectamente, com as mãos no colo, e a metade dos seios aparecendo na abertura do quimono.

Bond disse severamente: — Agora, ouça, Honey. Você está maravilhosa, mas esta não é a maneira de usar-se um quimono. Feche-o no corpo, prenda-o bem e deixe de tentar parecer uma prostituta. Isso simplesmente não são bons modos à mesa.

— Oh, você não passa de um boneco idiota. — E ajeitou o quimono, fechando-o um pouco, em uma ou duas polegadas. — Por que você não gosta de brincar? Gostaria de brincar de estar casada.

— Não à hora do desjejum — respondeu Bond com firmeza. — Vamos, coma logo. Está delicioso. De qualquer maneira estou muito sujo, e agora vou fazer a barba e tomar um banho. — Levantou-se, deu volta à mesa e beijou-lhe o alto da cabeça. — E quanto a essa história de brincar, como você diz, gostaria mais de brincar com você do que com qualquer outra pessoa do mundo. Mas não agora. — Sem esperar pela resposta, dirigiu-se ao banheiro e fechou a porta.

Bond barbeou-se e tomou um banho de chuveiro. Sentia-se desesperadamente sonolento. O sono chegava-lhe, de modo que de quando em quando tinha que interromper o que fazia e inclinar a cabeça, repousando-a entre os joelhos. Quando começou a escovar os dentes, o seu estado era tal que mal podia fazê-lo. Estava começando a reconhecer os sintomas. Tinha sido narcotizado. A coisa teria sido posta no suco de abacaxi ou no café? Este era um detalhe sem importância. Aliás, nada tinha importância. Tudo o que queria fazer era estender-se naquele chão de ladrilhos e fechar os olhos. Assim mesmo, dirigiu-se cambaleante para a porta, esquecendo-se de que estava nu. Isso também pouca importância tinha. A jovem já tinha terminado a refeição e agora estava na cama. Continuou trôpego, até ela, segurando-se nos móveis. O quimono tinha sido abandonado no chão e ela dormia pesadamente, completamente nua, sob um simples lençol.

Bond olhou para o travesseiro, ao lado da jovem. Não! Procurou o interruptor e apagou as luzes. Agora teve que se arrastar pelo chão até chegar ao seu quarto. Chegou até junto de sua cama e atirou-se nela. Com grande esforço conseguiu ainda esticar o braço, tocar o interruptor e tentar apagar a lâmpada do criado-mudo. Mas não o conseguiu: sua mão deslizou, atirou o abajur ao chão e a lâmpada espatifou-se. Com um derradeiro esforço, Bond virou-se ainda no leito e adormeceu profundamente.

Os números luminosos do relógio elétrico, no quarto de casal, anunciavam nove e meia.

Às dez horas, a porta do quarto abriu-se suavemente. Um vulto muito alto e magro destacava-se na luz do corredor. Era um homem. Talvez tivesse dois metros de altura. Permaneceu no limiar da porta, com os braços cruzados, ouvindo. Dando-se por satisfeito, caminhou vagarosamente pelo quarto e aproximou-se da cama. Conhecia perfeitamente o caminho. Curvou-se sobre o leito e ouviu a serena respiração da jovem. Depois de um momento, tocou em seu próprio peito e acionou um interruptor. Imediatamente um amplo feixe de luz difusa projetou-se na cama. O farolete estava preso ao corpo do homem por meio de um cinto que o fixava à altura do esterno.

Inclinou-se novamente para a frente, de modo que a luz clareou o rosto da jovem.

O intruso examinou aquele rosto durante alguns minutos. Uma de suas mãos avançou, apanhou a orla do lençol, à altura do queixo da jovem, e puxou-o lentamente até os pés da cama. Mas a mão que puxara aquele lençol não era u’a mão. Era um par de pinças de aço muito bem articuladas na extremidade de uma espécie de talo metálico que desaparecia dentro de uma manga de seda negra. Era u’a mão mecânica.

O homem contemplou durante longo tempo aquele corpo nu, deslocando o seu peito de um lado para outro, de modo que todo o leito fosse submetido ao feixe luminoso. Depois, a garra saiu novamente de sob aquela manga e delicadamente levantou a ponta do lençol, puxando-o dos pés da cama até recobrir todo o corpo da jovem. O homem demorou-se ainda por um momento a contemplar o rosto adormecido, depois apagou o farolete e atravessou silenciosamente o quarto em direção à porta aberta, além da qual estava Bond dormindo.

O homem demorou-se mais tempo ao lado do leito de Bond. Perscrutou cada linha, cada sombra do rosto moreno e quase cruel que jazia quase sem vida, sobre o travesseiro. Observou a circulação à altura do pescoço e contou-lhe as batidas; depois, quando puxou o lençol para baixo, fez o mesmo na área do coração. Estudou a curva dos músculos, nos braços de Bond e nas coxas, e considerou pensativo a força oculta no ventre musculoso de Bond. Chegou até mesmo a curvar-se sobre a mão direita de Bond, estudando-lhe cuidadosamente as linhas da vida e do destino.

Por fim, com grande cuidado, a pinça de aço puxou novamente o lençol, desta vez para cobrir o corpo de Bond até o pescoço. Por mais um minuto o elevado vulto permaneceu ao lado do homem adormecido, depois se retirou rapidamente, ganhando o corredor, enquanto a porta se fechava com um estalido metálico e seco.


CONTINUA

XI - VIDA NO CANAVIAL


Seriam cerca de oito horas, pensou Bond. A não ser o coaxar dos sapos, tudo estava mergulhado em silêncio. No canto mais distante da clareira, ele podia vislumbrar o vulto de Quarrel.

Podia-se ouvir o tinir metálico, enquanto ele se ocupava em desmontar e secar a sua “Remington”.

Por entre as árvores podiam-se ver também as luzes distantes, vindas do depósito de guano, riscar caminhos luminosos e festivos sobre a superfície escura do lago. O desagradável vento desaparecera e o abominável cenário estava mergulhado em trevas. Estava bastante fresco. As roupas de Bond tinham secado no corpo. A comida tinha aquecido o seu estômago. Ele experimentou uma agradável sensação de conforto, sonolência e paz. O dia seguinte ainda estava muito longe e não apresentava problemas, a não ser uma boa dose de exercício físico. A vida, subitamente, pareceu-lhe fácil e boa.

A jovem estava a seu lado, metida no saco de dormir. Estava deitada de costas, com a cabeça descansando nas mãos, e olhando para o teto de estrelas. Ele apenas conseguia divisar os pálidos contornos de seu rosto. De repente, ela disse: James, você prometeu dizer-me o que significava tudo isso. Vamos. Eu não dormirei enquanto você não o disser.

Bond riu. — Eu direi se você também disser. Também quero saber o que você pretende.

— Pois não, não tenho segredos: mas você deve falar primeiro.

— Está certo. — Bond puxou os joelhos até a altura do queixo e passou os braços à volta deles. — Eu sou uma espécie de policial. Eles me enviam de Londres quando há alguma coisa de estranho acontecendo em alguma parte do mundo e que não interessa a ninguém. Bem, não faz muito tempo, um dos funcionários do Governador, em Kingston, um homem chamado Strangways, aliás meu amigo, desapareceu. Sua secretária, que era uma linda jovem, também desapareceu sem deixar vestígios. Muitos pensaram que eles tivessem fugido juntos, mas eu não acreditei nisso. Eu...”

Bond contou tudo com simplicidade, falando em homens bons e maus, como numa história de aventuras lida em algum livro. Depois terminou: Como você vê, Honey, temos de voltar a Jamaica, amanhã à noite, todos nós, na canoa, e então o Governador nos dará ouvidos e enviará um destacamento de soldados para apanhar este chinês. Espero que isso terá como conseqüência levá-lo à prisão. Ele com certeza também sabe disso, e essa é a razão pela qual procura aniquilar-nos. Essa é a história. Agora é a sua vez.

A jovem disse: Você parece viver uma vida muita excitante. Sua mulher não deve gostar que você fique fora tanto tempo. Ela não tem medo de que você se fira?

— Não sou casado. A única que se preocupa com a possibilidade de que eu me fira é a minha companhia de seguros.

Ela continuou sondando: Mas suponho que você tenha namoradas.

— Não permanentes.

— Oh!

Fez-se uma pausa. Quarrel se aproximou e disse: “Capitão, farei o primeiro quarto, se for melhor. Estarei na extremidade da restinga e virei chamá-lo à meia-noite. Então talvez o senhor possa ir até as cinco horas, quando nós nos poremos em marcha. Precisamos estar fora daqui antes que clareie o dia.

— Está bem — respondeu Bond. — Acorde-me se você vir alguma coisa. O revólver está em ordem?

— Perfeito — respondeu Quarrel com evidente mostra de contentamento. Depois, dirigindo-se à jovem disse com leve tom de insinuação: — Durma bem, senhorita. Em seguida, desapareceu silenciosamente nas sombras.

— Gosto de Quarrel — disse a jovem. E, após uma pausa: — Você quer realmente saber alguma coisa a meu respeito? A história não é tão excitante quanto a sua.

— É claro que quero. E não omita nada.

— Não há nada a omitir. Você poderia escrever toda a história de minha vida nas costas de um cartão postal. Para começar, nunca saí de Jamaica. Vivi toda a minha vida num lugar chamado Beau Desert, na costa setentrional, nas proximidades do Porto Morgan.

Bond riu. — É estranho: posso dizer o mesmo; pelo menos por enquanto. Não notei você pela região. Você vive em cima de uma árvore?

— Ah, imagino que você tenha ficado na casa da praia. Eu nunca chego até ali. Vivo na Casa Grande.

— Mas nada ficou dela. É uma ruína no meio dos canaviais.

— Eu vivo na adega. Tenho vivido ali desde a idade de cinco anos. Depois a casa se incendiou e meus pais morreram. Nada me lembro deles, por isso você não precisa manifestar pesar. A princípio vivi ali com a minha ama negra, mas depois ela morreu, quando eu tinha apenas quinze anos. Nos últimos cinco anos tenho vivido ali sozinha.

— Nossa Senhora! — Bond estava boquiaberto. — Mas não havia ninguém para tomar conta de você? Os seus pais não deixaram nenhum dinheiro?

— Nem um tostão. — Não havia o mínimo traço de amargura na voz da jovem — talvez orgulho, se houvesse alguma coisa. — Você sabe, os Riders eram uma das mais antigas famílias de Jamaica. O primeiro Rider recebera de Cromwell as terras de Beau Desert, por ter sido um dos que assinaram o veredicto de morte contra o rei Carlos. Ele construiu a Casa Grande e minha família viveu ora nela ora fora dela, desde aquela época. Mas depois veio a decadência do açúcar e eu acho que a propriedade foi pessimamente administrada, e, ao tempo em que meu pai tomou conta da herança, havia somente dívidas — hipotecas e outros ônus. Assim, quando meu pai e minha mãe morreram a propriedade foi vendida. Eu pouco me importei, pois era muito jovem. Minha ama deve ter sido maravilhosa. Quiseram que alguém me adotasse, mas a minha babá reuniu os pedaços de mobília que não tinham sido queimados e com eles nós nos instalamos da melhor forma no meio daquelas ruínas. Depois de algum tempo ninguém mais veio interferir conosco. Ela cosia um pouco e lavava para algumas freguesas da aldeia, ao mesmo tempo que plantava bananas e outras coisas, sem falar do grande pé de fruta-pão que havia diante da casa. Comíamos o que era a ração habitual do povo de Jamaica. E havia os pés de cana-de-açúcar à nossa volta. Ela fizera também uma rede para apanhar peixes, a qual nós recolhíamos todos os dias. Tudo corria bem e nós tínhamos o suficiente para comer. Ela ensinou-me a ler e escrever, como pôde. Tínhamos uma pilha de velhos livros que escapara ao incêndio, inclusive uma enciclopédia. Comecei com o A quando tinha apenas oito anos, e cheguei até o meio do T. — Ela disse um tanto na defensiva: — Aposto que sei mais do que você sobre muitas coisas.

— Estou certo de que sim. — Bond estava perdido na visão daquela jovem de cabelos de linho errando pelas ruínas de uma grande construção, com uma obstinada negra a vigiá-la e a chamá-la para receber as lições que deveriam ter sido um mistério para ela mesma. — Sua ama deve ter sido uma criatura extraordinária.

— Ela era um amor. — Era uma afirmação peremptória. — Pensei que fosse morrer quando ela faleceu. As coisas não foram tão fáceis para mim depois disso. Antes eu levava uma vida de criança, mas subitamente tive que crescer e fazer tudo por mim mesma. E os homens tentaram apanhar-me e atingir-me. Diziam que queriam fazer amor comigo. — Fez uma pausa e acrescentou: — Eu era bonita naquela época. Bond disse muito sério:

— Você é uma das jovens mais belas que já vi.

— Com este nariz? Não seja tolo.

— Você não compreende. — Bond tentou encontrar palavras nas quais ela pudesse crer. — É claro que qualquer pessoa pode ver que o seu nariz está quebrado; mas desde esta manhã dificilmente eu pude notá-lo. Quando se olha para uma pessoa, olha-se para os seus olhos ou para a sua boca. Nesses dois pontos se encontram a expressão. Um nariz quebrado não tem maior significação do que uma orelha torta. Narizes e orelhas são peças do mobiliário facial. Algumas são mais bonitas do que outras, mas não são tão importantes quanto o resto. Se você tivesse um nariz bonito, tão bonito como o resto, você seria a jovem mais bela de Jamaica.

— Você é sincero? — Sua voz era ansiosa. — Você acha que eu poderia ser bela? Sei que muita coisa em mim está bem, mas quando olho no espelho só vejo o meu nariz quebrado. Estou certa de que o mesmo ocorre com outras pessoas que são, que são — bem — mais ou menos aleijadas.

Bond disse com impaciência: — Você não é aleijada! Não diga tolices. E aliás você pode endireitá-lo mediante uma simples operação. Basta que você vá aos Estados Unidos e a coisa levará apenas uma semana.

Ela disse com irritação: — Como é que você quer que eu faça isso? Tenho cerca de quinze libras debaixo de uma pedra, na minha adega. Tenho ainda três saias, três blusas, uma faca e uma panela de peixe. Conheço muito bem essas operações. O médico de Porto Maria já pediu informações para mim. Ele é um homem muito bom e escreveu para os Estados Unidos. Pois para que a operação seja bem feita, eu teria que gastar cerca de quinhentas libras, sem falar da passagem para Nova York, a conta do hospital e tudo o mais.

Sua voz tornou-se desesperançada: — Como é que você espera que eu possa ter todo esse dinheiro?

Bond já decidira sobre o que teria de ser feito, mas no momento apenas disse ternamente: — Bem, espero que se possam encontrar meios; mas, de qualquer maneira, prossiga com a sua história. Ela é muito excitante — muito mais interessante do que a minha. Você tinha chegado ao ponto em que a sua ama morreu. O que aconteceu depois?

A jovem recomeçou com relutância.

— Bem, a culpa é sua por ter interrompido. E você não deve falar de coisas que não compreende. Suponho que as pessoas lhe digam que você é simpático. Você deve também ter todas as namoradas que desejar. Bem, isso não aconteceria se você fosse vesgo ou tivesse um lábio leporino. — Na verdade, ele pôde ouvir o sorriso em sua voz: — Acho que quando voltarmos eu irei ter com o feiticeiro para que lhe faça uma mandinga e lhe dê alguma coisa assim. — E ela acrescentou tristemente: — Dessa forma, nós seremos mais parecidos.

Bond estendeu o braço e sua mão tocou nela: — Eu tenho outros planos. Mas continuemos, quero ouvir o resto da sua história.

— Bem, — disse a jovem com um suspiro. — Eu terei que me atrasar um pouco. Como você sabe, toda a propriedade é representada pela cana-de-açúcar e pela velha casa que está situada no meio da plantação. Bem, umas duas vezes por ano eles cortam a cana e mandam-na para o moinho. E quando eles o fazem, todos os animais e insetos que vivem nos canaviais entram em pânico e a maioria deles têm as suas tocas destruídas e são mortos. Na época da safra, alguns deles começaram a vir para as ruínas da casa, onde se escondiam. No princípio, minha babá ficava aterrorizada, pois lá vinham os mangustos, as cobras e os escorpiões, mas eu preparei dois quartos da adega para recebê-los. Não me assustei com eles, e eles nunca me fizeram mal. Pareciam compreender que eu estava cuidando deles. E devem ter contado aquilo aos seus amigos, ou alguma coisa parecida, pois depois de algum tempo era perfeitamente natural que todos viessem acantonar-se em seus dois quartos, onde ficavam até que os canaviais começassem novamente a crescer, quando então iam saindo e voltando para os campos. Dei-lhes toda a comida que podíamos pôr de lado, quando eles ficavam conosco, e todos se portavam muito bem, a não ser por algum odor e às vezes uma ou outra luta entre si. Mas eram muito mansos comigo. Naturalmente os cortadores de cana perceberam tudo e viam-me andando pelo lugar com cobras à volta do meu pescoço, e assim por diante, a ponto de ficarem aterrorizados comigo e me considerarem uma feiticeira. Por causa disso, eles nos deixaram completamente isoladas. Ela fez uma pausa, e depois recomeçou:

— Foi assim que aprendi tanta coisa sobre animais e insetos. Eu costumava ainda passar muito tempo no mar, aprendendo coisas sobre os animais marinhos, assim como sobre os pássaros. Se se chega a saber o que todas essas criaturas gostam de comer e do que têm medo, pode-se muito bem fazer amizade com elas. — Levantou os olhos para Bond e disse: Você não sabe o que perde ignorando todas essas coisas.

— Receio que perca muito — respondeu Bond com sinceridade. — Suponho que eles sejam muito melhores e mais interessantes que os homens.

Sobre isso nada sei — respondeu a jovem pensativa-mente. — Não conheço muitas pessoas. A maioria das que conheci foram detestáveis, mas acho que deve haver criaturas interessantes também. — Fez uma pausa, e prosseguiu: — Nunca pensei realmente que chegasse a gostar de alguma pessoa como gosto dos animais. Com exceção da babá, naturalmente. Até que... — Ela se interrompeu com um sorriso de timidez. — Bem, de qualquer forma, nós vivemos muito felizes juntas, até que eu fiz quinze anos, quando então a babá morreu e as coisas se tornaram muito difíceis. Havia um homem chamado Mander. Um homem horroroso. Era o capataz branco que servia aos proprietários da plantação. Ele vivia me procurando. Queria que eu fosse viver com ele, em sua casa de Porto Maria.

Eu o odiava, e costumava esconder-me sempre que ouvia o seu cavalo aproximando-se do canavial. Certa noite ele veio a pé e eu não o ouvi. Estava bêbado. Entrou na adega e lutou comigo porque não queria fazer o que ele desejava. Você sabe, as coisas que fazem as pessoas quando estão apaixonadas.

— Sim, já sei.

— Tentei matá-lo com a minha faca, mas ele era muito forte e deu-me um soco tão forte no rosto que me quebrou o nariz. Deixou-me inconsciente e acho que fez alguma coisa comigo. Sei que ele fez mesmo. No dia seguinte eu quis me matar quando vi o meu rosto e verifiquei o que ele me havia feito. Pensei que iria ter um filho. Teria sem dúvida me matado se tivesse tido um filho daquele homem. Em todo caso, não tive, e tudo continuou assim. Fui ao médico e ele fez o que pôde com o meu nariz e não me cobrou nada. Quanto ao resto, eu nada lhe contei, pois estava muito envergonhada. O homem não voltou mais. Eu esperei e nada fiz até a próxima colheita de cana-de-açúcar. Tinha um plano. Estava esperando que as aranhas viúvas-negras viessem procurar abrigo. Um belo dia elas chegaram. Apanhei a maior das fêmeas e á deixei numa caixa sem nada para comer. As fêmeas são terríveis. Então esperei que fizesse uma noite escura, sem luar. Na primeira noite dessas, apanhei a caixa com a aranha e caminhei até chegar à casa do homem. Estava muito escuro e eu me sentia aterrorizada com a possibilidade de encontrar algum assaltante pela estrada, mas não houve nada. Esperei em seu jardim, oculta entre os arbustos, até que ele se recolheu à cama. Então subi por uma árvore e ganhei a sacada; aguardei até que ele começasse a roncar e depois entrei pela janela. Ele estava nu, estendido na cama, sob o mosquiteiro. Levantei uma aba do filó, abri a caixa e sacudi-lhe a aranha sobre o ventre. Depois saí e voltei para casa.

— Deus do céu! — exclamou Bond reverentemente. — O que aconteceu com o homem?

Ela respondeu com satisfação: — Levou uma semana para morrer. Deve ter-lhe doído terrivelmente. Você sabe, a mordida dessa aranha é pavorosa. Os feiticeiros dizem que não há nada que se lhe compare. — Ela fez uma pausa, e como Bond não fizesse nenhum comentário, acrescentou: — Você não acha que eu fiz mal, não é?

— Bem, não faça disso um hábito — respondeu Bond suavemente. — Mas não posso culpá-la, diante do que ele tinha feito. E, depois, o que aconteceu?

— Bem, depois me estabeleci novamente — sua voz era firme. — Tive que me concentrar na tarefa de obter alimento suficiente, e naturalmente. — Acrescentou persuasivamente: — Eu tinha de fato um nariz muito bonito, antes. Você acha que os médicos podem torná-lo igualzinho ao que era antes?

— Eles poderão fazê-lo de qualquer forma que você quiser — disse Bond em tom definitivo. — Como é que você ganhou dinheiro?

— Foi graças à enciclopédia. Li nela que há pessoas que gostam de colecionar conchas marinhas e que as conchas raras podiam ser vendidas. Falei com o mestre-escola local, sem contar-lhe naturalmente o meu segredo, e ele descobriu para mim que havia uma revista norte-americana chamada “Nautilus”, dedicada aos colecionadores de conchas. Eu tinha apenas o dinheiro suficiente para tomar uma assinatura daquela revista e comecei a procurar as conchas que as pessoas pediam em seus anúncios. Escrevi a um comerciante de Miami e ele começou a comprar as minhas conchas. Foi emocionante. Naturalmente que cometi alguns erros, no princípio. Pensei, por exemplo, que as pessoas gostariam das conchas mais bonitas, mas esse não era o caso. Freqüentemente elas preferiam as conchas mais feias. Depois, quando achava conchas raras, punha-me a limpá-las e poli-las a fim de torná-las mais bonitas, mas isso também foi um erro. Os colecionadores querem as conchas exatamente como saem do mar, com o animal em seu interior também. Então consegui algum formol com o médico e o punha entre as conchas vivas, para que elas não tivessem mau cheiro, e depois mandava-as para o tal comerciante de Miami. Só aprendi bem o negócio de um ano para cá e já consegui quinze libras. Consegui esse resultado agora que sei como é que eles querem as conchas e se tivesse sorte, poderia fazer pelo menos cinqüenta libras por ano. Então, em dez anos poderia ir aos Estados Unidos e operar-me. Mas, continuou ela com intenso contentamento, tive uma notável maré de sorte. Fui a Crab Key pelo Natal, onde já tinha estado antes. Mas dessa vez eu encontrei essas conchas purpúreas. Não parecem grande coisa, mas eu enviei uma ou duas para Miami e o comerciante escreveu-me para dizer que compraria tantas dessas conchas quantas eu pudesse encontrar, e ao preço de até cinco dólares pelas perfeitas. Disse-me ainda que eu deveria manter segredo sobre o lugar de onde as tirava, pois de outra forma o “mercado seria estragado”, como disse ele, e os preços cairiam. É como se se tivesse uma mina de ouro particular. Agora serei capaz de juntar o dinheiro em cinco anos. Esse foi o motivo pelo qual tive grandes suspeitas de você, quando o encontrei na praia. Pensei que você tivesse vindo para roubar as minhas conchas.

— Você me deu um susto, pois pensei que você fosse a garota do Dr. No.

— Muito obrigada.

— Mas depois que você tiver feito a operação, o que irá fazer? Você não pode continuar vivendo numa adega durante toda a vida.

— Pensei em me tornar uma prostituta. — Ela o disse como se tivesse dito “enfermeira” ou “secretária”.

— Oh, o que é que você quer dizer com isso? — Talvez ela já tivesse ouvido aquela expressão sem compreendê-la bem.

— Uma dessas jovens que possuem um bonito apartamento e lindas roupas. Você sabe o que quero dizer — acrescentou ela com impaciência. — Os homens telefonam, marcam encontro, chegam, fazem amor e pagam. Elas ganham cem dólares de cada vez, em Nova Iorque, onde pensei começar. Naturalmente — admitiu — terei de fazer por menos, no começo, até que aprenda a trabalhar bem. Quanto é que vocês pagam pelas que não têm experiência?

Bond riu. — Francamente, não me lembro. Há muito tempo que não me encontro com essas mulheres.

Ela suspirou. — Sim, suponho que você possa ter tantas mulheres quantas queira, por nada. Suponho que apenas os homens feios paguem, mas isso é inevitável. Qualquer espécie de trabalho nas grandes cidades deve ser horrível. Pelo menos pode-se ganhar muito mais como prostituta. Depois, poderia voltar para Jamaica e comprar Beau Desert. Seria bastante rica para encontrar um marido bonito e ter alguns filhos. Agora que encontrei essas conchas, penso que poderia estar de volta a Jamaica quando tivesse trinta anos. Não seria formidável?

— Gosto da última parte do plano, mas não tenho muita confiança na primeira. De qualquer forma, como é que você veio a saber dessa história de prostitutas? Encontrou isso na letra P, na enciclopédia?

— Claro que não; não seja tolo. Há uns dois anos houve em Nova Iorque um escândalo sobre elas, envolvendo também um “play-boy” chamado Jelke. Ele tinha toda uma cadeia de prostitutas, e eu li muito sobre o caso no “Gleaner”. O jornal deu inclusive os preços que elas cobravam e tudo o mais. De qualquer forma, há milhares dessas jovens em Kingston, embora não sejam tão boas. Recebem apenas cinco xelins e não têm um lugar apropriado para fazer amor, a não ser no mato. Minha babá chegou a falar-me delas. Disse-me que eu não deveria imitá-las, pois do contrário seria muito infeliz. É claro que seria, recebendo apenas cinco xelins. Mas por cem dólares!...

Bond observou: — Você não conseguiria guardar todo esse dinheiro. Precisaria ter uma espécie de gerente para arranjar os homens, e teria ainda de dar gorjetas à polícia, para deixá-la em paz. Por fim, poderia ir facilmente parar na cadeia se tudo não corresse bem. Na verdade, com tudo o que você sabe sobre animais, bem poderia ter um ótimo emprego, cuidando deles, em algum jardim zoológico norte-americano. E o que me diz do Instituto de Jamaica? Tenho certeza de que você gostaria mais de trabalhar ali. E poderia também facilmente encontrar um bom marido. De qualquer forma, você não deve mais pensar em ser prostituta. Você tem um belo corpo e deve guardá-lo para o homem que amar.

— Isso é o que dizem as pessoas nos livros — disse ela com ar de dúvida. — A dificuldade está em que não há nenhum homem para ser amado em Beau Desert. — Depois acrescentou timidamente: — Você é o único inglês com quem jamais falei. Gostei de você desde o princípio, e não me importo de dizer-lhe essas coisas agora. Penso que há muitas pessoas das quais chegaria a gostar se saísse daqui.

— É claro que há. Centenas. E você é uma garota formidável; o que pensei assim que a vi.

— Assim que viu as minhas nádegas, você quer dizer. — Sua voz estava-se tornando sonolenta, mas cheia de prazer.

Bond riu. — Bem, eram nádegas maravilhosas. E o outro lado também era maravilhoso. — O corpo de Bond começou a se agitar com a lembrança de como a vira pela primeira vez. Depois de um instante, disse com mau humor: — Agora vamos, Honey. Está na hora de dormir. Haverá muito tempo para conversarmos quando voltarmos a Jamaica.

— Haverá? — perguntou ela desconsoladamente. — Você promete?

— Prometo.

Ele a viu agitar-se dentro do saco de dormir. Olhou para baixo e apenas pôde divisar o seu pálido perfil voltado para ele. Ela deixou escapar o profundo suspiro de uma criança, antes de adormecer.

Reinava silêncio na clareira e o tempo estava esfriando. Bond descansou a cabeça sobre os joelhos unidos. Sabia que era inútil procurar dormir, pois sua mente estava cheia dos acontecimentos do dia e dessa extraordinária mulher Tarzan que aparecera em sua vida. Era como se algum animal muito bonito se lhe tivesse dedicado. E não largaria os cordéis enquanto não tivesse resolvido os problemas dela. Estava sentindo isso. Naturalmente que não haveria grandes dificuldades para a maioria de seus problemas. Quanto à operação, seria fácil arranjá-la, e até mesmo encontrar-lhe um emprego, com o auxílio de amigos, e um lar. Tinha dinheiro e haveria de comprar-lhe roupas, mandaria ajeitar os seus cabelos e a lançaria no grande mundo. Seria divertido. Mas quanto ao resto? Quanto ao desejo físico que sentia por ela? Não se podia fazer amor com uma criança. Mas, seria ela uma criança? Não haveria nada de infantil relativamente ao seu corpo ou à sua personalidade. Era perfeitamente adulta e bem inteligente, a seu modo, e muito mais capaz de tomar conta de si mesma do que qualquer outra jovem de vinte anos que Bond conhecera.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um puxão em sua manga. A vozinha disse: — Por que você não vai dormir? Não está sentindo frio?

— Não; estou bem.

— Aqui no saco de dormir está bom e quente. Você quer vir para cá? Tem bastante lugar.

— Não, obrigado, Honey. Estou bem.

Houve uma pausa, e depois ela disse num sussurro: — Se você está pensando... Quero dizer — você não precisa fazer amor comigo... Eu poderia dormir de costas para o seu peito.

— Honey, querida, vá dormir. Seria maravilhoso dormir assim com você, mas não esta noite. De qualquer maneira, em breve terei de render Quarrel.

— Muito bem, — disse ela com voz mal humorada. — Talvez quando voltarmos a Jamaica.

— Talvez.

— Prometa. Não dormirei enquanto você não prometer.

Bond disse desesperadamente: — Naturalmente que prometo. Agora, vá dormir, Honeychile.

A sua voz se fez ouvir outra vez, triunfante: — Agora você tem uma dívida comigo. Você prometeu. Boa-noite, querido James.

— Boa noite, querida Honey.


XII - A COISA


O aperto no braço de Bond era ansioso. Ele de um salto pôs-se de pé.

Quarrel sussurrou tensamente: — Alguma coisa está-se aproximando pela água, capitão! Com certeza é o dragão!

A jovem levantou-se e perguntou nervosamente: — Que aconteceu?

Bond apenas disse: — Fique aí, Honey! Não se mexa. Eu voltarei.

Internou-se pelos arbustos do lado oposto da montanha e correu pela restinga, com Quarrel ao lado.

Chegaram até a extremidade da restinga, a vinte metros da clareira, e pararam sob o abrigo dos últimos arbustos, que Bond apartou com as mãos para ter um melhor campo de visão.

O que seria aquilo? A meia milha de distância, atravessando o lago, vinha algo informe, com dois olhos brilhantes cor de laranja, e pupilas negras. Entre estes, onde deveria estar a boca, tremulava um metro de chama azul. A luminosidade cinzenta das estrelas deixava ver uma espécie de cabeça abaulada entre duas pequenas asas semelhantes às de um morcego. Aquela coisa estranha deixava escapar um ronco surdo e baixo, que abafava um outro ruído, uma espécie de vibração rítmica. Aquela massa avançava na direção deles, à velocidade de uns dezesseis quilômetros por hora, deixando atrás de si uma esteira de espuma.

Quarrel sussurrou:

— Nossa, capitão! Que coisa é aquela?

Bond continuou de pé e respondeu laconicamente: — Não sei exatamente. Uma espécie de trator arranjado para meter medo. Está trabalhando com um motor diesel, e por isso você pode deixar os dragões de lado. Agora, vejamos... — Bond falava como se para si mesmo. — Não adianta fugir. Aquilo se move mais depressa do que nós e sabemos que pode esmagar árvores e atravessar pântanos. Temos que lhe dar combate aqui mesmo. Quais serão os seus pontos fracos? Os motoristas. Com certeza, dispõem de proteção. Em todo caso, não sabemos muito sobre esse ponto. Quarrel, você começará a disparar contra aquela cúpula quando estiverem a uns duzentos metros de nós. Faça a pontaria cuidadosamente e continue atirando. Visarei os faróis quando estiverem a cinqüenta metros. Não se está movendo sobre lagartas. Deve ter alguma espécie de rodas gigantescas, provavelmente de avião. Visarei as rodas também. Fique aí. Ficarei dez metros para baixo. Naturalmente vão reagir e nós temos que manter as balas longe da garota. Está combinado? — Bond esticou o braço e apertou o enorme ombro de Quarrel. — E não se preocupe demais. Esqueça-se de dragões. Trata-se apenas de alguma trapaça do Dr. No. Mataremos os motoristas, tomaremos conta do veículo e ganharemos com ele a costa. Isso economizará as nossas solas. Está bem?

Quarrel deu uma breve risada. — Está bem, capitão. Desde que o senhor assim o diz. Mas que Nosso Senhor saiba também que aquilo não é dragão!

Bond desceu pela restinga e se internou pelos arbustos, até que encontrou um ponto de onde podia ter um bom campo de tiro. Disse suavemente: — Honey!

— Sim, James — e a voz dela deixou transparecer alívio.

— Faça um buraco na areia como fizemos na praia. Faça-o por trás de raízes grossas e fique lá deitada. Talvez haja um tiroteio. Não tenha medo de dragões. Isto é apenas um veículo pintado, dirigido por alguns dos homens do Dr. No. Não se assuste. Estou aqui perto.

— Muito bem, James. Tenha cuidado! — A voz agora deixava transparecer um vivo temor.

Bond curvou-se, apoiando um joelho no chão, sobre as folhas e a areia, e olhou para fora.

Agora o veículo achava-se a uns trezentos metros de distância, e os seus faróis amarelos estavam iluminando a areia. Chamas azuis continuavam saindo da boca daquele engenho. Saíam de uma espécie de longo focinho, no qual se pintaram mandíbulas entreabertas, para darem ao todo a aparência de dragão. Um lança-chamas! Aquilo explicava as árvores queimadas e a história do administrador. A coloração azul da chama seria dada por alguma espécie de queimador, disposto adiante do lança-chamas.

Bond teve que admitir que aquela visão era algo de terrível, à medida que o veículo avançava pelo lago raso. Evidentemente fora calculado para infundir terror. Ele mesmo ter-se-ia assustado, não fora a vibração rítmica do motor diesel. Mas até que ponto aquilo seria vulnerável para homens que não fossem dominados pelo pânico?

A resposta ele a teve quase imediatamente. Ouviu-se o estampido da “Remington” de Quarrel. Uma centelha saiu da cabina encimada pela cúpula e logo se ouviu um ruído metálico. Quarrel disparou mais um tiro e, logo em seguida, uma rajada. As balas chocaram-se inutilmente de encontro à cabina. Não houve mesmo uma simples redução de velocidade. O monstro continuava avançando para o ponto de onde tinham partido os disparos. Bond descansou o cano de seu “Smith & Wesson” no braço, e fez cuidadosa pontaria. O profundo ruído surdo de sua arma fez-se ouvir por sobre o matraquear da “Remington” de Quarrel. Um dos faróis fora atingido e despedaçara-se. Bond disparou mais quatro tiros contra o outro e atingiu-o com o quinto e último disparo de seu revólver. O fantástico aparelho parecia continuar não dando importância, e foi avançando para o lugar de onde tinham partido os disparos do “Smith & Wesson”. Bond tornou a carregar a arma e começou a atirar contra os pneumáticos, sob as asas negro e ouro. A distância agora era de apenas trinta metros e podia jurar que já atingira mais de uma vez a roda mais próxima, sem nenhum resultado. Seria borracha sólida? O primeiro estremecimento de medo percorreu a pele de Bond.

Carregou mais uma vez. Seria aquela coisa maldita vulnerável pela retaguarda? Deveria correr para o lago e tentar uma abordagem? Avançou um passo, através dos arbustos, mas logo ficou imóvel, incapaz de prosseguir.

Subitamente, daquele focinho ameaçador, uma língua de fogo azulada tinha sido lançada na direção do esconderijo de Quarrel. À direita de Bond, no mato, surgira apenas uma chama laranja e vermelha, simultaneamente com um estranho urro, que imediatamente silenciou. Satisfeita, aquela língua de fogo se recolhera à sua boca. Agora aquilo fizera um movimento de rotação sobre o seu eixo e parará completamente. O buraco azulado da boca apontava diretamente para Bond.

Bond deixou-se ficar, esperando pelo horroroso fim. Olhou através das mandíbulas da morte e viu o brilhante f-lamento vermelho do queimador, bem no fundo do comprido tubo. Pensou no corpo de Quarrel — mas não havia tempo para pensar em Quarrel — e imaginou-o completamente carbonizado. Dentro em pouco ele também se incendiaria como uma tocha. Um único berro seria arrancado dele e os seus membros se encolheriam na pose de dançarino dos corpos queimados. Depois viria a vez de Honey. Meu Deus, para o quê ele os havia arrastado! Por que fora tão insano a ponto de enfrentar aquele homem com todo o seu arsenal? Por que não aceitara a advertência que lhe fora feita pelo longo dedo que o alcançara já em Jamaica? Bond trincou os dentes. Vamos, canalhas. Depressa.

Ouviu-se a sonoridade de um alto-falante, que anunciava metàlicamente: “Saia daí, inglês. E a boneca também. Depressa ou será frito no inferno, como o seu amigo”. Para dar mais força àquela ordem, uma língua de fogo foi lançada em sua direção. Bond deu um passo atrás para recuar daquele intenso calor. Sentiu o corpo da garota de encontro às suas costas. Ela disse historicamente: — Tive que vir, tive que vir.

Bond disse: — Está bem, Honey. Fique atrás de mim.

Ele tinha-se decidido. Não havia alternativa. Mesmo que a morte viesse mais tarde, não poderia ser pior do que aquela morte diante do lança-chamas. Bond apanhou a mão da jovem e puxou-a consigo para fora, saindo para a areia.

A voz se fez ouvir novamente: — Pare aí, camarada. E deixe cair o lança-ervilhas. Nada de truques, senão os caranguejos terão um bom almoço.

Bond deixou cair a sua arma. Lá se fora o “Smith & Wesson”. O “Beretta” não teria tido melhor sorte: A jovem lastimou-se, e Bond apertou a sua mão. — Agüente, Honey, — disse ele. — Nós nos livraremos disso.

Bond troçou de si mesmo por causa daquela mentira. Ouviu-se o ruído de uma porta de ferro que se abria. Por trás da cúpula, um homem saltou para a água e caminhou até eles, com um revólver na mão. Ao mesmo tempo ia-se mantendo fora da linha de fogo do lança-chamas. A trêmula chama azul iluminou o seu rosto. Era um chinês negro, de enorme estatura, vestindo apenas calças. Alguma coisa balançava em sua mão esquerda, e quando ele se aproximou mais, Bond pôde ver que eram algemas.

O homem deteve-se a alguns metros de distância e disse:

— Levantem os braços. Punhos juntos e caminhem em minha direção. Você primeiro, inglês. Devagar ou receberá mais um umbigo.

Bond obedeceu e quando estava a um passo do homem, este prendeu o revólver entre os dentes, e esticou os braços e atou os seus pulsos com as algemas. Bond examinou aquele rosto iluminado pelas chamas azuis. Era uma cara brutal, com olhos estrábicos. O agente do Dr. No fitou-o com desprezo. — Bastardo imbecil! — disse.

Bond deu as costas ao homem e começou a se afastar. Ia ver o corpo de Quarrel. Tinha que lhe dizer adeus. Ouviu-se o ruído de um disparo e uma bala jogou-lhe areia nos pés. Bond parou, e voltando-se lentamente disse:

— Não fique nervoso. Vou dar uma espiada no homem que você acabou de assassinar. Voltarei.

O homem abaixou o revólver e riu grosseiramente: — Muito bem. Divirta-se. Desculpe se não temos uma coroa. Volte logo, se não daremos uma amostra à boneca. Dois minutos.

Bond caminhou em direção ao cerrado de arbustos fumegantes. Ali chegando, olhou para baixo. Seus olhos e boca se contraíram. Sim, tinha sido bem como ele imaginara. Pior, mesmo. Disse docemente: — Perdoe-me, Quarrel. — Com o pé soltou um pouco de areia, que colheu com as mãos algemadas e verteu-a sobre os restos dos olhos de Quarrel. Depois caminhou lentamente, de volta, e ficou ao lado da jovem.

O homem empurrou-os para a frente com o revólver. Deram a volta por trás da máquina, onde havia uma pequena porta quadrada. Uma voz do interior disse: — Entrem e sentem-se no chão. Não toquem em nada ou ficarão com os dedos partidos.

Com dificuldade, arrastaram-se para dentro daquela caixa de ferro, que cheirava a óleo e suor. Havia lugar apenas para que ambos se sentassem com as pernas encolhidas, de joelhos para cima. O homem que empunhava o revólver e que vinha atrás deles saltou por último para dentro do carro e fechou a porta. Ligou uma lâmpada e sentou-se num assento de ferro, ao lado do chofer. — Muito bem, Sam, vamos andando. Você pode apagar o fogo. Há luz bastante para dirigir — disse.

Na painel de controle podia-se ver uma fileira de mostradores. O motorista esticou a mão e deslocou para baixo um par de interruptores. Engrenou o motor e olhou através de uma estreita fresta, cortada na parede de ferro, diante dele. Bond sentiu que o veículo dava uma volta. Ouviu-se um movimento mais rápido do motor, e o veículo avançou.

O ombro da jovem apertou-se de encontro ao de Bond.

— Para onde estão eles nos levando? — O seu sussurro traía um estremecimento.

Bond voltou a cabeça e olhou para ela. Era a primeira vez que podia ver os seus cabelos depois de secos. Estavam desfeitos pelo sono, mas não eram mais mechas de rabichos empastados. Caíam densamente até os ombros, onde terminavam em anéis voltados para dentro. Eram do mais pálido louro acinzentado e despediam reflexos quase prateados sob a luz elétrica. Ela olhou para o alto, para ele. A pele, à volta dos olhos e nos cantos da boca, mostrava-se lívida de medo.

Bond deu de ombros, procurando aparentar uma indiferença que não sentia!. Sussurrou: — Oh, espero que vamos ver o Dr. No. Não se preocupe demais, Honey. Esses homens não passam de pequenos bandidos. Com ele, as coisas serão diferentes. Quando estivermos diante dele, não diga nada, falarei por nos dois. — Ele apertou o seu ombro e disse: — Gosto da maneira por que você penteia o seu cabelo, e fico contente porque você não o apara muito curto.

Um pouco da tenção desapareceu do rosto dela. — Como é que você pode pensar em coisas como essa? — Deu um leve sorriso para ele, e acrescentou: — Mas estou contente por você gostar de meu penteado. Lavo os meus cabelos com óleo de coco uma vez por semana.

À lembrança de sua outra vida, seus olhos ficaram brilhantes. Ela baixou a cabeça para as mãos algemadas, a fim de esconder as lágrimas. Sussurrou quase para si mesma: — Tentarei ser brava. Tudo estará bem, desde que você esteja lá.

Bond aconchegou-se a ela. Levantou suas mãos algemadas até a altura dos olhos e examinou as algemas. Eram do tipo usado pela polícia norte-americana. Contraiu sua mão esquerda, a mais fina das duas, e tentou fazê-la deslizar pelo anel de aço. Mesmo o suor de sua pele de nada adiantou. Era inútil.

Os dois homens sentavam-se em seus bancos de ferro, indiferentes, e com as costas voltadas para eles. Sabiam que dominavam inteiramente a situação. Não havia possibilidade de que Bond oferecesse qualquer incômodo. Não poderia levantar-se ou dar o necessário impulso aos seus punhos para causar qualquer mal às cabeças de seus adversários, utilizando as algemas. Se conseguisse abrir a porta e pular para a água, o que lograria com isso? Imediatamente eles sentiriam a brisa fresca, nas costas, e parariam a máquina para queimá-lo na água ou içá-lo novamente. Bond aborrecia-se em pensar que os homens pouco se preocupavam com ele, pois sabiam tê-lo completamente em seu poder. Também não gostou da idéia de que aqueles homens eram bastante inteligentes para saber que ele não representava nenhuma ameaça. Indivíduos mais estúpidos teriam ficado em cima deles, de revólver em punho, tê-los-iam surrado, a ele e à jovem, barbaramente, e talvez os tivessem deixado inconscientes. Aqueles dois conheciam o ofício. Eram profissionais, ou tinham sido treinados para o serem.

Os dois homens não falaram. Não houve nenhum comentário sobre o quão hábil eles tinham sido, ou quanto ao seu cansaço ou destino. Apenas dirigiam a máquina serenamente, ultimando com eficiência a sua tarefa.

Bond continuava sem a mínima idéia do que seria aquilo. Sob a tinta negra e dourada, assim como sob o resto daquela fantasia, a máquina parecia uma espécie de trator, como ele nunca vira. Não tinha conseguido descobrir nomes de marcas comerciais, nos pneumáticos, pois estivera muito escuro, mas certamente que deveriam ser de borracha sólida ou porosa. Atrás havia um pequena roda para dar estabilidade ao conjunto. Uma espécie de barbatana de ferro fora ainda acrescentada e pintada também de preto e ouro, a fim de ajudar a dar a aparência de dragão. Os altos pára-lamas tinham sofrido um prolongamento, na forma de curtas asas voltadas para trás. Uma comprida cabeça de dragão, feita em metal, fora fixada ao radiador e os faróis receberam pontos centrais negros, para parecerem olhos. Era tudo, sem falar da cabina que fora recoberta com uma cúpula blindada e dotada de um lança-chamas. Era, como pensara Bond, um trator preparado para assustar e queimar — embora não pudesse atinar porque estava dotado de um lança-chamas e não de uma metralhadora. Era, evidentemente, a única espécie de veículo que poderia percorrer a ilha. Suas gigantescas rodas podiam avançar sobre os mangues, pântanos e ainda atravessar o lago raso. Galgaria também os agrestes planaltos de coral e, desde que andasse à noite, o calor experimentado na cabina seria pelo menos tolerável.

Bond ficara impressionado. Impressionado pelo toque de profissionalismo. O Dr. No era sem dúvida um homem que se preocupava intensamente com as coisas. Em pouco iria encontrá-lo. E em breve estaria diante do segredo do Dr. No. Então, o que aconteceria? Bond sorriu amargamente. Sim, não o deixariam sair dali com o seu conhecimento. Certamente seria morto, a menos que pudesse fugir ou conseguir a sua liberdade por meios persuasivos. E o que aconteceria à jovem? Poderia ele provar sua inocência e conseguir com que ela fosse poupada? Possivelmente, mas nunca mais ela teria permissão para deixar a ilha. Ali teria de ficar para o resto da vida, como amante ou mulher de um dos homens, ou do próprio Dr. No, se ela o impressionasse.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um trecho do percurso mais difícil, como se podia sentir pela trepidação. Tinham atravessado o lago e estavam no caminho que levava para o alto da montanha, junto às cabanas. A cabina vibrava e a máquina começou a galgar o terreno. Dentro de cinco minutos estariam lá.

O ajudante do motorista olhou por sobre o ombro para Bond e a jovem. Bond sorriu confiantemente para ele dizendo: Você receberá uma medalha por isso.

Os olhos amarelos e marrons olharam impassivelmente dentro dos dele, enquanto os lábios arroxeados e oleosos se fenderam num sorriso no qual havia um ódio repousado: Feche a boca, se... Depois, deu-lhe as costas.

A jovem tocou-o com o cotovelo e sussurrou: — Por que eles são tão rudes? Por que nos odeiam tanto?

Bond esboçou um sorriso e disse: — Acho que é porque lhes causamos medo. Talvez ainda estejam com medo, e isto porque não parecemos ter medo deles. Devemos mantê-los assim.

A jovem aconchegou-se a ele e disse: — Tentarei.

Agora a subida estava-se tornando mais íngreme. Uma luz azul-acinzentada atravessava as frestas da armadura. A madrugada se aproximava. Fora, em breve estaria começando mais um dia de calor abrasador, de execrável vento, carregado com o cheiro de gás dos pântanos. Bond pensou em Quarrel, o bravo gigante que não mais veria aquele dia, e com o qual eles deveriam agora estar caminhando através dos pauis de mangues. Quarrel tinha pressentido a morte, mas apesar disso tinha acompanhado Bond sem qualquer objeção. Sua fé em Bond tinha sido maior do que o seu medo. E Bond tinha-lhe faltado. Seria ele ainda o causador da morte da jovem?

O motorista esticou o braço em direção ao painel e na parte dianteira do veículo fez-se ouvir o breve zunido de uma sirena de polícia, que foi desaparecendo num gemido fúnebre. Mais um minuto e o veículo parava, continuando o motor em regime neutro. O homem apertou um interruptor e tirou um microfone de um gancho, a seu lado. Falou por aquele microfone e Bond pôde ouvir a sua voz aumentada, do lado de fora, por um altofalante. — Tudo bem. Apanhamos o inglês e a garota. O outro homem morreu. Isso é tudo. Abram. — Bond ouviu que uma porta se deslocava para o lado, sobre rolamentos. O motorista embreou e eles avançaram lentamente para a frente, parando alguns metros adiante. O motorista desligou o motor. Ouviu-se o ruído metálico da tranca e a porta foi aberta pelo lado de fora. Uma lufada de ar fresco e uma luz mais brilhante penetraram na cabina. Várias mãos agarraram Bond e arrastaram-no para trás, até um chão de cimento. Bond agora estava de pé e sentia o cano de um revólver encostado ao seu flanco. Uma voz disse: — Fique onde está. Nada de espertezas. — Bond olhou para o homem. Era mais um chinês negro, do mesmo tipo que os outros. Os olhos amarelos examinaram-no com curiosidade. Bond virou-se com indiferença. Outro homem estava cutucando a jovem com a arma. Bond disse asperamente: — Deixe a garota em paz! Em seguida, caminhou e pôs-se ao lado da jovem. Os dois homens pareceram surpresos. Deixaram-se ficar de pé, apontando as armas com hesitação.

Bond olhou à volta. Estavam numa das cabanas pré-fabricadas que ele vira do rio. Era ao mesmo tempo uma garagem e uma oficina. O “dragão” tinha sido colocado sobre um fosso de vistoria, no chão de concreto. Um motor de popa desmontado estava sobre uma das bancadas. Longos tubos de luz fluorescente estavam afixados ao teto e o ambiente estava impregnado do cheiro de óleo e fumaça de exaustor. O motorista e o seu companheiro examinavam a máquina. Em seguida deram alguns passos pelo galpão, como se andassem sem propósito.

Um dos guardas anunciou: — Enviei a mensagem. A ordem é que eles sejam levados. Foi tudo bem?

O ajudante de motorista, que parecia o homem mais responsável, ali presente, disse: — Sem dúvida. Alguns disparos. Os faróis foram partidos. Talvez haja alguns furos nos pneumáticos. Ponha os rapazes em ação — uma vistoria completa. Conduzirei esses dois e tirarei um cochilo. — E, voltando-se para Bond: — Bem, vamos andando — e indicou o caminho que saía do longo galpão.

Bond disse: — Vá andando você; e cuidado com os modos. Diga àqueles macacos que tirem as armas de cima de nós. Podem disparar por engano. Parecem bastante idiotas.

O homem se aproximou, e os outros os acompanharam logo atrás. O ódio brilhava em seus olhos. O chefe levantou o punho cerrado, tão grande quanto um pequeno malho e chegou-o à altura do nariz de Bond. Procurava controlar-se com esforço, e disse: — Ouça, senhor. Às vezes, nós, os rapazes, temos permissão para participar da festa final. Estou rezando para que essa seja uma dessas vezes. Certa ocasião fizemos com que a coisa durasse toda uma semana. E se eu o pego...

Riu e os seus olhos brilharam com crueldade. Olhou para o lado de Bond, fixando a garota. Seus olhos pareciam transformados em bocas que agitavam os lábios. Enfiou as mãos nos bolsos laterais das calças. A ponta de sua língua mostrava-se muito vermelha, entre os lábios arroxeados. Voltando-se para os companheiros disse: — Que tal, rapazes?

Os três homens estavam olhando também para a jovem. Fizeram um sinal de assentimento, como crianças diante de uma árvore de Natal.

Bond desejou atirar-se como um louco sobre eles, golpeando as suas caras com os punhos algemados e aceitando a sua vingança sangrenta. Não fosse pela jovem, bem que o teria feito. Mas tudo o que tinha conseguido com suas corajosas palavras fora amedrontá-la. Disse apenas: — Muito bem, muito bem. Vocês são quatro e nós somos dois, ainda por cima com as mãos atadas. Vamos, não queremos atingi-los. Apenas não nos empurrem muito de um lado para outro. O Dr. No poderia não ficar satisfeito.

Àquele nome, os rostos dos homens se modificaram. Três pares de olhos passaram apàticamente de Bond para o chefe. Por um segundo, este olhou com desconfiança para Bond, intrigado, tentando descobrir se Bond teria alguma influência junto ao Dr. No. Sua boca abriu-se para dizer algo, mas logo pareceu pensar melhor, e apenas disse de maneira incerta: — Bem, bem, estávamos simplesmente brincando. — Voltou-se para os homens, em busca de confirmação: — Não é?

— Sem dúvida, sem dúvida! — foi a resposta dada por um coro áspero, e os homens desviaram o olhar.

O chefe disse com mau humor: — Por aqui, senhor. — E ele mesmo pôs-se a caminho, percorrendo o comprido galpão.

Bond segurou o pulso da jovem e seguiu o chefe. Estava impressionado com a reação causada naqueles homens pelo nome do Dr. No. Aquilo era alguma coisa a lembrar se eles tivessem que se haver novamente com aquela turma.

O homem chegou a uma porta de madeira situada na extremidade do galpão. Ao lado havia um botão de campainha que ele pressionou duas vezes e esperou. Ouviu-se um estalido e a porta se abriu, mostrando dez metros de uma passagem rochosa, mas atapetada e que ia dar, na outra extremidade, em outra porta mais elegante e pintada de creme.

O homem ficou de lado. Siga em frente, senhor — disse; — bata na porta e será atendido pela recepcionista. — Não havia nenhuma ironia em sua voz e seus olhos se mostravam impassíveis.

Bond conduziu Honey pela passagem. Ouviu que a porta se fechava às suas costas. Deteve-se por um momento e fitou-a, perguntando-lhe: — E agora?

Ela riu, trêmula, mas respondeu: — Ê bom sentir-se tapete sob os pés.

Bond apertou o seu pulso. Andou até a porta pintada de creme e bateu.

A porta abriu-se e Bond entrou com a jovem ao lado. Quando se deteve instantaneamente, não chegou a perceber o encontrão que lhe dava a jovem, pois continuou estarrecido.


XIII - GAIOLA DE OURO


Era a espécie de sala de recepção que as maiores corporações norte-americanas possuem no andar em que se situa o escritório do presidente, em seus arranha-céus de Nova Iorque. Suas proporções eram agradáveis, com cerca de vinte pés quadrados. O chão era todo recoberto pelo mais espesso tapete Wilton cor-de-vinho. O teto e as paredes estavam pintados numa suave tonalidade cinza pombo. Viam-se ainda reproduções litográficas de esboços de balé de Degas penduradas em séries, nas paredes, e a iluminação era feita com altos e modernos jogos de abajures de seda verde-escuro, imitando a forma de elegantes barricas.

À direita de Bond estavam uma larga mesa de mogno, com o tampo recoberto com couro verde, outras peças que se harmonizavam perfeitamente com a mesa, e um caro sistema de intercomunicações. Duas cadeiras altas, de antiquado, aguardavam os visitantes. Do outro lado da sala via-se uma mesa do tipo refeitório, sobre a qual estavam várias revistas com capas em cores vivas e mais duas cadeiras. Tanto na mesa de escritório, como na outra, viam-se vasos de hibiscos. O ar era fresco e impregnado de leve fragrância.

Duas mulheres estavam naquela sala. Por trás da mesa de trabalho, empunhando uma caneta que descansava sobre um formulário impresso, estava sentada uma jovem chinesa, de aspecto eficiente, com óculos de armação de chifre, sob uma franja de cabelos negros cortados curtos. Em seus olhos e em sua boca havia o sorriso padrão de boas-vindas que qualquer recepcionista exibe — a um tempo claro, obsequioso e inquisitivo.

Ainda com a mão na maçaneta da porta pela qual eles tinham passado, e esperando que os recém-chegados se adiantassem mais, a fim de que ela a pudesse fechar, estava uma mulher mais velha, com aspecto de matrona, e que deveria ter cerca de quarenta e cinco anos. Era fácil ver-se que também tinha sangue chinês. Sua aparência, saudável, de farto busto, era viva e quase excessivamente graciosa. O seu “pince-nez” de lentes cortadas em quadrado brilhava com o desejo da recepcionista de os pôr à vontade.

Ambas as mulheres vestiam roupas imaculadamente alvas, com meias brancas e sapatos de camurça branca como costumam apresentar-se as auxiliares empregadas nos mais luxuosos salões de beleza norte-americanos. Havia um que de suave e pálido em suas peles, como se elas raramente saíssem para o ar-livre.

Bond observou o ambiente, enquanto a mulher junto à porta lhe dizia frases convencionais de boas-vindas, como se eles tivessem sido colhidos por uma tempestade o chegado com atraso a uma festa.

— Oh, coitados! Nós não sabíamos quando vocês iriam chegar. A todo momento nos diziam que vocês já estavam a caminho... primeiro à hora do chá, ontem, depois na hora do jantar, e apenas há uma hora fomos informadas de que vocês chegariam à hora do desjejum. Devem estar com fome. Venham aqui e ajudem a irmã Rosa a preencher o formulário; depois eu os prepararei para a cama. Devem estar muito cansados.

Ia dizendo aquilo com voz doce e cacarejante, ao mesmo tempo que fechava a porta e os levava para junto da mesa e os fazia sentar nas cadeiras. Depois disse: — Bem, eu sou a irmã Lírio, e esta é a irmã Rosa. Ela irá fazer-lhes apenas algumas perguntas. Agora, aceitam um cigarro? — e pegou uma caixa de couro trabalhado que estava em cima da mesa. Abriu-a e pô-la diante deles. A caixa tinha três divisões, e a chinesinha explicou apontando com um dedo: “Esses são americanos, esses são ingleses e esses turcos.” Ela apanhou um luxuoso isqueiro de mesa e esperou.

Bond estendeu as mãos algemadas para tirar um cigarro turco.

A irmã Lírio deu um gritinho de espanto: — Oh, mas francamente. — Parecia sinceramente embaraçada. — Irmã Rosa, dê-me a chave, depressa. Já disse por várias vezes que os pacientes não devem ser trazidos dessa maneira. — Havia impaciência e aborrecimento em sua voz. — Francamente, aquela gente lá de fora! Já era tempo que eles fossem chamados à ordem.

A irmã Rosa estava tão embaraçada quanto a irmã Lírio. Rapidamente remexeu dentro de uma gaveta e entregou uma chave à irmã Lírio, que com muitas desculpas e cheia de dedos abriu os dois pares de algemas e, afastando-se para trás da mesa, deixou aquelas duas pulseiras de aço caírem dentro da cesta de papéis como se fossem ataduras sujas.

— Obrigado, — disse Bond, que não sabia como enfrentar aquela situação, a não ser procurando desempenhar um papel qualquer na comédia que se estava representando. Ele estendeu o braço, apanhou um cigarro e acendeu-o. Lançou um olhar para Honeyehile Rider, que parecia estonteada e nervosamente apertava com as mãos os braços de sua cadeira. Bond dirigiu-lhe um sorriso de conforto.

— Agora, por favor; — disse a irmã Rosa e inclinou-se sobre um comprido formulário impresso em papel caro. — Prometo ser o mais rápida que puder. O seu nome, sr... sr...

— Bryce, John Bryce.

Ela escreveu a resposta com grande concentração. — Endereço permanente?

— Aos cuidados do Jardim Zoológico Real, Regents Park, Londres, Inglaterra.

— Profissão?

— Ornitologista.

— Oh, meu Deus!, poderia o senhor soletrar isso? Bond atendeu-a.

— Muito obrigada. Agora, vejamos, objeto da viagem?

— Aves — respondeu Bond. — Sou também representante da Sociedade Audubon de Nova Iorque. Eles arrendaram parte desta ilha.

— Oh, sem dúvida. — Bond observou que a pena escrevia exatamente o que ele dizia. Depois da última palavra ela pôs um claro ponto de interrogação entre parênteses.

— E — a irmã Rosa sorriu polidamente em direção a Honeyehile — a sua esposa? Ela também está interessada em pássaros?

— Sim, sem dúvida.

— O seu primeiro nome?

— Honeyehile.

A irmã Rosa estava encantada. — Que nome lindo! — Ela voltou a escrever apressadamente. — E agora os parentes mais próximos de ambos, e estará tudo acabado.

Bond deu o verdadeiro nome de M como o parente mais próximo de ambos. Apresentou-o como “tio” e indicou o seu endereço como sendo “Diretor-Gerente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres.”

A irmã Rosa acabou de escrever e disse: — Pronto, está tudo feito. Muito obrigada, sr. Bryce, e espero que ambos apreciem a permanência aqui.

— Muito obrigado. Estou certo de que apreciaremos. — Bond levantou-se e Honeyehile fez o mesmo, ainda com expressão vazia.

A irmã Lírio disse: — Agora, venham comigo, queridos.

— Ela caminhou até uma porta na parede distante e deteve-se com a mão na maçaneta talhada em vidro. — Oh, meu Deus, — disse —, não é que agora me esqueci do número de seus quartos? É o apartamento creme, não é, irmã?

— Isso mesmo. Catorze e quinze.

— Obrigada, querida. E agora — ela abriu a porta — se vocês quiserem me seguir... Receio que seja uma caminhada um pouco longa. — Fechou a porta, por trás deles, e pôs-se à frente, indicando o caminho. — O Doutor tem falado várias vezes em instalar uma dessas escadas rolantes, ou algo de parecido, mas sabem como são os homens ocupados: — Ela riu alegremente. — Ele tem tantas outras coisas em que pensar!

— Sim, acredito, — disse Bond polidamente.

Bond tomou a mão da jovem e seguiram ambos a maternal e agitada chinesa através de cem metros de um alto corredor, do mesmo estilo da sala de recepção, mas que era iluminado a freqüentes intervalos por caros tubos luminosos fixados às paredes.

Bond respondia com polidos monossílabos aos comentários ocasionais que a irmã Lírio lhe lançava por sobre os ombros. Toda a sua mente se concentrava nas extraordinárias circunstâncias de sua recepção. Tinha certeza de que aquelas duas mulheres tinham sido sinceras. Nenhum só olhar ou palavra conseguira registrar que estivesse fora de propósito. Evidentemente aquilo era alguma espécie de fachada, mas de qualquer forma uma fachada sólida, meticulosamente apoiada pelo cenário e pelo elenco. A ausência de ressonância, na sala, e agora no corredor, estava a indicar que eles tinham deixado o galpão pré-fabricado para se internarem no flanco da montanha e agora estavam atravessando a sua base. Segundo o seu palpite estavam mesmo andando em direção oeste — em direção à penedia na qual terminava a ilha. Não havia umidade nas paredes e o ar parecia fresco e puro, com uma brisa a afagá-los. Muito dinheiro e uma bela realização de engenharia tinham sido os responsáveis por aquilo. A palidez das duas mulheres estava a sugerir que passavam a maior parte do tempo internadas no âmago da montanha. Do que a irmã dissera, parecia que elas faziam parte de um grupo de funcionários internos que nada tinham a ver com o destacamento de choque do exterior, e que talvez não soubessem a espécie de homens que eles eram.

Aquilo era grotesco, concluiu Bond ao se aproximar de uma porta, na extremidade do corredor, perigosamente grotesco, mas em nada adiantava pensar nisso no momento. Ele apenas podia seguir o papel que lhe tinha sido destinado. Pelo menos, aquilo era melhor do que os bastidores, na arena exterior da ilha.

Junto à porta, a irmã Lírio fez soar uma campainha. Já eram esperados e a porta abriu-se imediatamente. Uma encantadora jovem chinesa, de quimono lilás e branco, ficou a sorrir e a curvar-se, como se deve esperar que o façam as jovens chinesas. E, mais uma vez só havia calor e um sentimento de boas-vindas naquele rosto pálido como uma for. A irmã Lírio exclamou: — Aqui estão eles, finalmente, May! São o senhor e a senhora John Bryce. E sei que ambos devem estar exaustos, por isso devemos levá-los imediatamente aos seus aposentos, para que possam repousar e dormir. — Voltando-se para Bond: — Esta é May, muito boazinha. Ela tratará de ambos. Qualquer coisa que queiram é só tocar a campainha que May atenderá. É uma espécie de favorita de todos os nossos hóspedes.

Hóspedes!, pensou Bond. Essa é a segunda vez que ela usa a palavra. Sorriu polidamente para a jovem, e disse;

— Muito prazer; sim, certamente que gostaríamos de ir para os nossos aposentos.

May envolveu-os num cálido sorriso, e disse em voz baixa e atraente: — Espero que ambos se sintam bem, sr. Bryce. Tomei a liberdade de mandar vir uma refeição assim que soube que os senhores iam chegar. Vamos...? — Corredores saiam para a esquerda e a direita de portas duplas de elevadores, instalados na parede oposta. A jovem adiantou-se, caminhando na frente, para a direita, logo seguida de Bond e Honeyehile, que tinham atrás a irmã Lírio.

Ao longo do corredor, dos dois lados, viam-se portas numeradas. A decoração era feita no mais pálido cor-de-rosa, com um tapete cinza-pombo. Os números nas portas eram superiores a dez. O corredor terminava abruptamente, com duas portas, uma em frente a outra, com a numeração catorze e quinze. A irmã May abriu a porta catorze e o casal a seguiu, entrando na peça.

Era um lindo quarto de casal, em moderno estilo Mia-mi, com paredes verde-escuro, chão encerado de mogno escuro, com um ou outro espesso tapete branco e bem desenhado mobiliário de bambu com um tecido “chintz” de grandes rosas vermelhas sobre fundo branco. Havia uma porta de comunicação para um quarto de vestir masculino e outra que dava para um banheiro moderno e extremamente luxuoso, com uma banheira de descida e um bidê.

Era como se tivessem sido introduzidos num apartamento do mais moderno hotel da Flórida, com exceção de dois detalhes que não passaram despercebidos a Bond. Não havia janelas e nenhuma maçaneta interior nas portas.

May olhou com expressão de expectativa, de um para o outro.

Bond voltou-se para Honeyehile e sorriu-lhe: — Parece muito confortável, não acha, querida?

A jovem brincava com a barra da saia e fez um sinal de assentimento sem olhar para Bond.

Ouviu-se uma tímida batida na porta e outra jovem, tão linda quanto May, entrou carregando uma bandeja que se equilibrava sobre as palmas das mãos. A jovem descansou a bandeja sobre a mesa do centro e puxou duas cadeiras. Retirou a toalha de linho imaculadamente limpa e saiu. Sentiu-se um delicioso cheiro de fiambre e café.

May e a irmã Lírio também se encaminharam para a porta. A mulher mais idosa se deteve por um instante e disse:

— E agora nós os deixaremos em paz. Se desejarem alguma coisa, basta tocar a campainha. Os interruptores estão ao lado da cama. Ah, outra coisa, poderão encontrar roupa limpa nos aparadores. Receio que sejam apenas de estilo chinês,

— acrescentou, como a desculpar-se —, mas espero que os tamanhos satisfaçam. A rouparia só recebeu as medidas ontem à noite. O Dr. deu ordens severas para que os senhores não fossem perturbados. Ficará encantado se puderem reunir-se a ele, esta noite, para o jantar. Deseja, entretanto, que tenham todo o resto do dia à vontade, a fim de que melhor se ambientem, compreendem? — Fez uma pausa e olhou para um e para outro, com um sorriso indagador. — Posso dizer que os senhores...?

— Sim, por favor, — disse Bond. — Pode dizer ao D., que teremos muito prazer em jantar com ele.

— Oh, sei que ficará contente. — Com uma derradeira mesura, as duas chinesas se retiraram e fecharam a porta.

Bond voltou-se para Honeyehile, que parecia embaraçada e ainda evitava os seus olhos. Ocorreu então a Bond que talvez jamais tivesse ela tido um tratamento tão cortês ou visto tanto luxo em sua vida. Para ela, tudo aquilo devia ser muito mais estranho e aterrador do que o que tinham passado ao lado de fora. Ela continuou na mesma posição, brincando com a barra da saia. Podiam-se notar vestígios de suor seco, sal e poeira em seu rosto. Suas pernas nuas estavam sujas e Bond observou que os dedos de seus pés se moviam, suavemente, ao pisarem nervosamente o maravilhoso e espesso tapete.

Bond riu. Riu com gosto ao pensamento de que os temores da jovem tivessem sido abafados pelas preocupações de etiqueta e comportamento, e riu-se também da figura que ambos faziam — ela em farrapos e ele com a suja camisa azul, as calças pretas e os sapatos de lona enlameados.

Aproximou-se dela e segurou-lhe mãos. Estavam frias. Disse: — Honey, somos um par de espantalhos, mas há apenas um problema básico. Devemos tomar o nosso desjejum primeiro, enquanto está quente, ou tiraremos antes esses farrapos e tomaremos um banho, tomando a nossa refeição fria? Não se preocupe com mais nada. Estamos aqui nessa maravilhosa casinha e isto é tudo o que importa. O que faremos, então?

Ela sorriu hesitante. Seus olhos azuis fixavam-se no rosto dele, na ânsia de obter segurança. Depois disse: — Você não está preocupado com o que nos possa acontecer? — Fez um sinal para o quarto e acrescentou: — Não acha que tudo isso pode ser uma armadilha?

— Se se trata de uma armadilha, já caímos nela. Agora nada mais podemos fazer senão comer a isca. A única questão que subsiste é a de saber se a comeremos quente ou fria. — Apertou-lhe as mãos e continuou: — Seriamente, Honey. Deixe as preocupações comigo. Pense apenas onde estávamos apenas há uma hora. Isso aqui não é melhor? Agora, decidamos a única coisa realmente importante. Banho ou desjejum?

Ela respondeu com relutância: — Bem, se você acha... Quero dizer — preferiria antes lavar-me. — Mas logo acrescentou: — Você terá que ajudar-me. — E sacudiu a cabeça em direção ao banheiro, dizendo: Não sei como mexer numa coisa dessas. Como é que se faz?

Bond respondeu com toda seriedade: — É muito fácil. Vou preparar tudo para você. Enquanto você estivar tomando o seu banho tomarei o meu desjejum. Ao mesmo tempo tratarei de fazer com que o seu não esfrie.

Bond aproximou-se de um dos armários embutidos e abriu a porta. No interior havia uma meia dúzia de quimonos, alguns de seda e outros de linho. Apanhou um de linho, ao acaso. Depois, voltando-se para ela, disse: — Tire suas roupas e meta-se nisso aqui, enquanto preparo o seu banho. Mais tarde você escolherá as coisas que preferir, para a cama e para o jantar.

Ela respondeu com gratidão: — Oh, sim, James. Se você apenas me mostrasse... — E logo começou a desabotoar a saia.

Bond pensou em tomá-la nos braços e beijá-la, mas, ao invés disso, disse abruptamente: — ótimo, Honey — e, adiantando-se para o banheiro, abriu as torneiras.

Havia de tudo naquele banheiro: essência para banhos Floris Lime, para homens, e pastilhas de Guarlain para o banho de senhoras. Esfarelou uma pastilha na água e imediatamente o banheiro perfumou-se como uma loja de orquídeas. O sabonete era o Sapoceti de Guarlain “Fleurs des Alpes”. Num pequeno armário de remédios, atrás de um espelho, em cima da pia, podiam-se encontrar tubos de pasta, escovas de dente e palitos “Steradent”, água “Rose” para lavagem bucal, aspirina e leite de magnésia. Havia também um aparelho de barbear elétrico, loção “Lentheric” para barba, e duas escovas de náilon para cabelos e pentes. Tudo era novo e ainda não tinha sido tocado.

Bond olhou para o seu rosto sujo e sem barbear, no espelho, e riu sardonicamente para os próprios olhos, cinzentos, de pária queimado pelo sol. O revestimento da pílula certamente que era do melhor açúcar. Seria inteligente esperar que o remédio, no interior daquela pílula, fosse dos mais amargos.

Tocou a água, com a mão, a fim de sentir a temperatura. Talvez estivesse muito quente para quem jamais tinha tomado antes um banho quente. Deixou então que corresse um pouco mais de água fria. Ao inclinar-se, sentiu que dois braços lhe eram passados em torno do pescoço. Endireitou-se. Aquele corpo dourado resplandecia no banheiro todo revestido de ladrilhos brancos. Ela beijou-o impetuosamente nos lábios. Ele passou-lhe os braços à volta da cintura e esmagou-a de encontro a seu corpo, com o coração aos pulos. Ela disse sem fôlego, ao seu ouvido: — Achei estranhas as roupas chinesas, mas de qualquer maneira você disse à mulher que nós éramos casados.

Uma das mãos de Bond estava pousada sobre o seu seio esquerdo, cujo mamilo estava completamente endurecido pela paixão. O ventre da jovem se comprimia contra o seu. Por que não? Por que não? Não seja tolo! Este é um momento louco para isso. Vocês dois estão diante de um perigo mortal. Você deve continuar frio como gelo, para ter alguma possibilidade de se livrar dessa enrascada. Mais tarde! Mais tarde! Não seja fraco.

Bond retirou a mão do seio dela e espalmou-a à volta de seu pescoço. Esfregou o rosto de encontro ao dela e depois aproximou a boca da boca da jovem e deu-lhe um prolongado beijo.

Afastou-se depois e manteve-a à distância de um braço. Por um momento ambos se olharam, com os olhos brilhando de desejo. Ela respirava ofegantemente, com os lábios entreabertos, de modo que ele podia ver-lhe o brilho dos dentes. Ele disse com a voz trêmula: — Honey, entre no banho antes que eu lhe dê uma surra.

Ela sorriu e sem nada dizer entrou na banheira e deitou-se em todo seu comprimento. Do fundo da banheira ergueu os olhos para ele. Os cabelos louros, em seu corpo, brilhavam como moedas de ouro. Ela disse provocadoramente: — Você tem que me esfregar. Não sei como devo fazer, e você terá que mostrar-me.

Bond respondeu desesperadamente: — Cale a boca, Honey, e deixe de namoros. Apanhe a esponja, o sabonete e comece logo a se esfregar. Que diabo! Isso não é o momento de se fazer amor. Vou tomar o meu desjejum. — Esticou a mão para a porta e segurou na maçaneta. Ela disse docemente: — James! — Ele olhou para trás e viu que ela lhe fazia uma careta, com a língua de fora. Retribuiu com uma careta selvagem e bateu a porta com força.

Em seguida, Bond dirigiu-se para o quarto de vestir e deixou-se ficar durante algum tempo, de pé, no centro da peça, esperando que as batidas de seu coração se acalmassem. Esfregou as mãos no rosto e sacudiu a cabeça, procurando esquecê-la.

Para clarear a mente, percorreu ainda cuidadosamente as duas peças, procurando saídas, possíveis armas, microfones, qualquer coisa enfim que lhe aumentasse o conhecimento da situação em que se achava. Nada disso, entretanto, pôde encontrar. Na parede havia um relógio elétrico que marcava oito e meia e uma série de botões de campainhas, ao lado da cama de casal. Esses botões traziam a indicação de “Sala de serviço”, “cabeleireiro”, “manicure”, “empregada”. Não havia telefone. Bem no alto, a um canto de ambas as peças, viam-se as grades de um pequeno ventilador. Cada uma dessas grades era de dois pés quadrados. Tudo inútil. As portas pareciam ser feitas de algum metal leve, pintadas para combinarem com as paredes. Bond jogou todo o peso de seu corpo contra uma delas, mas ela não cedeu um só milímetro. Bond esfregou o ombro. Aquele lugar era uma verdadeira prisão. Não adiantava discutir a situação. A armadilha tinha-se fechado hermèticamente sobre eles. Agora, a única coisa que restava aos ratos era tirarem o melhor proveito possível da isca de queijo.

Bond sentou-se à mesa do desjejum, sobre a qual estava uma grande jarra com suco de abacaxi, metida num pequeno balde de prata cheio de cubos de gelo. Serviu-se rapidamente e levantou a tampa de uma travessa. Ali estavam ovos mexidos sobre torradas, quatro fatias de toucinho defumado, um rim grelhado e o que parecia quatro salsichas inglesas de carne de porco. Havia também duas torradas quentes, pãezinhos conservados quentes dentro de guardanapos, geléia de laranja e morango e mel. O café estava quase fervendo numa grande garrafa térmica, e o creme exalava um odor fresco e agradável.

Do banheiro vinham as notas da canção “Marion” que a jovem estava cantarolando. Bond resolveu não dar ouvidos à cantoria e concentrou-se nos ovos.

Dez minutos depois, Bond ouviu que a porta do banheiro se abria. Descansou uma torrada que tinha numa das mãos e cobriu os olhos com a outra. Ela riu e disse: — Ele é um covarde. Tem medo de uma simples jovem. — Em seguida Bond ouviu-a a remexer nos armários. Ela continuava falando, em parte consigo mesma: — Não sei porque ele está assustado. Naturalmente que se eu lutasse com ele facilmente o dominaria. Talvez esteja com medo disso. Talvez não seja realmente muito forte, embora seus braços e peito pareçam bastante rijos. Contudo, ainda não vi o resto. Talvez seja fraco. Sim, deve ser isso. Essa é a razão pela qual não ousa despir-se na minha frente. Hum, agora vamos ver, será que ele gostaria de mim com essas roupas? — Ela elevou a voz: — Querido James, você gostaria de me ver de branco, com pássaros azul-pálido esvoaçando sobre o meu corpo?

— Sim, bolas! Agora acabe com essa conversa e venha comer. Estou começando a sentir sono.

Ela soltou uma exclamação: — Oh, se você quer dizer que já está na hora de irmos para a cama, naturalmente que me apressarei.

Ouviu-se uma agitação de passos apressados e Bond logo a via sentar-se diante de si. Ele deixou cair as mãos e ela sorriu-lhe. Estava linda. Seu cabelo estava escovado e penteado de um dos lados caindo sobre o rosto, e do outro com as madeixas puxadas para trás da orelha. Sua pele brilhava de frescura e os grandes olhos azuis resplandeciam de felicidade. Agora Bond estava gostando daquele nariz quebrado. Tinha-se tornado parte de seus pensamentos relativamente a ela, e subitamente lhe ocorreu perguntar-se por que estaria ele triste quando ela era tão imaculadamente bela quanto tantas outras lindas jovens. Sentou-se circunspectamente, com as mãos no colo, e a metade dos seios aparecendo na abertura do quimono.

Bond disse severamente: — Agora, ouça, Honey. Você está maravilhosa, mas esta não é a maneira de usar-se um quimono. Feche-o no corpo, prenda-o bem e deixe de tentar parecer uma prostituta. Isso simplesmente não são bons modos à mesa.

— Oh, você não passa de um boneco idiota. — E ajeitou o quimono, fechando-o um pouco, em uma ou duas polegadas. — Por que você não gosta de brincar? Gostaria de brincar de estar casada.

— Não à hora do desjejum — respondeu Bond com firmeza. — Vamos, coma logo. Está delicioso. De qualquer maneira estou muito sujo, e agora vou fazer a barba e tomar um banho. — Levantou-se, deu volta à mesa e beijou-lhe o alto da cabeça. — E quanto a essa história de brincar, como você diz, gostaria mais de brincar com você do que com qualquer outra pessoa do mundo. Mas não agora. — Sem esperar pela resposta, dirigiu-se ao banheiro e fechou a porta.

Bond barbeou-se e tomou um banho de chuveiro. Sentia-se desesperadamente sonolento. O sono chegava-lhe, de modo que de quando em quando tinha que interromper o que fazia e inclinar a cabeça, repousando-a entre os joelhos. Quando começou a escovar os dentes, o seu estado era tal que mal podia fazê-lo. Estava começando a reconhecer os sintomas. Tinha sido narcotizado. A coisa teria sido posta no suco de abacaxi ou no café? Este era um detalhe sem importância. Aliás, nada tinha importância. Tudo o que queria fazer era estender-se naquele chão de ladrilhos e fechar os olhos. Assim mesmo, dirigiu-se cambaleante para a porta, esquecendo-se de que estava nu. Isso também pouca importância tinha. A jovem já tinha terminado a refeição e agora estava na cama. Continuou trôpego, até ela, segurando-se nos móveis. O quimono tinha sido abandonado no chão e ela dormia pesadamente, completamente nua, sob um simples lençol.

Bond olhou para o travesseiro, ao lado da jovem. Não! Procurou o interruptor e apagou as luzes. Agora teve que se arrastar pelo chão até chegar ao seu quarto. Chegou até junto de sua cama e atirou-se nela. Com grande esforço conseguiu ainda esticar o braço, tocar o interruptor e tentar apagar a lâmpada do criado-mudo. Mas não o conseguiu: sua mão deslizou, atirou o abajur ao chão e a lâmpada espatifou-se. Com um derradeiro esforço, Bond virou-se ainda no leito e adormeceu profundamente.

Os números luminosos do relógio elétrico, no quarto de casal, anunciavam nove e meia.

Às dez horas, a porta do quarto abriu-se suavemente. Um vulto muito alto e magro destacava-se na luz do corredor. Era um homem. Talvez tivesse dois metros de altura. Permaneceu no limiar da porta, com os braços cruzados, ouvindo. Dando-se por satisfeito, caminhou vagarosamente pelo quarto e aproximou-se da cama. Conhecia perfeitamente o caminho. Curvou-se sobre o leito e ouviu a serena respiração da jovem. Depois de um momento, tocou em seu próprio peito e acionou um interruptor. Imediatamente um amplo feixe de luz difusa projetou-se na cama. O farolete estava preso ao corpo do homem por meio de um cinto que o fixava à altura do esterno.

Inclinou-se novamente para a frente, de modo que a luz clareou o rosto da jovem.

O intruso examinou aquele rosto durante alguns minutos. Uma de suas mãos avançou, apanhou a orla do lençol, à altura do queixo da jovem, e puxou-o lentamente até os pés da cama. Mas a mão que puxara aquele lençol não era u’a mão. Era um par de pinças de aço muito bem articuladas na extremidade de uma espécie de talo metálico que desaparecia dentro de uma manga de seda negra. Era u’a mão mecânica.

O homem contemplou durante longo tempo aquele corpo nu, deslocando o seu peito de um lado para outro, de modo que todo o leito fosse submetido ao feixe luminoso. Depois, a garra saiu novamente de sob aquela manga e delicadamente levantou a ponta do lençol, puxando-o dos pés da cama até recobrir todo o corpo da jovem. O homem demorou-se ainda por um momento a contemplar o rosto adormecido, depois apagou o farolete e atravessou silenciosamente o quarto em direção à porta aberta, além da qual estava Bond dormindo.

O homem demorou-se mais tempo ao lado do leito de Bond. Perscrutou cada linha, cada sombra do rosto moreno e quase cruel que jazia quase sem vida, sobre o travesseiro. Observou a circulação à altura do pescoço e contou-lhe as batidas; depois, quando puxou o lençol para baixo, fez o mesmo na área do coração. Estudou a curva dos músculos, nos braços de Bond e nas coxas, e considerou pensativo a força oculta no ventre musculoso de Bond. Chegou até mesmo a curvar-se sobre a mão direita de Bond, estudando-lhe cuidadosamente as linhas da vida e do destino.

Por fim, com grande cuidado, a pinça de aço puxou novamente o lençol, desta vez para cobrir o corpo de Bond até o pescoço. Por mais um minuto o elevado vulto permaneceu ao lado do homem adormecido, depois se retirou rapidamente, ganhando o corredor, enquanto a porta se fechava com um estalido metálico e seco.


CONTINUA

XI - VIDA NO CANAVIAL


Seriam cerca de oito horas, pensou Bond. A não ser o coaxar dos sapos, tudo estava mergulhado em silêncio. No canto mais distante da clareira, ele podia vislumbrar o vulto de Quarrel.

Podia-se ouvir o tinir metálico, enquanto ele se ocupava em desmontar e secar a sua “Remington”.

Por entre as árvores podiam-se ver também as luzes distantes, vindas do depósito de guano, riscar caminhos luminosos e festivos sobre a superfície escura do lago. O desagradável vento desaparecera e o abominável cenário estava mergulhado em trevas. Estava bastante fresco. As roupas de Bond tinham secado no corpo. A comida tinha aquecido o seu estômago. Ele experimentou uma agradável sensação de conforto, sonolência e paz. O dia seguinte ainda estava muito longe e não apresentava problemas, a não ser uma boa dose de exercício físico. A vida, subitamente, pareceu-lhe fácil e boa.

A jovem estava a seu lado, metida no saco de dormir. Estava deitada de costas, com a cabeça descansando nas mãos, e olhando para o teto de estrelas. Ele apenas conseguia divisar os pálidos contornos de seu rosto. De repente, ela disse: James, você prometeu dizer-me o que significava tudo isso. Vamos. Eu não dormirei enquanto você não o disser.

Bond riu. — Eu direi se você também disser. Também quero saber o que você pretende.

— Pois não, não tenho segredos: mas você deve falar primeiro.

— Está certo. — Bond puxou os joelhos até a altura do queixo e passou os braços à volta deles. — Eu sou uma espécie de policial. Eles me enviam de Londres quando há alguma coisa de estranho acontecendo em alguma parte do mundo e que não interessa a ninguém. Bem, não faz muito tempo, um dos funcionários do Governador, em Kingston, um homem chamado Strangways, aliás meu amigo, desapareceu. Sua secretária, que era uma linda jovem, também desapareceu sem deixar vestígios. Muitos pensaram que eles tivessem fugido juntos, mas eu não acreditei nisso. Eu...”

Bond contou tudo com simplicidade, falando em homens bons e maus, como numa história de aventuras lida em algum livro. Depois terminou: Como você vê, Honey, temos de voltar a Jamaica, amanhã à noite, todos nós, na canoa, e então o Governador nos dará ouvidos e enviará um destacamento de soldados para apanhar este chinês. Espero que isso terá como conseqüência levá-lo à prisão. Ele com certeza também sabe disso, e essa é a razão pela qual procura aniquilar-nos. Essa é a história. Agora é a sua vez.

A jovem disse: Você parece viver uma vida muita excitante. Sua mulher não deve gostar que você fique fora tanto tempo. Ela não tem medo de que você se fira?

— Não sou casado. A única que se preocupa com a possibilidade de que eu me fira é a minha companhia de seguros.

Ela continuou sondando: Mas suponho que você tenha namoradas.

— Não permanentes.

— Oh!

Fez-se uma pausa. Quarrel se aproximou e disse: “Capitão, farei o primeiro quarto, se for melhor. Estarei na extremidade da restinga e virei chamá-lo à meia-noite. Então talvez o senhor possa ir até as cinco horas, quando nós nos poremos em marcha. Precisamos estar fora daqui antes que clareie o dia.

— Está bem — respondeu Bond. — Acorde-me se você vir alguma coisa. O revólver está em ordem?

— Perfeito — respondeu Quarrel com evidente mostra de contentamento. Depois, dirigindo-se à jovem disse com leve tom de insinuação: — Durma bem, senhorita. Em seguida, desapareceu silenciosamente nas sombras.

— Gosto de Quarrel — disse a jovem. E, após uma pausa: — Você quer realmente saber alguma coisa a meu respeito? A história não é tão excitante quanto a sua.

— É claro que quero. E não omita nada.

— Não há nada a omitir. Você poderia escrever toda a história de minha vida nas costas de um cartão postal. Para começar, nunca saí de Jamaica. Vivi toda a minha vida num lugar chamado Beau Desert, na costa setentrional, nas proximidades do Porto Morgan.

Bond riu. — É estranho: posso dizer o mesmo; pelo menos por enquanto. Não notei você pela região. Você vive em cima de uma árvore?

— Ah, imagino que você tenha ficado na casa da praia. Eu nunca chego até ali. Vivo na Casa Grande.

— Mas nada ficou dela. É uma ruína no meio dos canaviais.

— Eu vivo na adega. Tenho vivido ali desde a idade de cinco anos. Depois a casa se incendiou e meus pais morreram. Nada me lembro deles, por isso você não precisa manifestar pesar. A princípio vivi ali com a minha ama negra, mas depois ela morreu, quando eu tinha apenas quinze anos. Nos últimos cinco anos tenho vivido ali sozinha.

— Nossa Senhora! — Bond estava boquiaberto. — Mas não havia ninguém para tomar conta de você? Os seus pais não deixaram nenhum dinheiro?

— Nem um tostão. — Não havia o mínimo traço de amargura na voz da jovem — talvez orgulho, se houvesse alguma coisa. — Você sabe, os Riders eram uma das mais antigas famílias de Jamaica. O primeiro Rider recebera de Cromwell as terras de Beau Desert, por ter sido um dos que assinaram o veredicto de morte contra o rei Carlos. Ele construiu a Casa Grande e minha família viveu ora nela ora fora dela, desde aquela época. Mas depois veio a decadência do açúcar e eu acho que a propriedade foi pessimamente administrada, e, ao tempo em que meu pai tomou conta da herança, havia somente dívidas — hipotecas e outros ônus. Assim, quando meu pai e minha mãe morreram a propriedade foi vendida. Eu pouco me importei, pois era muito jovem. Minha ama deve ter sido maravilhosa. Quiseram que alguém me adotasse, mas a minha babá reuniu os pedaços de mobília que não tinham sido queimados e com eles nós nos instalamos da melhor forma no meio daquelas ruínas. Depois de algum tempo ninguém mais veio interferir conosco. Ela cosia um pouco e lavava para algumas freguesas da aldeia, ao mesmo tempo que plantava bananas e outras coisas, sem falar do grande pé de fruta-pão que havia diante da casa. Comíamos o que era a ração habitual do povo de Jamaica. E havia os pés de cana-de-açúcar à nossa volta. Ela fizera também uma rede para apanhar peixes, a qual nós recolhíamos todos os dias. Tudo corria bem e nós tínhamos o suficiente para comer. Ela ensinou-me a ler e escrever, como pôde. Tínhamos uma pilha de velhos livros que escapara ao incêndio, inclusive uma enciclopédia. Comecei com o A quando tinha apenas oito anos, e cheguei até o meio do T. — Ela disse um tanto na defensiva: — Aposto que sei mais do que você sobre muitas coisas.

— Estou certo de que sim. — Bond estava perdido na visão daquela jovem de cabelos de linho errando pelas ruínas de uma grande construção, com uma obstinada negra a vigiá-la e a chamá-la para receber as lições que deveriam ter sido um mistério para ela mesma. — Sua ama deve ter sido uma criatura extraordinária.

— Ela era um amor. — Era uma afirmação peremptória. — Pensei que fosse morrer quando ela faleceu. As coisas não foram tão fáceis para mim depois disso. Antes eu levava uma vida de criança, mas subitamente tive que crescer e fazer tudo por mim mesma. E os homens tentaram apanhar-me e atingir-me. Diziam que queriam fazer amor comigo. — Fez uma pausa e acrescentou: — Eu era bonita naquela época. Bond disse muito sério:

— Você é uma das jovens mais belas que já vi.

— Com este nariz? Não seja tolo.

— Você não compreende. — Bond tentou encontrar palavras nas quais ela pudesse crer. — É claro que qualquer pessoa pode ver que o seu nariz está quebrado; mas desde esta manhã dificilmente eu pude notá-lo. Quando se olha para uma pessoa, olha-se para os seus olhos ou para a sua boca. Nesses dois pontos se encontram a expressão. Um nariz quebrado não tem maior significação do que uma orelha torta. Narizes e orelhas são peças do mobiliário facial. Algumas são mais bonitas do que outras, mas não são tão importantes quanto o resto. Se você tivesse um nariz bonito, tão bonito como o resto, você seria a jovem mais bela de Jamaica.

— Você é sincero? — Sua voz era ansiosa. — Você acha que eu poderia ser bela? Sei que muita coisa em mim está bem, mas quando olho no espelho só vejo o meu nariz quebrado. Estou certa de que o mesmo ocorre com outras pessoas que são, que são — bem — mais ou menos aleijadas.

Bond disse com impaciência: — Você não é aleijada! Não diga tolices. E aliás você pode endireitá-lo mediante uma simples operação. Basta que você vá aos Estados Unidos e a coisa levará apenas uma semana.

Ela disse com irritação: — Como é que você quer que eu faça isso? Tenho cerca de quinze libras debaixo de uma pedra, na minha adega. Tenho ainda três saias, três blusas, uma faca e uma panela de peixe. Conheço muito bem essas operações. O médico de Porto Maria já pediu informações para mim. Ele é um homem muito bom e escreveu para os Estados Unidos. Pois para que a operação seja bem feita, eu teria que gastar cerca de quinhentas libras, sem falar da passagem para Nova York, a conta do hospital e tudo o mais.

Sua voz tornou-se desesperançada: — Como é que você espera que eu possa ter todo esse dinheiro?

Bond já decidira sobre o que teria de ser feito, mas no momento apenas disse ternamente: — Bem, espero que se possam encontrar meios; mas, de qualquer maneira, prossiga com a sua história. Ela é muito excitante — muito mais interessante do que a minha. Você tinha chegado ao ponto em que a sua ama morreu. O que aconteceu depois?

A jovem recomeçou com relutância.

— Bem, a culpa é sua por ter interrompido. E você não deve falar de coisas que não compreende. Suponho que as pessoas lhe digam que você é simpático. Você deve também ter todas as namoradas que desejar. Bem, isso não aconteceria se você fosse vesgo ou tivesse um lábio leporino. — Na verdade, ele pôde ouvir o sorriso em sua voz: — Acho que quando voltarmos eu irei ter com o feiticeiro para que lhe faça uma mandinga e lhe dê alguma coisa assim. — E ela acrescentou tristemente: — Dessa forma, nós seremos mais parecidos.

Bond estendeu o braço e sua mão tocou nela: — Eu tenho outros planos. Mas continuemos, quero ouvir o resto da sua história.

— Bem, — disse a jovem com um suspiro. — Eu terei que me atrasar um pouco. Como você sabe, toda a propriedade é representada pela cana-de-açúcar e pela velha casa que está situada no meio da plantação. Bem, umas duas vezes por ano eles cortam a cana e mandam-na para o moinho. E quando eles o fazem, todos os animais e insetos que vivem nos canaviais entram em pânico e a maioria deles têm as suas tocas destruídas e são mortos. Na época da safra, alguns deles começaram a vir para as ruínas da casa, onde se escondiam. No princípio, minha babá ficava aterrorizada, pois lá vinham os mangustos, as cobras e os escorpiões, mas eu preparei dois quartos da adega para recebê-los. Não me assustei com eles, e eles nunca me fizeram mal. Pareciam compreender que eu estava cuidando deles. E devem ter contado aquilo aos seus amigos, ou alguma coisa parecida, pois depois de algum tempo era perfeitamente natural que todos viessem acantonar-se em seus dois quartos, onde ficavam até que os canaviais começassem novamente a crescer, quando então iam saindo e voltando para os campos. Dei-lhes toda a comida que podíamos pôr de lado, quando eles ficavam conosco, e todos se portavam muito bem, a não ser por algum odor e às vezes uma ou outra luta entre si. Mas eram muito mansos comigo. Naturalmente os cortadores de cana perceberam tudo e viam-me andando pelo lugar com cobras à volta do meu pescoço, e assim por diante, a ponto de ficarem aterrorizados comigo e me considerarem uma feiticeira. Por causa disso, eles nos deixaram completamente isoladas. Ela fez uma pausa, e depois recomeçou:

— Foi assim que aprendi tanta coisa sobre animais e insetos. Eu costumava ainda passar muito tempo no mar, aprendendo coisas sobre os animais marinhos, assim como sobre os pássaros. Se se chega a saber o que todas essas criaturas gostam de comer e do que têm medo, pode-se muito bem fazer amizade com elas. — Levantou os olhos para Bond e disse: Você não sabe o que perde ignorando todas essas coisas.

— Receio que perca muito — respondeu Bond com sinceridade. — Suponho que eles sejam muito melhores e mais interessantes que os homens.

Sobre isso nada sei — respondeu a jovem pensativa-mente. — Não conheço muitas pessoas. A maioria das que conheci foram detestáveis, mas acho que deve haver criaturas interessantes também. — Fez uma pausa, e prosseguiu: — Nunca pensei realmente que chegasse a gostar de alguma pessoa como gosto dos animais. Com exceção da babá, naturalmente. Até que... — Ela se interrompeu com um sorriso de timidez. — Bem, de qualquer forma, nós vivemos muito felizes juntas, até que eu fiz quinze anos, quando então a babá morreu e as coisas se tornaram muito difíceis. Havia um homem chamado Mander. Um homem horroroso. Era o capataz branco que servia aos proprietários da plantação. Ele vivia me procurando. Queria que eu fosse viver com ele, em sua casa de Porto Maria.

Eu o odiava, e costumava esconder-me sempre que ouvia o seu cavalo aproximando-se do canavial. Certa noite ele veio a pé e eu não o ouvi. Estava bêbado. Entrou na adega e lutou comigo porque não queria fazer o que ele desejava. Você sabe, as coisas que fazem as pessoas quando estão apaixonadas.

— Sim, já sei.

— Tentei matá-lo com a minha faca, mas ele era muito forte e deu-me um soco tão forte no rosto que me quebrou o nariz. Deixou-me inconsciente e acho que fez alguma coisa comigo. Sei que ele fez mesmo. No dia seguinte eu quis me matar quando vi o meu rosto e verifiquei o que ele me havia feito. Pensei que iria ter um filho. Teria sem dúvida me matado se tivesse tido um filho daquele homem. Em todo caso, não tive, e tudo continuou assim. Fui ao médico e ele fez o que pôde com o meu nariz e não me cobrou nada. Quanto ao resto, eu nada lhe contei, pois estava muito envergonhada. O homem não voltou mais. Eu esperei e nada fiz até a próxima colheita de cana-de-açúcar. Tinha um plano. Estava esperando que as aranhas viúvas-negras viessem procurar abrigo. Um belo dia elas chegaram. Apanhei a maior das fêmeas e á deixei numa caixa sem nada para comer. As fêmeas são terríveis. Então esperei que fizesse uma noite escura, sem luar. Na primeira noite dessas, apanhei a caixa com a aranha e caminhei até chegar à casa do homem. Estava muito escuro e eu me sentia aterrorizada com a possibilidade de encontrar algum assaltante pela estrada, mas não houve nada. Esperei em seu jardim, oculta entre os arbustos, até que ele se recolheu à cama. Então subi por uma árvore e ganhei a sacada; aguardei até que ele começasse a roncar e depois entrei pela janela. Ele estava nu, estendido na cama, sob o mosquiteiro. Levantei uma aba do filó, abri a caixa e sacudi-lhe a aranha sobre o ventre. Depois saí e voltei para casa.

— Deus do céu! — exclamou Bond reverentemente. — O que aconteceu com o homem?

Ela respondeu com satisfação: — Levou uma semana para morrer. Deve ter-lhe doído terrivelmente. Você sabe, a mordida dessa aranha é pavorosa. Os feiticeiros dizem que não há nada que se lhe compare. — Ela fez uma pausa, e como Bond não fizesse nenhum comentário, acrescentou: — Você não acha que eu fiz mal, não é?

— Bem, não faça disso um hábito — respondeu Bond suavemente. — Mas não posso culpá-la, diante do que ele tinha feito. E, depois, o que aconteceu?

— Bem, depois me estabeleci novamente — sua voz era firme. — Tive que me concentrar na tarefa de obter alimento suficiente, e naturalmente. — Acrescentou persuasivamente: — Eu tinha de fato um nariz muito bonito, antes. Você acha que os médicos podem torná-lo igualzinho ao que era antes?

— Eles poderão fazê-lo de qualquer forma que você quiser — disse Bond em tom definitivo. — Como é que você ganhou dinheiro?

— Foi graças à enciclopédia. Li nela que há pessoas que gostam de colecionar conchas marinhas e que as conchas raras podiam ser vendidas. Falei com o mestre-escola local, sem contar-lhe naturalmente o meu segredo, e ele descobriu para mim que havia uma revista norte-americana chamada “Nautilus”, dedicada aos colecionadores de conchas. Eu tinha apenas o dinheiro suficiente para tomar uma assinatura daquela revista e comecei a procurar as conchas que as pessoas pediam em seus anúncios. Escrevi a um comerciante de Miami e ele começou a comprar as minhas conchas. Foi emocionante. Naturalmente que cometi alguns erros, no princípio. Pensei, por exemplo, que as pessoas gostariam das conchas mais bonitas, mas esse não era o caso. Freqüentemente elas preferiam as conchas mais feias. Depois, quando achava conchas raras, punha-me a limpá-las e poli-las a fim de torná-las mais bonitas, mas isso também foi um erro. Os colecionadores querem as conchas exatamente como saem do mar, com o animal em seu interior também. Então consegui algum formol com o médico e o punha entre as conchas vivas, para que elas não tivessem mau cheiro, e depois mandava-as para o tal comerciante de Miami. Só aprendi bem o negócio de um ano para cá e já consegui quinze libras. Consegui esse resultado agora que sei como é que eles querem as conchas e se tivesse sorte, poderia fazer pelo menos cinqüenta libras por ano. Então, em dez anos poderia ir aos Estados Unidos e operar-me. Mas, continuou ela com intenso contentamento, tive uma notável maré de sorte. Fui a Crab Key pelo Natal, onde já tinha estado antes. Mas dessa vez eu encontrei essas conchas purpúreas. Não parecem grande coisa, mas eu enviei uma ou duas para Miami e o comerciante escreveu-me para dizer que compraria tantas dessas conchas quantas eu pudesse encontrar, e ao preço de até cinco dólares pelas perfeitas. Disse-me ainda que eu deveria manter segredo sobre o lugar de onde as tirava, pois de outra forma o “mercado seria estragado”, como disse ele, e os preços cairiam. É como se se tivesse uma mina de ouro particular. Agora serei capaz de juntar o dinheiro em cinco anos. Esse foi o motivo pelo qual tive grandes suspeitas de você, quando o encontrei na praia. Pensei que você tivesse vindo para roubar as minhas conchas.

— Você me deu um susto, pois pensei que você fosse a garota do Dr. No.

— Muito obrigada.

— Mas depois que você tiver feito a operação, o que irá fazer? Você não pode continuar vivendo numa adega durante toda a vida.

— Pensei em me tornar uma prostituta. — Ela o disse como se tivesse dito “enfermeira” ou “secretária”.

— Oh, o que é que você quer dizer com isso? — Talvez ela já tivesse ouvido aquela expressão sem compreendê-la bem.

— Uma dessas jovens que possuem um bonito apartamento e lindas roupas. Você sabe o que quero dizer — acrescentou ela com impaciência. — Os homens telefonam, marcam encontro, chegam, fazem amor e pagam. Elas ganham cem dólares de cada vez, em Nova Iorque, onde pensei começar. Naturalmente — admitiu — terei de fazer por menos, no começo, até que aprenda a trabalhar bem. Quanto é que vocês pagam pelas que não têm experiência?

Bond riu. — Francamente, não me lembro. Há muito tempo que não me encontro com essas mulheres.

Ela suspirou. — Sim, suponho que você possa ter tantas mulheres quantas queira, por nada. Suponho que apenas os homens feios paguem, mas isso é inevitável. Qualquer espécie de trabalho nas grandes cidades deve ser horrível. Pelo menos pode-se ganhar muito mais como prostituta. Depois, poderia voltar para Jamaica e comprar Beau Desert. Seria bastante rica para encontrar um marido bonito e ter alguns filhos. Agora que encontrei essas conchas, penso que poderia estar de volta a Jamaica quando tivesse trinta anos. Não seria formidável?

— Gosto da última parte do plano, mas não tenho muita confiança na primeira. De qualquer forma, como é que você veio a saber dessa história de prostitutas? Encontrou isso na letra P, na enciclopédia?

— Claro que não; não seja tolo. Há uns dois anos houve em Nova Iorque um escândalo sobre elas, envolvendo também um “play-boy” chamado Jelke. Ele tinha toda uma cadeia de prostitutas, e eu li muito sobre o caso no “Gleaner”. O jornal deu inclusive os preços que elas cobravam e tudo o mais. De qualquer forma, há milhares dessas jovens em Kingston, embora não sejam tão boas. Recebem apenas cinco xelins e não têm um lugar apropriado para fazer amor, a não ser no mato. Minha babá chegou a falar-me delas. Disse-me que eu não deveria imitá-las, pois do contrário seria muito infeliz. É claro que seria, recebendo apenas cinco xelins. Mas por cem dólares!...

Bond observou: — Você não conseguiria guardar todo esse dinheiro. Precisaria ter uma espécie de gerente para arranjar os homens, e teria ainda de dar gorjetas à polícia, para deixá-la em paz. Por fim, poderia ir facilmente parar na cadeia se tudo não corresse bem. Na verdade, com tudo o que você sabe sobre animais, bem poderia ter um ótimo emprego, cuidando deles, em algum jardim zoológico norte-americano. E o que me diz do Instituto de Jamaica? Tenho certeza de que você gostaria mais de trabalhar ali. E poderia também facilmente encontrar um bom marido. De qualquer forma, você não deve mais pensar em ser prostituta. Você tem um belo corpo e deve guardá-lo para o homem que amar.

— Isso é o que dizem as pessoas nos livros — disse ela com ar de dúvida. — A dificuldade está em que não há nenhum homem para ser amado em Beau Desert. — Depois acrescentou timidamente: — Você é o único inglês com quem jamais falei. Gostei de você desde o princípio, e não me importo de dizer-lhe essas coisas agora. Penso que há muitas pessoas das quais chegaria a gostar se saísse daqui.

— É claro que há. Centenas. E você é uma garota formidável; o que pensei assim que a vi.

— Assim que viu as minhas nádegas, você quer dizer. — Sua voz estava-se tornando sonolenta, mas cheia de prazer.

Bond riu. — Bem, eram nádegas maravilhosas. E o outro lado também era maravilhoso. — O corpo de Bond começou a se agitar com a lembrança de como a vira pela primeira vez. Depois de um instante, disse com mau humor: — Agora vamos, Honey. Está na hora de dormir. Haverá muito tempo para conversarmos quando voltarmos a Jamaica.

— Haverá? — perguntou ela desconsoladamente. — Você promete?

— Prometo.

Ele a viu agitar-se dentro do saco de dormir. Olhou para baixo e apenas pôde divisar o seu pálido perfil voltado para ele. Ela deixou escapar o profundo suspiro de uma criança, antes de adormecer.

Reinava silêncio na clareira e o tempo estava esfriando. Bond descansou a cabeça sobre os joelhos unidos. Sabia que era inútil procurar dormir, pois sua mente estava cheia dos acontecimentos do dia e dessa extraordinária mulher Tarzan que aparecera em sua vida. Era como se algum animal muito bonito se lhe tivesse dedicado. E não largaria os cordéis enquanto não tivesse resolvido os problemas dela. Estava sentindo isso. Naturalmente que não haveria grandes dificuldades para a maioria de seus problemas. Quanto à operação, seria fácil arranjá-la, e até mesmo encontrar-lhe um emprego, com o auxílio de amigos, e um lar. Tinha dinheiro e haveria de comprar-lhe roupas, mandaria ajeitar os seus cabelos e a lançaria no grande mundo. Seria divertido. Mas quanto ao resto? Quanto ao desejo físico que sentia por ela? Não se podia fazer amor com uma criança. Mas, seria ela uma criança? Não haveria nada de infantil relativamente ao seu corpo ou à sua personalidade. Era perfeitamente adulta e bem inteligente, a seu modo, e muito mais capaz de tomar conta de si mesma do que qualquer outra jovem de vinte anos que Bond conhecera.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um puxão em sua manga. A vozinha disse: — Por que você não vai dormir? Não está sentindo frio?

— Não; estou bem.

— Aqui no saco de dormir está bom e quente. Você quer vir para cá? Tem bastante lugar.

— Não, obrigado, Honey. Estou bem.

Houve uma pausa, e depois ela disse num sussurro: — Se você está pensando... Quero dizer — você não precisa fazer amor comigo... Eu poderia dormir de costas para o seu peito.

— Honey, querida, vá dormir. Seria maravilhoso dormir assim com você, mas não esta noite. De qualquer maneira, em breve terei de render Quarrel.

— Muito bem, — disse ela com voz mal humorada. — Talvez quando voltarmos a Jamaica.

— Talvez.

— Prometa. Não dormirei enquanto você não prometer.

Bond disse desesperadamente: — Naturalmente que prometo. Agora, vá dormir, Honeychile.

A sua voz se fez ouvir outra vez, triunfante: — Agora você tem uma dívida comigo. Você prometeu. Boa-noite, querido James.

— Boa noite, querida Honey.


XII - A COISA


O aperto no braço de Bond era ansioso. Ele de um salto pôs-se de pé.

Quarrel sussurrou tensamente: — Alguma coisa está-se aproximando pela água, capitão! Com certeza é o dragão!

A jovem levantou-se e perguntou nervosamente: — Que aconteceu?

Bond apenas disse: — Fique aí, Honey! Não se mexa. Eu voltarei.

Internou-se pelos arbustos do lado oposto da montanha e correu pela restinga, com Quarrel ao lado.

Chegaram até a extremidade da restinga, a vinte metros da clareira, e pararam sob o abrigo dos últimos arbustos, que Bond apartou com as mãos para ter um melhor campo de visão.

O que seria aquilo? A meia milha de distância, atravessando o lago, vinha algo informe, com dois olhos brilhantes cor de laranja, e pupilas negras. Entre estes, onde deveria estar a boca, tremulava um metro de chama azul. A luminosidade cinzenta das estrelas deixava ver uma espécie de cabeça abaulada entre duas pequenas asas semelhantes às de um morcego. Aquela coisa estranha deixava escapar um ronco surdo e baixo, que abafava um outro ruído, uma espécie de vibração rítmica. Aquela massa avançava na direção deles, à velocidade de uns dezesseis quilômetros por hora, deixando atrás de si uma esteira de espuma.

Quarrel sussurrou:

— Nossa, capitão! Que coisa é aquela?

Bond continuou de pé e respondeu laconicamente: — Não sei exatamente. Uma espécie de trator arranjado para meter medo. Está trabalhando com um motor diesel, e por isso você pode deixar os dragões de lado. Agora, vejamos... — Bond falava como se para si mesmo. — Não adianta fugir. Aquilo se move mais depressa do que nós e sabemos que pode esmagar árvores e atravessar pântanos. Temos que lhe dar combate aqui mesmo. Quais serão os seus pontos fracos? Os motoristas. Com certeza, dispõem de proteção. Em todo caso, não sabemos muito sobre esse ponto. Quarrel, você começará a disparar contra aquela cúpula quando estiverem a uns duzentos metros de nós. Faça a pontaria cuidadosamente e continue atirando. Visarei os faróis quando estiverem a cinqüenta metros. Não se está movendo sobre lagartas. Deve ter alguma espécie de rodas gigantescas, provavelmente de avião. Visarei as rodas também. Fique aí. Ficarei dez metros para baixo. Naturalmente vão reagir e nós temos que manter as balas longe da garota. Está combinado? — Bond esticou o braço e apertou o enorme ombro de Quarrel. — E não se preocupe demais. Esqueça-se de dragões. Trata-se apenas de alguma trapaça do Dr. No. Mataremos os motoristas, tomaremos conta do veículo e ganharemos com ele a costa. Isso economizará as nossas solas. Está bem?

Quarrel deu uma breve risada. — Está bem, capitão. Desde que o senhor assim o diz. Mas que Nosso Senhor saiba também que aquilo não é dragão!

Bond desceu pela restinga e se internou pelos arbustos, até que encontrou um ponto de onde podia ter um bom campo de tiro. Disse suavemente: — Honey!

— Sim, James — e a voz dela deixou transparecer alívio.

— Faça um buraco na areia como fizemos na praia. Faça-o por trás de raízes grossas e fique lá deitada. Talvez haja um tiroteio. Não tenha medo de dragões. Isto é apenas um veículo pintado, dirigido por alguns dos homens do Dr. No. Não se assuste. Estou aqui perto.

— Muito bem, James. Tenha cuidado! — A voz agora deixava transparecer um vivo temor.

Bond curvou-se, apoiando um joelho no chão, sobre as folhas e a areia, e olhou para fora.

Agora o veículo achava-se a uns trezentos metros de distância, e os seus faróis amarelos estavam iluminando a areia. Chamas azuis continuavam saindo da boca daquele engenho. Saíam de uma espécie de longo focinho, no qual se pintaram mandíbulas entreabertas, para darem ao todo a aparência de dragão. Um lança-chamas! Aquilo explicava as árvores queimadas e a história do administrador. A coloração azul da chama seria dada por alguma espécie de queimador, disposto adiante do lança-chamas.

Bond teve que admitir que aquela visão era algo de terrível, à medida que o veículo avançava pelo lago raso. Evidentemente fora calculado para infundir terror. Ele mesmo ter-se-ia assustado, não fora a vibração rítmica do motor diesel. Mas até que ponto aquilo seria vulnerável para homens que não fossem dominados pelo pânico?

A resposta ele a teve quase imediatamente. Ouviu-se o estampido da “Remington” de Quarrel. Uma centelha saiu da cabina encimada pela cúpula e logo se ouviu um ruído metálico. Quarrel disparou mais um tiro e, logo em seguida, uma rajada. As balas chocaram-se inutilmente de encontro à cabina. Não houve mesmo uma simples redução de velocidade. O monstro continuava avançando para o ponto de onde tinham partido os disparos. Bond descansou o cano de seu “Smith & Wesson” no braço, e fez cuidadosa pontaria. O profundo ruído surdo de sua arma fez-se ouvir por sobre o matraquear da “Remington” de Quarrel. Um dos faróis fora atingido e despedaçara-se. Bond disparou mais quatro tiros contra o outro e atingiu-o com o quinto e último disparo de seu revólver. O fantástico aparelho parecia continuar não dando importância, e foi avançando para o lugar de onde tinham partido os disparos do “Smith & Wesson”. Bond tornou a carregar a arma e começou a atirar contra os pneumáticos, sob as asas negro e ouro. A distância agora era de apenas trinta metros e podia jurar que já atingira mais de uma vez a roda mais próxima, sem nenhum resultado. Seria borracha sólida? O primeiro estremecimento de medo percorreu a pele de Bond.

Carregou mais uma vez. Seria aquela coisa maldita vulnerável pela retaguarda? Deveria correr para o lago e tentar uma abordagem? Avançou um passo, através dos arbustos, mas logo ficou imóvel, incapaz de prosseguir.

Subitamente, daquele focinho ameaçador, uma língua de fogo azulada tinha sido lançada na direção do esconderijo de Quarrel. À direita de Bond, no mato, surgira apenas uma chama laranja e vermelha, simultaneamente com um estranho urro, que imediatamente silenciou. Satisfeita, aquela língua de fogo se recolhera à sua boca. Agora aquilo fizera um movimento de rotação sobre o seu eixo e parará completamente. O buraco azulado da boca apontava diretamente para Bond.

Bond deixou-se ficar, esperando pelo horroroso fim. Olhou através das mandíbulas da morte e viu o brilhante f-lamento vermelho do queimador, bem no fundo do comprido tubo. Pensou no corpo de Quarrel — mas não havia tempo para pensar em Quarrel — e imaginou-o completamente carbonizado. Dentro em pouco ele também se incendiaria como uma tocha. Um único berro seria arrancado dele e os seus membros se encolheriam na pose de dançarino dos corpos queimados. Depois viria a vez de Honey. Meu Deus, para o quê ele os havia arrastado! Por que fora tão insano a ponto de enfrentar aquele homem com todo o seu arsenal? Por que não aceitara a advertência que lhe fora feita pelo longo dedo que o alcançara já em Jamaica? Bond trincou os dentes. Vamos, canalhas. Depressa.

Ouviu-se a sonoridade de um alto-falante, que anunciava metàlicamente: “Saia daí, inglês. E a boneca também. Depressa ou será frito no inferno, como o seu amigo”. Para dar mais força àquela ordem, uma língua de fogo foi lançada em sua direção. Bond deu um passo atrás para recuar daquele intenso calor. Sentiu o corpo da garota de encontro às suas costas. Ela disse historicamente: — Tive que vir, tive que vir.

Bond disse: — Está bem, Honey. Fique atrás de mim.

Ele tinha-se decidido. Não havia alternativa. Mesmo que a morte viesse mais tarde, não poderia ser pior do que aquela morte diante do lança-chamas. Bond apanhou a mão da jovem e puxou-a consigo para fora, saindo para a areia.

A voz se fez ouvir novamente: — Pare aí, camarada. E deixe cair o lança-ervilhas. Nada de truques, senão os caranguejos terão um bom almoço.

Bond deixou cair a sua arma. Lá se fora o “Smith & Wesson”. O “Beretta” não teria tido melhor sorte: A jovem lastimou-se, e Bond apertou a sua mão. — Agüente, Honey, — disse ele. — Nós nos livraremos disso.

Bond troçou de si mesmo por causa daquela mentira. Ouviu-se o ruído de uma porta de ferro que se abria. Por trás da cúpula, um homem saltou para a água e caminhou até eles, com um revólver na mão. Ao mesmo tempo ia-se mantendo fora da linha de fogo do lança-chamas. A trêmula chama azul iluminou o seu rosto. Era um chinês negro, de enorme estatura, vestindo apenas calças. Alguma coisa balançava em sua mão esquerda, e quando ele se aproximou mais, Bond pôde ver que eram algemas.

O homem deteve-se a alguns metros de distância e disse:

— Levantem os braços. Punhos juntos e caminhem em minha direção. Você primeiro, inglês. Devagar ou receberá mais um umbigo.

Bond obedeceu e quando estava a um passo do homem, este prendeu o revólver entre os dentes, e esticou os braços e atou os seus pulsos com as algemas. Bond examinou aquele rosto iluminado pelas chamas azuis. Era uma cara brutal, com olhos estrábicos. O agente do Dr. No fitou-o com desprezo. — Bastardo imbecil! — disse.

Bond deu as costas ao homem e começou a se afastar. Ia ver o corpo de Quarrel. Tinha que lhe dizer adeus. Ouviu-se o ruído de um disparo e uma bala jogou-lhe areia nos pés. Bond parou, e voltando-se lentamente disse:

— Não fique nervoso. Vou dar uma espiada no homem que você acabou de assassinar. Voltarei.

O homem abaixou o revólver e riu grosseiramente: — Muito bem. Divirta-se. Desculpe se não temos uma coroa. Volte logo, se não daremos uma amostra à boneca. Dois minutos.

Bond caminhou em direção ao cerrado de arbustos fumegantes. Ali chegando, olhou para baixo. Seus olhos e boca se contraíram. Sim, tinha sido bem como ele imaginara. Pior, mesmo. Disse docemente: — Perdoe-me, Quarrel. — Com o pé soltou um pouco de areia, que colheu com as mãos algemadas e verteu-a sobre os restos dos olhos de Quarrel. Depois caminhou lentamente, de volta, e ficou ao lado da jovem.

O homem empurrou-os para a frente com o revólver. Deram a volta por trás da máquina, onde havia uma pequena porta quadrada. Uma voz do interior disse: — Entrem e sentem-se no chão. Não toquem em nada ou ficarão com os dedos partidos.

Com dificuldade, arrastaram-se para dentro daquela caixa de ferro, que cheirava a óleo e suor. Havia lugar apenas para que ambos se sentassem com as pernas encolhidas, de joelhos para cima. O homem que empunhava o revólver e que vinha atrás deles saltou por último para dentro do carro e fechou a porta. Ligou uma lâmpada e sentou-se num assento de ferro, ao lado do chofer. — Muito bem, Sam, vamos andando. Você pode apagar o fogo. Há luz bastante para dirigir — disse.

Na painel de controle podia-se ver uma fileira de mostradores. O motorista esticou a mão e deslocou para baixo um par de interruptores. Engrenou o motor e olhou através de uma estreita fresta, cortada na parede de ferro, diante dele. Bond sentiu que o veículo dava uma volta. Ouviu-se um movimento mais rápido do motor, e o veículo avançou.

O ombro da jovem apertou-se de encontro ao de Bond.

— Para onde estão eles nos levando? — O seu sussurro traía um estremecimento.

Bond voltou a cabeça e olhou para ela. Era a primeira vez que podia ver os seus cabelos depois de secos. Estavam desfeitos pelo sono, mas não eram mais mechas de rabichos empastados. Caíam densamente até os ombros, onde terminavam em anéis voltados para dentro. Eram do mais pálido louro acinzentado e despediam reflexos quase prateados sob a luz elétrica. Ela olhou para o alto, para ele. A pele, à volta dos olhos e nos cantos da boca, mostrava-se lívida de medo.

Bond deu de ombros, procurando aparentar uma indiferença que não sentia!. Sussurrou: — Oh, espero que vamos ver o Dr. No. Não se preocupe demais, Honey. Esses homens não passam de pequenos bandidos. Com ele, as coisas serão diferentes. Quando estivermos diante dele, não diga nada, falarei por nos dois. — Ele apertou o seu ombro e disse: — Gosto da maneira por que você penteia o seu cabelo, e fico contente porque você não o apara muito curto.

Um pouco da tenção desapareceu do rosto dela. — Como é que você pode pensar em coisas como essa? — Deu um leve sorriso para ele, e acrescentou: — Mas estou contente por você gostar de meu penteado. Lavo os meus cabelos com óleo de coco uma vez por semana.

À lembrança de sua outra vida, seus olhos ficaram brilhantes. Ela baixou a cabeça para as mãos algemadas, a fim de esconder as lágrimas. Sussurrou quase para si mesma: — Tentarei ser brava. Tudo estará bem, desde que você esteja lá.

Bond aconchegou-se a ela. Levantou suas mãos algemadas até a altura dos olhos e examinou as algemas. Eram do tipo usado pela polícia norte-americana. Contraiu sua mão esquerda, a mais fina das duas, e tentou fazê-la deslizar pelo anel de aço. Mesmo o suor de sua pele de nada adiantou. Era inútil.

Os dois homens sentavam-se em seus bancos de ferro, indiferentes, e com as costas voltadas para eles. Sabiam que dominavam inteiramente a situação. Não havia possibilidade de que Bond oferecesse qualquer incômodo. Não poderia levantar-se ou dar o necessário impulso aos seus punhos para causar qualquer mal às cabeças de seus adversários, utilizando as algemas. Se conseguisse abrir a porta e pular para a água, o que lograria com isso? Imediatamente eles sentiriam a brisa fresca, nas costas, e parariam a máquina para queimá-lo na água ou içá-lo novamente. Bond aborrecia-se em pensar que os homens pouco se preocupavam com ele, pois sabiam tê-lo completamente em seu poder. Também não gostou da idéia de que aqueles homens eram bastante inteligentes para saber que ele não representava nenhuma ameaça. Indivíduos mais estúpidos teriam ficado em cima deles, de revólver em punho, tê-los-iam surrado, a ele e à jovem, barbaramente, e talvez os tivessem deixado inconscientes. Aqueles dois conheciam o ofício. Eram profissionais, ou tinham sido treinados para o serem.

Os dois homens não falaram. Não houve nenhum comentário sobre o quão hábil eles tinham sido, ou quanto ao seu cansaço ou destino. Apenas dirigiam a máquina serenamente, ultimando com eficiência a sua tarefa.

Bond continuava sem a mínima idéia do que seria aquilo. Sob a tinta negra e dourada, assim como sob o resto daquela fantasia, a máquina parecia uma espécie de trator, como ele nunca vira. Não tinha conseguido descobrir nomes de marcas comerciais, nos pneumáticos, pois estivera muito escuro, mas certamente que deveriam ser de borracha sólida ou porosa. Atrás havia um pequena roda para dar estabilidade ao conjunto. Uma espécie de barbatana de ferro fora ainda acrescentada e pintada também de preto e ouro, a fim de ajudar a dar a aparência de dragão. Os altos pára-lamas tinham sofrido um prolongamento, na forma de curtas asas voltadas para trás. Uma comprida cabeça de dragão, feita em metal, fora fixada ao radiador e os faróis receberam pontos centrais negros, para parecerem olhos. Era tudo, sem falar da cabina que fora recoberta com uma cúpula blindada e dotada de um lança-chamas. Era, como pensara Bond, um trator preparado para assustar e queimar — embora não pudesse atinar porque estava dotado de um lança-chamas e não de uma metralhadora. Era, evidentemente, a única espécie de veículo que poderia percorrer a ilha. Suas gigantescas rodas podiam avançar sobre os mangues, pântanos e ainda atravessar o lago raso. Galgaria também os agrestes planaltos de coral e, desde que andasse à noite, o calor experimentado na cabina seria pelo menos tolerável.

Bond ficara impressionado. Impressionado pelo toque de profissionalismo. O Dr. No era sem dúvida um homem que se preocupava intensamente com as coisas. Em pouco iria encontrá-lo. E em breve estaria diante do segredo do Dr. No. Então, o que aconteceria? Bond sorriu amargamente. Sim, não o deixariam sair dali com o seu conhecimento. Certamente seria morto, a menos que pudesse fugir ou conseguir a sua liberdade por meios persuasivos. E o que aconteceria à jovem? Poderia ele provar sua inocência e conseguir com que ela fosse poupada? Possivelmente, mas nunca mais ela teria permissão para deixar a ilha. Ali teria de ficar para o resto da vida, como amante ou mulher de um dos homens, ou do próprio Dr. No, se ela o impressionasse.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um trecho do percurso mais difícil, como se podia sentir pela trepidação. Tinham atravessado o lago e estavam no caminho que levava para o alto da montanha, junto às cabanas. A cabina vibrava e a máquina começou a galgar o terreno. Dentro de cinco minutos estariam lá.

O ajudante do motorista olhou por sobre o ombro para Bond e a jovem. Bond sorriu confiantemente para ele dizendo: Você receberá uma medalha por isso.

Os olhos amarelos e marrons olharam impassivelmente dentro dos dele, enquanto os lábios arroxeados e oleosos se fenderam num sorriso no qual havia um ódio repousado: Feche a boca, se... Depois, deu-lhe as costas.

A jovem tocou-o com o cotovelo e sussurrou: — Por que eles são tão rudes? Por que nos odeiam tanto?

Bond esboçou um sorriso e disse: — Acho que é porque lhes causamos medo. Talvez ainda estejam com medo, e isto porque não parecemos ter medo deles. Devemos mantê-los assim.

A jovem aconchegou-se a ele e disse: — Tentarei.

Agora a subida estava-se tornando mais íngreme. Uma luz azul-acinzentada atravessava as frestas da armadura. A madrugada se aproximava. Fora, em breve estaria começando mais um dia de calor abrasador, de execrável vento, carregado com o cheiro de gás dos pântanos. Bond pensou em Quarrel, o bravo gigante que não mais veria aquele dia, e com o qual eles deveriam agora estar caminhando através dos pauis de mangues. Quarrel tinha pressentido a morte, mas apesar disso tinha acompanhado Bond sem qualquer objeção. Sua fé em Bond tinha sido maior do que o seu medo. E Bond tinha-lhe faltado. Seria ele ainda o causador da morte da jovem?

O motorista esticou o braço em direção ao painel e na parte dianteira do veículo fez-se ouvir o breve zunido de uma sirena de polícia, que foi desaparecendo num gemido fúnebre. Mais um minuto e o veículo parava, continuando o motor em regime neutro. O homem apertou um interruptor e tirou um microfone de um gancho, a seu lado. Falou por aquele microfone e Bond pôde ouvir a sua voz aumentada, do lado de fora, por um altofalante. — Tudo bem. Apanhamos o inglês e a garota. O outro homem morreu. Isso é tudo. Abram. — Bond ouviu que uma porta se deslocava para o lado, sobre rolamentos. O motorista embreou e eles avançaram lentamente para a frente, parando alguns metros adiante. O motorista desligou o motor. Ouviu-se o ruído metálico da tranca e a porta foi aberta pelo lado de fora. Uma lufada de ar fresco e uma luz mais brilhante penetraram na cabina. Várias mãos agarraram Bond e arrastaram-no para trás, até um chão de cimento. Bond agora estava de pé e sentia o cano de um revólver encostado ao seu flanco. Uma voz disse: — Fique onde está. Nada de espertezas. — Bond olhou para o homem. Era mais um chinês negro, do mesmo tipo que os outros. Os olhos amarelos examinaram-no com curiosidade. Bond virou-se com indiferença. Outro homem estava cutucando a jovem com a arma. Bond disse asperamente: — Deixe a garota em paz! Em seguida, caminhou e pôs-se ao lado da jovem. Os dois homens pareceram surpresos. Deixaram-se ficar de pé, apontando as armas com hesitação.

Bond olhou à volta. Estavam numa das cabanas pré-fabricadas que ele vira do rio. Era ao mesmo tempo uma garagem e uma oficina. O “dragão” tinha sido colocado sobre um fosso de vistoria, no chão de concreto. Um motor de popa desmontado estava sobre uma das bancadas. Longos tubos de luz fluorescente estavam afixados ao teto e o ambiente estava impregnado do cheiro de óleo e fumaça de exaustor. O motorista e o seu companheiro examinavam a máquina. Em seguida deram alguns passos pelo galpão, como se andassem sem propósito.

Um dos guardas anunciou: — Enviei a mensagem. A ordem é que eles sejam levados. Foi tudo bem?

O ajudante de motorista, que parecia o homem mais responsável, ali presente, disse: — Sem dúvida. Alguns disparos. Os faróis foram partidos. Talvez haja alguns furos nos pneumáticos. Ponha os rapazes em ação — uma vistoria completa. Conduzirei esses dois e tirarei um cochilo. — E, voltando-se para Bond: — Bem, vamos andando — e indicou o caminho que saía do longo galpão.

Bond disse: — Vá andando você; e cuidado com os modos. Diga àqueles macacos que tirem as armas de cima de nós. Podem disparar por engano. Parecem bastante idiotas.

O homem se aproximou, e os outros os acompanharam logo atrás. O ódio brilhava em seus olhos. O chefe levantou o punho cerrado, tão grande quanto um pequeno malho e chegou-o à altura do nariz de Bond. Procurava controlar-se com esforço, e disse: — Ouça, senhor. Às vezes, nós, os rapazes, temos permissão para participar da festa final. Estou rezando para que essa seja uma dessas vezes. Certa ocasião fizemos com que a coisa durasse toda uma semana. E se eu o pego...

Riu e os seus olhos brilharam com crueldade. Olhou para o lado de Bond, fixando a garota. Seus olhos pareciam transformados em bocas que agitavam os lábios. Enfiou as mãos nos bolsos laterais das calças. A ponta de sua língua mostrava-se muito vermelha, entre os lábios arroxeados. Voltando-se para os companheiros disse: — Que tal, rapazes?

Os três homens estavam olhando também para a jovem. Fizeram um sinal de assentimento, como crianças diante de uma árvore de Natal.

Bond desejou atirar-se como um louco sobre eles, golpeando as suas caras com os punhos algemados e aceitando a sua vingança sangrenta. Não fosse pela jovem, bem que o teria feito. Mas tudo o que tinha conseguido com suas corajosas palavras fora amedrontá-la. Disse apenas: — Muito bem, muito bem. Vocês são quatro e nós somos dois, ainda por cima com as mãos atadas. Vamos, não queremos atingi-los. Apenas não nos empurrem muito de um lado para outro. O Dr. No poderia não ficar satisfeito.

Àquele nome, os rostos dos homens se modificaram. Três pares de olhos passaram apàticamente de Bond para o chefe. Por um segundo, este olhou com desconfiança para Bond, intrigado, tentando descobrir se Bond teria alguma influência junto ao Dr. No. Sua boca abriu-se para dizer algo, mas logo pareceu pensar melhor, e apenas disse de maneira incerta: — Bem, bem, estávamos simplesmente brincando. — Voltou-se para os homens, em busca de confirmação: — Não é?

— Sem dúvida, sem dúvida! — foi a resposta dada por um coro áspero, e os homens desviaram o olhar.

O chefe disse com mau humor: — Por aqui, senhor. — E ele mesmo pôs-se a caminho, percorrendo o comprido galpão.

Bond segurou o pulso da jovem e seguiu o chefe. Estava impressionado com a reação causada naqueles homens pelo nome do Dr. No. Aquilo era alguma coisa a lembrar se eles tivessem que se haver novamente com aquela turma.

O homem chegou a uma porta de madeira situada na extremidade do galpão. Ao lado havia um botão de campainha que ele pressionou duas vezes e esperou. Ouviu-se um estalido e a porta se abriu, mostrando dez metros de uma passagem rochosa, mas atapetada e que ia dar, na outra extremidade, em outra porta mais elegante e pintada de creme.

O homem ficou de lado. Siga em frente, senhor — disse; — bata na porta e será atendido pela recepcionista. — Não havia nenhuma ironia em sua voz e seus olhos se mostravam impassíveis.

Bond conduziu Honey pela passagem. Ouviu que a porta se fechava às suas costas. Deteve-se por um momento e fitou-a, perguntando-lhe: — E agora?

Ela riu, trêmula, mas respondeu: — Ê bom sentir-se tapete sob os pés.

Bond apertou o seu pulso. Andou até a porta pintada de creme e bateu.

A porta abriu-se e Bond entrou com a jovem ao lado. Quando se deteve instantaneamente, não chegou a perceber o encontrão que lhe dava a jovem, pois continuou estarrecido.


XIII - GAIOLA DE OURO


Era a espécie de sala de recepção que as maiores corporações norte-americanas possuem no andar em que se situa o escritório do presidente, em seus arranha-céus de Nova Iorque. Suas proporções eram agradáveis, com cerca de vinte pés quadrados. O chão era todo recoberto pelo mais espesso tapete Wilton cor-de-vinho. O teto e as paredes estavam pintados numa suave tonalidade cinza pombo. Viam-se ainda reproduções litográficas de esboços de balé de Degas penduradas em séries, nas paredes, e a iluminação era feita com altos e modernos jogos de abajures de seda verde-escuro, imitando a forma de elegantes barricas.

À direita de Bond estavam uma larga mesa de mogno, com o tampo recoberto com couro verde, outras peças que se harmonizavam perfeitamente com a mesa, e um caro sistema de intercomunicações. Duas cadeiras altas, de antiquado, aguardavam os visitantes. Do outro lado da sala via-se uma mesa do tipo refeitório, sobre a qual estavam várias revistas com capas em cores vivas e mais duas cadeiras. Tanto na mesa de escritório, como na outra, viam-se vasos de hibiscos. O ar era fresco e impregnado de leve fragrância.

Duas mulheres estavam naquela sala. Por trás da mesa de trabalho, empunhando uma caneta que descansava sobre um formulário impresso, estava sentada uma jovem chinesa, de aspecto eficiente, com óculos de armação de chifre, sob uma franja de cabelos negros cortados curtos. Em seus olhos e em sua boca havia o sorriso padrão de boas-vindas que qualquer recepcionista exibe — a um tempo claro, obsequioso e inquisitivo.

Ainda com a mão na maçaneta da porta pela qual eles tinham passado, e esperando que os recém-chegados se adiantassem mais, a fim de que ela a pudesse fechar, estava uma mulher mais velha, com aspecto de matrona, e que deveria ter cerca de quarenta e cinco anos. Era fácil ver-se que também tinha sangue chinês. Sua aparência, saudável, de farto busto, era viva e quase excessivamente graciosa. O seu “pince-nez” de lentes cortadas em quadrado brilhava com o desejo da recepcionista de os pôr à vontade.

Ambas as mulheres vestiam roupas imaculadamente alvas, com meias brancas e sapatos de camurça branca como costumam apresentar-se as auxiliares empregadas nos mais luxuosos salões de beleza norte-americanos. Havia um que de suave e pálido em suas peles, como se elas raramente saíssem para o ar-livre.

Bond observou o ambiente, enquanto a mulher junto à porta lhe dizia frases convencionais de boas-vindas, como se eles tivessem sido colhidos por uma tempestade o chegado com atraso a uma festa.

— Oh, coitados! Nós não sabíamos quando vocês iriam chegar. A todo momento nos diziam que vocês já estavam a caminho... primeiro à hora do chá, ontem, depois na hora do jantar, e apenas há uma hora fomos informadas de que vocês chegariam à hora do desjejum. Devem estar com fome. Venham aqui e ajudem a irmã Rosa a preencher o formulário; depois eu os prepararei para a cama. Devem estar muito cansados.

Ia dizendo aquilo com voz doce e cacarejante, ao mesmo tempo que fechava a porta e os levava para junto da mesa e os fazia sentar nas cadeiras. Depois disse: — Bem, eu sou a irmã Lírio, e esta é a irmã Rosa. Ela irá fazer-lhes apenas algumas perguntas. Agora, aceitam um cigarro? — e pegou uma caixa de couro trabalhado que estava em cima da mesa. Abriu-a e pô-la diante deles. A caixa tinha três divisões, e a chinesinha explicou apontando com um dedo: “Esses são americanos, esses são ingleses e esses turcos.” Ela apanhou um luxuoso isqueiro de mesa e esperou.

Bond estendeu as mãos algemadas para tirar um cigarro turco.

A irmã Lírio deu um gritinho de espanto: — Oh, mas francamente. — Parecia sinceramente embaraçada. — Irmã Rosa, dê-me a chave, depressa. Já disse por várias vezes que os pacientes não devem ser trazidos dessa maneira. — Havia impaciência e aborrecimento em sua voz. — Francamente, aquela gente lá de fora! Já era tempo que eles fossem chamados à ordem.

A irmã Rosa estava tão embaraçada quanto a irmã Lírio. Rapidamente remexeu dentro de uma gaveta e entregou uma chave à irmã Lírio, que com muitas desculpas e cheia de dedos abriu os dois pares de algemas e, afastando-se para trás da mesa, deixou aquelas duas pulseiras de aço caírem dentro da cesta de papéis como se fossem ataduras sujas.

— Obrigado, — disse Bond, que não sabia como enfrentar aquela situação, a não ser procurando desempenhar um papel qualquer na comédia que se estava representando. Ele estendeu o braço, apanhou um cigarro e acendeu-o. Lançou um olhar para Honeyehile Rider, que parecia estonteada e nervosamente apertava com as mãos os braços de sua cadeira. Bond dirigiu-lhe um sorriso de conforto.

— Agora, por favor; — disse a irmã Rosa e inclinou-se sobre um comprido formulário impresso em papel caro. — Prometo ser o mais rápida que puder. O seu nome, sr... sr...

— Bryce, John Bryce.

Ela escreveu a resposta com grande concentração. — Endereço permanente?

— Aos cuidados do Jardim Zoológico Real, Regents Park, Londres, Inglaterra.

— Profissão?

— Ornitologista.

— Oh, meu Deus!, poderia o senhor soletrar isso? Bond atendeu-a.

— Muito obrigada. Agora, vejamos, objeto da viagem?

— Aves — respondeu Bond. — Sou também representante da Sociedade Audubon de Nova Iorque. Eles arrendaram parte desta ilha.

— Oh, sem dúvida. — Bond observou que a pena escrevia exatamente o que ele dizia. Depois da última palavra ela pôs um claro ponto de interrogação entre parênteses.

— E — a irmã Rosa sorriu polidamente em direção a Honeyehile — a sua esposa? Ela também está interessada em pássaros?

— Sim, sem dúvida.

— O seu primeiro nome?

— Honeyehile.

A irmã Rosa estava encantada. — Que nome lindo! — Ela voltou a escrever apressadamente. — E agora os parentes mais próximos de ambos, e estará tudo acabado.

Bond deu o verdadeiro nome de M como o parente mais próximo de ambos. Apresentou-o como “tio” e indicou o seu endereço como sendo “Diretor-Gerente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres.”

A irmã Rosa acabou de escrever e disse: — Pronto, está tudo feito. Muito obrigada, sr. Bryce, e espero que ambos apreciem a permanência aqui.

— Muito obrigado. Estou certo de que apreciaremos. — Bond levantou-se e Honeyehile fez o mesmo, ainda com expressão vazia.

A irmã Lírio disse: — Agora, venham comigo, queridos.

— Ela caminhou até uma porta na parede distante e deteve-se com a mão na maçaneta talhada em vidro. — Oh, meu Deus, — disse —, não é que agora me esqueci do número de seus quartos? É o apartamento creme, não é, irmã?

— Isso mesmo. Catorze e quinze.

— Obrigada, querida. E agora — ela abriu a porta — se vocês quiserem me seguir... Receio que seja uma caminhada um pouco longa. — Fechou a porta, por trás deles, e pôs-se à frente, indicando o caminho. — O Doutor tem falado várias vezes em instalar uma dessas escadas rolantes, ou algo de parecido, mas sabem como são os homens ocupados: — Ela riu alegremente. — Ele tem tantas outras coisas em que pensar!

— Sim, acredito, — disse Bond polidamente.

Bond tomou a mão da jovem e seguiram ambos a maternal e agitada chinesa através de cem metros de um alto corredor, do mesmo estilo da sala de recepção, mas que era iluminado a freqüentes intervalos por caros tubos luminosos fixados às paredes.

Bond respondia com polidos monossílabos aos comentários ocasionais que a irmã Lírio lhe lançava por sobre os ombros. Toda a sua mente se concentrava nas extraordinárias circunstâncias de sua recepção. Tinha certeza de que aquelas duas mulheres tinham sido sinceras. Nenhum só olhar ou palavra conseguira registrar que estivesse fora de propósito. Evidentemente aquilo era alguma espécie de fachada, mas de qualquer forma uma fachada sólida, meticulosamente apoiada pelo cenário e pelo elenco. A ausência de ressonância, na sala, e agora no corredor, estava a indicar que eles tinham deixado o galpão pré-fabricado para se internarem no flanco da montanha e agora estavam atravessando a sua base. Segundo o seu palpite estavam mesmo andando em direção oeste — em direção à penedia na qual terminava a ilha. Não havia umidade nas paredes e o ar parecia fresco e puro, com uma brisa a afagá-los. Muito dinheiro e uma bela realização de engenharia tinham sido os responsáveis por aquilo. A palidez das duas mulheres estava a sugerir que passavam a maior parte do tempo internadas no âmago da montanha. Do que a irmã dissera, parecia que elas faziam parte de um grupo de funcionários internos que nada tinham a ver com o destacamento de choque do exterior, e que talvez não soubessem a espécie de homens que eles eram.

Aquilo era grotesco, concluiu Bond ao se aproximar de uma porta, na extremidade do corredor, perigosamente grotesco, mas em nada adiantava pensar nisso no momento. Ele apenas podia seguir o papel que lhe tinha sido destinado. Pelo menos, aquilo era melhor do que os bastidores, na arena exterior da ilha.

Junto à porta, a irmã Lírio fez soar uma campainha. Já eram esperados e a porta abriu-se imediatamente. Uma encantadora jovem chinesa, de quimono lilás e branco, ficou a sorrir e a curvar-se, como se deve esperar que o façam as jovens chinesas. E, mais uma vez só havia calor e um sentimento de boas-vindas naquele rosto pálido como uma for. A irmã Lírio exclamou: — Aqui estão eles, finalmente, May! São o senhor e a senhora John Bryce. E sei que ambos devem estar exaustos, por isso devemos levá-los imediatamente aos seus aposentos, para que possam repousar e dormir. — Voltando-se para Bond: — Esta é May, muito boazinha. Ela tratará de ambos. Qualquer coisa que queiram é só tocar a campainha que May atenderá. É uma espécie de favorita de todos os nossos hóspedes.

Hóspedes!, pensou Bond. Essa é a segunda vez que ela usa a palavra. Sorriu polidamente para a jovem, e disse;

— Muito prazer; sim, certamente que gostaríamos de ir para os nossos aposentos.

May envolveu-os num cálido sorriso, e disse em voz baixa e atraente: — Espero que ambos se sintam bem, sr. Bryce. Tomei a liberdade de mandar vir uma refeição assim que soube que os senhores iam chegar. Vamos...? — Corredores saiam para a esquerda e a direita de portas duplas de elevadores, instalados na parede oposta. A jovem adiantou-se, caminhando na frente, para a direita, logo seguida de Bond e Honeyehile, que tinham atrás a irmã Lírio.

Ao longo do corredor, dos dois lados, viam-se portas numeradas. A decoração era feita no mais pálido cor-de-rosa, com um tapete cinza-pombo. Os números nas portas eram superiores a dez. O corredor terminava abruptamente, com duas portas, uma em frente a outra, com a numeração catorze e quinze. A irmã May abriu a porta catorze e o casal a seguiu, entrando na peça.

Era um lindo quarto de casal, em moderno estilo Mia-mi, com paredes verde-escuro, chão encerado de mogno escuro, com um ou outro espesso tapete branco e bem desenhado mobiliário de bambu com um tecido “chintz” de grandes rosas vermelhas sobre fundo branco. Havia uma porta de comunicação para um quarto de vestir masculino e outra que dava para um banheiro moderno e extremamente luxuoso, com uma banheira de descida e um bidê.

Era como se tivessem sido introduzidos num apartamento do mais moderno hotel da Flórida, com exceção de dois detalhes que não passaram despercebidos a Bond. Não havia janelas e nenhuma maçaneta interior nas portas.

May olhou com expressão de expectativa, de um para o outro.

Bond voltou-se para Honeyehile e sorriu-lhe: — Parece muito confortável, não acha, querida?

A jovem brincava com a barra da saia e fez um sinal de assentimento sem olhar para Bond.

Ouviu-se uma tímida batida na porta e outra jovem, tão linda quanto May, entrou carregando uma bandeja que se equilibrava sobre as palmas das mãos. A jovem descansou a bandeja sobre a mesa do centro e puxou duas cadeiras. Retirou a toalha de linho imaculadamente limpa e saiu. Sentiu-se um delicioso cheiro de fiambre e café.

May e a irmã Lírio também se encaminharam para a porta. A mulher mais idosa se deteve por um instante e disse:

— E agora nós os deixaremos em paz. Se desejarem alguma coisa, basta tocar a campainha. Os interruptores estão ao lado da cama. Ah, outra coisa, poderão encontrar roupa limpa nos aparadores. Receio que sejam apenas de estilo chinês,

— acrescentou, como a desculpar-se —, mas espero que os tamanhos satisfaçam. A rouparia só recebeu as medidas ontem à noite. O Dr. deu ordens severas para que os senhores não fossem perturbados. Ficará encantado se puderem reunir-se a ele, esta noite, para o jantar. Deseja, entretanto, que tenham todo o resto do dia à vontade, a fim de que melhor se ambientem, compreendem? — Fez uma pausa e olhou para um e para outro, com um sorriso indagador. — Posso dizer que os senhores...?

— Sim, por favor, — disse Bond. — Pode dizer ao D., que teremos muito prazer em jantar com ele.

— Oh, sei que ficará contente. — Com uma derradeira mesura, as duas chinesas se retiraram e fecharam a porta.

Bond voltou-se para Honeyehile, que parecia embaraçada e ainda evitava os seus olhos. Ocorreu então a Bond que talvez jamais tivesse ela tido um tratamento tão cortês ou visto tanto luxo em sua vida. Para ela, tudo aquilo devia ser muito mais estranho e aterrador do que o que tinham passado ao lado de fora. Ela continuou na mesma posição, brincando com a barra da saia. Podiam-se notar vestígios de suor seco, sal e poeira em seu rosto. Suas pernas nuas estavam sujas e Bond observou que os dedos de seus pés se moviam, suavemente, ao pisarem nervosamente o maravilhoso e espesso tapete.

Bond riu. Riu com gosto ao pensamento de que os temores da jovem tivessem sido abafados pelas preocupações de etiqueta e comportamento, e riu-se também da figura que ambos faziam — ela em farrapos e ele com a suja camisa azul, as calças pretas e os sapatos de lona enlameados.

Aproximou-se dela e segurou-lhe mãos. Estavam frias. Disse: — Honey, somos um par de espantalhos, mas há apenas um problema básico. Devemos tomar o nosso desjejum primeiro, enquanto está quente, ou tiraremos antes esses farrapos e tomaremos um banho, tomando a nossa refeição fria? Não se preocupe com mais nada. Estamos aqui nessa maravilhosa casinha e isto é tudo o que importa. O que faremos, então?

Ela sorriu hesitante. Seus olhos azuis fixavam-se no rosto dele, na ânsia de obter segurança. Depois disse: — Você não está preocupado com o que nos possa acontecer? — Fez um sinal para o quarto e acrescentou: — Não acha que tudo isso pode ser uma armadilha?

— Se se trata de uma armadilha, já caímos nela. Agora nada mais podemos fazer senão comer a isca. A única questão que subsiste é a de saber se a comeremos quente ou fria. — Apertou-lhe as mãos e continuou: — Seriamente, Honey. Deixe as preocupações comigo. Pense apenas onde estávamos apenas há uma hora. Isso aqui não é melhor? Agora, decidamos a única coisa realmente importante. Banho ou desjejum?

Ela respondeu com relutância: — Bem, se você acha... Quero dizer — preferiria antes lavar-me. — Mas logo acrescentou: — Você terá que ajudar-me. — E sacudiu a cabeça em direção ao banheiro, dizendo: Não sei como mexer numa coisa dessas. Como é que se faz?

Bond respondeu com toda seriedade: — É muito fácil. Vou preparar tudo para você. Enquanto você estivar tomando o seu banho tomarei o meu desjejum. Ao mesmo tempo tratarei de fazer com que o seu não esfrie.

Bond aproximou-se de um dos armários embutidos e abriu a porta. No interior havia uma meia dúzia de quimonos, alguns de seda e outros de linho. Apanhou um de linho, ao acaso. Depois, voltando-se para ela, disse: — Tire suas roupas e meta-se nisso aqui, enquanto preparo o seu banho. Mais tarde você escolherá as coisas que preferir, para a cama e para o jantar.

Ela respondeu com gratidão: — Oh, sim, James. Se você apenas me mostrasse... — E logo começou a desabotoar a saia.

Bond pensou em tomá-la nos braços e beijá-la, mas, ao invés disso, disse abruptamente: — ótimo, Honey — e, adiantando-se para o banheiro, abriu as torneiras.

Havia de tudo naquele banheiro: essência para banhos Floris Lime, para homens, e pastilhas de Guarlain para o banho de senhoras. Esfarelou uma pastilha na água e imediatamente o banheiro perfumou-se como uma loja de orquídeas. O sabonete era o Sapoceti de Guarlain “Fleurs des Alpes”. Num pequeno armário de remédios, atrás de um espelho, em cima da pia, podiam-se encontrar tubos de pasta, escovas de dente e palitos “Steradent”, água “Rose” para lavagem bucal, aspirina e leite de magnésia. Havia também um aparelho de barbear elétrico, loção “Lentheric” para barba, e duas escovas de náilon para cabelos e pentes. Tudo era novo e ainda não tinha sido tocado.

Bond olhou para o seu rosto sujo e sem barbear, no espelho, e riu sardonicamente para os próprios olhos, cinzentos, de pária queimado pelo sol. O revestimento da pílula certamente que era do melhor açúcar. Seria inteligente esperar que o remédio, no interior daquela pílula, fosse dos mais amargos.

Tocou a água, com a mão, a fim de sentir a temperatura. Talvez estivesse muito quente para quem jamais tinha tomado antes um banho quente. Deixou então que corresse um pouco mais de água fria. Ao inclinar-se, sentiu que dois braços lhe eram passados em torno do pescoço. Endireitou-se. Aquele corpo dourado resplandecia no banheiro todo revestido de ladrilhos brancos. Ela beijou-o impetuosamente nos lábios. Ele passou-lhe os braços à volta da cintura e esmagou-a de encontro a seu corpo, com o coração aos pulos. Ela disse sem fôlego, ao seu ouvido: — Achei estranhas as roupas chinesas, mas de qualquer maneira você disse à mulher que nós éramos casados.

Uma das mãos de Bond estava pousada sobre o seu seio esquerdo, cujo mamilo estava completamente endurecido pela paixão. O ventre da jovem se comprimia contra o seu. Por que não? Por que não? Não seja tolo! Este é um momento louco para isso. Vocês dois estão diante de um perigo mortal. Você deve continuar frio como gelo, para ter alguma possibilidade de se livrar dessa enrascada. Mais tarde! Mais tarde! Não seja fraco.

Bond retirou a mão do seio dela e espalmou-a à volta de seu pescoço. Esfregou o rosto de encontro ao dela e depois aproximou a boca da boca da jovem e deu-lhe um prolongado beijo.

Afastou-se depois e manteve-a à distância de um braço. Por um momento ambos se olharam, com os olhos brilhando de desejo. Ela respirava ofegantemente, com os lábios entreabertos, de modo que ele podia ver-lhe o brilho dos dentes. Ele disse com a voz trêmula: — Honey, entre no banho antes que eu lhe dê uma surra.

Ela sorriu e sem nada dizer entrou na banheira e deitou-se em todo seu comprimento. Do fundo da banheira ergueu os olhos para ele. Os cabelos louros, em seu corpo, brilhavam como moedas de ouro. Ela disse provocadoramente: — Você tem que me esfregar. Não sei como devo fazer, e você terá que mostrar-me.

Bond respondeu desesperadamente: — Cale a boca, Honey, e deixe de namoros. Apanhe a esponja, o sabonete e comece logo a se esfregar. Que diabo! Isso não é o momento de se fazer amor. Vou tomar o meu desjejum. — Esticou a mão para a porta e segurou na maçaneta. Ela disse docemente: — James! — Ele olhou para trás e viu que ela lhe fazia uma careta, com a língua de fora. Retribuiu com uma careta selvagem e bateu a porta com força.

Em seguida, Bond dirigiu-se para o quarto de vestir e deixou-se ficar durante algum tempo, de pé, no centro da peça, esperando que as batidas de seu coração se acalmassem. Esfregou as mãos no rosto e sacudiu a cabeça, procurando esquecê-la.

Para clarear a mente, percorreu ainda cuidadosamente as duas peças, procurando saídas, possíveis armas, microfones, qualquer coisa enfim que lhe aumentasse o conhecimento da situação em que se achava. Nada disso, entretanto, pôde encontrar. Na parede havia um relógio elétrico que marcava oito e meia e uma série de botões de campainhas, ao lado da cama de casal. Esses botões traziam a indicação de “Sala de serviço”, “cabeleireiro”, “manicure”, “empregada”. Não havia telefone. Bem no alto, a um canto de ambas as peças, viam-se as grades de um pequeno ventilador. Cada uma dessas grades era de dois pés quadrados. Tudo inútil. As portas pareciam ser feitas de algum metal leve, pintadas para combinarem com as paredes. Bond jogou todo o peso de seu corpo contra uma delas, mas ela não cedeu um só milímetro. Bond esfregou o ombro. Aquele lugar era uma verdadeira prisão. Não adiantava discutir a situação. A armadilha tinha-se fechado hermèticamente sobre eles. Agora, a única coisa que restava aos ratos era tirarem o melhor proveito possível da isca de queijo.

Bond sentou-se à mesa do desjejum, sobre a qual estava uma grande jarra com suco de abacaxi, metida num pequeno balde de prata cheio de cubos de gelo. Serviu-se rapidamente e levantou a tampa de uma travessa. Ali estavam ovos mexidos sobre torradas, quatro fatias de toucinho defumado, um rim grelhado e o que parecia quatro salsichas inglesas de carne de porco. Havia também duas torradas quentes, pãezinhos conservados quentes dentro de guardanapos, geléia de laranja e morango e mel. O café estava quase fervendo numa grande garrafa térmica, e o creme exalava um odor fresco e agradável.

Do banheiro vinham as notas da canção “Marion” que a jovem estava cantarolando. Bond resolveu não dar ouvidos à cantoria e concentrou-se nos ovos.

Dez minutos depois, Bond ouviu que a porta do banheiro se abria. Descansou uma torrada que tinha numa das mãos e cobriu os olhos com a outra. Ela riu e disse: — Ele é um covarde. Tem medo de uma simples jovem. — Em seguida Bond ouviu-a a remexer nos armários. Ela continuava falando, em parte consigo mesma: — Não sei porque ele está assustado. Naturalmente que se eu lutasse com ele facilmente o dominaria. Talvez esteja com medo disso. Talvez não seja realmente muito forte, embora seus braços e peito pareçam bastante rijos. Contudo, ainda não vi o resto. Talvez seja fraco. Sim, deve ser isso. Essa é a razão pela qual não ousa despir-se na minha frente. Hum, agora vamos ver, será que ele gostaria de mim com essas roupas? — Ela elevou a voz: — Querido James, você gostaria de me ver de branco, com pássaros azul-pálido esvoaçando sobre o meu corpo?

— Sim, bolas! Agora acabe com essa conversa e venha comer. Estou começando a sentir sono.

Ela soltou uma exclamação: — Oh, se você quer dizer que já está na hora de irmos para a cama, naturalmente que me apressarei.

Ouviu-se uma agitação de passos apressados e Bond logo a via sentar-se diante de si. Ele deixou cair as mãos e ela sorriu-lhe. Estava linda. Seu cabelo estava escovado e penteado de um dos lados caindo sobre o rosto, e do outro com as madeixas puxadas para trás da orelha. Sua pele brilhava de frescura e os grandes olhos azuis resplandeciam de felicidade. Agora Bond estava gostando daquele nariz quebrado. Tinha-se tornado parte de seus pensamentos relativamente a ela, e subitamente lhe ocorreu perguntar-se por que estaria ele triste quando ela era tão imaculadamente bela quanto tantas outras lindas jovens. Sentou-se circunspectamente, com as mãos no colo, e a metade dos seios aparecendo na abertura do quimono.

Bond disse severamente: — Agora, ouça, Honey. Você está maravilhosa, mas esta não é a maneira de usar-se um quimono. Feche-o no corpo, prenda-o bem e deixe de tentar parecer uma prostituta. Isso simplesmente não são bons modos à mesa.

— Oh, você não passa de um boneco idiota. — E ajeitou o quimono, fechando-o um pouco, em uma ou duas polegadas. — Por que você não gosta de brincar? Gostaria de brincar de estar casada.

— Não à hora do desjejum — respondeu Bond com firmeza. — Vamos, coma logo. Está delicioso. De qualquer maneira estou muito sujo, e agora vou fazer a barba e tomar um banho. — Levantou-se, deu volta à mesa e beijou-lhe o alto da cabeça. — E quanto a essa história de brincar, como você diz, gostaria mais de brincar com você do que com qualquer outra pessoa do mundo. Mas não agora. — Sem esperar pela resposta, dirigiu-se ao banheiro e fechou a porta.

Bond barbeou-se e tomou um banho de chuveiro. Sentia-se desesperadamente sonolento. O sono chegava-lhe, de modo que de quando em quando tinha que interromper o que fazia e inclinar a cabeça, repousando-a entre os joelhos. Quando começou a escovar os dentes, o seu estado era tal que mal podia fazê-lo. Estava começando a reconhecer os sintomas. Tinha sido narcotizado. A coisa teria sido posta no suco de abacaxi ou no café? Este era um detalhe sem importância. Aliás, nada tinha importância. Tudo o que queria fazer era estender-se naquele chão de ladrilhos e fechar os olhos. Assim mesmo, dirigiu-se cambaleante para a porta, esquecendo-se de que estava nu. Isso também pouca importância tinha. A jovem já tinha terminado a refeição e agora estava na cama. Continuou trôpego, até ela, segurando-se nos móveis. O quimono tinha sido abandonado no chão e ela dormia pesadamente, completamente nua, sob um simples lençol.

Bond olhou para o travesseiro, ao lado da jovem. Não! Procurou o interruptor e apagou as luzes. Agora teve que se arrastar pelo chão até chegar ao seu quarto. Chegou até junto de sua cama e atirou-se nela. Com grande esforço conseguiu ainda esticar o braço, tocar o interruptor e tentar apagar a lâmpada do criado-mudo. Mas não o conseguiu: sua mão deslizou, atirou o abajur ao chão e a lâmpada espatifou-se. Com um derradeiro esforço, Bond virou-se ainda no leito e adormeceu profundamente.

Os números luminosos do relógio elétrico, no quarto de casal, anunciavam nove e meia.

Às dez horas, a porta do quarto abriu-se suavemente. Um vulto muito alto e magro destacava-se na luz do corredor. Era um homem. Talvez tivesse dois metros de altura. Permaneceu no limiar da porta, com os braços cruzados, ouvindo. Dando-se por satisfeito, caminhou vagarosamente pelo quarto e aproximou-se da cama. Conhecia perfeitamente o caminho. Curvou-se sobre o leito e ouviu a serena respiração da jovem. Depois de um momento, tocou em seu próprio peito e acionou um interruptor. Imediatamente um amplo feixe de luz difusa projetou-se na cama. O farolete estava preso ao corpo do homem por meio de um cinto que o fixava à altura do esterno.

Inclinou-se novamente para a frente, de modo que a luz clareou o rosto da jovem.

O intruso examinou aquele rosto durante alguns minutos. Uma de suas mãos avançou, apanhou a orla do lençol, à altura do queixo da jovem, e puxou-o lentamente até os pés da cama. Mas a mão que puxara aquele lençol não era u’a mão. Era um par de pinças de aço muito bem articuladas na extremidade de uma espécie de talo metálico que desaparecia dentro de uma manga de seda negra. Era u’a mão mecânica.

O homem contemplou durante longo tempo aquele corpo nu, deslocando o seu peito de um lado para outro, de modo que todo o leito fosse submetido ao feixe luminoso. Depois, a garra saiu novamente de sob aquela manga e delicadamente levantou a ponta do lençol, puxando-o dos pés da cama até recobrir todo o corpo da jovem. O homem demorou-se ainda por um momento a contemplar o rosto adormecido, depois apagou o farolete e atravessou silenciosamente o quarto em direção à porta aberta, além da qual estava Bond dormindo.

O homem demorou-se mais tempo ao lado do leito de Bond. Perscrutou cada linha, cada sombra do rosto moreno e quase cruel que jazia quase sem vida, sobre o travesseiro. Observou a circulação à altura do pescoço e contou-lhe as batidas; depois, quando puxou o lençol para baixo, fez o mesmo na área do coração. Estudou a curva dos músculos, nos braços de Bond e nas coxas, e considerou pensativo a força oculta no ventre musculoso de Bond. Chegou até mesmo a curvar-se sobre a mão direita de Bond, estudando-lhe cuidadosamente as linhas da vida e do destino.

Por fim, com grande cuidado, a pinça de aço puxou novamente o lençol, desta vez para cobrir o corpo de Bond até o pescoço. Por mais um minuto o elevado vulto permaneceu ao lado do homem adormecido, depois se retirou rapidamente, ganhando o corredor, enquanto a porta se fechava com um estalido metálico e seco.


CONTINUA

XI - VIDA NO CANAVIAL


Seriam cerca de oito horas, pensou Bond. A não ser o coaxar dos sapos, tudo estava mergulhado em silêncio. No canto mais distante da clareira, ele podia vislumbrar o vulto de Quarrel.

Podia-se ouvir o tinir metálico, enquanto ele se ocupava em desmontar e secar a sua “Remington”.

Por entre as árvores podiam-se ver também as luzes distantes, vindas do depósito de guano, riscar caminhos luminosos e festivos sobre a superfície escura do lago. O desagradável vento desaparecera e o abominável cenário estava mergulhado em trevas. Estava bastante fresco. As roupas de Bond tinham secado no corpo. A comida tinha aquecido o seu estômago. Ele experimentou uma agradável sensação de conforto, sonolência e paz. O dia seguinte ainda estava muito longe e não apresentava problemas, a não ser uma boa dose de exercício físico. A vida, subitamente, pareceu-lhe fácil e boa.

A jovem estava a seu lado, metida no saco de dormir. Estava deitada de costas, com a cabeça descansando nas mãos, e olhando para o teto de estrelas. Ele apenas conseguia divisar os pálidos contornos de seu rosto. De repente, ela disse: James, você prometeu dizer-me o que significava tudo isso. Vamos. Eu não dormirei enquanto você não o disser.

Bond riu. — Eu direi se você também disser. Também quero saber o que você pretende.

— Pois não, não tenho segredos: mas você deve falar primeiro.

— Está certo. — Bond puxou os joelhos até a altura do queixo e passou os braços à volta deles. — Eu sou uma espécie de policial. Eles me enviam de Londres quando há alguma coisa de estranho acontecendo em alguma parte do mundo e que não interessa a ninguém. Bem, não faz muito tempo, um dos funcionários do Governador, em Kingston, um homem chamado Strangways, aliás meu amigo, desapareceu. Sua secretária, que era uma linda jovem, também desapareceu sem deixar vestígios. Muitos pensaram que eles tivessem fugido juntos, mas eu não acreditei nisso. Eu...”

Bond contou tudo com simplicidade, falando em homens bons e maus, como numa história de aventuras lida em algum livro. Depois terminou: Como você vê, Honey, temos de voltar a Jamaica, amanhã à noite, todos nós, na canoa, e então o Governador nos dará ouvidos e enviará um destacamento de soldados para apanhar este chinês. Espero que isso terá como conseqüência levá-lo à prisão. Ele com certeza também sabe disso, e essa é a razão pela qual procura aniquilar-nos. Essa é a história. Agora é a sua vez.

A jovem disse: Você parece viver uma vida muita excitante. Sua mulher não deve gostar que você fique fora tanto tempo. Ela não tem medo de que você se fira?

— Não sou casado. A única que se preocupa com a possibilidade de que eu me fira é a minha companhia de seguros.

Ela continuou sondando: Mas suponho que você tenha namoradas.

— Não permanentes.

— Oh!

Fez-se uma pausa. Quarrel se aproximou e disse: “Capitão, farei o primeiro quarto, se for melhor. Estarei na extremidade da restinga e virei chamá-lo à meia-noite. Então talvez o senhor possa ir até as cinco horas, quando nós nos poremos em marcha. Precisamos estar fora daqui antes que clareie o dia.

— Está bem — respondeu Bond. — Acorde-me se você vir alguma coisa. O revólver está em ordem?

— Perfeito — respondeu Quarrel com evidente mostra de contentamento. Depois, dirigindo-se à jovem disse com leve tom de insinuação: — Durma bem, senhorita. Em seguida, desapareceu silenciosamente nas sombras.

— Gosto de Quarrel — disse a jovem. E, após uma pausa: — Você quer realmente saber alguma coisa a meu respeito? A história não é tão excitante quanto a sua.

— É claro que quero. E não omita nada.

— Não há nada a omitir. Você poderia escrever toda a história de minha vida nas costas de um cartão postal. Para começar, nunca saí de Jamaica. Vivi toda a minha vida num lugar chamado Beau Desert, na costa setentrional, nas proximidades do Porto Morgan.

Bond riu. — É estranho: posso dizer o mesmo; pelo menos por enquanto. Não notei você pela região. Você vive em cima de uma árvore?

— Ah, imagino que você tenha ficado na casa da praia. Eu nunca chego até ali. Vivo na Casa Grande.

— Mas nada ficou dela. É uma ruína no meio dos canaviais.

— Eu vivo na adega. Tenho vivido ali desde a idade de cinco anos. Depois a casa se incendiou e meus pais morreram. Nada me lembro deles, por isso você não precisa manifestar pesar. A princípio vivi ali com a minha ama negra, mas depois ela morreu, quando eu tinha apenas quinze anos. Nos últimos cinco anos tenho vivido ali sozinha.

— Nossa Senhora! — Bond estava boquiaberto. — Mas não havia ninguém para tomar conta de você? Os seus pais não deixaram nenhum dinheiro?

— Nem um tostão. — Não havia o mínimo traço de amargura na voz da jovem — talvez orgulho, se houvesse alguma coisa. — Você sabe, os Riders eram uma das mais antigas famílias de Jamaica. O primeiro Rider recebera de Cromwell as terras de Beau Desert, por ter sido um dos que assinaram o veredicto de morte contra o rei Carlos. Ele construiu a Casa Grande e minha família viveu ora nela ora fora dela, desde aquela época. Mas depois veio a decadência do açúcar e eu acho que a propriedade foi pessimamente administrada, e, ao tempo em que meu pai tomou conta da herança, havia somente dívidas — hipotecas e outros ônus. Assim, quando meu pai e minha mãe morreram a propriedade foi vendida. Eu pouco me importei, pois era muito jovem. Minha ama deve ter sido maravilhosa. Quiseram que alguém me adotasse, mas a minha babá reuniu os pedaços de mobília que não tinham sido queimados e com eles nós nos instalamos da melhor forma no meio daquelas ruínas. Depois de algum tempo ninguém mais veio interferir conosco. Ela cosia um pouco e lavava para algumas freguesas da aldeia, ao mesmo tempo que plantava bananas e outras coisas, sem falar do grande pé de fruta-pão que havia diante da casa. Comíamos o que era a ração habitual do povo de Jamaica. E havia os pés de cana-de-açúcar à nossa volta. Ela fizera também uma rede para apanhar peixes, a qual nós recolhíamos todos os dias. Tudo corria bem e nós tínhamos o suficiente para comer. Ela ensinou-me a ler e escrever, como pôde. Tínhamos uma pilha de velhos livros que escapara ao incêndio, inclusive uma enciclopédia. Comecei com o A quando tinha apenas oito anos, e cheguei até o meio do T. — Ela disse um tanto na defensiva: — Aposto que sei mais do que você sobre muitas coisas.

— Estou certo de que sim. — Bond estava perdido na visão daquela jovem de cabelos de linho errando pelas ruínas de uma grande construção, com uma obstinada negra a vigiá-la e a chamá-la para receber as lições que deveriam ter sido um mistério para ela mesma. — Sua ama deve ter sido uma criatura extraordinária.

— Ela era um amor. — Era uma afirmação peremptória. — Pensei que fosse morrer quando ela faleceu. As coisas não foram tão fáceis para mim depois disso. Antes eu levava uma vida de criança, mas subitamente tive que crescer e fazer tudo por mim mesma. E os homens tentaram apanhar-me e atingir-me. Diziam que queriam fazer amor comigo. — Fez uma pausa e acrescentou: — Eu era bonita naquela época. Bond disse muito sério:

— Você é uma das jovens mais belas que já vi.

— Com este nariz? Não seja tolo.

— Você não compreende. — Bond tentou encontrar palavras nas quais ela pudesse crer. — É claro que qualquer pessoa pode ver que o seu nariz está quebrado; mas desde esta manhã dificilmente eu pude notá-lo. Quando se olha para uma pessoa, olha-se para os seus olhos ou para a sua boca. Nesses dois pontos se encontram a expressão. Um nariz quebrado não tem maior significação do que uma orelha torta. Narizes e orelhas são peças do mobiliário facial. Algumas são mais bonitas do que outras, mas não são tão importantes quanto o resto. Se você tivesse um nariz bonito, tão bonito como o resto, você seria a jovem mais bela de Jamaica.

— Você é sincero? — Sua voz era ansiosa. — Você acha que eu poderia ser bela? Sei que muita coisa em mim está bem, mas quando olho no espelho só vejo o meu nariz quebrado. Estou certa de que o mesmo ocorre com outras pessoas que são, que são — bem — mais ou menos aleijadas.

Bond disse com impaciência: — Você não é aleijada! Não diga tolices. E aliás você pode endireitá-lo mediante uma simples operação. Basta que você vá aos Estados Unidos e a coisa levará apenas uma semana.

Ela disse com irritação: — Como é que você quer que eu faça isso? Tenho cerca de quinze libras debaixo de uma pedra, na minha adega. Tenho ainda três saias, três blusas, uma faca e uma panela de peixe. Conheço muito bem essas operações. O médico de Porto Maria já pediu informações para mim. Ele é um homem muito bom e escreveu para os Estados Unidos. Pois para que a operação seja bem feita, eu teria que gastar cerca de quinhentas libras, sem falar da passagem para Nova York, a conta do hospital e tudo o mais.

Sua voz tornou-se desesperançada: — Como é que você espera que eu possa ter todo esse dinheiro?

Bond já decidira sobre o que teria de ser feito, mas no momento apenas disse ternamente: — Bem, espero que se possam encontrar meios; mas, de qualquer maneira, prossiga com a sua história. Ela é muito excitante — muito mais interessante do que a minha. Você tinha chegado ao ponto em que a sua ama morreu. O que aconteceu depois?

A jovem recomeçou com relutância.

— Bem, a culpa é sua por ter interrompido. E você não deve falar de coisas que não compreende. Suponho que as pessoas lhe digam que você é simpático. Você deve também ter todas as namoradas que desejar. Bem, isso não aconteceria se você fosse vesgo ou tivesse um lábio leporino. — Na verdade, ele pôde ouvir o sorriso em sua voz: — Acho que quando voltarmos eu irei ter com o feiticeiro para que lhe faça uma mandinga e lhe dê alguma coisa assim. — E ela acrescentou tristemente: — Dessa forma, nós seremos mais parecidos.

Bond estendeu o braço e sua mão tocou nela: — Eu tenho outros planos. Mas continuemos, quero ouvir o resto da sua história.

— Bem, — disse a jovem com um suspiro. — Eu terei que me atrasar um pouco. Como você sabe, toda a propriedade é representada pela cana-de-açúcar e pela velha casa que está situada no meio da plantação. Bem, umas duas vezes por ano eles cortam a cana e mandam-na para o moinho. E quando eles o fazem, todos os animais e insetos que vivem nos canaviais entram em pânico e a maioria deles têm as suas tocas destruídas e são mortos. Na época da safra, alguns deles começaram a vir para as ruínas da casa, onde se escondiam. No princípio, minha babá ficava aterrorizada, pois lá vinham os mangustos, as cobras e os escorpiões, mas eu preparei dois quartos da adega para recebê-los. Não me assustei com eles, e eles nunca me fizeram mal. Pareciam compreender que eu estava cuidando deles. E devem ter contado aquilo aos seus amigos, ou alguma coisa parecida, pois depois de algum tempo era perfeitamente natural que todos viessem acantonar-se em seus dois quartos, onde ficavam até que os canaviais começassem novamente a crescer, quando então iam saindo e voltando para os campos. Dei-lhes toda a comida que podíamos pôr de lado, quando eles ficavam conosco, e todos se portavam muito bem, a não ser por algum odor e às vezes uma ou outra luta entre si. Mas eram muito mansos comigo. Naturalmente os cortadores de cana perceberam tudo e viam-me andando pelo lugar com cobras à volta do meu pescoço, e assim por diante, a ponto de ficarem aterrorizados comigo e me considerarem uma feiticeira. Por causa disso, eles nos deixaram completamente isoladas. Ela fez uma pausa, e depois recomeçou:

— Foi assim que aprendi tanta coisa sobre animais e insetos. Eu costumava ainda passar muito tempo no mar, aprendendo coisas sobre os animais marinhos, assim como sobre os pássaros. Se se chega a saber o que todas essas criaturas gostam de comer e do que têm medo, pode-se muito bem fazer amizade com elas. — Levantou os olhos para Bond e disse: Você não sabe o que perde ignorando todas essas coisas.

— Receio que perca muito — respondeu Bond com sinceridade. — Suponho que eles sejam muito melhores e mais interessantes que os homens.

Sobre isso nada sei — respondeu a jovem pensativa-mente. — Não conheço muitas pessoas. A maioria das que conheci foram detestáveis, mas acho que deve haver criaturas interessantes também. — Fez uma pausa, e prosseguiu: — Nunca pensei realmente que chegasse a gostar de alguma pessoa como gosto dos animais. Com exceção da babá, naturalmente. Até que... — Ela se interrompeu com um sorriso de timidez. — Bem, de qualquer forma, nós vivemos muito felizes juntas, até que eu fiz quinze anos, quando então a babá morreu e as coisas se tornaram muito difíceis. Havia um homem chamado Mander. Um homem horroroso. Era o capataz branco que servia aos proprietários da plantação. Ele vivia me procurando. Queria que eu fosse viver com ele, em sua casa de Porto Maria.

Eu o odiava, e costumava esconder-me sempre que ouvia o seu cavalo aproximando-se do canavial. Certa noite ele veio a pé e eu não o ouvi. Estava bêbado. Entrou na adega e lutou comigo porque não queria fazer o que ele desejava. Você sabe, as coisas que fazem as pessoas quando estão apaixonadas.

— Sim, já sei.

— Tentei matá-lo com a minha faca, mas ele era muito forte e deu-me um soco tão forte no rosto que me quebrou o nariz. Deixou-me inconsciente e acho que fez alguma coisa comigo. Sei que ele fez mesmo. No dia seguinte eu quis me matar quando vi o meu rosto e verifiquei o que ele me havia feito. Pensei que iria ter um filho. Teria sem dúvida me matado se tivesse tido um filho daquele homem. Em todo caso, não tive, e tudo continuou assim. Fui ao médico e ele fez o que pôde com o meu nariz e não me cobrou nada. Quanto ao resto, eu nada lhe contei, pois estava muito envergonhada. O homem não voltou mais. Eu esperei e nada fiz até a próxima colheita de cana-de-açúcar. Tinha um plano. Estava esperando que as aranhas viúvas-negras viessem procurar abrigo. Um belo dia elas chegaram. Apanhei a maior das fêmeas e á deixei numa caixa sem nada para comer. As fêmeas são terríveis. Então esperei que fizesse uma noite escura, sem luar. Na primeira noite dessas, apanhei a caixa com a aranha e caminhei até chegar à casa do homem. Estava muito escuro e eu me sentia aterrorizada com a possibilidade de encontrar algum assaltante pela estrada, mas não houve nada. Esperei em seu jardim, oculta entre os arbustos, até que ele se recolheu à cama. Então subi por uma árvore e ganhei a sacada; aguardei até que ele começasse a roncar e depois entrei pela janela. Ele estava nu, estendido na cama, sob o mosquiteiro. Levantei uma aba do filó, abri a caixa e sacudi-lhe a aranha sobre o ventre. Depois saí e voltei para casa.

— Deus do céu! — exclamou Bond reverentemente. — O que aconteceu com o homem?

Ela respondeu com satisfação: — Levou uma semana para morrer. Deve ter-lhe doído terrivelmente. Você sabe, a mordida dessa aranha é pavorosa. Os feiticeiros dizem que não há nada que se lhe compare. — Ela fez uma pausa, e como Bond não fizesse nenhum comentário, acrescentou: — Você não acha que eu fiz mal, não é?

— Bem, não faça disso um hábito — respondeu Bond suavemente. — Mas não posso culpá-la, diante do que ele tinha feito. E, depois, o que aconteceu?

— Bem, depois me estabeleci novamente — sua voz era firme. — Tive que me concentrar na tarefa de obter alimento suficiente, e naturalmente. — Acrescentou persuasivamente: — Eu tinha de fato um nariz muito bonito, antes. Você acha que os médicos podem torná-lo igualzinho ao que era antes?

— Eles poderão fazê-lo de qualquer forma que você quiser — disse Bond em tom definitivo. — Como é que você ganhou dinheiro?

— Foi graças à enciclopédia. Li nela que há pessoas que gostam de colecionar conchas marinhas e que as conchas raras podiam ser vendidas. Falei com o mestre-escola local, sem contar-lhe naturalmente o meu segredo, e ele descobriu para mim que havia uma revista norte-americana chamada “Nautilus”, dedicada aos colecionadores de conchas. Eu tinha apenas o dinheiro suficiente para tomar uma assinatura daquela revista e comecei a procurar as conchas que as pessoas pediam em seus anúncios. Escrevi a um comerciante de Miami e ele começou a comprar as minhas conchas. Foi emocionante. Naturalmente que cometi alguns erros, no princípio. Pensei, por exemplo, que as pessoas gostariam das conchas mais bonitas, mas esse não era o caso. Freqüentemente elas preferiam as conchas mais feias. Depois, quando achava conchas raras, punha-me a limpá-las e poli-las a fim de torná-las mais bonitas, mas isso também foi um erro. Os colecionadores querem as conchas exatamente como saem do mar, com o animal em seu interior também. Então consegui algum formol com o médico e o punha entre as conchas vivas, para que elas não tivessem mau cheiro, e depois mandava-as para o tal comerciante de Miami. Só aprendi bem o negócio de um ano para cá e já consegui quinze libras. Consegui esse resultado agora que sei como é que eles querem as conchas e se tivesse sorte, poderia fazer pelo menos cinqüenta libras por ano. Então, em dez anos poderia ir aos Estados Unidos e operar-me. Mas, continuou ela com intenso contentamento, tive uma notável maré de sorte. Fui a Crab Key pelo Natal, onde já tinha estado antes. Mas dessa vez eu encontrei essas conchas purpúreas. Não parecem grande coisa, mas eu enviei uma ou duas para Miami e o comerciante escreveu-me para dizer que compraria tantas dessas conchas quantas eu pudesse encontrar, e ao preço de até cinco dólares pelas perfeitas. Disse-me ainda que eu deveria manter segredo sobre o lugar de onde as tirava, pois de outra forma o “mercado seria estragado”, como disse ele, e os preços cairiam. É como se se tivesse uma mina de ouro particular. Agora serei capaz de juntar o dinheiro em cinco anos. Esse foi o motivo pelo qual tive grandes suspeitas de você, quando o encontrei na praia. Pensei que você tivesse vindo para roubar as minhas conchas.

— Você me deu um susto, pois pensei que você fosse a garota do Dr. No.

— Muito obrigada.

— Mas depois que você tiver feito a operação, o que irá fazer? Você não pode continuar vivendo numa adega durante toda a vida.

— Pensei em me tornar uma prostituta. — Ela o disse como se tivesse dito “enfermeira” ou “secretária”.

— Oh, o que é que você quer dizer com isso? — Talvez ela já tivesse ouvido aquela expressão sem compreendê-la bem.

— Uma dessas jovens que possuem um bonito apartamento e lindas roupas. Você sabe o que quero dizer — acrescentou ela com impaciência. — Os homens telefonam, marcam encontro, chegam, fazem amor e pagam. Elas ganham cem dólares de cada vez, em Nova Iorque, onde pensei começar. Naturalmente — admitiu — terei de fazer por menos, no começo, até que aprenda a trabalhar bem. Quanto é que vocês pagam pelas que não têm experiência?

Bond riu. — Francamente, não me lembro. Há muito tempo que não me encontro com essas mulheres.

Ela suspirou. — Sim, suponho que você possa ter tantas mulheres quantas queira, por nada. Suponho que apenas os homens feios paguem, mas isso é inevitável. Qualquer espécie de trabalho nas grandes cidades deve ser horrível. Pelo menos pode-se ganhar muito mais como prostituta. Depois, poderia voltar para Jamaica e comprar Beau Desert. Seria bastante rica para encontrar um marido bonito e ter alguns filhos. Agora que encontrei essas conchas, penso que poderia estar de volta a Jamaica quando tivesse trinta anos. Não seria formidável?

— Gosto da última parte do plano, mas não tenho muita confiança na primeira. De qualquer forma, como é que você veio a saber dessa história de prostitutas? Encontrou isso na letra P, na enciclopédia?

— Claro que não; não seja tolo. Há uns dois anos houve em Nova Iorque um escândalo sobre elas, envolvendo também um “play-boy” chamado Jelke. Ele tinha toda uma cadeia de prostitutas, e eu li muito sobre o caso no “Gleaner”. O jornal deu inclusive os preços que elas cobravam e tudo o mais. De qualquer forma, há milhares dessas jovens em Kingston, embora não sejam tão boas. Recebem apenas cinco xelins e não têm um lugar apropriado para fazer amor, a não ser no mato. Minha babá chegou a falar-me delas. Disse-me que eu não deveria imitá-las, pois do contrário seria muito infeliz. É claro que seria, recebendo apenas cinco xelins. Mas por cem dólares!...

Bond observou: — Você não conseguiria guardar todo esse dinheiro. Precisaria ter uma espécie de gerente para arranjar os homens, e teria ainda de dar gorjetas à polícia, para deixá-la em paz. Por fim, poderia ir facilmente parar na cadeia se tudo não corresse bem. Na verdade, com tudo o que você sabe sobre animais, bem poderia ter um ótimo emprego, cuidando deles, em algum jardim zoológico norte-americano. E o que me diz do Instituto de Jamaica? Tenho certeza de que você gostaria mais de trabalhar ali. E poderia também facilmente encontrar um bom marido. De qualquer forma, você não deve mais pensar em ser prostituta. Você tem um belo corpo e deve guardá-lo para o homem que amar.

— Isso é o que dizem as pessoas nos livros — disse ela com ar de dúvida. — A dificuldade está em que não há nenhum homem para ser amado em Beau Desert. — Depois acrescentou timidamente: — Você é o único inglês com quem jamais falei. Gostei de você desde o princípio, e não me importo de dizer-lhe essas coisas agora. Penso que há muitas pessoas das quais chegaria a gostar se saísse daqui.

— É claro que há. Centenas. E você é uma garota formidável; o que pensei assim que a vi.

— Assim que viu as minhas nádegas, você quer dizer. — Sua voz estava-se tornando sonolenta, mas cheia de prazer.

Bond riu. — Bem, eram nádegas maravilhosas. E o outro lado também era maravilhoso. — O corpo de Bond começou a se agitar com a lembrança de como a vira pela primeira vez. Depois de um instante, disse com mau humor: — Agora vamos, Honey. Está na hora de dormir. Haverá muito tempo para conversarmos quando voltarmos a Jamaica.

— Haverá? — perguntou ela desconsoladamente. — Você promete?

— Prometo.

Ele a viu agitar-se dentro do saco de dormir. Olhou para baixo e apenas pôde divisar o seu pálido perfil voltado para ele. Ela deixou escapar o profundo suspiro de uma criança, antes de adormecer.

Reinava silêncio na clareira e o tempo estava esfriando. Bond descansou a cabeça sobre os joelhos unidos. Sabia que era inútil procurar dormir, pois sua mente estava cheia dos acontecimentos do dia e dessa extraordinária mulher Tarzan que aparecera em sua vida. Era como se algum animal muito bonito se lhe tivesse dedicado. E não largaria os cordéis enquanto não tivesse resolvido os problemas dela. Estava sentindo isso. Naturalmente que não haveria grandes dificuldades para a maioria de seus problemas. Quanto à operação, seria fácil arranjá-la, e até mesmo encontrar-lhe um emprego, com o auxílio de amigos, e um lar. Tinha dinheiro e haveria de comprar-lhe roupas, mandaria ajeitar os seus cabelos e a lançaria no grande mundo. Seria divertido. Mas quanto ao resto? Quanto ao desejo físico que sentia por ela? Não se podia fazer amor com uma criança. Mas, seria ela uma criança? Não haveria nada de infantil relativamente ao seu corpo ou à sua personalidade. Era perfeitamente adulta e bem inteligente, a seu modo, e muito mais capaz de tomar conta de si mesma do que qualquer outra jovem de vinte anos que Bond conhecera.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um puxão em sua manga. A vozinha disse: — Por que você não vai dormir? Não está sentindo frio?

— Não; estou bem.

— Aqui no saco de dormir está bom e quente. Você quer vir para cá? Tem bastante lugar.

— Não, obrigado, Honey. Estou bem.

Houve uma pausa, e depois ela disse num sussurro: — Se você está pensando... Quero dizer — você não precisa fazer amor comigo... Eu poderia dormir de costas para o seu peito.

— Honey, querida, vá dormir. Seria maravilhoso dormir assim com você, mas não esta noite. De qualquer maneira, em breve terei de render Quarrel.

— Muito bem, — disse ela com voz mal humorada. — Talvez quando voltarmos a Jamaica.

— Talvez.

— Prometa. Não dormirei enquanto você não prometer.

Bond disse desesperadamente: — Naturalmente que prometo. Agora, vá dormir, Honeychile.

A sua voz se fez ouvir outra vez, triunfante: — Agora você tem uma dívida comigo. Você prometeu. Boa-noite, querido James.

— Boa noite, querida Honey.


XII - A COISA


O aperto no braço de Bond era ansioso. Ele de um salto pôs-se de pé.

Quarrel sussurrou tensamente: — Alguma coisa está-se aproximando pela água, capitão! Com certeza é o dragão!

A jovem levantou-se e perguntou nervosamente: — Que aconteceu?

Bond apenas disse: — Fique aí, Honey! Não se mexa. Eu voltarei.

Internou-se pelos arbustos do lado oposto da montanha e correu pela restinga, com Quarrel ao lado.

Chegaram até a extremidade da restinga, a vinte metros da clareira, e pararam sob o abrigo dos últimos arbustos, que Bond apartou com as mãos para ter um melhor campo de visão.

O que seria aquilo? A meia milha de distância, atravessando o lago, vinha algo informe, com dois olhos brilhantes cor de laranja, e pupilas negras. Entre estes, onde deveria estar a boca, tremulava um metro de chama azul. A luminosidade cinzenta das estrelas deixava ver uma espécie de cabeça abaulada entre duas pequenas asas semelhantes às de um morcego. Aquela coisa estranha deixava escapar um ronco surdo e baixo, que abafava um outro ruído, uma espécie de vibração rítmica. Aquela massa avançava na direção deles, à velocidade de uns dezesseis quilômetros por hora, deixando atrás de si uma esteira de espuma.

Quarrel sussurrou:

— Nossa, capitão! Que coisa é aquela?

Bond continuou de pé e respondeu laconicamente: — Não sei exatamente. Uma espécie de trator arranjado para meter medo. Está trabalhando com um motor diesel, e por isso você pode deixar os dragões de lado. Agora, vejamos... — Bond falava como se para si mesmo. — Não adianta fugir. Aquilo se move mais depressa do que nós e sabemos que pode esmagar árvores e atravessar pântanos. Temos que lhe dar combate aqui mesmo. Quais serão os seus pontos fracos? Os motoristas. Com certeza, dispõem de proteção. Em todo caso, não sabemos muito sobre esse ponto. Quarrel, você começará a disparar contra aquela cúpula quando estiverem a uns duzentos metros de nós. Faça a pontaria cuidadosamente e continue atirando. Visarei os faróis quando estiverem a cinqüenta metros. Não se está movendo sobre lagartas. Deve ter alguma espécie de rodas gigantescas, provavelmente de avião. Visarei as rodas também. Fique aí. Ficarei dez metros para baixo. Naturalmente vão reagir e nós temos que manter as balas longe da garota. Está combinado? — Bond esticou o braço e apertou o enorme ombro de Quarrel. — E não se preocupe demais. Esqueça-se de dragões. Trata-se apenas de alguma trapaça do Dr. No. Mataremos os motoristas, tomaremos conta do veículo e ganharemos com ele a costa. Isso economizará as nossas solas. Está bem?

Quarrel deu uma breve risada. — Está bem, capitão. Desde que o senhor assim o diz. Mas que Nosso Senhor saiba também que aquilo não é dragão!

Bond desceu pela restinga e se internou pelos arbustos, até que encontrou um ponto de onde podia ter um bom campo de tiro. Disse suavemente: — Honey!

— Sim, James — e a voz dela deixou transparecer alívio.

— Faça um buraco na areia como fizemos na praia. Faça-o por trás de raízes grossas e fique lá deitada. Talvez haja um tiroteio. Não tenha medo de dragões. Isto é apenas um veículo pintado, dirigido por alguns dos homens do Dr. No. Não se assuste. Estou aqui perto.

— Muito bem, James. Tenha cuidado! — A voz agora deixava transparecer um vivo temor.

Bond curvou-se, apoiando um joelho no chão, sobre as folhas e a areia, e olhou para fora.

Agora o veículo achava-se a uns trezentos metros de distância, e os seus faróis amarelos estavam iluminando a areia. Chamas azuis continuavam saindo da boca daquele engenho. Saíam de uma espécie de longo focinho, no qual se pintaram mandíbulas entreabertas, para darem ao todo a aparência de dragão. Um lança-chamas! Aquilo explicava as árvores queimadas e a história do administrador. A coloração azul da chama seria dada por alguma espécie de queimador, disposto adiante do lança-chamas.

Bond teve que admitir que aquela visão era algo de terrível, à medida que o veículo avançava pelo lago raso. Evidentemente fora calculado para infundir terror. Ele mesmo ter-se-ia assustado, não fora a vibração rítmica do motor diesel. Mas até que ponto aquilo seria vulnerável para homens que não fossem dominados pelo pânico?

A resposta ele a teve quase imediatamente. Ouviu-se o estampido da “Remington” de Quarrel. Uma centelha saiu da cabina encimada pela cúpula e logo se ouviu um ruído metálico. Quarrel disparou mais um tiro e, logo em seguida, uma rajada. As balas chocaram-se inutilmente de encontro à cabina. Não houve mesmo uma simples redução de velocidade. O monstro continuava avançando para o ponto de onde tinham partido os disparos. Bond descansou o cano de seu “Smith & Wesson” no braço, e fez cuidadosa pontaria. O profundo ruído surdo de sua arma fez-se ouvir por sobre o matraquear da “Remington” de Quarrel. Um dos faróis fora atingido e despedaçara-se. Bond disparou mais quatro tiros contra o outro e atingiu-o com o quinto e último disparo de seu revólver. O fantástico aparelho parecia continuar não dando importância, e foi avançando para o lugar de onde tinham partido os disparos do “Smith & Wesson”. Bond tornou a carregar a arma e começou a atirar contra os pneumáticos, sob as asas negro e ouro. A distância agora era de apenas trinta metros e podia jurar que já atingira mais de uma vez a roda mais próxima, sem nenhum resultado. Seria borracha sólida? O primeiro estremecimento de medo percorreu a pele de Bond.

Carregou mais uma vez. Seria aquela coisa maldita vulnerável pela retaguarda? Deveria correr para o lago e tentar uma abordagem? Avançou um passo, através dos arbustos, mas logo ficou imóvel, incapaz de prosseguir.

Subitamente, daquele focinho ameaçador, uma língua de fogo azulada tinha sido lançada na direção do esconderijo de Quarrel. À direita de Bond, no mato, surgira apenas uma chama laranja e vermelha, simultaneamente com um estranho urro, que imediatamente silenciou. Satisfeita, aquela língua de fogo se recolhera à sua boca. Agora aquilo fizera um movimento de rotação sobre o seu eixo e parará completamente. O buraco azulado da boca apontava diretamente para Bond.

Bond deixou-se ficar, esperando pelo horroroso fim. Olhou através das mandíbulas da morte e viu o brilhante f-lamento vermelho do queimador, bem no fundo do comprido tubo. Pensou no corpo de Quarrel — mas não havia tempo para pensar em Quarrel — e imaginou-o completamente carbonizado. Dentro em pouco ele também se incendiaria como uma tocha. Um único berro seria arrancado dele e os seus membros se encolheriam na pose de dançarino dos corpos queimados. Depois viria a vez de Honey. Meu Deus, para o quê ele os havia arrastado! Por que fora tão insano a ponto de enfrentar aquele homem com todo o seu arsenal? Por que não aceitara a advertência que lhe fora feita pelo longo dedo que o alcançara já em Jamaica? Bond trincou os dentes. Vamos, canalhas. Depressa.

Ouviu-se a sonoridade de um alto-falante, que anunciava metàlicamente: “Saia daí, inglês. E a boneca também. Depressa ou será frito no inferno, como o seu amigo”. Para dar mais força àquela ordem, uma língua de fogo foi lançada em sua direção. Bond deu um passo atrás para recuar daquele intenso calor. Sentiu o corpo da garota de encontro às suas costas. Ela disse historicamente: — Tive que vir, tive que vir.

Bond disse: — Está bem, Honey. Fique atrás de mim.

Ele tinha-se decidido. Não havia alternativa. Mesmo que a morte viesse mais tarde, não poderia ser pior do que aquela morte diante do lança-chamas. Bond apanhou a mão da jovem e puxou-a consigo para fora, saindo para a areia.

A voz se fez ouvir novamente: — Pare aí, camarada. E deixe cair o lança-ervilhas. Nada de truques, senão os caranguejos terão um bom almoço.

Bond deixou cair a sua arma. Lá se fora o “Smith & Wesson”. O “Beretta” não teria tido melhor sorte: A jovem lastimou-se, e Bond apertou a sua mão. — Agüente, Honey, — disse ele. — Nós nos livraremos disso.

Bond troçou de si mesmo por causa daquela mentira. Ouviu-se o ruído de uma porta de ferro que se abria. Por trás da cúpula, um homem saltou para a água e caminhou até eles, com um revólver na mão. Ao mesmo tempo ia-se mantendo fora da linha de fogo do lança-chamas. A trêmula chama azul iluminou o seu rosto. Era um chinês negro, de enorme estatura, vestindo apenas calças. Alguma coisa balançava em sua mão esquerda, e quando ele se aproximou mais, Bond pôde ver que eram algemas.

O homem deteve-se a alguns metros de distância e disse:

— Levantem os braços. Punhos juntos e caminhem em minha direção. Você primeiro, inglês. Devagar ou receberá mais um umbigo.

Bond obedeceu e quando estava a um passo do homem, este prendeu o revólver entre os dentes, e esticou os braços e atou os seus pulsos com as algemas. Bond examinou aquele rosto iluminado pelas chamas azuis. Era uma cara brutal, com olhos estrábicos. O agente do Dr. No fitou-o com desprezo. — Bastardo imbecil! — disse.

Bond deu as costas ao homem e começou a se afastar. Ia ver o corpo de Quarrel. Tinha que lhe dizer adeus. Ouviu-se o ruído de um disparo e uma bala jogou-lhe areia nos pés. Bond parou, e voltando-se lentamente disse:

— Não fique nervoso. Vou dar uma espiada no homem que você acabou de assassinar. Voltarei.

O homem abaixou o revólver e riu grosseiramente: — Muito bem. Divirta-se. Desculpe se não temos uma coroa. Volte logo, se não daremos uma amostra à boneca. Dois minutos.

Bond caminhou em direção ao cerrado de arbustos fumegantes. Ali chegando, olhou para baixo. Seus olhos e boca se contraíram. Sim, tinha sido bem como ele imaginara. Pior, mesmo. Disse docemente: — Perdoe-me, Quarrel. — Com o pé soltou um pouco de areia, que colheu com as mãos algemadas e verteu-a sobre os restos dos olhos de Quarrel. Depois caminhou lentamente, de volta, e ficou ao lado da jovem.

O homem empurrou-os para a frente com o revólver. Deram a volta por trás da máquina, onde havia uma pequena porta quadrada. Uma voz do interior disse: — Entrem e sentem-se no chão. Não toquem em nada ou ficarão com os dedos partidos.

Com dificuldade, arrastaram-se para dentro daquela caixa de ferro, que cheirava a óleo e suor. Havia lugar apenas para que ambos se sentassem com as pernas encolhidas, de joelhos para cima. O homem que empunhava o revólver e que vinha atrás deles saltou por último para dentro do carro e fechou a porta. Ligou uma lâmpada e sentou-se num assento de ferro, ao lado do chofer. — Muito bem, Sam, vamos andando. Você pode apagar o fogo. Há luz bastante para dirigir — disse.

Na painel de controle podia-se ver uma fileira de mostradores. O motorista esticou a mão e deslocou para baixo um par de interruptores. Engrenou o motor e olhou através de uma estreita fresta, cortada na parede de ferro, diante dele. Bond sentiu que o veículo dava uma volta. Ouviu-se um movimento mais rápido do motor, e o veículo avançou.

O ombro da jovem apertou-se de encontro ao de Bond.

— Para onde estão eles nos levando? — O seu sussurro traía um estremecimento.

Bond voltou a cabeça e olhou para ela. Era a primeira vez que podia ver os seus cabelos depois de secos. Estavam desfeitos pelo sono, mas não eram mais mechas de rabichos empastados. Caíam densamente até os ombros, onde terminavam em anéis voltados para dentro. Eram do mais pálido louro acinzentado e despediam reflexos quase prateados sob a luz elétrica. Ela olhou para o alto, para ele. A pele, à volta dos olhos e nos cantos da boca, mostrava-se lívida de medo.

Bond deu de ombros, procurando aparentar uma indiferença que não sentia!. Sussurrou: — Oh, espero que vamos ver o Dr. No. Não se preocupe demais, Honey. Esses homens não passam de pequenos bandidos. Com ele, as coisas serão diferentes. Quando estivermos diante dele, não diga nada, falarei por nos dois. — Ele apertou o seu ombro e disse: — Gosto da maneira por que você penteia o seu cabelo, e fico contente porque você não o apara muito curto.

Um pouco da tenção desapareceu do rosto dela. — Como é que você pode pensar em coisas como essa? — Deu um leve sorriso para ele, e acrescentou: — Mas estou contente por você gostar de meu penteado. Lavo os meus cabelos com óleo de coco uma vez por semana.

À lembrança de sua outra vida, seus olhos ficaram brilhantes. Ela baixou a cabeça para as mãos algemadas, a fim de esconder as lágrimas. Sussurrou quase para si mesma: — Tentarei ser brava. Tudo estará bem, desde que você esteja lá.

Bond aconchegou-se a ela. Levantou suas mãos algemadas até a altura dos olhos e examinou as algemas. Eram do tipo usado pela polícia norte-americana. Contraiu sua mão esquerda, a mais fina das duas, e tentou fazê-la deslizar pelo anel de aço. Mesmo o suor de sua pele de nada adiantou. Era inútil.

Os dois homens sentavam-se em seus bancos de ferro, indiferentes, e com as costas voltadas para eles. Sabiam que dominavam inteiramente a situação. Não havia possibilidade de que Bond oferecesse qualquer incômodo. Não poderia levantar-se ou dar o necessário impulso aos seus punhos para causar qualquer mal às cabeças de seus adversários, utilizando as algemas. Se conseguisse abrir a porta e pular para a água, o que lograria com isso? Imediatamente eles sentiriam a brisa fresca, nas costas, e parariam a máquina para queimá-lo na água ou içá-lo novamente. Bond aborrecia-se em pensar que os homens pouco se preocupavam com ele, pois sabiam tê-lo completamente em seu poder. Também não gostou da idéia de que aqueles homens eram bastante inteligentes para saber que ele não representava nenhuma ameaça. Indivíduos mais estúpidos teriam ficado em cima deles, de revólver em punho, tê-los-iam surrado, a ele e à jovem, barbaramente, e talvez os tivessem deixado inconscientes. Aqueles dois conheciam o ofício. Eram profissionais, ou tinham sido treinados para o serem.

Os dois homens não falaram. Não houve nenhum comentário sobre o quão hábil eles tinham sido, ou quanto ao seu cansaço ou destino. Apenas dirigiam a máquina serenamente, ultimando com eficiência a sua tarefa.

Bond continuava sem a mínima idéia do que seria aquilo. Sob a tinta negra e dourada, assim como sob o resto daquela fantasia, a máquina parecia uma espécie de trator, como ele nunca vira. Não tinha conseguido descobrir nomes de marcas comerciais, nos pneumáticos, pois estivera muito escuro, mas certamente que deveriam ser de borracha sólida ou porosa. Atrás havia um pequena roda para dar estabilidade ao conjunto. Uma espécie de barbatana de ferro fora ainda acrescentada e pintada também de preto e ouro, a fim de ajudar a dar a aparência de dragão. Os altos pára-lamas tinham sofrido um prolongamento, na forma de curtas asas voltadas para trás. Uma comprida cabeça de dragão, feita em metal, fora fixada ao radiador e os faróis receberam pontos centrais negros, para parecerem olhos. Era tudo, sem falar da cabina que fora recoberta com uma cúpula blindada e dotada de um lança-chamas. Era, como pensara Bond, um trator preparado para assustar e queimar — embora não pudesse atinar porque estava dotado de um lança-chamas e não de uma metralhadora. Era, evidentemente, a única espécie de veículo que poderia percorrer a ilha. Suas gigantescas rodas podiam avançar sobre os mangues, pântanos e ainda atravessar o lago raso. Galgaria também os agrestes planaltos de coral e, desde que andasse à noite, o calor experimentado na cabina seria pelo menos tolerável.

Bond ficara impressionado. Impressionado pelo toque de profissionalismo. O Dr. No era sem dúvida um homem que se preocupava intensamente com as coisas. Em pouco iria encontrá-lo. E em breve estaria diante do segredo do Dr. No. Então, o que aconteceria? Bond sorriu amargamente. Sim, não o deixariam sair dali com o seu conhecimento. Certamente seria morto, a menos que pudesse fugir ou conseguir a sua liberdade por meios persuasivos. E o que aconteceria à jovem? Poderia ele provar sua inocência e conseguir com que ela fosse poupada? Possivelmente, mas nunca mais ela teria permissão para deixar a ilha. Ali teria de ficar para o resto da vida, como amante ou mulher de um dos homens, ou do próprio Dr. No, se ela o impressionasse.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um trecho do percurso mais difícil, como se podia sentir pela trepidação. Tinham atravessado o lago e estavam no caminho que levava para o alto da montanha, junto às cabanas. A cabina vibrava e a máquina começou a galgar o terreno. Dentro de cinco minutos estariam lá.

O ajudante do motorista olhou por sobre o ombro para Bond e a jovem. Bond sorriu confiantemente para ele dizendo: Você receberá uma medalha por isso.

Os olhos amarelos e marrons olharam impassivelmente dentro dos dele, enquanto os lábios arroxeados e oleosos se fenderam num sorriso no qual havia um ódio repousado: Feche a boca, se... Depois, deu-lhe as costas.

A jovem tocou-o com o cotovelo e sussurrou: — Por que eles são tão rudes? Por que nos odeiam tanto?

Bond esboçou um sorriso e disse: — Acho que é porque lhes causamos medo. Talvez ainda estejam com medo, e isto porque não parecemos ter medo deles. Devemos mantê-los assim.

A jovem aconchegou-se a ele e disse: — Tentarei.

Agora a subida estava-se tornando mais íngreme. Uma luz azul-acinzentada atravessava as frestas da armadura. A madrugada se aproximava. Fora, em breve estaria começando mais um dia de calor abrasador, de execrável vento, carregado com o cheiro de gás dos pântanos. Bond pensou em Quarrel, o bravo gigante que não mais veria aquele dia, e com o qual eles deveriam agora estar caminhando através dos pauis de mangues. Quarrel tinha pressentido a morte, mas apesar disso tinha acompanhado Bond sem qualquer objeção. Sua fé em Bond tinha sido maior do que o seu medo. E Bond tinha-lhe faltado. Seria ele ainda o causador da morte da jovem?

O motorista esticou o braço em direção ao painel e na parte dianteira do veículo fez-se ouvir o breve zunido de uma sirena de polícia, que foi desaparecendo num gemido fúnebre. Mais um minuto e o veículo parava, continuando o motor em regime neutro. O homem apertou um interruptor e tirou um microfone de um gancho, a seu lado. Falou por aquele microfone e Bond pôde ouvir a sua voz aumentada, do lado de fora, por um altofalante. — Tudo bem. Apanhamos o inglês e a garota. O outro homem morreu. Isso é tudo. Abram. — Bond ouviu que uma porta se deslocava para o lado, sobre rolamentos. O motorista embreou e eles avançaram lentamente para a frente, parando alguns metros adiante. O motorista desligou o motor. Ouviu-se o ruído metálico da tranca e a porta foi aberta pelo lado de fora. Uma lufada de ar fresco e uma luz mais brilhante penetraram na cabina. Várias mãos agarraram Bond e arrastaram-no para trás, até um chão de cimento. Bond agora estava de pé e sentia o cano de um revólver encostado ao seu flanco. Uma voz disse: — Fique onde está. Nada de espertezas. — Bond olhou para o homem. Era mais um chinês negro, do mesmo tipo que os outros. Os olhos amarelos examinaram-no com curiosidade. Bond virou-se com indiferença. Outro homem estava cutucando a jovem com a arma. Bond disse asperamente: — Deixe a garota em paz! Em seguida, caminhou e pôs-se ao lado da jovem. Os dois homens pareceram surpresos. Deixaram-se ficar de pé, apontando as armas com hesitação.

Bond olhou à volta. Estavam numa das cabanas pré-fabricadas que ele vira do rio. Era ao mesmo tempo uma garagem e uma oficina. O “dragão” tinha sido colocado sobre um fosso de vistoria, no chão de concreto. Um motor de popa desmontado estava sobre uma das bancadas. Longos tubos de luz fluorescente estavam afixados ao teto e o ambiente estava impregnado do cheiro de óleo e fumaça de exaustor. O motorista e o seu companheiro examinavam a máquina. Em seguida deram alguns passos pelo galpão, como se andassem sem propósito.

Um dos guardas anunciou: — Enviei a mensagem. A ordem é que eles sejam levados. Foi tudo bem?

O ajudante de motorista, que parecia o homem mais responsável, ali presente, disse: — Sem dúvida. Alguns disparos. Os faróis foram partidos. Talvez haja alguns furos nos pneumáticos. Ponha os rapazes em ação — uma vistoria completa. Conduzirei esses dois e tirarei um cochilo. — E, voltando-se para Bond: — Bem, vamos andando — e indicou o caminho que saía do longo galpão.

Bond disse: — Vá andando você; e cuidado com os modos. Diga àqueles macacos que tirem as armas de cima de nós. Podem disparar por engano. Parecem bastante idiotas.

O homem se aproximou, e os outros os acompanharam logo atrás. O ódio brilhava em seus olhos. O chefe levantou o punho cerrado, tão grande quanto um pequeno malho e chegou-o à altura do nariz de Bond. Procurava controlar-se com esforço, e disse: — Ouça, senhor. Às vezes, nós, os rapazes, temos permissão para participar da festa final. Estou rezando para que essa seja uma dessas vezes. Certa ocasião fizemos com que a coisa durasse toda uma semana. E se eu o pego...

Riu e os seus olhos brilharam com crueldade. Olhou para o lado de Bond, fixando a garota. Seus olhos pareciam transformados em bocas que agitavam os lábios. Enfiou as mãos nos bolsos laterais das calças. A ponta de sua língua mostrava-se muito vermelha, entre os lábios arroxeados. Voltando-se para os companheiros disse: — Que tal, rapazes?

Os três homens estavam olhando também para a jovem. Fizeram um sinal de assentimento, como crianças diante de uma árvore de Natal.

Bond desejou atirar-se como um louco sobre eles, golpeando as suas caras com os punhos algemados e aceitando a sua vingança sangrenta. Não fosse pela jovem, bem que o teria feito. Mas tudo o que tinha conseguido com suas corajosas palavras fora amedrontá-la. Disse apenas: — Muito bem, muito bem. Vocês são quatro e nós somos dois, ainda por cima com as mãos atadas. Vamos, não queremos atingi-los. Apenas não nos empurrem muito de um lado para outro. O Dr. No poderia não ficar satisfeito.

Àquele nome, os rostos dos homens se modificaram. Três pares de olhos passaram apàticamente de Bond para o chefe. Por um segundo, este olhou com desconfiança para Bond, intrigado, tentando descobrir se Bond teria alguma influência junto ao Dr. No. Sua boca abriu-se para dizer algo, mas logo pareceu pensar melhor, e apenas disse de maneira incerta: — Bem, bem, estávamos simplesmente brincando. — Voltou-se para os homens, em busca de confirmação: — Não é?

— Sem dúvida, sem dúvida! — foi a resposta dada por um coro áspero, e os homens desviaram o olhar.

O chefe disse com mau humor: — Por aqui, senhor. — E ele mesmo pôs-se a caminho, percorrendo o comprido galpão.

Bond segurou o pulso da jovem e seguiu o chefe. Estava impressionado com a reação causada naqueles homens pelo nome do Dr. No. Aquilo era alguma coisa a lembrar se eles tivessem que se haver novamente com aquela turma.

O homem chegou a uma porta de madeira situada na extremidade do galpão. Ao lado havia um botão de campainha que ele pressionou duas vezes e esperou. Ouviu-se um estalido e a porta se abriu, mostrando dez metros de uma passagem rochosa, mas atapetada e que ia dar, na outra extremidade, em outra porta mais elegante e pintada de creme.

O homem ficou de lado. Siga em frente, senhor — disse; — bata na porta e será atendido pela recepcionista. — Não havia nenhuma ironia em sua voz e seus olhos se mostravam impassíveis.

Bond conduziu Honey pela passagem. Ouviu que a porta se fechava às suas costas. Deteve-se por um momento e fitou-a, perguntando-lhe: — E agora?

Ela riu, trêmula, mas respondeu: — Ê bom sentir-se tapete sob os pés.

Bond apertou o seu pulso. Andou até a porta pintada de creme e bateu.

A porta abriu-se e Bond entrou com a jovem ao lado. Quando se deteve instantaneamente, não chegou a perceber o encontrão que lhe dava a jovem, pois continuou estarrecido.


XIII - GAIOLA DE OURO


Era a espécie de sala de recepção que as maiores corporações norte-americanas possuem no andar em que se situa o escritório do presidente, em seus arranha-céus de Nova Iorque. Suas proporções eram agradáveis, com cerca de vinte pés quadrados. O chão era todo recoberto pelo mais espesso tapete Wilton cor-de-vinho. O teto e as paredes estavam pintados numa suave tonalidade cinza pombo. Viam-se ainda reproduções litográficas de esboços de balé de Degas penduradas em séries, nas paredes, e a iluminação era feita com altos e modernos jogos de abajures de seda verde-escuro, imitando a forma de elegantes barricas.

À direita de Bond estavam uma larga mesa de mogno, com o tampo recoberto com couro verde, outras peças que se harmonizavam perfeitamente com a mesa, e um caro sistema de intercomunicações. Duas cadeiras altas, de antiquado, aguardavam os visitantes. Do outro lado da sala via-se uma mesa do tipo refeitório, sobre a qual estavam várias revistas com capas em cores vivas e mais duas cadeiras. Tanto na mesa de escritório, como na outra, viam-se vasos de hibiscos. O ar era fresco e impregnado de leve fragrância.

Duas mulheres estavam naquela sala. Por trás da mesa de trabalho, empunhando uma caneta que descansava sobre um formulário impresso, estava sentada uma jovem chinesa, de aspecto eficiente, com óculos de armação de chifre, sob uma franja de cabelos negros cortados curtos. Em seus olhos e em sua boca havia o sorriso padrão de boas-vindas que qualquer recepcionista exibe — a um tempo claro, obsequioso e inquisitivo.

Ainda com a mão na maçaneta da porta pela qual eles tinham passado, e esperando que os recém-chegados se adiantassem mais, a fim de que ela a pudesse fechar, estava uma mulher mais velha, com aspecto de matrona, e que deveria ter cerca de quarenta e cinco anos. Era fácil ver-se que também tinha sangue chinês. Sua aparência, saudável, de farto busto, era viva e quase excessivamente graciosa. O seu “pince-nez” de lentes cortadas em quadrado brilhava com o desejo da recepcionista de os pôr à vontade.

Ambas as mulheres vestiam roupas imaculadamente alvas, com meias brancas e sapatos de camurça branca como costumam apresentar-se as auxiliares empregadas nos mais luxuosos salões de beleza norte-americanos. Havia um que de suave e pálido em suas peles, como se elas raramente saíssem para o ar-livre.

Bond observou o ambiente, enquanto a mulher junto à porta lhe dizia frases convencionais de boas-vindas, como se eles tivessem sido colhidos por uma tempestade o chegado com atraso a uma festa.

— Oh, coitados! Nós não sabíamos quando vocês iriam chegar. A todo momento nos diziam que vocês já estavam a caminho... primeiro à hora do chá, ontem, depois na hora do jantar, e apenas há uma hora fomos informadas de que vocês chegariam à hora do desjejum. Devem estar com fome. Venham aqui e ajudem a irmã Rosa a preencher o formulário; depois eu os prepararei para a cama. Devem estar muito cansados.

Ia dizendo aquilo com voz doce e cacarejante, ao mesmo tempo que fechava a porta e os levava para junto da mesa e os fazia sentar nas cadeiras. Depois disse: — Bem, eu sou a irmã Lírio, e esta é a irmã Rosa. Ela irá fazer-lhes apenas algumas perguntas. Agora, aceitam um cigarro? — e pegou uma caixa de couro trabalhado que estava em cima da mesa. Abriu-a e pô-la diante deles. A caixa tinha três divisões, e a chinesinha explicou apontando com um dedo: “Esses são americanos, esses são ingleses e esses turcos.” Ela apanhou um luxuoso isqueiro de mesa e esperou.

Bond estendeu as mãos algemadas para tirar um cigarro turco.

A irmã Lírio deu um gritinho de espanto: — Oh, mas francamente. — Parecia sinceramente embaraçada. — Irmã Rosa, dê-me a chave, depressa. Já disse por várias vezes que os pacientes não devem ser trazidos dessa maneira. — Havia impaciência e aborrecimento em sua voz. — Francamente, aquela gente lá de fora! Já era tempo que eles fossem chamados à ordem.

A irmã Rosa estava tão embaraçada quanto a irmã Lírio. Rapidamente remexeu dentro de uma gaveta e entregou uma chave à irmã Lírio, que com muitas desculpas e cheia de dedos abriu os dois pares de algemas e, afastando-se para trás da mesa, deixou aquelas duas pulseiras de aço caírem dentro da cesta de papéis como se fossem ataduras sujas.

— Obrigado, — disse Bond, que não sabia como enfrentar aquela situação, a não ser procurando desempenhar um papel qualquer na comédia que se estava representando. Ele estendeu o braço, apanhou um cigarro e acendeu-o. Lançou um olhar para Honeyehile Rider, que parecia estonteada e nervosamente apertava com as mãos os braços de sua cadeira. Bond dirigiu-lhe um sorriso de conforto.

— Agora, por favor; — disse a irmã Rosa e inclinou-se sobre um comprido formulário impresso em papel caro. — Prometo ser o mais rápida que puder. O seu nome, sr... sr...

— Bryce, John Bryce.

Ela escreveu a resposta com grande concentração. — Endereço permanente?

— Aos cuidados do Jardim Zoológico Real, Regents Park, Londres, Inglaterra.

— Profissão?

— Ornitologista.

— Oh, meu Deus!, poderia o senhor soletrar isso? Bond atendeu-a.

— Muito obrigada. Agora, vejamos, objeto da viagem?

— Aves — respondeu Bond. — Sou também representante da Sociedade Audubon de Nova Iorque. Eles arrendaram parte desta ilha.

— Oh, sem dúvida. — Bond observou que a pena escrevia exatamente o que ele dizia. Depois da última palavra ela pôs um claro ponto de interrogação entre parênteses.

— E — a irmã Rosa sorriu polidamente em direção a Honeyehile — a sua esposa? Ela também está interessada em pássaros?

— Sim, sem dúvida.

— O seu primeiro nome?

— Honeyehile.

A irmã Rosa estava encantada. — Que nome lindo! — Ela voltou a escrever apressadamente. — E agora os parentes mais próximos de ambos, e estará tudo acabado.

Bond deu o verdadeiro nome de M como o parente mais próximo de ambos. Apresentou-o como “tio” e indicou o seu endereço como sendo “Diretor-Gerente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres.”

A irmã Rosa acabou de escrever e disse: — Pronto, está tudo feito. Muito obrigada, sr. Bryce, e espero que ambos apreciem a permanência aqui.

— Muito obrigado. Estou certo de que apreciaremos. — Bond levantou-se e Honeyehile fez o mesmo, ainda com expressão vazia.

A irmã Lírio disse: — Agora, venham comigo, queridos.

— Ela caminhou até uma porta na parede distante e deteve-se com a mão na maçaneta talhada em vidro. — Oh, meu Deus, — disse —, não é que agora me esqueci do número de seus quartos? É o apartamento creme, não é, irmã?

— Isso mesmo. Catorze e quinze.

— Obrigada, querida. E agora — ela abriu a porta — se vocês quiserem me seguir... Receio que seja uma caminhada um pouco longa. — Fechou a porta, por trás deles, e pôs-se à frente, indicando o caminho. — O Doutor tem falado várias vezes em instalar uma dessas escadas rolantes, ou algo de parecido, mas sabem como são os homens ocupados: — Ela riu alegremente. — Ele tem tantas outras coisas em que pensar!

— Sim, acredito, — disse Bond polidamente.

Bond tomou a mão da jovem e seguiram ambos a maternal e agitada chinesa através de cem metros de um alto corredor, do mesmo estilo da sala de recepção, mas que era iluminado a freqüentes intervalos por caros tubos luminosos fixados às paredes.

Bond respondia com polidos monossílabos aos comentários ocasionais que a irmã Lírio lhe lançava por sobre os ombros. Toda a sua mente se concentrava nas extraordinárias circunstâncias de sua recepção. Tinha certeza de que aquelas duas mulheres tinham sido sinceras. Nenhum só olhar ou palavra conseguira registrar que estivesse fora de propósito. Evidentemente aquilo era alguma espécie de fachada, mas de qualquer forma uma fachada sólida, meticulosamente apoiada pelo cenário e pelo elenco. A ausência de ressonância, na sala, e agora no corredor, estava a indicar que eles tinham deixado o galpão pré-fabricado para se internarem no flanco da montanha e agora estavam atravessando a sua base. Segundo o seu palpite estavam mesmo andando em direção oeste — em direção à penedia na qual terminava a ilha. Não havia umidade nas paredes e o ar parecia fresco e puro, com uma brisa a afagá-los. Muito dinheiro e uma bela realização de engenharia tinham sido os responsáveis por aquilo. A palidez das duas mulheres estava a sugerir que passavam a maior parte do tempo internadas no âmago da montanha. Do que a irmã dissera, parecia que elas faziam parte de um grupo de funcionários internos que nada tinham a ver com o destacamento de choque do exterior, e que talvez não soubessem a espécie de homens que eles eram.

Aquilo era grotesco, concluiu Bond ao se aproximar de uma porta, na extremidade do corredor, perigosamente grotesco, mas em nada adiantava pensar nisso no momento. Ele apenas podia seguir o papel que lhe tinha sido destinado. Pelo menos, aquilo era melhor do que os bastidores, na arena exterior da ilha.

Junto à porta, a irmã Lírio fez soar uma campainha. Já eram esperados e a porta abriu-se imediatamente. Uma encantadora jovem chinesa, de quimono lilás e branco, ficou a sorrir e a curvar-se, como se deve esperar que o façam as jovens chinesas. E, mais uma vez só havia calor e um sentimento de boas-vindas naquele rosto pálido como uma for. A irmã Lírio exclamou: — Aqui estão eles, finalmente, May! São o senhor e a senhora John Bryce. E sei que ambos devem estar exaustos, por isso devemos levá-los imediatamente aos seus aposentos, para que possam repousar e dormir. — Voltando-se para Bond: — Esta é May, muito boazinha. Ela tratará de ambos. Qualquer coisa que queiram é só tocar a campainha que May atenderá. É uma espécie de favorita de todos os nossos hóspedes.

Hóspedes!, pensou Bond. Essa é a segunda vez que ela usa a palavra. Sorriu polidamente para a jovem, e disse;

— Muito prazer; sim, certamente que gostaríamos de ir para os nossos aposentos.

May envolveu-os num cálido sorriso, e disse em voz baixa e atraente: — Espero que ambos se sintam bem, sr. Bryce. Tomei a liberdade de mandar vir uma refeição assim que soube que os senhores iam chegar. Vamos...? — Corredores saiam para a esquerda e a direita de portas duplas de elevadores, instalados na parede oposta. A jovem adiantou-se, caminhando na frente, para a direita, logo seguida de Bond e Honeyehile, que tinham atrás a irmã Lírio.

Ao longo do corredor, dos dois lados, viam-se portas numeradas. A decoração era feita no mais pálido cor-de-rosa, com um tapete cinza-pombo. Os números nas portas eram superiores a dez. O corredor terminava abruptamente, com duas portas, uma em frente a outra, com a numeração catorze e quinze. A irmã May abriu a porta catorze e o casal a seguiu, entrando na peça.

Era um lindo quarto de casal, em moderno estilo Mia-mi, com paredes verde-escuro, chão encerado de mogno escuro, com um ou outro espesso tapete branco e bem desenhado mobiliário de bambu com um tecido “chintz” de grandes rosas vermelhas sobre fundo branco. Havia uma porta de comunicação para um quarto de vestir masculino e outra que dava para um banheiro moderno e extremamente luxuoso, com uma banheira de descida e um bidê.

Era como se tivessem sido introduzidos num apartamento do mais moderno hotel da Flórida, com exceção de dois detalhes que não passaram despercebidos a Bond. Não havia janelas e nenhuma maçaneta interior nas portas.

May olhou com expressão de expectativa, de um para o outro.

Bond voltou-se para Honeyehile e sorriu-lhe: — Parece muito confortável, não acha, querida?

A jovem brincava com a barra da saia e fez um sinal de assentimento sem olhar para Bond.

Ouviu-se uma tímida batida na porta e outra jovem, tão linda quanto May, entrou carregando uma bandeja que se equilibrava sobre as palmas das mãos. A jovem descansou a bandeja sobre a mesa do centro e puxou duas cadeiras. Retirou a toalha de linho imaculadamente limpa e saiu. Sentiu-se um delicioso cheiro de fiambre e café.

May e a irmã Lírio também se encaminharam para a porta. A mulher mais idosa se deteve por um instante e disse:

— E agora nós os deixaremos em paz. Se desejarem alguma coisa, basta tocar a campainha. Os interruptores estão ao lado da cama. Ah, outra coisa, poderão encontrar roupa limpa nos aparadores. Receio que sejam apenas de estilo chinês,

— acrescentou, como a desculpar-se —, mas espero que os tamanhos satisfaçam. A rouparia só recebeu as medidas ontem à noite. O Dr. deu ordens severas para que os senhores não fossem perturbados. Ficará encantado se puderem reunir-se a ele, esta noite, para o jantar. Deseja, entretanto, que tenham todo o resto do dia à vontade, a fim de que melhor se ambientem, compreendem? — Fez uma pausa e olhou para um e para outro, com um sorriso indagador. — Posso dizer que os senhores...?

— Sim, por favor, — disse Bond. — Pode dizer ao D., que teremos muito prazer em jantar com ele.

— Oh, sei que ficará contente. — Com uma derradeira mesura, as duas chinesas se retiraram e fecharam a porta.

Bond voltou-se para Honeyehile, que parecia embaraçada e ainda evitava os seus olhos. Ocorreu então a Bond que talvez jamais tivesse ela tido um tratamento tão cortês ou visto tanto luxo em sua vida. Para ela, tudo aquilo devia ser muito mais estranho e aterrador do que o que tinham passado ao lado de fora. Ela continuou na mesma posição, brincando com a barra da saia. Podiam-se notar vestígios de suor seco, sal e poeira em seu rosto. Suas pernas nuas estavam sujas e Bond observou que os dedos de seus pés se moviam, suavemente, ao pisarem nervosamente o maravilhoso e espesso tapete.

Bond riu. Riu com gosto ao pensamento de que os temores da jovem tivessem sido abafados pelas preocupações de etiqueta e comportamento, e riu-se também da figura que ambos faziam — ela em farrapos e ele com a suja camisa azul, as calças pretas e os sapatos de lona enlameados.

Aproximou-se dela e segurou-lhe mãos. Estavam frias. Disse: — Honey, somos um par de espantalhos, mas há apenas um problema básico. Devemos tomar o nosso desjejum primeiro, enquanto está quente, ou tiraremos antes esses farrapos e tomaremos um banho, tomando a nossa refeição fria? Não se preocupe com mais nada. Estamos aqui nessa maravilhosa casinha e isto é tudo o que importa. O que faremos, então?

Ela sorriu hesitante. Seus olhos azuis fixavam-se no rosto dele, na ânsia de obter segurança. Depois disse: — Você não está preocupado com o que nos possa acontecer? — Fez um sinal para o quarto e acrescentou: — Não acha que tudo isso pode ser uma armadilha?

— Se se trata de uma armadilha, já caímos nela. Agora nada mais podemos fazer senão comer a isca. A única questão que subsiste é a de saber se a comeremos quente ou fria. — Apertou-lhe as mãos e continuou: — Seriamente, Honey. Deixe as preocupações comigo. Pense apenas onde estávamos apenas há uma hora. Isso aqui não é melhor? Agora, decidamos a única coisa realmente importante. Banho ou desjejum?

Ela respondeu com relutância: — Bem, se você acha... Quero dizer — preferiria antes lavar-me. — Mas logo acrescentou: — Você terá que ajudar-me. — E sacudiu a cabeça em direção ao banheiro, dizendo: Não sei como mexer numa coisa dessas. Como é que se faz?

Bond respondeu com toda seriedade: — É muito fácil. Vou preparar tudo para você. Enquanto você estivar tomando o seu banho tomarei o meu desjejum. Ao mesmo tempo tratarei de fazer com que o seu não esfrie.

Bond aproximou-se de um dos armários embutidos e abriu a porta. No interior havia uma meia dúzia de quimonos, alguns de seda e outros de linho. Apanhou um de linho, ao acaso. Depois, voltando-se para ela, disse: — Tire suas roupas e meta-se nisso aqui, enquanto preparo o seu banho. Mais tarde você escolherá as coisas que preferir, para a cama e para o jantar.

Ela respondeu com gratidão: — Oh, sim, James. Se você apenas me mostrasse... — E logo começou a desabotoar a saia.

Bond pensou em tomá-la nos braços e beijá-la, mas, ao invés disso, disse abruptamente: — ótimo, Honey — e, adiantando-se para o banheiro, abriu as torneiras.

Havia de tudo naquele banheiro: essência para banhos Floris Lime, para homens, e pastilhas de Guarlain para o banho de senhoras. Esfarelou uma pastilha na água e imediatamente o banheiro perfumou-se como uma loja de orquídeas. O sabonete era o Sapoceti de Guarlain “Fleurs des Alpes”. Num pequeno armário de remédios, atrás de um espelho, em cima da pia, podiam-se encontrar tubos de pasta, escovas de dente e palitos “Steradent”, água “Rose” para lavagem bucal, aspirina e leite de magnésia. Havia também um aparelho de barbear elétrico, loção “Lentheric” para barba, e duas escovas de náilon para cabelos e pentes. Tudo era novo e ainda não tinha sido tocado.

Bond olhou para o seu rosto sujo e sem barbear, no espelho, e riu sardonicamente para os próprios olhos, cinzentos, de pária queimado pelo sol. O revestimento da pílula certamente que era do melhor açúcar. Seria inteligente esperar que o remédio, no interior daquela pílula, fosse dos mais amargos.

Tocou a água, com a mão, a fim de sentir a temperatura. Talvez estivesse muito quente para quem jamais tinha tomado antes um banho quente. Deixou então que corresse um pouco mais de água fria. Ao inclinar-se, sentiu que dois braços lhe eram passados em torno do pescoço. Endireitou-se. Aquele corpo dourado resplandecia no banheiro todo revestido de ladrilhos brancos. Ela beijou-o impetuosamente nos lábios. Ele passou-lhe os braços à volta da cintura e esmagou-a de encontro a seu corpo, com o coração aos pulos. Ela disse sem fôlego, ao seu ouvido: — Achei estranhas as roupas chinesas, mas de qualquer maneira você disse à mulher que nós éramos casados.

Uma das mãos de Bond estava pousada sobre o seu seio esquerdo, cujo mamilo estava completamente endurecido pela paixão. O ventre da jovem se comprimia contra o seu. Por que não? Por que não? Não seja tolo! Este é um momento louco para isso. Vocês dois estão diante de um perigo mortal. Você deve continuar frio como gelo, para ter alguma possibilidade de se livrar dessa enrascada. Mais tarde! Mais tarde! Não seja fraco.

Bond retirou a mão do seio dela e espalmou-a à volta de seu pescoço. Esfregou o rosto de encontro ao dela e depois aproximou a boca da boca da jovem e deu-lhe um prolongado beijo.

Afastou-se depois e manteve-a à distância de um braço. Por um momento ambos se olharam, com os olhos brilhando de desejo. Ela respirava ofegantemente, com os lábios entreabertos, de modo que ele podia ver-lhe o brilho dos dentes. Ele disse com a voz trêmula: — Honey, entre no banho antes que eu lhe dê uma surra.

Ela sorriu e sem nada dizer entrou na banheira e deitou-se em todo seu comprimento. Do fundo da banheira ergueu os olhos para ele. Os cabelos louros, em seu corpo, brilhavam como moedas de ouro. Ela disse provocadoramente: — Você tem que me esfregar. Não sei como devo fazer, e você terá que mostrar-me.

Bond respondeu desesperadamente: — Cale a boca, Honey, e deixe de namoros. Apanhe a esponja, o sabonete e comece logo a se esfregar. Que diabo! Isso não é o momento de se fazer amor. Vou tomar o meu desjejum. — Esticou a mão para a porta e segurou na maçaneta. Ela disse docemente: — James! — Ele olhou para trás e viu que ela lhe fazia uma careta, com a língua de fora. Retribuiu com uma careta selvagem e bateu a porta com força.

Em seguida, Bond dirigiu-se para o quarto de vestir e deixou-se ficar durante algum tempo, de pé, no centro da peça, esperando que as batidas de seu coração se acalmassem. Esfregou as mãos no rosto e sacudiu a cabeça, procurando esquecê-la.

Para clarear a mente, percorreu ainda cuidadosamente as duas peças, procurando saídas, possíveis armas, microfones, qualquer coisa enfim que lhe aumentasse o conhecimento da situação em que se achava. Nada disso, entretanto, pôde encontrar. Na parede havia um relógio elétrico que marcava oito e meia e uma série de botões de campainhas, ao lado da cama de casal. Esses botões traziam a indicação de “Sala de serviço”, “cabeleireiro”, “manicure”, “empregada”. Não havia telefone. Bem no alto, a um canto de ambas as peças, viam-se as grades de um pequeno ventilador. Cada uma dessas grades era de dois pés quadrados. Tudo inútil. As portas pareciam ser feitas de algum metal leve, pintadas para combinarem com as paredes. Bond jogou todo o peso de seu corpo contra uma delas, mas ela não cedeu um só milímetro. Bond esfregou o ombro. Aquele lugar era uma verdadeira prisão. Não adiantava discutir a situação. A armadilha tinha-se fechado hermèticamente sobre eles. Agora, a única coisa que restava aos ratos era tirarem o melhor proveito possível da isca de queijo.

Bond sentou-se à mesa do desjejum, sobre a qual estava uma grande jarra com suco de abacaxi, metida num pequeno balde de prata cheio de cubos de gelo. Serviu-se rapidamente e levantou a tampa de uma travessa. Ali estavam ovos mexidos sobre torradas, quatro fatias de toucinho defumado, um rim grelhado e o que parecia quatro salsichas inglesas de carne de porco. Havia também duas torradas quentes, pãezinhos conservados quentes dentro de guardanapos, geléia de laranja e morango e mel. O café estava quase fervendo numa grande garrafa térmica, e o creme exalava um odor fresco e agradável.

Do banheiro vinham as notas da canção “Marion” que a jovem estava cantarolando. Bond resolveu não dar ouvidos à cantoria e concentrou-se nos ovos.

Dez minutos depois, Bond ouviu que a porta do banheiro se abria. Descansou uma torrada que tinha numa das mãos e cobriu os olhos com a outra. Ela riu e disse: — Ele é um covarde. Tem medo de uma simples jovem. — Em seguida Bond ouviu-a a remexer nos armários. Ela continuava falando, em parte consigo mesma: — Não sei porque ele está assustado. Naturalmente que se eu lutasse com ele facilmente o dominaria. Talvez esteja com medo disso. Talvez não seja realmente muito forte, embora seus braços e peito pareçam bastante rijos. Contudo, ainda não vi o resto. Talvez seja fraco. Sim, deve ser isso. Essa é a razão pela qual não ousa despir-se na minha frente. Hum, agora vamos ver, será que ele gostaria de mim com essas roupas? — Ela elevou a voz: — Querido James, você gostaria de me ver de branco, com pássaros azul-pálido esvoaçando sobre o meu corpo?

— Sim, bolas! Agora acabe com essa conversa e venha comer. Estou começando a sentir sono.

Ela soltou uma exclamação: — Oh, se você quer dizer que já está na hora de irmos para a cama, naturalmente que me apressarei.

Ouviu-se uma agitação de passos apressados e Bond logo a via sentar-se diante de si. Ele deixou cair as mãos e ela sorriu-lhe. Estava linda. Seu cabelo estava escovado e penteado de um dos lados caindo sobre o rosto, e do outro com as madeixas puxadas para trás da orelha. Sua pele brilhava de frescura e os grandes olhos azuis resplandeciam de felicidade. Agora Bond estava gostando daquele nariz quebrado. Tinha-se tornado parte de seus pensamentos relativamente a ela, e subitamente lhe ocorreu perguntar-se por que estaria ele triste quando ela era tão imaculadamente bela quanto tantas outras lindas jovens. Sentou-se circunspectamente, com as mãos no colo, e a metade dos seios aparecendo na abertura do quimono.

Bond disse severamente: — Agora, ouça, Honey. Você está maravilhosa, mas esta não é a maneira de usar-se um quimono. Feche-o no corpo, prenda-o bem e deixe de tentar parecer uma prostituta. Isso simplesmente não são bons modos à mesa.

— Oh, você não passa de um boneco idiota. — E ajeitou o quimono, fechando-o um pouco, em uma ou duas polegadas. — Por que você não gosta de brincar? Gostaria de brincar de estar casada.

— Não à hora do desjejum — respondeu Bond com firmeza. — Vamos, coma logo. Está delicioso. De qualquer maneira estou muito sujo, e agora vou fazer a barba e tomar um banho. — Levantou-se, deu volta à mesa e beijou-lhe o alto da cabeça. — E quanto a essa história de brincar, como você diz, gostaria mais de brincar com você do que com qualquer outra pessoa do mundo. Mas não agora. — Sem esperar pela resposta, dirigiu-se ao banheiro e fechou a porta.

Bond barbeou-se e tomou um banho de chuveiro. Sentia-se desesperadamente sonolento. O sono chegava-lhe, de modo que de quando em quando tinha que interromper o que fazia e inclinar a cabeça, repousando-a entre os joelhos. Quando começou a escovar os dentes, o seu estado era tal que mal podia fazê-lo. Estava começando a reconhecer os sintomas. Tinha sido narcotizado. A coisa teria sido posta no suco de abacaxi ou no café? Este era um detalhe sem importância. Aliás, nada tinha importância. Tudo o que queria fazer era estender-se naquele chão de ladrilhos e fechar os olhos. Assim mesmo, dirigiu-se cambaleante para a porta, esquecendo-se de que estava nu. Isso também pouca importância tinha. A jovem já tinha terminado a refeição e agora estava na cama. Continuou trôpego, até ela, segurando-se nos móveis. O quimono tinha sido abandonado no chão e ela dormia pesadamente, completamente nua, sob um simples lençol.

Bond olhou para o travesseiro, ao lado da jovem. Não! Procurou o interruptor e apagou as luzes. Agora teve que se arrastar pelo chão até chegar ao seu quarto. Chegou até junto de sua cama e atirou-se nela. Com grande esforço conseguiu ainda esticar o braço, tocar o interruptor e tentar apagar a lâmpada do criado-mudo. Mas não o conseguiu: sua mão deslizou, atirou o abajur ao chão e a lâmpada espatifou-se. Com um derradeiro esforço, Bond virou-se ainda no leito e adormeceu profundamente.

Os números luminosos do relógio elétrico, no quarto de casal, anunciavam nove e meia.

Às dez horas, a porta do quarto abriu-se suavemente. Um vulto muito alto e magro destacava-se na luz do corredor. Era um homem. Talvez tivesse dois metros de altura. Permaneceu no limiar da porta, com os braços cruzados, ouvindo. Dando-se por satisfeito, caminhou vagarosamente pelo quarto e aproximou-se da cama. Conhecia perfeitamente o caminho. Curvou-se sobre o leito e ouviu a serena respiração da jovem. Depois de um momento, tocou em seu próprio peito e acionou um interruptor. Imediatamente um amplo feixe de luz difusa projetou-se na cama. O farolete estava preso ao corpo do homem por meio de um cinto que o fixava à altura do esterno.

Inclinou-se novamente para a frente, de modo que a luz clareou o rosto da jovem.

O intruso examinou aquele rosto durante alguns minutos. Uma de suas mãos avançou, apanhou a orla do lençol, à altura do queixo da jovem, e puxou-o lentamente até os pés da cama. Mas a mão que puxara aquele lençol não era u’a mão. Era um par de pinças de aço muito bem articuladas na extremidade de uma espécie de talo metálico que desaparecia dentro de uma manga de seda negra. Era u’a mão mecânica.

O homem contemplou durante longo tempo aquele corpo nu, deslocando o seu peito de um lado para outro, de modo que todo o leito fosse submetido ao feixe luminoso. Depois, a garra saiu novamente de sob aquela manga e delicadamente levantou a ponta do lençol, puxando-o dos pés da cama até recobrir todo o corpo da jovem. O homem demorou-se ainda por um momento a contemplar o rosto adormecido, depois apagou o farolete e atravessou silenciosamente o quarto em direção à porta aberta, além da qual estava Bond dormindo.

O homem demorou-se mais tempo ao lado do leito de Bond. Perscrutou cada linha, cada sombra do rosto moreno e quase cruel que jazia quase sem vida, sobre o travesseiro. Observou a circulação à altura do pescoço e contou-lhe as batidas; depois, quando puxou o lençol para baixo, fez o mesmo na área do coração. Estudou a curva dos músculos, nos braços de Bond e nas coxas, e considerou pensativo a força oculta no ventre musculoso de Bond. Chegou até mesmo a curvar-se sobre a mão direita de Bond, estudando-lhe cuidadosamente as linhas da vida e do destino.

Por fim, com grande cuidado, a pinça de aço puxou novamente o lençol, desta vez para cobrir o corpo de Bond até o pescoço. Por mais um minuto o elevado vulto permaneceu ao lado do homem adormecido, depois se retirou rapidamente, ganhando o corredor, enquanto a porta se fechava com um estalido metálico e seco.


CONTINUA

XI - VIDA NO CANAVIAL


Seriam cerca de oito horas, pensou Bond. A não ser o coaxar dos sapos, tudo estava mergulhado em silêncio. No canto mais distante da clareira, ele podia vislumbrar o vulto de Quarrel.

Podia-se ouvir o tinir metálico, enquanto ele se ocupava em desmontar e secar a sua “Remington”.

Por entre as árvores podiam-se ver também as luzes distantes, vindas do depósito de guano, riscar caminhos luminosos e festivos sobre a superfície escura do lago. O desagradável vento desaparecera e o abominável cenário estava mergulhado em trevas. Estava bastante fresco. As roupas de Bond tinham secado no corpo. A comida tinha aquecido o seu estômago. Ele experimentou uma agradável sensação de conforto, sonolência e paz. O dia seguinte ainda estava muito longe e não apresentava problemas, a não ser uma boa dose de exercício físico. A vida, subitamente, pareceu-lhe fácil e boa.

A jovem estava a seu lado, metida no saco de dormir. Estava deitada de costas, com a cabeça descansando nas mãos, e olhando para o teto de estrelas. Ele apenas conseguia divisar os pálidos contornos de seu rosto. De repente, ela disse: James, você prometeu dizer-me o que significava tudo isso. Vamos. Eu não dormirei enquanto você não o disser.

Bond riu. — Eu direi se você também disser. Também quero saber o que você pretende.

— Pois não, não tenho segredos: mas você deve falar primeiro.

— Está certo. — Bond puxou os joelhos até a altura do queixo e passou os braços à volta deles. — Eu sou uma espécie de policial. Eles me enviam de Londres quando há alguma coisa de estranho acontecendo em alguma parte do mundo e que não interessa a ninguém. Bem, não faz muito tempo, um dos funcionários do Governador, em Kingston, um homem chamado Strangways, aliás meu amigo, desapareceu. Sua secretária, que era uma linda jovem, também desapareceu sem deixar vestígios. Muitos pensaram que eles tivessem fugido juntos, mas eu não acreditei nisso. Eu...”

Bond contou tudo com simplicidade, falando em homens bons e maus, como numa história de aventuras lida em algum livro. Depois terminou: Como você vê, Honey, temos de voltar a Jamaica, amanhã à noite, todos nós, na canoa, e então o Governador nos dará ouvidos e enviará um destacamento de soldados para apanhar este chinês. Espero que isso terá como conseqüência levá-lo à prisão. Ele com certeza também sabe disso, e essa é a razão pela qual procura aniquilar-nos. Essa é a história. Agora é a sua vez.

A jovem disse: Você parece viver uma vida muita excitante. Sua mulher não deve gostar que você fique fora tanto tempo. Ela não tem medo de que você se fira?

— Não sou casado. A única que se preocupa com a possibilidade de que eu me fira é a minha companhia de seguros.

Ela continuou sondando: Mas suponho que você tenha namoradas.

— Não permanentes.

— Oh!

Fez-se uma pausa. Quarrel se aproximou e disse: “Capitão, farei o primeiro quarto, se for melhor. Estarei na extremidade da restinga e virei chamá-lo à meia-noite. Então talvez o senhor possa ir até as cinco horas, quando nós nos poremos em marcha. Precisamos estar fora daqui antes que clareie o dia.

— Está bem — respondeu Bond. — Acorde-me se você vir alguma coisa. O revólver está em ordem?

— Perfeito — respondeu Quarrel com evidente mostra de contentamento. Depois, dirigindo-se à jovem disse com leve tom de insinuação: — Durma bem, senhorita. Em seguida, desapareceu silenciosamente nas sombras.

— Gosto de Quarrel — disse a jovem. E, após uma pausa: — Você quer realmente saber alguma coisa a meu respeito? A história não é tão excitante quanto a sua.

— É claro que quero. E não omita nada.

— Não há nada a omitir. Você poderia escrever toda a história de minha vida nas costas de um cartão postal. Para começar, nunca saí de Jamaica. Vivi toda a minha vida num lugar chamado Beau Desert, na costa setentrional, nas proximidades do Porto Morgan.

Bond riu. — É estranho: posso dizer o mesmo; pelo menos por enquanto. Não notei você pela região. Você vive em cima de uma árvore?

— Ah, imagino que você tenha ficado na casa da praia. Eu nunca chego até ali. Vivo na Casa Grande.

— Mas nada ficou dela. É uma ruína no meio dos canaviais.

— Eu vivo na adega. Tenho vivido ali desde a idade de cinco anos. Depois a casa se incendiou e meus pais morreram. Nada me lembro deles, por isso você não precisa manifestar pesar. A princípio vivi ali com a minha ama negra, mas depois ela morreu, quando eu tinha apenas quinze anos. Nos últimos cinco anos tenho vivido ali sozinha.

— Nossa Senhora! — Bond estava boquiaberto. — Mas não havia ninguém para tomar conta de você? Os seus pais não deixaram nenhum dinheiro?

— Nem um tostão. — Não havia o mínimo traço de amargura na voz da jovem — talvez orgulho, se houvesse alguma coisa. — Você sabe, os Riders eram uma das mais antigas famílias de Jamaica. O primeiro Rider recebera de Cromwell as terras de Beau Desert, por ter sido um dos que assinaram o veredicto de morte contra o rei Carlos. Ele construiu a Casa Grande e minha família viveu ora nela ora fora dela, desde aquela época. Mas depois veio a decadência do açúcar e eu acho que a propriedade foi pessimamente administrada, e, ao tempo em que meu pai tomou conta da herança, havia somente dívidas — hipotecas e outros ônus. Assim, quando meu pai e minha mãe morreram a propriedade foi vendida. Eu pouco me importei, pois era muito jovem. Minha ama deve ter sido maravilhosa. Quiseram que alguém me adotasse, mas a minha babá reuniu os pedaços de mobília que não tinham sido queimados e com eles nós nos instalamos da melhor forma no meio daquelas ruínas. Depois de algum tempo ninguém mais veio interferir conosco. Ela cosia um pouco e lavava para algumas freguesas da aldeia, ao mesmo tempo que plantava bananas e outras coisas, sem falar do grande pé de fruta-pão que havia diante da casa. Comíamos o que era a ração habitual do povo de Jamaica. E havia os pés de cana-de-açúcar à nossa volta. Ela fizera também uma rede para apanhar peixes, a qual nós recolhíamos todos os dias. Tudo corria bem e nós tínhamos o suficiente para comer. Ela ensinou-me a ler e escrever, como pôde. Tínhamos uma pilha de velhos livros que escapara ao incêndio, inclusive uma enciclopédia. Comecei com o A quando tinha apenas oito anos, e cheguei até o meio do T. — Ela disse um tanto na defensiva: — Aposto que sei mais do que você sobre muitas coisas.

— Estou certo de que sim. — Bond estava perdido na visão daquela jovem de cabelos de linho errando pelas ruínas de uma grande construção, com uma obstinada negra a vigiá-la e a chamá-la para receber as lições que deveriam ter sido um mistério para ela mesma. — Sua ama deve ter sido uma criatura extraordinária.

— Ela era um amor. — Era uma afirmação peremptória. — Pensei que fosse morrer quando ela faleceu. As coisas não foram tão fáceis para mim depois disso. Antes eu levava uma vida de criança, mas subitamente tive que crescer e fazer tudo por mim mesma. E os homens tentaram apanhar-me e atingir-me. Diziam que queriam fazer amor comigo. — Fez uma pausa e acrescentou: — Eu era bonita naquela época. Bond disse muito sério:

— Você é uma das jovens mais belas que já vi.

— Com este nariz? Não seja tolo.

— Você não compreende. — Bond tentou encontrar palavras nas quais ela pudesse crer. — É claro que qualquer pessoa pode ver que o seu nariz está quebrado; mas desde esta manhã dificilmente eu pude notá-lo. Quando se olha para uma pessoa, olha-se para os seus olhos ou para a sua boca. Nesses dois pontos se encontram a expressão. Um nariz quebrado não tem maior significação do que uma orelha torta. Narizes e orelhas são peças do mobiliário facial. Algumas são mais bonitas do que outras, mas não são tão importantes quanto o resto. Se você tivesse um nariz bonito, tão bonito como o resto, você seria a jovem mais bela de Jamaica.

— Você é sincero? — Sua voz era ansiosa. — Você acha que eu poderia ser bela? Sei que muita coisa em mim está bem, mas quando olho no espelho só vejo o meu nariz quebrado. Estou certa de que o mesmo ocorre com outras pessoas que são, que são — bem — mais ou menos aleijadas.

Bond disse com impaciência: — Você não é aleijada! Não diga tolices. E aliás você pode endireitá-lo mediante uma simples operação. Basta que você vá aos Estados Unidos e a coisa levará apenas uma semana.

Ela disse com irritação: — Como é que você quer que eu faça isso? Tenho cerca de quinze libras debaixo de uma pedra, na minha adega. Tenho ainda três saias, três blusas, uma faca e uma panela de peixe. Conheço muito bem essas operações. O médico de Porto Maria já pediu informações para mim. Ele é um homem muito bom e escreveu para os Estados Unidos. Pois para que a operação seja bem feita, eu teria que gastar cerca de quinhentas libras, sem falar da passagem para Nova York, a conta do hospital e tudo o mais.

Sua voz tornou-se desesperançada: — Como é que você espera que eu possa ter todo esse dinheiro?

Bond já decidira sobre o que teria de ser feito, mas no momento apenas disse ternamente: — Bem, espero que se possam encontrar meios; mas, de qualquer maneira, prossiga com a sua história. Ela é muito excitante — muito mais interessante do que a minha. Você tinha chegado ao ponto em que a sua ama morreu. O que aconteceu depois?

A jovem recomeçou com relutância.

— Bem, a culpa é sua por ter interrompido. E você não deve falar de coisas que não compreende. Suponho que as pessoas lhe digam que você é simpático. Você deve também ter todas as namoradas que desejar. Bem, isso não aconteceria se você fosse vesgo ou tivesse um lábio leporino. — Na verdade, ele pôde ouvir o sorriso em sua voz: — Acho que quando voltarmos eu irei ter com o feiticeiro para que lhe faça uma mandinga e lhe dê alguma coisa assim. — E ela acrescentou tristemente: — Dessa forma, nós seremos mais parecidos.

Bond estendeu o braço e sua mão tocou nela: — Eu tenho outros planos. Mas continuemos, quero ouvir o resto da sua história.

— Bem, — disse a jovem com um suspiro. — Eu terei que me atrasar um pouco. Como você sabe, toda a propriedade é representada pela cana-de-açúcar e pela velha casa que está situada no meio da plantação. Bem, umas duas vezes por ano eles cortam a cana e mandam-na para o moinho. E quando eles o fazem, todos os animais e insetos que vivem nos canaviais entram em pânico e a maioria deles têm as suas tocas destruídas e são mortos. Na época da safra, alguns deles começaram a vir para as ruínas da casa, onde se escondiam. No princípio, minha babá ficava aterrorizada, pois lá vinham os mangustos, as cobras e os escorpiões, mas eu preparei dois quartos da adega para recebê-los. Não me assustei com eles, e eles nunca me fizeram mal. Pareciam compreender que eu estava cuidando deles. E devem ter contado aquilo aos seus amigos, ou alguma coisa parecida, pois depois de algum tempo era perfeitamente natural que todos viessem acantonar-se em seus dois quartos, onde ficavam até que os canaviais começassem novamente a crescer, quando então iam saindo e voltando para os campos. Dei-lhes toda a comida que podíamos pôr de lado, quando eles ficavam conosco, e todos se portavam muito bem, a não ser por algum odor e às vezes uma ou outra luta entre si. Mas eram muito mansos comigo. Naturalmente os cortadores de cana perceberam tudo e viam-me andando pelo lugar com cobras à volta do meu pescoço, e assim por diante, a ponto de ficarem aterrorizados comigo e me considerarem uma feiticeira. Por causa disso, eles nos deixaram completamente isoladas. Ela fez uma pausa, e depois recomeçou:

— Foi assim que aprendi tanta coisa sobre animais e insetos. Eu costumava ainda passar muito tempo no mar, aprendendo coisas sobre os animais marinhos, assim como sobre os pássaros. Se se chega a saber o que todas essas criaturas gostam de comer e do que têm medo, pode-se muito bem fazer amizade com elas. — Levantou os olhos para Bond e disse: Você não sabe o que perde ignorando todas essas coisas.

— Receio que perca muito — respondeu Bond com sinceridade. — Suponho que eles sejam muito melhores e mais interessantes que os homens.

Sobre isso nada sei — respondeu a jovem pensativa-mente. — Não conheço muitas pessoas. A maioria das que conheci foram detestáveis, mas acho que deve haver criaturas interessantes também. — Fez uma pausa, e prosseguiu: — Nunca pensei realmente que chegasse a gostar de alguma pessoa como gosto dos animais. Com exceção da babá, naturalmente. Até que... — Ela se interrompeu com um sorriso de timidez. — Bem, de qualquer forma, nós vivemos muito felizes juntas, até que eu fiz quinze anos, quando então a babá morreu e as coisas se tornaram muito difíceis. Havia um homem chamado Mander. Um homem horroroso. Era o capataz branco que servia aos proprietários da plantação. Ele vivia me procurando. Queria que eu fosse viver com ele, em sua casa de Porto Maria.

Eu o odiava, e costumava esconder-me sempre que ouvia o seu cavalo aproximando-se do canavial. Certa noite ele veio a pé e eu não o ouvi. Estava bêbado. Entrou na adega e lutou comigo porque não queria fazer o que ele desejava. Você sabe, as coisas que fazem as pessoas quando estão apaixonadas.

— Sim, já sei.

— Tentei matá-lo com a minha faca, mas ele era muito forte e deu-me um soco tão forte no rosto que me quebrou o nariz. Deixou-me inconsciente e acho que fez alguma coisa comigo. Sei que ele fez mesmo. No dia seguinte eu quis me matar quando vi o meu rosto e verifiquei o que ele me havia feito. Pensei que iria ter um filho. Teria sem dúvida me matado se tivesse tido um filho daquele homem. Em todo caso, não tive, e tudo continuou assim. Fui ao médico e ele fez o que pôde com o meu nariz e não me cobrou nada. Quanto ao resto, eu nada lhe contei, pois estava muito envergonhada. O homem não voltou mais. Eu esperei e nada fiz até a próxima colheita de cana-de-açúcar. Tinha um plano. Estava esperando que as aranhas viúvas-negras viessem procurar abrigo. Um belo dia elas chegaram. Apanhei a maior das fêmeas e á deixei numa caixa sem nada para comer. As fêmeas são terríveis. Então esperei que fizesse uma noite escura, sem luar. Na primeira noite dessas, apanhei a caixa com a aranha e caminhei até chegar à casa do homem. Estava muito escuro e eu me sentia aterrorizada com a possibilidade de encontrar algum assaltante pela estrada, mas não houve nada. Esperei em seu jardim, oculta entre os arbustos, até que ele se recolheu à cama. Então subi por uma árvore e ganhei a sacada; aguardei até que ele começasse a roncar e depois entrei pela janela. Ele estava nu, estendido na cama, sob o mosquiteiro. Levantei uma aba do filó, abri a caixa e sacudi-lhe a aranha sobre o ventre. Depois saí e voltei para casa.

— Deus do céu! — exclamou Bond reverentemente. — O que aconteceu com o homem?

Ela respondeu com satisfação: — Levou uma semana para morrer. Deve ter-lhe doído terrivelmente. Você sabe, a mordida dessa aranha é pavorosa. Os feiticeiros dizem que não há nada que se lhe compare. — Ela fez uma pausa, e como Bond não fizesse nenhum comentário, acrescentou: — Você não acha que eu fiz mal, não é?

— Bem, não faça disso um hábito — respondeu Bond suavemente. — Mas não posso culpá-la, diante do que ele tinha feito. E, depois, o que aconteceu?

— Bem, depois me estabeleci novamente — sua voz era firme. — Tive que me concentrar na tarefa de obter alimento suficiente, e naturalmente. — Acrescentou persuasivamente: — Eu tinha de fato um nariz muito bonito, antes. Você acha que os médicos podem torná-lo igualzinho ao que era antes?

— Eles poderão fazê-lo de qualquer forma que você quiser — disse Bond em tom definitivo. — Como é que você ganhou dinheiro?

— Foi graças à enciclopédia. Li nela que há pessoas que gostam de colecionar conchas marinhas e que as conchas raras podiam ser vendidas. Falei com o mestre-escola local, sem contar-lhe naturalmente o meu segredo, e ele descobriu para mim que havia uma revista norte-americana chamada “Nautilus”, dedicada aos colecionadores de conchas. Eu tinha apenas o dinheiro suficiente para tomar uma assinatura daquela revista e comecei a procurar as conchas que as pessoas pediam em seus anúncios. Escrevi a um comerciante de Miami e ele começou a comprar as minhas conchas. Foi emocionante. Naturalmente que cometi alguns erros, no princípio. Pensei, por exemplo, que as pessoas gostariam das conchas mais bonitas, mas esse não era o caso. Freqüentemente elas preferiam as conchas mais feias. Depois, quando achava conchas raras, punha-me a limpá-las e poli-las a fim de torná-las mais bonitas, mas isso também foi um erro. Os colecionadores querem as conchas exatamente como saem do mar, com o animal em seu interior também. Então consegui algum formol com o médico e o punha entre as conchas vivas, para que elas não tivessem mau cheiro, e depois mandava-as para o tal comerciante de Miami. Só aprendi bem o negócio de um ano para cá e já consegui quinze libras. Consegui esse resultado agora que sei como é que eles querem as conchas e se tivesse sorte, poderia fazer pelo menos cinqüenta libras por ano. Então, em dez anos poderia ir aos Estados Unidos e operar-me. Mas, continuou ela com intenso contentamento, tive uma notável maré de sorte. Fui a Crab Key pelo Natal, onde já tinha estado antes. Mas dessa vez eu encontrei essas conchas purpúreas. Não parecem grande coisa, mas eu enviei uma ou duas para Miami e o comerciante escreveu-me para dizer que compraria tantas dessas conchas quantas eu pudesse encontrar, e ao preço de até cinco dólares pelas perfeitas. Disse-me ainda que eu deveria manter segredo sobre o lugar de onde as tirava, pois de outra forma o “mercado seria estragado”, como disse ele, e os preços cairiam. É como se se tivesse uma mina de ouro particular. Agora serei capaz de juntar o dinheiro em cinco anos. Esse foi o motivo pelo qual tive grandes suspeitas de você, quando o encontrei na praia. Pensei que você tivesse vindo para roubar as minhas conchas.

— Você me deu um susto, pois pensei que você fosse a garota do Dr. No.

— Muito obrigada.

— Mas depois que você tiver feito a operação, o que irá fazer? Você não pode continuar vivendo numa adega durante toda a vida.

— Pensei em me tornar uma prostituta. — Ela o disse como se tivesse dito “enfermeira” ou “secretária”.

— Oh, o que é que você quer dizer com isso? — Talvez ela já tivesse ouvido aquela expressão sem compreendê-la bem.

— Uma dessas jovens que possuem um bonito apartamento e lindas roupas. Você sabe o que quero dizer — acrescentou ela com impaciência. — Os homens telefonam, marcam encontro, chegam, fazem amor e pagam. Elas ganham cem dólares de cada vez, em Nova Iorque, onde pensei começar. Naturalmente — admitiu — terei de fazer por menos, no começo, até que aprenda a trabalhar bem. Quanto é que vocês pagam pelas que não têm experiência?

Bond riu. — Francamente, não me lembro. Há muito tempo que não me encontro com essas mulheres.

Ela suspirou. — Sim, suponho que você possa ter tantas mulheres quantas queira, por nada. Suponho que apenas os homens feios paguem, mas isso é inevitável. Qualquer espécie de trabalho nas grandes cidades deve ser horrível. Pelo menos pode-se ganhar muito mais como prostituta. Depois, poderia voltar para Jamaica e comprar Beau Desert. Seria bastante rica para encontrar um marido bonito e ter alguns filhos. Agora que encontrei essas conchas, penso que poderia estar de volta a Jamaica quando tivesse trinta anos. Não seria formidável?

— Gosto da última parte do plano, mas não tenho muita confiança na primeira. De qualquer forma, como é que você veio a saber dessa história de prostitutas? Encontrou isso na letra P, na enciclopédia?

— Claro que não; não seja tolo. Há uns dois anos houve em Nova Iorque um escândalo sobre elas, envolvendo também um “play-boy” chamado Jelke. Ele tinha toda uma cadeia de prostitutas, e eu li muito sobre o caso no “Gleaner”. O jornal deu inclusive os preços que elas cobravam e tudo o mais. De qualquer forma, há milhares dessas jovens em Kingston, embora não sejam tão boas. Recebem apenas cinco xelins e não têm um lugar apropriado para fazer amor, a não ser no mato. Minha babá chegou a falar-me delas. Disse-me que eu não deveria imitá-las, pois do contrário seria muito infeliz. É claro que seria, recebendo apenas cinco xelins. Mas por cem dólares!...

Bond observou: — Você não conseguiria guardar todo esse dinheiro. Precisaria ter uma espécie de gerente para arranjar os homens, e teria ainda de dar gorjetas à polícia, para deixá-la em paz. Por fim, poderia ir facilmente parar na cadeia se tudo não corresse bem. Na verdade, com tudo o que você sabe sobre animais, bem poderia ter um ótimo emprego, cuidando deles, em algum jardim zoológico norte-americano. E o que me diz do Instituto de Jamaica? Tenho certeza de que você gostaria mais de trabalhar ali. E poderia também facilmente encontrar um bom marido. De qualquer forma, você não deve mais pensar em ser prostituta. Você tem um belo corpo e deve guardá-lo para o homem que amar.

— Isso é o que dizem as pessoas nos livros — disse ela com ar de dúvida. — A dificuldade está em que não há nenhum homem para ser amado em Beau Desert. — Depois acrescentou timidamente: — Você é o único inglês com quem jamais falei. Gostei de você desde o princípio, e não me importo de dizer-lhe essas coisas agora. Penso que há muitas pessoas das quais chegaria a gostar se saísse daqui.

— É claro que há. Centenas. E você é uma garota formidável; o que pensei assim que a vi.

— Assim que viu as minhas nádegas, você quer dizer. — Sua voz estava-se tornando sonolenta, mas cheia de prazer.

Bond riu. — Bem, eram nádegas maravilhosas. E o outro lado também era maravilhoso. — O corpo de Bond começou a se agitar com a lembrança de como a vira pela primeira vez. Depois de um instante, disse com mau humor: — Agora vamos, Honey. Está na hora de dormir. Haverá muito tempo para conversarmos quando voltarmos a Jamaica.

— Haverá? — perguntou ela desconsoladamente. — Você promete?

— Prometo.

Ele a viu agitar-se dentro do saco de dormir. Olhou para baixo e apenas pôde divisar o seu pálido perfil voltado para ele. Ela deixou escapar o profundo suspiro de uma criança, antes de adormecer.

Reinava silêncio na clareira e o tempo estava esfriando. Bond descansou a cabeça sobre os joelhos unidos. Sabia que era inútil procurar dormir, pois sua mente estava cheia dos acontecimentos do dia e dessa extraordinária mulher Tarzan que aparecera em sua vida. Era como se algum animal muito bonito se lhe tivesse dedicado. E não largaria os cordéis enquanto não tivesse resolvido os problemas dela. Estava sentindo isso. Naturalmente que não haveria grandes dificuldades para a maioria de seus problemas. Quanto à operação, seria fácil arranjá-la, e até mesmo encontrar-lhe um emprego, com o auxílio de amigos, e um lar. Tinha dinheiro e haveria de comprar-lhe roupas, mandaria ajeitar os seus cabelos e a lançaria no grande mundo. Seria divertido. Mas quanto ao resto? Quanto ao desejo físico que sentia por ela? Não se podia fazer amor com uma criança. Mas, seria ela uma criança? Não haveria nada de infantil relativamente ao seu corpo ou à sua personalidade. Era perfeitamente adulta e bem inteligente, a seu modo, e muito mais capaz de tomar conta de si mesma do que qualquer outra jovem de vinte anos que Bond conhecera.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um puxão em sua manga. A vozinha disse: — Por que você não vai dormir? Não está sentindo frio?

— Não; estou bem.

— Aqui no saco de dormir está bom e quente. Você quer vir para cá? Tem bastante lugar.

— Não, obrigado, Honey. Estou bem.

Houve uma pausa, e depois ela disse num sussurro: — Se você está pensando... Quero dizer — você não precisa fazer amor comigo... Eu poderia dormir de costas para o seu peito.

— Honey, querida, vá dormir. Seria maravilhoso dormir assim com você, mas não esta noite. De qualquer maneira, em breve terei de render Quarrel.

— Muito bem, — disse ela com voz mal humorada. — Talvez quando voltarmos a Jamaica.

— Talvez.

— Prometa. Não dormirei enquanto você não prometer.

Bond disse desesperadamente: — Naturalmente que prometo. Agora, vá dormir, Honeychile.

A sua voz se fez ouvir outra vez, triunfante: — Agora você tem uma dívida comigo. Você prometeu. Boa-noite, querido James.

— Boa noite, querida Honey.


XII - A COISA


O aperto no braço de Bond era ansioso. Ele de um salto pôs-se de pé.

Quarrel sussurrou tensamente: — Alguma coisa está-se aproximando pela água, capitão! Com certeza é o dragão!

A jovem levantou-se e perguntou nervosamente: — Que aconteceu?

Bond apenas disse: — Fique aí, Honey! Não se mexa. Eu voltarei.

Internou-se pelos arbustos do lado oposto da montanha e correu pela restinga, com Quarrel ao lado.

Chegaram até a extremidade da restinga, a vinte metros da clareira, e pararam sob o abrigo dos últimos arbustos, que Bond apartou com as mãos para ter um melhor campo de visão.

O que seria aquilo? A meia milha de distância, atravessando o lago, vinha algo informe, com dois olhos brilhantes cor de laranja, e pupilas negras. Entre estes, onde deveria estar a boca, tremulava um metro de chama azul. A luminosidade cinzenta das estrelas deixava ver uma espécie de cabeça abaulada entre duas pequenas asas semelhantes às de um morcego. Aquela coisa estranha deixava escapar um ronco surdo e baixo, que abafava um outro ruído, uma espécie de vibração rítmica. Aquela massa avançava na direção deles, à velocidade de uns dezesseis quilômetros por hora, deixando atrás de si uma esteira de espuma.

Quarrel sussurrou:

— Nossa, capitão! Que coisa é aquela?

Bond continuou de pé e respondeu laconicamente: — Não sei exatamente. Uma espécie de trator arranjado para meter medo. Está trabalhando com um motor diesel, e por isso você pode deixar os dragões de lado. Agora, vejamos... — Bond falava como se para si mesmo. — Não adianta fugir. Aquilo se move mais depressa do que nós e sabemos que pode esmagar árvores e atravessar pântanos. Temos que lhe dar combate aqui mesmo. Quais serão os seus pontos fracos? Os motoristas. Com certeza, dispõem de proteção. Em todo caso, não sabemos muito sobre esse ponto. Quarrel, você começará a disparar contra aquela cúpula quando estiverem a uns duzentos metros de nós. Faça a pontaria cuidadosamente e continue atirando. Visarei os faróis quando estiverem a cinqüenta metros. Não se está movendo sobre lagartas. Deve ter alguma espécie de rodas gigantescas, provavelmente de avião. Visarei as rodas também. Fique aí. Ficarei dez metros para baixo. Naturalmente vão reagir e nós temos que manter as balas longe da garota. Está combinado? — Bond esticou o braço e apertou o enorme ombro de Quarrel. — E não se preocupe demais. Esqueça-se de dragões. Trata-se apenas de alguma trapaça do Dr. No. Mataremos os motoristas, tomaremos conta do veículo e ganharemos com ele a costa. Isso economizará as nossas solas. Está bem?

Quarrel deu uma breve risada. — Está bem, capitão. Desde que o senhor assim o diz. Mas que Nosso Senhor saiba também que aquilo não é dragão!

Bond desceu pela restinga e se internou pelos arbustos, até que encontrou um ponto de onde podia ter um bom campo de tiro. Disse suavemente: — Honey!

— Sim, James — e a voz dela deixou transparecer alívio.

— Faça um buraco na areia como fizemos na praia. Faça-o por trás de raízes grossas e fique lá deitada. Talvez haja um tiroteio. Não tenha medo de dragões. Isto é apenas um veículo pintado, dirigido por alguns dos homens do Dr. No. Não se assuste. Estou aqui perto.

— Muito bem, James. Tenha cuidado! — A voz agora deixava transparecer um vivo temor.

Bond curvou-se, apoiando um joelho no chão, sobre as folhas e a areia, e olhou para fora.

Agora o veículo achava-se a uns trezentos metros de distância, e os seus faróis amarelos estavam iluminando a areia. Chamas azuis continuavam saindo da boca daquele engenho. Saíam de uma espécie de longo focinho, no qual se pintaram mandíbulas entreabertas, para darem ao todo a aparência de dragão. Um lança-chamas! Aquilo explicava as árvores queimadas e a história do administrador. A coloração azul da chama seria dada por alguma espécie de queimador, disposto adiante do lança-chamas.

Bond teve que admitir que aquela visão era algo de terrível, à medida que o veículo avançava pelo lago raso. Evidentemente fora calculado para infundir terror. Ele mesmo ter-se-ia assustado, não fora a vibração rítmica do motor diesel. Mas até que ponto aquilo seria vulnerável para homens que não fossem dominados pelo pânico?

A resposta ele a teve quase imediatamente. Ouviu-se o estampido da “Remington” de Quarrel. Uma centelha saiu da cabina encimada pela cúpula e logo se ouviu um ruído metálico. Quarrel disparou mais um tiro e, logo em seguida, uma rajada. As balas chocaram-se inutilmente de encontro à cabina. Não houve mesmo uma simples redução de velocidade. O monstro continuava avançando para o ponto de onde tinham partido os disparos. Bond descansou o cano de seu “Smith & Wesson” no braço, e fez cuidadosa pontaria. O profundo ruído surdo de sua arma fez-se ouvir por sobre o matraquear da “Remington” de Quarrel. Um dos faróis fora atingido e despedaçara-se. Bond disparou mais quatro tiros contra o outro e atingiu-o com o quinto e último disparo de seu revólver. O fantástico aparelho parecia continuar não dando importância, e foi avançando para o lugar de onde tinham partido os disparos do “Smith & Wesson”. Bond tornou a carregar a arma e começou a atirar contra os pneumáticos, sob as asas negro e ouro. A distância agora era de apenas trinta metros e podia jurar que já atingira mais de uma vez a roda mais próxima, sem nenhum resultado. Seria borracha sólida? O primeiro estremecimento de medo percorreu a pele de Bond.

Carregou mais uma vez. Seria aquela coisa maldita vulnerável pela retaguarda? Deveria correr para o lago e tentar uma abordagem? Avançou um passo, através dos arbustos, mas logo ficou imóvel, incapaz de prosseguir.

Subitamente, daquele focinho ameaçador, uma língua de fogo azulada tinha sido lançada na direção do esconderijo de Quarrel. À direita de Bond, no mato, surgira apenas uma chama laranja e vermelha, simultaneamente com um estranho urro, que imediatamente silenciou. Satisfeita, aquela língua de fogo se recolhera à sua boca. Agora aquilo fizera um movimento de rotação sobre o seu eixo e parará completamente. O buraco azulado da boca apontava diretamente para Bond.

Bond deixou-se ficar, esperando pelo horroroso fim. Olhou através das mandíbulas da morte e viu o brilhante f-lamento vermelho do queimador, bem no fundo do comprido tubo. Pensou no corpo de Quarrel — mas não havia tempo para pensar em Quarrel — e imaginou-o completamente carbonizado. Dentro em pouco ele também se incendiaria como uma tocha. Um único berro seria arrancado dele e os seus membros se encolheriam na pose de dançarino dos corpos queimados. Depois viria a vez de Honey. Meu Deus, para o quê ele os havia arrastado! Por que fora tão insano a ponto de enfrentar aquele homem com todo o seu arsenal? Por que não aceitara a advertência que lhe fora feita pelo longo dedo que o alcançara já em Jamaica? Bond trincou os dentes. Vamos, canalhas. Depressa.

Ouviu-se a sonoridade de um alto-falante, que anunciava metàlicamente: “Saia daí, inglês. E a boneca também. Depressa ou será frito no inferno, como o seu amigo”. Para dar mais força àquela ordem, uma língua de fogo foi lançada em sua direção. Bond deu um passo atrás para recuar daquele intenso calor. Sentiu o corpo da garota de encontro às suas costas. Ela disse historicamente: — Tive que vir, tive que vir.

Bond disse: — Está bem, Honey. Fique atrás de mim.

Ele tinha-se decidido. Não havia alternativa. Mesmo que a morte viesse mais tarde, não poderia ser pior do que aquela morte diante do lança-chamas. Bond apanhou a mão da jovem e puxou-a consigo para fora, saindo para a areia.

A voz se fez ouvir novamente: — Pare aí, camarada. E deixe cair o lança-ervilhas. Nada de truques, senão os caranguejos terão um bom almoço.

Bond deixou cair a sua arma. Lá se fora o “Smith & Wesson”. O “Beretta” não teria tido melhor sorte: A jovem lastimou-se, e Bond apertou a sua mão. — Agüente, Honey, — disse ele. — Nós nos livraremos disso.

Bond troçou de si mesmo por causa daquela mentira. Ouviu-se o ruído de uma porta de ferro que se abria. Por trás da cúpula, um homem saltou para a água e caminhou até eles, com um revólver na mão. Ao mesmo tempo ia-se mantendo fora da linha de fogo do lança-chamas. A trêmula chama azul iluminou o seu rosto. Era um chinês negro, de enorme estatura, vestindo apenas calças. Alguma coisa balançava em sua mão esquerda, e quando ele se aproximou mais, Bond pôde ver que eram algemas.

O homem deteve-se a alguns metros de distância e disse:

— Levantem os braços. Punhos juntos e caminhem em minha direção. Você primeiro, inglês. Devagar ou receberá mais um umbigo.

Bond obedeceu e quando estava a um passo do homem, este prendeu o revólver entre os dentes, e esticou os braços e atou os seus pulsos com as algemas. Bond examinou aquele rosto iluminado pelas chamas azuis. Era uma cara brutal, com olhos estrábicos. O agente do Dr. No fitou-o com desprezo. — Bastardo imbecil! — disse.

Bond deu as costas ao homem e começou a se afastar. Ia ver o corpo de Quarrel. Tinha que lhe dizer adeus. Ouviu-se o ruído de um disparo e uma bala jogou-lhe areia nos pés. Bond parou, e voltando-se lentamente disse:

— Não fique nervoso. Vou dar uma espiada no homem que você acabou de assassinar. Voltarei.

O homem abaixou o revólver e riu grosseiramente: — Muito bem. Divirta-se. Desculpe se não temos uma coroa. Volte logo, se não daremos uma amostra à boneca. Dois minutos.

Bond caminhou em direção ao cerrado de arbustos fumegantes. Ali chegando, olhou para baixo. Seus olhos e boca se contraíram. Sim, tinha sido bem como ele imaginara. Pior, mesmo. Disse docemente: — Perdoe-me, Quarrel. — Com o pé soltou um pouco de areia, que colheu com as mãos algemadas e verteu-a sobre os restos dos olhos de Quarrel. Depois caminhou lentamente, de volta, e ficou ao lado da jovem.

O homem empurrou-os para a frente com o revólver. Deram a volta por trás da máquina, onde havia uma pequena porta quadrada. Uma voz do interior disse: — Entrem e sentem-se no chão. Não toquem em nada ou ficarão com os dedos partidos.

Com dificuldade, arrastaram-se para dentro daquela caixa de ferro, que cheirava a óleo e suor. Havia lugar apenas para que ambos se sentassem com as pernas encolhidas, de joelhos para cima. O homem que empunhava o revólver e que vinha atrás deles saltou por último para dentro do carro e fechou a porta. Ligou uma lâmpada e sentou-se num assento de ferro, ao lado do chofer. — Muito bem, Sam, vamos andando. Você pode apagar o fogo. Há luz bastante para dirigir — disse.

Na painel de controle podia-se ver uma fileira de mostradores. O motorista esticou a mão e deslocou para baixo um par de interruptores. Engrenou o motor e olhou através de uma estreita fresta, cortada na parede de ferro, diante dele. Bond sentiu que o veículo dava uma volta. Ouviu-se um movimento mais rápido do motor, e o veículo avançou.

O ombro da jovem apertou-se de encontro ao de Bond.

— Para onde estão eles nos levando? — O seu sussurro traía um estremecimento.

Bond voltou a cabeça e olhou para ela. Era a primeira vez que podia ver os seus cabelos depois de secos. Estavam desfeitos pelo sono, mas não eram mais mechas de rabichos empastados. Caíam densamente até os ombros, onde terminavam em anéis voltados para dentro. Eram do mais pálido louro acinzentado e despediam reflexos quase prateados sob a luz elétrica. Ela olhou para o alto, para ele. A pele, à volta dos olhos e nos cantos da boca, mostrava-se lívida de medo.

Bond deu de ombros, procurando aparentar uma indiferença que não sentia!. Sussurrou: — Oh, espero que vamos ver o Dr. No. Não se preocupe demais, Honey. Esses homens não passam de pequenos bandidos. Com ele, as coisas serão diferentes. Quando estivermos diante dele, não diga nada, falarei por nos dois. — Ele apertou o seu ombro e disse: — Gosto da maneira por que você penteia o seu cabelo, e fico contente porque você não o apara muito curto.

Um pouco da tenção desapareceu do rosto dela. — Como é que você pode pensar em coisas como essa? — Deu um leve sorriso para ele, e acrescentou: — Mas estou contente por você gostar de meu penteado. Lavo os meus cabelos com óleo de coco uma vez por semana.

À lembrança de sua outra vida, seus olhos ficaram brilhantes. Ela baixou a cabeça para as mãos algemadas, a fim de esconder as lágrimas. Sussurrou quase para si mesma: — Tentarei ser brava. Tudo estará bem, desde que você esteja lá.

Bond aconchegou-se a ela. Levantou suas mãos algemadas até a altura dos olhos e examinou as algemas. Eram do tipo usado pela polícia norte-americana. Contraiu sua mão esquerda, a mais fina das duas, e tentou fazê-la deslizar pelo anel de aço. Mesmo o suor de sua pele de nada adiantou. Era inútil.

Os dois homens sentavam-se em seus bancos de ferro, indiferentes, e com as costas voltadas para eles. Sabiam que dominavam inteiramente a situação. Não havia possibilidade de que Bond oferecesse qualquer incômodo. Não poderia levantar-se ou dar o necessário impulso aos seus punhos para causar qualquer mal às cabeças de seus adversários, utilizando as algemas. Se conseguisse abrir a porta e pular para a água, o que lograria com isso? Imediatamente eles sentiriam a brisa fresca, nas costas, e parariam a máquina para queimá-lo na água ou içá-lo novamente. Bond aborrecia-se em pensar que os homens pouco se preocupavam com ele, pois sabiam tê-lo completamente em seu poder. Também não gostou da idéia de que aqueles homens eram bastante inteligentes para saber que ele não representava nenhuma ameaça. Indivíduos mais estúpidos teriam ficado em cima deles, de revólver em punho, tê-los-iam surrado, a ele e à jovem, barbaramente, e talvez os tivessem deixado inconscientes. Aqueles dois conheciam o ofício. Eram profissionais, ou tinham sido treinados para o serem.

Os dois homens não falaram. Não houve nenhum comentário sobre o quão hábil eles tinham sido, ou quanto ao seu cansaço ou destino. Apenas dirigiam a máquina serenamente, ultimando com eficiência a sua tarefa.

Bond continuava sem a mínima idéia do que seria aquilo. Sob a tinta negra e dourada, assim como sob o resto daquela fantasia, a máquina parecia uma espécie de trator, como ele nunca vira. Não tinha conseguido descobrir nomes de marcas comerciais, nos pneumáticos, pois estivera muito escuro, mas certamente que deveriam ser de borracha sólida ou porosa. Atrás havia um pequena roda para dar estabilidade ao conjunto. Uma espécie de barbatana de ferro fora ainda acrescentada e pintada também de preto e ouro, a fim de ajudar a dar a aparência de dragão. Os altos pára-lamas tinham sofrido um prolongamento, na forma de curtas asas voltadas para trás. Uma comprida cabeça de dragão, feita em metal, fora fixada ao radiador e os faróis receberam pontos centrais negros, para parecerem olhos. Era tudo, sem falar da cabina que fora recoberta com uma cúpula blindada e dotada de um lança-chamas. Era, como pensara Bond, um trator preparado para assustar e queimar — embora não pudesse atinar porque estava dotado de um lança-chamas e não de uma metralhadora. Era, evidentemente, a única espécie de veículo que poderia percorrer a ilha. Suas gigantescas rodas podiam avançar sobre os mangues, pântanos e ainda atravessar o lago raso. Galgaria também os agrestes planaltos de coral e, desde que andasse à noite, o calor experimentado na cabina seria pelo menos tolerável.

Bond ficara impressionado. Impressionado pelo toque de profissionalismo. O Dr. No era sem dúvida um homem que se preocupava intensamente com as coisas. Em pouco iria encontrá-lo. E em breve estaria diante do segredo do Dr. No. Então, o que aconteceria? Bond sorriu amargamente. Sim, não o deixariam sair dali com o seu conhecimento. Certamente seria morto, a menos que pudesse fugir ou conseguir a sua liberdade por meios persuasivos. E o que aconteceria à jovem? Poderia ele provar sua inocência e conseguir com que ela fosse poupada? Possivelmente, mas nunca mais ela teria permissão para deixar a ilha. Ali teria de ficar para o resto da vida, como amante ou mulher de um dos homens, ou do próprio Dr. No, se ela o impressionasse.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um trecho do percurso mais difícil, como se podia sentir pela trepidação. Tinham atravessado o lago e estavam no caminho que levava para o alto da montanha, junto às cabanas. A cabina vibrava e a máquina começou a galgar o terreno. Dentro de cinco minutos estariam lá.

O ajudante do motorista olhou por sobre o ombro para Bond e a jovem. Bond sorriu confiantemente para ele dizendo: Você receberá uma medalha por isso.

Os olhos amarelos e marrons olharam impassivelmente dentro dos dele, enquanto os lábios arroxeados e oleosos se fenderam num sorriso no qual havia um ódio repousado: Feche a boca, se... Depois, deu-lhe as costas.

A jovem tocou-o com o cotovelo e sussurrou: — Por que eles são tão rudes? Por que nos odeiam tanto?

Bond esboçou um sorriso e disse: — Acho que é porque lhes causamos medo. Talvez ainda estejam com medo, e isto porque não parecemos ter medo deles. Devemos mantê-los assim.

A jovem aconchegou-se a ele e disse: — Tentarei.

Agora a subida estava-se tornando mais íngreme. Uma luz azul-acinzentada atravessava as frestas da armadura. A madrugada se aproximava. Fora, em breve estaria começando mais um dia de calor abrasador, de execrável vento, carregado com o cheiro de gás dos pântanos. Bond pensou em Quarrel, o bravo gigante que não mais veria aquele dia, e com o qual eles deveriam agora estar caminhando através dos pauis de mangues. Quarrel tinha pressentido a morte, mas apesar disso tinha acompanhado Bond sem qualquer objeção. Sua fé em Bond tinha sido maior do que o seu medo. E Bond tinha-lhe faltado. Seria ele ainda o causador da morte da jovem?

O motorista esticou o braço em direção ao painel e na parte dianteira do veículo fez-se ouvir o breve zunido de uma sirena de polícia, que foi desaparecendo num gemido fúnebre. Mais um minuto e o veículo parava, continuando o motor em regime neutro. O homem apertou um interruptor e tirou um microfone de um gancho, a seu lado. Falou por aquele microfone e Bond pôde ouvir a sua voz aumentada, do lado de fora, por um altofalante. — Tudo bem. Apanhamos o inglês e a garota. O outro homem morreu. Isso é tudo. Abram. — Bond ouviu que uma porta se deslocava para o lado, sobre rolamentos. O motorista embreou e eles avançaram lentamente para a frente, parando alguns metros adiante. O motorista desligou o motor. Ouviu-se o ruído metálico da tranca e a porta foi aberta pelo lado de fora. Uma lufada de ar fresco e uma luz mais brilhante penetraram na cabina. Várias mãos agarraram Bond e arrastaram-no para trás, até um chão de cimento. Bond agora estava de pé e sentia o cano de um revólver encostado ao seu flanco. Uma voz disse: — Fique onde está. Nada de espertezas. — Bond olhou para o homem. Era mais um chinês negro, do mesmo tipo que os outros. Os olhos amarelos examinaram-no com curiosidade. Bond virou-se com indiferença. Outro homem estava cutucando a jovem com a arma. Bond disse asperamente: — Deixe a garota em paz! Em seguida, caminhou e pôs-se ao lado da jovem. Os dois homens pareceram surpresos. Deixaram-se ficar de pé, apontando as armas com hesitação.

Bond olhou à volta. Estavam numa das cabanas pré-fabricadas que ele vira do rio. Era ao mesmo tempo uma garagem e uma oficina. O “dragão” tinha sido colocado sobre um fosso de vistoria, no chão de concreto. Um motor de popa desmontado estava sobre uma das bancadas. Longos tubos de luz fluorescente estavam afixados ao teto e o ambiente estava impregnado do cheiro de óleo e fumaça de exaustor. O motorista e o seu companheiro examinavam a máquina. Em seguida deram alguns passos pelo galpão, como se andassem sem propósito.

Um dos guardas anunciou: — Enviei a mensagem. A ordem é que eles sejam levados. Foi tudo bem?

O ajudante de motorista, que parecia o homem mais responsável, ali presente, disse: — Sem dúvida. Alguns disparos. Os faróis foram partidos. Talvez haja alguns furos nos pneumáticos. Ponha os rapazes em ação — uma vistoria completa. Conduzirei esses dois e tirarei um cochilo. — E, voltando-se para Bond: — Bem, vamos andando — e indicou o caminho que saía do longo galpão.

Bond disse: — Vá andando você; e cuidado com os modos. Diga àqueles macacos que tirem as armas de cima de nós. Podem disparar por engano. Parecem bastante idiotas.

O homem se aproximou, e os outros os acompanharam logo atrás. O ódio brilhava em seus olhos. O chefe levantou o punho cerrado, tão grande quanto um pequeno malho e chegou-o à altura do nariz de Bond. Procurava controlar-se com esforço, e disse: — Ouça, senhor. Às vezes, nós, os rapazes, temos permissão para participar da festa final. Estou rezando para que essa seja uma dessas vezes. Certa ocasião fizemos com que a coisa durasse toda uma semana. E se eu o pego...

Riu e os seus olhos brilharam com crueldade. Olhou para o lado de Bond, fixando a garota. Seus olhos pareciam transformados em bocas que agitavam os lábios. Enfiou as mãos nos bolsos laterais das calças. A ponta de sua língua mostrava-se muito vermelha, entre os lábios arroxeados. Voltando-se para os companheiros disse: — Que tal, rapazes?

Os três homens estavam olhando também para a jovem. Fizeram um sinal de assentimento, como crianças diante de uma árvore de Natal.

Bond desejou atirar-se como um louco sobre eles, golpeando as suas caras com os punhos algemados e aceitando a sua vingança sangrenta. Não fosse pela jovem, bem que o teria feito. Mas tudo o que tinha conseguido com suas corajosas palavras fora amedrontá-la. Disse apenas: — Muito bem, muito bem. Vocês são quatro e nós somos dois, ainda por cima com as mãos atadas. Vamos, não queremos atingi-los. Apenas não nos empurrem muito de um lado para outro. O Dr. No poderia não ficar satisfeito.

Àquele nome, os rostos dos homens se modificaram. Três pares de olhos passaram apàticamente de Bond para o chefe. Por um segundo, este olhou com desconfiança para Bond, intrigado, tentando descobrir se Bond teria alguma influência junto ao Dr. No. Sua boca abriu-se para dizer algo, mas logo pareceu pensar melhor, e apenas disse de maneira incerta: — Bem, bem, estávamos simplesmente brincando. — Voltou-se para os homens, em busca de confirmação: — Não é?

— Sem dúvida, sem dúvida! — foi a resposta dada por um coro áspero, e os homens desviaram o olhar.

O chefe disse com mau humor: — Por aqui, senhor. — E ele mesmo pôs-se a caminho, percorrendo o comprido galpão.

Bond segurou o pulso da jovem e seguiu o chefe. Estava impressionado com a reação causada naqueles homens pelo nome do Dr. No. Aquilo era alguma coisa a lembrar se eles tivessem que se haver novamente com aquela turma.

O homem chegou a uma porta de madeira situada na extremidade do galpão. Ao lado havia um botão de campainha que ele pressionou duas vezes e esperou. Ouviu-se um estalido e a porta se abriu, mostrando dez metros de uma passagem rochosa, mas atapetada e que ia dar, na outra extremidade, em outra porta mais elegante e pintada de creme.

O homem ficou de lado. Siga em frente, senhor — disse; — bata na porta e será atendido pela recepcionista. — Não havia nenhuma ironia em sua voz e seus olhos se mostravam impassíveis.

Bond conduziu Honey pela passagem. Ouviu que a porta se fechava às suas costas. Deteve-se por um momento e fitou-a, perguntando-lhe: — E agora?

Ela riu, trêmula, mas respondeu: — Ê bom sentir-se tapete sob os pés.

Bond apertou o seu pulso. Andou até a porta pintada de creme e bateu.

A porta abriu-se e Bond entrou com a jovem ao lado. Quando se deteve instantaneamente, não chegou a perceber o encontrão que lhe dava a jovem, pois continuou estarrecido.


XIII - GAIOLA DE OURO


Era a espécie de sala de recepção que as maiores corporações norte-americanas possuem no andar em que se situa o escritório do presidente, em seus arranha-céus de Nova Iorque. Suas proporções eram agradáveis, com cerca de vinte pés quadrados. O chão era todo recoberto pelo mais espesso tapete Wilton cor-de-vinho. O teto e as paredes estavam pintados numa suave tonalidade cinza pombo. Viam-se ainda reproduções litográficas de esboços de balé de Degas penduradas em séries, nas paredes, e a iluminação era feita com altos e modernos jogos de abajures de seda verde-escuro, imitando a forma de elegantes barricas.

À direita de Bond estavam uma larga mesa de mogno, com o tampo recoberto com couro verde, outras peças que se harmonizavam perfeitamente com a mesa, e um caro sistema de intercomunicações. Duas cadeiras altas, de antiquado, aguardavam os visitantes. Do outro lado da sala via-se uma mesa do tipo refeitório, sobre a qual estavam várias revistas com capas em cores vivas e mais duas cadeiras. Tanto na mesa de escritório, como na outra, viam-se vasos de hibiscos. O ar era fresco e impregnado de leve fragrância.

Duas mulheres estavam naquela sala. Por trás da mesa de trabalho, empunhando uma caneta que descansava sobre um formulário impresso, estava sentada uma jovem chinesa, de aspecto eficiente, com óculos de armação de chifre, sob uma franja de cabelos negros cortados curtos. Em seus olhos e em sua boca havia o sorriso padrão de boas-vindas que qualquer recepcionista exibe — a um tempo claro, obsequioso e inquisitivo.

Ainda com a mão na maçaneta da porta pela qual eles tinham passado, e esperando que os recém-chegados se adiantassem mais, a fim de que ela a pudesse fechar, estava uma mulher mais velha, com aspecto de matrona, e que deveria ter cerca de quarenta e cinco anos. Era fácil ver-se que também tinha sangue chinês. Sua aparência, saudável, de farto busto, era viva e quase excessivamente graciosa. O seu “pince-nez” de lentes cortadas em quadrado brilhava com o desejo da recepcionista de os pôr à vontade.

Ambas as mulheres vestiam roupas imaculadamente alvas, com meias brancas e sapatos de camurça branca como costumam apresentar-se as auxiliares empregadas nos mais luxuosos salões de beleza norte-americanos. Havia um que de suave e pálido em suas peles, como se elas raramente saíssem para o ar-livre.

Bond observou o ambiente, enquanto a mulher junto à porta lhe dizia frases convencionais de boas-vindas, como se eles tivessem sido colhidos por uma tempestade o chegado com atraso a uma festa.

— Oh, coitados! Nós não sabíamos quando vocês iriam chegar. A todo momento nos diziam que vocês já estavam a caminho... primeiro à hora do chá, ontem, depois na hora do jantar, e apenas há uma hora fomos informadas de que vocês chegariam à hora do desjejum. Devem estar com fome. Venham aqui e ajudem a irmã Rosa a preencher o formulário; depois eu os prepararei para a cama. Devem estar muito cansados.

Ia dizendo aquilo com voz doce e cacarejante, ao mesmo tempo que fechava a porta e os levava para junto da mesa e os fazia sentar nas cadeiras. Depois disse: — Bem, eu sou a irmã Lírio, e esta é a irmã Rosa. Ela irá fazer-lhes apenas algumas perguntas. Agora, aceitam um cigarro? — e pegou uma caixa de couro trabalhado que estava em cima da mesa. Abriu-a e pô-la diante deles. A caixa tinha três divisões, e a chinesinha explicou apontando com um dedo: “Esses são americanos, esses são ingleses e esses turcos.” Ela apanhou um luxuoso isqueiro de mesa e esperou.

Bond estendeu as mãos algemadas para tirar um cigarro turco.

A irmã Lírio deu um gritinho de espanto: — Oh, mas francamente. — Parecia sinceramente embaraçada. — Irmã Rosa, dê-me a chave, depressa. Já disse por várias vezes que os pacientes não devem ser trazidos dessa maneira. — Havia impaciência e aborrecimento em sua voz. — Francamente, aquela gente lá de fora! Já era tempo que eles fossem chamados à ordem.

A irmã Rosa estava tão embaraçada quanto a irmã Lírio. Rapidamente remexeu dentro de uma gaveta e entregou uma chave à irmã Lírio, que com muitas desculpas e cheia de dedos abriu os dois pares de algemas e, afastando-se para trás da mesa, deixou aquelas duas pulseiras de aço caírem dentro da cesta de papéis como se fossem ataduras sujas.

— Obrigado, — disse Bond, que não sabia como enfrentar aquela situação, a não ser procurando desempenhar um papel qualquer na comédia que se estava representando. Ele estendeu o braço, apanhou um cigarro e acendeu-o. Lançou um olhar para Honeyehile Rider, que parecia estonteada e nervosamente apertava com as mãos os braços de sua cadeira. Bond dirigiu-lhe um sorriso de conforto.

— Agora, por favor; — disse a irmã Rosa e inclinou-se sobre um comprido formulário impresso em papel caro. — Prometo ser o mais rápida que puder. O seu nome, sr... sr...

— Bryce, John Bryce.

Ela escreveu a resposta com grande concentração. — Endereço permanente?

— Aos cuidados do Jardim Zoológico Real, Regents Park, Londres, Inglaterra.

— Profissão?

— Ornitologista.

— Oh, meu Deus!, poderia o senhor soletrar isso? Bond atendeu-a.

— Muito obrigada. Agora, vejamos, objeto da viagem?

— Aves — respondeu Bond. — Sou também representante da Sociedade Audubon de Nova Iorque. Eles arrendaram parte desta ilha.

— Oh, sem dúvida. — Bond observou que a pena escrevia exatamente o que ele dizia. Depois da última palavra ela pôs um claro ponto de interrogação entre parênteses.

— E — a irmã Rosa sorriu polidamente em direção a Honeyehile — a sua esposa? Ela também está interessada em pássaros?

— Sim, sem dúvida.

— O seu primeiro nome?

— Honeyehile.

A irmã Rosa estava encantada. — Que nome lindo! — Ela voltou a escrever apressadamente. — E agora os parentes mais próximos de ambos, e estará tudo acabado.

Bond deu o verdadeiro nome de M como o parente mais próximo de ambos. Apresentou-o como “tio” e indicou o seu endereço como sendo “Diretor-Gerente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres.”

A irmã Rosa acabou de escrever e disse: — Pronto, está tudo feito. Muito obrigada, sr. Bryce, e espero que ambos apreciem a permanência aqui.

— Muito obrigado. Estou certo de que apreciaremos. — Bond levantou-se e Honeyehile fez o mesmo, ainda com expressão vazia.

A irmã Lírio disse: — Agora, venham comigo, queridos.

— Ela caminhou até uma porta na parede distante e deteve-se com a mão na maçaneta talhada em vidro. — Oh, meu Deus, — disse —, não é que agora me esqueci do número de seus quartos? É o apartamento creme, não é, irmã?

— Isso mesmo. Catorze e quinze.

— Obrigada, querida. E agora — ela abriu a porta — se vocês quiserem me seguir... Receio que seja uma caminhada um pouco longa. — Fechou a porta, por trás deles, e pôs-se à frente, indicando o caminho. — O Doutor tem falado várias vezes em instalar uma dessas escadas rolantes, ou algo de parecido, mas sabem como são os homens ocupados: — Ela riu alegremente. — Ele tem tantas outras coisas em que pensar!

— Sim, acredito, — disse Bond polidamente.

Bond tomou a mão da jovem e seguiram ambos a maternal e agitada chinesa através de cem metros de um alto corredor, do mesmo estilo da sala de recepção, mas que era iluminado a freqüentes intervalos por caros tubos luminosos fixados às paredes.

Bond respondia com polidos monossílabos aos comentários ocasionais que a irmã Lírio lhe lançava por sobre os ombros. Toda a sua mente se concentrava nas extraordinárias circunstâncias de sua recepção. Tinha certeza de que aquelas duas mulheres tinham sido sinceras. Nenhum só olhar ou palavra conseguira registrar que estivesse fora de propósito. Evidentemente aquilo era alguma espécie de fachada, mas de qualquer forma uma fachada sólida, meticulosamente apoiada pelo cenário e pelo elenco. A ausência de ressonância, na sala, e agora no corredor, estava a indicar que eles tinham deixado o galpão pré-fabricado para se internarem no flanco da montanha e agora estavam atravessando a sua base. Segundo o seu palpite estavam mesmo andando em direção oeste — em direção à penedia na qual terminava a ilha. Não havia umidade nas paredes e o ar parecia fresco e puro, com uma brisa a afagá-los. Muito dinheiro e uma bela realização de engenharia tinham sido os responsáveis por aquilo. A palidez das duas mulheres estava a sugerir que passavam a maior parte do tempo internadas no âmago da montanha. Do que a irmã dissera, parecia que elas faziam parte de um grupo de funcionários internos que nada tinham a ver com o destacamento de choque do exterior, e que talvez não soubessem a espécie de homens que eles eram.

Aquilo era grotesco, concluiu Bond ao se aproximar de uma porta, na extremidade do corredor, perigosamente grotesco, mas em nada adiantava pensar nisso no momento. Ele apenas podia seguir o papel que lhe tinha sido destinado. Pelo menos, aquilo era melhor do que os bastidores, na arena exterior da ilha.

Junto à porta, a irmã Lírio fez soar uma campainha. Já eram esperados e a porta abriu-se imediatamente. Uma encantadora jovem chinesa, de quimono lilás e branco, ficou a sorrir e a curvar-se, como se deve esperar que o façam as jovens chinesas. E, mais uma vez só havia calor e um sentimento de boas-vindas naquele rosto pálido como uma for. A irmã Lírio exclamou: — Aqui estão eles, finalmente, May! São o senhor e a senhora John Bryce. E sei que ambos devem estar exaustos, por isso devemos levá-los imediatamente aos seus aposentos, para que possam repousar e dormir. — Voltando-se para Bond: — Esta é May, muito boazinha. Ela tratará de ambos. Qualquer coisa que queiram é só tocar a campainha que May atenderá. É uma espécie de favorita de todos os nossos hóspedes.

Hóspedes!, pensou Bond. Essa é a segunda vez que ela usa a palavra. Sorriu polidamente para a jovem, e disse;

— Muito prazer; sim, certamente que gostaríamos de ir para os nossos aposentos.

May envolveu-os num cálido sorriso, e disse em voz baixa e atraente: — Espero que ambos se sintam bem, sr. Bryce. Tomei a liberdade de mandar vir uma refeição assim que soube que os senhores iam chegar. Vamos...? — Corredores saiam para a esquerda e a direita de portas duplas de elevadores, instalados na parede oposta. A jovem adiantou-se, caminhando na frente, para a direita, logo seguida de Bond e Honeyehile, que tinham atrás a irmã Lírio.

Ao longo do corredor, dos dois lados, viam-se portas numeradas. A decoração era feita no mais pálido cor-de-rosa, com um tapete cinza-pombo. Os números nas portas eram superiores a dez. O corredor terminava abruptamente, com duas portas, uma em frente a outra, com a numeração catorze e quinze. A irmã May abriu a porta catorze e o casal a seguiu, entrando na peça.

Era um lindo quarto de casal, em moderno estilo Mia-mi, com paredes verde-escuro, chão encerado de mogno escuro, com um ou outro espesso tapete branco e bem desenhado mobiliário de bambu com um tecido “chintz” de grandes rosas vermelhas sobre fundo branco. Havia uma porta de comunicação para um quarto de vestir masculino e outra que dava para um banheiro moderno e extremamente luxuoso, com uma banheira de descida e um bidê.

Era como se tivessem sido introduzidos num apartamento do mais moderno hotel da Flórida, com exceção de dois detalhes que não passaram despercebidos a Bond. Não havia janelas e nenhuma maçaneta interior nas portas.

May olhou com expressão de expectativa, de um para o outro.

Bond voltou-se para Honeyehile e sorriu-lhe: — Parece muito confortável, não acha, querida?

A jovem brincava com a barra da saia e fez um sinal de assentimento sem olhar para Bond.

Ouviu-se uma tímida batida na porta e outra jovem, tão linda quanto May, entrou carregando uma bandeja que se equilibrava sobre as palmas das mãos. A jovem descansou a bandeja sobre a mesa do centro e puxou duas cadeiras. Retirou a toalha de linho imaculadamente limpa e saiu. Sentiu-se um delicioso cheiro de fiambre e café.

May e a irmã Lírio também se encaminharam para a porta. A mulher mais idosa se deteve por um instante e disse:

— E agora nós os deixaremos em paz. Se desejarem alguma coisa, basta tocar a campainha. Os interruptores estão ao lado da cama. Ah, outra coisa, poderão encontrar roupa limpa nos aparadores. Receio que sejam apenas de estilo chinês,

— acrescentou, como a desculpar-se —, mas espero que os tamanhos satisfaçam. A rouparia só recebeu as medidas ontem à noite. O Dr. deu ordens severas para que os senhores não fossem perturbados. Ficará encantado se puderem reunir-se a ele, esta noite, para o jantar. Deseja, entretanto, que tenham todo o resto do dia à vontade, a fim de que melhor se ambientem, compreendem? — Fez uma pausa e olhou para um e para outro, com um sorriso indagador. — Posso dizer que os senhores...?

— Sim, por favor, — disse Bond. — Pode dizer ao D., que teremos muito prazer em jantar com ele.

— Oh, sei que ficará contente. — Com uma derradeira mesura, as duas chinesas se retiraram e fecharam a porta.

Bond voltou-se para Honeyehile, que parecia embaraçada e ainda evitava os seus olhos. Ocorreu então a Bond que talvez jamais tivesse ela tido um tratamento tão cortês ou visto tanto luxo em sua vida. Para ela, tudo aquilo devia ser muito mais estranho e aterrador do que o que tinham passado ao lado de fora. Ela continuou na mesma posição, brincando com a barra da saia. Podiam-se notar vestígios de suor seco, sal e poeira em seu rosto. Suas pernas nuas estavam sujas e Bond observou que os dedos de seus pés se moviam, suavemente, ao pisarem nervosamente o maravilhoso e espesso tapete.

Bond riu. Riu com gosto ao pensamento de que os temores da jovem tivessem sido abafados pelas preocupações de etiqueta e comportamento, e riu-se também da figura que ambos faziam — ela em farrapos e ele com a suja camisa azul, as calças pretas e os sapatos de lona enlameados.

Aproximou-se dela e segurou-lhe mãos. Estavam frias. Disse: — Honey, somos um par de espantalhos, mas há apenas um problema básico. Devemos tomar o nosso desjejum primeiro, enquanto está quente, ou tiraremos antes esses farrapos e tomaremos um banho, tomando a nossa refeição fria? Não se preocupe com mais nada. Estamos aqui nessa maravilhosa casinha e isto é tudo o que importa. O que faremos, então?

Ela sorriu hesitante. Seus olhos azuis fixavam-se no rosto dele, na ânsia de obter segurança. Depois disse: — Você não está preocupado com o que nos possa acontecer? — Fez um sinal para o quarto e acrescentou: — Não acha que tudo isso pode ser uma armadilha?

— Se se trata de uma armadilha, já caímos nela. Agora nada mais podemos fazer senão comer a isca. A única questão que subsiste é a de saber se a comeremos quente ou fria. — Apertou-lhe as mãos e continuou: — Seriamente, Honey. Deixe as preocupações comigo. Pense apenas onde estávamos apenas há uma hora. Isso aqui não é melhor? Agora, decidamos a única coisa realmente importante. Banho ou desjejum?

Ela respondeu com relutância: — Bem, se você acha... Quero dizer — preferiria antes lavar-me. — Mas logo acrescentou: — Você terá que ajudar-me. — E sacudiu a cabeça em direção ao banheiro, dizendo: Não sei como mexer numa coisa dessas. Como é que se faz?

Bond respondeu com toda seriedade: — É muito fácil. Vou preparar tudo para você. Enquanto você estivar tomando o seu banho tomarei o meu desjejum. Ao mesmo tempo tratarei de fazer com que o seu não esfrie.

Bond aproximou-se de um dos armários embutidos e abriu a porta. No interior havia uma meia dúzia de quimonos, alguns de seda e outros de linho. Apanhou um de linho, ao acaso. Depois, voltando-se para ela, disse: — Tire suas roupas e meta-se nisso aqui, enquanto preparo o seu banho. Mais tarde você escolherá as coisas que preferir, para a cama e para o jantar.

Ela respondeu com gratidão: — Oh, sim, James. Se você apenas me mostrasse... — E logo começou a desabotoar a saia.

Bond pensou em tomá-la nos braços e beijá-la, mas, ao invés disso, disse abruptamente: — ótimo, Honey — e, adiantando-se para o banheiro, abriu as torneiras.

Havia de tudo naquele banheiro: essência para banhos Floris Lime, para homens, e pastilhas de Guarlain para o banho de senhoras. Esfarelou uma pastilha na água e imediatamente o banheiro perfumou-se como uma loja de orquídeas. O sabonete era o Sapoceti de Guarlain “Fleurs des Alpes”. Num pequeno armário de remédios, atrás de um espelho, em cima da pia, podiam-se encontrar tubos de pasta, escovas de dente e palitos “Steradent”, água “Rose” para lavagem bucal, aspirina e leite de magnésia. Havia também um aparelho de barbear elétrico, loção “Lentheric” para barba, e duas escovas de náilon para cabelos e pentes. Tudo era novo e ainda não tinha sido tocado.

Bond olhou para o seu rosto sujo e sem barbear, no espelho, e riu sardonicamente para os próprios olhos, cinzentos, de pária queimado pelo sol. O revestimento da pílula certamente que era do melhor açúcar. Seria inteligente esperar que o remédio, no interior daquela pílula, fosse dos mais amargos.

Tocou a água, com a mão, a fim de sentir a temperatura. Talvez estivesse muito quente para quem jamais tinha tomado antes um banho quente. Deixou então que corresse um pouco mais de água fria. Ao inclinar-se, sentiu que dois braços lhe eram passados em torno do pescoço. Endireitou-se. Aquele corpo dourado resplandecia no banheiro todo revestido de ladrilhos brancos. Ela beijou-o impetuosamente nos lábios. Ele passou-lhe os braços à volta da cintura e esmagou-a de encontro a seu corpo, com o coração aos pulos. Ela disse sem fôlego, ao seu ouvido: — Achei estranhas as roupas chinesas, mas de qualquer maneira você disse à mulher que nós éramos casados.

Uma das mãos de Bond estava pousada sobre o seu seio esquerdo, cujo mamilo estava completamente endurecido pela paixão. O ventre da jovem se comprimia contra o seu. Por que não? Por que não? Não seja tolo! Este é um momento louco para isso. Vocês dois estão diante de um perigo mortal. Você deve continuar frio como gelo, para ter alguma possibilidade de se livrar dessa enrascada. Mais tarde! Mais tarde! Não seja fraco.

Bond retirou a mão do seio dela e espalmou-a à volta de seu pescoço. Esfregou o rosto de encontro ao dela e depois aproximou a boca da boca da jovem e deu-lhe um prolongado beijo.

Afastou-se depois e manteve-a à distância de um braço. Por um momento ambos se olharam, com os olhos brilhando de desejo. Ela respirava ofegantemente, com os lábios entreabertos, de modo que ele podia ver-lhe o brilho dos dentes. Ele disse com a voz trêmula: — Honey, entre no banho antes que eu lhe dê uma surra.

Ela sorriu e sem nada dizer entrou na banheira e deitou-se em todo seu comprimento. Do fundo da banheira ergueu os olhos para ele. Os cabelos louros, em seu corpo, brilhavam como moedas de ouro. Ela disse provocadoramente: — Você tem que me esfregar. Não sei como devo fazer, e você terá que mostrar-me.

Bond respondeu desesperadamente: — Cale a boca, Honey, e deixe de namoros. Apanhe a esponja, o sabonete e comece logo a se esfregar. Que diabo! Isso não é o momento de se fazer amor. Vou tomar o meu desjejum. — Esticou a mão para a porta e segurou na maçaneta. Ela disse docemente: — James! — Ele olhou para trás e viu que ela lhe fazia uma careta, com a língua de fora. Retribuiu com uma careta selvagem e bateu a porta com força.

Em seguida, Bond dirigiu-se para o quarto de vestir e deixou-se ficar durante algum tempo, de pé, no centro da peça, esperando que as batidas de seu coração se acalmassem. Esfregou as mãos no rosto e sacudiu a cabeça, procurando esquecê-la.

Para clarear a mente, percorreu ainda cuidadosamente as duas peças, procurando saídas, possíveis armas, microfones, qualquer coisa enfim que lhe aumentasse o conhecimento da situação em que se achava. Nada disso, entretanto, pôde encontrar. Na parede havia um relógio elétrico que marcava oito e meia e uma série de botões de campainhas, ao lado da cama de casal. Esses botões traziam a indicação de “Sala de serviço”, “cabeleireiro”, “manicure”, “empregada”. Não havia telefone. Bem no alto, a um canto de ambas as peças, viam-se as grades de um pequeno ventilador. Cada uma dessas grades era de dois pés quadrados. Tudo inútil. As portas pareciam ser feitas de algum metal leve, pintadas para combinarem com as paredes. Bond jogou todo o peso de seu corpo contra uma delas, mas ela não cedeu um só milímetro. Bond esfregou o ombro. Aquele lugar era uma verdadeira prisão. Não adiantava discutir a situação. A armadilha tinha-se fechado hermèticamente sobre eles. Agora, a única coisa que restava aos ratos era tirarem o melhor proveito possível da isca de queijo.

Bond sentou-se à mesa do desjejum, sobre a qual estava uma grande jarra com suco de abacaxi, metida num pequeno balde de prata cheio de cubos de gelo. Serviu-se rapidamente e levantou a tampa de uma travessa. Ali estavam ovos mexidos sobre torradas, quatro fatias de toucinho defumado, um rim grelhado e o que parecia quatro salsichas inglesas de carne de porco. Havia também duas torradas quentes, pãezinhos conservados quentes dentro de guardanapos, geléia de laranja e morango e mel. O café estava quase fervendo numa grande garrafa térmica, e o creme exalava um odor fresco e agradável.

Do banheiro vinham as notas da canção “Marion” que a jovem estava cantarolando. Bond resolveu não dar ouvidos à cantoria e concentrou-se nos ovos.

Dez minutos depois, Bond ouviu que a porta do banheiro se abria. Descansou uma torrada que tinha numa das mãos e cobriu os olhos com a outra. Ela riu e disse: — Ele é um covarde. Tem medo de uma simples jovem. — Em seguida Bond ouviu-a a remexer nos armários. Ela continuava falando, em parte consigo mesma: — Não sei porque ele está assustado. Naturalmente que se eu lutasse com ele facilmente o dominaria. Talvez esteja com medo disso. Talvez não seja realmente muito forte, embora seus braços e peito pareçam bastante rijos. Contudo, ainda não vi o resto. Talvez seja fraco. Sim, deve ser isso. Essa é a razão pela qual não ousa despir-se na minha frente. Hum, agora vamos ver, será que ele gostaria de mim com essas roupas? — Ela elevou a voz: — Querido James, você gostaria de me ver de branco, com pássaros azul-pálido esvoaçando sobre o meu corpo?

— Sim, bolas! Agora acabe com essa conversa e venha comer. Estou começando a sentir sono.

Ela soltou uma exclamação: — Oh, se você quer dizer que já está na hora de irmos para a cama, naturalmente que me apressarei.

Ouviu-se uma agitação de passos apressados e Bond logo a via sentar-se diante de si. Ele deixou cair as mãos e ela sorriu-lhe. Estava linda. Seu cabelo estava escovado e penteado de um dos lados caindo sobre o rosto, e do outro com as madeixas puxadas para trás da orelha. Sua pele brilhava de frescura e os grandes olhos azuis resplandeciam de felicidade. Agora Bond estava gostando daquele nariz quebrado. Tinha-se tornado parte de seus pensamentos relativamente a ela, e subitamente lhe ocorreu perguntar-se por que estaria ele triste quando ela era tão imaculadamente bela quanto tantas outras lindas jovens. Sentou-se circunspectamente, com as mãos no colo, e a metade dos seios aparecendo na abertura do quimono.

Bond disse severamente: — Agora, ouça, Honey. Você está maravilhosa, mas esta não é a maneira de usar-se um quimono. Feche-o no corpo, prenda-o bem e deixe de tentar parecer uma prostituta. Isso simplesmente não são bons modos à mesa.

— Oh, você não passa de um boneco idiota. — E ajeitou o quimono, fechando-o um pouco, em uma ou duas polegadas. — Por que você não gosta de brincar? Gostaria de brincar de estar casada.

— Não à hora do desjejum — respondeu Bond com firmeza. — Vamos, coma logo. Está delicioso. De qualquer maneira estou muito sujo, e agora vou fazer a barba e tomar um banho. — Levantou-se, deu volta à mesa e beijou-lhe o alto da cabeça. — E quanto a essa história de brincar, como você diz, gostaria mais de brincar com você do que com qualquer outra pessoa do mundo. Mas não agora. — Sem esperar pela resposta, dirigiu-se ao banheiro e fechou a porta.

Bond barbeou-se e tomou um banho de chuveiro. Sentia-se desesperadamente sonolento. O sono chegava-lhe, de modo que de quando em quando tinha que interromper o que fazia e inclinar a cabeça, repousando-a entre os joelhos. Quando começou a escovar os dentes, o seu estado era tal que mal podia fazê-lo. Estava começando a reconhecer os sintomas. Tinha sido narcotizado. A coisa teria sido posta no suco de abacaxi ou no café? Este era um detalhe sem importância. Aliás, nada tinha importância. Tudo o que queria fazer era estender-se naquele chão de ladrilhos e fechar os olhos. Assim mesmo, dirigiu-se cambaleante para a porta, esquecendo-se de que estava nu. Isso também pouca importância tinha. A jovem já tinha terminado a refeição e agora estava na cama. Continuou trôpego, até ela, segurando-se nos móveis. O quimono tinha sido abandonado no chão e ela dormia pesadamente, completamente nua, sob um simples lençol.

Bond olhou para o travesseiro, ao lado da jovem. Não! Procurou o interruptor e apagou as luzes. Agora teve que se arrastar pelo chão até chegar ao seu quarto. Chegou até junto de sua cama e atirou-se nela. Com grande esforço conseguiu ainda esticar o braço, tocar o interruptor e tentar apagar a lâmpada do criado-mudo. Mas não o conseguiu: sua mão deslizou, atirou o abajur ao chão e a lâmpada espatifou-se. Com um derradeiro esforço, Bond virou-se ainda no leito e adormeceu profundamente.

Os números luminosos do relógio elétrico, no quarto de casal, anunciavam nove e meia.

Às dez horas, a porta do quarto abriu-se suavemente. Um vulto muito alto e magro destacava-se na luz do corredor. Era um homem. Talvez tivesse dois metros de altura. Permaneceu no limiar da porta, com os braços cruzados, ouvindo. Dando-se por satisfeito, caminhou vagarosamente pelo quarto e aproximou-se da cama. Conhecia perfeitamente o caminho. Curvou-se sobre o leito e ouviu a serena respiração da jovem. Depois de um momento, tocou em seu próprio peito e acionou um interruptor. Imediatamente um amplo feixe de luz difusa projetou-se na cama. O farolete estava preso ao corpo do homem por meio de um cinto que o fixava à altura do esterno.

Inclinou-se novamente para a frente, de modo que a luz clareou o rosto da jovem.

O intruso examinou aquele rosto durante alguns minutos. Uma de suas mãos avançou, apanhou a orla do lençol, à altura do queixo da jovem, e puxou-o lentamente até os pés da cama. Mas a mão que puxara aquele lençol não era u’a mão. Era um par de pinças de aço muito bem articuladas na extremidade de uma espécie de talo metálico que desaparecia dentro de uma manga de seda negra. Era u’a mão mecânica.

O homem contemplou durante longo tempo aquele corpo nu, deslocando o seu peito de um lado para outro, de modo que todo o leito fosse submetido ao feixe luminoso. Depois, a garra saiu novamente de sob aquela manga e delicadamente levantou a ponta do lençol, puxando-o dos pés da cama até recobrir todo o corpo da jovem. O homem demorou-se ainda por um momento a contemplar o rosto adormecido, depois apagou o farolete e atravessou silenciosamente o quarto em direção à porta aberta, além da qual estava Bond dormindo.

O homem demorou-se mais tempo ao lado do leito de Bond. Perscrutou cada linha, cada sombra do rosto moreno e quase cruel que jazia quase sem vida, sobre o travesseiro. Observou a circulação à altura do pescoço e contou-lhe as batidas; depois, quando puxou o lençol para baixo, fez o mesmo na área do coração. Estudou a curva dos músculos, nos braços de Bond e nas coxas, e considerou pensativo a força oculta no ventre musculoso de Bond. Chegou até mesmo a curvar-se sobre a mão direita de Bond, estudando-lhe cuidadosamente as linhas da vida e do destino.

Por fim, com grande cuidado, a pinça de aço puxou novamente o lençol, desta vez para cobrir o corpo de Bond até o pescoço. Por mais um minuto o elevado vulto permaneceu ao lado do homem adormecido, depois se retirou rapidamente, ganhando o corredor, enquanto a porta se fechava com um estalido metálico e seco.


CONTINUA

XI - VIDA NO CANAVIAL


Seriam cerca de oito horas, pensou Bond. A não ser o coaxar dos sapos, tudo estava mergulhado em silêncio. No canto mais distante da clareira, ele podia vislumbrar o vulto de Quarrel.

Podia-se ouvir o tinir metálico, enquanto ele se ocupava em desmontar e secar a sua “Remington”.

Por entre as árvores podiam-se ver também as luzes distantes, vindas do depósito de guano, riscar caminhos luminosos e festivos sobre a superfície escura do lago. O desagradável vento desaparecera e o abominável cenário estava mergulhado em trevas. Estava bastante fresco. As roupas de Bond tinham secado no corpo. A comida tinha aquecido o seu estômago. Ele experimentou uma agradável sensação de conforto, sonolência e paz. O dia seguinte ainda estava muito longe e não apresentava problemas, a não ser uma boa dose de exercício físico. A vida, subitamente, pareceu-lhe fácil e boa.

A jovem estava a seu lado, metida no saco de dormir. Estava deitada de costas, com a cabeça descansando nas mãos, e olhando para o teto de estrelas. Ele apenas conseguia divisar os pálidos contornos de seu rosto. De repente, ela disse: James, você prometeu dizer-me o que significava tudo isso. Vamos. Eu não dormirei enquanto você não o disser.

Bond riu. — Eu direi se você também disser. Também quero saber o que você pretende.

— Pois não, não tenho segredos: mas você deve falar primeiro.

— Está certo. — Bond puxou os joelhos até a altura do queixo e passou os braços à volta deles. — Eu sou uma espécie de policial. Eles me enviam de Londres quando há alguma coisa de estranho acontecendo em alguma parte do mundo e que não interessa a ninguém. Bem, não faz muito tempo, um dos funcionários do Governador, em Kingston, um homem chamado Strangways, aliás meu amigo, desapareceu. Sua secretária, que era uma linda jovem, também desapareceu sem deixar vestígios. Muitos pensaram que eles tivessem fugido juntos, mas eu não acreditei nisso. Eu...”

Bond contou tudo com simplicidade, falando em homens bons e maus, como numa história de aventuras lida em algum livro. Depois terminou: Como você vê, Honey, temos de voltar a Jamaica, amanhã à noite, todos nós, na canoa, e então o Governador nos dará ouvidos e enviará um destacamento de soldados para apanhar este chinês. Espero que isso terá como conseqüência levá-lo à prisão. Ele com certeza também sabe disso, e essa é a razão pela qual procura aniquilar-nos. Essa é a história. Agora é a sua vez.

A jovem disse: Você parece viver uma vida muita excitante. Sua mulher não deve gostar que você fique fora tanto tempo. Ela não tem medo de que você se fira?

— Não sou casado. A única que se preocupa com a possibilidade de que eu me fira é a minha companhia de seguros.

Ela continuou sondando: Mas suponho que você tenha namoradas.

— Não permanentes.

— Oh!

Fez-se uma pausa. Quarrel se aproximou e disse: “Capitão, farei o primeiro quarto, se for melhor. Estarei na extremidade da restinga e virei chamá-lo à meia-noite. Então talvez o senhor possa ir até as cinco horas, quando nós nos poremos em marcha. Precisamos estar fora daqui antes que clareie o dia.

— Está bem — respondeu Bond. — Acorde-me se você vir alguma coisa. O revólver está em ordem?

— Perfeito — respondeu Quarrel com evidente mostra de contentamento. Depois, dirigindo-se à jovem disse com leve tom de insinuação: — Durma bem, senhorita. Em seguida, desapareceu silenciosamente nas sombras.

— Gosto de Quarrel — disse a jovem. E, após uma pausa: — Você quer realmente saber alguma coisa a meu respeito? A história não é tão excitante quanto a sua.

— É claro que quero. E não omita nada.

— Não há nada a omitir. Você poderia escrever toda a história de minha vida nas costas de um cartão postal. Para começar, nunca saí de Jamaica. Vivi toda a minha vida num lugar chamado Beau Desert, na costa setentrional, nas proximidades do Porto Morgan.

Bond riu. — É estranho: posso dizer o mesmo; pelo menos por enquanto. Não notei você pela região. Você vive em cima de uma árvore?

— Ah, imagino que você tenha ficado na casa da praia. Eu nunca chego até ali. Vivo na Casa Grande.

— Mas nada ficou dela. É uma ruína no meio dos canaviais.

— Eu vivo na adega. Tenho vivido ali desde a idade de cinco anos. Depois a casa se incendiou e meus pais morreram. Nada me lembro deles, por isso você não precisa manifestar pesar. A princípio vivi ali com a minha ama negra, mas depois ela morreu, quando eu tinha apenas quinze anos. Nos últimos cinco anos tenho vivido ali sozinha.

— Nossa Senhora! — Bond estava boquiaberto. — Mas não havia ninguém para tomar conta de você? Os seus pais não deixaram nenhum dinheiro?

— Nem um tostão. — Não havia o mínimo traço de amargura na voz da jovem — talvez orgulho, se houvesse alguma coisa. — Você sabe, os Riders eram uma das mais antigas famílias de Jamaica. O primeiro Rider recebera de Cromwell as terras de Beau Desert, por ter sido um dos que assinaram o veredicto de morte contra o rei Carlos. Ele construiu a Casa Grande e minha família viveu ora nela ora fora dela, desde aquela época. Mas depois veio a decadência do açúcar e eu acho que a propriedade foi pessimamente administrada, e, ao tempo em que meu pai tomou conta da herança, havia somente dívidas — hipotecas e outros ônus. Assim, quando meu pai e minha mãe morreram a propriedade foi vendida. Eu pouco me importei, pois era muito jovem. Minha ama deve ter sido maravilhosa. Quiseram que alguém me adotasse, mas a minha babá reuniu os pedaços de mobília que não tinham sido queimados e com eles nós nos instalamos da melhor forma no meio daquelas ruínas. Depois de algum tempo ninguém mais veio interferir conosco. Ela cosia um pouco e lavava para algumas freguesas da aldeia, ao mesmo tempo que plantava bananas e outras coisas, sem falar do grande pé de fruta-pão que havia diante da casa. Comíamos o que era a ração habitual do povo de Jamaica. E havia os pés de cana-de-açúcar à nossa volta. Ela fizera também uma rede para apanhar peixes, a qual nós recolhíamos todos os dias. Tudo corria bem e nós tínhamos o suficiente para comer. Ela ensinou-me a ler e escrever, como pôde. Tínhamos uma pilha de velhos livros que escapara ao incêndio, inclusive uma enciclopédia. Comecei com o A quando tinha apenas oito anos, e cheguei até o meio do T. — Ela disse um tanto na defensiva: — Aposto que sei mais do que você sobre muitas coisas.

— Estou certo de que sim. — Bond estava perdido na visão daquela jovem de cabelos de linho errando pelas ruínas de uma grande construção, com uma obstinada negra a vigiá-la e a chamá-la para receber as lições que deveriam ter sido um mistério para ela mesma. — Sua ama deve ter sido uma criatura extraordinária.

— Ela era um amor. — Era uma afirmação peremptória. — Pensei que fosse morrer quando ela faleceu. As coisas não foram tão fáceis para mim depois disso. Antes eu levava uma vida de criança, mas subitamente tive que crescer e fazer tudo por mim mesma. E os homens tentaram apanhar-me e atingir-me. Diziam que queriam fazer amor comigo. — Fez uma pausa e acrescentou: — Eu era bonita naquela época. Bond disse muito sério:

— Você é uma das jovens mais belas que já vi.

— Com este nariz? Não seja tolo.

— Você não compreende. — Bond tentou encontrar palavras nas quais ela pudesse crer. — É claro que qualquer pessoa pode ver que o seu nariz está quebrado; mas desde esta manhã dificilmente eu pude notá-lo. Quando se olha para uma pessoa, olha-se para os seus olhos ou para a sua boca. Nesses dois pontos se encontram a expressão. Um nariz quebrado não tem maior significação do que uma orelha torta. Narizes e orelhas são peças do mobiliário facial. Algumas são mais bonitas do que outras, mas não são tão importantes quanto o resto. Se você tivesse um nariz bonito, tão bonito como o resto, você seria a jovem mais bela de Jamaica.

— Você é sincero? — Sua voz era ansiosa. — Você acha que eu poderia ser bela? Sei que muita coisa em mim está bem, mas quando olho no espelho só vejo o meu nariz quebrado. Estou certa de que o mesmo ocorre com outras pessoas que são, que são — bem — mais ou menos aleijadas.

Bond disse com impaciência: — Você não é aleijada! Não diga tolices. E aliás você pode endireitá-lo mediante uma simples operação. Basta que você vá aos Estados Unidos e a coisa levará apenas uma semana.

Ela disse com irritação: — Como é que você quer que eu faça isso? Tenho cerca de quinze libras debaixo de uma pedra, na minha adega. Tenho ainda três saias, três blusas, uma faca e uma panela de peixe. Conheço muito bem essas operações. O médico de Porto Maria já pediu informações para mim. Ele é um homem muito bom e escreveu para os Estados Unidos. Pois para que a operação seja bem feita, eu teria que gastar cerca de quinhentas libras, sem falar da passagem para Nova York, a conta do hospital e tudo o mais.

Sua voz tornou-se desesperançada: — Como é que você espera que eu possa ter todo esse dinheiro?

Bond já decidira sobre o que teria de ser feito, mas no momento apenas disse ternamente: — Bem, espero que se possam encontrar meios; mas, de qualquer maneira, prossiga com a sua história. Ela é muito excitante — muito mais interessante do que a minha. Você tinha chegado ao ponto em que a sua ama morreu. O que aconteceu depois?

A jovem recomeçou com relutância.

— Bem, a culpa é sua por ter interrompido. E você não deve falar de coisas que não compreende. Suponho que as pessoas lhe digam que você é simpático. Você deve também ter todas as namoradas que desejar. Bem, isso não aconteceria se você fosse vesgo ou tivesse um lábio leporino. — Na verdade, ele pôde ouvir o sorriso em sua voz: — Acho que quando voltarmos eu irei ter com o feiticeiro para que lhe faça uma mandinga e lhe dê alguma coisa assim. — E ela acrescentou tristemente: — Dessa forma, nós seremos mais parecidos.

Bond estendeu o braço e sua mão tocou nela: — Eu tenho outros planos. Mas continuemos, quero ouvir o resto da sua história.

— Bem, — disse a jovem com um suspiro. — Eu terei que me atrasar um pouco. Como você sabe, toda a propriedade é representada pela cana-de-açúcar e pela velha casa que está situada no meio da plantação. Bem, umas duas vezes por ano eles cortam a cana e mandam-na para o moinho. E quando eles o fazem, todos os animais e insetos que vivem nos canaviais entram em pânico e a maioria deles têm as suas tocas destruídas e são mortos. Na época da safra, alguns deles começaram a vir para as ruínas da casa, onde se escondiam. No princípio, minha babá ficava aterrorizada, pois lá vinham os mangustos, as cobras e os escorpiões, mas eu preparei dois quartos da adega para recebê-los. Não me assustei com eles, e eles nunca me fizeram mal. Pareciam compreender que eu estava cuidando deles. E devem ter contado aquilo aos seus amigos, ou alguma coisa parecida, pois depois de algum tempo era perfeitamente natural que todos viessem acantonar-se em seus dois quartos, onde ficavam até que os canaviais começassem novamente a crescer, quando então iam saindo e voltando para os campos. Dei-lhes toda a comida que podíamos pôr de lado, quando eles ficavam conosco, e todos se portavam muito bem, a não ser por algum odor e às vezes uma ou outra luta entre si. Mas eram muito mansos comigo. Naturalmente os cortadores de cana perceberam tudo e viam-me andando pelo lugar com cobras à volta do meu pescoço, e assim por diante, a ponto de ficarem aterrorizados comigo e me considerarem uma feiticeira. Por causa disso, eles nos deixaram completamente isoladas. Ela fez uma pausa, e depois recomeçou:

— Foi assim que aprendi tanta coisa sobre animais e insetos. Eu costumava ainda passar muito tempo no mar, aprendendo coisas sobre os animais marinhos, assim como sobre os pássaros. Se se chega a saber o que todas essas criaturas gostam de comer e do que têm medo, pode-se muito bem fazer amizade com elas. — Levantou os olhos para Bond e disse: Você não sabe o que perde ignorando todas essas coisas.

— Receio que perca muito — respondeu Bond com sinceridade. — Suponho que eles sejam muito melhores e mais interessantes que os homens.

Sobre isso nada sei — respondeu a jovem pensativa-mente. — Não conheço muitas pessoas. A maioria das que conheci foram detestáveis, mas acho que deve haver criaturas interessantes também. — Fez uma pausa, e prosseguiu: — Nunca pensei realmente que chegasse a gostar de alguma pessoa como gosto dos animais. Com exceção da babá, naturalmente. Até que... — Ela se interrompeu com um sorriso de timidez. — Bem, de qualquer forma, nós vivemos muito felizes juntas, até que eu fiz quinze anos, quando então a babá morreu e as coisas se tornaram muito difíceis. Havia um homem chamado Mander. Um homem horroroso. Era o capataz branco que servia aos proprietários da plantação. Ele vivia me procurando. Queria que eu fosse viver com ele, em sua casa de Porto Maria.

Eu o odiava, e costumava esconder-me sempre que ouvia o seu cavalo aproximando-se do canavial. Certa noite ele veio a pé e eu não o ouvi. Estava bêbado. Entrou na adega e lutou comigo porque não queria fazer o que ele desejava. Você sabe, as coisas que fazem as pessoas quando estão apaixonadas.

— Sim, já sei.

— Tentei matá-lo com a minha faca, mas ele era muito forte e deu-me um soco tão forte no rosto que me quebrou o nariz. Deixou-me inconsciente e acho que fez alguma coisa comigo. Sei que ele fez mesmo. No dia seguinte eu quis me matar quando vi o meu rosto e verifiquei o que ele me havia feito. Pensei que iria ter um filho. Teria sem dúvida me matado se tivesse tido um filho daquele homem. Em todo caso, não tive, e tudo continuou assim. Fui ao médico e ele fez o que pôde com o meu nariz e não me cobrou nada. Quanto ao resto, eu nada lhe contei, pois estava muito envergonhada. O homem não voltou mais. Eu esperei e nada fiz até a próxima colheita de cana-de-açúcar. Tinha um plano. Estava esperando que as aranhas viúvas-negras viessem procurar abrigo. Um belo dia elas chegaram. Apanhei a maior das fêmeas e á deixei numa caixa sem nada para comer. As fêmeas são terríveis. Então esperei que fizesse uma noite escura, sem luar. Na primeira noite dessas, apanhei a caixa com a aranha e caminhei até chegar à casa do homem. Estava muito escuro e eu me sentia aterrorizada com a possibilidade de encontrar algum assaltante pela estrada, mas não houve nada. Esperei em seu jardim, oculta entre os arbustos, até que ele se recolheu à cama. Então subi por uma árvore e ganhei a sacada; aguardei até que ele começasse a roncar e depois entrei pela janela. Ele estava nu, estendido na cama, sob o mosquiteiro. Levantei uma aba do filó, abri a caixa e sacudi-lhe a aranha sobre o ventre. Depois saí e voltei para casa.

— Deus do céu! — exclamou Bond reverentemente. — O que aconteceu com o homem?

Ela respondeu com satisfação: — Levou uma semana para morrer. Deve ter-lhe doído terrivelmente. Você sabe, a mordida dessa aranha é pavorosa. Os feiticeiros dizem que não há nada que se lhe compare. — Ela fez uma pausa, e como Bond não fizesse nenhum comentário, acrescentou: — Você não acha que eu fiz mal, não é?

— Bem, não faça disso um hábito — respondeu Bond suavemente. — Mas não posso culpá-la, diante do que ele tinha feito. E, depois, o que aconteceu?

— Bem, depois me estabeleci novamente — sua voz era firme. — Tive que me concentrar na tarefa de obter alimento suficiente, e naturalmente. — Acrescentou persuasivamente: — Eu tinha de fato um nariz muito bonito, antes. Você acha que os médicos podem torná-lo igualzinho ao que era antes?

— Eles poderão fazê-lo de qualquer forma que você quiser — disse Bond em tom definitivo. — Como é que você ganhou dinheiro?

— Foi graças à enciclopédia. Li nela que há pessoas que gostam de colecionar conchas marinhas e que as conchas raras podiam ser vendidas. Falei com o mestre-escola local, sem contar-lhe naturalmente o meu segredo, e ele descobriu para mim que havia uma revista norte-americana chamada “Nautilus”, dedicada aos colecionadores de conchas. Eu tinha apenas o dinheiro suficiente para tomar uma assinatura daquela revista e comecei a procurar as conchas que as pessoas pediam em seus anúncios. Escrevi a um comerciante de Miami e ele começou a comprar as minhas conchas. Foi emocionante. Naturalmente que cometi alguns erros, no princípio. Pensei, por exemplo, que as pessoas gostariam das conchas mais bonitas, mas esse não era o caso. Freqüentemente elas preferiam as conchas mais feias. Depois, quando achava conchas raras, punha-me a limpá-las e poli-las a fim de torná-las mais bonitas, mas isso também foi um erro. Os colecionadores querem as conchas exatamente como saem do mar, com o animal em seu interior também. Então consegui algum formol com o médico e o punha entre as conchas vivas, para que elas não tivessem mau cheiro, e depois mandava-as para o tal comerciante de Miami. Só aprendi bem o negócio de um ano para cá e já consegui quinze libras. Consegui esse resultado agora que sei como é que eles querem as conchas e se tivesse sorte, poderia fazer pelo menos cinqüenta libras por ano. Então, em dez anos poderia ir aos Estados Unidos e operar-me. Mas, continuou ela com intenso contentamento, tive uma notável maré de sorte. Fui a Crab Key pelo Natal, onde já tinha estado antes. Mas dessa vez eu encontrei essas conchas purpúreas. Não parecem grande coisa, mas eu enviei uma ou duas para Miami e o comerciante escreveu-me para dizer que compraria tantas dessas conchas quantas eu pudesse encontrar, e ao preço de até cinco dólares pelas perfeitas. Disse-me ainda que eu deveria manter segredo sobre o lugar de onde as tirava, pois de outra forma o “mercado seria estragado”, como disse ele, e os preços cairiam. É como se se tivesse uma mina de ouro particular. Agora serei capaz de juntar o dinheiro em cinco anos. Esse foi o motivo pelo qual tive grandes suspeitas de você, quando o encontrei na praia. Pensei que você tivesse vindo para roubar as minhas conchas.

— Você me deu um susto, pois pensei que você fosse a garota do Dr. No.

— Muito obrigada.

— Mas depois que você tiver feito a operação, o que irá fazer? Você não pode continuar vivendo numa adega durante toda a vida.

— Pensei em me tornar uma prostituta. — Ela o disse como se tivesse dito “enfermeira” ou “secretária”.

— Oh, o que é que você quer dizer com isso? — Talvez ela já tivesse ouvido aquela expressão sem compreendê-la bem.

— Uma dessas jovens que possuem um bonito apartamento e lindas roupas. Você sabe o que quero dizer — acrescentou ela com impaciência. — Os homens telefonam, marcam encontro, chegam, fazem amor e pagam. Elas ganham cem dólares de cada vez, em Nova Iorque, onde pensei começar. Naturalmente — admitiu — terei de fazer por menos, no começo, até que aprenda a trabalhar bem. Quanto é que vocês pagam pelas que não têm experiência?

Bond riu. — Francamente, não me lembro. Há muito tempo que não me encontro com essas mulheres.

Ela suspirou. — Sim, suponho que você possa ter tantas mulheres quantas queira, por nada. Suponho que apenas os homens feios paguem, mas isso é inevitável. Qualquer espécie de trabalho nas grandes cidades deve ser horrível. Pelo menos pode-se ganhar muito mais como prostituta. Depois, poderia voltar para Jamaica e comprar Beau Desert. Seria bastante rica para encontrar um marido bonito e ter alguns filhos. Agora que encontrei essas conchas, penso que poderia estar de volta a Jamaica quando tivesse trinta anos. Não seria formidável?

— Gosto da última parte do plano, mas não tenho muita confiança na primeira. De qualquer forma, como é que você veio a saber dessa história de prostitutas? Encontrou isso na letra P, na enciclopédia?

— Claro que não; não seja tolo. Há uns dois anos houve em Nova Iorque um escândalo sobre elas, envolvendo também um “play-boy” chamado Jelke. Ele tinha toda uma cadeia de prostitutas, e eu li muito sobre o caso no “Gleaner”. O jornal deu inclusive os preços que elas cobravam e tudo o mais. De qualquer forma, há milhares dessas jovens em Kingston, embora não sejam tão boas. Recebem apenas cinco xelins e não têm um lugar apropriado para fazer amor, a não ser no mato. Minha babá chegou a falar-me delas. Disse-me que eu não deveria imitá-las, pois do contrário seria muito infeliz. É claro que seria, recebendo apenas cinco xelins. Mas por cem dólares!...

Bond observou: — Você não conseguiria guardar todo esse dinheiro. Precisaria ter uma espécie de gerente para arranjar os homens, e teria ainda de dar gorjetas à polícia, para deixá-la em paz. Por fim, poderia ir facilmente parar na cadeia se tudo não corresse bem. Na verdade, com tudo o que você sabe sobre animais, bem poderia ter um ótimo emprego, cuidando deles, em algum jardim zoológico norte-americano. E o que me diz do Instituto de Jamaica? Tenho certeza de que você gostaria mais de trabalhar ali. E poderia também facilmente encontrar um bom marido. De qualquer forma, você não deve mais pensar em ser prostituta. Você tem um belo corpo e deve guardá-lo para o homem que amar.

— Isso é o que dizem as pessoas nos livros — disse ela com ar de dúvida. — A dificuldade está em que não há nenhum homem para ser amado em Beau Desert. — Depois acrescentou timidamente: — Você é o único inglês com quem jamais falei. Gostei de você desde o princípio, e não me importo de dizer-lhe essas coisas agora. Penso que há muitas pessoas das quais chegaria a gostar se saísse daqui.

— É claro que há. Centenas. E você é uma garota formidável; o que pensei assim que a vi.

— Assim que viu as minhas nádegas, você quer dizer. — Sua voz estava-se tornando sonolenta, mas cheia de prazer.

Bond riu. — Bem, eram nádegas maravilhosas. E o outro lado também era maravilhoso. — O corpo de Bond começou a se agitar com a lembrança de como a vira pela primeira vez. Depois de um instante, disse com mau humor: — Agora vamos, Honey. Está na hora de dormir. Haverá muito tempo para conversarmos quando voltarmos a Jamaica.

— Haverá? — perguntou ela desconsoladamente. — Você promete?

— Prometo.

Ele a viu agitar-se dentro do saco de dormir. Olhou para baixo e apenas pôde divisar o seu pálido perfil voltado para ele. Ela deixou escapar o profundo suspiro de uma criança, antes de adormecer.

Reinava silêncio na clareira e o tempo estava esfriando. Bond descansou a cabeça sobre os joelhos unidos. Sabia que era inútil procurar dormir, pois sua mente estava cheia dos acontecimentos do dia e dessa extraordinária mulher Tarzan que aparecera em sua vida. Era como se algum animal muito bonito se lhe tivesse dedicado. E não largaria os cordéis enquanto não tivesse resolvido os problemas dela. Estava sentindo isso. Naturalmente que não haveria grandes dificuldades para a maioria de seus problemas. Quanto à operação, seria fácil arranjá-la, e até mesmo encontrar-lhe um emprego, com o auxílio de amigos, e um lar. Tinha dinheiro e haveria de comprar-lhe roupas, mandaria ajeitar os seus cabelos e a lançaria no grande mundo. Seria divertido. Mas quanto ao resto? Quanto ao desejo físico que sentia por ela? Não se podia fazer amor com uma criança. Mas, seria ela uma criança? Não haveria nada de infantil relativamente ao seu corpo ou à sua personalidade. Era perfeitamente adulta e bem inteligente, a seu modo, e muito mais capaz de tomar conta de si mesma do que qualquer outra jovem de vinte anos que Bond conhecera.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um puxão em sua manga. A vozinha disse: — Por que você não vai dormir? Não está sentindo frio?

— Não; estou bem.

— Aqui no saco de dormir está bom e quente. Você quer vir para cá? Tem bastante lugar.

— Não, obrigado, Honey. Estou bem.

Houve uma pausa, e depois ela disse num sussurro: — Se você está pensando... Quero dizer — você não precisa fazer amor comigo... Eu poderia dormir de costas para o seu peito.

— Honey, querida, vá dormir. Seria maravilhoso dormir assim com você, mas não esta noite. De qualquer maneira, em breve terei de render Quarrel.

— Muito bem, — disse ela com voz mal humorada. — Talvez quando voltarmos a Jamaica.

— Talvez.

— Prometa. Não dormirei enquanto você não prometer.

Bond disse desesperadamente: — Naturalmente que prometo. Agora, vá dormir, Honeychile.

A sua voz se fez ouvir outra vez, triunfante: — Agora você tem uma dívida comigo. Você prometeu. Boa-noite, querido James.

— Boa noite, querida Honey.


XII - A COISA


O aperto no braço de Bond era ansioso. Ele de um salto pôs-se de pé.

Quarrel sussurrou tensamente: — Alguma coisa está-se aproximando pela água, capitão! Com certeza é o dragão!

A jovem levantou-se e perguntou nervosamente: — Que aconteceu?

Bond apenas disse: — Fique aí, Honey! Não se mexa. Eu voltarei.

Internou-se pelos arbustos do lado oposto da montanha e correu pela restinga, com Quarrel ao lado.

Chegaram até a extremidade da restinga, a vinte metros da clareira, e pararam sob o abrigo dos últimos arbustos, que Bond apartou com as mãos para ter um melhor campo de visão.

O que seria aquilo? A meia milha de distância, atravessando o lago, vinha algo informe, com dois olhos brilhantes cor de laranja, e pupilas negras. Entre estes, onde deveria estar a boca, tremulava um metro de chama azul. A luminosidade cinzenta das estrelas deixava ver uma espécie de cabeça abaulada entre duas pequenas asas semelhantes às de um morcego. Aquela coisa estranha deixava escapar um ronco surdo e baixo, que abafava um outro ruído, uma espécie de vibração rítmica. Aquela massa avançava na direção deles, à velocidade de uns dezesseis quilômetros por hora, deixando atrás de si uma esteira de espuma.

Quarrel sussurrou:

— Nossa, capitão! Que coisa é aquela?

Bond continuou de pé e respondeu laconicamente: — Não sei exatamente. Uma espécie de trator arranjado para meter medo. Está trabalhando com um motor diesel, e por isso você pode deixar os dragões de lado. Agora, vejamos... — Bond falava como se para si mesmo. — Não adianta fugir. Aquilo se move mais depressa do que nós e sabemos que pode esmagar árvores e atravessar pântanos. Temos que lhe dar combate aqui mesmo. Quais serão os seus pontos fracos? Os motoristas. Com certeza, dispõem de proteção. Em todo caso, não sabemos muito sobre esse ponto. Quarrel, você começará a disparar contra aquela cúpula quando estiverem a uns duzentos metros de nós. Faça a pontaria cuidadosamente e continue atirando. Visarei os faróis quando estiverem a cinqüenta metros. Não se está movendo sobre lagartas. Deve ter alguma espécie de rodas gigantescas, provavelmente de avião. Visarei as rodas também. Fique aí. Ficarei dez metros para baixo. Naturalmente vão reagir e nós temos que manter as balas longe da garota. Está combinado? — Bond esticou o braço e apertou o enorme ombro de Quarrel. — E não se preocupe demais. Esqueça-se de dragões. Trata-se apenas de alguma trapaça do Dr. No. Mataremos os motoristas, tomaremos conta do veículo e ganharemos com ele a costa. Isso economizará as nossas solas. Está bem?

Quarrel deu uma breve risada. — Está bem, capitão. Desde que o senhor assim o diz. Mas que Nosso Senhor saiba também que aquilo não é dragão!

Bond desceu pela restinga e se internou pelos arbustos, até que encontrou um ponto de onde podia ter um bom campo de tiro. Disse suavemente: — Honey!

— Sim, James — e a voz dela deixou transparecer alívio.

— Faça um buraco na areia como fizemos na praia. Faça-o por trás de raízes grossas e fique lá deitada. Talvez haja um tiroteio. Não tenha medo de dragões. Isto é apenas um veículo pintado, dirigido por alguns dos homens do Dr. No. Não se assuste. Estou aqui perto.

— Muito bem, James. Tenha cuidado! — A voz agora deixava transparecer um vivo temor.

Bond curvou-se, apoiando um joelho no chão, sobre as folhas e a areia, e olhou para fora.

Agora o veículo achava-se a uns trezentos metros de distância, e os seus faróis amarelos estavam iluminando a areia. Chamas azuis continuavam saindo da boca daquele engenho. Saíam de uma espécie de longo focinho, no qual se pintaram mandíbulas entreabertas, para darem ao todo a aparência de dragão. Um lança-chamas! Aquilo explicava as árvores queimadas e a história do administrador. A coloração azul da chama seria dada por alguma espécie de queimador, disposto adiante do lança-chamas.

Bond teve que admitir que aquela visão era algo de terrível, à medida que o veículo avançava pelo lago raso. Evidentemente fora calculado para infundir terror. Ele mesmo ter-se-ia assustado, não fora a vibração rítmica do motor diesel. Mas até que ponto aquilo seria vulnerável para homens que não fossem dominados pelo pânico?

A resposta ele a teve quase imediatamente. Ouviu-se o estampido da “Remington” de Quarrel. Uma centelha saiu da cabina encimada pela cúpula e logo se ouviu um ruído metálico. Quarrel disparou mais um tiro e, logo em seguida, uma rajada. As balas chocaram-se inutilmente de encontro à cabina. Não houve mesmo uma simples redução de velocidade. O monstro continuava avançando para o ponto de onde tinham partido os disparos. Bond descansou o cano de seu “Smith & Wesson” no braço, e fez cuidadosa pontaria. O profundo ruído surdo de sua arma fez-se ouvir por sobre o matraquear da “Remington” de Quarrel. Um dos faróis fora atingido e despedaçara-se. Bond disparou mais quatro tiros contra o outro e atingiu-o com o quinto e último disparo de seu revólver. O fantástico aparelho parecia continuar não dando importância, e foi avançando para o lugar de onde tinham partido os disparos do “Smith & Wesson”. Bond tornou a carregar a arma e começou a atirar contra os pneumáticos, sob as asas negro e ouro. A distância agora era de apenas trinta metros e podia jurar que já atingira mais de uma vez a roda mais próxima, sem nenhum resultado. Seria borracha sólida? O primeiro estremecimento de medo percorreu a pele de Bond.

Carregou mais uma vez. Seria aquela coisa maldita vulnerável pela retaguarda? Deveria correr para o lago e tentar uma abordagem? Avançou um passo, através dos arbustos, mas logo ficou imóvel, incapaz de prosseguir.

Subitamente, daquele focinho ameaçador, uma língua de fogo azulada tinha sido lançada na direção do esconderijo de Quarrel. À direita de Bond, no mato, surgira apenas uma chama laranja e vermelha, simultaneamente com um estranho urro, que imediatamente silenciou. Satisfeita, aquela língua de fogo se recolhera à sua boca. Agora aquilo fizera um movimento de rotação sobre o seu eixo e parará completamente. O buraco azulado da boca apontava diretamente para Bond.

Bond deixou-se ficar, esperando pelo horroroso fim. Olhou através das mandíbulas da morte e viu o brilhante f-lamento vermelho do queimador, bem no fundo do comprido tubo. Pensou no corpo de Quarrel — mas não havia tempo para pensar em Quarrel — e imaginou-o completamente carbonizado. Dentro em pouco ele também se incendiaria como uma tocha. Um único berro seria arrancado dele e os seus membros se encolheriam na pose de dançarino dos corpos queimados. Depois viria a vez de Honey. Meu Deus, para o quê ele os havia arrastado! Por que fora tão insano a ponto de enfrentar aquele homem com todo o seu arsenal? Por que não aceitara a advertência que lhe fora feita pelo longo dedo que o alcançara já em Jamaica? Bond trincou os dentes. Vamos, canalhas. Depressa.

Ouviu-se a sonoridade de um alto-falante, que anunciava metàlicamente: “Saia daí, inglês. E a boneca também. Depressa ou será frito no inferno, como o seu amigo”. Para dar mais força àquela ordem, uma língua de fogo foi lançada em sua direção. Bond deu um passo atrás para recuar daquele intenso calor. Sentiu o corpo da garota de encontro às suas costas. Ela disse historicamente: — Tive que vir, tive que vir.

Bond disse: — Está bem, Honey. Fique atrás de mim.

Ele tinha-se decidido. Não havia alternativa. Mesmo que a morte viesse mais tarde, não poderia ser pior do que aquela morte diante do lança-chamas. Bond apanhou a mão da jovem e puxou-a consigo para fora, saindo para a areia.

A voz se fez ouvir novamente: — Pare aí, camarada. E deixe cair o lança-ervilhas. Nada de truques, senão os caranguejos terão um bom almoço.

Bond deixou cair a sua arma. Lá se fora o “Smith & Wesson”. O “Beretta” não teria tido melhor sorte: A jovem lastimou-se, e Bond apertou a sua mão. — Agüente, Honey, — disse ele. — Nós nos livraremos disso.

Bond troçou de si mesmo por causa daquela mentira. Ouviu-se o ruído de uma porta de ferro que se abria. Por trás da cúpula, um homem saltou para a água e caminhou até eles, com um revólver na mão. Ao mesmo tempo ia-se mantendo fora da linha de fogo do lança-chamas. A trêmula chama azul iluminou o seu rosto. Era um chinês negro, de enorme estatura, vestindo apenas calças. Alguma coisa balançava em sua mão esquerda, e quando ele se aproximou mais, Bond pôde ver que eram algemas.

O homem deteve-se a alguns metros de distância e disse:

— Levantem os braços. Punhos juntos e caminhem em minha direção. Você primeiro, inglês. Devagar ou receberá mais um umbigo.

Bond obedeceu e quando estava a um passo do homem, este prendeu o revólver entre os dentes, e esticou os braços e atou os seus pulsos com as algemas. Bond examinou aquele rosto iluminado pelas chamas azuis. Era uma cara brutal, com olhos estrábicos. O agente do Dr. No fitou-o com desprezo. — Bastardo imbecil! — disse.

Bond deu as costas ao homem e começou a se afastar. Ia ver o corpo de Quarrel. Tinha que lhe dizer adeus. Ouviu-se o ruído de um disparo e uma bala jogou-lhe areia nos pés. Bond parou, e voltando-se lentamente disse:

— Não fique nervoso. Vou dar uma espiada no homem que você acabou de assassinar. Voltarei.

O homem abaixou o revólver e riu grosseiramente: — Muito bem. Divirta-se. Desculpe se não temos uma coroa. Volte logo, se não daremos uma amostra à boneca. Dois minutos.

Bond caminhou em direção ao cerrado de arbustos fumegantes. Ali chegando, olhou para baixo. Seus olhos e boca se contraíram. Sim, tinha sido bem como ele imaginara. Pior, mesmo. Disse docemente: — Perdoe-me, Quarrel. — Com o pé soltou um pouco de areia, que colheu com as mãos algemadas e verteu-a sobre os restos dos olhos de Quarrel. Depois caminhou lentamente, de volta, e ficou ao lado da jovem.

O homem empurrou-os para a frente com o revólver. Deram a volta por trás da máquina, onde havia uma pequena porta quadrada. Uma voz do interior disse: — Entrem e sentem-se no chão. Não toquem em nada ou ficarão com os dedos partidos.

Com dificuldade, arrastaram-se para dentro daquela caixa de ferro, que cheirava a óleo e suor. Havia lugar apenas para que ambos se sentassem com as pernas encolhidas, de joelhos para cima. O homem que empunhava o revólver e que vinha atrás deles saltou por último para dentro do carro e fechou a porta. Ligou uma lâmpada e sentou-se num assento de ferro, ao lado do chofer. — Muito bem, Sam, vamos andando. Você pode apagar o fogo. Há luz bastante para dirigir — disse.

Na painel de controle podia-se ver uma fileira de mostradores. O motorista esticou a mão e deslocou para baixo um par de interruptores. Engrenou o motor e olhou através de uma estreita fresta, cortada na parede de ferro, diante dele. Bond sentiu que o veículo dava uma volta. Ouviu-se um movimento mais rápido do motor, e o veículo avançou.

O ombro da jovem apertou-se de encontro ao de Bond.

— Para onde estão eles nos levando? — O seu sussurro traía um estremecimento.

Bond voltou a cabeça e olhou para ela. Era a primeira vez que podia ver os seus cabelos depois de secos. Estavam desfeitos pelo sono, mas não eram mais mechas de rabichos empastados. Caíam densamente até os ombros, onde terminavam em anéis voltados para dentro. Eram do mais pálido louro acinzentado e despediam reflexos quase prateados sob a luz elétrica. Ela olhou para o alto, para ele. A pele, à volta dos olhos e nos cantos da boca, mostrava-se lívida de medo.

Bond deu de ombros, procurando aparentar uma indiferença que não sentia!. Sussurrou: — Oh, espero que vamos ver o Dr. No. Não se preocupe demais, Honey. Esses homens não passam de pequenos bandidos. Com ele, as coisas serão diferentes. Quando estivermos diante dele, não diga nada, falarei por nos dois. — Ele apertou o seu ombro e disse: — Gosto da maneira por que você penteia o seu cabelo, e fico contente porque você não o apara muito curto.

Um pouco da tenção desapareceu do rosto dela. — Como é que você pode pensar em coisas como essa? — Deu um leve sorriso para ele, e acrescentou: — Mas estou contente por você gostar de meu penteado. Lavo os meus cabelos com óleo de coco uma vez por semana.

À lembrança de sua outra vida, seus olhos ficaram brilhantes. Ela baixou a cabeça para as mãos algemadas, a fim de esconder as lágrimas. Sussurrou quase para si mesma: — Tentarei ser brava. Tudo estará bem, desde que você esteja lá.

Bond aconchegou-se a ela. Levantou suas mãos algemadas até a altura dos olhos e examinou as algemas. Eram do tipo usado pela polícia norte-americana. Contraiu sua mão esquerda, a mais fina das duas, e tentou fazê-la deslizar pelo anel de aço. Mesmo o suor de sua pele de nada adiantou. Era inútil.

Os dois homens sentavam-se em seus bancos de ferro, indiferentes, e com as costas voltadas para eles. Sabiam que dominavam inteiramente a situação. Não havia possibilidade de que Bond oferecesse qualquer incômodo. Não poderia levantar-se ou dar o necessário impulso aos seus punhos para causar qualquer mal às cabeças de seus adversários, utilizando as algemas. Se conseguisse abrir a porta e pular para a água, o que lograria com isso? Imediatamente eles sentiriam a brisa fresca, nas costas, e parariam a máquina para queimá-lo na água ou içá-lo novamente. Bond aborrecia-se em pensar que os homens pouco se preocupavam com ele, pois sabiam tê-lo completamente em seu poder. Também não gostou da idéia de que aqueles homens eram bastante inteligentes para saber que ele não representava nenhuma ameaça. Indivíduos mais estúpidos teriam ficado em cima deles, de revólver em punho, tê-los-iam surrado, a ele e à jovem, barbaramente, e talvez os tivessem deixado inconscientes. Aqueles dois conheciam o ofício. Eram profissionais, ou tinham sido treinados para o serem.

Os dois homens não falaram. Não houve nenhum comentário sobre o quão hábil eles tinham sido, ou quanto ao seu cansaço ou destino. Apenas dirigiam a máquina serenamente, ultimando com eficiência a sua tarefa.

Bond continuava sem a mínima idéia do que seria aquilo. Sob a tinta negra e dourada, assim como sob o resto daquela fantasia, a máquina parecia uma espécie de trator, como ele nunca vira. Não tinha conseguido descobrir nomes de marcas comerciais, nos pneumáticos, pois estivera muito escuro, mas certamente que deveriam ser de borracha sólida ou porosa. Atrás havia um pequena roda para dar estabilidade ao conjunto. Uma espécie de barbatana de ferro fora ainda acrescentada e pintada também de preto e ouro, a fim de ajudar a dar a aparência de dragão. Os altos pára-lamas tinham sofrido um prolongamento, na forma de curtas asas voltadas para trás. Uma comprida cabeça de dragão, feita em metal, fora fixada ao radiador e os faróis receberam pontos centrais negros, para parecerem olhos. Era tudo, sem falar da cabina que fora recoberta com uma cúpula blindada e dotada de um lança-chamas. Era, como pensara Bond, um trator preparado para assustar e queimar — embora não pudesse atinar porque estava dotado de um lança-chamas e não de uma metralhadora. Era, evidentemente, a única espécie de veículo que poderia percorrer a ilha. Suas gigantescas rodas podiam avançar sobre os mangues, pântanos e ainda atravessar o lago raso. Galgaria também os agrestes planaltos de coral e, desde que andasse à noite, o calor experimentado na cabina seria pelo menos tolerável.

Bond ficara impressionado. Impressionado pelo toque de profissionalismo. O Dr. No era sem dúvida um homem que se preocupava intensamente com as coisas. Em pouco iria encontrá-lo. E em breve estaria diante do segredo do Dr. No. Então, o que aconteceria? Bond sorriu amargamente. Sim, não o deixariam sair dali com o seu conhecimento. Certamente seria morto, a menos que pudesse fugir ou conseguir a sua liberdade por meios persuasivos. E o que aconteceria à jovem? Poderia ele provar sua inocência e conseguir com que ela fosse poupada? Possivelmente, mas nunca mais ela teria permissão para deixar a ilha. Ali teria de ficar para o resto da vida, como amante ou mulher de um dos homens, ou do próprio Dr. No, se ela o impressionasse.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um trecho do percurso mais difícil, como se podia sentir pela trepidação. Tinham atravessado o lago e estavam no caminho que levava para o alto da montanha, junto às cabanas. A cabina vibrava e a máquina começou a galgar o terreno. Dentro de cinco minutos estariam lá.

O ajudante do motorista olhou por sobre o ombro para Bond e a jovem. Bond sorriu confiantemente para ele dizendo: Você receberá uma medalha por isso.

Os olhos amarelos e marrons olharam impassivelmente dentro dos dele, enquanto os lábios arroxeados e oleosos se fenderam num sorriso no qual havia um ódio repousado: Feche a boca, se... Depois, deu-lhe as costas.

A jovem tocou-o com o cotovelo e sussurrou: — Por que eles são tão rudes? Por que nos odeiam tanto?

Bond esboçou um sorriso e disse: — Acho que é porque lhes causamos medo. Talvez ainda estejam com medo, e isto porque não parecemos ter medo deles. Devemos mantê-los assim.

A jovem aconchegou-se a ele e disse: — Tentarei.

Agora a subida estava-se tornando mais íngreme. Uma luz azul-acinzentada atravessava as frestas da armadura. A madrugada se aproximava. Fora, em breve estaria começando mais um dia de calor abrasador, de execrável vento, carregado com o cheiro de gás dos pântanos. Bond pensou em Quarrel, o bravo gigante que não mais veria aquele dia, e com o qual eles deveriam agora estar caminhando através dos pauis de mangues. Quarrel tinha pressentido a morte, mas apesar disso tinha acompanhado Bond sem qualquer objeção. Sua fé em Bond tinha sido maior do que o seu medo. E Bond tinha-lhe faltado. Seria ele ainda o causador da morte da jovem?

O motorista esticou o braço em direção ao painel e na parte dianteira do veículo fez-se ouvir o breve zunido de uma sirena de polícia, que foi desaparecendo num gemido fúnebre. Mais um minuto e o veículo parava, continuando o motor em regime neutro. O homem apertou um interruptor e tirou um microfone de um gancho, a seu lado. Falou por aquele microfone e Bond pôde ouvir a sua voz aumentada, do lado de fora, por um altofalante. — Tudo bem. Apanhamos o inglês e a garota. O outro homem morreu. Isso é tudo. Abram. — Bond ouviu que uma porta se deslocava para o lado, sobre rolamentos. O motorista embreou e eles avançaram lentamente para a frente, parando alguns metros adiante. O motorista desligou o motor. Ouviu-se o ruído metálico da tranca e a porta foi aberta pelo lado de fora. Uma lufada de ar fresco e uma luz mais brilhante penetraram na cabina. Várias mãos agarraram Bond e arrastaram-no para trás, até um chão de cimento. Bond agora estava de pé e sentia o cano de um revólver encostado ao seu flanco. Uma voz disse: — Fique onde está. Nada de espertezas. — Bond olhou para o homem. Era mais um chinês negro, do mesmo tipo que os outros. Os olhos amarelos examinaram-no com curiosidade. Bond virou-se com indiferença. Outro homem estava cutucando a jovem com a arma. Bond disse asperamente: — Deixe a garota em paz! Em seguida, caminhou e pôs-se ao lado da jovem. Os dois homens pareceram surpresos. Deixaram-se ficar de pé, apontando as armas com hesitação.

Bond olhou à volta. Estavam numa das cabanas pré-fabricadas que ele vira do rio. Era ao mesmo tempo uma garagem e uma oficina. O “dragão” tinha sido colocado sobre um fosso de vistoria, no chão de concreto. Um motor de popa desmontado estava sobre uma das bancadas. Longos tubos de luz fluorescente estavam afixados ao teto e o ambiente estava impregnado do cheiro de óleo e fumaça de exaustor. O motorista e o seu companheiro examinavam a máquina. Em seguida deram alguns passos pelo galpão, como se andassem sem propósito.

Um dos guardas anunciou: — Enviei a mensagem. A ordem é que eles sejam levados. Foi tudo bem?

O ajudante de motorista, que parecia o homem mais responsável, ali presente, disse: — Sem dúvida. Alguns disparos. Os faróis foram partidos. Talvez haja alguns furos nos pneumáticos. Ponha os rapazes em ação — uma vistoria completa. Conduzirei esses dois e tirarei um cochilo. — E, voltando-se para Bond: — Bem, vamos andando — e indicou o caminho que saía do longo galpão.

Bond disse: — Vá andando você; e cuidado com os modos. Diga àqueles macacos que tirem as armas de cima de nós. Podem disparar por engano. Parecem bastante idiotas.

O homem se aproximou, e os outros os acompanharam logo atrás. O ódio brilhava em seus olhos. O chefe levantou o punho cerrado, tão grande quanto um pequeno malho e chegou-o à altura do nariz de Bond. Procurava controlar-se com esforço, e disse: — Ouça, senhor. Às vezes, nós, os rapazes, temos permissão para participar da festa final. Estou rezando para que essa seja uma dessas vezes. Certa ocasião fizemos com que a coisa durasse toda uma semana. E se eu o pego...

Riu e os seus olhos brilharam com crueldade. Olhou para o lado de Bond, fixando a garota. Seus olhos pareciam transformados em bocas que agitavam os lábios. Enfiou as mãos nos bolsos laterais das calças. A ponta de sua língua mostrava-se muito vermelha, entre os lábios arroxeados. Voltando-se para os companheiros disse: — Que tal, rapazes?

Os três homens estavam olhando também para a jovem. Fizeram um sinal de assentimento, como crianças diante de uma árvore de Natal.

Bond desejou atirar-se como um louco sobre eles, golpeando as suas caras com os punhos algemados e aceitando a sua vingança sangrenta. Não fosse pela jovem, bem que o teria feito. Mas tudo o que tinha conseguido com suas corajosas palavras fora amedrontá-la. Disse apenas: — Muito bem, muito bem. Vocês são quatro e nós somos dois, ainda por cima com as mãos atadas. Vamos, não queremos atingi-los. Apenas não nos empurrem muito de um lado para outro. O Dr. No poderia não ficar satisfeito.

Àquele nome, os rostos dos homens se modificaram. Três pares de olhos passaram apàticamente de Bond para o chefe. Por um segundo, este olhou com desconfiança para Bond, intrigado, tentando descobrir se Bond teria alguma influência junto ao Dr. No. Sua boca abriu-se para dizer algo, mas logo pareceu pensar melhor, e apenas disse de maneira incerta: — Bem, bem, estávamos simplesmente brincando. — Voltou-se para os homens, em busca de confirmação: — Não é?

— Sem dúvida, sem dúvida! — foi a resposta dada por um coro áspero, e os homens desviaram o olhar.

O chefe disse com mau humor: — Por aqui, senhor. — E ele mesmo pôs-se a caminho, percorrendo o comprido galpão.

Bond segurou o pulso da jovem e seguiu o chefe. Estava impressionado com a reação causada naqueles homens pelo nome do Dr. No. Aquilo era alguma coisa a lembrar se eles tivessem que se haver novamente com aquela turma.

O homem chegou a uma porta de madeira situada na extremidade do galpão. Ao lado havia um botão de campainha que ele pressionou duas vezes e esperou. Ouviu-se um estalido e a porta se abriu, mostrando dez metros de uma passagem rochosa, mas atapetada e que ia dar, na outra extremidade, em outra porta mais elegante e pintada de creme.

O homem ficou de lado. Siga em frente, senhor — disse; — bata na porta e será atendido pela recepcionista. — Não havia nenhuma ironia em sua voz e seus olhos se mostravam impassíveis.

Bond conduziu Honey pela passagem. Ouviu que a porta se fechava às suas costas. Deteve-se por um momento e fitou-a, perguntando-lhe: — E agora?

Ela riu, trêmula, mas respondeu: — Ê bom sentir-se tapete sob os pés.

Bond apertou o seu pulso. Andou até a porta pintada de creme e bateu.

A porta abriu-se e Bond entrou com a jovem ao lado. Quando se deteve instantaneamente, não chegou a perceber o encontrão que lhe dava a jovem, pois continuou estarrecido.


XIII - GAIOLA DE OURO


Era a espécie de sala de recepção que as maiores corporações norte-americanas possuem no andar em que se situa o escritório do presidente, em seus arranha-céus de Nova Iorque. Suas proporções eram agradáveis, com cerca de vinte pés quadrados. O chão era todo recoberto pelo mais espesso tapete Wilton cor-de-vinho. O teto e as paredes estavam pintados numa suave tonalidade cinza pombo. Viam-se ainda reproduções litográficas de esboços de balé de Degas penduradas em séries, nas paredes, e a iluminação era feita com altos e modernos jogos de abajures de seda verde-escuro, imitando a forma de elegantes barricas.

À direita de Bond estavam uma larga mesa de mogno, com o tampo recoberto com couro verde, outras peças que se harmonizavam perfeitamente com a mesa, e um caro sistema de intercomunicações. Duas cadeiras altas, de antiquado, aguardavam os visitantes. Do outro lado da sala via-se uma mesa do tipo refeitório, sobre a qual estavam várias revistas com capas em cores vivas e mais duas cadeiras. Tanto na mesa de escritório, como na outra, viam-se vasos de hibiscos. O ar era fresco e impregnado de leve fragrância.

Duas mulheres estavam naquela sala. Por trás da mesa de trabalho, empunhando uma caneta que descansava sobre um formulário impresso, estava sentada uma jovem chinesa, de aspecto eficiente, com óculos de armação de chifre, sob uma franja de cabelos negros cortados curtos. Em seus olhos e em sua boca havia o sorriso padrão de boas-vindas que qualquer recepcionista exibe — a um tempo claro, obsequioso e inquisitivo.

Ainda com a mão na maçaneta da porta pela qual eles tinham passado, e esperando que os recém-chegados se adiantassem mais, a fim de que ela a pudesse fechar, estava uma mulher mais velha, com aspecto de matrona, e que deveria ter cerca de quarenta e cinco anos. Era fácil ver-se que também tinha sangue chinês. Sua aparência, saudável, de farto busto, era viva e quase excessivamente graciosa. O seu “pince-nez” de lentes cortadas em quadrado brilhava com o desejo da recepcionista de os pôr à vontade.

Ambas as mulheres vestiam roupas imaculadamente alvas, com meias brancas e sapatos de camurça branca como costumam apresentar-se as auxiliares empregadas nos mais luxuosos salões de beleza norte-americanos. Havia um que de suave e pálido em suas peles, como se elas raramente saíssem para o ar-livre.

Bond observou o ambiente, enquanto a mulher junto à porta lhe dizia frases convencionais de boas-vindas, como se eles tivessem sido colhidos por uma tempestade o chegado com atraso a uma festa.

— Oh, coitados! Nós não sabíamos quando vocês iriam chegar. A todo momento nos diziam que vocês já estavam a caminho... primeiro à hora do chá, ontem, depois na hora do jantar, e apenas há uma hora fomos informadas de que vocês chegariam à hora do desjejum. Devem estar com fome. Venham aqui e ajudem a irmã Rosa a preencher o formulário; depois eu os prepararei para a cama. Devem estar muito cansados.

Ia dizendo aquilo com voz doce e cacarejante, ao mesmo tempo que fechava a porta e os levava para junto da mesa e os fazia sentar nas cadeiras. Depois disse: — Bem, eu sou a irmã Lírio, e esta é a irmã Rosa. Ela irá fazer-lhes apenas algumas perguntas. Agora, aceitam um cigarro? — e pegou uma caixa de couro trabalhado que estava em cima da mesa. Abriu-a e pô-la diante deles. A caixa tinha três divisões, e a chinesinha explicou apontando com um dedo: “Esses são americanos, esses são ingleses e esses turcos.” Ela apanhou um luxuoso isqueiro de mesa e esperou.

Bond estendeu as mãos algemadas para tirar um cigarro turco.

A irmã Lírio deu um gritinho de espanto: — Oh, mas francamente. — Parecia sinceramente embaraçada. — Irmã Rosa, dê-me a chave, depressa. Já disse por várias vezes que os pacientes não devem ser trazidos dessa maneira. — Havia impaciência e aborrecimento em sua voz. — Francamente, aquela gente lá de fora! Já era tempo que eles fossem chamados à ordem.

A irmã Rosa estava tão embaraçada quanto a irmã Lírio. Rapidamente remexeu dentro de uma gaveta e entregou uma chave à irmã Lírio, que com muitas desculpas e cheia de dedos abriu os dois pares de algemas e, afastando-se para trás da mesa, deixou aquelas duas pulseiras de aço caírem dentro da cesta de papéis como se fossem ataduras sujas.

— Obrigado, — disse Bond, que não sabia como enfrentar aquela situação, a não ser procurando desempenhar um papel qualquer na comédia que se estava representando. Ele estendeu o braço, apanhou um cigarro e acendeu-o. Lançou um olhar para Honeyehile Rider, que parecia estonteada e nervosamente apertava com as mãos os braços de sua cadeira. Bond dirigiu-lhe um sorriso de conforto.

— Agora, por favor; — disse a irmã Rosa e inclinou-se sobre um comprido formulário impresso em papel caro. — Prometo ser o mais rápida que puder. O seu nome, sr... sr...

— Bryce, John Bryce.

Ela escreveu a resposta com grande concentração. — Endereço permanente?

— Aos cuidados do Jardim Zoológico Real, Regents Park, Londres, Inglaterra.

— Profissão?

— Ornitologista.

— Oh, meu Deus!, poderia o senhor soletrar isso? Bond atendeu-a.

— Muito obrigada. Agora, vejamos, objeto da viagem?

— Aves — respondeu Bond. — Sou também representante da Sociedade Audubon de Nova Iorque. Eles arrendaram parte desta ilha.

— Oh, sem dúvida. — Bond observou que a pena escrevia exatamente o que ele dizia. Depois da última palavra ela pôs um claro ponto de interrogação entre parênteses.

— E — a irmã Rosa sorriu polidamente em direção a Honeyehile — a sua esposa? Ela também está interessada em pássaros?

— Sim, sem dúvida.

— O seu primeiro nome?

— Honeyehile.

A irmã Rosa estava encantada. — Que nome lindo! — Ela voltou a escrever apressadamente. — E agora os parentes mais próximos de ambos, e estará tudo acabado.

Bond deu o verdadeiro nome de M como o parente mais próximo de ambos. Apresentou-o como “tio” e indicou o seu endereço como sendo “Diretor-Gerente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres.”

A irmã Rosa acabou de escrever e disse: — Pronto, está tudo feito. Muito obrigada, sr. Bryce, e espero que ambos apreciem a permanência aqui.

— Muito obrigado. Estou certo de que apreciaremos. — Bond levantou-se e Honeyehile fez o mesmo, ainda com expressão vazia.

A irmã Lírio disse: — Agora, venham comigo, queridos.

— Ela caminhou até uma porta na parede distante e deteve-se com a mão na maçaneta talhada em vidro. — Oh, meu Deus, — disse —, não é que agora me esqueci do número de seus quartos? É o apartamento creme, não é, irmã?

— Isso mesmo. Catorze e quinze.

— Obrigada, querida. E agora — ela abriu a porta — se vocês quiserem me seguir... Receio que seja uma caminhada um pouco longa. — Fechou a porta, por trás deles, e pôs-se à frente, indicando o caminho. — O Doutor tem falado várias vezes em instalar uma dessas escadas rolantes, ou algo de parecido, mas sabem como são os homens ocupados: — Ela riu alegremente. — Ele tem tantas outras coisas em que pensar!

— Sim, acredito, — disse Bond polidamente.

Bond tomou a mão da jovem e seguiram ambos a maternal e agitada chinesa através de cem metros de um alto corredor, do mesmo estilo da sala de recepção, mas que era iluminado a freqüentes intervalos por caros tubos luminosos fixados às paredes.

Bond respondia com polidos monossílabos aos comentários ocasionais que a irmã Lírio lhe lançava por sobre os ombros. Toda a sua mente se concentrava nas extraordinárias circunstâncias de sua recepção. Tinha certeza de que aquelas duas mulheres tinham sido sinceras. Nenhum só olhar ou palavra conseguira registrar que estivesse fora de propósito. Evidentemente aquilo era alguma espécie de fachada, mas de qualquer forma uma fachada sólida, meticulosamente apoiada pelo cenário e pelo elenco. A ausência de ressonância, na sala, e agora no corredor, estava a indicar que eles tinham deixado o galpão pré-fabricado para se internarem no flanco da montanha e agora estavam atravessando a sua base. Segundo o seu palpite estavam mesmo andando em direção oeste — em direção à penedia na qual terminava a ilha. Não havia umidade nas paredes e o ar parecia fresco e puro, com uma brisa a afagá-los. Muito dinheiro e uma bela realização de engenharia tinham sido os responsáveis por aquilo. A palidez das duas mulheres estava a sugerir que passavam a maior parte do tempo internadas no âmago da montanha. Do que a irmã dissera, parecia que elas faziam parte de um grupo de funcionários internos que nada tinham a ver com o destacamento de choque do exterior, e que talvez não soubessem a espécie de homens que eles eram.

Aquilo era grotesco, concluiu Bond ao se aproximar de uma porta, na extremidade do corredor, perigosamente grotesco, mas em nada adiantava pensar nisso no momento. Ele apenas podia seguir o papel que lhe tinha sido destinado. Pelo menos, aquilo era melhor do que os bastidores, na arena exterior da ilha.

Junto à porta, a irmã Lírio fez soar uma campainha. Já eram esperados e a porta abriu-se imediatamente. Uma encantadora jovem chinesa, de quimono lilás e branco, ficou a sorrir e a curvar-se, como se deve esperar que o façam as jovens chinesas. E, mais uma vez só havia calor e um sentimento de boas-vindas naquele rosto pálido como uma for. A irmã Lírio exclamou: — Aqui estão eles, finalmente, May! São o senhor e a senhora John Bryce. E sei que ambos devem estar exaustos, por isso devemos levá-los imediatamente aos seus aposentos, para que possam repousar e dormir. — Voltando-se para Bond: — Esta é May, muito boazinha. Ela tratará de ambos. Qualquer coisa que queiram é só tocar a campainha que May atenderá. É uma espécie de favorita de todos os nossos hóspedes.

Hóspedes!, pensou Bond. Essa é a segunda vez que ela usa a palavra. Sorriu polidamente para a jovem, e disse;

— Muito prazer; sim, certamente que gostaríamos de ir para os nossos aposentos.

May envolveu-os num cálido sorriso, e disse em voz baixa e atraente: — Espero que ambos se sintam bem, sr. Bryce. Tomei a liberdade de mandar vir uma refeição assim que soube que os senhores iam chegar. Vamos...? — Corredores saiam para a esquerda e a direita de portas duplas de elevadores, instalados na parede oposta. A jovem adiantou-se, caminhando na frente, para a direita, logo seguida de Bond e Honeyehile, que tinham atrás a irmã Lírio.

Ao longo do corredor, dos dois lados, viam-se portas numeradas. A decoração era feita no mais pálido cor-de-rosa, com um tapete cinza-pombo. Os números nas portas eram superiores a dez. O corredor terminava abruptamente, com duas portas, uma em frente a outra, com a numeração catorze e quinze. A irmã May abriu a porta catorze e o casal a seguiu, entrando na peça.

Era um lindo quarto de casal, em moderno estilo Mia-mi, com paredes verde-escuro, chão encerado de mogno escuro, com um ou outro espesso tapete branco e bem desenhado mobiliário de bambu com um tecido “chintz” de grandes rosas vermelhas sobre fundo branco. Havia uma porta de comunicação para um quarto de vestir masculino e outra que dava para um banheiro moderno e extremamente luxuoso, com uma banheira de descida e um bidê.

Era como se tivessem sido introduzidos num apartamento do mais moderno hotel da Flórida, com exceção de dois detalhes que não passaram despercebidos a Bond. Não havia janelas e nenhuma maçaneta interior nas portas.

May olhou com expressão de expectativa, de um para o outro.

Bond voltou-se para Honeyehile e sorriu-lhe: — Parece muito confortável, não acha, querida?

A jovem brincava com a barra da saia e fez um sinal de assentimento sem olhar para Bond.

Ouviu-se uma tímida batida na porta e outra jovem, tão linda quanto May, entrou carregando uma bandeja que se equilibrava sobre as palmas das mãos. A jovem descansou a bandeja sobre a mesa do centro e puxou duas cadeiras. Retirou a toalha de linho imaculadamente limpa e saiu. Sentiu-se um delicioso cheiro de fiambre e café.

May e a irmã Lírio também se encaminharam para a porta. A mulher mais idosa se deteve por um instante e disse:

— E agora nós os deixaremos em paz. Se desejarem alguma coisa, basta tocar a campainha. Os interruptores estão ao lado da cama. Ah, outra coisa, poderão encontrar roupa limpa nos aparadores. Receio que sejam apenas de estilo chinês,

— acrescentou, como a desculpar-se —, mas espero que os tamanhos satisfaçam. A rouparia só recebeu as medidas ontem à noite. O Dr. deu ordens severas para que os senhores não fossem perturbados. Ficará encantado se puderem reunir-se a ele, esta noite, para o jantar. Deseja, entretanto, que tenham todo o resto do dia à vontade, a fim de que melhor se ambientem, compreendem? — Fez uma pausa e olhou para um e para outro, com um sorriso indagador. — Posso dizer que os senhores...?

— Sim, por favor, — disse Bond. — Pode dizer ao D., que teremos muito prazer em jantar com ele.

— Oh, sei que ficará contente. — Com uma derradeira mesura, as duas chinesas se retiraram e fecharam a porta.

Bond voltou-se para Honeyehile, que parecia embaraçada e ainda evitava os seus olhos. Ocorreu então a Bond que talvez jamais tivesse ela tido um tratamento tão cortês ou visto tanto luxo em sua vida. Para ela, tudo aquilo devia ser muito mais estranho e aterrador do que o que tinham passado ao lado de fora. Ela continuou na mesma posição, brincando com a barra da saia. Podiam-se notar vestígios de suor seco, sal e poeira em seu rosto. Suas pernas nuas estavam sujas e Bond observou que os dedos de seus pés se moviam, suavemente, ao pisarem nervosamente o maravilhoso e espesso tapete.

Bond riu. Riu com gosto ao pensamento de que os temores da jovem tivessem sido abafados pelas preocupações de etiqueta e comportamento, e riu-se também da figura que ambos faziam — ela em farrapos e ele com a suja camisa azul, as calças pretas e os sapatos de lona enlameados.

Aproximou-se dela e segurou-lhe mãos. Estavam frias. Disse: — Honey, somos um par de espantalhos, mas há apenas um problema básico. Devemos tomar o nosso desjejum primeiro, enquanto está quente, ou tiraremos antes esses farrapos e tomaremos um banho, tomando a nossa refeição fria? Não se preocupe com mais nada. Estamos aqui nessa maravilhosa casinha e isto é tudo o que importa. O que faremos, então?

Ela sorriu hesitante. Seus olhos azuis fixavam-se no rosto dele, na ânsia de obter segurança. Depois disse: — Você não está preocupado com o que nos possa acontecer? — Fez um sinal para o quarto e acrescentou: — Não acha que tudo isso pode ser uma armadilha?

— Se se trata de uma armadilha, já caímos nela. Agora nada mais podemos fazer senão comer a isca. A única questão que subsiste é a de saber se a comeremos quente ou fria. — Apertou-lhe as mãos e continuou: — Seriamente, Honey. Deixe as preocupações comigo. Pense apenas onde estávamos apenas há uma hora. Isso aqui não é melhor? Agora, decidamos a única coisa realmente importante. Banho ou desjejum?

Ela respondeu com relutância: — Bem, se você acha... Quero dizer — preferiria antes lavar-me. — Mas logo acrescentou: — Você terá que ajudar-me. — E sacudiu a cabeça em direção ao banheiro, dizendo: Não sei como mexer numa coisa dessas. Como é que se faz?

Bond respondeu com toda seriedade: — É muito fácil. Vou preparar tudo para você. Enquanto você estivar tomando o seu banho tomarei o meu desjejum. Ao mesmo tempo tratarei de fazer com que o seu não esfrie.

Bond aproximou-se de um dos armários embutidos e abriu a porta. No interior havia uma meia dúzia de quimonos, alguns de seda e outros de linho. Apanhou um de linho, ao acaso. Depois, voltando-se para ela, disse: — Tire suas roupas e meta-se nisso aqui, enquanto preparo o seu banho. Mais tarde você escolherá as coisas que preferir, para a cama e para o jantar.

Ela respondeu com gratidão: — Oh, sim, James. Se você apenas me mostrasse... — E logo começou a desabotoar a saia.

Bond pensou em tomá-la nos braços e beijá-la, mas, ao invés disso, disse abruptamente: — ótimo, Honey — e, adiantando-se para o banheiro, abriu as torneiras.

Havia de tudo naquele banheiro: essência para banhos Floris Lime, para homens, e pastilhas de Guarlain para o banho de senhoras. Esfarelou uma pastilha na água e imediatamente o banheiro perfumou-se como uma loja de orquídeas. O sabonete era o Sapoceti de Guarlain “Fleurs des Alpes”. Num pequeno armário de remédios, atrás de um espelho, em cima da pia, podiam-se encontrar tubos de pasta, escovas de dente e palitos “Steradent”, água “Rose” para lavagem bucal, aspirina e leite de magnésia. Havia também um aparelho de barbear elétrico, loção “Lentheric” para barba, e duas escovas de náilon para cabelos e pentes. Tudo era novo e ainda não tinha sido tocado.

Bond olhou para o seu rosto sujo e sem barbear, no espelho, e riu sardonicamente para os próprios olhos, cinzentos, de pária queimado pelo sol. O revestimento da pílula certamente que era do melhor açúcar. Seria inteligente esperar que o remédio, no interior daquela pílula, fosse dos mais amargos.

Tocou a água, com a mão, a fim de sentir a temperatura. Talvez estivesse muito quente para quem jamais tinha tomado antes um banho quente. Deixou então que corresse um pouco mais de água fria. Ao inclinar-se, sentiu que dois braços lhe eram passados em torno do pescoço. Endireitou-se. Aquele corpo dourado resplandecia no banheiro todo revestido de ladrilhos brancos. Ela beijou-o impetuosamente nos lábios. Ele passou-lhe os braços à volta da cintura e esmagou-a de encontro a seu corpo, com o coração aos pulos. Ela disse sem fôlego, ao seu ouvido: — Achei estranhas as roupas chinesas, mas de qualquer maneira você disse à mulher que nós éramos casados.

Uma das mãos de Bond estava pousada sobre o seu seio esquerdo, cujo mamilo estava completamente endurecido pela paixão. O ventre da jovem se comprimia contra o seu. Por que não? Por que não? Não seja tolo! Este é um momento louco para isso. Vocês dois estão diante de um perigo mortal. Você deve continuar frio como gelo, para ter alguma possibilidade de se livrar dessa enrascada. Mais tarde! Mais tarde! Não seja fraco.

Bond retirou a mão do seio dela e espalmou-a à volta de seu pescoço. Esfregou o rosto de encontro ao dela e depois aproximou a boca da boca da jovem e deu-lhe um prolongado beijo.

Afastou-se depois e manteve-a à distância de um braço. Por um momento ambos se olharam, com os olhos brilhando de desejo. Ela respirava ofegantemente, com os lábios entreabertos, de modo que ele podia ver-lhe o brilho dos dentes. Ele disse com a voz trêmula: — Honey, entre no banho antes que eu lhe dê uma surra.

Ela sorriu e sem nada dizer entrou na banheira e deitou-se em todo seu comprimento. Do fundo da banheira ergueu os olhos para ele. Os cabelos louros, em seu corpo, brilhavam como moedas de ouro. Ela disse provocadoramente: — Você tem que me esfregar. Não sei como devo fazer, e você terá que mostrar-me.

Bond respondeu desesperadamente: — Cale a boca, Honey, e deixe de namoros. Apanhe a esponja, o sabonete e comece logo a se esfregar. Que diabo! Isso não é o momento de se fazer amor. Vou tomar o meu desjejum. — Esticou a mão para a porta e segurou na maçaneta. Ela disse docemente: — James! — Ele olhou para trás e viu que ela lhe fazia uma careta, com a língua de fora. Retribuiu com uma careta selvagem e bateu a porta com força.

Em seguida, Bond dirigiu-se para o quarto de vestir e deixou-se ficar durante algum tempo, de pé, no centro da peça, esperando que as batidas de seu coração se acalmassem. Esfregou as mãos no rosto e sacudiu a cabeça, procurando esquecê-la.

Para clarear a mente, percorreu ainda cuidadosamente as duas peças, procurando saídas, possíveis armas, microfones, qualquer coisa enfim que lhe aumentasse o conhecimento da situação em que se achava. Nada disso, entretanto, pôde encontrar. Na parede havia um relógio elétrico que marcava oito e meia e uma série de botões de campainhas, ao lado da cama de casal. Esses botões traziam a indicação de “Sala de serviço”, “cabeleireiro”, “manicure”, “empregada”. Não havia telefone. Bem no alto, a um canto de ambas as peças, viam-se as grades de um pequeno ventilador. Cada uma dessas grades era de dois pés quadrados. Tudo inútil. As portas pareciam ser feitas de algum metal leve, pintadas para combinarem com as paredes. Bond jogou todo o peso de seu corpo contra uma delas, mas ela não cedeu um só milímetro. Bond esfregou o ombro. Aquele lugar era uma verdadeira prisão. Não adiantava discutir a situação. A armadilha tinha-se fechado hermèticamente sobre eles. Agora, a única coisa que restava aos ratos era tirarem o melhor proveito possível da isca de queijo.

Bond sentou-se à mesa do desjejum, sobre a qual estava uma grande jarra com suco de abacaxi, metida num pequeno balde de prata cheio de cubos de gelo. Serviu-se rapidamente e levantou a tampa de uma travessa. Ali estavam ovos mexidos sobre torradas, quatro fatias de toucinho defumado, um rim grelhado e o que parecia quatro salsichas inglesas de carne de porco. Havia também duas torradas quentes, pãezinhos conservados quentes dentro de guardanapos, geléia de laranja e morango e mel. O café estava quase fervendo numa grande garrafa térmica, e o creme exalava um odor fresco e agradável.

Do banheiro vinham as notas da canção “Marion” que a jovem estava cantarolando. Bond resolveu não dar ouvidos à cantoria e concentrou-se nos ovos.

Dez minutos depois, Bond ouviu que a porta do banheiro se abria. Descansou uma torrada que tinha numa das mãos e cobriu os olhos com a outra. Ela riu e disse: — Ele é um covarde. Tem medo de uma simples jovem. — Em seguida Bond ouviu-a a remexer nos armários. Ela continuava falando, em parte consigo mesma: — Não sei porque ele está assustado. Naturalmente que se eu lutasse com ele facilmente o dominaria. Talvez esteja com medo disso. Talvez não seja realmente muito forte, embora seus braços e peito pareçam bastante rijos. Contudo, ainda não vi o resto. Talvez seja fraco. Sim, deve ser isso. Essa é a razão pela qual não ousa despir-se na minha frente. Hum, agora vamos ver, será que ele gostaria de mim com essas roupas? — Ela elevou a voz: — Querido James, você gostaria de me ver de branco, com pássaros azul-pálido esvoaçando sobre o meu corpo?

— Sim, bolas! Agora acabe com essa conversa e venha comer. Estou começando a sentir sono.

Ela soltou uma exclamação: — Oh, se você quer dizer que já está na hora de irmos para a cama, naturalmente que me apressarei.

Ouviu-se uma agitação de passos apressados e Bond logo a via sentar-se diante de si. Ele deixou cair as mãos e ela sorriu-lhe. Estava linda. Seu cabelo estava escovado e penteado de um dos lados caindo sobre o rosto, e do outro com as madeixas puxadas para trás da orelha. Sua pele brilhava de frescura e os grandes olhos azuis resplandeciam de felicidade. Agora Bond estava gostando daquele nariz quebrado. Tinha-se tornado parte de seus pensamentos relativamente a ela, e subitamente lhe ocorreu perguntar-se por que estaria ele triste quando ela era tão imaculadamente bela quanto tantas outras lindas jovens. Sentou-se circunspectamente, com as mãos no colo, e a metade dos seios aparecendo na abertura do quimono.

Bond disse severamente: — Agora, ouça, Honey. Você está maravilhosa, mas esta não é a maneira de usar-se um quimono. Feche-o no corpo, prenda-o bem e deixe de tentar parecer uma prostituta. Isso simplesmente não são bons modos à mesa.

— Oh, você não passa de um boneco idiota. — E ajeitou o quimono, fechando-o um pouco, em uma ou duas polegadas. — Por que você não gosta de brincar? Gostaria de brincar de estar casada.

— Não à hora do desjejum — respondeu Bond com firmeza. — Vamos, coma logo. Está delicioso. De qualquer maneira estou muito sujo, e agora vou fazer a barba e tomar um banho. — Levantou-se, deu volta à mesa e beijou-lhe o alto da cabeça. — E quanto a essa história de brincar, como você diz, gostaria mais de brincar com você do que com qualquer outra pessoa do mundo. Mas não agora. — Sem esperar pela resposta, dirigiu-se ao banheiro e fechou a porta.

Bond barbeou-se e tomou um banho de chuveiro. Sentia-se desesperadamente sonolento. O sono chegava-lhe, de modo que de quando em quando tinha que interromper o que fazia e inclinar a cabeça, repousando-a entre os joelhos. Quando começou a escovar os dentes, o seu estado era tal que mal podia fazê-lo. Estava começando a reconhecer os sintomas. Tinha sido narcotizado. A coisa teria sido posta no suco de abacaxi ou no café? Este era um detalhe sem importância. Aliás, nada tinha importância. Tudo o que queria fazer era estender-se naquele chão de ladrilhos e fechar os olhos. Assim mesmo, dirigiu-se cambaleante para a porta, esquecendo-se de que estava nu. Isso também pouca importância tinha. A jovem já tinha terminado a refeição e agora estava na cama. Continuou trôpego, até ela, segurando-se nos móveis. O quimono tinha sido abandonado no chão e ela dormia pesadamente, completamente nua, sob um simples lençol.

Bond olhou para o travesseiro, ao lado da jovem. Não! Procurou o interruptor e apagou as luzes. Agora teve que se arrastar pelo chão até chegar ao seu quarto. Chegou até junto de sua cama e atirou-se nela. Com grande esforço conseguiu ainda esticar o braço, tocar o interruptor e tentar apagar a lâmpada do criado-mudo. Mas não o conseguiu: sua mão deslizou, atirou o abajur ao chão e a lâmpada espatifou-se. Com um derradeiro esforço, Bond virou-se ainda no leito e adormeceu profundamente.

Os números luminosos do relógio elétrico, no quarto de casal, anunciavam nove e meia.

Às dez horas, a porta do quarto abriu-se suavemente. Um vulto muito alto e magro destacava-se na luz do corredor. Era um homem. Talvez tivesse dois metros de altura. Permaneceu no limiar da porta, com os braços cruzados, ouvindo. Dando-se por satisfeito, caminhou vagarosamente pelo quarto e aproximou-se da cama. Conhecia perfeitamente o caminho. Curvou-se sobre o leito e ouviu a serena respiração da jovem. Depois de um momento, tocou em seu próprio peito e acionou um interruptor. Imediatamente um amplo feixe de luz difusa projetou-se na cama. O farolete estava preso ao corpo do homem por meio de um cinto que o fixava à altura do esterno.

Inclinou-se novamente para a frente, de modo que a luz clareou o rosto da jovem.

O intruso examinou aquele rosto durante alguns minutos. Uma de suas mãos avançou, apanhou a orla do lençol, à altura do queixo da jovem, e puxou-o lentamente até os pés da cama. Mas a mão que puxara aquele lençol não era u’a mão. Era um par de pinças de aço muito bem articuladas na extremidade de uma espécie de talo metálico que desaparecia dentro de uma manga de seda negra. Era u’a mão mecânica.

O homem contemplou durante longo tempo aquele corpo nu, deslocando o seu peito de um lado para outro, de modo que todo o leito fosse submetido ao feixe luminoso. Depois, a garra saiu novamente de sob aquela manga e delicadamente levantou a ponta do lençol, puxando-o dos pés da cama até recobrir todo o corpo da jovem. O homem demorou-se ainda por um momento a contemplar o rosto adormecido, depois apagou o farolete e atravessou silenciosamente o quarto em direção à porta aberta, além da qual estava Bond dormindo.

O homem demorou-se mais tempo ao lado do leito de Bond. Perscrutou cada linha, cada sombra do rosto moreno e quase cruel que jazia quase sem vida, sobre o travesseiro. Observou a circulação à altura do pescoço e contou-lhe as batidas; depois, quando puxou o lençol para baixo, fez o mesmo na área do coração. Estudou a curva dos músculos, nos braços de Bond e nas coxas, e considerou pensativo a força oculta no ventre musculoso de Bond. Chegou até mesmo a curvar-se sobre a mão direita de Bond, estudando-lhe cuidadosamente as linhas da vida e do destino.

Por fim, com grande cuidado, a pinça de aço puxou novamente o lençol, desta vez para cobrir o corpo de Bond até o pescoço. Por mais um minuto o elevado vulto permaneceu ao lado do homem adormecido, depois se retirou rapidamente, ganhando o corredor, enquanto a porta se fechava com um estalido metálico e seco.


CONTINUA

XI - VIDA NO CANAVIAL


Seriam cerca de oito horas, pensou Bond. A não ser o coaxar dos sapos, tudo estava mergulhado em silêncio. No canto mais distante da clareira, ele podia vislumbrar o vulto de Quarrel.

Podia-se ouvir o tinir metálico, enquanto ele se ocupava em desmontar e secar a sua “Remington”.

Por entre as árvores podiam-se ver também as luzes distantes, vindas do depósito de guano, riscar caminhos luminosos e festivos sobre a superfície escura do lago. O desagradável vento desaparecera e o abominável cenário estava mergulhado em trevas. Estava bastante fresco. As roupas de Bond tinham secado no corpo. A comida tinha aquecido o seu estômago. Ele experimentou uma agradável sensação de conforto, sonolência e paz. O dia seguinte ainda estava muito longe e não apresentava problemas, a não ser uma boa dose de exercício físico. A vida, subitamente, pareceu-lhe fácil e boa.

A jovem estava a seu lado, metida no saco de dormir. Estava deitada de costas, com a cabeça descansando nas mãos, e olhando para o teto de estrelas. Ele apenas conseguia divisar os pálidos contornos de seu rosto. De repente, ela disse: James, você prometeu dizer-me o que significava tudo isso. Vamos. Eu não dormirei enquanto você não o disser.

Bond riu. — Eu direi se você também disser. Também quero saber o que você pretende.

— Pois não, não tenho segredos: mas você deve falar primeiro.

— Está certo. — Bond puxou os joelhos até a altura do queixo e passou os braços à volta deles. — Eu sou uma espécie de policial. Eles me enviam de Londres quando há alguma coisa de estranho acontecendo em alguma parte do mundo e que não interessa a ninguém. Bem, não faz muito tempo, um dos funcionários do Governador, em Kingston, um homem chamado Strangways, aliás meu amigo, desapareceu. Sua secretária, que era uma linda jovem, também desapareceu sem deixar vestígios. Muitos pensaram que eles tivessem fugido juntos, mas eu não acreditei nisso. Eu...”

Bond contou tudo com simplicidade, falando em homens bons e maus, como numa história de aventuras lida em algum livro. Depois terminou: Como você vê, Honey, temos de voltar a Jamaica, amanhã à noite, todos nós, na canoa, e então o Governador nos dará ouvidos e enviará um destacamento de soldados para apanhar este chinês. Espero que isso terá como conseqüência levá-lo à prisão. Ele com certeza também sabe disso, e essa é a razão pela qual procura aniquilar-nos. Essa é a história. Agora é a sua vez.

A jovem disse: Você parece viver uma vida muita excitante. Sua mulher não deve gostar que você fique fora tanto tempo. Ela não tem medo de que você se fira?

— Não sou casado. A única que se preocupa com a possibilidade de que eu me fira é a minha companhia de seguros.

Ela continuou sondando: Mas suponho que você tenha namoradas.

— Não permanentes.

— Oh!

Fez-se uma pausa. Quarrel se aproximou e disse: “Capitão, farei o primeiro quarto, se for melhor. Estarei na extremidade da restinga e virei chamá-lo à meia-noite. Então talvez o senhor possa ir até as cinco horas, quando nós nos poremos em marcha. Precisamos estar fora daqui antes que clareie o dia.

— Está bem — respondeu Bond. — Acorde-me se você vir alguma coisa. O revólver está em ordem?

— Perfeito — respondeu Quarrel com evidente mostra de contentamento. Depois, dirigindo-se à jovem disse com leve tom de insinuação: — Durma bem, senhorita. Em seguida, desapareceu silenciosamente nas sombras.

— Gosto de Quarrel — disse a jovem. E, após uma pausa: — Você quer realmente saber alguma coisa a meu respeito? A história não é tão excitante quanto a sua.

— É claro que quero. E não omita nada.

— Não há nada a omitir. Você poderia escrever toda a história de minha vida nas costas de um cartão postal. Para começar, nunca saí de Jamaica. Vivi toda a minha vida num lugar chamado Beau Desert, na costa setentrional, nas proximidades do Porto Morgan.

Bond riu. — É estranho: posso dizer o mesmo; pelo menos por enquanto. Não notei você pela região. Você vive em cima de uma árvore?

— Ah, imagino que você tenha ficado na casa da praia. Eu nunca chego até ali. Vivo na Casa Grande.

— Mas nada ficou dela. É uma ruína no meio dos canaviais.

— Eu vivo na adega. Tenho vivido ali desde a idade de cinco anos. Depois a casa se incendiou e meus pais morreram. Nada me lembro deles, por isso você não precisa manifestar pesar. A princípio vivi ali com a minha ama negra, mas depois ela morreu, quando eu tinha apenas quinze anos. Nos últimos cinco anos tenho vivido ali sozinha.

— Nossa Senhora! — Bond estava boquiaberto. — Mas não havia ninguém para tomar conta de você? Os seus pais não deixaram nenhum dinheiro?

— Nem um tostão. — Não havia o mínimo traço de amargura na voz da jovem — talvez orgulho, se houvesse alguma coisa. — Você sabe, os Riders eram uma das mais antigas famílias de Jamaica. O primeiro Rider recebera de Cromwell as terras de Beau Desert, por ter sido um dos que assinaram o veredicto de morte contra o rei Carlos. Ele construiu a Casa Grande e minha família viveu ora nela ora fora dela, desde aquela época. Mas depois veio a decadência do açúcar e eu acho que a propriedade foi pessimamente administrada, e, ao tempo em que meu pai tomou conta da herança, havia somente dívidas — hipotecas e outros ônus. Assim, quando meu pai e minha mãe morreram a propriedade foi vendida. Eu pouco me importei, pois era muito jovem. Minha ama deve ter sido maravilhosa. Quiseram que alguém me adotasse, mas a minha babá reuniu os pedaços de mobília que não tinham sido queimados e com eles nós nos instalamos da melhor forma no meio daquelas ruínas. Depois de algum tempo ninguém mais veio interferir conosco. Ela cosia um pouco e lavava para algumas freguesas da aldeia, ao mesmo tempo que plantava bananas e outras coisas, sem falar do grande pé de fruta-pão que havia diante da casa. Comíamos o que era a ração habitual do povo de Jamaica. E havia os pés de cana-de-açúcar à nossa volta. Ela fizera também uma rede para apanhar peixes, a qual nós recolhíamos todos os dias. Tudo corria bem e nós tínhamos o suficiente para comer. Ela ensinou-me a ler e escrever, como pôde. Tínhamos uma pilha de velhos livros que escapara ao incêndio, inclusive uma enciclopédia. Comecei com o A quando tinha apenas oito anos, e cheguei até o meio do T. — Ela disse um tanto na defensiva: — Aposto que sei mais do que você sobre muitas coisas.

— Estou certo de que sim. — Bond estava perdido na visão daquela jovem de cabelos de linho errando pelas ruínas de uma grande construção, com uma obstinada negra a vigiá-la e a chamá-la para receber as lições que deveriam ter sido um mistério para ela mesma. — Sua ama deve ter sido uma criatura extraordinária.

— Ela era um amor. — Era uma afirmação peremptória. — Pensei que fosse morrer quando ela faleceu. As coisas não foram tão fáceis para mim depois disso. Antes eu levava uma vida de criança, mas subitamente tive que crescer e fazer tudo por mim mesma. E os homens tentaram apanhar-me e atingir-me. Diziam que queriam fazer amor comigo. — Fez uma pausa e acrescentou: — Eu era bonita naquela época. Bond disse muito sério:

— Você é uma das jovens mais belas que já vi.

— Com este nariz? Não seja tolo.

— Você não compreende. — Bond tentou encontrar palavras nas quais ela pudesse crer. — É claro que qualquer pessoa pode ver que o seu nariz está quebrado; mas desde esta manhã dificilmente eu pude notá-lo. Quando se olha para uma pessoa, olha-se para os seus olhos ou para a sua boca. Nesses dois pontos se encontram a expressão. Um nariz quebrado não tem maior significação do que uma orelha torta. Narizes e orelhas são peças do mobiliário facial. Algumas são mais bonitas do que outras, mas não são tão importantes quanto o resto. Se você tivesse um nariz bonito, tão bonito como o resto, você seria a jovem mais bela de Jamaica.

— Você é sincero? — Sua voz era ansiosa. — Você acha que eu poderia ser bela? Sei que muita coisa em mim está bem, mas quando olho no espelho só vejo o meu nariz quebrado. Estou certa de que o mesmo ocorre com outras pessoas que são, que são — bem — mais ou menos aleijadas.

Bond disse com impaciência: — Você não é aleijada! Não diga tolices. E aliás você pode endireitá-lo mediante uma simples operação. Basta que você vá aos Estados Unidos e a coisa levará apenas uma semana.

Ela disse com irritação: — Como é que você quer que eu faça isso? Tenho cerca de quinze libras debaixo de uma pedra, na minha adega. Tenho ainda três saias, três blusas, uma faca e uma panela de peixe. Conheço muito bem essas operações. O médico de Porto Maria já pediu informações para mim. Ele é um homem muito bom e escreveu para os Estados Unidos. Pois para que a operação seja bem feita, eu teria que gastar cerca de quinhentas libras, sem falar da passagem para Nova York, a conta do hospital e tudo o mais.

Sua voz tornou-se desesperançada: — Como é que você espera que eu possa ter todo esse dinheiro?

Bond já decidira sobre o que teria de ser feito, mas no momento apenas disse ternamente: — Bem, espero que se possam encontrar meios; mas, de qualquer maneira, prossiga com a sua história. Ela é muito excitante — muito mais interessante do que a minha. Você tinha chegado ao ponto em que a sua ama morreu. O que aconteceu depois?

A jovem recomeçou com relutância.

— Bem, a culpa é sua por ter interrompido. E você não deve falar de coisas que não compreende. Suponho que as pessoas lhe digam que você é simpático. Você deve também ter todas as namoradas que desejar. Bem, isso não aconteceria se você fosse vesgo ou tivesse um lábio leporino. — Na verdade, ele pôde ouvir o sorriso em sua voz: — Acho que quando voltarmos eu irei ter com o feiticeiro para que lhe faça uma mandinga e lhe dê alguma coisa assim. — E ela acrescentou tristemente: — Dessa forma, nós seremos mais parecidos.

Bond estendeu o braço e sua mão tocou nela: — Eu tenho outros planos. Mas continuemos, quero ouvir o resto da sua história.

— Bem, — disse a jovem com um suspiro. — Eu terei que me atrasar um pouco. Como você sabe, toda a propriedade é representada pela cana-de-açúcar e pela velha casa que está situada no meio da plantação. Bem, umas duas vezes por ano eles cortam a cana e mandam-na para o moinho. E quando eles o fazem, todos os animais e insetos que vivem nos canaviais entram em pânico e a maioria deles têm as suas tocas destruídas e são mortos. Na época da safra, alguns deles começaram a vir para as ruínas da casa, onde se escondiam. No princípio, minha babá ficava aterrorizada, pois lá vinham os mangustos, as cobras e os escorpiões, mas eu preparei dois quartos da adega para recebê-los. Não me assustei com eles, e eles nunca me fizeram mal. Pareciam compreender que eu estava cuidando deles. E devem ter contado aquilo aos seus amigos, ou alguma coisa parecida, pois depois de algum tempo era perfeitamente natural que todos viessem acantonar-se em seus dois quartos, onde ficavam até que os canaviais começassem novamente a crescer, quando então iam saindo e voltando para os campos. Dei-lhes toda a comida que podíamos pôr de lado, quando eles ficavam conosco, e todos se portavam muito bem, a não ser por algum odor e às vezes uma ou outra luta entre si. Mas eram muito mansos comigo. Naturalmente os cortadores de cana perceberam tudo e viam-me andando pelo lugar com cobras à volta do meu pescoço, e assim por diante, a ponto de ficarem aterrorizados comigo e me considerarem uma feiticeira. Por causa disso, eles nos deixaram completamente isoladas. Ela fez uma pausa, e depois recomeçou:

— Foi assim que aprendi tanta coisa sobre animais e insetos. Eu costumava ainda passar muito tempo no mar, aprendendo coisas sobre os animais marinhos, assim como sobre os pássaros. Se se chega a saber o que todas essas criaturas gostam de comer e do que têm medo, pode-se muito bem fazer amizade com elas. — Levantou os olhos para Bond e disse: Você não sabe o que perde ignorando todas essas coisas.

— Receio que perca muito — respondeu Bond com sinceridade. — Suponho que eles sejam muito melhores e mais interessantes que os homens.

Sobre isso nada sei — respondeu a jovem pensativa-mente. — Não conheço muitas pessoas. A maioria das que conheci foram detestáveis, mas acho que deve haver criaturas interessantes também. — Fez uma pausa, e prosseguiu: — Nunca pensei realmente que chegasse a gostar de alguma pessoa como gosto dos animais. Com exceção da babá, naturalmente. Até que... — Ela se interrompeu com um sorriso de timidez. — Bem, de qualquer forma, nós vivemos muito felizes juntas, até que eu fiz quinze anos, quando então a babá morreu e as coisas se tornaram muito difíceis. Havia um homem chamado Mander. Um homem horroroso. Era o capataz branco que servia aos proprietários da plantação. Ele vivia me procurando. Queria que eu fosse viver com ele, em sua casa de Porto Maria.

Eu o odiava, e costumava esconder-me sempre que ouvia o seu cavalo aproximando-se do canavial. Certa noite ele veio a pé e eu não o ouvi. Estava bêbado. Entrou na adega e lutou comigo porque não queria fazer o que ele desejava. Você sabe, as coisas que fazem as pessoas quando estão apaixonadas.

— Sim, já sei.

— Tentei matá-lo com a minha faca, mas ele era muito forte e deu-me um soco tão forte no rosto que me quebrou o nariz. Deixou-me inconsciente e acho que fez alguma coisa comigo. Sei que ele fez mesmo. No dia seguinte eu quis me matar quando vi o meu rosto e verifiquei o que ele me havia feito. Pensei que iria ter um filho. Teria sem dúvida me matado se tivesse tido um filho daquele homem. Em todo caso, não tive, e tudo continuou assim. Fui ao médico e ele fez o que pôde com o meu nariz e não me cobrou nada. Quanto ao resto, eu nada lhe contei, pois estava muito envergonhada. O homem não voltou mais. Eu esperei e nada fiz até a próxima colheita de cana-de-açúcar. Tinha um plano. Estava esperando que as aranhas viúvas-negras viessem procurar abrigo. Um belo dia elas chegaram. Apanhei a maior das fêmeas e á deixei numa caixa sem nada para comer. As fêmeas são terríveis. Então esperei que fizesse uma noite escura, sem luar. Na primeira noite dessas, apanhei a caixa com a aranha e caminhei até chegar à casa do homem. Estava muito escuro e eu me sentia aterrorizada com a possibilidade de encontrar algum assaltante pela estrada, mas não houve nada. Esperei em seu jardim, oculta entre os arbustos, até que ele se recolheu à cama. Então subi por uma árvore e ganhei a sacada; aguardei até que ele começasse a roncar e depois entrei pela janela. Ele estava nu, estendido na cama, sob o mosquiteiro. Levantei uma aba do filó, abri a caixa e sacudi-lhe a aranha sobre o ventre. Depois saí e voltei para casa.

— Deus do céu! — exclamou Bond reverentemente. — O que aconteceu com o homem?

Ela respondeu com satisfação: — Levou uma semana para morrer. Deve ter-lhe doído terrivelmente. Você sabe, a mordida dessa aranha é pavorosa. Os feiticeiros dizem que não há nada que se lhe compare. — Ela fez uma pausa, e como Bond não fizesse nenhum comentário, acrescentou: — Você não acha que eu fiz mal, não é?

— Bem, não faça disso um hábito — respondeu Bond suavemente. — Mas não posso culpá-la, diante do que ele tinha feito. E, depois, o que aconteceu?

— Bem, depois me estabeleci novamente — sua voz era firme. — Tive que me concentrar na tarefa de obter alimento suficiente, e naturalmente. — Acrescentou persuasivamente: — Eu tinha de fato um nariz muito bonito, antes. Você acha que os médicos podem torná-lo igualzinho ao que era antes?

— Eles poderão fazê-lo de qualquer forma que você quiser — disse Bond em tom definitivo. — Como é que você ganhou dinheiro?

— Foi graças à enciclopédia. Li nela que há pessoas que gostam de colecionar conchas marinhas e que as conchas raras podiam ser vendidas. Falei com o mestre-escola local, sem contar-lhe naturalmente o meu segredo, e ele descobriu para mim que havia uma revista norte-americana chamada “Nautilus”, dedicada aos colecionadores de conchas. Eu tinha apenas o dinheiro suficiente para tomar uma assinatura daquela revista e comecei a procurar as conchas que as pessoas pediam em seus anúncios. Escrevi a um comerciante de Miami e ele começou a comprar as minhas conchas. Foi emocionante. Naturalmente que cometi alguns erros, no princípio. Pensei, por exemplo, que as pessoas gostariam das conchas mais bonitas, mas esse não era o caso. Freqüentemente elas preferiam as conchas mais feias. Depois, quando achava conchas raras, punha-me a limpá-las e poli-las a fim de torná-las mais bonitas, mas isso também foi um erro. Os colecionadores querem as conchas exatamente como saem do mar, com o animal em seu interior também. Então consegui algum formol com o médico e o punha entre as conchas vivas, para que elas não tivessem mau cheiro, e depois mandava-as para o tal comerciante de Miami. Só aprendi bem o negócio de um ano para cá e já consegui quinze libras. Consegui esse resultado agora que sei como é que eles querem as conchas e se tivesse sorte, poderia fazer pelo menos cinqüenta libras por ano. Então, em dez anos poderia ir aos Estados Unidos e operar-me. Mas, continuou ela com intenso contentamento, tive uma notável maré de sorte. Fui a Crab Key pelo Natal, onde já tinha estado antes. Mas dessa vez eu encontrei essas conchas purpúreas. Não parecem grande coisa, mas eu enviei uma ou duas para Miami e o comerciante escreveu-me para dizer que compraria tantas dessas conchas quantas eu pudesse encontrar, e ao preço de até cinco dólares pelas perfeitas. Disse-me ainda que eu deveria manter segredo sobre o lugar de onde as tirava, pois de outra forma o “mercado seria estragado”, como disse ele, e os preços cairiam. É como se se tivesse uma mina de ouro particular. Agora serei capaz de juntar o dinheiro em cinco anos. Esse foi o motivo pelo qual tive grandes suspeitas de você, quando o encontrei na praia. Pensei que você tivesse vindo para roubar as minhas conchas.

— Você me deu um susto, pois pensei que você fosse a garota do Dr. No.

— Muito obrigada.

— Mas depois que você tiver feito a operação, o que irá fazer? Você não pode continuar vivendo numa adega durante toda a vida.

— Pensei em me tornar uma prostituta. — Ela o disse como se tivesse dito “enfermeira” ou “secretária”.

— Oh, o que é que você quer dizer com isso? — Talvez ela já tivesse ouvido aquela expressão sem compreendê-la bem.

— Uma dessas jovens que possuem um bonito apartamento e lindas roupas. Você sabe o que quero dizer — acrescentou ela com impaciência. — Os homens telefonam, marcam encontro, chegam, fazem amor e pagam. Elas ganham cem dólares de cada vez, em Nova Iorque, onde pensei começar. Naturalmente — admitiu — terei de fazer por menos, no começo, até que aprenda a trabalhar bem. Quanto é que vocês pagam pelas que não têm experiência?

Bond riu. — Francamente, não me lembro. Há muito tempo que não me encontro com essas mulheres.

Ela suspirou. — Sim, suponho que você possa ter tantas mulheres quantas queira, por nada. Suponho que apenas os homens feios paguem, mas isso é inevitável. Qualquer espécie de trabalho nas grandes cidades deve ser horrível. Pelo menos pode-se ganhar muito mais como prostituta. Depois, poderia voltar para Jamaica e comprar Beau Desert. Seria bastante rica para encontrar um marido bonito e ter alguns filhos. Agora que encontrei essas conchas, penso que poderia estar de volta a Jamaica quando tivesse trinta anos. Não seria formidável?

— Gosto da última parte do plano, mas não tenho muita confiança na primeira. De qualquer forma, como é que você veio a saber dessa história de prostitutas? Encontrou isso na letra P, na enciclopédia?

— Claro que não; não seja tolo. Há uns dois anos houve em Nova Iorque um escândalo sobre elas, envolvendo também um “play-boy” chamado Jelke. Ele tinha toda uma cadeia de prostitutas, e eu li muito sobre o caso no “Gleaner”. O jornal deu inclusive os preços que elas cobravam e tudo o mais. De qualquer forma, há milhares dessas jovens em Kingston, embora não sejam tão boas. Recebem apenas cinco xelins e não têm um lugar apropriado para fazer amor, a não ser no mato. Minha babá chegou a falar-me delas. Disse-me que eu não deveria imitá-las, pois do contrário seria muito infeliz. É claro que seria, recebendo apenas cinco xelins. Mas por cem dólares!...

Bond observou: — Você não conseguiria guardar todo esse dinheiro. Precisaria ter uma espécie de gerente para arranjar os homens, e teria ainda de dar gorjetas à polícia, para deixá-la em paz. Por fim, poderia ir facilmente parar na cadeia se tudo não corresse bem. Na verdade, com tudo o que você sabe sobre animais, bem poderia ter um ótimo emprego, cuidando deles, em algum jardim zoológico norte-americano. E o que me diz do Instituto de Jamaica? Tenho certeza de que você gostaria mais de trabalhar ali. E poderia também facilmente encontrar um bom marido. De qualquer forma, você não deve mais pensar em ser prostituta. Você tem um belo corpo e deve guardá-lo para o homem que amar.

— Isso é o que dizem as pessoas nos livros — disse ela com ar de dúvida. — A dificuldade está em que não há nenhum homem para ser amado em Beau Desert. — Depois acrescentou timidamente: — Você é o único inglês com quem jamais falei. Gostei de você desde o princípio, e não me importo de dizer-lhe essas coisas agora. Penso que há muitas pessoas das quais chegaria a gostar se saísse daqui.

— É claro que há. Centenas. E você é uma garota formidável; o que pensei assim que a vi.

— Assim que viu as minhas nádegas, você quer dizer. — Sua voz estava-se tornando sonolenta, mas cheia de prazer.

Bond riu. — Bem, eram nádegas maravilhosas. E o outro lado também era maravilhoso. — O corpo de Bond começou a se agitar com a lembrança de como a vira pela primeira vez. Depois de um instante, disse com mau humor: — Agora vamos, Honey. Está na hora de dormir. Haverá muito tempo para conversarmos quando voltarmos a Jamaica.

— Haverá? — perguntou ela desconsoladamente. — Você promete?

— Prometo.

Ele a viu agitar-se dentro do saco de dormir. Olhou para baixo e apenas pôde divisar o seu pálido perfil voltado para ele. Ela deixou escapar o profundo suspiro de uma criança, antes de adormecer.

Reinava silêncio na clareira e o tempo estava esfriando. Bond descansou a cabeça sobre os joelhos unidos. Sabia que era inútil procurar dormir, pois sua mente estava cheia dos acontecimentos do dia e dessa extraordinária mulher Tarzan que aparecera em sua vida. Era como se algum animal muito bonito se lhe tivesse dedicado. E não largaria os cordéis enquanto não tivesse resolvido os problemas dela. Estava sentindo isso. Naturalmente que não haveria grandes dificuldades para a maioria de seus problemas. Quanto à operação, seria fácil arranjá-la, e até mesmo encontrar-lhe um emprego, com o auxílio de amigos, e um lar. Tinha dinheiro e haveria de comprar-lhe roupas, mandaria ajeitar os seus cabelos e a lançaria no grande mundo. Seria divertido. Mas quanto ao resto? Quanto ao desejo físico que sentia por ela? Não se podia fazer amor com uma criança. Mas, seria ela uma criança? Não haveria nada de infantil relativamente ao seu corpo ou à sua personalidade. Era perfeitamente adulta e bem inteligente, a seu modo, e muito mais capaz de tomar conta de si mesma do que qualquer outra jovem de vinte anos que Bond conhecera.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um puxão em sua manga. A vozinha disse: — Por que você não vai dormir? Não está sentindo frio?

— Não; estou bem.

— Aqui no saco de dormir está bom e quente. Você quer vir para cá? Tem bastante lugar.

— Não, obrigado, Honey. Estou bem.

Houve uma pausa, e depois ela disse num sussurro: — Se você está pensando... Quero dizer — você não precisa fazer amor comigo... Eu poderia dormir de costas para o seu peito.

— Honey, querida, vá dormir. Seria maravilhoso dormir assim com você, mas não esta noite. De qualquer maneira, em breve terei de render Quarrel.

— Muito bem, — disse ela com voz mal humorada. — Talvez quando voltarmos a Jamaica.

— Talvez.

— Prometa. Não dormirei enquanto você não prometer.

Bond disse desesperadamente: — Naturalmente que prometo. Agora, vá dormir, Honeychile.

A sua voz se fez ouvir outra vez, triunfante: — Agora você tem uma dívida comigo. Você prometeu. Boa-noite, querido James.

— Boa noite, querida Honey.


XII - A COISA


O aperto no braço de Bond era ansioso. Ele de um salto pôs-se de pé.

Quarrel sussurrou tensamente: — Alguma coisa está-se aproximando pela água, capitão! Com certeza é o dragão!

A jovem levantou-se e perguntou nervosamente: — Que aconteceu?

Bond apenas disse: — Fique aí, Honey! Não se mexa. Eu voltarei.

Internou-se pelos arbustos do lado oposto da montanha e correu pela restinga, com Quarrel ao lado.

Chegaram até a extremidade da restinga, a vinte metros da clareira, e pararam sob o abrigo dos últimos arbustos, que Bond apartou com as mãos para ter um melhor campo de visão.

O que seria aquilo? A meia milha de distância, atravessando o lago, vinha algo informe, com dois olhos brilhantes cor de laranja, e pupilas negras. Entre estes, onde deveria estar a boca, tremulava um metro de chama azul. A luminosidade cinzenta das estrelas deixava ver uma espécie de cabeça abaulada entre duas pequenas asas semelhantes às de um morcego. Aquela coisa estranha deixava escapar um ronco surdo e baixo, que abafava um outro ruído, uma espécie de vibração rítmica. Aquela massa avançava na direção deles, à velocidade de uns dezesseis quilômetros por hora, deixando atrás de si uma esteira de espuma.

Quarrel sussurrou:

— Nossa, capitão! Que coisa é aquela?

Bond continuou de pé e respondeu laconicamente: — Não sei exatamente. Uma espécie de trator arranjado para meter medo. Está trabalhando com um motor diesel, e por isso você pode deixar os dragões de lado. Agora, vejamos... — Bond falava como se para si mesmo. — Não adianta fugir. Aquilo se move mais depressa do que nós e sabemos que pode esmagar árvores e atravessar pântanos. Temos que lhe dar combate aqui mesmo. Quais serão os seus pontos fracos? Os motoristas. Com certeza, dispõem de proteção. Em todo caso, não sabemos muito sobre esse ponto. Quarrel, você começará a disparar contra aquela cúpula quando estiverem a uns duzentos metros de nós. Faça a pontaria cuidadosamente e continue atirando. Visarei os faróis quando estiverem a cinqüenta metros. Não se está movendo sobre lagartas. Deve ter alguma espécie de rodas gigantescas, provavelmente de avião. Visarei as rodas também. Fique aí. Ficarei dez metros para baixo. Naturalmente vão reagir e nós temos que manter as balas longe da garota. Está combinado? — Bond esticou o braço e apertou o enorme ombro de Quarrel. — E não se preocupe demais. Esqueça-se de dragões. Trata-se apenas de alguma trapaça do Dr. No. Mataremos os motoristas, tomaremos conta do veículo e ganharemos com ele a costa. Isso economizará as nossas solas. Está bem?

Quarrel deu uma breve risada. — Está bem, capitão. Desde que o senhor assim o diz. Mas que Nosso Senhor saiba também que aquilo não é dragão!

Bond desceu pela restinga e se internou pelos arbustos, até que encontrou um ponto de onde podia ter um bom campo de tiro. Disse suavemente: — Honey!

— Sim, James — e a voz dela deixou transparecer alívio.

— Faça um buraco na areia como fizemos na praia. Faça-o por trás de raízes grossas e fique lá deitada. Talvez haja um tiroteio. Não tenha medo de dragões. Isto é apenas um veículo pintado, dirigido por alguns dos homens do Dr. No. Não se assuste. Estou aqui perto.

— Muito bem, James. Tenha cuidado! — A voz agora deixava transparecer um vivo temor.

Bond curvou-se, apoiando um joelho no chão, sobre as folhas e a areia, e olhou para fora.

Agora o veículo achava-se a uns trezentos metros de distância, e os seus faróis amarelos estavam iluminando a areia. Chamas azuis continuavam saindo da boca daquele engenho. Saíam de uma espécie de longo focinho, no qual se pintaram mandíbulas entreabertas, para darem ao todo a aparência de dragão. Um lança-chamas! Aquilo explicava as árvores queimadas e a história do administrador. A coloração azul da chama seria dada por alguma espécie de queimador, disposto adiante do lança-chamas.

Bond teve que admitir que aquela visão era algo de terrível, à medida que o veículo avançava pelo lago raso. Evidentemente fora calculado para infundir terror. Ele mesmo ter-se-ia assustado, não fora a vibração rítmica do motor diesel. Mas até que ponto aquilo seria vulnerável para homens que não fossem dominados pelo pânico?

A resposta ele a teve quase imediatamente. Ouviu-se o estampido da “Remington” de Quarrel. Uma centelha saiu da cabina encimada pela cúpula e logo se ouviu um ruído metálico. Quarrel disparou mais um tiro e, logo em seguida, uma rajada. As balas chocaram-se inutilmente de encontro à cabina. Não houve mesmo uma simples redução de velocidade. O monstro continuava avançando para o ponto de onde tinham partido os disparos. Bond descansou o cano de seu “Smith & Wesson” no braço, e fez cuidadosa pontaria. O profundo ruído surdo de sua arma fez-se ouvir por sobre o matraquear da “Remington” de Quarrel. Um dos faróis fora atingido e despedaçara-se. Bond disparou mais quatro tiros contra o outro e atingiu-o com o quinto e último disparo de seu revólver. O fantástico aparelho parecia continuar não dando importância, e foi avançando para o lugar de onde tinham partido os disparos do “Smith & Wesson”. Bond tornou a carregar a arma e começou a atirar contra os pneumáticos, sob as asas negro e ouro. A distância agora era de apenas trinta metros e podia jurar que já atingira mais de uma vez a roda mais próxima, sem nenhum resultado. Seria borracha sólida? O primeiro estremecimento de medo percorreu a pele de Bond.

Carregou mais uma vez. Seria aquela coisa maldita vulnerável pela retaguarda? Deveria correr para o lago e tentar uma abordagem? Avançou um passo, através dos arbustos, mas logo ficou imóvel, incapaz de prosseguir.

Subitamente, daquele focinho ameaçador, uma língua de fogo azulada tinha sido lançada na direção do esconderijo de Quarrel. À direita de Bond, no mato, surgira apenas uma chama laranja e vermelha, simultaneamente com um estranho urro, que imediatamente silenciou. Satisfeita, aquela língua de fogo se recolhera à sua boca. Agora aquilo fizera um movimento de rotação sobre o seu eixo e parará completamente. O buraco azulado da boca apontava diretamente para Bond.

Bond deixou-se ficar, esperando pelo horroroso fim. Olhou através das mandíbulas da morte e viu o brilhante f-lamento vermelho do queimador, bem no fundo do comprido tubo. Pensou no corpo de Quarrel — mas não havia tempo para pensar em Quarrel — e imaginou-o completamente carbonizado. Dentro em pouco ele também se incendiaria como uma tocha. Um único berro seria arrancado dele e os seus membros se encolheriam na pose de dançarino dos corpos queimados. Depois viria a vez de Honey. Meu Deus, para o quê ele os havia arrastado! Por que fora tão insano a ponto de enfrentar aquele homem com todo o seu arsenal? Por que não aceitara a advertência que lhe fora feita pelo longo dedo que o alcançara já em Jamaica? Bond trincou os dentes. Vamos, canalhas. Depressa.

Ouviu-se a sonoridade de um alto-falante, que anunciava metàlicamente: “Saia daí, inglês. E a boneca também. Depressa ou será frito no inferno, como o seu amigo”. Para dar mais força àquela ordem, uma língua de fogo foi lançada em sua direção. Bond deu um passo atrás para recuar daquele intenso calor. Sentiu o corpo da garota de encontro às suas costas. Ela disse historicamente: — Tive que vir, tive que vir.

Bond disse: — Está bem, Honey. Fique atrás de mim.

Ele tinha-se decidido. Não havia alternativa. Mesmo que a morte viesse mais tarde, não poderia ser pior do que aquela morte diante do lança-chamas. Bond apanhou a mão da jovem e puxou-a consigo para fora, saindo para a areia.

A voz se fez ouvir novamente: — Pare aí, camarada. E deixe cair o lança-ervilhas. Nada de truques, senão os caranguejos terão um bom almoço.

Bond deixou cair a sua arma. Lá se fora o “Smith & Wesson”. O “Beretta” não teria tido melhor sorte: A jovem lastimou-se, e Bond apertou a sua mão. — Agüente, Honey, — disse ele. — Nós nos livraremos disso.

Bond troçou de si mesmo por causa daquela mentira. Ouviu-se o ruído de uma porta de ferro que se abria. Por trás da cúpula, um homem saltou para a água e caminhou até eles, com um revólver na mão. Ao mesmo tempo ia-se mantendo fora da linha de fogo do lança-chamas. A trêmula chama azul iluminou o seu rosto. Era um chinês negro, de enorme estatura, vestindo apenas calças. Alguma coisa balançava em sua mão esquerda, e quando ele se aproximou mais, Bond pôde ver que eram algemas.

O homem deteve-se a alguns metros de distância e disse:

— Levantem os braços. Punhos juntos e caminhem em minha direção. Você primeiro, inglês. Devagar ou receberá mais um umbigo.

Bond obedeceu e quando estava a um passo do homem, este prendeu o revólver entre os dentes, e esticou os braços e atou os seus pulsos com as algemas. Bond examinou aquele rosto iluminado pelas chamas azuis. Era uma cara brutal, com olhos estrábicos. O agente do Dr. No fitou-o com desprezo. — Bastardo imbecil! — disse.

Bond deu as costas ao homem e começou a se afastar. Ia ver o corpo de Quarrel. Tinha que lhe dizer adeus. Ouviu-se o ruído de um disparo e uma bala jogou-lhe areia nos pés. Bond parou, e voltando-se lentamente disse:

— Não fique nervoso. Vou dar uma espiada no homem que você acabou de assassinar. Voltarei.

O homem abaixou o revólver e riu grosseiramente: — Muito bem. Divirta-se. Desculpe se não temos uma coroa. Volte logo, se não daremos uma amostra à boneca. Dois minutos.

Bond caminhou em direção ao cerrado de arbustos fumegantes. Ali chegando, olhou para baixo. Seus olhos e boca se contraíram. Sim, tinha sido bem como ele imaginara. Pior, mesmo. Disse docemente: — Perdoe-me, Quarrel. — Com o pé soltou um pouco de areia, que colheu com as mãos algemadas e verteu-a sobre os restos dos olhos de Quarrel. Depois caminhou lentamente, de volta, e ficou ao lado da jovem.

O homem empurrou-os para a frente com o revólver. Deram a volta por trás da máquina, onde havia uma pequena porta quadrada. Uma voz do interior disse: — Entrem e sentem-se no chão. Não toquem em nada ou ficarão com os dedos partidos.

Com dificuldade, arrastaram-se para dentro daquela caixa de ferro, que cheirava a óleo e suor. Havia lugar apenas para que ambos se sentassem com as pernas encolhidas, de joelhos para cima. O homem que empunhava o revólver e que vinha atrás deles saltou por último para dentro do carro e fechou a porta. Ligou uma lâmpada e sentou-se num assento de ferro, ao lado do chofer. — Muito bem, Sam, vamos andando. Você pode apagar o fogo. Há luz bastante para dirigir — disse.

Na painel de controle podia-se ver uma fileira de mostradores. O motorista esticou a mão e deslocou para baixo um par de interruptores. Engrenou o motor e olhou através de uma estreita fresta, cortada na parede de ferro, diante dele. Bond sentiu que o veículo dava uma volta. Ouviu-se um movimento mais rápido do motor, e o veículo avançou.

O ombro da jovem apertou-se de encontro ao de Bond.

— Para onde estão eles nos levando? — O seu sussurro traía um estremecimento.

Bond voltou a cabeça e olhou para ela. Era a primeira vez que podia ver os seus cabelos depois de secos. Estavam desfeitos pelo sono, mas não eram mais mechas de rabichos empastados. Caíam densamente até os ombros, onde terminavam em anéis voltados para dentro. Eram do mais pálido louro acinzentado e despediam reflexos quase prateados sob a luz elétrica. Ela olhou para o alto, para ele. A pele, à volta dos olhos e nos cantos da boca, mostrava-se lívida de medo.

Bond deu de ombros, procurando aparentar uma indiferença que não sentia!. Sussurrou: — Oh, espero que vamos ver o Dr. No. Não se preocupe demais, Honey. Esses homens não passam de pequenos bandidos. Com ele, as coisas serão diferentes. Quando estivermos diante dele, não diga nada, falarei por nos dois. — Ele apertou o seu ombro e disse: — Gosto da maneira por que você penteia o seu cabelo, e fico contente porque você não o apara muito curto.

Um pouco da tenção desapareceu do rosto dela. — Como é que você pode pensar em coisas como essa? — Deu um leve sorriso para ele, e acrescentou: — Mas estou contente por você gostar de meu penteado. Lavo os meus cabelos com óleo de coco uma vez por semana.

À lembrança de sua outra vida, seus olhos ficaram brilhantes. Ela baixou a cabeça para as mãos algemadas, a fim de esconder as lágrimas. Sussurrou quase para si mesma: — Tentarei ser brava. Tudo estará bem, desde que você esteja lá.

Bond aconchegou-se a ela. Levantou suas mãos algemadas até a altura dos olhos e examinou as algemas. Eram do tipo usado pela polícia norte-americana. Contraiu sua mão esquerda, a mais fina das duas, e tentou fazê-la deslizar pelo anel de aço. Mesmo o suor de sua pele de nada adiantou. Era inútil.

Os dois homens sentavam-se em seus bancos de ferro, indiferentes, e com as costas voltadas para eles. Sabiam que dominavam inteiramente a situação. Não havia possibilidade de que Bond oferecesse qualquer incômodo. Não poderia levantar-se ou dar o necessário impulso aos seus punhos para causar qualquer mal às cabeças de seus adversários, utilizando as algemas. Se conseguisse abrir a porta e pular para a água, o que lograria com isso? Imediatamente eles sentiriam a brisa fresca, nas costas, e parariam a máquina para queimá-lo na água ou içá-lo novamente. Bond aborrecia-se em pensar que os homens pouco se preocupavam com ele, pois sabiam tê-lo completamente em seu poder. Também não gostou da idéia de que aqueles homens eram bastante inteligentes para saber que ele não representava nenhuma ameaça. Indivíduos mais estúpidos teriam ficado em cima deles, de revólver em punho, tê-los-iam surrado, a ele e à jovem, barbaramente, e talvez os tivessem deixado inconscientes. Aqueles dois conheciam o ofício. Eram profissionais, ou tinham sido treinados para o serem.

Os dois homens não falaram. Não houve nenhum comentário sobre o quão hábil eles tinham sido, ou quanto ao seu cansaço ou destino. Apenas dirigiam a máquina serenamente, ultimando com eficiência a sua tarefa.

Bond continuava sem a mínima idéia do que seria aquilo. Sob a tinta negra e dourada, assim como sob o resto daquela fantasia, a máquina parecia uma espécie de trator, como ele nunca vira. Não tinha conseguido descobrir nomes de marcas comerciais, nos pneumáticos, pois estivera muito escuro, mas certamente que deveriam ser de borracha sólida ou porosa. Atrás havia um pequena roda para dar estabilidade ao conjunto. Uma espécie de barbatana de ferro fora ainda acrescentada e pintada também de preto e ouro, a fim de ajudar a dar a aparência de dragão. Os altos pára-lamas tinham sofrido um prolongamento, na forma de curtas asas voltadas para trás. Uma comprida cabeça de dragão, feita em metal, fora fixada ao radiador e os faróis receberam pontos centrais negros, para parecerem olhos. Era tudo, sem falar da cabina que fora recoberta com uma cúpula blindada e dotada de um lança-chamas. Era, como pensara Bond, um trator preparado para assustar e queimar — embora não pudesse atinar porque estava dotado de um lança-chamas e não de uma metralhadora. Era, evidentemente, a única espécie de veículo que poderia percorrer a ilha. Suas gigantescas rodas podiam avançar sobre os mangues, pântanos e ainda atravessar o lago raso. Galgaria também os agrestes planaltos de coral e, desde que andasse à noite, o calor experimentado na cabina seria pelo menos tolerável.

Bond ficara impressionado. Impressionado pelo toque de profissionalismo. O Dr. No era sem dúvida um homem que se preocupava intensamente com as coisas. Em pouco iria encontrá-lo. E em breve estaria diante do segredo do Dr. No. Então, o que aconteceria? Bond sorriu amargamente. Sim, não o deixariam sair dali com o seu conhecimento. Certamente seria morto, a menos que pudesse fugir ou conseguir a sua liberdade por meios persuasivos. E o que aconteceria à jovem? Poderia ele provar sua inocência e conseguir com que ela fosse poupada? Possivelmente, mas nunca mais ela teria permissão para deixar a ilha. Ali teria de ficar para o resto da vida, como amante ou mulher de um dos homens, ou do próprio Dr. No, se ela o impressionasse.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um trecho do percurso mais difícil, como se podia sentir pela trepidação. Tinham atravessado o lago e estavam no caminho que levava para o alto da montanha, junto às cabanas. A cabina vibrava e a máquina começou a galgar o terreno. Dentro de cinco minutos estariam lá.

O ajudante do motorista olhou por sobre o ombro para Bond e a jovem. Bond sorriu confiantemente para ele dizendo: Você receberá uma medalha por isso.

Os olhos amarelos e marrons olharam impassivelmente dentro dos dele, enquanto os lábios arroxeados e oleosos se fenderam num sorriso no qual havia um ódio repousado: Feche a boca, se... Depois, deu-lhe as costas.

A jovem tocou-o com o cotovelo e sussurrou: — Por que eles são tão rudes? Por que nos odeiam tanto?

Bond esboçou um sorriso e disse: — Acho que é porque lhes causamos medo. Talvez ainda estejam com medo, e isto porque não parecemos ter medo deles. Devemos mantê-los assim.

A jovem aconchegou-se a ele e disse: — Tentarei.

Agora a subida estava-se tornando mais íngreme. Uma luz azul-acinzentada atravessava as frestas da armadura. A madrugada se aproximava. Fora, em breve estaria começando mais um dia de calor abrasador, de execrável vento, carregado com o cheiro de gás dos pântanos. Bond pensou em Quarrel, o bravo gigante que não mais veria aquele dia, e com o qual eles deveriam agora estar caminhando através dos pauis de mangues. Quarrel tinha pressentido a morte, mas apesar disso tinha acompanhado Bond sem qualquer objeção. Sua fé em Bond tinha sido maior do que o seu medo. E Bond tinha-lhe faltado. Seria ele ainda o causador da morte da jovem?

O motorista esticou o braço em direção ao painel e na parte dianteira do veículo fez-se ouvir o breve zunido de uma sirena de polícia, que foi desaparecendo num gemido fúnebre. Mais um minuto e o veículo parava, continuando o motor em regime neutro. O homem apertou um interruptor e tirou um microfone de um gancho, a seu lado. Falou por aquele microfone e Bond pôde ouvir a sua voz aumentada, do lado de fora, por um altofalante. — Tudo bem. Apanhamos o inglês e a garota. O outro homem morreu. Isso é tudo. Abram. — Bond ouviu que uma porta se deslocava para o lado, sobre rolamentos. O motorista embreou e eles avançaram lentamente para a frente, parando alguns metros adiante. O motorista desligou o motor. Ouviu-se o ruído metálico da tranca e a porta foi aberta pelo lado de fora. Uma lufada de ar fresco e uma luz mais brilhante penetraram na cabina. Várias mãos agarraram Bond e arrastaram-no para trás, até um chão de cimento. Bond agora estava de pé e sentia o cano de um revólver encostado ao seu flanco. Uma voz disse: — Fique onde está. Nada de espertezas. — Bond olhou para o homem. Era mais um chinês negro, do mesmo tipo que os outros. Os olhos amarelos examinaram-no com curiosidade. Bond virou-se com indiferença. Outro homem estava cutucando a jovem com a arma. Bond disse asperamente: — Deixe a garota em paz! Em seguida, caminhou e pôs-se ao lado da jovem. Os dois homens pareceram surpresos. Deixaram-se ficar de pé, apontando as armas com hesitação.

Bond olhou à volta. Estavam numa das cabanas pré-fabricadas que ele vira do rio. Era ao mesmo tempo uma garagem e uma oficina. O “dragão” tinha sido colocado sobre um fosso de vistoria, no chão de concreto. Um motor de popa desmontado estava sobre uma das bancadas. Longos tubos de luz fluorescente estavam afixados ao teto e o ambiente estava impregnado do cheiro de óleo e fumaça de exaustor. O motorista e o seu companheiro examinavam a máquina. Em seguida deram alguns passos pelo galpão, como se andassem sem propósito.

Um dos guardas anunciou: — Enviei a mensagem. A ordem é que eles sejam levados. Foi tudo bem?

O ajudante de motorista, que parecia o homem mais responsável, ali presente, disse: — Sem dúvida. Alguns disparos. Os faróis foram partidos. Talvez haja alguns furos nos pneumáticos. Ponha os rapazes em ação — uma vistoria completa. Conduzirei esses dois e tirarei um cochilo. — E, voltando-se para Bond: — Bem, vamos andando — e indicou o caminho que saía do longo galpão.

Bond disse: — Vá andando você; e cuidado com os modos. Diga àqueles macacos que tirem as armas de cima de nós. Podem disparar por engano. Parecem bastante idiotas.

O homem se aproximou, e os outros os acompanharam logo atrás. O ódio brilhava em seus olhos. O chefe levantou o punho cerrado, tão grande quanto um pequeno malho e chegou-o à altura do nariz de Bond. Procurava controlar-se com esforço, e disse: — Ouça, senhor. Às vezes, nós, os rapazes, temos permissão para participar da festa final. Estou rezando para que essa seja uma dessas vezes. Certa ocasião fizemos com que a coisa durasse toda uma semana. E se eu o pego...

Riu e os seus olhos brilharam com crueldade. Olhou para o lado de Bond, fixando a garota. Seus olhos pareciam transformados em bocas que agitavam os lábios. Enfiou as mãos nos bolsos laterais das calças. A ponta de sua língua mostrava-se muito vermelha, entre os lábios arroxeados. Voltando-se para os companheiros disse: — Que tal, rapazes?

Os três homens estavam olhando também para a jovem. Fizeram um sinal de assentimento, como crianças diante de uma árvore de Natal.

Bond desejou atirar-se como um louco sobre eles, golpeando as suas caras com os punhos algemados e aceitando a sua vingança sangrenta. Não fosse pela jovem, bem que o teria feito. Mas tudo o que tinha conseguido com suas corajosas palavras fora amedrontá-la. Disse apenas: — Muito bem, muito bem. Vocês são quatro e nós somos dois, ainda por cima com as mãos atadas. Vamos, não queremos atingi-los. Apenas não nos empurrem muito de um lado para outro. O Dr. No poderia não ficar satisfeito.

Àquele nome, os rostos dos homens se modificaram. Três pares de olhos passaram apàticamente de Bond para o chefe. Por um segundo, este olhou com desconfiança para Bond, intrigado, tentando descobrir se Bond teria alguma influência junto ao Dr. No. Sua boca abriu-se para dizer algo, mas logo pareceu pensar melhor, e apenas disse de maneira incerta: — Bem, bem, estávamos simplesmente brincando. — Voltou-se para os homens, em busca de confirmação: — Não é?

— Sem dúvida, sem dúvida! — foi a resposta dada por um coro áspero, e os homens desviaram o olhar.

O chefe disse com mau humor: — Por aqui, senhor. — E ele mesmo pôs-se a caminho, percorrendo o comprido galpão.

Bond segurou o pulso da jovem e seguiu o chefe. Estava impressionado com a reação causada naqueles homens pelo nome do Dr. No. Aquilo era alguma coisa a lembrar se eles tivessem que se haver novamente com aquela turma.

O homem chegou a uma porta de madeira situada na extremidade do galpão. Ao lado havia um botão de campainha que ele pressionou duas vezes e esperou. Ouviu-se um estalido e a porta se abriu, mostrando dez metros de uma passagem rochosa, mas atapetada e que ia dar, na outra extremidade, em outra porta mais elegante e pintada de creme.

O homem ficou de lado. Siga em frente, senhor — disse; — bata na porta e será atendido pela recepcionista. — Não havia nenhuma ironia em sua voz e seus olhos se mostravam impassíveis.

Bond conduziu Honey pela passagem. Ouviu que a porta se fechava às suas costas. Deteve-se por um momento e fitou-a, perguntando-lhe: — E agora?

Ela riu, trêmula, mas respondeu: — Ê bom sentir-se tapete sob os pés.

Bond apertou o seu pulso. Andou até a porta pintada de creme e bateu.

A porta abriu-se e Bond entrou com a jovem ao lado. Quando se deteve instantaneamente, não chegou a perceber o encontrão que lhe dava a jovem, pois continuou estarrecido.


XIII - GAIOLA DE OURO


Era a espécie de sala de recepção que as maiores corporações norte-americanas possuem no andar em que se situa o escritório do presidente, em seus arranha-céus de Nova Iorque. Suas proporções eram agradáveis, com cerca de vinte pés quadrados. O chão era todo recoberto pelo mais espesso tapete Wilton cor-de-vinho. O teto e as paredes estavam pintados numa suave tonalidade cinza pombo. Viam-se ainda reproduções litográficas de esboços de balé de Degas penduradas em séries, nas paredes, e a iluminação era feita com altos e modernos jogos de abajures de seda verde-escuro, imitando a forma de elegantes barricas.

À direita de Bond estavam uma larga mesa de mogno, com o tampo recoberto com couro verde, outras peças que se harmonizavam perfeitamente com a mesa, e um caro sistema de intercomunicações. Duas cadeiras altas, de antiquado, aguardavam os visitantes. Do outro lado da sala via-se uma mesa do tipo refeitório, sobre a qual estavam várias revistas com capas em cores vivas e mais duas cadeiras. Tanto na mesa de escritório, como na outra, viam-se vasos de hibiscos. O ar era fresco e impregnado de leve fragrância.

Duas mulheres estavam naquela sala. Por trás da mesa de trabalho, empunhando uma caneta que descansava sobre um formulário impresso, estava sentada uma jovem chinesa, de aspecto eficiente, com óculos de armação de chifre, sob uma franja de cabelos negros cortados curtos. Em seus olhos e em sua boca havia o sorriso padrão de boas-vindas que qualquer recepcionista exibe — a um tempo claro, obsequioso e inquisitivo.

Ainda com a mão na maçaneta da porta pela qual eles tinham passado, e esperando que os recém-chegados se adiantassem mais, a fim de que ela a pudesse fechar, estava uma mulher mais velha, com aspecto de matrona, e que deveria ter cerca de quarenta e cinco anos. Era fácil ver-se que também tinha sangue chinês. Sua aparência, saudável, de farto busto, era viva e quase excessivamente graciosa. O seu “pince-nez” de lentes cortadas em quadrado brilhava com o desejo da recepcionista de os pôr à vontade.

Ambas as mulheres vestiam roupas imaculadamente alvas, com meias brancas e sapatos de camurça branca como costumam apresentar-se as auxiliares empregadas nos mais luxuosos salões de beleza norte-americanos. Havia um que de suave e pálido em suas peles, como se elas raramente saíssem para o ar-livre.

Bond observou o ambiente, enquanto a mulher junto à porta lhe dizia frases convencionais de boas-vindas, como se eles tivessem sido colhidos por uma tempestade o chegado com atraso a uma festa.

— Oh, coitados! Nós não sabíamos quando vocês iriam chegar. A todo momento nos diziam que vocês já estavam a caminho... primeiro à hora do chá, ontem, depois na hora do jantar, e apenas há uma hora fomos informadas de que vocês chegariam à hora do desjejum. Devem estar com fome. Venham aqui e ajudem a irmã Rosa a preencher o formulário; depois eu os prepararei para a cama. Devem estar muito cansados.

Ia dizendo aquilo com voz doce e cacarejante, ao mesmo tempo que fechava a porta e os levava para junto da mesa e os fazia sentar nas cadeiras. Depois disse: — Bem, eu sou a irmã Lírio, e esta é a irmã Rosa. Ela irá fazer-lhes apenas algumas perguntas. Agora, aceitam um cigarro? — e pegou uma caixa de couro trabalhado que estava em cima da mesa. Abriu-a e pô-la diante deles. A caixa tinha três divisões, e a chinesinha explicou apontando com um dedo: “Esses são americanos, esses são ingleses e esses turcos.” Ela apanhou um luxuoso isqueiro de mesa e esperou.

Bond estendeu as mãos algemadas para tirar um cigarro turco.

A irmã Lírio deu um gritinho de espanto: — Oh, mas francamente. — Parecia sinceramente embaraçada. — Irmã Rosa, dê-me a chave, depressa. Já disse por várias vezes que os pacientes não devem ser trazidos dessa maneira. — Havia impaciência e aborrecimento em sua voz. — Francamente, aquela gente lá de fora! Já era tempo que eles fossem chamados à ordem.

A irmã Rosa estava tão embaraçada quanto a irmã Lírio. Rapidamente remexeu dentro de uma gaveta e entregou uma chave à irmã Lírio, que com muitas desculpas e cheia de dedos abriu os dois pares de algemas e, afastando-se para trás da mesa, deixou aquelas duas pulseiras de aço caírem dentro da cesta de papéis como se fossem ataduras sujas.

— Obrigado, — disse Bond, que não sabia como enfrentar aquela situação, a não ser procurando desempenhar um papel qualquer na comédia que se estava representando. Ele estendeu o braço, apanhou um cigarro e acendeu-o. Lançou um olhar para Honeyehile Rider, que parecia estonteada e nervosamente apertava com as mãos os braços de sua cadeira. Bond dirigiu-lhe um sorriso de conforto.

— Agora, por favor; — disse a irmã Rosa e inclinou-se sobre um comprido formulário impresso em papel caro. — Prometo ser o mais rápida que puder. O seu nome, sr... sr...

— Bryce, John Bryce.

Ela escreveu a resposta com grande concentração. — Endereço permanente?

— Aos cuidados do Jardim Zoológico Real, Regents Park, Londres, Inglaterra.

— Profissão?

— Ornitologista.

— Oh, meu Deus!, poderia o senhor soletrar isso? Bond atendeu-a.

— Muito obrigada. Agora, vejamos, objeto da viagem?

— Aves — respondeu Bond. — Sou também representante da Sociedade Audubon de Nova Iorque. Eles arrendaram parte desta ilha.

— Oh, sem dúvida. — Bond observou que a pena escrevia exatamente o que ele dizia. Depois da última palavra ela pôs um claro ponto de interrogação entre parênteses.

— E — a irmã Rosa sorriu polidamente em direção a Honeyehile — a sua esposa? Ela também está interessada em pássaros?

— Sim, sem dúvida.

— O seu primeiro nome?

— Honeyehile.

A irmã Rosa estava encantada. — Que nome lindo! — Ela voltou a escrever apressadamente. — E agora os parentes mais próximos de ambos, e estará tudo acabado.

Bond deu o verdadeiro nome de M como o parente mais próximo de ambos. Apresentou-o como “tio” e indicou o seu endereço como sendo “Diretor-Gerente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres.”

A irmã Rosa acabou de escrever e disse: — Pronto, está tudo feito. Muito obrigada, sr. Bryce, e espero que ambos apreciem a permanência aqui.

— Muito obrigado. Estou certo de que apreciaremos. — Bond levantou-se e Honeyehile fez o mesmo, ainda com expressão vazia.

A irmã Lírio disse: — Agora, venham comigo, queridos.

— Ela caminhou até uma porta na parede distante e deteve-se com a mão na maçaneta talhada em vidro. — Oh, meu Deus, — disse —, não é que agora me esqueci do número de seus quartos? É o apartamento creme, não é, irmã?

— Isso mesmo. Catorze e quinze.

— Obrigada, querida. E agora — ela abriu a porta — se vocês quiserem me seguir... Receio que seja uma caminhada um pouco longa. — Fechou a porta, por trás deles, e pôs-se à frente, indicando o caminho. — O Doutor tem falado várias vezes em instalar uma dessas escadas rolantes, ou algo de parecido, mas sabem como são os homens ocupados: — Ela riu alegremente. — Ele tem tantas outras coisas em que pensar!

— Sim, acredito, — disse Bond polidamente.

Bond tomou a mão da jovem e seguiram ambos a maternal e agitada chinesa através de cem metros de um alto corredor, do mesmo estilo da sala de recepção, mas que era iluminado a freqüentes intervalos por caros tubos luminosos fixados às paredes.

Bond respondia com polidos monossílabos aos comentários ocasionais que a irmã Lírio lhe lançava por sobre os ombros. Toda a sua mente se concentrava nas extraordinárias circunstâncias de sua recepção. Tinha certeza de que aquelas duas mulheres tinham sido sinceras. Nenhum só olhar ou palavra conseguira registrar que estivesse fora de propósito. Evidentemente aquilo era alguma espécie de fachada, mas de qualquer forma uma fachada sólida, meticulosamente apoiada pelo cenário e pelo elenco. A ausência de ressonância, na sala, e agora no corredor, estava a indicar que eles tinham deixado o galpão pré-fabricado para se internarem no flanco da montanha e agora estavam atravessando a sua base. Segundo o seu palpite estavam mesmo andando em direção oeste — em direção à penedia na qual terminava a ilha. Não havia umidade nas paredes e o ar parecia fresco e puro, com uma brisa a afagá-los. Muito dinheiro e uma bela realização de engenharia tinham sido os responsáveis por aquilo. A palidez das duas mulheres estava a sugerir que passavam a maior parte do tempo internadas no âmago da montanha. Do que a irmã dissera, parecia que elas faziam parte de um grupo de funcionários internos que nada tinham a ver com o destacamento de choque do exterior, e que talvez não soubessem a espécie de homens que eles eram.

Aquilo era grotesco, concluiu Bond ao se aproximar de uma porta, na extremidade do corredor, perigosamente grotesco, mas em nada adiantava pensar nisso no momento. Ele apenas podia seguir o papel que lhe tinha sido destinado. Pelo menos, aquilo era melhor do que os bastidores, na arena exterior da ilha.

Junto à porta, a irmã Lírio fez soar uma campainha. Já eram esperados e a porta abriu-se imediatamente. Uma encantadora jovem chinesa, de quimono lilás e branco, ficou a sorrir e a curvar-se, como se deve esperar que o façam as jovens chinesas. E, mais uma vez só havia calor e um sentimento de boas-vindas naquele rosto pálido como uma for. A irmã Lírio exclamou: — Aqui estão eles, finalmente, May! São o senhor e a senhora John Bryce. E sei que ambos devem estar exaustos, por isso devemos levá-los imediatamente aos seus aposentos, para que possam repousar e dormir. — Voltando-se para Bond: — Esta é May, muito boazinha. Ela tratará de ambos. Qualquer coisa que queiram é só tocar a campainha que May atenderá. É uma espécie de favorita de todos os nossos hóspedes.

Hóspedes!, pensou Bond. Essa é a segunda vez que ela usa a palavra. Sorriu polidamente para a jovem, e disse;

— Muito prazer; sim, certamente que gostaríamos de ir para os nossos aposentos.

May envolveu-os num cálido sorriso, e disse em voz baixa e atraente: — Espero que ambos se sintam bem, sr. Bryce. Tomei a liberdade de mandar vir uma refeição assim que soube que os senhores iam chegar. Vamos...? — Corredores saiam para a esquerda e a direita de portas duplas de elevadores, instalados na parede oposta. A jovem adiantou-se, caminhando na frente, para a direita, logo seguida de Bond e Honeyehile, que tinham atrás a irmã Lírio.

Ao longo do corredor, dos dois lados, viam-se portas numeradas. A decoração era feita no mais pálido cor-de-rosa, com um tapete cinza-pombo. Os números nas portas eram superiores a dez. O corredor terminava abruptamente, com duas portas, uma em frente a outra, com a numeração catorze e quinze. A irmã May abriu a porta catorze e o casal a seguiu, entrando na peça.

Era um lindo quarto de casal, em moderno estilo Mia-mi, com paredes verde-escuro, chão encerado de mogno escuro, com um ou outro espesso tapete branco e bem desenhado mobiliário de bambu com um tecido “chintz” de grandes rosas vermelhas sobre fundo branco. Havia uma porta de comunicação para um quarto de vestir masculino e outra que dava para um banheiro moderno e extremamente luxuoso, com uma banheira de descida e um bidê.

Era como se tivessem sido introduzidos num apartamento do mais moderno hotel da Flórida, com exceção de dois detalhes que não passaram despercebidos a Bond. Não havia janelas e nenhuma maçaneta interior nas portas.

May olhou com expressão de expectativa, de um para o outro.

Bond voltou-se para Honeyehile e sorriu-lhe: — Parece muito confortável, não acha, querida?

A jovem brincava com a barra da saia e fez um sinal de assentimento sem olhar para Bond.

Ouviu-se uma tímida batida na porta e outra jovem, tão linda quanto May, entrou carregando uma bandeja que se equilibrava sobre as palmas das mãos. A jovem descansou a bandeja sobre a mesa do centro e puxou duas cadeiras. Retirou a toalha de linho imaculadamente limpa e saiu. Sentiu-se um delicioso cheiro de fiambre e café.

May e a irmã Lírio também se encaminharam para a porta. A mulher mais idosa se deteve por um instante e disse:

— E agora nós os deixaremos em paz. Se desejarem alguma coisa, basta tocar a campainha. Os interruptores estão ao lado da cama. Ah, outra coisa, poderão encontrar roupa limpa nos aparadores. Receio que sejam apenas de estilo chinês,

— acrescentou, como a desculpar-se —, mas espero que os tamanhos satisfaçam. A rouparia só recebeu as medidas ontem à noite. O Dr. deu ordens severas para que os senhores não fossem perturbados. Ficará encantado se puderem reunir-se a ele, esta noite, para o jantar. Deseja, entretanto, que tenham todo o resto do dia à vontade, a fim de que melhor se ambientem, compreendem? — Fez uma pausa e olhou para um e para outro, com um sorriso indagador. — Posso dizer que os senhores...?

— Sim, por favor, — disse Bond. — Pode dizer ao D., que teremos muito prazer em jantar com ele.

— Oh, sei que ficará contente. — Com uma derradeira mesura, as duas chinesas se retiraram e fecharam a porta.

Bond voltou-se para Honeyehile, que parecia embaraçada e ainda evitava os seus olhos. Ocorreu então a Bond que talvez jamais tivesse ela tido um tratamento tão cortês ou visto tanto luxo em sua vida. Para ela, tudo aquilo devia ser muito mais estranho e aterrador do que o que tinham passado ao lado de fora. Ela continuou na mesma posição, brincando com a barra da saia. Podiam-se notar vestígios de suor seco, sal e poeira em seu rosto. Suas pernas nuas estavam sujas e Bond observou que os dedos de seus pés se moviam, suavemente, ao pisarem nervosamente o maravilhoso e espesso tapete.

Bond riu. Riu com gosto ao pensamento de que os temores da jovem tivessem sido abafados pelas preocupações de etiqueta e comportamento, e riu-se também da figura que ambos faziam — ela em farrapos e ele com a suja camisa azul, as calças pretas e os sapatos de lona enlameados.

Aproximou-se dela e segurou-lhe mãos. Estavam frias. Disse: — Honey, somos um par de espantalhos, mas há apenas um problema básico. Devemos tomar o nosso desjejum primeiro, enquanto está quente, ou tiraremos antes esses farrapos e tomaremos um banho, tomando a nossa refeição fria? Não se preocupe com mais nada. Estamos aqui nessa maravilhosa casinha e isto é tudo o que importa. O que faremos, então?

Ela sorriu hesitante. Seus olhos azuis fixavam-se no rosto dele, na ânsia de obter segurança. Depois disse: — Você não está preocupado com o que nos possa acontecer? — Fez um sinal para o quarto e acrescentou: — Não acha que tudo isso pode ser uma armadilha?

— Se se trata de uma armadilha, já caímos nela. Agora nada mais podemos fazer senão comer a isca. A única questão que subsiste é a de saber se a comeremos quente ou fria. — Apertou-lhe as mãos e continuou: — Seriamente, Honey. Deixe as preocupações comigo. Pense apenas onde estávamos apenas há uma hora. Isso aqui não é melhor? Agora, decidamos a única coisa realmente importante. Banho ou desjejum?

Ela respondeu com relutância: — Bem, se você acha... Quero dizer — preferiria antes lavar-me. — Mas logo acrescentou: — Você terá que ajudar-me. — E sacudiu a cabeça em direção ao banheiro, dizendo: Não sei como mexer numa coisa dessas. Como é que se faz?

Bond respondeu com toda seriedade: — É muito fácil. Vou preparar tudo para você. Enquanto você estivar tomando o seu banho tomarei o meu desjejum. Ao mesmo tempo tratarei de fazer com que o seu não esfrie.

Bond aproximou-se de um dos armários embutidos e abriu a porta. No interior havia uma meia dúzia de quimonos, alguns de seda e outros de linho. Apanhou um de linho, ao acaso. Depois, voltando-se para ela, disse: — Tire suas roupas e meta-se nisso aqui, enquanto preparo o seu banho. Mais tarde você escolherá as coisas que preferir, para a cama e para o jantar.

Ela respondeu com gratidão: — Oh, sim, James. Se você apenas me mostrasse... — E logo começou a desabotoar a saia.

Bond pensou em tomá-la nos braços e beijá-la, mas, ao invés disso, disse abruptamente: — ótimo, Honey — e, adiantando-se para o banheiro, abriu as torneiras.

Havia de tudo naquele banheiro: essência para banhos Floris Lime, para homens, e pastilhas de Guarlain para o banho de senhoras. Esfarelou uma pastilha na água e imediatamente o banheiro perfumou-se como uma loja de orquídeas. O sabonete era o Sapoceti de Guarlain “Fleurs des Alpes”. Num pequeno armário de remédios, atrás de um espelho, em cima da pia, podiam-se encontrar tubos de pasta, escovas de dente e palitos “Steradent”, água “Rose” para lavagem bucal, aspirina e leite de magnésia. Havia também um aparelho de barbear elétrico, loção “Lentheric” para barba, e duas escovas de náilon para cabelos e pentes. Tudo era novo e ainda não tinha sido tocado.

Bond olhou para o seu rosto sujo e sem barbear, no espelho, e riu sardonicamente para os próprios olhos, cinzentos, de pária queimado pelo sol. O revestimento da pílula certamente que era do melhor açúcar. Seria inteligente esperar que o remédio, no interior daquela pílula, fosse dos mais amargos.

Tocou a água, com a mão, a fim de sentir a temperatura. Talvez estivesse muito quente para quem jamais tinha tomado antes um banho quente. Deixou então que corresse um pouco mais de água fria. Ao inclinar-se, sentiu que dois braços lhe eram passados em torno do pescoço. Endireitou-se. Aquele corpo dourado resplandecia no banheiro todo revestido de ladrilhos brancos. Ela beijou-o impetuosamente nos lábios. Ele passou-lhe os braços à volta da cintura e esmagou-a de encontro a seu corpo, com o coração aos pulos. Ela disse sem fôlego, ao seu ouvido: — Achei estranhas as roupas chinesas, mas de qualquer maneira você disse à mulher que nós éramos casados.

Uma das mãos de Bond estava pousada sobre o seu seio esquerdo, cujo mamilo estava completamente endurecido pela paixão. O ventre da jovem se comprimia contra o seu. Por que não? Por que não? Não seja tolo! Este é um momento louco para isso. Vocês dois estão diante de um perigo mortal. Você deve continuar frio como gelo, para ter alguma possibilidade de se livrar dessa enrascada. Mais tarde! Mais tarde! Não seja fraco.

Bond retirou a mão do seio dela e espalmou-a à volta de seu pescoço. Esfregou o rosto de encontro ao dela e depois aproximou a boca da boca da jovem e deu-lhe um prolongado beijo.

Afastou-se depois e manteve-a à distância de um braço. Por um momento ambos se olharam, com os olhos brilhando de desejo. Ela respirava ofegantemente, com os lábios entreabertos, de modo que ele podia ver-lhe o brilho dos dentes. Ele disse com a voz trêmula: — Honey, entre no banho antes que eu lhe dê uma surra.

Ela sorriu e sem nada dizer entrou na banheira e deitou-se em todo seu comprimento. Do fundo da banheira ergueu os olhos para ele. Os cabelos louros, em seu corpo, brilhavam como moedas de ouro. Ela disse provocadoramente: — Você tem que me esfregar. Não sei como devo fazer, e você terá que mostrar-me.

Bond respondeu desesperadamente: — Cale a boca, Honey, e deixe de namoros. Apanhe a esponja, o sabonete e comece logo a se esfregar. Que diabo! Isso não é o momento de se fazer amor. Vou tomar o meu desjejum. — Esticou a mão para a porta e segurou na maçaneta. Ela disse docemente: — James! — Ele olhou para trás e viu que ela lhe fazia uma careta, com a língua de fora. Retribuiu com uma careta selvagem e bateu a porta com força.

Em seguida, Bond dirigiu-se para o quarto de vestir e deixou-se ficar durante algum tempo, de pé, no centro da peça, esperando que as batidas de seu coração se acalmassem. Esfregou as mãos no rosto e sacudiu a cabeça, procurando esquecê-la.

Para clarear a mente, percorreu ainda cuidadosamente as duas peças, procurando saídas, possíveis armas, microfones, qualquer coisa enfim que lhe aumentasse o conhecimento da situação em que se achava. Nada disso, entretanto, pôde encontrar. Na parede havia um relógio elétrico que marcava oito e meia e uma série de botões de campainhas, ao lado da cama de casal. Esses botões traziam a indicação de “Sala de serviço”, “cabeleireiro”, “manicure”, “empregada”. Não havia telefone. Bem no alto, a um canto de ambas as peças, viam-se as grades de um pequeno ventilador. Cada uma dessas grades era de dois pés quadrados. Tudo inútil. As portas pareciam ser feitas de algum metal leve, pintadas para combinarem com as paredes. Bond jogou todo o peso de seu corpo contra uma delas, mas ela não cedeu um só milímetro. Bond esfregou o ombro. Aquele lugar era uma verdadeira prisão. Não adiantava discutir a situação. A armadilha tinha-se fechado hermèticamente sobre eles. Agora, a única coisa que restava aos ratos era tirarem o melhor proveito possível da isca de queijo.

Bond sentou-se à mesa do desjejum, sobre a qual estava uma grande jarra com suco de abacaxi, metida num pequeno balde de prata cheio de cubos de gelo. Serviu-se rapidamente e levantou a tampa de uma travessa. Ali estavam ovos mexidos sobre torradas, quatro fatias de toucinho defumado, um rim grelhado e o que parecia quatro salsichas inglesas de carne de porco. Havia também duas torradas quentes, pãezinhos conservados quentes dentro de guardanapos, geléia de laranja e morango e mel. O café estava quase fervendo numa grande garrafa térmica, e o creme exalava um odor fresco e agradável.

Do banheiro vinham as notas da canção “Marion” que a jovem estava cantarolando. Bond resolveu não dar ouvidos à cantoria e concentrou-se nos ovos.

Dez minutos depois, Bond ouviu que a porta do banheiro se abria. Descansou uma torrada que tinha numa das mãos e cobriu os olhos com a outra. Ela riu e disse: — Ele é um covarde. Tem medo de uma simples jovem. — Em seguida Bond ouviu-a a remexer nos armários. Ela continuava falando, em parte consigo mesma: — Não sei porque ele está assustado. Naturalmente que se eu lutasse com ele facilmente o dominaria. Talvez esteja com medo disso. Talvez não seja realmente muito forte, embora seus braços e peito pareçam bastante rijos. Contudo, ainda não vi o resto. Talvez seja fraco. Sim, deve ser isso. Essa é a razão pela qual não ousa despir-se na minha frente. Hum, agora vamos ver, será que ele gostaria de mim com essas roupas? — Ela elevou a voz: — Querido James, você gostaria de me ver de branco, com pássaros azul-pálido esvoaçando sobre o meu corpo?

— Sim, bolas! Agora acabe com essa conversa e venha comer. Estou começando a sentir sono.

Ela soltou uma exclamação: — Oh, se você quer dizer que já está na hora de irmos para a cama, naturalmente que me apressarei.

Ouviu-se uma agitação de passos apressados e Bond logo a via sentar-se diante de si. Ele deixou cair as mãos e ela sorriu-lhe. Estava linda. Seu cabelo estava escovado e penteado de um dos lados caindo sobre o rosto, e do outro com as madeixas puxadas para trás da orelha. Sua pele brilhava de frescura e os grandes olhos azuis resplandeciam de felicidade. Agora Bond estava gostando daquele nariz quebrado. Tinha-se tornado parte de seus pensamentos relativamente a ela, e subitamente lhe ocorreu perguntar-se por que estaria ele triste quando ela era tão imaculadamente bela quanto tantas outras lindas jovens. Sentou-se circunspectamente, com as mãos no colo, e a metade dos seios aparecendo na abertura do quimono.

Bond disse severamente: — Agora, ouça, Honey. Você está maravilhosa, mas esta não é a maneira de usar-se um quimono. Feche-o no corpo, prenda-o bem e deixe de tentar parecer uma prostituta. Isso simplesmente não são bons modos à mesa.

— Oh, você não passa de um boneco idiota. — E ajeitou o quimono, fechando-o um pouco, em uma ou duas polegadas. — Por que você não gosta de brincar? Gostaria de brincar de estar casada.

— Não à hora do desjejum — respondeu Bond com firmeza. — Vamos, coma logo. Está delicioso. De qualquer maneira estou muito sujo, e agora vou fazer a barba e tomar um banho. — Levantou-se, deu volta à mesa e beijou-lhe o alto da cabeça. — E quanto a essa história de brincar, como você diz, gostaria mais de brincar com você do que com qualquer outra pessoa do mundo. Mas não agora. — Sem esperar pela resposta, dirigiu-se ao banheiro e fechou a porta.

Bond barbeou-se e tomou um banho de chuveiro. Sentia-se desesperadamente sonolento. O sono chegava-lhe, de modo que de quando em quando tinha que interromper o que fazia e inclinar a cabeça, repousando-a entre os joelhos. Quando começou a escovar os dentes, o seu estado era tal que mal podia fazê-lo. Estava começando a reconhecer os sintomas. Tinha sido narcotizado. A coisa teria sido posta no suco de abacaxi ou no café? Este era um detalhe sem importância. Aliás, nada tinha importância. Tudo o que queria fazer era estender-se naquele chão de ladrilhos e fechar os olhos. Assim mesmo, dirigiu-se cambaleante para a porta, esquecendo-se de que estava nu. Isso também pouca importância tinha. A jovem já tinha terminado a refeição e agora estava na cama. Continuou trôpego, até ela, segurando-se nos móveis. O quimono tinha sido abandonado no chão e ela dormia pesadamente, completamente nua, sob um simples lençol.

Bond olhou para o travesseiro, ao lado da jovem. Não! Procurou o interruptor e apagou as luzes. Agora teve que se arrastar pelo chão até chegar ao seu quarto. Chegou até junto de sua cama e atirou-se nela. Com grande esforço conseguiu ainda esticar o braço, tocar o interruptor e tentar apagar a lâmpada do criado-mudo. Mas não o conseguiu: sua mão deslizou, atirou o abajur ao chão e a lâmpada espatifou-se. Com um derradeiro esforço, Bond virou-se ainda no leito e adormeceu profundamente.

Os números luminosos do relógio elétrico, no quarto de casal, anunciavam nove e meia.

Às dez horas, a porta do quarto abriu-se suavemente. Um vulto muito alto e magro destacava-se na luz do corredor. Era um homem. Talvez tivesse dois metros de altura. Permaneceu no limiar da porta, com os braços cruzados, ouvindo. Dando-se por satisfeito, caminhou vagarosamente pelo quarto e aproximou-se da cama. Conhecia perfeitamente o caminho. Curvou-se sobre o leito e ouviu a serena respiração da jovem. Depois de um momento, tocou em seu próprio peito e acionou um interruptor. Imediatamente um amplo feixe de luz difusa projetou-se na cama. O farolete estava preso ao corpo do homem por meio de um cinto que o fixava à altura do esterno.

Inclinou-se novamente para a frente, de modo que a luz clareou o rosto da jovem.

O intruso examinou aquele rosto durante alguns minutos. Uma de suas mãos avançou, apanhou a orla do lençol, à altura do queixo da jovem, e puxou-o lentamente até os pés da cama. Mas a mão que puxara aquele lençol não era u’a mão. Era um par de pinças de aço muito bem articuladas na extremidade de uma espécie de talo metálico que desaparecia dentro de uma manga de seda negra. Era u’a mão mecânica.

O homem contemplou durante longo tempo aquele corpo nu, deslocando o seu peito de um lado para outro, de modo que todo o leito fosse submetido ao feixe luminoso. Depois, a garra saiu novamente de sob aquela manga e delicadamente levantou a ponta do lençol, puxando-o dos pés da cama até recobrir todo o corpo da jovem. O homem demorou-se ainda por um momento a contemplar o rosto adormecido, depois apagou o farolete e atravessou silenciosamente o quarto em direção à porta aberta, além da qual estava Bond dormindo.

O homem demorou-se mais tempo ao lado do leito de Bond. Perscrutou cada linha, cada sombra do rosto moreno e quase cruel que jazia quase sem vida, sobre o travesseiro. Observou a circulação à altura do pescoço e contou-lhe as batidas; depois, quando puxou o lençol para baixo, fez o mesmo na área do coração. Estudou a curva dos músculos, nos braços de Bond e nas coxas, e considerou pensativo a força oculta no ventre musculoso de Bond. Chegou até mesmo a curvar-se sobre a mão direita de Bond, estudando-lhe cuidadosamente as linhas da vida e do destino.

Por fim, com grande cuidado, a pinça de aço puxou novamente o lençol, desta vez para cobrir o corpo de Bond até o pescoço. Por mais um minuto o elevado vulto permaneceu ao lado do homem adormecido, depois se retirou rapidamente, ganhando o corredor, enquanto a porta se fechava com um estalido metálico e seco.


CONTINUA

XI - VIDA NO CANAVIAL


Seriam cerca de oito horas, pensou Bond. A não ser o coaxar dos sapos, tudo estava mergulhado em silêncio. No canto mais distante da clareira, ele podia vislumbrar o vulto de Quarrel.

Podia-se ouvir o tinir metálico, enquanto ele se ocupava em desmontar e secar a sua “Remington”.

Por entre as árvores podiam-se ver também as luzes distantes, vindas do depósito de guano, riscar caminhos luminosos e festivos sobre a superfície escura do lago. O desagradável vento desaparecera e o abominável cenário estava mergulhado em trevas. Estava bastante fresco. As roupas de Bond tinham secado no corpo. A comida tinha aquecido o seu estômago. Ele experimentou uma agradável sensação de conforto, sonolência e paz. O dia seguinte ainda estava muito longe e não apresentava problemas, a não ser uma boa dose de exercício físico. A vida, subitamente, pareceu-lhe fácil e boa.

A jovem estava a seu lado, metida no saco de dormir. Estava deitada de costas, com a cabeça descansando nas mãos, e olhando para o teto de estrelas. Ele apenas conseguia divisar os pálidos contornos de seu rosto. De repente, ela disse: James, você prometeu dizer-me o que significava tudo isso. Vamos. Eu não dormirei enquanto você não o disser.

Bond riu. — Eu direi se você também disser. Também quero saber o que você pretende.

— Pois não, não tenho segredos: mas você deve falar primeiro.

— Está certo. — Bond puxou os joelhos até a altura do queixo e passou os braços à volta deles. — Eu sou uma espécie de policial. Eles me enviam de Londres quando há alguma coisa de estranho acontecendo em alguma parte do mundo e que não interessa a ninguém. Bem, não faz muito tempo, um dos funcionários do Governador, em Kingston, um homem chamado Strangways, aliás meu amigo, desapareceu. Sua secretária, que era uma linda jovem, também desapareceu sem deixar vestígios. Muitos pensaram que eles tivessem fugido juntos, mas eu não acreditei nisso. Eu...”

Bond contou tudo com simplicidade, falando em homens bons e maus, como numa história de aventuras lida em algum livro. Depois terminou: Como você vê, Honey, temos de voltar a Jamaica, amanhã à noite, todos nós, na canoa, e então o Governador nos dará ouvidos e enviará um destacamento de soldados para apanhar este chinês. Espero que isso terá como conseqüência levá-lo à prisão. Ele com certeza também sabe disso, e essa é a razão pela qual procura aniquilar-nos. Essa é a história. Agora é a sua vez.

A jovem disse: Você parece viver uma vida muita excitante. Sua mulher não deve gostar que você fique fora tanto tempo. Ela não tem medo de que você se fira?

— Não sou casado. A única que se preocupa com a possibilidade de que eu me fira é a minha companhia de seguros.

Ela continuou sondando: Mas suponho que você tenha namoradas.

— Não permanentes.

— Oh!

Fez-se uma pausa. Quarrel se aproximou e disse: “Capitão, farei o primeiro quarto, se for melhor. Estarei na extremidade da restinga e virei chamá-lo à meia-noite. Então talvez o senhor possa ir até as cinco horas, quando nós nos poremos em marcha. Precisamos estar fora daqui antes que clareie o dia.

— Está bem — respondeu Bond. — Acorde-me se você vir alguma coisa. O revólver está em ordem?

— Perfeito — respondeu Quarrel com evidente mostra de contentamento. Depois, dirigindo-se à jovem disse com leve tom de insinuação: — Durma bem, senhorita. Em seguida, desapareceu silenciosamente nas sombras.

— Gosto de Quarrel — disse a jovem. E, após uma pausa: — Você quer realmente saber alguma coisa a meu respeito? A história não é tão excitante quanto a sua.

— É claro que quero. E não omita nada.

— Não há nada a omitir. Você poderia escrever toda a história de minha vida nas costas de um cartão postal. Para começar, nunca saí de Jamaica. Vivi toda a minha vida num lugar chamado Beau Desert, na costa setentrional, nas proximidades do Porto Morgan.

Bond riu. — É estranho: posso dizer o mesmo; pelo menos por enquanto. Não notei você pela região. Você vive em cima de uma árvore?

— Ah, imagino que você tenha ficado na casa da praia. Eu nunca chego até ali. Vivo na Casa Grande.

— Mas nada ficou dela. É uma ruína no meio dos canaviais.

— Eu vivo na adega. Tenho vivido ali desde a idade de cinco anos. Depois a casa se incendiou e meus pais morreram. Nada me lembro deles, por isso você não precisa manifestar pesar. A princípio vivi ali com a minha ama negra, mas depois ela morreu, quando eu tinha apenas quinze anos. Nos últimos cinco anos tenho vivido ali sozinha.

— Nossa Senhora! — Bond estava boquiaberto. — Mas não havia ninguém para tomar conta de você? Os seus pais não deixaram nenhum dinheiro?

— Nem um tostão. — Não havia o mínimo traço de amargura na voz da jovem — talvez orgulho, se houvesse alguma coisa. — Você sabe, os Riders eram uma das mais antigas famílias de Jamaica. O primeiro Rider recebera de Cromwell as terras de Beau Desert, por ter sido um dos que assinaram o veredicto de morte contra o rei Carlos. Ele construiu a Casa Grande e minha família viveu ora nela ora fora dela, desde aquela época. Mas depois veio a decadência do açúcar e eu acho que a propriedade foi pessimamente administrada, e, ao tempo em que meu pai tomou conta da herança, havia somente dívidas — hipotecas e outros ônus. Assim, quando meu pai e minha mãe morreram a propriedade foi vendida. Eu pouco me importei, pois era muito jovem. Minha ama deve ter sido maravilhosa. Quiseram que alguém me adotasse, mas a minha babá reuniu os pedaços de mobília que não tinham sido queimados e com eles nós nos instalamos da melhor forma no meio daquelas ruínas. Depois de algum tempo ninguém mais veio interferir conosco. Ela cosia um pouco e lavava para algumas freguesas da aldeia, ao mesmo tempo que plantava bananas e outras coisas, sem falar do grande pé de fruta-pão que havia diante da casa. Comíamos o que era a ração habitual do povo de Jamaica. E havia os pés de cana-de-açúcar à nossa volta. Ela fizera também uma rede para apanhar peixes, a qual nós recolhíamos todos os dias. Tudo corria bem e nós tínhamos o suficiente para comer. Ela ensinou-me a ler e escrever, como pôde. Tínhamos uma pilha de velhos livros que escapara ao incêndio, inclusive uma enciclopédia. Comecei com o A quando tinha apenas oito anos, e cheguei até o meio do T. — Ela disse um tanto na defensiva: — Aposto que sei mais do que você sobre muitas coisas.

— Estou certo de que sim. — Bond estava perdido na visão daquela jovem de cabelos de linho errando pelas ruínas de uma grande construção, com uma obstinada negra a vigiá-la e a chamá-la para receber as lições que deveriam ter sido um mistério para ela mesma. — Sua ama deve ter sido uma criatura extraordinária.

— Ela era um amor. — Era uma afirmação peremptória. — Pensei que fosse morrer quando ela faleceu. As coisas não foram tão fáceis para mim depois disso. Antes eu levava uma vida de criança, mas subitamente tive que crescer e fazer tudo por mim mesma. E os homens tentaram apanhar-me e atingir-me. Diziam que queriam fazer amor comigo. — Fez uma pausa e acrescentou: — Eu era bonita naquela época. Bond disse muito sério:

— Você é uma das jovens mais belas que já vi.

— Com este nariz? Não seja tolo.

— Você não compreende. — Bond tentou encontrar palavras nas quais ela pudesse crer. — É claro que qualquer pessoa pode ver que o seu nariz está quebrado; mas desde esta manhã dificilmente eu pude notá-lo. Quando se olha para uma pessoa, olha-se para os seus olhos ou para a sua boca. Nesses dois pontos se encontram a expressão. Um nariz quebrado não tem maior significação do que uma orelha torta. Narizes e orelhas são peças do mobiliário facial. Algumas são mais bonitas do que outras, mas não são tão importantes quanto o resto. Se você tivesse um nariz bonito, tão bonito como o resto, você seria a jovem mais bela de Jamaica.

— Você é sincero? — Sua voz era ansiosa. — Você acha que eu poderia ser bela? Sei que muita coisa em mim está bem, mas quando olho no espelho só vejo o meu nariz quebrado. Estou certa de que o mesmo ocorre com outras pessoas que são, que são — bem — mais ou menos aleijadas.

Bond disse com impaciência: — Você não é aleijada! Não diga tolices. E aliás você pode endireitá-lo mediante uma simples operação. Basta que você vá aos Estados Unidos e a coisa levará apenas uma semana.

Ela disse com irritação: — Como é que você quer que eu faça isso? Tenho cerca de quinze libras debaixo de uma pedra, na minha adega. Tenho ainda três saias, três blusas, uma faca e uma panela de peixe. Conheço muito bem essas operações. O médico de Porto Maria já pediu informações para mim. Ele é um homem muito bom e escreveu para os Estados Unidos. Pois para que a operação seja bem feita, eu teria que gastar cerca de quinhentas libras, sem falar da passagem para Nova York, a conta do hospital e tudo o mais.

Sua voz tornou-se desesperançada: — Como é que você espera que eu possa ter todo esse dinheiro?

Bond já decidira sobre o que teria de ser feito, mas no momento apenas disse ternamente: — Bem, espero que se possam encontrar meios; mas, de qualquer maneira, prossiga com a sua história. Ela é muito excitante — muito mais interessante do que a minha. Você tinha chegado ao ponto em que a sua ama morreu. O que aconteceu depois?

A jovem recomeçou com relutância.

— Bem, a culpa é sua por ter interrompido. E você não deve falar de coisas que não compreende. Suponho que as pessoas lhe digam que você é simpático. Você deve também ter todas as namoradas que desejar. Bem, isso não aconteceria se você fosse vesgo ou tivesse um lábio leporino. — Na verdade, ele pôde ouvir o sorriso em sua voz: — Acho que quando voltarmos eu irei ter com o feiticeiro para que lhe faça uma mandinga e lhe dê alguma coisa assim. — E ela acrescentou tristemente: — Dessa forma, nós seremos mais parecidos.

Bond estendeu o braço e sua mão tocou nela: — Eu tenho outros planos. Mas continuemos, quero ouvir o resto da sua história.

— Bem, — disse a jovem com um suspiro. — Eu terei que me atrasar um pouco. Como você sabe, toda a propriedade é representada pela cana-de-açúcar e pela velha casa que está situada no meio da plantação. Bem, umas duas vezes por ano eles cortam a cana e mandam-na para o moinho. E quando eles o fazem, todos os animais e insetos que vivem nos canaviais entram em pânico e a maioria deles têm as suas tocas destruídas e são mortos. Na época da safra, alguns deles começaram a vir para as ruínas da casa, onde se escondiam. No princípio, minha babá ficava aterrorizada, pois lá vinham os mangustos, as cobras e os escorpiões, mas eu preparei dois quartos da adega para recebê-los. Não me assustei com eles, e eles nunca me fizeram mal. Pareciam compreender que eu estava cuidando deles. E devem ter contado aquilo aos seus amigos, ou alguma coisa parecida, pois depois de algum tempo era perfeitamente natural que todos viessem acantonar-se em seus dois quartos, onde ficavam até que os canaviais começassem novamente a crescer, quando então iam saindo e voltando para os campos. Dei-lhes toda a comida que podíamos pôr de lado, quando eles ficavam conosco, e todos se portavam muito bem, a não ser por algum odor e às vezes uma ou outra luta entre si. Mas eram muito mansos comigo. Naturalmente os cortadores de cana perceberam tudo e viam-me andando pelo lugar com cobras à volta do meu pescoço, e assim por diante, a ponto de ficarem aterrorizados comigo e me considerarem uma feiticeira. Por causa disso, eles nos deixaram completamente isoladas. Ela fez uma pausa, e depois recomeçou:

— Foi assim que aprendi tanta coisa sobre animais e insetos. Eu costumava ainda passar muito tempo no mar, aprendendo coisas sobre os animais marinhos, assim como sobre os pássaros. Se se chega a saber o que todas essas criaturas gostam de comer e do que têm medo, pode-se muito bem fazer amizade com elas. — Levantou os olhos para Bond e disse: Você não sabe o que perde ignorando todas essas coisas.

— Receio que perca muito — respondeu Bond com sinceridade. — Suponho que eles sejam muito melhores e mais interessantes que os homens.

Sobre isso nada sei — respondeu a jovem pensativa-mente. — Não conheço muitas pessoas. A maioria das que conheci foram detestáveis, mas acho que deve haver criaturas interessantes também. — Fez uma pausa, e prosseguiu: — Nunca pensei realmente que chegasse a gostar de alguma pessoa como gosto dos animais. Com exceção da babá, naturalmente. Até que... — Ela se interrompeu com um sorriso de timidez. — Bem, de qualquer forma, nós vivemos muito felizes juntas, até que eu fiz quinze anos, quando então a babá morreu e as coisas se tornaram muito difíceis. Havia um homem chamado Mander. Um homem horroroso. Era o capataz branco que servia aos proprietários da plantação. Ele vivia me procurando. Queria que eu fosse viver com ele, em sua casa de Porto Maria.

Eu o odiava, e costumava esconder-me sempre que ouvia o seu cavalo aproximando-se do canavial. Certa noite ele veio a pé e eu não o ouvi. Estava bêbado. Entrou na adega e lutou comigo porque não queria fazer o que ele desejava. Você sabe, as coisas que fazem as pessoas quando estão apaixonadas.

— Sim, já sei.

— Tentei matá-lo com a minha faca, mas ele era muito forte e deu-me um soco tão forte no rosto que me quebrou o nariz. Deixou-me inconsciente e acho que fez alguma coisa comigo. Sei que ele fez mesmo. No dia seguinte eu quis me matar quando vi o meu rosto e verifiquei o que ele me havia feito. Pensei que iria ter um filho. Teria sem dúvida me matado se tivesse tido um filho daquele homem. Em todo caso, não tive, e tudo continuou assim. Fui ao médico e ele fez o que pôde com o meu nariz e não me cobrou nada. Quanto ao resto, eu nada lhe contei, pois estava muito envergonhada. O homem não voltou mais. Eu esperei e nada fiz até a próxima colheita de cana-de-açúcar. Tinha um plano. Estava esperando que as aranhas viúvas-negras viessem procurar abrigo. Um belo dia elas chegaram. Apanhei a maior das fêmeas e á deixei numa caixa sem nada para comer. As fêmeas são terríveis. Então esperei que fizesse uma noite escura, sem luar. Na primeira noite dessas, apanhei a caixa com a aranha e caminhei até chegar à casa do homem. Estava muito escuro e eu me sentia aterrorizada com a possibilidade de encontrar algum assaltante pela estrada, mas não houve nada. Esperei em seu jardim, oculta entre os arbustos, até que ele se recolheu à cama. Então subi por uma árvore e ganhei a sacada; aguardei até que ele começasse a roncar e depois entrei pela janela. Ele estava nu, estendido na cama, sob o mosquiteiro. Levantei uma aba do filó, abri a caixa e sacudi-lhe a aranha sobre o ventre. Depois saí e voltei para casa.

— Deus do céu! — exclamou Bond reverentemente. — O que aconteceu com o homem?

Ela respondeu com satisfação: — Levou uma semana para morrer. Deve ter-lhe doído terrivelmente. Você sabe, a mordida dessa aranha é pavorosa. Os feiticeiros dizem que não há nada que se lhe compare. — Ela fez uma pausa, e como Bond não fizesse nenhum comentário, acrescentou: — Você não acha que eu fiz mal, não é?

— Bem, não faça disso um hábito — respondeu Bond suavemente. — Mas não posso culpá-la, diante do que ele tinha feito. E, depois, o que aconteceu?

— Bem, depois me estabeleci novamente — sua voz era firme. — Tive que me concentrar na tarefa de obter alimento suficiente, e naturalmente. — Acrescentou persuasivamente: — Eu tinha de fato um nariz muito bonito, antes. Você acha que os médicos podem torná-lo igualzinho ao que era antes?

— Eles poderão fazê-lo de qualquer forma que você quiser — disse Bond em tom definitivo. — Como é que você ganhou dinheiro?

— Foi graças à enciclopédia. Li nela que há pessoas que gostam de colecionar conchas marinhas e que as conchas raras podiam ser vendidas. Falei com o mestre-escola local, sem contar-lhe naturalmente o meu segredo, e ele descobriu para mim que havia uma revista norte-americana chamada “Nautilus”, dedicada aos colecionadores de conchas. Eu tinha apenas o dinheiro suficiente para tomar uma assinatura daquela revista e comecei a procurar as conchas que as pessoas pediam em seus anúncios. Escrevi a um comerciante de Miami e ele começou a comprar as minhas conchas. Foi emocionante. Naturalmente que cometi alguns erros, no princípio. Pensei, por exemplo, que as pessoas gostariam das conchas mais bonitas, mas esse não era o caso. Freqüentemente elas preferiam as conchas mais feias. Depois, quando achava conchas raras, punha-me a limpá-las e poli-las a fim de torná-las mais bonitas, mas isso também foi um erro. Os colecionadores querem as conchas exatamente como saem do mar, com o animal em seu interior também. Então consegui algum formol com o médico e o punha entre as conchas vivas, para que elas não tivessem mau cheiro, e depois mandava-as para o tal comerciante de Miami. Só aprendi bem o negócio de um ano para cá e já consegui quinze libras. Consegui esse resultado agora que sei como é que eles querem as conchas e se tivesse sorte, poderia fazer pelo menos cinqüenta libras por ano. Então, em dez anos poderia ir aos Estados Unidos e operar-me. Mas, continuou ela com intenso contentamento, tive uma notável maré de sorte. Fui a Crab Key pelo Natal, onde já tinha estado antes. Mas dessa vez eu encontrei essas conchas purpúreas. Não parecem grande coisa, mas eu enviei uma ou duas para Miami e o comerciante escreveu-me para dizer que compraria tantas dessas conchas quantas eu pudesse encontrar, e ao preço de até cinco dólares pelas perfeitas. Disse-me ainda que eu deveria manter segredo sobre o lugar de onde as tirava, pois de outra forma o “mercado seria estragado”, como disse ele, e os preços cairiam. É como se se tivesse uma mina de ouro particular. Agora serei capaz de juntar o dinheiro em cinco anos. Esse foi o motivo pelo qual tive grandes suspeitas de você, quando o encontrei na praia. Pensei que você tivesse vindo para roubar as minhas conchas.

— Você me deu um susto, pois pensei que você fosse a garota do Dr. No.

— Muito obrigada.

— Mas depois que você tiver feito a operação, o que irá fazer? Você não pode continuar vivendo numa adega durante toda a vida.

— Pensei em me tornar uma prostituta. — Ela o disse como se tivesse dito “enfermeira” ou “secretária”.

— Oh, o que é que você quer dizer com isso? — Talvez ela já tivesse ouvido aquela expressão sem compreendê-la bem.

— Uma dessas jovens que possuem um bonito apartamento e lindas roupas. Você sabe o que quero dizer — acrescentou ela com impaciência. — Os homens telefonam, marcam encontro, chegam, fazem amor e pagam. Elas ganham cem dólares de cada vez, em Nova Iorque, onde pensei começar. Naturalmente — admitiu — terei de fazer por menos, no começo, até que aprenda a trabalhar bem. Quanto é que vocês pagam pelas que não têm experiência?

Bond riu. — Francamente, não me lembro. Há muito tempo que não me encontro com essas mulheres.

Ela suspirou. — Sim, suponho que você possa ter tantas mulheres quantas queira, por nada. Suponho que apenas os homens feios paguem, mas isso é inevitável. Qualquer espécie de trabalho nas grandes cidades deve ser horrível. Pelo menos pode-se ganhar muito mais como prostituta. Depois, poderia voltar para Jamaica e comprar Beau Desert. Seria bastante rica para encontrar um marido bonito e ter alguns filhos. Agora que encontrei essas conchas, penso que poderia estar de volta a Jamaica quando tivesse trinta anos. Não seria formidável?

— Gosto da última parte do plano, mas não tenho muita confiança na primeira. De qualquer forma, como é que você veio a saber dessa história de prostitutas? Encontrou isso na letra P, na enciclopédia?

— Claro que não; não seja tolo. Há uns dois anos houve em Nova Iorque um escândalo sobre elas, envolvendo também um “play-boy” chamado Jelke. Ele tinha toda uma cadeia de prostitutas, e eu li muito sobre o caso no “Gleaner”. O jornal deu inclusive os preços que elas cobravam e tudo o mais. De qualquer forma, há milhares dessas jovens em Kingston, embora não sejam tão boas. Recebem apenas cinco xelins e não têm um lugar apropriado para fazer amor, a não ser no mato. Minha babá chegou a falar-me delas. Disse-me que eu não deveria imitá-las, pois do contrário seria muito infeliz. É claro que seria, recebendo apenas cinco xelins. Mas por cem dólares!...

Bond observou: — Você não conseguiria guardar todo esse dinheiro. Precisaria ter uma espécie de gerente para arranjar os homens, e teria ainda de dar gorjetas à polícia, para deixá-la em paz. Por fim, poderia ir facilmente parar na cadeia se tudo não corresse bem. Na verdade, com tudo o que você sabe sobre animais, bem poderia ter um ótimo emprego, cuidando deles, em algum jardim zoológico norte-americano. E o que me diz do Instituto de Jamaica? Tenho certeza de que você gostaria mais de trabalhar ali. E poderia também facilmente encontrar um bom marido. De qualquer forma, você não deve mais pensar em ser prostituta. Você tem um belo corpo e deve guardá-lo para o homem que amar.

— Isso é o que dizem as pessoas nos livros — disse ela com ar de dúvida. — A dificuldade está em que não há nenhum homem para ser amado em Beau Desert. — Depois acrescentou timidamente: — Você é o único inglês com quem jamais falei. Gostei de você desde o princípio, e não me importo de dizer-lhe essas coisas agora. Penso que há muitas pessoas das quais chegaria a gostar se saísse daqui.

— É claro que há. Centenas. E você é uma garota formidável; o que pensei assim que a vi.

— Assim que viu as minhas nádegas, você quer dizer. — Sua voz estava-se tornando sonolenta, mas cheia de prazer.

Bond riu. — Bem, eram nádegas maravilhosas. E o outro lado também era maravilhoso. — O corpo de Bond começou a se agitar com a lembrança de como a vira pela primeira vez. Depois de um instante, disse com mau humor: — Agora vamos, Honey. Está na hora de dormir. Haverá muito tempo para conversarmos quando voltarmos a Jamaica.

— Haverá? — perguntou ela desconsoladamente. — Você promete?

— Prometo.

Ele a viu agitar-se dentro do saco de dormir. Olhou para baixo e apenas pôde divisar o seu pálido perfil voltado para ele. Ela deixou escapar o profundo suspiro de uma criança, antes de adormecer.

Reinava silêncio na clareira e o tempo estava esfriando. Bond descansou a cabeça sobre os joelhos unidos. Sabia que era inútil procurar dormir, pois sua mente estava cheia dos acontecimentos do dia e dessa extraordinária mulher Tarzan que aparecera em sua vida. Era como se algum animal muito bonito se lhe tivesse dedicado. E não largaria os cordéis enquanto não tivesse resolvido os problemas dela. Estava sentindo isso. Naturalmente que não haveria grandes dificuldades para a maioria de seus problemas. Quanto à operação, seria fácil arranjá-la, e até mesmo encontrar-lhe um emprego, com o auxílio de amigos, e um lar. Tinha dinheiro e haveria de comprar-lhe roupas, mandaria ajeitar os seus cabelos e a lançaria no grande mundo. Seria divertido. Mas quanto ao resto? Quanto ao desejo físico que sentia por ela? Não se podia fazer amor com uma criança. Mas, seria ela uma criança? Não haveria nada de infantil relativamente ao seu corpo ou à sua personalidade. Era perfeitamente adulta e bem inteligente, a seu modo, e muito mais capaz de tomar conta de si mesma do que qualquer outra jovem de vinte anos que Bond conhecera.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um puxão em sua manga. A vozinha disse: — Por que você não vai dormir? Não está sentindo frio?

— Não; estou bem.

— Aqui no saco de dormir está bom e quente. Você quer vir para cá? Tem bastante lugar.

— Não, obrigado, Honey. Estou bem.

Houve uma pausa, e depois ela disse num sussurro: — Se você está pensando... Quero dizer — você não precisa fazer amor comigo... Eu poderia dormir de costas para o seu peito.

— Honey, querida, vá dormir. Seria maravilhoso dormir assim com você, mas não esta noite. De qualquer maneira, em breve terei de render Quarrel.

— Muito bem, — disse ela com voz mal humorada. — Talvez quando voltarmos a Jamaica.

— Talvez.

— Prometa. Não dormirei enquanto você não prometer.

Bond disse desesperadamente: — Naturalmente que prometo. Agora, vá dormir, Honeychile.

A sua voz se fez ouvir outra vez, triunfante: — Agora você tem uma dívida comigo. Você prometeu. Boa-noite, querido James.

— Boa noite, querida Honey.


XII - A COISA


O aperto no braço de Bond era ansioso. Ele de um salto pôs-se de pé.

Quarrel sussurrou tensamente: — Alguma coisa está-se aproximando pela água, capitão! Com certeza é o dragão!

A jovem levantou-se e perguntou nervosamente: — Que aconteceu?

Bond apenas disse: — Fique aí, Honey! Não se mexa. Eu voltarei.

Internou-se pelos arbustos do lado oposto da montanha e correu pela restinga, com Quarrel ao lado.

Chegaram até a extremidade da restinga, a vinte metros da clareira, e pararam sob o abrigo dos últimos arbustos, que Bond apartou com as mãos para ter um melhor campo de visão.

O que seria aquilo? A meia milha de distância, atravessando o lago, vinha algo informe, com dois olhos brilhantes cor de laranja, e pupilas negras. Entre estes, onde deveria estar a boca, tremulava um metro de chama azul. A luminosidade cinzenta das estrelas deixava ver uma espécie de cabeça abaulada entre duas pequenas asas semelhantes às de um morcego. Aquela coisa estranha deixava escapar um ronco surdo e baixo, que abafava um outro ruído, uma espécie de vibração rítmica. Aquela massa avançava na direção deles, à velocidade de uns dezesseis quilômetros por hora, deixando atrás de si uma esteira de espuma.

Quarrel sussurrou:

— Nossa, capitão! Que coisa é aquela?

Bond continuou de pé e respondeu laconicamente: — Não sei exatamente. Uma espécie de trator arranjado para meter medo. Está trabalhando com um motor diesel, e por isso você pode deixar os dragões de lado. Agora, vejamos... — Bond falava como se para si mesmo. — Não adianta fugir. Aquilo se move mais depressa do que nós e sabemos que pode esmagar árvores e atravessar pântanos. Temos que lhe dar combate aqui mesmo. Quais serão os seus pontos fracos? Os motoristas. Com certeza, dispõem de proteção. Em todo caso, não sabemos muito sobre esse ponto. Quarrel, você começará a disparar contra aquela cúpula quando estiverem a uns duzentos metros de nós. Faça a pontaria cuidadosamente e continue atirando. Visarei os faróis quando estiverem a cinqüenta metros. Não se está movendo sobre lagartas. Deve ter alguma espécie de rodas gigantescas, provavelmente de avião. Visarei as rodas também. Fique aí. Ficarei dez metros para baixo. Naturalmente vão reagir e nós temos que manter as balas longe da garota. Está combinado? — Bond esticou o braço e apertou o enorme ombro de Quarrel. — E não se preocupe demais. Esqueça-se de dragões. Trata-se apenas de alguma trapaça do Dr. No. Mataremos os motoristas, tomaremos conta do veículo e ganharemos com ele a costa. Isso economizará as nossas solas. Está bem?

Quarrel deu uma breve risada. — Está bem, capitão. Desde que o senhor assim o diz. Mas que Nosso Senhor saiba também que aquilo não é dragão!

Bond desceu pela restinga e se internou pelos arbustos, até que encontrou um ponto de onde podia ter um bom campo de tiro. Disse suavemente: — Honey!

— Sim, James — e a voz dela deixou transparecer alívio.

— Faça um buraco na areia como fizemos na praia. Faça-o por trás de raízes grossas e fique lá deitada. Talvez haja um tiroteio. Não tenha medo de dragões. Isto é apenas um veículo pintado, dirigido por alguns dos homens do Dr. No. Não se assuste. Estou aqui perto.

— Muito bem, James. Tenha cuidado! — A voz agora deixava transparecer um vivo temor.

Bond curvou-se, apoiando um joelho no chão, sobre as folhas e a areia, e olhou para fora.

Agora o veículo achava-se a uns trezentos metros de distância, e os seus faróis amarelos estavam iluminando a areia. Chamas azuis continuavam saindo da boca daquele engenho. Saíam de uma espécie de longo focinho, no qual se pintaram mandíbulas entreabertas, para darem ao todo a aparência de dragão. Um lança-chamas! Aquilo explicava as árvores queimadas e a história do administrador. A coloração azul da chama seria dada por alguma espécie de queimador, disposto adiante do lança-chamas.

Bond teve que admitir que aquela visão era algo de terrível, à medida que o veículo avançava pelo lago raso. Evidentemente fora calculado para infundir terror. Ele mesmo ter-se-ia assustado, não fora a vibração rítmica do motor diesel. Mas até que ponto aquilo seria vulnerável para homens que não fossem dominados pelo pânico?

A resposta ele a teve quase imediatamente. Ouviu-se o estampido da “Remington” de Quarrel. Uma centelha saiu da cabina encimada pela cúpula e logo se ouviu um ruído metálico. Quarrel disparou mais um tiro e, logo em seguida, uma rajada. As balas chocaram-se inutilmente de encontro à cabina. Não houve mesmo uma simples redução de velocidade. O monstro continuava avançando para o ponto de onde tinham partido os disparos. Bond descansou o cano de seu “Smith & Wesson” no braço, e fez cuidadosa pontaria. O profundo ruído surdo de sua arma fez-se ouvir por sobre o matraquear da “Remington” de Quarrel. Um dos faróis fora atingido e despedaçara-se. Bond disparou mais quatro tiros contra o outro e atingiu-o com o quinto e último disparo de seu revólver. O fantástico aparelho parecia continuar não dando importância, e foi avançando para o lugar de onde tinham partido os disparos do “Smith & Wesson”. Bond tornou a carregar a arma e começou a atirar contra os pneumáticos, sob as asas negro e ouro. A distância agora era de apenas trinta metros e podia jurar que já atingira mais de uma vez a roda mais próxima, sem nenhum resultado. Seria borracha sólida? O primeiro estremecimento de medo percorreu a pele de Bond.

Carregou mais uma vez. Seria aquela coisa maldita vulnerável pela retaguarda? Deveria correr para o lago e tentar uma abordagem? Avançou um passo, através dos arbustos, mas logo ficou imóvel, incapaz de prosseguir.

Subitamente, daquele focinho ameaçador, uma língua de fogo azulada tinha sido lançada na direção do esconderijo de Quarrel. À direita de Bond, no mato, surgira apenas uma chama laranja e vermelha, simultaneamente com um estranho urro, que imediatamente silenciou. Satisfeita, aquela língua de fogo se recolhera à sua boca. Agora aquilo fizera um movimento de rotação sobre o seu eixo e parará completamente. O buraco azulado da boca apontava diretamente para Bond.

Bond deixou-se ficar, esperando pelo horroroso fim. Olhou através das mandíbulas da morte e viu o brilhante f-lamento vermelho do queimador, bem no fundo do comprido tubo. Pensou no corpo de Quarrel — mas não havia tempo para pensar em Quarrel — e imaginou-o completamente carbonizado. Dentro em pouco ele também se incendiaria como uma tocha. Um único berro seria arrancado dele e os seus membros se encolheriam na pose de dançarino dos corpos queimados. Depois viria a vez de Honey. Meu Deus, para o quê ele os havia arrastado! Por que fora tão insano a ponto de enfrentar aquele homem com todo o seu arsenal? Por que não aceitara a advertência que lhe fora feita pelo longo dedo que o alcançara já em Jamaica? Bond trincou os dentes. Vamos, canalhas. Depressa.

Ouviu-se a sonoridade de um alto-falante, que anunciava metàlicamente: “Saia daí, inglês. E a boneca também. Depressa ou será frito no inferno, como o seu amigo”. Para dar mais força àquela ordem, uma língua de fogo foi lançada em sua direção. Bond deu um passo atrás para recuar daquele intenso calor. Sentiu o corpo da garota de encontro às suas costas. Ela disse historicamente: — Tive que vir, tive que vir.

Bond disse: — Está bem, Honey. Fique atrás de mim.

Ele tinha-se decidido. Não havia alternativa. Mesmo que a morte viesse mais tarde, não poderia ser pior do que aquela morte diante do lança-chamas. Bond apanhou a mão da jovem e puxou-a consigo para fora, saindo para a areia.

A voz se fez ouvir novamente: — Pare aí, camarada. E deixe cair o lança-ervilhas. Nada de truques, senão os caranguejos terão um bom almoço.

Bond deixou cair a sua arma. Lá se fora o “Smith & Wesson”. O “Beretta” não teria tido melhor sorte: A jovem lastimou-se, e Bond apertou a sua mão. — Agüente, Honey, — disse ele. — Nós nos livraremos disso.

Bond troçou de si mesmo por causa daquela mentira. Ouviu-se o ruído de uma porta de ferro que se abria. Por trás da cúpula, um homem saltou para a água e caminhou até eles, com um revólver na mão. Ao mesmo tempo ia-se mantendo fora da linha de fogo do lança-chamas. A trêmula chama azul iluminou o seu rosto. Era um chinês negro, de enorme estatura, vestindo apenas calças. Alguma coisa balançava em sua mão esquerda, e quando ele se aproximou mais, Bond pôde ver que eram algemas.

O homem deteve-se a alguns metros de distância e disse:

— Levantem os braços. Punhos juntos e caminhem em minha direção. Você primeiro, inglês. Devagar ou receberá mais um umbigo.

Bond obedeceu e quando estava a um passo do homem, este prendeu o revólver entre os dentes, e esticou os braços e atou os seus pulsos com as algemas. Bond examinou aquele rosto iluminado pelas chamas azuis. Era uma cara brutal, com olhos estrábicos. O agente do Dr. No fitou-o com desprezo. — Bastardo imbecil! — disse.

Bond deu as costas ao homem e começou a se afastar. Ia ver o corpo de Quarrel. Tinha que lhe dizer adeus. Ouviu-se o ruído de um disparo e uma bala jogou-lhe areia nos pés. Bond parou, e voltando-se lentamente disse:

— Não fique nervoso. Vou dar uma espiada no homem que você acabou de assassinar. Voltarei.

O homem abaixou o revólver e riu grosseiramente: — Muito bem. Divirta-se. Desculpe se não temos uma coroa. Volte logo, se não daremos uma amostra à boneca. Dois minutos.

Bond caminhou em direção ao cerrado de arbustos fumegantes. Ali chegando, olhou para baixo. Seus olhos e boca se contraíram. Sim, tinha sido bem como ele imaginara. Pior, mesmo. Disse docemente: — Perdoe-me, Quarrel. — Com o pé soltou um pouco de areia, que colheu com as mãos algemadas e verteu-a sobre os restos dos olhos de Quarrel. Depois caminhou lentamente, de volta, e ficou ao lado da jovem.

O homem empurrou-os para a frente com o revólver. Deram a volta por trás da máquina, onde havia uma pequena porta quadrada. Uma voz do interior disse: — Entrem e sentem-se no chão. Não toquem em nada ou ficarão com os dedos partidos.

Com dificuldade, arrastaram-se para dentro daquela caixa de ferro, que cheirava a óleo e suor. Havia lugar apenas para que ambos se sentassem com as pernas encolhidas, de joelhos para cima. O homem que empunhava o revólver e que vinha atrás deles saltou por último para dentro do carro e fechou a porta. Ligou uma lâmpada e sentou-se num assento de ferro, ao lado do chofer. — Muito bem, Sam, vamos andando. Você pode apagar o fogo. Há luz bastante para dirigir — disse.

Na painel de controle podia-se ver uma fileira de mostradores. O motorista esticou a mão e deslocou para baixo um par de interruptores. Engrenou o motor e olhou através de uma estreita fresta, cortada na parede de ferro, diante dele. Bond sentiu que o veículo dava uma volta. Ouviu-se um movimento mais rápido do motor, e o veículo avançou.

O ombro da jovem apertou-se de encontro ao de Bond.

— Para onde estão eles nos levando? — O seu sussurro traía um estremecimento.

Bond voltou a cabeça e olhou para ela. Era a primeira vez que podia ver os seus cabelos depois de secos. Estavam desfeitos pelo sono, mas não eram mais mechas de rabichos empastados. Caíam densamente até os ombros, onde terminavam em anéis voltados para dentro. Eram do mais pálido louro acinzentado e despediam reflexos quase prateados sob a luz elétrica. Ela olhou para o alto, para ele. A pele, à volta dos olhos e nos cantos da boca, mostrava-se lívida de medo.

Bond deu de ombros, procurando aparentar uma indiferença que não sentia!. Sussurrou: — Oh, espero que vamos ver o Dr. No. Não se preocupe demais, Honey. Esses homens não passam de pequenos bandidos. Com ele, as coisas serão diferentes. Quando estivermos diante dele, não diga nada, falarei por nos dois. — Ele apertou o seu ombro e disse: — Gosto da maneira por que você penteia o seu cabelo, e fico contente porque você não o apara muito curto.

Um pouco da tenção desapareceu do rosto dela. — Como é que você pode pensar em coisas como essa? — Deu um leve sorriso para ele, e acrescentou: — Mas estou contente por você gostar de meu penteado. Lavo os meus cabelos com óleo de coco uma vez por semana.

À lembrança de sua outra vida, seus olhos ficaram brilhantes. Ela baixou a cabeça para as mãos algemadas, a fim de esconder as lágrimas. Sussurrou quase para si mesma: — Tentarei ser brava. Tudo estará bem, desde que você esteja lá.

Bond aconchegou-se a ela. Levantou suas mãos algemadas até a altura dos olhos e examinou as algemas. Eram do tipo usado pela polícia norte-americana. Contraiu sua mão esquerda, a mais fina das duas, e tentou fazê-la deslizar pelo anel de aço. Mesmo o suor de sua pele de nada adiantou. Era inútil.

Os dois homens sentavam-se em seus bancos de ferro, indiferentes, e com as costas voltadas para eles. Sabiam que dominavam inteiramente a situação. Não havia possibilidade de que Bond oferecesse qualquer incômodo. Não poderia levantar-se ou dar o necessário impulso aos seus punhos para causar qualquer mal às cabeças de seus adversários, utilizando as algemas. Se conseguisse abrir a porta e pular para a água, o que lograria com isso? Imediatamente eles sentiriam a brisa fresca, nas costas, e parariam a máquina para queimá-lo na água ou içá-lo novamente. Bond aborrecia-se em pensar que os homens pouco se preocupavam com ele, pois sabiam tê-lo completamente em seu poder. Também não gostou da idéia de que aqueles homens eram bastante inteligentes para saber que ele não representava nenhuma ameaça. Indivíduos mais estúpidos teriam ficado em cima deles, de revólver em punho, tê-los-iam surrado, a ele e à jovem, barbaramente, e talvez os tivessem deixado inconscientes. Aqueles dois conheciam o ofício. Eram profissionais, ou tinham sido treinados para o serem.

Os dois homens não falaram. Não houve nenhum comentário sobre o quão hábil eles tinham sido, ou quanto ao seu cansaço ou destino. Apenas dirigiam a máquina serenamente, ultimando com eficiência a sua tarefa.

Bond continuava sem a mínima idéia do que seria aquilo. Sob a tinta negra e dourada, assim como sob o resto daquela fantasia, a máquina parecia uma espécie de trator, como ele nunca vira. Não tinha conseguido descobrir nomes de marcas comerciais, nos pneumáticos, pois estivera muito escuro, mas certamente que deveriam ser de borracha sólida ou porosa. Atrás havia um pequena roda para dar estabilidade ao conjunto. Uma espécie de barbatana de ferro fora ainda acrescentada e pintada também de preto e ouro, a fim de ajudar a dar a aparência de dragão. Os altos pára-lamas tinham sofrido um prolongamento, na forma de curtas asas voltadas para trás. Uma comprida cabeça de dragão, feita em metal, fora fixada ao radiador e os faróis receberam pontos centrais negros, para parecerem olhos. Era tudo, sem falar da cabina que fora recoberta com uma cúpula blindada e dotada de um lança-chamas. Era, como pensara Bond, um trator preparado para assustar e queimar — embora não pudesse atinar porque estava dotado de um lança-chamas e não de uma metralhadora. Era, evidentemente, a única espécie de veículo que poderia percorrer a ilha. Suas gigantescas rodas podiam avançar sobre os mangues, pântanos e ainda atravessar o lago raso. Galgaria também os agrestes planaltos de coral e, desde que andasse à noite, o calor experimentado na cabina seria pelo menos tolerável.

Bond ficara impressionado. Impressionado pelo toque de profissionalismo. O Dr. No era sem dúvida um homem que se preocupava intensamente com as coisas. Em pouco iria encontrá-lo. E em breve estaria diante do segredo do Dr. No. Então, o que aconteceria? Bond sorriu amargamente. Sim, não o deixariam sair dali com o seu conhecimento. Certamente seria morto, a menos que pudesse fugir ou conseguir a sua liberdade por meios persuasivos. E o que aconteceria à jovem? Poderia ele provar sua inocência e conseguir com que ela fosse poupada? Possivelmente, mas nunca mais ela teria permissão para deixar a ilha. Ali teria de ficar para o resto da vida, como amante ou mulher de um dos homens, ou do próprio Dr. No, se ela o impressionasse.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um trecho do percurso mais difícil, como se podia sentir pela trepidação. Tinham atravessado o lago e estavam no caminho que levava para o alto da montanha, junto às cabanas. A cabina vibrava e a máquina começou a galgar o terreno. Dentro de cinco minutos estariam lá.

O ajudante do motorista olhou por sobre o ombro para Bond e a jovem. Bond sorriu confiantemente para ele dizendo: Você receberá uma medalha por isso.

Os olhos amarelos e marrons olharam impassivelmente dentro dos dele, enquanto os lábios arroxeados e oleosos se fenderam num sorriso no qual havia um ódio repousado: Feche a boca, se... Depois, deu-lhe as costas.

A jovem tocou-o com o cotovelo e sussurrou: — Por que eles são tão rudes? Por que nos odeiam tanto?

Bond esboçou um sorriso e disse: — Acho que é porque lhes causamos medo. Talvez ainda estejam com medo, e isto porque não parecemos ter medo deles. Devemos mantê-los assim.

A jovem aconchegou-se a ele e disse: — Tentarei.

Agora a subida estava-se tornando mais íngreme. Uma luz azul-acinzentada atravessava as frestas da armadura. A madrugada se aproximava. Fora, em breve estaria começando mais um dia de calor abrasador, de execrável vento, carregado com o cheiro de gás dos pântanos. Bond pensou em Quarrel, o bravo gigante que não mais veria aquele dia, e com o qual eles deveriam agora estar caminhando através dos pauis de mangues. Quarrel tinha pressentido a morte, mas apesar disso tinha acompanhado Bond sem qualquer objeção. Sua fé em Bond tinha sido maior do que o seu medo. E Bond tinha-lhe faltado. Seria ele ainda o causador da morte da jovem?

O motorista esticou o braço em direção ao painel e na parte dianteira do veículo fez-se ouvir o breve zunido de uma sirena de polícia, que foi desaparecendo num gemido fúnebre. Mais um minuto e o veículo parava, continuando o motor em regime neutro. O homem apertou um interruptor e tirou um microfone de um gancho, a seu lado. Falou por aquele microfone e Bond pôde ouvir a sua voz aumentada, do lado de fora, por um altofalante. — Tudo bem. Apanhamos o inglês e a garota. O outro homem morreu. Isso é tudo. Abram. — Bond ouviu que uma porta se deslocava para o lado, sobre rolamentos. O motorista embreou e eles avançaram lentamente para a frente, parando alguns metros adiante. O motorista desligou o motor. Ouviu-se o ruído metálico da tranca e a porta foi aberta pelo lado de fora. Uma lufada de ar fresco e uma luz mais brilhante penetraram na cabina. Várias mãos agarraram Bond e arrastaram-no para trás, até um chão de cimento. Bond agora estava de pé e sentia o cano de um revólver encostado ao seu flanco. Uma voz disse: — Fique onde está. Nada de espertezas. — Bond olhou para o homem. Era mais um chinês negro, do mesmo tipo que os outros. Os olhos amarelos examinaram-no com curiosidade. Bond virou-se com indiferença. Outro homem estava cutucando a jovem com a arma. Bond disse asperamente: — Deixe a garota em paz! Em seguida, caminhou e pôs-se ao lado da jovem. Os dois homens pareceram surpresos. Deixaram-se ficar de pé, apontando as armas com hesitação.

Bond olhou à volta. Estavam numa das cabanas pré-fabricadas que ele vira do rio. Era ao mesmo tempo uma garagem e uma oficina. O “dragão” tinha sido colocado sobre um fosso de vistoria, no chão de concreto. Um motor de popa desmontado estava sobre uma das bancadas. Longos tubos de luz fluorescente estavam afixados ao teto e o ambiente estava impregnado do cheiro de óleo e fumaça de exaustor. O motorista e o seu companheiro examinavam a máquina. Em seguida deram alguns passos pelo galpão, como se andassem sem propósito.

Um dos guardas anunciou: — Enviei a mensagem. A ordem é que eles sejam levados. Foi tudo bem?

O ajudante de motorista, que parecia o homem mais responsável, ali presente, disse: — Sem dúvida. Alguns disparos. Os faróis foram partidos. Talvez haja alguns furos nos pneumáticos. Ponha os rapazes em ação — uma vistoria completa. Conduzirei esses dois e tirarei um cochilo. — E, voltando-se para Bond: — Bem, vamos andando — e indicou o caminho que saía do longo galpão.

Bond disse: — Vá andando você; e cuidado com os modos. Diga àqueles macacos que tirem as armas de cima de nós. Podem disparar por engano. Parecem bastante idiotas.

O homem se aproximou, e os outros os acompanharam logo atrás. O ódio brilhava em seus olhos. O chefe levantou o punho cerrado, tão grande quanto um pequeno malho e chegou-o à altura do nariz de Bond. Procurava controlar-se com esforço, e disse: — Ouça, senhor. Às vezes, nós, os rapazes, temos permissão para participar da festa final. Estou rezando para que essa seja uma dessas vezes. Certa ocasião fizemos com que a coisa durasse toda uma semana. E se eu o pego...

Riu e os seus olhos brilharam com crueldade. Olhou para o lado de Bond, fixando a garota. Seus olhos pareciam transformados em bocas que agitavam os lábios. Enfiou as mãos nos bolsos laterais das calças. A ponta de sua língua mostrava-se muito vermelha, entre os lábios arroxeados. Voltando-se para os companheiros disse: — Que tal, rapazes?

Os três homens estavam olhando também para a jovem. Fizeram um sinal de assentimento, como crianças diante de uma árvore de Natal.

Bond desejou atirar-se como um louco sobre eles, golpeando as suas caras com os punhos algemados e aceitando a sua vingança sangrenta. Não fosse pela jovem, bem que o teria feito. Mas tudo o que tinha conseguido com suas corajosas palavras fora amedrontá-la. Disse apenas: — Muito bem, muito bem. Vocês são quatro e nós somos dois, ainda por cima com as mãos atadas. Vamos, não queremos atingi-los. Apenas não nos empurrem muito de um lado para outro. O Dr. No poderia não ficar satisfeito.

Àquele nome, os rostos dos homens se modificaram. Três pares de olhos passaram apàticamente de Bond para o chefe. Por um segundo, este olhou com desconfiança para Bond, intrigado, tentando descobrir se Bond teria alguma influência junto ao Dr. No. Sua boca abriu-se para dizer algo, mas logo pareceu pensar melhor, e apenas disse de maneira incerta: — Bem, bem, estávamos simplesmente brincando. — Voltou-se para os homens, em busca de confirmação: — Não é?

— Sem dúvida, sem dúvida! — foi a resposta dada por um coro áspero, e os homens desviaram o olhar.

O chefe disse com mau humor: — Por aqui, senhor. — E ele mesmo pôs-se a caminho, percorrendo o comprido galpão.

Bond segurou o pulso da jovem e seguiu o chefe. Estava impressionado com a reação causada naqueles homens pelo nome do Dr. No. Aquilo era alguma coisa a lembrar se eles tivessem que se haver novamente com aquela turma.

O homem chegou a uma porta de madeira situada na extremidade do galpão. Ao lado havia um botão de campainha que ele pressionou duas vezes e esperou. Ouviu-se um estalido e a porta se abriu, mostrando dez metros de uma passagem rochosa, mas atapetada e que ia dar, na outra extremidade, em outra porta mais elegante e pintada de creme.

O homem ficou de lado. Siga em frente, senhor — disse; — bata na porta e será atendido pela recepcionista. — Não havia nenhuma ironia em sua voz e seus olhos se mostravam impassíveis.

Bond conduziu Honey pela passagem. Ouviu que a porta se fechava às suas costas. Deteve-se por um momento e fitou-a, perguntando-lhe: — E agora?

Ela riu, trêmula, mas respondeu: — Ê bom sentir-se tapete sob os pés.

Bond apertou o seu pulso. Andou até a porta pintada de creme e bateu.

A porta abriu-se e Bond entrou com a jovem ao lado. Quando se deteve instantaneamente, não chegou a perceber o encontrão que lhe dava a jovem, pois continuou estarrecido.


XIII - GAIOLA DE OURO


Era a espécie de sala de recepção que as maiores corporações norte-americanas possuem no andar em que se situa o escritório do presidente, em seus arranha-céus de Nova Iorque. Suas proporções eram agradáveis, com cerca de vinte pés quadrados. O chão era todo recoberto pelo mais espesso tapete Wilton cor-de-vinho. O teto e as paredes estavam pintados numa suave tonalidade cinza pombo. Viam-se ainda reproduções litográficas de esboços de balé de Degas penduradas em séries, nas paredes, e a iluminação era feita com altos e modernos jogos de abajures de seda verde-escuro, imitando a forma de elegantes barricas.

À direita de Bond estavam uma larga mesa de mogno, com o tampo recoberto com couro verde, outras peças que se harmonizavam perfeitamente com a mesa, e um caro sistema de intercomunicações. Duas cadeiras altas, de antiquado, aguardavam os visitantes. Do outro lado da sala via-se uma mesa do tipo refeitório, sobre a qual estavam várias revistas com capas em cores vivas e mais duas cadeiras. Tanto na mesa de escritório, como na outra, viam-se vasos de hibiscos. O ar era fresco e impregnado de leve fragrância.

Duas mulheres estavam naquela sala. Por trás da mesa de trabalho, empunhando uma caneta que descansava sobre um formulário impresso, estava sentada uma jovem chinesa, de aspecto eficiente, com óculos de armação de chifre, sob uma franja de cabelos negros cortados curtos. Em seus olhos e em sua boca havia o sorriso padrão de boas-vindas que qualquer recepcionista exibe — a um tempo claro, obsequioso e inquisitivo.

Ainda com a mão na maçaneta da porta pela qual eles tinham passado, e esperando que os recém-chegados se adiantassem mais, a fim de que ela a pudesse fechar, estava uma mulher mais velha, com aspecto de matrona, e que deveria ter cerca de quarenta e cinco anos. Era fácil ver-se que também tinha sangue chinês. Sua aparência, saudável, de farto busto, era viva e quase excessivamente graciosa. O seu “pince-nez” de lentes cortadas em quadrado brilhava com o desejo da recepcionista de os pôr à vontade.

Ambas as mulheres vestiam roupas imaculadamente alvas, com meias brancas e sapatos de camurça branca como costumam apresentar-se as auxiliares empregadas nos mais luxuosos salões de beleza norte-americanos. Havia um que de suave e pálido em suas peles, como se elas raramente saíssem para o ar-livre.

Bond observou o ambiente, enquanto a mulher junto à porta lhe dizia frases convencionais de boas-vindas, como se eles tivessem sido colhidos por uma tempestade o chegado com atraso a uma festa.

— Oh, coitados! Nós não sabíamos quando vocês iriam chegar. A todo momento nos diziam que vocês já estavam a caminho... primeiro à hora do chá, ontem, depois na hora do jantar, e apenas há uma hora fomos informadas de que vocês chegariam à hora do desjejum. Devem estar com fome. Venham aqui e ajudem a irmã Rosa a preencher o formulário; depois eu os prepararei para a cama. Devem estar muito cansados.

Ia dizendo aquilo com voz doce e cacarejante, ao mesmo tempo que fechava a porta e os levava para junto da mesa e os fazia sentar nas cadeiras. Depois disse: — Bem, eu sou a irmã Lírio, e esta é a irmã Rosa. Ela irá fazer-lhes apenas algumas perguntas. Agora, aceitam um cigarro? — e pegou uma caixa de couro trabalhado que estava em cima da mesa. Abriu-a e pô-la diante deles. A caixa tinha três divisões, e a chinesinha explicou apontando com um dedo: “Esses são americanos, esses são ingleses e esses turcos.” Ela apanhou um luxuoso isqueiro de mesa e esperou.

Bond estendeu as mãos algemadas para tirar um cigarro turco.

A irmã Lírio deu um gritinho de espanto: — Oh, mas francamente. — Parecia sinceramente embaraçada. — Irmã Rosa, dê-me a chave, depressa. Já disse por várias vezes que os pacientes não devem ser trazidos dessa maneira. — Havia impaciência e aborrecimento em sua voz. — Francamente, aquela gente lá de fora! Já era tempo que eles fossem chamados à ordem.

A irmã Rosa estava tão embaraçada quanto a irmã Lírio. Rapidamente remexeu dentro de uma gaveta e entregou uma chave à irmã Lírio, que com muitas desculpas e cheia de dedos abriu os dois pares de algemas e, afastando-se para trás da mesa, deixou aquelas duas pulseiras de aço caírem dentro da cesta de papéis como se fossem ataduras sujas.

— Obrigado, — disse Bond, que não sabia como enfrentar aquela situação, a não ser procurando desempenhar um papel qualquer na comédia que se estava representando. Ele estendeu o braço, apanhou um cigarro e acendeu-o. Lançou um olhar para Honeyehile Rider, que parecia estonteada e nervosamente apertava com as mãos os braços de sua cadeira. Bond dirigiu-lhe um sorriso de conforto.

— Agora, por favor; — disse a irmã Rosa e inclinou-se sobre um comprido formulário impresso em papel caro. — Prometo ser o mais rápida que puder. O seu nome, sr... sr...

— Bryce, John Bryce.

Ela escreveu a resposta com grande concentração. — Endereço permanente?

— Aos cuidados do Jardim Zoológico Real, Regents Park, Londres, Inglaterra.

— Profissão?

— Ornitologista.

— Oh, meu Deus!, poderia o senhor soletrar isso? Bond atendeu-a.

— Muito obrigada. Agora, vejamos, objeto da viagem?

— Aves — respondeu Bond. — Sou também representante da Sociedade Audubon de Nova Iorque. Eles arrendaram parte desta ilha.

— Oh, sem dúvida. — Bond observou que a pena escrevia exatamente o que ele dizia. Depois da última palavra ela pôs um claro ponto de interrogação entre parênteses.

— E — a irmã Rosa sorriu polidamente em direção a Honeyehile — a sua esposa? Ela também está interessada em pássaros?

— Sim, sem dúvida.

— O seu primeiro nome?

— Honeyehile.

A irmã Rosa estava encantada. — Que nome lindo! — Ela voltou a escrever apressadamente. — E agora os parentes mais próximos de ambos, e estará tudo acabado.

Bond deu o verdadeiro nome de M como o parente mais próximo de ambos. Apresentou-o como “tio” e indicou o seu endereço como sendo “Diretor-Gerente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres.”

A irmã Rosa acabou de escrever e disse: — Pronto, está tudo feito. Muito obrigada, sr. Bryce, e espero que ambos apreciem a permanência aqui.

— Muito obrigado. Estou certo de que apreciaremos. — Bond levantou-se e Honeyehile fez o mesmo, ainda com expressão vazia.

A irmã Lírio disse: — Agora, venham comigo, queridos.

— Ela caminhou até uma porta na parede distante e deteve-se com a mão na maçaneta talhada em vidro. — Oh, meu Deus, — disse —, não é que agora me esqueci do número de seus quartos? É o apartamento creme, não é, irmã?

— Isso mesmo. Catorze e quinze.

— Obrigada, querida. E agora — ela abriu a porta — se vocês quiserem me seguir... Receio que seja uma caminhada um pouco longa. — Fechou a porta, por trás deles, e pôs-se à frente, indicando o caminho. — O Doutor tem falado várias vezes em instalar uma dessas escadas rolantes, ou algo de parecido, mas sabem como são os homens ocupados: — Ela riu alegremente. — Ele tem tantas outras coisas em que pensar!

— Sim, acredito, — disse Bond polidamente.

Bond tomou a mão da jovem e seguiram ambos a maternal e agitada chinesa através de cem metros de um alto corredor, do mesmo estilo da sala de recepção, mas que era iluminado a freqüentes intervalos por caros tubos luminosos fixados às paredes.

Bond respondia com polidos monossílabos aos comentários ocasionais que a irmã Lírio lhe lançava por sobre os ombros. Toda a sua mente se concentrava nas extraordinárias circunstâncias de sua recepção. Tinha certeza de que aquelas duas mulheres tinham sido sinceras. Nenhum só olhar ou palavra conseguira registrar que estivesse fora de propósito. Evidentemente aquilo era alguma espécie de fachada, mas de qualquer forma uma fachada sólida, meticulosamente apoiada pelo cenário e pelo elenco. A ausência de ressonância, na sala, e agora no corredor, estava a indicar que eles tinham deixado o galpão pré-fabricado para se internarem no flanco da montanha e agora estavam atravessando a sua base. Segundo o seu palpite estavam mesmo andando em direção oeste — em direção à penedia na qual terminava a ilha. Não havia umidade nas paredes e o ar parecia fresco e puro, com uma brisa a afagá-los. Muito dinheiro e uma bela realização de engenharia tinham sido os responsáveis por aquilo. A palidez das duas mulheres estava a sugerir que passavam a maior parte do tempo internadas no âmago da montanha. Do que a irmã dissera, parecia que elas faziam parte de um grupo de funcionários internos que nada tinham a ver com o destacamento de choque do exterior, e que talvez não soubessem a espécie de homens que eles eram.

Aquilo era grotesco, concluiu Bond ao se aproximar de uma porta, na extremidade do corredor, perigosamente grotesco, mas em nada adiantava pensar nisso no momento. Ele apenas podia seguir o papel que lhe tinha sido destinado. Pelo menos, aquilo era melhor do que os bastidores, na arena exterior da ilha.

Junto à porta, a irmã Lírio fez soar uma campainha. Já eram esperados e a porta abriu-se imediatamente. Uma encantadora jovem chinesa, de quimono lilás e branco, ficou a sorrir e a curvar-se, como se deve esperar que o façam as jovens chinesas. E, mais uma vez só havia calor e um sentimento de boas-vindas naquele rosto pálido como uma for. A irmã Lírio exclamou: — Aqui estão eles, finalmente, May! São o senhor e a senhora John Bryce. E sei que ambos devem estar exaustos, por isso devemos levá-los imediatamente aos seus aposentos, para que possam repousar e dormir. — Voltando-se para Bond: — Esta é May, muito boazinha. Ela tratará de ambos. Qualquer coisa que queiram é só tocar a campainha que May atenderá. É uma espécie de favorita de todos os nossos hóspedes.

Hóspedes!, pensou Bond. Essa é a segunda vez que ela usa a palavra. Sorriu polidamente para a jovem, e disse;

— Muito prazer; sim, certamente que gostaríamos de ir para os nossos aposentos.

May envolveu-os num cálido sorriso, e disse em voz baixa e atraente: — Espero que ambos se sintam bem, sr. Bryce. Tomei a liberdade de mandar vir uma refeição assim que soube que os senhores iam chegar. Vamos...? — Corredores saiam para a esquerda e a direita de portas duplas de elevadores, instalados na parede oposta. A jovem adiantou-se, caminhando na frente, para a direita, logo seguida de Bond e Honeyehile, que tinham atrás a irmã Lírio.

Ao longo do corredor, dos dois lados, viam-se portas numeradas. A decoração era feita no mais pálido cor-de-rosa, com um tapete cinza-pombo. Os números nas portas eram superiores a dez. O corredor terminava abruptamente, com duas portas, uma em frente a outra, com a numeração catorze e quinze. A irmã May abriu a porta catorze e o casal a seguiu, entrando na peça.

Era um lindo quarto de casal, em moderno estilo Mia-mi, com paredes verde-escuro, chão encerado de mogno escuro, com um ou outro espesso tapete branco e bem desenhado mobiliário de bambu com um tecido “chintz” de grandes rosas vermelhas sobre fundo branco. Havia uma porta de comunicação para um quarto de vestir masculino e outra que dava para um banheiro moderno e extremamente luxuoso, com uma banheira de descida e um bidê.

Era como se tivessem sido introduzidos num apartamento do mais moderno hotel da Flórida, com exceção de dois detalhes que não passaram despercebidos a Bond. Não havia janelas e nenhuma maçaneta interior nas portas.

May olhou com expressão de expectativa, de um para o outro.

Bond voltou-se para Honeyehile e sorriu-lhe: — Parece muito confortável, não acha, querida?

A jovem brincava com a barra da saia e fez um sinal de assentimento sem olhar para Bond.

Ouviu-se uma tímida batida na porta e outra jovem, tão linda quanto May, entrou carregando uma bandeja que se equilibrava sobre as palmas das mãos. A jovem descansou a bandeja sobre a mesa do centro e puxou duas cadeiras. Retirou a toalha de linho imaculadamente limpa e saiu. Sentiu-se um delicioso cheiro de fiambre e café.

May e a irmã Lírio também se encaminharam para a porta. A mulher mais idosa se deteve por um instante e disse:

— E agora nós os deixaremos em paz. Se desejarem alguma coisa, basta tocar a campainha. Os interruptores estão ao lado da cama. Ah, outra coisa, poderão encontrar roupa limpa nos aparadores. Receio que sejam apenas de estilo chinês,

— acrescentou, como a desculpar-se —, mas espero que os tamanhos satisfaçam. A rouparia só recebeu as medidas ontem à noite. O Dr. deu ordens severas para que os senhores não fossem perturbados. Ficará encantado se puderem reunir-se a ele, esta noite, para o jantar. Deseja, entretanto, que tenham todo o resto do dia à vontade, a fim de que melhor se ambientem, compreendem? — Fez uma pausa e olhou para um e para outro, com um sorriso indagador. — Posso dizer que os senhores...?

— Sim, por favor, — disse Bond. — Pode dizer ao D., que teremos muito prazer em jantar com ele.

— Oh, sei que ficará contente. — Com uma derradeira mesura, as duas chinesas se retiraram e fecharam a porta.

Bond voltou-se para Honeyehile, que parecia embaraçada e ainda evitava os seus olhos. Ocorreu então a Bond que talvez jamais tivesse ela tido um tratamento tão cortês ou visto tanto luxo em sua vida. Para ela, tudo aquilo devia ser muito mais estranho e aterrador do que o que tinham passado ao lado de fora. Ela continuou na mesma posição, brincando com a barra da saia. Podiam-se notar vestígios de suor seco, sal e poeira em seu rosto. Suas pernas nuas estavam sujas e Bond observou que os dedos de seus pés se moviam, suavemente, ao pisarem nervosamente o maravilhoso e espesso tapete.

Bond riu. Riu com gosto ao pensamento de que os temores da jovem tivessem sido abafados pelas preocupações de etiqueta e comportamento, e riu-se também da figura que ambos faziam — ela em farrapos e ele com a suja camisa azul, as calças pretas e os sapatos de lona enlameados.

Aproximou-se dela e segurou-lhe mãos. Estavam frias. Disse: — Honey, somos um par de espantalhos, mas há apenas um problema básico. Devemos tomar o nosso desjejum primeiro, enquanto está quente, ou tiraremos antes esses farrapos e tomaremos um banho, tomando a nossa refeição fria? Não se preocupe com mais nada. Estamos aqui nessa maravilhosa casinha e isto é tudo o que importa. O que faremos, então?

Ela sorriu hesitante. Seus olhos azuis fixavam-se no rosto dele, na ânsia de obter segurança. Depois disse: — Você não está preocupado com o que nos possa acontecer? — Fez um sinal para o quarto e acrescentou: — Não acha que tudo isso pode ser uma armadilha?

— Se se trata de uma armadilha, já caímos nela. Agora nada mais podemos fazer senão comer a isca. A única questão que subsiste é a de saber se a comeremos quente ou fria. — Apertou-lhe as mãos e continuou: — Seriamente, Honey. Deixe as preocupações comigo. Pense apenas onde estávamos apenas há uma hora. Isso aqui não é melhor? Agora, decidamos a única coisa realmente importante. Banho ou desjejum?

Ela respondeu com relutância: — Bem, se você acha... Quero dizer — preferiria antes lavar-me. — Mas logo acrescentou: — Você terá que ajudar-me. — E sacudiu a cabeça em direção ao banheiro, dizendo: Não sei como mexer numa coisa dessas. Como é que se faz?

Bond respondeu com toda seriedade: — É muito fácil. Vou preparar tudo para você. Enquanto você estivar tomando o seu banho tomarei o meu desjejum. Ao mesmo tempo tratarei de fazer com que o seu não esfrie.

Bond aproximou-se de um dos armários embutidos e abriu a porta. No interior havia uma meia dúzia de quimonos, alguns de seda e outros de linho. Apanhou um de linho, ao acaso. Depois, voltando-se para ela, disse: — Tire suas roupas e meta-se nisso aqui, enquanto preparo o seu banho. Mais tarde você escolherá as coisas que preferir, para a cama e para o jantar.

Ela respondeu com gratidão: — Oh, sim, James. Se você apenas me mostrasse... — E logo começou a desabotoar a saia.

Bond pensou em tomá-la nos braços e beijá-la, mas, ao invés disso, disse abruptamente: — ótimo, Honey — e, adiantando-se para o banheiro, abriu as torneiras.

Havia de tudo naquele banheiro: essência para banhos Floris Lime, para homens, e pastilhas de Guarlain para o banho de senhoras. Esfarelou uma pastilha na água e imediatamente o banheiro perfumou-se como uma loja de orquídeas. O sabonete era o Sapoceti de Guarlain “Fleurs des Alpes”. Num pequeno armário de remédios, atrás de um espelho, em cima da pia, podiam-se encontrar tubos de pasta, escovas de dente e palitos “Steradent”, água “Rose” para lavagem bucal, aspirina e leite de magnésia. Havia também um aparelho de barbear elétrico, loção “Lentheric” para barba, e duas escovas de náilon para cabelos e pentes. Tudo era novo e ainda não tinha sido tocado.

Bond olhou para o seu rosto sujo e sem barbear, no espelho, e riu sardonicamente para os próprios olhos, cinzentos, de pária queimado pelo sol. O revestimento da pílula certamente que era do melhor açúcar. Seria inteligente esperar que o remédio, no interior daquela pílula, fosse dos mais amargos.

Tocou a água, com a mão, a fim de sentir a temperatura. Talvez estivesse muito quente para quem jamais tinha tomado antes um banho quente. Deixou então que corresse um pouco mais de água fria. Ao inclinar-se, sentiu que dois braços lhe eram passados em torno do pescoço. Endireitou-se. Aquele corpo dourado resplandecia no banheiro todo revestido de ladrilhos brancos. Ela beijou-o impetuosamente nos lábios. Ele passou-lhe os braços à volta da cintura e esmagou-a de encontro a seu corpo, com o coração aos pulos. Ela disse sem fôlego, ao seu ouvido: — Achei estranhas as roupas chinesas, mas de qualquer maneira você disse à mulher que nós éramos casados.

Uma das mãos de Bond estava pousada sobre o seu seio esquerdo, cujo mamilo estava completamente endurecido pela paixão. O ventre da jovem se comprimia contra o seu. Por que não? Por que não? Não seja tolo! Este é um momento louco para isso. Vocês dois estão diante de um perigo mortal. Você deve continuar frio como gelo, para ter alguma possibilidade de se livrar dessa enrascada. Mais tarde! Mais tarde! Não seja fraco.

Bond retirou a mão do seio dela e espalmou-a à volta de seu pescoço. Esfregou o rosto de encontro ao dela e depois aproximou a boca da boca da jovem e deu-lhe um prolongado beijo.

Afastou-se depois e manteve-a à distância de um braço. Por um momento ambos se olharam, com os olhos brilhando de desejo. Ela respirava ofegantemente, com os lábios entreabertos, de modo que ele podia ver-lhe o brilho dos dentes. Ele disse com a voz trêmula: — Honey, entre no banho antes que eu lhe dê uma surra.

Ela sorriu e sem nada dizer entrou na banheira e deitou-se em todo seu comprimento. Do fundo da banheira ergueu os olhos para ele. Os cabelos louros, em seu corpo, brilhavam como moedas de ouro. Ela disse provocadoramente: — Você tem que me esfregar. Não sei como devo fazer, e você terá que mostrar-me.

Bond respondeu desesperadamente: — Cale a boca, Honey, e deixe de namoros. Apanhe a esponja, o sabonete e comece logo a se esfregar. Que diabo! Isso não é o momento de se fazer amor. Vou tomar o meu desjejum. — Esticou a mão para a porta e segurou na maçaneta. Ela disse docemente: — James! — Ele olhou para trás e viu que ela lhe fazia uma careta, com a língua de fora. Retribuiu com uma careta selvagem e bateu a porta com força.

Em seguida, Bond dirigiu-se para o quarto de vestir e deixou-se ficar durante algum tempo, de pé, no centro da peça, esperando que as batidas de seu coração se acalmassem. Esfregou as mãos no rosto e sacudiu a cabeça, procurando esquecê-la.

Para clarear a mente, percorreu ainda cuidadosamente as duas peças, procurando saídas, possíveis armas, microfones, qualquer coisa enfim que lhe aumentasse o conhecimento da situação em que se achava. Nada disso, entretanto, pôde encontrar. Na parede havia um relógio elétrico que marcava oito e meia e uma série de botões de campainhas, ao lado da cama de casal. Esses botões traziam a indicação de “Sala de serviço”, “cabeleireiro”, “manicure”, “empregada”. Não havia telefone. Bem no alto, a um canto de ambas as peças, viam-se as grades de um pequeno ventilador. Cada uma dessas grades era de dois pés quadrados. Tudo inútil. As portas pareciam ser feitas de algum metal leve, pintadas para combinarem com as paredes. Bond jogou todo o peso de seu corpo contra uma delas, mas ela não cedeu um só milímetro. Bond esfregou o ombro. Aquele lugar era uma verdadeira prisão. Não adiantava discutir a situação. A armadilha tinha-se fechado hermèticamente sobre eles. Agora, a única coisa que restava aos ratos era tirarem o melhor proveito possível da isca de queijo.

Bond sentou-se à mesa do desjejum, sobre a qual estava uma grande jarra com suco de abacaxi, metida num pequeno balde de prata cheio de cubos de gelo. Serviu-se rapidamente e levantou a tampa de uma travessa. Ali estavam ovos mexidos sobre torradas, quatro fatias de toucinho defumado, um rim grelhado e o que parecia quatro salsichas inglesas de carne de porco. Havia também duas torradas quentes, pãezinhos conservados quentes dentro de guardanapos, geléia de laranja e morango e mel. O café estava quase fervendo numa grande garrafa térmica, e o creme exalava um odor fresco e agradável.

Do banheiro vinham as notas da canção “Marion” que a jovem estava cantarolando. Bond resolveu não dar ouvidos à cantoria e concentrou-se nos ovos.

Dez minutos depois, Bond ouviu que a porta do banheiro se abria. Descansou uma torrada que tinha numa das mãos e cobriu os olhos com a outra. Ela riu e disse: — Ele é um covarde. Tem medo de uma simples jovem. — Em seguida Bond ouviu-a a remexer nos armários. Ela continuava falando, em parte consigo mesma: — Não sei porque ele está assustado. Naturalmente que se eu lutasse com ele facilmente o dominaria. Talvez esteja com medo disso. Talvez não seja realmente muito forte, embora seus braços e peito pareçam bastante rijos. Contudo, ainda não vi o resto. Talvez seja fraco. Sim, deve ser isso. Essa é a razão pela qual não ousa despir-se na minha frente. Hum, agora vamos ver, será que ele gostaria de mim com essas roupas? — Ela elevou a voz: — Querido James, você gostaria de me ver de branco, com pássaros azul-pálido esvoaçando sobre o meu corpo?

— Sim, bolas! Agora acabe com essa conversa e venha comer. Estou começando a sentir sono.

Ela soltou uma exclamação: — Oh, se você quer dizer que já está na hora de irmos para a cama, naturalmente que me apressarei.

Ouviu-se uma agitação de passos apressados e Bond logo a via sentar-se diante de si. Ele deixou cair as mãos e ela sorriu-lhe. Estava linda. Seu cabelo estava escovado e penteado de um dos lados caindo sobre o rosto, e do outro com as madeixas puxadas para trás da orelha. Sua pele brilhava de frescura e os grandes olhos azuis resplandeciam de felicidade. Agora Bond estava gostando daquele nariz quebrado. Tinha-se tornado parte de seus pensamentos relativamente a ela, e subitamente lhe ocorreu perguntar-se por que estaria ele triste quando ela era tão imaculadamente bela quanto tantas outras lindas jovens. Sentou-se circunspectamente, com as mãos no colo, e a metade dos seios aparecendo na abertura do quimono.

Bond disse severamente: — Agora, ouça, Honey. Você está maravilhosa, mas esta não é a maneira de usar-se um quimono. Feche-o no corpo, prenda-o bem e deixe de tentar parecer uma prostituta. Isso simplesmente não são bons modos à mesa.

— Oh, você não passa de um boneco idiota. — E ajeitou o quimono, fechando-o um pouco, em uma ou duas polegadas. — Por que você não gosta de brincar? Gostaria de brincar de estar casada.

— Não à hora do desjejum — respondeu Bond com firmeza. — Vamos, coma logo. Está delicioso. De qualquer maneira estou muito sujo, e agora vou fazer a barba e tomar um banho. — Levantou-se, deu volta à mesa e beijou-lhe o alto da cabeça. — E quanto a essa história de brincar, como você diz, gostaria mais de brincar com você do que com qualquer outra pessoa do mundo. Mas não agora. — Sem esperar pela resposta, dirigiu-se ao banheiro e fechou a porta.

Bond barbeou-se e tomou um banho de chuveiro. Sentia-se desesperadamente sonolento. O sono chegava-lhe, de modo que de quando em quando tinha que interromper o que fazia e inclinar a cabeça, repousando-a entre os joelhos. Quando começou a escovar os dentes, o seu estado era tal que mal podia fazê-lo. Estava começando a reconhecer os sintomas. Tinha sido narcotizado. A coisa teria sido posta no suco de abacaxi ou no café? Este era um detalhe sem importância. Aliás, nada tinha importância. Tudo o que queria fazer era estender-se naquele chão de ladrilhos e fechar os olhos. Assim mesmo, dirigiu-se cambaleante para a porta, esquecendo-se de que estava nu. Isso também pouca importância tinha. A jovem já tinha terminado a refeição e agora estava na cama. Continuou trôpego, até ela, segurando-se nos móveis. O quimono tinha sido abandonado no chão e ela dormia pesadamente, completamente nua, sob um simples lençol.

Bond olhou para o travesseiro, ao lado da jovem. Não! Procurou o interruptor e apagou as luzes. Agora teve que se arrastar pelo chão até chegar ao seu quarto. Chegou até junto de sua cama e atirou-se nela. Com grande esforço conseguiu ainda esticar o braço, tocar o interruptor e tentar apagar a lâmpada do criado-mudo. Mas não o conseguiu: sua mão deslizou, atirou o abajur ao chão e a lâmpada espatifou-se. Com um derradeiro esforço, Bond virou-se ainda no leito e adormeceu profundamente.

Os números luminosos do relógio elétrico, no quarto de casal, anunciavam nove e meia.

Às dez horas, a porta do quarto abriu-se suavemente. Um vulto muito alto e magro destacava-se na luz do corredor. Era um homem. Talvez tivesse dois metros de altura. Permaneceu no limiar da porta, com os braços cruzados, ouvindo. Dando-se por satisfeito, caminhou vagarosamente pelo quarto e aproximou-se da cama. Conhecia perfeitamente o caminho. Curvou-se sobre o leito e ouviu a serena respiração da jovem. Depois de um momento, tocou em seu próprio peito e acionou um interruptor. Imediatamente um amplo feixe de luz difusa projetou-se na cama. O farolete estava preso ao corpo do homem por meio de um cinto que o fixava à altura do esterno.

Inclinou-se novamente para a frente, de modo que a luz clareou o rosto da jovem.

O intruso examinou aquele rosto durante alguns minutos. Uma de suas mãos avançou, apanhou a orla do lençol, à altura do queixo da jovem, e puxou-o lentamente até os pés da cama. Mas a mão que puxara aquele lençol não era u’a mão. Era um par de pinças de aço muito bem articuladas na extremidade de uma espécie de talo metálico que desaparecia dentro de uma manga de seda negra. Era u’a mão mecânica.

O homem contemplou durante longo tempo aquele corpo nu, deslocando o seu peito de um lado para outro, de modo que todo o leito fosse submetido ao feixe luminoso. Depois, a garra saiu novamente de sob aquela manga e delicadamente levantou a ponta do lençol, puxando-o dos pés da cama até recobrir todo o corpo da jovem. O homem demorou-se ainda por um momento a contemplar o rosto adormecido, depois apagou o farolete e atravessou silenciosamente o quarto em direção à porta aberta, além da qual estava Bond dormindo.

O homem demorou-se mais tempo ao lado do leito de Bond. Perscrutou cada linha, cada sombra do rosto moreno e quase cruel que jazia quase sem vida, sobre o travesseiro. Observou a circulação à altura do pescoço e contou-lhe as batidas; depois, quando puxou o lençol para baixo, fez o mesmo na área do coração. Estudou a curva dos músculos, nos braços de Bond e nas coxas, e considerou pensativo a força oculta no ventre musculoso de Bond. Chegou até mesmo a curvar-se sobre a mão direita de Bond, estudando-lhe cuidadosamente as linhas da vida e do destino.

Por fim, com grande cuidado, a pinça de aço puxou novamente o lençol, desta vez para cobrir o corpo de Bond até o pescoço. Por mais um minuto o elevado vulto permaneceu ao lado do homem adormecido, depois se retirou rapidamente, ganhando o corredor, enquanto a porta se fechava com um estalido metálico e seco.


CONTINUA

XI - VIDA NO CANAVIAL


Seriam cerca de oito horas, pensou Bond. A não ser o coaxar dos sapos, tudo estava mergulhado em silêncio. No canto mais distante da clareira, ele podia vislumbrar o vulto de Quarrel.

Podia-se ouvir o tinir metálico, enquanto ele se ocupava em desmontar e secar a sua “Remington”.

Por entre as árvores podiam-se ver também as luzes distantes, vindas do depósito de guano, riscar caminhos luminosos e festivos sobre a superfície escura do lago. O desagradável vento desaparecera e o abominável cenário estava mergulhado em trevas. Estava bastante fresco. As roupas de Bond tinham secado no corpo. A comida tinha aquecido o seu estômago. Ele experimentou uma agradável sensação de conforto, sonolência e paz. O dia seguinte ainda estava muito longe e não apresentava problemas, a não ser uma boa dose de exercício físico. A vida, subitamente, pareceu-lhe fácil e boa.

A jovem estava a seu lado, metida no saco de dormir. Estava deitada de costas, com a cabeça descansando nas mãos, e olhando para o teto de estrelas. Ele apenas conseguia divisar os pálidos contornos de seu rosto. De repente, ela disse: James, você prometeu dizer-me o que significava tudo isso. Vamos. Eu não dormirei enquanto você não o disser.

Bond riu. — Eu direi se você também disser. Também quero saber o que você pretende.

— Pois não, não tenho segredos: mas você deve falar primeiro.

— Está certo. — Bond puxou os joelhos até a altura do queixo e passou os braços à volta deles. — Eu sou uma espécie de policial. Eles me enviam de Londres quando há alguma coisa de estranho acontecendo em alguma parte do mundo e que não interessa a ninguém. Bem, não faz muito tempo, um dos funcionários do Governador, em Kingston, um homem chamado Strangways, aliás meu amigo, desapareceu. Sua secretária, que era uma linda jovem, também desapareceu sem deixar vestígios. Muitos pensaram que eles tivessem fugido juntos, mas eu não acreditei nisso. Eu...”

Bond contou tudo com simplicidade, falando em homens bons e maus, como numa história de aventuras lida em algum livro. Depois terminou: Como você vê, Honey, temos de voltar a Jamaica, amanhã à noite, todos nós, na canoa, e então o Governador nos dará ouvidos e enviará um destacamento de soldados para apanhar este chinês. Espero que isso terá como conseqüência levá-lo à prisão. Ele com certeza também sabe disso, e essa é a razão pela qual procura aniquilar-nos. Essa é a história. Agora é a sua vez.

A jovem disse: Você parece viver uma vida muita excitante. Sua mulher não deve gostar que você fique fora tanto tempo. Ela não tem medo de que você se fira?

— Não sou casado. A única que se preocupa com a possibilidade de que eu me fira é a minha companhia de seguros.

Ela continuou sondando: Mas suponho que você tenha namoradas.

— Não permanentes.

— Oh!

Fez-se uma pausa. Quarrel se aproximou e disse: “Capitão, farei o primeiro quarto, se for melhor. Estarei na extremidade da restinga e virei chamá-lo à meia-noite. Então talvez o senhor possa ir até as cinco horas, quando nós nos poremos em marcha. Precisamos estar fora daqui antes que clareie o dia.

— Está bem — respondeu Bond. — Acorde-me se você vir alguma coisa. O revólver está em ordem?

— Perfeito — respondeu Quarrel com evidente mostra de contentamento. Depois, dirigindo-se à jovem disse com leve tom de insinuação: — Durma bem, senhorita. Em seguida, desapareceu silenciosamente nas sombras.

— Gosto de Quarrel — disse a jovem. E, após uma pausa: — Você quer realmente saber alguma coisa a meu respeito? A história não é tão excitante quanto a sua.

— É claro que quero. E não omita nada.

— Não há nada a omitir. Você poderia escrever toda a história de minha vida nas costas de um cartão postal. Para começar, nunca saí de Jamaica. Vivi toda a minha vida num lugar chamado Beau Desert, na costa setentrional, nas proximidades do Porto Morgan.

Bond riu. — É estranho: posso dizer o mesmo; pelo menos por enquanto. Não notei você pela região. Você vive em cima de uma árvore?

— Ah, imagino que você tenha ficado na casa da praia. Eu nunca chego até ali. Vivo na Casa Grande.

— Mas nada ficou dela. É uma ruína no meio dos canaviais.

— Eu vivo na adega. Tenho vivido ali desde a idade de cinco anos. Depois a casa se incendiou e meus pais morreram. Nada me lembro deles, por isso você não precisa manifestar pesar. A princípio vivi ali com a minha ama negra, mas depois ela morreu, quando eu tinha apenas quinze anos. Nos últimos cinco anos tenho vivido ali sozinha.

— Nossa Senhora! — Bond estava boquiaberto. — Mas não havia ninguém para tomar conta de você? Os seus pais não deixaram nenhum dinheiro?

— Nem um tostão. — Não havia o mínimo traço de amargura na voz da jovem — talvez orgulho, se houvesse alguma coisa. — Você sabe, os Riders eram uma das mais antigas famílias de Jamaica. O primeiro Rider recebera de Cromwell as terras de Beau Desert, por ter sido um dos que assinaram o veredicto de morte contra o rei Carlos. Ele construiu a Casa Grande e minha família viveu ora nela ora fora dela, desde aquela época. Mas depois veio a decadência do açúcar e eu acho que a propriedade foi pessimamente administrada, e, ao tempo em que meu pai tomou conta da herança, havia somente dívidas — hipotecas e outros ônus. Assim, quando meu pai e minha mãe morreram a propriedade foi vendida. Eu pouco me importei, pois era muito jovem. Minha ama deve ter sido maravilhosa. Quiseram que alguém me adotasse, mas a minha babá reuniu os pedaços de mobília que não tinham sido queimados e com eles nós nos instalamos da melhor forma no meio daquelas ruínas. Depois de algum tempo ninguém mais veio interferir conosco. Ela cosia um pouco e lavava para algumas freguesas da aldeia, ao mesmo tempo que plantava bananas e outras coisas, sem falar do grande pé de fruta-pão que havia diante da casa. Comíamos o que era a ração habitual do povo de Jamaica. E havia os pés de cana-de-açúcar à nossa volta. Ela fizera também uma rede para apanhar peixes, a qual nós recolhíamos todos os dias. Tudo corria bem e nós tínhamos o suficiente para comer. Ela ensinou-me a ler e escrever, como pôde. Tínhamos uma pilha de velhos livros que escapara ao incêndio, inclusive uma enciclopédia. Comecei com o A quando tinha apenas oito anos, e cheguei até o meio do T. — Ela disse um tanto na defensiva: — Aposto que sei mais do que você sobre muitas coisas.

— Estou certo de que sim. — Bond estava perdido na visão daquela jovem de cabelos de linho errando pelas ruínas de uma grande construção, com uma obstinada negra a vigiá-la e a chamá-la para receber as lições que deveriam ter sido um mistério para ela mesma. — Sua ama deve ter sido uma criatura extraordinária.

— Ela era um amor. — Era uma afirmação peremptória. — Pensei que fosse morrer quando ela faleceu. As coisas não foram tão fáceis para mim depois disso. Antes eu levava uma vida de criança, mas subitamente tive que crescer e fazer tudo por mim mesma. E os homens tentaram apanhar-me e atingir-me. Diziam que queriam fazer amor comigo. — Fez uma pausa e acrescentou: — Eu era bonita naquela época. Bond disse muito sério:

— Você é uma das jovens mais belas que já vi.

— Com este nariz? Não seja tolo.

— Você não compreende. — Bond tentou encontrar palavras nas quais ela pudesse crer. — É claro que qualquer pessoa pode ver que o seu nariz está quebrado; mas desde esta manhã dificilmente eu pude notá-lo. Quando se olha para uma pessoa, olha-se para os seus olhos ou para a sua boca. Nesses dois pontos se encontram a expressão. Um nariz quebrado não tem maior significação do que uma orelha torta. Narizes e orelhas são peças do mobiliário facial. Algumas são mais bonitas do que outras, mas não são tão importantes quanto o resto. Se você tivesse um nariz bonito, tão bonito como o resto, você seria a jovem mais bela de Jamaica.

— Você é sincero? — Sua voz era ansiosa. — Você acha que eu poderia ser bela? Sei que muita coisa em mim está bem, mas quando olho no espelho só vejo o meu nariz quebrado. Estou certa de que o mesmo ocorre com outras pessoas que são, que são — bem — mais ou menos aleijadas.

Bond disse com impaciência: — Você não é aleijada! Não diga tolices. E aliás você pode endireitá-lo mediante uma simples operação. Basta que você vá aos Estados Unidos e a coisa levará apenas uma semana.

Ela disse com irritação: — Como é que você quer que eu faça isso? Tenho cerca de quinze libras debaixo de uma pedra, na minha adega. Tenho ainda três saias, três blusas, uma faca e uma panela de peixe. Conheço muito bem essas operações. O médico de Porto Maria já pediu informações para mim. Ele é um homem muito bom e escreveu para os Estados Unidos. Pois para que a operação seja bem feita, eu teria que gastar cerca de quinhentas libras, sem falar da passagem para Nova York, a conta do hospital e tudo o mais.

Sua voz tornou-se desesperançada: — Como é que você espera que eu possa ter todo esse dinheiro?

Bond já decidira sobre o que teria de ser feito, mas no momento apenas disse ternamente: — Bem, espero que se possam encontrar meios; mas, de qualquer maneira, prossiga com a sua história. Ela é muito excitante — muito mais interessante do que a minha. Você tinha chegado ao ponto em que a sua ama morreu. O que aconteceu depois?

A jovem recomeçou com relutância.

— Bem, a culpa é sua por ter interrompido. E você não deve falar de coisas que não compreende. Suponho que as pessoas lhe digam que você é simpático. Você deve também ter todas as namoradas que desejar. Bem, isso não aconteceria se você fosse vesgo ou tivesse um lábio leporino. — Na verdade, ele pôde ouvir o sorriso em sua voz: — Acho que quando voltarmos eu irei ter com o feiticeiro para que lhe faça uma mandinga e lhe dê alguma coisa assim. — E ela acrescentou tristemente: — Dessa forma, nós seremos mais parecidos.

Bond estendeu o braço e sua mão tocou nela: — Eu tenho outros planos. Mas continuemos, quero ouvir o resto da sua história.

— Bem, — disse a jovem com um suspiro. — Eu terei que me atrasar um pouco. Como você sabe, toda a propriedade é representada pela cana-de-açúcar e pela velha casa que está situada no meio da plantação. Bem, umas duas vezes por ano eles cortam a cana e mandam-na para o moinho. E quando eles o fazem, todos os animais e insetos que vivem nos canaviais entram em pânico e a maioria deles têm as suas tocas destruídas e são mortos. Na época da safra, alguns deles começaram a vir para as ruínas da casa, onde se escondiam. No princípio, minha babá ficava aterrorizada, pois lá vinham os mangustos, as cobras e os escorpiões, mas eu preparei dois quartos da adega para recebê-los. Não me assustei com eles, e eles nunca me fizeram mal. Pareciam compreender que eu estava cuidando deles. E devem ter contado aquilo aos seus amigos, ou alguma coisa parecida, pois depois de algum tempo era perfeitamente natural que todos viessem acantonar-se em seus dois quartos, onde ficavam até que os canaviais começassem novamente a crescer, quando então iam saindo e voltando para os campos. Dei-lhes toda a comida que podíamos pôr de lado, quando eles ficavam conosco, e todos se portavam muito bem, a não ser por algum odor e às vezes uma ou outra luta entre si. Mas eram muito mansos comigo. Naturalmente os cortadores de cana perceberam tudo e viam-me andando pelo lugar com cobras à volta do meu pescoço, e assim por diante, a ponto de ficarem aterrorizados comigo e me considerarem uma feiticeira. Por causa disso, eles nos deixaram completamente isoladas. Ela fez uma pausa, e depois recomeçou:

— Foi assim que aprendi tanta coisa sobre animais e insetos. Eu costumava ainda passar muito tempo no mar, aprendendo coisas sobre os animais marinhos, assim como sobre os pássaros. Se se chega a saber o que todas essas criaturas gostam de comer e do que têm medo, pode-se muito bem fazer amizade com elas. — Levantou os olhos para Bond e disse: Você não sabe o que perde ignorando todas essas coisas.

— Receio que perca muito — respondeu Bond com sinceridade. — Suponho que eles sejam muito melhores e mais interessantes que os homens.

Sobre isso nada sei — respondeu a jovem pensativa-mente. — Não conheço muitas pessoas. A maioria das que conheci foram detestáveis, mas acho que deve haver criaturas interessantes também. — Fez uma pausa, e prosseguiu: — Nunca pensei realmente que chegasse a gostar de alguma pessoa como gosto dos animais. Com exceção da babá, naturalmente. Até que... — Ela se interrompeu com um sorriso de timidez. — Bem, de qualquer forma, nós vivemos muito felizes juntas, até que eu fiz quinze anos, quando então a babá morreu e as coisas se tornaram muito difíceis. Havia um homem chamado Mander. Um homem horroroso. Era o capataz branco que servia aos proprietários da plantação. Ele vivia me procurando. Queria que eu fosse viver com ele, em sua casa de Porto Maria.

Eu o odiava, e costumava esconder-me sempre que ouvia o seu cavalo aproximando-se do canavial. Certa noite ele veio a pé e eu não o ouvi. Estava bêbado. Entrou na adega e lutou comigo porque não queria fazer o que ele desejava. Você sabe, as coisas que fazem as pessoas quando estão apaixonadas.

— Sim, já sei.

— Tentei matá-lo com a minha faca, mas ele era muito forte e deu-me um soco tão forte no rosto que me quebrou o nariz. Deixou-me inconsciente e acho que fez alguma coisa comigo. Sei que ele fez mesmo. No dia seguinte eu quis me matar quando vi o meu rosto e verifiquei o que ele me havia feito. Pensei que iria ter um filho. Teria sem dúvida me matado se tivesse tido um filho daquele homem. Em todo caso, não tive, e tudo continuou assim. Fui ao médico e ele fez o que pôde com o meu nariz e não me cobrou nada. Quanto ao resto, eu nada lhe contei, pois estava muito envergonhada. O homem não voltou mais. Eu esperei e nada fiz até a próxima colheita de cana-de-açúcar. Tinha um plano. Estava esperando que as aranhas viúvas-negras viessem procurar abrigo. Um belo dia elas chegaram. Apanhei a maior das fêmeas e á deixei numa caixa sem nada para comer. As fêmeas são terríveis. Então esperei que fizesse uma noite escura, sem luar. Na primeira noite dessas, apanhei a caixa com a aranha e caminhei até chegar à casa do homem. Estava muito escuro e eu me sentia aterrorizada com a possibilidade de encontrar algum assaltante pela estrada, mas não houve nada. Esperei em seu jardim, oculta entre os arbustos, até que ele se recolheu à cama. Então subi por uma árvore e ganhei a sacada; aguardei até que ele começasse a roncar e depois entrei pela janela. Ele estava nu, estendido na cama, sob o mosquiteiro. Levantei uma aba do filó, abri a caixa e sacudi-lhe a aranha sobre o ventre. Depois saí e voltei para casa.

— Deus do céu! — exclamou Bond reverentemente. — O que aconteceu com o homem?

Ela respondeu com satisfação: — Levou uma semana para morrer. Deve ter-lhe doído terrivelmente. Você sabe, a mordida dessa aranha é pavorosa. Os feiticeiros dizem que não há nada que se lhe compare. — Ela fez uma pausa, e como Bond não fizesse nenhum comentário, acrescentou: — Você não acha que eu fiz mal, não é?

— Bem, não faça disso um hábito — respondeu Bond suavemente. — Mas não posso culpá-la, diante do que ele tinha feito. E, depois, o que aconteceu?

— Bem, depois me estabeleci novamente — sua voz era firme. — Tive que me concentrar na tarefa de obter alimento suficiente, e naturalmente. — Acrescentou persuasivamente: — Eu tinha de fato um nariz muito bonito, antes. Você acha que os médicos podem torná-lo igualzinho ao que era antes?

— Eles poderão fazê-lo de qualquer forma que você quiser — disse Bond em tom definitivo. — Como é que você ganhou dinheiro?

— Foi graças à enciclopédia. Li nela que há pessoas que gostam de colecionar conchas marinhas e que as conchas raras podiam ser vendidas. Falei com o mestre-escola local, sem contar-lhe naturalmente o meu segredo, e ele descobriu para mim que havia uma revista norte-americana chamada “Nautilus”, dedicada aos colecionadores de conchas. Eu tinha apenas o dinheiro suficiente para tomar uma assinatura daquela revista e comecei a procurar as conchas que as pessoas pediam em seus anúncios. Escrevi a um comerciante de Miami e ele começou a comprar as minhas conchas. Foi emocionante. Naturalmente que cometi alguns erros, no princípio. Pensei, por exemplo, que as pessoas gostariam das conchas mais bonitas, mas esse não era o caso. Freqüentemente elas preferiam as conchas mais feias. Depois, quando achava conchas raras, punha-me a limpá-las e poli-las a fim de torná-las mais bonitas, mas isso também foi um erro. Os colecionadores querem as conchas exatamente como saem do mar, com o animal em seu interior também. Então consegui algum formol com o médico e o punha entre as conchas vivas, para que elas não tivessem mau cheiro, e depois mandava-as para o tal comerciante de Miami. Só aprendi bem o negócio de um ano para cá e já consegui quinze libras. Consegui esse resultado agora que sei como é que eles querem as conchas e se tivesse sorte, poderia fazer pelo menos cinqüenta libras por ano. Então, em dez anos poderia ir aos Estados Unidos e operar-me. Mas, continuou ela com intenso contentamento, tive uma notável maré de sorte. Fui a Crab Key pelo Natal, onde já tinha estado antes. Mas dessa vez eu encontrei essas conchas purpúreas. Não parecem grande coisa, mas eu enviei uma ou duas para Miami e o comerciante escreveu-me para dizer que compraria tantas dessas conchas quantas eu pudesse encontrar, e ao preço de até cinco dólares pelas perfeitas. Disse-me ainda que eu deveria manter segredo sobre o lugar de onde as tirava, pois de outra forma o “mercado seria estragado”, como disse ele, e os preços cairiam. É como se se tivesse uma mina de ouro particular. Agora serei capaz de juntar o dinheiro em cinco anos. Esse foi o motivo pelo qual tive grandes suspeitas de você, quando o encontrei na praia. Pensei que você tivesse vindo para roubar as minhas conchas.

— Você me deu um susto, pois pensei que você fosse a garota do Dr. No.

— Muito obrigada.

— Mas depois que você tiver feito a operação, o que irá fazer? Você não pode continuar vivendo numa adega durante toda a vida.

— Pensei em me tornar uma prostituta. — Ela o disse como se tivesse dito “enfermeira” ou “secretária”.

— Oh, o que é que você quer dizer com isso? — Talvez ela já tivesse ouvido aquela expressão sem compreendê-la bem.

— Uma dessas jovens que possuem um bonito apartamento e lindas roupas. Você sabe o que quero dizer — acrescentou ela com impaciência. — Os homens telefonam, marcam encontro, chegam, fazem amor e pagam. Elas ganham cem dólares de cada vez, em Nova Iorque, onde pensei começar. Naturalmente — admitiu — terei de fazer por menos, no começo, até que aprenda a trabalhar bem. Quanto é que vocês pagam pelas que não têm experiência?

Bond riu. — Francamente, não me lembro. Há muito tempo que não me encontro com essas mulheres.

Ela suspirou. — Sim, suponho que você possa ter tantas mulheres quantas queira, por nada. Suponho que apenas os homens feios paguem, mas isso é inevitável. Qualquer espécie de trabalho nas grandes cidades deve ser horrível. Pelo menos pode-se ganhar muito mais como prostituta. Depois, poderia voltar para Jamaica e comprar Beau Desert. Seria bastante rica para encontrar um marido bonito e ter alguns filhos. Agora que encontrei essas conchas, penso que poderia estar de volta a Jamaica quando tivesse trinta anos. Não seria formidável?

— Gosto da última parte do plano, mas não tenho muita confiança na primeira. De qualquer forma, como é que você veio a saber dessa história de prostitutas? Encontrou isso na letra P, na enciclopédia?

— Claro que não; não seja tolo. Há uns dois anos houve em Nova Iorque um escândalo sobre elas, envolvendo também um “play-boy” chamado Jelke. Ele tinha toda uma cadeia de prostitutas, e eu li muito sobre o caso no “Gleaner”. O jornal deu inclusive os preços que elas cobravam e tudo o mais. De qualquer forma, há milhares dessas jovens em Kingston, embora não sejam tão boas. Recebem apenas cinco xelins e não têm um lugar apropriado para fazer amor, a não ser no mato. Minha babá chegou a falar-me delas. Disse-me que eu não deveria imitá-las, pois do contrário seria muito infeliz. É claro que seria, recebendo apenas cinco xelins. Mas por cem dólares!...

Bond observou: — Você não conseguiria guardar todo esse dinheiro. Precisaria ter uma espécie de gerente para arranjar os homens, e teria ainda de dar gorjetas à polícia, para deixá-la em paz. Por fim, poderia ir facilmente parar na cadeia se tudo não corresse bem. Na verdade, com tudo o que você sabe sobre animais, bem poderia ter um ótimo emprego, cuidando deles, em algum jardim zoológico norte-americano. E o que me diz do Instituto de Jamaica? Tenho certeza de que você gostaria mais de trabalhar ali. E poderia também facilmente encontrar um bom marido. De qualquer forma, você não deve mais pensar em ser prostituta. Você tem um belo corpo e deve guardá-lo para o homem que amar.

— Isso é o que dizem as pessoas nos livros — disse ela com ar de dúvida. — A dificuldade está em que não há nenhum homem para ser amado em Beau Desert. — Depois acrescentou timidamente: — Você é o único inglês com quem jamais falei. Gostei de você desde o princípio, e não me importo de dizer-lhe essas coisas agora. Penso que há muitas pessoas das quais chegaria a gostar se saísse daqui.

— É claro que há. Centenas. E você é uma garota formidável; o que pensei assim que a vi.

— Assim que viu as minhas nádegas, você quer dizer. — Sua voz estava-se tornando sonolenta, mas cheia de prazer.

Bond riu. — Bem, eram nádegas maravilhosas. E o outro lado também era maravilhoso. — O corpo de Bond começou a se agitar com a lembrança de como a vira pela primeira vez. Depois de um instante, disse com mau humor: — Agora vamos, Honey. Está na hora de dormir. Haverá muito tempo para conversarmos quando voltarmos a Jamaica.

— Haverá? — perguntou ela desconsoladamente. — Você promete?

— Prometo.

Ele a viu agitar-se dentro do saco de dormir. Olhou para baixo e apenas pôde divisar o seu pálido perfil voltado para ele. Ela deixou escapar o profundo suspiro de uma criança, antes de adormecer.

Reinava silêncio na clareira e o tempo estava esfriando. Bond descansou a cabeça sobre os joelhos unidos. Sabia que era inútil procurar dormir, pois sua mente estava cheia dos acontecimentos do dia e dessa extraordinária mulher Tarzan que aparecera em sua vida. Era como se algum animal muito bonito se lhe tivesse dedicado. E não largaria os cordéis enquanto não tivesse resolvido os problemas dela. Estava sentindo isso. Naturalmente que não haveria grandes dificuldades para a maioria de seus problemas. Quanto à operação, seria fácil arranjá-la, e até mesmo encontrar-lhe um emprego, com o auxílio de amigos, e um lar. Tinha dinheiro e haveria de comprar-lhe roupas, mandaria ajeitar os seus cabelos e a lançaria no grande mundo. Seria divertido. Mas quanto ao resto? Quanto ao desejo físico que sentia por ela? Não se podia fazer amor com uma criança. Mas, seria ela uma criança? Não haveria nada de infantil relativamente ao seu corpo ou à sua personalidade. Era perfeitamente adulta e bem inteligente, a seu modo, e muito mais capaz de tomar conta de si mesma do que qualquer outra jovem de vinte anos que Bond conhecera.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um puxão em sua manga. A vozinha disse: — Por que você não vai dormir? Não está sentindo frio?

— Não; estou bem.

— Aqui no saco de dormir está bom e quente. Você quer vir para cá? Tem bastante lugar.

— Não, obrigado, Honey. Estou bem.

Houve uma pausa, e depois ela disse num sussurro: — Se você está pensando... Quero dizer — você não precisa fazer amor comigo... Eu poderia dormir de costas para o seu peito.

— Honey, querida, vá dormir. Seria maravilhoso dormir assim com você, mas não esta noite. De qualquer maneira, em breve terei de render Quarrel.

— Muito bem, — disse ela com voz mal humorada. — Talvez quando voltarmos a Jamaica.

— Talvez.

— Prometa. Não dormirei enquanto você não prometer.

Bond disse desesperadamente: — Naturalmente que prometo. Agora, vá dormir, Honeychile.

A sua voz se fez ouvir outra vez, triunfante: — Agora você tem uma dívida comigo. Você prometeu. Boa-noite, querido James.

— Boa noite, querida Honey.


XII - A COISA


O aperto no braço de Bond era ansioso. Ele de um salto pôs-se de pé.

Quarrel sussurrou tensamente: — Alguma coisa está-se aproximando pela água, capitão! Com certeza é o dragão!

A jovem levantou-se e perguntou nervosamente: — Que aconteceu?

Bond apenas disse: — Fique aí, Honey! Não se mexa. Eu voltarei.

Internou-se pelos arbustos do lado oposto da montanha e correu pela restinga, com Quarrel ao lado.

Chegaram até a extremidade da restinga, a vinte metros da clareira, e pararam sob o abrigo dos últimos arbustos, que Bond apartou com as mãos para ter um melhor campo de visão.

O que seria aquilo? A meia milha de distância, atravessando o lago, vinha algo informe, com dois olhos brilhantes cor de laranja, e pupilas negras. Entre estes, onde deveria estar a boca, tremulava um metro de chama azul. A luminosidade cinzenta das estrelas deixava ver uma espécie de cabeça abaulada entre duas pequenas asas semelhantes às de um morcego. Aquela coisa estranha deixava escapar um ronco surdo e baixo, que abafava um outro ruído, uma espécie de vibração rítmica. Aquela massa avançava na direção deles, à velocidade de uns dezesseis quilômetros por hora, deixando atrás de si uma esteira de espuma.

Quarrel sussurrou:

— Nossa, capitão! Que coisa é aquela?

Bond continuou de pé e respondeu laconicamente: — Não sei exatamente. Uma espécie de trator arranjado para meter medo. Está trabalhando com um motor diesel, e por isso você pode deixar os dragões de lado. Agora, vejamos... — Bond falava como se para si mesmo. — Não adianta fugir. Aquilo se move mais depressa do que nós e sabemos que pode esmagar árvores e atravessar pântanos. Temos que lhe dar combate aqui mesmo. Quais serão os seus pontos fracos? Os motoristas. Com certeza, dispõem de proteção. Em todo caso, não sabemos muito sobre esse ponto. Quarrel, você começará a disparar contra aquela cúpula quando estiverem a uns duzentos metros de nós. Faça a pontaria cuidadosamente e continue atirando. Visarei os faróis quando estiverem a cinqüenta metros. Não se está movendo sobre lagartas. Deve ter alguma espécie de rodas gigantescas, provavelmente de avião. Visarei as rodas também. Fique aí. Ficarei dez metros para baixo. Naturalmente vão reagir e nós temos que manter as balas longe da garota. Está combinado? — Bond esticou o braço e apertou o enorme ombro de Quarrel. — E não se preocupe demais. Esqueça-se de dragões. Trata-se apenas de alguma trapaça do Dr. No. Mataremos os motoristas, tomaremos conta do veículo e ganharemos com ele a costa. Isso economizará as nossas solas. Está bem?

Quarrel deu uma breve risada. — Está bem, capitão. Desde que o senhor assim o diz. Mas que Nosso Senhor saiba também que aquilo não é dragão!

Bond desceu pela restinga e se internou pelos arbustos, até que encontrou um ponto de onde podia ter um bom campo de tiro. Disse suavemente: — Honey!

— Sim, James — e a voz dela deixou transparecer alívio.

— Faça um buraco na areia como fizemos na praia. Faça-o por trás de raízes grossas e fique lá deitada. Talvez haja um tiroteio. Não tenha medo de dragões. Isto é apenas um veículo pintado, dirigido por alguns dos homens do Dr. No. Não se assuste. Estou aqui perto.

— Muito bem, James. Tenha cuidado! — A voz agora deixava transparecer um vivo temor.

Bond curvou-se, apoiando um joelho no chão, sobre as folhas e a areia, e olhou para fora.

Agora o veículo achava-se a uns trezentos metros de distância, e os seus faróis amarelos estavam iluminando a areia. Chamas azuis continuavam saindo da boca daquele engenho. Saíam de uma espécie de longo focinho, no qual se pintaram mandíbulas entreabertas, para darem ao todo a aparência de dragão. Um lança-chamas! Aquilo explicava as árvores queimadas e a história do administrador. A coloração azul da chama seria dada por alguma espécie de queimador, disposto adiante do lança-chamas.

Bond teve que admitir que aquela visão era algo de terrível, à medida que o veículo avançava pelo lago raso. Evidentemente fora calculado para infundir terror. Ele mesmo ter-se-ia assustado, não fora a vibração rítmica do motor diesel. Mas até que ponto aquilo seria vulnerável para homens que não fossem dominados pelo pânico?

A resposta ele a teve quase imediatamente. Ouviu-se o estampido da “Remington” de Quarrel. Uma centelha saiu da cabina encimada pela cúpula e logo se ouviu um ruído metálico. Quarrel disparou mais um tiro e, logo em seguida, uma rajada. As balas chocaram-se inutilmente de encontro à cabina. Não houve mesmo uma simples redução de velocidade. O monstro continuava avançando para o ponto de onde tinham partido os disparos. Bond descansou o cano de seu “Smith & Wesson” no braço, e fez cuidadosa pontaria. O profundo ruído surdo de sua arma fez-se ouvir por sobre o matraquear da “Remington” de Quarrel. Um dos faróis fora atingido e despedaçara-se. Bond disparou mais quatro tiros contra o outro e atingiu-o com o quinto e último disparo de seu revólver. O fantástico aparelho parecia continuar não dando importância, e foi avançando para o lugar de onde tinham partido os disparos do “Smith & Wesson”. Bond tornou a carregar a arma e começou a atirar contra os pneumáticos, sob as asas negro e ouro. A distância agora era de apenas trinta metros e podia jurar que já atingira mais de uma vez a roda mais próxima, sem nenhum resultado. Seria borracha sólida? O primeiro estremecimento de medo percorreu a pele de Bond.

Carregou mais uma vez. Seria aquela coisa maldita vulnerável pela retaguarda? Deveria correr para o lago e tentar uma abordagem? Avançou um passo, através dos arbustos, mas logo ficou imóvel, incapaz de prosseguir.

Subitamente, daquele focinho ameaçador, uma língua de fogo azulada tinha sido lançada na direção do esconderijo de Quarrel. À direita de Bond, no mato, surgira apenas uma chama laranja e vermelha, simultaneamente com um estranho urro, que imediatamente silenciou. Satisfeita, aquela língua de fogo se recolhera à sua boca. Agora aquilo fizera um movimento de rotação sobre o seu eixo e parará completamente. O buraco azulado da boca apontava diretamente para Bond.

Bond deixou-se ficar, esperando pelo horroroso fim. Olhou através das mandíbulas da morte e viu o brilhante f-lamento vermelho do queimador, bem no fundo do comprido tubo. Pensou no corpo de Quarrel — mas não havia tempo para pensar em Quarrel — e imaginou-o completamente carbonizado. Dentro em pouco ele também se incendiaria como uma tocha. Um único berro seria arrancado dele e os seus membros se encolheriam na pose de dançarino dos corpos queimados. Depois viria a vez de Honey. Meu Deus, para o quê ele os havia arrastado! Por que fora tão insano a ponto de enfrentar aquele homem com todo o seu arsenal? Por que não aceitara a advertência que lhe fora feita pelo longo dedo que o alcançara já em Jamaica? Bond trincou os dentes. Vamos, canalhas. Depressa.

Ouviu-se a sonoridade de um alto-falante, que anunciava metàlicamente: “Saia daí, inglês. E a boneca também. Depressa ou será frito no inferno, como o seu amigo”. Para dar mais força àquela ordem, uma língua de fogo foi lançada em sua direção. Bond deu um passo atrás para recuar daquele intenso calor. Sentiu o corpo da garota de encontro às suas costas. Ela disse historicamente: — Tive que vir, tive que vir.

Bond disse: — Está bem, Honey. Fique atrás de mim.

Ele tinha-se decidido. Não havia alternativa. Mesmo que a morte viesse mais tarde, não poderia ser pior do que aquela morte diante do lança-chamas. Bond apanhou a mão da jovem e puxou-a consigo para fora, saindo para a areia.

A voz se fez ouvir novamente: — Pare aí, camarada. E deixe cair o lança-ervilhas. Nada de truques, senão os caranguejos terão um bom almoço.

Bond deixou cair a sua arma. Lá se fora o “Smith & Wesson”. O “Beretta” não teria tido melhor sorte: A jovem lastimou-se, e Bond apertou a sua mão. — Agüente, Honey, — disse ele. — Nós nos livraremos disso.

Bond troçou de si mesmo por causa daquela mentira. Ouviu-se o ruído de uma porta de ferro que se abria. Por trás da cúpula, um homem saltou para a água e caminhou até eles, com um revólver na mão. Ao mesmo tempo ia-se mantendo fora da linha de fogo do lança-chamas. A trêmula chama azul iluminou o seu rosto. Era um chinês negro, de enorme estatura, vestindo apenas calças. Alguma coisa balançava em sua mão esquerda, e quando ele se aproximou mais, Bond pôde ver que eram algemas.

O homem deteve-se a alguns metros de distância e disse:

— Levantem os braços. Punhos juntos e caminhem em minha direção. Você primeiro, inglês. Devagar ou receberá mais um umbigo.

Bond obedeceu e quando estava a um passo do homem, este prendeu o revólver entre os dentes, e esticou os braços e atou os seus pulsos com as algemas. Bond examinou aquele rosto iluminado pelas chamas azuis. Era uma cara brutal, com olhos estrábicos. O agente do Dr. No fitou-o com desprezo. — Bastardo imbecil! — disse.

Bond deu as costas ao homem e começou a se afastar. Ia ver o corpo de Quarrel. Tinha que lhe dizer adeus. Ouviu-se o ruído de um disparo e uma bala jogou-lhe areia nos pés. Bond parou, e voltando-se lentamente disse:

— Não fique nervoso. Vou dar uma espiada no homem que você acabou de assassinar. Voltarei.

O homem abaixou o revólver e riu grosseiramente: — Muito bem. Divirta-se. Desculpe se não temos uma coroa. Volte logo, se não daremos uma amostra à boneca. Dois minutos.

Bond caminhou em direção ao cerrado de arbustos fumegantes. Ali chegando, olhou para baixo. Seus olhos e boca se contraíram. Sim, tinha sido bem como ele imaginara. Pior, mesmo. Disse docemente: — Perdoe-me, Quarrel. — Com o pé soltou um pouco de areia, que colheu com as mãos algemadas e verteu-a sobre os restos dos olhos de Quarrel. Depois caminhou lentamente, de volta, e ficou ao lado da jovem.

O homem empurrou-os para a frente com o revólver. Deram a volta por trás da máquina, onde havia uma pequena porta quadrada. Uma voz do interior disse: — Entrem e sentem-se no chão. Não toquem em nada ou ficarão com os dedos partidos.

Com dificuldade, arrastaram-se para dentro daquela caixa de ferro, que cheirava a óleo e suor. Havia lugar apenas para que ambos se sentassem com as pernas encolhidas, de joelhos para cima. O homem que empunhava o revólver e que vinha atrás deles saltou por último para dentro do carro e fechou a porta. Ligou uma lâmpada e sentou-se num assento de ferro, ao lado do chofer. — Muito bem, Sam, vamos andando. Você pode apagar o fogo. Há luz bastante para dirigir — disse.

Na painel de controle podia-se ver uma fileira de mostradores. O motorista esticou a mão e deslocou para baixo um par de interruptores. Engrenou o motor e olhou através de uma estreita fresta, cortada na parede de ferro, diante dele. Bond sentiu que o veículo dava uma volta. Ouviu-se um movimento mais rápido do motor, e o veículo avançou.

O ombro da jovem apertou-se de encontro ao de Bond.

— Para onde estão eles nos levando? — O seu sussurro traía um estremecimento.

Bond voltou a cabeça e olhou para ela. Era a primeira vez que podia ver os seus cabelos depois de secos. Estavam desfeitos pelo sono, mas não eram mais mechas de rabichos empastados. Caíam densamente até os ombros, onde terminavam em anéis voltados para dentro. Eram do mais pálido louro acinzentado e despediam reflexos quase prateados sob a luz elétrica. Ela olhou para o alto, para ele. A pele, à volta dos olhos e nos cantos da boca, mostrava-se lívida de medo.

Bond deu de ombros, procurando aparentar uma indiferença que não sentia!. Sussurrou: — Oh, espero que vamos ver o Dr. No. Não se preocupe demais, Honey. Esses homens não passam de pequenos bandidos. Com ele, as coisas serão diferentes. Quando estivermos diante dele, não diga nada, falarei por nos dois. — Ele apertou o seu ombro e disse: — Gosto da maneira por que você penteia o seu cabelo, e fico contente porque você não o apara muito curto.

Um pouco da tenção desapareceu do rosto dela. — Como é que você pode pensar em coisas como essa? — Deu um leve sorriso para ele, e acrescentou: — Mas estou contente por você gostar de meu penteado. Lavo os meus cabelos com óleo de coco uma vez por semana.

À lembrança de sua outra vida, seus olhos ficaram brilhantes. Ela baixou a cabeça para as mãos algemadas, a fim de esconder as lágrimas. Sussurrou quase para si mesma: — Tentarei ser brava. Tudo estará bem, desde que você esteja lá.

Bond aconchegou-se a ela. Levantou suas mãos algemadas até a altura dos olhos e examinou as algemas. Eram do tipo usado pela polícia norte-americana. Contraiu sua mão esquerda, a mais fina das duas, e tentou fazê-la deslizar pelo anel de aço. Mesmo o suor de sua pele de nada adiantou. Era inútil.

Os dois homens sentavam-se em seus bancos de ferro, indiferentes, e com as costas voltadas para eles. Sabiam que dominavam inteiramente a situação. Não havia possibilidade de que Bond oferecesse qualquer incômodo. Não poderia levantar-se ou dar o necessário impulso aos seus punhos para causar qualquer mal às cabeças de seus adversários, utilizando as algemas. Se conseguisse abrir a porta e pular para a água, o que lograria com isso? Imediatamente eles sentiriam a brisa fresca, nas costas, e parariam a máquina para queimá-lo na água ou içá-lo novamente. Bond aborrecia-se em pensar que os homens pouco se preocupavam com ele, pois sabiam tê-lo completamente em seu poder. Também não gostou da idéia de que aqueles homens eram bastante inteligentes para saber que ele não representava nenhuma ameaça. Indivíduos mais estúpidos teriam ficado em cima deles, de revólver em punho, tê-los-iam surrado, a ele e à jovem, barbaramente, e talvez os tivessem deixado inconscientes. Aqueles dois conheciam o ofício. Eram profissionais, ou tinham sido treinados para o serem.

Os dois homens não falaram. Não houve nenhum comentário sobre o quão hábil eles tinham sido, ou quanto ao seu cansaço ou destino. Apenas dirigiam a máquina serenamente, ultimando com eficiência a sua tarefa.

Bond continuava sem a mínima idéia do que seria aquilo. Sob a tinta negra e dourada, assim como sob o resto daquela fantasia, a máquina parecia uma espécie de trator, como ele nunca vira. Não tinha conseguido descobrir nomes de marcas comerciais, nos pneumáticos, pois estivera muito escuro, mas certamente que deveriam ser de borracha sólida ou porosa. Atrás havia um pequena roda para dar estabilidade ao conjunto. Uma espécie de barbatana de ferro fora ainda acrescentada e pintada também de preto e ouro, a fim de ajudar a dar a aparência de dragão. Os altos pára-lamas tinham sofrido um prolongamento, na forma de curtas asas voltadas para trás. Uma comprida cabeça de dragão, feita em metal, fora fixada ao radiador e os faróis receberam pontos centrais negros, para parecerem olhos. Era tudo, sem falar da cabina que fora recoberta com uma cúpula blindada e dotada de um lança-chamas. Era, como pensara Bond, um trator preparado para assustar e queimar — embora não pudesse atinar porque estava dotado de um lança-chamas e não de uma metralhadora. Era, evidentemente, a única espécie de veículo que poderia percorrer a ilha. Suas gigantescas rodas podiam avançar sobre os mangues, pântanos e ainda atravessar o lago raso. Galgaria também os agrestes planaltos de coral e, desde que andasse à noite, o calor experimentado na cabina seria pelo menos tolerável.

Bond ficara impressionado. Impressionado pelo toque de profissionalismo. O Dr. No era sem dúvida um homem que se preocupava intensamente com as coisas. Em pouco iria encontrá-lo. E em breve estaria diante do segredo do Dr. No. Então, o que aconteceria? Bond sorriu amargamente. Sim, não o deixariam sair dali com o seu conhecimento. Certamente seria morto, a menos que pudesse fugir ou conseguir a sua liberdade por meios persuasivos. E o que aconteceria à jovem? Poderia ele provar sua inocência e conseguir com que ela fosse poupada? Possivelmente, mas nunca mais ela teria permissão para deixar a ilha. Ali teria de ficar para o resto da vida, como amante ou mulher de um dos homens, ou do próprio Dr. No, se ela o impressionasse.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um trecho do percurso mais difícil, como se podia sentir pela trepidação. Tinham atravessado o lago e estavam no caminho que levava para o alto da montanha, junto às cabanas. A cabina vibrava e a máquina começou a galgar o terreno. Dentro de cinco minutos estariam lá.

O ajudante do motorista olhou por sobre o ombro para Bond e a jovem. Bond sorriu confiantemente para ele dizendo: Você receberá uma medalha por isso.

Os olhos amarelos e marrons olharam impassivelmente dentro dos dele, enquanto os lábios arroxeados e oleosos se fenderam num sorriso no qual havia um ódio repousado: Feche a boca, se... Depois, deu-lhe as costas.

A jovem tocou-o com o cotovelo e sussurrou: — Por que eles são tão rudes? Por que nos odeiam tanto?

Bond esboçou um sorriso e disse: — Acho que é porque lhes causamos medo. Talvez ainda estejam com medo, e isto porque não parecemos ter medo deles. Devemos mantê-los assim.

A jovem aconchegou-se a ele e disse: — Tentarei.

Agora a subida estava-se tornando mais íngreme. Uma luz azul-acinzentada atravessava as frestas da armadura. A madrugada se aproximava. Fora, em breve estaria começando mais um dia de calor abrasador, de execrável vento, carregado com o cheiro de gás dos pântanos. Bond pensou em Quarrel, o bravo gigante que não mais veria aquele dia, e com o qual eles deveriam agora estar caminhando através dos pauis de mangues. Quarrel tinha pressentido a morte, mas apesar disso tinha acompanhado Bond sem qualquer objeção. Sua fé em Bond tinha sido maior do que o seu medo. E Bond tinha-lhe faltado. Seria ele ainda o causador da morte da jovem?

O motorista esticou o braço em direção ao painel e na parte dianteira do veículo fez-se ouvir o breve zunido de uma sirena de polícia, que foi desaparecendo num gemido fúnebre. Mais um minuto e o veículo parava, continuando o motor em regime neutro. O homem apertou um interruptor e tirou um microfone de um gancho, a seu lado. Falou por aquele microfone e Bond pôde ouvir a sua voz aumentada, do lado de fora, por um altofalante. — Tudo bem. Apanhamos o inglês e a garota. O outro homem morreu. Isso é tudo. Abram. — Bond ouviu que uma porta se deslocava para o lado, sobre rolamentos. O motorista embreou e eles avançaram lentamente para a frente, parando alguns metros adiante. O motorista desligou o motor. Ouviu-se o ruído metálico da tranca e a porta foi aberta pelo lado de fora. Uma lufada de ar fresco e uma luz mais brilhante penetraram na cabina. Várias mãos agarraram Bond e arrastaram-no para trás, até um chão de cimento. Bond agora estava de pé e sentia o cano de um revólver encostado ao seu flanco. Uma voz disse: — Fique onde está. Nada de espertezas. — Bond olhou para o homem. Era mais um chinês negro, do mesmo tipo que os outros. Os olhos amarelos examinaram-no com curiosidade. Bond virou-se com indiferença. Outro homem estava cutucando a jovem com a arma. Bond disse asperamente: — Deixe a garota em paz! Em seguida, caminhou e pôs-se ao lado da jovem. Os dois homens pareceram surpresos. Deixaram-se ficar de pé, apontando as armas com hesitação.

Bond olhou à volta. Estavam numa das cabanas pré-fabricadas que ele vira do rio. Era ao mesmo tempo uma garagem e uma oficina. O “dragão” tinha sido colocado sobre um fosso de vistoria, no chão de concreto. Um motor de popa desmontado estava sobre uma das bancadas. Longos tubos de luz fluorescente estavam afixados ao teto e o ambiente estava impregnado do cheiro de óleo e fumaça de exaustor. O motorista e o seu companheiro examinavam a máquina. Em seguida deram alguns passos pelo galpão, como se andassem sem propósito.

Um dos guardas anunciou: — Enviei a mensagem. A ordem é que eles sejam levados. Foi tudo bem?

O ajudante de motorista, que parecia o homem mais responsável, ali presente, disse: — Sem dúvida. Alguns disparos. Os faróis foram partidos. Talvez haja alguns furos nos pneumáticos. Ponha os rapazes em ação — uma vistoria completa. Conduzirei esses dois e tirarei um cochilo. — E, voltando-se para Bond: — Bem, vamos andando — e indicou o caminho que saía do longo galpão.

Bond disse: — Vá andando você; e cuidado com os modos. Diga àqueles macacos que tirem as armas de cima de nós. Podem disparar por engano. Parecem bastante idiotas.

O homem se aproximou, e os outros os acompanharam logo atrás. O ódio brilhava em seus olhos. O chefe levantou o punho cerrado, tão grande quanto um pequeno malho e chegou-o à altura do nariz de Bond. Procurava controlar-se com esforço, e disse: — Ouça, senhor. Às vezes, nós, os rapazes, temos permissão para participar da festa final. Estou rezando para que essa seja uma dessas vezes. Certa ocasião fizemos com que a coisa durasse toda uma semana. E se eu o pego...

Riu e os seus olhos brilharam com crueldade. Olhou para o lado de Bond, fixando a garota. Seus olhos pareciam transformados em bocas que agitavam os lábios. Enfiou as mãos nos bolsos laterais das calças. A ponta de sua língua mostrava-se muito vermelha, entre os lábios arroxeados. Voltando-se para os companheiros disse: — Que tal, rapazes?

Os três homens estavam olhando também para a jovem. Fizeram um sinal de assentimento, como crianças diante de uma árvore de Natal.

Bond desejou atirar-se como um louco sobre eles, golpeando as suas caras com os punhos algemados e aceitando a sua vingança sangrenta. Não fosse pela jovem, bem que o teria feito. Mas tudo o que tinha conseguido com suas corajosas palavras fora amedrontá-la. Disse apenas: — Muito bem, muito bem. Vocês são quatro e nós somos dois, ainda por cima com as mãos atadas. Vamos, não queremos atingi-los. Apenas não nos empurrem muito de um lado para outro. O Dr. No poderia não ficar satisfeito.

Àquele nome, os rostos dos homens se modificaram. Três pares de olhos passaram apàticamente de Bond para o chefe. Por um segundo, este olhou com desconfiança para Bond, intrigado, tentando descobrir se Bond teria alguma influência junto ao Dr. No. Sua boca abriu-se para dizer algo, mas logo pareceu pensar melhor, e apenas disse de maneira incerta: — Bem, bem, estávamos simplesmente brincando. — Voltou-se para os homens, em busca de confirmação: — Não é?

— Sem dúvida, sem dúvida! — foi a resposta dada por um coro áspero, e os homens desviaram o olhar.

O chefe disse com mau humor: — Por aqui, senhor. — E ele mesmo pôs-se a caminho, percorrendo o comprido galpão.

Bond segurou o pulso da jovem e seguiu o chefe. Estava impressionado com a reação causada naqueles homens pelo nome do Dr. No. Aquilo era alguma coisa a lembrar se eles tivessem que se haver novamente com aquela turma.

O homem chegou a uma porta de madeira situada na extremidade do galpão. Ao lado havia um botão de campainha que ele pressionou duas vezes e esperou. Ouviu-se um estalido e a porta se abriu, mostrando dez metros de uma passagem rochosa, mas atapetada e que ia dar, na outra extremidade, em outra porta mais elegante e pintada de creme.

O homem ficou de lado. Siga em frente, senhor — disse; — bata na porta e será atendido pela recepcionista. — Não havia nenhuma ironia em sua voz e seus olhos se mostravam impassíveis.

Bond conduziu Honey pela passagem. Ouviu que a porta se fechava às suas costas. Deteve-se por um momento e fitou-a, perguntando-lhe: — E agora?

Ela riu, trêmula, mas respondeu: — Ê bom sentir-se tapete sob os pés.

Bond apertou o seu pulso. Andou até a porta pintada de creme e bateu.

A porta abriu-se e Bond entrou com a jovem ao lado. Quando se deteve instantaneamente, não chegou a perceber o encontrão que lhe dava a jovem, pois continuou estarrecido.


XIII - GAIOLA DE OURO


Era a espécie de sala de recepção que as maiores corporações norte-americanas possuem no andar em que se situa o escritório do presidente, em seus arranha-céus de Nova Iorque. Suas proporções eram agradáveis, com cerca de vinte pés quadrados. O chão era todo recoberto pelo mais espesso tapete Wilton cor-de-vinho. O teto e as paredes estavam pintados numa suave tonalidade cinza pombo. Viam-se ainda reproduções litográficas de esboços de balé de Degas penduradas em séries, nas paredes, e a iluminação era feita com altos e modernos jogos de abajures de seda verde-escuro, imitando a forma de elegantes barricas.

À direita de Bond estavam uma larga mesa de mogno, com o tampo recoberto com couro verde, outras peças que se harmonizavam perfeitamente com a mesa, e um caro sistema de intercomunicações. Duas cadeiras altas, de antiquado, aguardavam os visitantes. Do outro lado da sala via-se uma mesa do tipo refeitório, sobre a qual estavam várias revistas com capas em cores vivas e mais duas cadeiras. Tanto na mesa de escritório, como na outra, viam-se vasos de hibiscos. O ar era fresco e impregnado de leve fragrância.

Duas mulheres estavam naquela sala. Por trás da mesa de trabalho, empunhando uma caneta que descansava sobre um formulário impresso, estava sentada uma jovem chinesa, de aspecto eficiente, com óculos de armação de chifre, sob uma franja de cabelos negros cortados curtos. Em seus olhos e em sua boca havia o sorriso padrão de boas-vindas que qualquer recepcionista exibe — a um tempo claro, obsequioso e inquisitivo.

Ainda com a mão na maçaneta da porta pela qual eles tinham passado, e esperando que os recém-chegados se adiantassem mais, a fim de que ela a pudesse fechar, estava uma mulher mais velha, com aspecto de matrona, e que deveria ter cerca de quarenta e cinco anos. Era fácil ver-se que também tinha sangue chinês. Sua aparência, saudável, de farto busto, era viva e quase excessivamente graciosa. O seu “pince-nez” de lentes cortadas em quadrado brilhava com o desejo da recepcionista de os pôr à vontade.

Ambas as mulheres vestiam roupas imaculadamente alvas, com meias brancas e sapatos de camurça branca como costumam apresentar-se as auxiliares empregadas nos mais luxuosos salões de beleza norte-americanos. Havia um que de suave e pálido em suas peles, como se elas raramente saíssem para o ar-livre.

Bond observou o ambiente, enquanto a mulher junto à porta lhe dizia frases convencionais de boas-vindas, como se eles tivessem sido colhidos por uma tempestade o chegado com atraso a uma festa.

— Oh, coitados! Nós não sabíamos quando vocês iriam chegar. A todo momento nos diziam que vocês já estavam a caminho... primeiro à hora do chá, ontem, depois na hora do jantar, e apenas há uma hora fomos informadas de que vocês chegariam à hora do desjejum. Devem estar com fome. Venham aqui e ajudem a irmã Rosa a preencher o formulário; depois eu os prepararei para a cama. Devem estar muito cansados.

Ia dizendo aquilo com voz doce e cacarejante, ao mesmo tempo que fechava a porta e os levava para junto da mesa e os fazia sentar nas cadeiras. Depois disse: — Bem, eu sou a irmã Lírio, e esta é a irmã Rosa. Ela irá fazer-lhes apenas algumas perguntas. Agora, aceitam um cigarro? — e pegou uma caixa de couro trabalhado que estava em cima da mesa. Abriu-a e pô-la diante deles. A caixa tinha três divisões, e a chinesinha explicou apontando com um dedo: “Esses são americanos, esses são ingleses e esses turcos.” Ela apanhou um luxuoso isqueiro de mesa e esperou.

Bond estendeu as mãos algemadas para tirar um cigarro turco.

A irmã Lírio deu um gritinho de espanto: — Oh, mas francamente. — Parecia sinceramente embaraçada. — Irmã Rosa, dê-me a chave, depressa. Já disse por várias vezes que os pacientes não devem ser trazidos dessa maneira. — Havia impaciência e aborrecimento em sua voz. — Francamente, aquela gente lá de fora! Já era tempo que eles fossem chamados à ordem.

A irmã Rosa estava tão embaraçada quanto a irmã Lírio. Rapidamente remexeu dentro de uma gaveta e entregou uma chave à irmã Lírio, que com muitas desculpas e cheia de dedos abriu os dois pares de algemas e, afastando-se para trás da mesa, deixou aquelas duas pulseiras de aço caírem dentro da cesta de papéis como se fossem ataduras sujas.

— Obrigado, — disse Bond, que não sabia como enfrentar aquela situação, a não ser procurando desempenhar um papel qualquer na comédia que se estava representando. Ele estendeu o braço, apanhou um cigarro e acendeu-o. Lançou um olhar para Honeyehile Rider, que parecia estonteada e nervosamente apertava com as mãos os braços de sua cadeira. Bond dirigiu-lhe um sorriso de conforto.

— Agora, por favor; — disse a irmã Rosa e inclinou-se sobre um comprido formulário impresso em papel caro. — Prometo ser o mais rápida que puder. O seu nome, sr... sr...

— Bryce, John Bryce.

Ela escreveu a resposta com grande concentração. — Endereço permanente?

— Aos cuidados do Jardim Zoológico Real, Regents Park, Londres, Inglaterra.

— Profissão?

— Ornitologista.

— Oh, meu Deus!, poderia o senhor soletrar isso? Bond atendeu-a.

— Muito obrigada. Agora, vejamos, objeto da viagem?

— Aves — respondeu Bond. — Sou também representante da Sociedade Audubon de Nova Iorque. Eles arrendaram parte desta ilha.

— Oh, sem dúvida. — Bond observou que a pena escrevia exatamente o que ele dizia. Depois da última palavra ela pôs um claro ponto de interrogação entre parênteses.

— E — a irmã Rosa sorriu polidamente em direção a Honeyehile — a sua esposa? Ela também está interessada em pássaros?

— Sim, sem dúvida.

— O seu primeiro nome?

— Honeyehile.

A irmã Rosa estava encantada. — Que nome lindo! — Ela voltou a escrever apressadamente. — E agora os parentes mais próximos de ambos, e estará tudo acabado.

Bond deu o verdadeiro nome de M como o parente mais próximo de ambos. Apresentou-o como “tio” e indicou o seu endereço como sendo “Diretor-Gerente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres.”

A irmã Rosa acabou de escrever e disse: — Pronto, está tudo feito. Muito obrigada, sr. Bryce, e espero que ambos apreciem a permanência aqui.

— Muito obrigado. Estou certo de que apreciaremos. — Bond levantou-se e Honeyehile fez o mesmo, ainda com expressão vazia.

A irmã Lírio disse: — Agora, venham comigo, queridos.

— Ela caminhou até uma porta na parede distante e deteve-se com a mão na maçaneta talhada em vidro. — Oh, meu Deus, — disse —, não é que agora me esqueci do número de seus quartos? É o apartamento creme, não é, irmã?

— Isso mesmo. Catorze e quinze.

— Obrigada, querida. E agora — ela abriu a porta — se vocês quiserem me seguir... Receio que seja uma caminhada um pouco longa. — Fechou a porta, por trás deles, e pôs-se à frente, indicando o caminho. — O Doutor tem falado várias vezes em instalar uma dessas escadas rolantes, ou algo de parecido, mas sabem como são os homens ocupados: — Ela riu alegremente. — Ele tem tantas outras coisas em que pensar!

— Sim, acredito, — disse Bond polidamente.

Bond tomou a mão da jovem e seguiram ambos a maternal e agitada chinesa através de cem metros de um alto corredor, do mesmo estilo da sala de recepção, mas que era iluminado a freqüentes intervalos por caros tubos luminosos fixados às paredes.

Bond respondia com polidos monossílabos aos comentários ocasionais que a irmã Lírio lhe lançava por sobre os ombros. Toda a sua mente se concentrava nas extraordinárias circunstâncias de sua recepção. Tinha certeza de que aquelas duas mulheres tinham sido sinceras. Nenhum só olhar ou palavra conseguira registrar que estivesse fora de propósito. Evidentemente aquilo era alguma espécie de fachada, mas de qualquer forma uma fachada sólida, meticulosamente apoiada pelo cenário e pelo elenco. A ausência de ressonância, na sala, e agora no corredor, estava a indicar que eles tinham deixado o galpão pré-fabricado para se internarem no flanco da montanha e agora estavam atravessando a sua base. Segundo o seu palpite estavam mesmo andando em direção oeste — em direção à penedia na qual terminava a ilha. Não havia umidade nas paredes e o ar parecia fresco e puro, com uma brisa a afagá-los. Muito dinheiro e uma bela realização de engenharia tinham sido os responsáveis por aquilo. A palidez das duas mulheres estava a sugerir que passavam a maior parte do tempo internadas no âmago da montanha. Do que a irmã dissera, parecia que elas faziam parte de um grupo de funcionários internos que nada tinham a ver com o destacamento de choque do exterior, e que talvez não soubessem a espécie de homens que eles eram.

Aquilo era grotesco, concluiu Bond ao se aproximar de uma porta, na extremidade do corredor, perigosamente grotesco, mas em nada adiantava pensar nisso no momento. Ele apenas podia seguir o papel que lhe tinha sido destinado. Pelo menos, aquilo era melhor do que os bastidores, na arena exterior da ilha.

Junto à porta, a irmã Lírio fez soar uma campainha. Já eram esperados e a porta abriu-se imediatamente. Uma encantadora jovem chinesa, de quimono lilás e branco, ficou a sorrir e a curvar-se, como se deve esperar que o façam as jovens chinesas. E, mais uma vez só havia calor e um sentimento de boas-vindas naquele rosto pálido como uma for. A irmã Lírio exclamou: — Aqui estão eles, finalmente, May! São o senhor e a senhora John Bryce. E sei que ambos devem estar exaustos, por isso devemos levá-los imediatamente aos seus aposentos, para que possam repousar e dormir. — Voltando-se para Bond: — Esta é May, muito boazinha. Ela tratará de ambos. Qualquer coisa que queiram é só tocar a campainha que May atenderá. É uma espécie de favorita de todos os nossos hóspedes.

Hóspedes!, pensou Bond. Essa é a segunda vez que ela usa a palavra. Sorriu polidamente para a jovem, e disse;

— Muito prazer; sim, certamente que gostaríamos de ir para os nossos aposentos.

May envolveu-os num cálido sorriso, e disse em voz baixa e atraente: — Espero que ambos se sintam bem, sr. Bryce. Tomei a liberdade de mandar vir uma refeição assim que soube que os senhores iam chegar. Vamos...? — Corredores saiam para a esquerda e a direita de portas duplas de elevadores, instalados na parede oposta. A jovem adiantou-se, caminhando na frente, para a direita, logo seguida de Bond e Honeyehile, que tinham atrás a irmã Lírio.

Ao longo do corredor, dos dois lados, viam-se portas numeradas. A decoração era feita no mais pálido cor-de-rosa, com um tapete cinza-pombo. Os números nas portas eram superiores a dez. O corredor terminava abruptamente, com duas portas, uma em frente a outra, com a numeração catorze e quinze. A irmã May abriu a porta catorze e o casal a seguiu, entrando na peça.

Era um lindo quarto de casal, em moderno estilo Mia-mi, com paredes verde-escuro, chão encerado de mogno escuro, com um ou outro espesso tapete branco e bem desenhado mobiliário de bambu com um tecido “chintz” de grandes rosas vermelhas sobre fundo branco. Havia uma porta de comunicação para um quarto de vestir masculino e outra que dava para um banheiro moderno e extremamente luxuoso, com uma banheira de descida e um bidê.

Era como se tivessem sido introduzidos num apartamento do mais moderno hotel da Flórida, com exceção de dois detalhes que não passaram despercebidos a Bond. Não havia janelas e nenhuma maçaneta interior nas portas.

May olhou com expressão de expectativa, de um para o outro.

Bond voltou-se para Honeyehile e sorriu-lhe: — Parece muito confortável, não acha, querida?

A jovem brincava com a barra da saia e fez um sinal de assentimento sem olhar para Bond.

Ouviu-se uma tímida batida na porta e outra jovem, tão linda quanto May, entrou carregando uma bandeja que se equilibrava sobre as palmas das mãos. A jovem descansou a bandeja sobre a mesa do centro e puxou duas cadeiras. Retirou a toalha de linho imaculadamente limpa e saiu. Sentiu-se um delicioso cheiro de fiambre e café.

May e a irmã Lírio também se encaminharam para a porta. A mulher mais idosa se deteve por um instante e disse:

— E agora nós os deixaremos em paz. Se desejarem alguma coisa, basta tocar a campainha. Os interruptores estão ao lado da cama. Ah, outra coisa, poderão encontrar roupa limpa nos aparadores. Receio que sejam apenas de estilo chinês,

— acrescentou, como a desculpar-se —, mas espero que os tamanhos satisfaçam. A rouparia só recebeu as medidas ontem à noite. O Dr. deu ordens severas para que os senhores não fossem perturbados. Ficará encantado se puderem reunir-se a ele, esta noite, para o jantar. Deseja, entretanto, que tenham todo o resto do dia à vontade, a fim de que melhor se ambientem, compreendem? — Fez uma pausa e olhou para um e para outro, com um sorriso indagador. — Posso dizer que os senhores...?

— Sim, por favor, — disse Bond. — Pode dizer ao D., que teremos muito prazer em jantar com ele.

— Oh, sei que ficará contente. — Com uma derradeira mesura, as duas chinesas se retiraram e fecharam a porta.

Bond voltou-se para Honeyehile, que parecia embaraçada e ainda evitava os seus olhos. Ocorreu então a Bond que talvez jamais tivesse ela tido um tratamento tão cortês ou visto tanto luxo em sua vida. Para ela, tudo aquilo devia ser muito mais estranho e aterrador do que o que tinham passado ao lado de fora. Ela continuou na mesma posição, brincando com a barra da saia. Podiam-se notar vestígios de suor seco, sal e poeira em seu rosto. Suas pernas nuas estavam sujas e Bond observou que os dedos de seus pés se moviam, suavemente, ao pisarem nervosamente o maravilhoso e espesso tapete.

Bond riu. Riu com gosto ao pensamento de que os temores da jovem tivessem sido abafados pelas preocupações de etiqueta e comportamento, e riu-se também da figura que ambos faziam — ela em farrapos e ele com a suja camisa azul, as calças pretas e os sapatos de lona enlameados.

Aproximou-se dela e segurou-lhe mãos. Estavam frias. Disse: — Honey, somos um par de espantalhos, mas há apenas um problema básico. Devemos tomar o nosso desjejum primeiro, enquanto está quente, ou tiraremos antes esses farrapos e tomaremos um banho, tomando a nossa refeição fria? Não se preocupe com mais nada. Estamos aqui nessa maravilhosa casinha e isto é tudo o que importa. O que faremos, então?

Ela sorriu hesitante. Seus olhos azuis fixavam-se no rosto dele, na ânsia de obter segurança. Depois disse: — Você não está preocupado com o que nos possa acontecer? — Fez um sinal para o quarto e acrescentou: — Não acha que tudo isso pode ser uma armadilha?

— Se se trata de uma armadilha, já caímos nela. Agora nada mais podemos fazer senão comer a isca. A única questão que subsiste é a de saber se a comeremos quente ou fria. — Apertou-lhe as mãos e continuou: — Seriamente, Honey. Deixe as preocupações comigo. Pense apenas onde estávamos apenas há uma hora. Isso aqui não é melhor? Agora, decidamos a única coisa realmente importante. Banho ou desjejum?

Ela respondeu com relutância: — Bem, se você acha... Quero dizer — preferiria antes lavar-me. — Mas logo acrescentou: — Você terá que ajudar-me. — E sacudiu a cabeça em direção ao banheiro, dizendo: Não sei como mexer numa coisa dessas. Como é que se faz?

Bond respondeu com toda seriedade: — É muito fácil. Vou preparar tudo para você. Enquanto você estivar tomando o seu banho tomarei o meu desjejum. Ao mesmo tempo tratarei de fazer com que o seu não esfrie.

Bond aproximou-se de um dos armários embutidos e abriu a porta. No interior havia uma meia dúzia de quimonos, alguns de seda e outros de linho. Apanhou um de linho, ao acaso. Depois, voltando-se para ela, disse: — Tire suas roupas e meta-se nisso aqui, enquanto preparo o seu banho. Mais tarde você escolherá as coisas que preferir, para a cama e para o jantar.

Ela respondeu com gratidão: — Oh, sim, James. Se você apenas me mostrasse... — E logo começou a desabotoar a saia.

Bond pensou em tomá-la nos braços e beijá-la, mas, ao invés disso, disse abruptamente: — ótimo, Honey — e, adiantando-se para o banheiro, abriu as torneiras.

Havia de tudo naquele banheiro: essência para banhos Floris Lime, para homens, e pastilhas de Guarlain para o banho de senhoras. Esfarelou uma pastilha na água e imediatamente o banheiro perfumou-se como uma loja de orquídeas. O sabonete era o Sapoceti de Guarlain “Fleurs des Alpes”. Num pequeno armário de remédios, atrás de um espelho, em cima da pia, podiam-se encontrar tubos de pasta, escovas de dente e palitos “Steradent”, água “Rose” para lavagem bucal, aspirina e leite de magnésia. Havia também um aparelho de barbear elétrico, loção “Lentheric” para barba, e duas escovas de náilon para cabelos e pentes. Tudo era novo e ainda não tinha sido tocado.

Bond olhou para o seu rosto sujo e sem barbear, no espelho, e riu sardonicamente para os próprios olhos, cinzentos, de pária queimado pelo sol. O revestimento da pílula certamente que era do melhor açúcar. Seria inteligente esperar que o remédio, no interior daquela pílula, fosse dos mais amargos.

Tocou a água, com a mão, a fim de sentir a temperatura. Talvez estivesse muito quente para quem jamais tinha tomado antes um banho quente. Deixou então que corresse um pouco mais de água fria. Ao inclinar-se, sentiu que dois braços lhe eram passados em torno do pescoço. Endireitou-se. Aquele corpo dourado resplandecia no banheiro todo revestido de ladrilhos brancos. Ela beijou-o impetuosamente nos lábios. Ele passou-lhe os braços à volta da cintura e esmagou-a de encontro a seu corpo, com o coração aos pulos. Ela disse sem fôlego, ao seu ouvido: — Achei estranhas as roupas chinesas, mas de qualquer maneira você disse à mulher que nós éramos casados.

Uma das mãos de Bond estava pousada sobre o seu seio esquerdo, cujo mamilo estava completamente endurecido pela paixão. O ventre da jovem se comprimia contra o seu. Por que não? Por que não? Não seja tolo! Este é um momento louco para isso. Vocês dois estão diante de um perigo mortal. Você deve continuar frio como gelo, para ter alguma possibilidade de se livrar dessa enrascada. Mais tarde! Mais tarde! Não seja fraco.

Bond retirou a mão do seio dela e espalmou-a à volta de seu pescoço. Esfregou o rosto de encontro ao dela e depois aproximou a boca da boca da jovem e deu-lhe um prolongado beijo.

Afastou-se depois e manteve-a à distância de um braço. Por um momento ambos se olharam, com os olhos brilhando de desejo. Ela respirava ofegantemente, com os lábios entreabertos, de modo que ele podia ver-lhe o brilho dos dentes. Ele disse com a voz trêmula: — Honey, entre no banho antes que eu lhe dê uma surra.

Ela sorriu e sem nada dizer entrou na banheira e deitou-se em todo seu comprimento. Do fundo da banheira ergueu os olhos para ele. Os cabelos louros, em seu corpo, brilhavam como moedas de ouro. Ela disse provocadoramente: — Você tem que me esfregar. Não sei como devo fazer, e você terá que mostrar-me.

Bond respondeu desesperadamente: — Cale a boca, Honey, e deixe de namoros. Apanhe a esponja, o sabonete e comece logo a se esfregar. Que diabo! Isso não é o momento de se fazer amor. Vou tomar o meu desjejum. — Esticou a mão para a porta e segurou na maçaneta. Ela disse docemente: — James! — Ele olhou para trás e viu que ela lhe fazia uma careta, com a língua de fora. Retribuiu com uma careta selvagem e bateu a porta com força.

Em seguida, Bond dirigiu-se para o quarto de vestir e deixou-se ficar durante algum tempo, de pé, no centro da peça, esperando que as batidas de seu coração se acalmassem. Esfregou as mãos no rosto e sacudiu a cabeça, procurando esquecê-la.

Para clarear a mente, percorreu ainda cuidadosamente as duas peças, procurando saídas, possíveis armas, microfones, qualquer coisa enfim que lhe aumentasse o conhecimento da situação em que se achava. Nada disso, entretanto, pôde encontrar. Na parede havia um relógio elétrico que marcava oito e meia e uma série de botões de campainhas, ao lado da cama de casal. Esses botões traziam a indicação de “Sala de serviço”, “cabeleireiro”, “manicure”, “empregada”. Não havia telefone. Bem no alto, a um canto de ambas as peças, viam-se as grades de um pequeno ventilador. Cada uma dessas grades era de dois pés quadrados. Tudo inútil. As portas pareciam ser feitas de algum metal leve, pintadas para combinarem com as paredes. Bond jogou todo o peso de seu corpo contra uma delas, mas ela não cedeu um só milímetro. Bond esfregou o ombro. Aquele lugar era uma verdadeira prisão. Não adiantava discutir a situação. A armadilha tinha-se fechado hermèticamente sobre eles. Agora, a única coisa que restava aos ratos era tirarem o melhor proveito possível da isca de queijo.

Bond sentou-se à mesa do desjejum, sobre a qual estava uma grande jarra com suco de abacaxi, metida num pequeno balde de prata cheio de cubos de gelo. Serviu-se rapidamente e levantou a tampa de uma travessa. Ali estavam ovos mexidos sobre torradas, quatro fatias de toucinho defumado, um rim grelhado e o que parecia quatro salsichas inglesas de carne de porco. Havia também duas torradas quentes, pãezinhos conservados quentes dentro de guardanapos, geléia de laranja e morango e mel. O café estava quase fervendo numa grande garrafa térmica, e o creme exalava um odor fresco e agradável.

Do banheiro vinham as notas da canção “Marion” que a jovem estava cantarolando. Bond resolveu não dar ouvidos à cantoria e concentrou-se nos ovos.

Dez minutos depois, Bond ouviu que a porta do banheiro se abria. Descansou uma torrada que tinha numa das mãos e cobriu os olhos com a outra. Ela riu e disse: — Ele é um covarde. Tem medo de uma simples jovem. — Em seguida Bond ouviu-a a remexer nos armários. Ela continuava falando, em parte consigo mesma: — Não sei porque ele está assustado. Naturalmente que se eu lutasse com ele facilmente o dominaria. Talvez esteja com medo disso. Talvez não seja realmente muito forte, embora seus braços e peito pareçam bastante rijos. Contudo, ainda não vi o resto. Talvez seja fraco. Sim, deve ser isso. Essa é a razão pela qual não ousa despir-se na minha frente. Hum, agora vamos ver, será que ele gostaria de mim com essas roupas? — Ela elevou a voz: — Querido James, você gostaria de me ver de branco, com pássaros azul-pálido esvoaçando sobre o meu corpo?

— Sim, bolas! Agora acabe com essa conversa e venha comer. Estou começando a sentir sono.

Ela soltou uma exclamação: — Oh, se você quer dizer que já está na hora de irmos para a cama, naturalmente que me apressarei.

Ouviu-se uma agitação de passos apressados e Bond logo a via sentar-se diante de si. Ele deixou cair as mãos e ela sorriu-lhe. Estava linda. Seu cabelo estava escovado e penteado de um dos lados caindo sobre o rosto, e do outro com as madeixas puxadas para trás da orelha. Sua pele brilhava de frescura e os grandes olhos azuis resplandeciam de felicidade. Agora Bond estava gostando daquele nariz quebrado. Tinha-se tornado parte de seus pensamentos relativamente a ela, e subitamente lhe ocorreu perguntar-se por que estaria ele triste quando ela era tão imaculadamente bela quanto tantas outras lindas jovens. Sentou-se circunspectamente, com as mãos no colo, e a metade dos seios aparecendo na abertura do quimono.

Bond disse severamente: — Agora, ouça, Honey. Você está maravilhosa, mas esta não é a maneira de usar-se um quimono. Feche-o no corpo, prenda-o bem e deixe de tentar parecer uma prostituta. Isso simplesmente não são bons modos à mesa.

— Oh, você não passa de um boneco idiota. — E ajeitou o quimono, fechando-o um pouco, em uma ou duas polegadas. — Por que você não gosta de brincar? Gostaria de brincar de estar casada.

— Não à hora do desjejum — respondeu Bond com firmeza. — Vamos, coma logo. Está delicioso. De qualquer maneira estou muito sujo, e agora vou fazer a barba e tomar um banho. — Levantou-se, deu volta à mesa e beijou-lhe o alto da cabeça. — E quanto a essa história de brincar, como você diz, gostaria mais de brincar com você do que com qualquer outra pessoa do mundo. Mas não agora. — Sem esperar pela resposta, dirigiu-se ao banheiro e fechou a porta.

Bond barbeou-se e tomou um banho de chuveiro. Sentia-se desesperadamente sonolento. O sono chegava-lhe, de modo que de quando em quando tinha que interromper o que fazia e inclinar a cabeça, repousando-a entre os joelhos. Quando começou a escovar os dentes, o seu estado era tal que mal podia fazê-lo. Estava começando a reconhecer os sintomas. Tinha sido narcotizado. A coisa teria sido posta no suco de abacaxi ou no café? Este era um detalhe sem importância. Aliás, nada tinha importância. Tudo o que queria fazer era estender-se naquele chão de ladrilhos e fechar os olhos. Assim mesmo, dirigiu-se cambaleante para a porta, esquecendo-se de que estava nu. Isso também pouca importância tinha. A jovem já tinha terminado a refeição e agora estava na cama. Continuou trôpego, até ela, segurando-se nos móveis. O quimono tinha sido abandonado no chão e ela dormia pesadamente, completamente nua, sob um simples lençol.

Bond olhou para o travesseiro, ao lado da jovem. Não! Procurou o interruptor e apagou as luzes. Agora teve que se arrastar pelo chão até chegar ao seu quarto. Chegou até junto de sua cama e atirou-se nela. Com grande esforço conseguiu ainda esticar o braço, tocar o interruptor e tentar apagar a lâmpada do criado-mudo. Mas não o conseguiu: sua mão deslizou, atirou o abajur ao chão e a lâmpada espatifou-se. Com um derradeiro esforço, Bond virou-se ainda no leito e adormeceu profundamente.

Os números luminosos do relógio elétrico, no quarto de casal, anunciavam nove e meia.

Às dez horas, a porta do quarto abriu-se suavemente. Um vulto muito alto e magro destacava-se na luz do corredor. Era um homem. Talvez tivesse dois metros de altura. Permaneceu no limiar da porta, com os braços cruzados, ouvindo. Dando-se por satisfeito, caminhou vagarosamente pelo quarto e aproximou-se da cama. Conhecia perfeitamente o caminho. Curvou-se sobre o leito e ouviu a serena respiração da jovem. Depois de um momento, tocou em seu próprio peito e acionou um interruptor. Imediatamente um amplo feixe de luz difusa projetou-se na cama. O farolete estava preso ao corpo do homem por meio de um cinto que o fixava à altura do esterno.

Inclinou-se novamente para a frente, de modo que a luz clareou o rosto da jovem.

O intruso examinou aquele rosto durante alguns minutos. Uma de suas mãos avançou, apanhou a orla do lençol, à altura do queixo da jovem, e puxou-o lentamente até os pés da cama. Mas a mão que puxara aquele lençol não era u’a mão. Era um par de pinças de aço muito bem articuladas na extremidade de uma espécie de talo metálico que desaparecia dentro de uma manga de seda negra. Era u’a mão mecânica.

O homem contemplou durante longo tempo aquele corpo nu, deslocando o seu peito de um lado para outro, de modo que todo o leito fosse submetido ao feixe luminoso. Depois, a garra saiu novamente de sob aquela manga e delicadamente levantou a ponta do lençol, puxando-o dos pés da cama até recobrir todo o corpo da jovem. O homem demorou-se ainda por um momento a contemplar o rosto adormecido, depois apagou o farolete e atravessou silenciosamente o quarto em direção à porta aberta, além da qual estava Bond dormindo.

O homem demorou-se mais tempo ao lado do leito de Bond. Perscrutou cada linha, cada sombra do rosto moreno e quase cruel que jazia quase sem vida, sobre o travesseiro. Observou a circulação à altura do pescoço e contou-lhe as batidas; depois, quando puxou o lençol para baixo, fez o mesmo na área do coração. Estudou a curva dos músculos, nos braços de Bond e nas coxas, e considerou pensativo a força oculta no ventre musculoso de Bond. Chegou até mesmo a curvar-se sobre a mão direita de Bond, estudando-lhe cuidadosamente as linhas da vida e do destino.

Por fim, com grande cuidado, a pinça de aço puxou novamente o lençol, desta vez para cobrir o corpo de Bond até o pescoço. Por mais um minuto o elevado vulto permaneceu ao lado do homem adormecido, depois se retirou rapidamente, ganhando o corredor, enquanto a porta se fechava com um estalido metálico e seco.


CONTINUA

XI - VIDA NO CANAVIAL


Seriam cerca de oito horas, pensou Bond. A não ser o coaxar dos sapos, tudo estava mergulhado em silêncio. No canto mais distante da clareira, ele podia vislumbrar o vulto de Quarrel.

Podia-se ouvir o tinir metálico, enquanto ele se ocupava em desmontar e secar a sua “Remington”.

Por entre as árvores podiam-se ver também as luzes distantes, vindas do depósito de guano, riscar caminhos luminosos e festivos sobre a superfície escura do lago. O desagradável vento desaparecera e o abominável cenário estava mergulhado em trevas. Estava bastante fresco. As roupas de Bond tinham secado no corpo. A comida tinha aquecido o seu estômago. Ele experimentou uma agradável sensação de conforto, sonolência e paz. O dia seguinte ainda estava muito longe e não apresentava problemas, a não ser uma boa dose de exercício físico. A vida, subitamente, pareceu-lhe fácil e boa.

A jovem estava a seu lado, metida no saco de dormir. Estava deitada de costas, com a cabeça descansando nas mãos, e olhando para o teto de estrelas. Ele apenas conseguia divisar os pálidos contornos de seu rosto. De repente, ela disse: James, você prometeu dizer-me o que significava tudo isso. Vamos. Eu não dormirei enquanto você não o disser.

Bond riu. — Eu direi se você também disser. Também quero saber o que você pretende.

— Pois não, não tenho segredos: mas você deve falar primeiro.

— Está certo. — Bond puxou os joelhos até a altura do queixo e passou os braços à volta deles. — Eu sou uma espécie de policial. Eles me enviam de Londres quando há alguma coisa de estranho acontecendo em alguma parte do mundo e que não interessa a ninguém. Bem, não faz muito tempo, um dos funcionários do Governador, em Kingston, um homem chamado Strangways, aliás meu amigo, desapareceu. Sua secretária, que era uma linda jovem, também desapareceu sem deixar vestígios. Muitos pensaram que eles tivessem fugido juntos, mas eu não acreditei nisso. Eu...”

Bond contou tudo com simplicidade, falando em homens bons e maus, como numa história de aventuras lida em algum livro. Depois terminou: Como você vê, Honey, temos de voltar a Jamaica, amanhã à noite, todos nós, na canoa, e então o Governador nos dará ouvidos e enviará um destacamento de soldados para apanhar este chinês. Espero que isso terá como conseqüência levá-lo à prisão. Ele com certeza também sabe disso, e essa é a razão pela qual procura aniquilar-nos. Essa é a história. Agora é a sua vez.

A jovem disse: Você parece viver uma vida muita excitante. Sua mulher não deve gostar que você fique fora tanto tempo. Ela não tem medo de que você se fira?

— Não sou casado. A única que se preocupa com a possibilidade de que eu me fira é a minha companhia de seguros.

Ela continuou sondando: Mas suponho que você tenha namoradas.

— Não permanentes.

— Oh!

Fez-se uma pausa. Quarrel se aproximou e disse: “Capitão, farei o primeiro quarto, se for melhor. Estarei na extremidade da restinga e virei chamá-lo à meia-noite. Então talvez o senhor possa ir até as cinco horas, quando nós nos poremos em marcha. Precisamos estar fora daqui antes que clareie o dia.

— Está bem — respondeu Bond. — Acorde-me se você vir alguma coisa. O revólver está em ordem?

— Perfeito — respondeu Quarrel com evidente mostra de contentamento. Depois, dirigindo-se à jovem disse com leve tom de insinuação: — Durma bem, senhorita. Em seguida, desapareceu silenciosamente nas sombras.

— Gosto de Quarrel — disse a jovem. E, após uma pausa: — Você quer realmente saber alguma coisa a meu respeito? A história não é tão excitante quanto a sua.

— É claro que quero. E não omita nada.

— Não há nada a omitir. Você poderia escrever toda a história de minha vida nas costas de um cartão postal. Para começar, nunca saí de Jamaica. Vivi toda a minha vida num lugar chamado Beau Desert, na costa setentrional, nas proximidades do Porto Morgan.

Bond riu. — É estranho: posso dizer o mesmo; pelo menos por enquanto. Não notei você pela região. Você vive em cima de uma árvore?

— Ah, imagino que você tenha ficado na casa da praia. Eu nunca chego até ali. Vivo na Casa Grande.

— Mas nada ficou dela. É uma ruína no meio dos canaviais.

— Eu vivo na adega. Tenho vivido ali desde a idade de cinco anos. Depois a casa se incendiou e meus pais morreram. Nada me lembro deles, por isso você não precisa manifestar pesar. A princípio vivi ali com a minha ama negra, mas depois ela morreu, quando eu tinha apenas quinze anos. Nos últimos cinco anos tenho vivido ali sozinha.

— Nossa Senhora! — Bond estava boquiaberto. — Mas não havia ninguém para tomar conta de você? Os seus pais não deixaram nenhum dinheiro?

— Nem um tostão. — Não havia o mínimo traço de amargura na voz da jovem — talvez orgulho, se houvesse alguma coisa. — Você sabe, os Riders eram uma das mais antigas famílias de Jamaica. O primeiro Rider recebera de Cromwell as terras de Beau Desert, por ter sido um dos que assinaram o veredicto de morte contra o rei Carlos. Ele construiu a Casa Grande e minha família viveu ora nela ora fora dela, desde aquela época. Mas depois veio a decadência do açúcar e eu acho que a propriedade foi pessimamente administrada, e, ao tempo em que meu pai tomou conta da herança, havia somente dívidas — hipotecas e outros ônus. Assim, quando meu pai e minha mãe morreram a propriedade foi vendida. Eu pouco me importei, pois era muito jovem. Minha ama deve ter sido maravilhosa. Quiseram que alguém me adotasse, mas a minha babá reuniu os pedaços de mobília que não tinham sido queimados e com eles nós nos instalamos da melhor forma no meio daquelas ruínas. Depois de algum tempo ninguém mais veio interferir conosco. Ela cosia um pouco e lavava para algumas freguesas da aldeia, ao mesmo tempo que plantava bananas e outras coisas, sem falar do grande pé de fruta-pão que havia diante da casa. Comíamos o que era a ração habitual do povo de Jamaica. E havia os pés de cana-de-açúcar à nossa volta. Ela fizera também uma rede para apanhar peixes, a qual nós recolhíamos todos os dias. Tudo corria bem e nós tínhamos o suficiente para comer. Ela ensinou-me a ler e escrever, como pôde. Tínhamos uma pilha de velhos livros que escapara ao incêndio, inclusive uma enciclopédia. Comecei com o A quando tinha apenas oito anos, e cheguei até o meio do T. — Ela disse um tanto na defensiva: — Aposto que sei mais do que você sobre muitas coisas.

— Estou certo de que sim. — Bond estava perdido na visão daquela jovem de cabelos de linho errando pelas ruínas de uma grande construção, com uma obstinada negra a vigiá-la e a chamá-la para receber as lições que deveriam ter sido um mistério para ela mesma. — Sua ama deve ter sido uma criatura extraordinária.

— Ela era um amor. — Era uma afirmação peremptória. — Pensei que fosse morrer quando ela faleceu. As coisas não foram tão fáceis para mim depois disso. Antes eu levava uma vida de criança, mas subitamente tive que crescer e fazer tudo por mim mesma. E os homens tentaram apanhar-me e atingir-me. Diziam que queriam fazer amor comigo. — Fez uma pausa e acrescentou: — Eu era bonita naquela época. Bond disse muito sério:

— Você é uma das jovens mais belas que já vi.

— Com este nariz? Não seja tolo.

— Você não compreende. — Bond tentou encontrar palavras nas quais ela pudesse crer. — É claro que qualquer pessoa pode ver que o seu nariz está quebrado; mas desde esta manhã dificilmente eu pude notá-lo. Quando se olha para uma pessoa, olha-se para os seus olhos ou para a sua boca. Nesses dois pontos se encontram a expressão. Um nariz quebrado não tem maior significação do que uma orelha torta. Narizes e orelhas são peças do mobiliário facial. Algumas são mais bonitas do que outras, mas não são tão importantes quanto o resto. Se você tivesse um nariz bonito, tão bonito como o resto, você seria a jovem mais bela de Jamaica.

— Você é sincero? — Sua voz era ansiosa. — Você acha que eu poderia ser bela? Sei que muita coisa em mim está bem, mas quando olho no espelho só vejo o meu nariz quebrado. Estou certa de que o mesmo ocorre com outras pessoas que são, que são — bem — mais ou menos aleijadas.

Bond disse com impaciência: — Você não é aleijada! Não diga tolices. E aliás você pode endireitá-lo mediante uma simples operação. Basta que você vá aos Estados Unidos e a coisa levará apenas uma semana.

Ela disse com irritação: — Como é que você quer que eu faça isso? Tenho cerca de quinze libras debaixo de uma pedra, na minha adega. Tenho ainda três saias, três blusas, uma faca e uma panela de peixe. Conheço muito bem essas operações. O médico de Porto Maria já pediu informações para mim. Ele é um homem muito bom e escreveu para os Estados Unidos. Pois para que a operação seja bem feita, eu teria que gastar cerca de quinhentas libras, sem falar da passagem para Nova York, a conta do hospital e tudo o mais.

Sua voz tornou-se desesperançada: — Como é que você espera que eu possa ter todo esse dinheiro?

Bond já decidira sobre o que teria de ser feito, mas no momento apenas disse ternamente: — Bem, espero que se possam encontrar meios; mas, de qualquer maneira, prossiga com a sua história. Ela é muito excitante — muito mais interessante do que a minha. Você tinha chegado ao ponto em que a sua ama morreu. O que aconteceu depois?

A jovem recomeçou com relutância.

— Bem, a culpa é sua por ter interrompido. E você não deve falar de coisas que não compreende. Suponho que as pessoas lhe digam que você é simpático. Você deve também ter todas as namoradas que desejar. Bem, isso não aconteceria se você fosse vesgo ou tivesse um lábio leporino. — Na verdade, ele pôde ouvir o sorriso em sua voz: — Acho que quando voltarmos eu irei ter com o feiticeiro para que lhe faça uma mandinga e lhe dê alguma coisa assim. — E ela acrescentou tristemente: — Dessa forma, nós seremos mais parecidos.

Bond estendeu o braço e sua mão tocou nela: — Eu tenho outros planos. Mas continuemos, quero ouvir o resto da sua história.

— Bem, — disse a jovem com um suspiro. — Eu terei que me atrasar um pouco. Como você sabe, toda a propriedade é representada pela cana-de-açúcar e pela velha casa que está situada no meio da plantação. Bem, umas duas vezes por ano eles cortam a cana e mandam-na para o moinho. E quando eles o fazem, todos os animais e insetos que vivem nos canaviais entram em pânico e a maioria deles têm as suas tocas destruídas e são mortos. Na época da safra, alguns deles começaram a vir para as ruínas da casa, onde se escondiam. No princípio, minha babá ficava aterrorizada, pois lá vinham os mangustos, as cobras e os escorpiões, mas eu preparei dois quartos da adega para recebê-los. Não me assustei com eles, e eles nunca me fizeram mal. Pareciam compreender que eu estava cuidando deles. E devem ter contado aquilo aos seus amigos, ou alguma coisa parecida, pois depois de algum tempo era perfeitamente natural que todos viessem acantonar-se em seus dois quartos, onde ficavam até que os canaviais começassem novamente a crescer, quando então iam saindo e voltando para os campos. Dei-lhes toda a comida que podíamos pôr de lado, quando eles ficavam conosco, e todos se portavam muito bem, a não ser por algum odor e às vezes uma ou outra luta entre si. Mas eram muito mansos comigo. Naturalmente os cortadores de cana perceberam tudo e viam-me andando pelo lugar com cobras à volta do meu pescoço, e assim por diante, a ponto de ficarem aterrorizados comigo e me considerarem uma feiticeira. Por causa disso, eles nos deixaram completamente isoladas. Ela fez uma pausa, e depois recomeçou:

— Foi assim que aprendi tanta coisa sobre animais e insetos. Eu costumava ainda passar muito tempo no mar, aprendendo coisas sobre os animais marinhos, assim como sobre os pássaros. Se se chega a saber o que todas essas criaturas gostam de comer e do que têm medo, pode-se muito bem fazer amizade com elas. — Levantou os olhos para Bond e disse: Você não sabe o que perde ignorando todas essas coisas.

— Receio que perca muito — respondeu Bond com sinceridade. — Suponho que eles sejam muito melhores e mais interessantes que os homens.

Sobre isso nada sei — respondeu a jovem pensativa-mente. — Não conheço muitas pessoas. A maioria das que conheci foram detestáveis, mas acho que deve haver criaturas interessantes também. — Fez uma pausa, e prosseguiu: — Nunca pensei realmente que chegasse a gostar de alguma pessoa como gosto dos animais. Com exceção da babá, naturalmente. Até que... — Ela se interrompeu com um sorriso de timidez. — Bem, de qualquer forma, nós vivemos muito felizes juntas, até que eu fiz quinze anos, quando então a babá morreu e as coisas se tornaram muito difíceis. Havia um homem chamado Mander. Um homem horroroso. Era o capataz branco que servia aos proprietários da plantação. Ele vivia me procurando. Queria que eu fosse viver com ele, em sua casa de Porto Maria.

Eu o odiava, e costumava esconder-me sempre que ouvia o seu cavalo aproximando-se do canavial. Certa noite ele veio a pé e eu não o ouvi. Estava bêbado. Entrou na adega e lutou comigo porque não queria fazer o que ele desejava. Você sabe, as coisas que fazem as pessoas quando estão apaixonadas.

— Sim, já sei.

— Tentei matá-lo com a minha faca, mas ele era muito forte e deu-me um soco tão forte no rosto que me quebrou o nariz. Deixou-me inconsciente e acho que fez alguma coisa comigo. Sei que ele fez mesmo. No dia seguinte eu quis me matar quando vi o meu rosto e verifiquei o que ele me havia feito. Pensei que iria ter um filho. Teria sem dúvida me matado se tivesse tido um filho daquele homem. Em todo caso, não tive, e tudo continuou assim. Fui ao médico e ele fez o que pôde com o meu nariz e não me cobrou nada. Quanto ao resto, eu nada lhe contei, pois estava muito envergonhada. O homem não voltou mais. Eu esperei e nada fiz até a próxima colheita de cana-de-açúcar. Tinha um plano. Estava esperando que as aranhas viúvas-negras viessem procurar abrigo. Um belo dia elas chegaram. Apanhei a maior das fêmeas e á deixei numa caixa sem nada para comer. As fêmeas são terríveis. Então esperei que fizesse uma noite escura, sem luar. Na primeira noite dessas, apanhei a caixa com a aranha e caminhei até chegar à casa do homem. Estava muito escuro e eu me sentia aterrorizada com a possibilidade de encontrar algum assaltante pela estrada, mas não houve nada. Esperei em seu jardim, oculta entre os arbustos, até que ele se recolheu à cama. Então subi por uma árvore e ganhei a sacada; aguardei até que ele começasse a roncar e depois entrei pela janela. Ele estava nu, estendido na cama, sob o mosquiteiro. Levantei uma aba do filó, abri a caixa e sacudi-lhe a aranha sobre o ventre. Depois saí e voltei para casa.

— Deus do céu! — exclamou Bond reverentemente. — O que aconteceu com o homem?

Ela respondeu com satisfação: — Levou uma semana para morrer. Deve ter-lhe doído terrivelmente. Você sabe, a mordida dessa aranha é pavorosa. Os feiticeiros dizem que não há nada que se lhe compare. — Ela fez uma pausa, e como Bond não fizesse nenhum comentário, acrescentou: — Você não acha que eu fiz mal, não é?

— Bem, não faça disso um hábito — respondeu Bond suavemente. — Mas não posso culpá-la, diante do que ele tinha feito. E, depois, o que aconteceu?

— Bem, depois me estabeleci novamente — sua voz era firme. — Tive que me concentrar na tarefa de obter alimento suficiente, e naturalmente. — Acrescentou persuasivamente: — Eu tinha de fato um nariz muito bonito, antes. Você acha que os médicos podem torná-lo igualzinho ao que era antes?

— Eles poderão fazê-lo de qualquer forma que você quiser — disse Bond em tom definitivo. — Como é que você ganhou dinheiro?

— Foi graças à enciclopédia. Li nela que há pessoas que gostam de colecionar conchas marinhas e que as conchas raras podiam ser vendidas. Falei com o mestre-escola local, sem contar-lhe naturalmente o meu segredo, e ele descobriu para mim que havia uma revista norte-americana chamada “Nautilus”, dedicada aos colecionadores de conchas. Eu tinha apenas o dinheiro suficiente para tomar uma assinatura daquela revista e comecei a procurar as conchas que as pessoas pediam em seus anúncios. Escrevi a um comerciante de Miami e ele começou a comprar as minhas conchas. Foi emocionante. Naturalmente que cometi alguns erros, no princípio. Pensei, por exemplo, que as pessoas gostariam das conchas mais bonitas, mas esse não era o caso. Freqüentemente elas preferiam as conchas mais feias. Depois, quando achava conchas raras, punha-me a limpá-las e poli-las a fim de torná-las mais bonitas, mas isso também foi um erro. Os colecionadores querem as conchas exatamente como saem do mar, com o animal em seu interior também. Então consegui algum formol com o médico e o punha entre as conchas vivas, para que elas não tivessem mau cheiro, e depois mandava-as para o tal comerciante de Miami. Só aprendi bem o negócio de um ano para cá e já consegui quinze libras. Consegui esse resultado agora que sei como é que eles querem as conchas e se tivesse sorte, poderia fazer pelo menos cinqüenta libras por ano. Então, em dez anos poderia ir aos Estados Unidos e operar-me. Mas, continuou ela com intenso contentamento, tive uma notável maré de sorte. Fui a Crab Key pelo Natal, onde já tinha estado antes. Mas dessa vez eu encontrei essas conchas purpúreas. Não parecem grande coisa, mas eu enviei uma ou duas para Miami e o comerciante escreveu-me para dizer que compraria tantas dessas conchas quantas eu pudesse encontrar, e ao preço de até cinco dólares pelas perfeitas. Disse-me ainda que eu deveria manter segredo sobre o lugar de onde as tirava, pois de outra forma o “mercado seria estragado”, como disse ele, e os preços cairiam. É como se se tivesse uma mina de ouro particular. Agora serei capaz de juntar o dinheiro em cinco anos. Esse foi o motivo pelo qual tive grandes suspeitas de você, quando o encontrei na praia. Pensei que você tivesse vindo para roubar as minhas conchas.

— Você me deu um susto, pois pensei que você fosse a garota do Dr. No.

— Muito obrigada.

— Mas depois que você tiver feito a operação, o que irá fazer? Você não pode continuar vivendo numa adega durante toda a vida.

— Pensei em me tornar uma prostituta. — Ela o disse como se tivesse dito “enfermeira” ou “secretária”.

— Oh, o que é que você quer dizer com isso? — Talvez ela já tivesse ouvido aquela expressão sem compreendê-la bem.

— Uma dessas jovens que possuem um bonito apartamento e lindas roupas. Você sabe o que quero dizer — acrescentou ela com impaciência. — Os homens telefonam, marcam encontro, chegam, fazem amor e pagam. Elas ganham cem dólares de cada vez, em Nova Iorque, onde pensei começar. Naturalmente — admitiu — terei de fazer por menos, no começo, até que aprenda a trabalhar bem. Quanto é que vocês pagam pelas que não têm experiência?

Bond riu. — Francamente, não me lembro. Há muito tempo que não me encontro com essas mulheres.

Ela suspirou. — Sim, suponho que você possa ter tantas mulheres quantas queira, por nada. Suponho que apenas os homens feios paguem, mas isso é inevitável. Qualquer espécie de trabalho nas grandes cidades deve ser horrível. Pelo menos pode-se ganhar muito mais como prostituta. Depois, poderia voltar para Jamaica e comprar Beau Desert. Seria bastante rica para encontrar um marido bonito e ter alguns filhos. Agora que encontrei essas conchas, penso que poderia estar de volta a Jamaica quando tivesse trinta anos. Não seria formidável?

— Gosto da última parte do plano, mas não tenho muita confiança na primeira. De qualquer forma, como é que você veio a saber dessa história de prostitutas? Encontrou isso na letra P, na enciclopédia?

— Claro que não; não seja tolo. Há uns dois anos houve em Nova Iorque um escândalo sobre elas, envolvendo também um “play-boy” chamado Jelke. Ele tinha toda uma cadeia de prostitutas, e eu li muito sobre o caso no “Gleaner”. O jornal deu inclusive os preços que elas cobravam e tudo o mais. De qualquer forma, há milhares dessas jovens em Kingston, embora não sejam tão boas. Recebem apenas cinco xelins e não têm um lugar apropriado para fazer amor, a não ser no mato. Minha babá chegou a falar-me delas. Disse-me que eu não deveria imitá-las, pois do contrário seria muito infeliz. É claro que seria, recebendo apenas cinco xelins. Mas por cem dólares!...

Bond observou: — Você não conseguiria guardar todo esse dinheiro. Precisaria ter uma espécie de gerente para arranjar os homens, e teria ainda de dar gorjetas à polícia, para deixá-la em paz. Por fim, poderia ir facilmente parar na cadeia se tudo não corresse bem. Na verdade, com tudo o que você sabe sobre animais, bem poderia ter um ótimo emprego, cuidando deles, em algum jardim zoológico norte-americano. E o que me diz do Instituto de Jamaica? Tenho certeza de que você gostaria mais de trabalhar ali. E poderia também facilmente encontrar um bom marido. De qualquer forma, você não deve mais pensar em ser prostituta. Você tem um belo corpo e deve guardá-lo para o homem que amar.

— Isso é o que dizem as pessoas nos livros — disse ela com ar de dúvida. — A dificuldade está em que não há nenhum homem para ser amado em Beau Desert. — Depois acrescentou timidamente: — Você é o único inglês com quem jamais falei. Gostei de você desde o princípio, e não me importo de dizer-lhe essas coisas agora. Penso que há muitas pessoas das quais chegaria a gostar se saísse daqui.

— É claro que há. Centenas. E você é uma garota formidável; o que pensei assim que a vi.

— Assim que viu as minhas nádegas, você quer dizer. — Sua voz estava-se tornando sonolenta, mas cheia de prazer.

Bond riu. — Bem, eram nádegas maravilhosas. E o outro lado também era maravilhoso. — O corpo de Bond começou a se agitar com a lembrança de como a vira pela primeira vez. Depois de um instante, disse com mau humor: — Agora vamos, Honey. Está na hora de dormir. Haverá muito tempo para conversarmos quando voltarmos a Jamaica.

— Haverá? — perguntou ela desconsoladamente. — Você promete?

— Prometo.

Ele a viu agitar-se dentro do saco de dormir. Olhou para baixo e apenas pôde divisar o seu pálido perfil voltado para ele. Ela deixou escapar o profundo suspiro de uma criança, antes de adormecer.

Reinava silêncio na clareira e o tempo estava esfriando. Bond descansou a cabeça sobre os joelhos unidos. Sabia que era inútil procurar dormir, pois sua mente estava cheia dos acontecimentos do dia e dessa extraordinária mulher Tarzan que aparecera em sua vida. Era como se algum animal muito bonito se lhe tivesse dedicado. E não largaria os cordéis enquanto não tivesse resolvido os problemas dela. Estava sentindo isso. Naturalmente que não haveria grandes dificuldades para a maioria de seus problemas. Quanto à operação, seria fácil arranjá-la, e até mesmo encontrar-lhe um emprego, com o auxílio de amigos, e um lar. Tinha dinheiro e haveria de comprar-lhe roupas, mandaria ajeitar os seus cabelos e a lançaria no grande mundo. Seria divertido. Mas quanto ao resto? Quanto ao desejo físico que sentia por ela? Não se podia fazer amor com uma criança. Mas, seria ela uma criança? Não haveria nada de infantil relativamente ao seu corpo ou à sua personalidade. Era perfeitamente adulta e bem inteligente, a seu modo, e muito mais capaz de tomar conta de si mesma do que qualquer outra jovem de vinte anos que Bond conhecera.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um puxão em sua manga. A vozinha disse: — Por que você não vai dormir? Não está sentindo frio?

— Não; estou bem.

— Aqui no saco de dormir está bom e quente. Você quer vir para cá? Tem bastante lugar.

— Não, obrigado, Honey. Estou bem.

Houve uma pausa, e depois ela disse num sussurro: — Se você está pensando... Quero dizer — você não precisa fazer amor comigo... Eu poderia dormir de costas para o seu peito.

— Honey, querida, vá dormir. Seria maravilhoso dormir assim com você, mas não esta noite. De qualquer maneira, em breve terei de render Quarrel.

— Muito bem, — disse ela com voz mal humorada. — Talvez quando voltarmos a Jamaica.

— Talvez.

— Prometa. Não dormirei enquanto você não prometer.

Bond disse desesperadamente: — Naturalmente que prometo. Agora, vá dormir, Honeychile.

A sua voz se fez ouvir outra vez, triunfante: — Agora você tem uma dívida comigo. Você prometeu. Boa-noite, querido James.

— Boa noite, querida Honey.


XII - A COISA


O aperto no braço de Bond era ansioso. Ele de um salto pôs-se de pé.

Quarrel sussurrou tensamente: — Alguma coisa está-se aproximando pela água, capitão! Com certeza é o dragão!

A jovem levantou-se e perguntou nervosamente: — Que aconteceu?

Bond apenas disse: — Fique aí, Honey! Não se mexa. Eu voltarei.

Internou-se pelos arbustos do lado oposto da montanha e correu pela restinga, com Quarrel ao lado.

Chegaram até a extremidade da restinga, a vinte metros da clareira, e pararam sob o abrigo dos últimos arbustos, que Bond apartou com as mãos para ter um melhor campo de visão.

O que seria aquilo? A meia milha de distância, atravessando o lago, vinha algo informe, com dois olhos brilhantes cor de laranja, e pupilas negras. Entre estes, onde deveria estar a boca, tremulava um metro de chama azul. A luminosidade cinzenta das estrelas deixava ver uma espécie de cabeça abaulada entre duas pequenas asas semelhantes às de um morcego. Aquela coisa estranha deixava escapar um ronco surdo e baixo, que abafava um outro ruído, uma espécie de vibração rítmica. Aquela massa avançava na direção deles, à velocidade de uns dezesseis quilômetros por hora, deixando atrás de si uma esteira de espuma.

Quarrel sussurrou:

— Nossa, capitão! Que coisa é aquela?

Bond continuou de pé e respondeu laconicamente: — Não sei exatamente. Uma espécie de trator arranjado para meter medo. Está trabalhando com um motor diesel, e por isso você pode deixar os dragões de lado. Agora, vejamos... — Bond falava como se para si mesmo. — Não adianta fugir. Aquilo se move mais depressa do que nós e sabemos que pode esmagar árvores e atravessar pântanos. Temos que lhe dar combate aqui mesmo. Quais serão os seus pontos fracos? Os motoristas. Com certeza, dispõem de proteção. Em todo caso, não sabemos muito sobre esse ponto. Quarrel, você começará a disparar contra aquela cúpula quando estiverem a uns duzentos metros de nós. Faça a pontaria cuidadosamente e continue atirando. Visarei os faróis quando estiverem a cinqüenta metros. Não se está movendo sobre lagartas. Deve ter alguma espécie de rodas gigantescas, provavelmente de avião. Visarei as rodas também. Fique aí. Ficarei dez metros para baixo. Naturalmente vão reagir e nós temos que manter as balas longe da garota. Está combinado? — Bond esticou o braço e apertou o enorme ombro de Quarrel. — E não se preocupe demais. Esqueça-se de dragões. Trata-se apenas de alguma trapaça do Dr. No. Mataremos os motoristas, tomaremos conta do veículo e ganharemos com ele a costa. Isso economizará as nossas solas. Está bem?

Quarrel deu uma breve risada. — Está bem, capitão. Desde que o senhor assim o diz. Mas que Nosso Senhor saiba também que aquilo não é dragão!

Bond desceu pela restinga e se internou pelos arbustos, até que encontrou um ponto de onde podia ter um bom campo de tiro. Disse suavemente: — Honey!

— Sim, James — e a voz dela deixou transparecer alívio.

— Faça um buraco na areia como fizemos na praia. Faça-o por trás de raízes grossas e fique lá deitada. Talvez haja um tiroteio. Não tenha medo de dragões. Isto é apenas um veículo pintado, dirigido por alguns dos homens do Dr. No. Não se assuste. Estou aqui perto.

— Muito bem, James. Tenha cuidado! — A voz agora deixava transparecer um vivo temor.

Bond curvou-se, apoiando um joelho no chão, sobre as folhas e a areia, e olhou para fora.

Agora o veículo achava-se a uns trezentos metros de distância, e os seus faróis amarelos estavam iluminando a areia. Chamas azuis continuavam saindo da boca daquele engenho. Saíam de uma espécie de longo focinho, no qual se pintaram mandíbulas entreabertas, para darem ao todo a aparência de dragão. Um lança-chamas! Aquilo explicava as árvores queimadas e a história do administrador. A coloração azul da chama seria dada por alguma espécie de queimador, disposto adiante do lança-chamas.

Bond teve que admitir que aquela visão era algo de terrível, à medida que o veículo avançava pelo lago raso. Evidentemente fora calculado para infundir terror. Ele mesmo ter-se-ia assustado, não fora a vibração rítmica do motor diesel. Mas até que ponto aquilo seria vulnerável para homens que não fossem dominados pelo pânico?

A resposta ele a teve quase imediatamente. Ouviu-se o estampido da “Remington” de Quarrel. Uma centelha saiu da cabina encimada pela cúpula e logo se ouviu um ruído metálico. Quarrel disparou mais um tiro e, logo em seguida, uma rajada. As balas chocaram-se inutilmente de encontro à cabina. Não houve mesmo uma simples redução de velocidade. O monstro continuava avançando para o ponto de onde tinham partido os disparos. Bond descansou o cano de seu “Smith & Wesson” no braço, e fez cuidadosa pontaria. O profundo ruído surdo de sua arma fez-se ouvir por sobre o matraquear da “Remington” de Quarrel. Um dos faróis fora atingido e despedaçara-se. Bond disparou mais quatro tiros contra o outro e atingiu-o com o quinto e último disparo de seu revólver. O fantástico aparelho parecia continuar não dando importância, e foi avançando para o lugar de onde tinham partido os disparos do “Smith & Wesson”. Bond tornou a carregar a arma e começou a atirar contra os pneumáticos, sob as asas negro e ouro. A distância agora era de apenas trinta metros e podia jurar que já atingira mais de uma vez a roda mais próxima, sem nenhum resultado. Seria borracha sólida? O primeiro estremecimento de medo percorreu a pele de Bond.

Carregou mais uma vez. Seria aquela coisa maldita vulnerável pela retaguarda? Deveria correr para o lago e tentar uma abordagem? Avançou um passo, através dos arbustos, mas logo ficou imóvel, incapaz de prosseguir.

Subitamente, daquele focinho ameaçador, uma língua de fogo azulada tinha sido lançada na direção do esconderijo de Quarrel. À direita de Bond, no mato, surgira apenas uma chama laranja e vermelha, simultaneamente com um estranho urro, que imediatamente silenciou. Satisfeita, aquela língua de fogo se recolhera à sua boca. Agora aquilo fizera um movimento de rotação sobre o seu eixo e parará completamente. O buraco azulado da boca apontava diretamente para Bond.

Bond deixou-se ficar, esperando pelo horroroso fim. Olhou através das mandíbulas da morte e viu o brilhante f-lamento vermelho do queimador, bem no fundo do comprido tubo. Pensou no corpo de Quarrel — mas não havia tempo para pensar em Quarrel — e imaginou-o completamente carbonizado. Dentro em pouco ele também se incendiaria como uma tocha. Um único berro seria arrancado dele e os seus membros se encolheriam na pose de dançarino dos corpos queimados. Depois viria a vez de Honey. Meu Deus, para o quê ele os havia arrastado! Por que fora tão insano a ponto de enfrentar aquele homem com todo o seu arsenal? Por que não aceitara a advertência que lhe fora feita pelo longo dedo que o alcançara já em Jamaica? Bond trincou os dentes. Vamos, canalhas. Depressa.

Ouviu-se a sonoridade de um alto-falante, que anunciava metàlicamente: “Saia daí, inglês. E a boneca também. Depressa ou será frito no inferno, como o seu amigo”. Para dar mais força àquela ordem, uma língua de fogo foi lançada em sua direção. Bond deu um passo atrás para recuar daquele intenso calor. Sentiu o corpo da garota de encontro às suas costas. Ela disse historicamente: — Tive que vir, tive que vir.

Bond disse: — Está bem, Honey. Fique atrás de mim.

Ele tinha-se decidido. Não havia alternativa. Mesmo que a morte viesse mais tarde, não poderia ser pior do que aquela morte diante do lança-chamas. Bond apanhou a mão da jovem e puxou-a consigo para fora, saindo para a areia.

A voz se fez ouvir novamente: — Pare aí, camarada. E deixe cair o lança-ervilhas. Nada de truques, senão os caranguejos terão um bom almoço.

Bond deixou cair a sua arma. Lá se fora o “Smith & Wesson”. O “Beretta” não teria tido melhor sorte: A jovem lastimou-se, e Bond apertou a sua mão. — Agüente, Honey, — disse ele. — Nós nos livraremos disso.

Bond troçou de si mesmo por causa daquela mentira. Ouviu-se o ruído de uma porta de ferro que se abria. Por trás da cúpula, um homem saltou para a água e caminhou até eles, com um revólver na mão. Ao mesmo tempo ia-se mantendo fora da linha de fogo do lança-chamas. A trêmula chama azul iluminou o seu rosto. Era um chinês negro, de enorme estatura, vestindo apenas calças. Alguma coisa balançava em sua mão esquerda, e quando ele se aproximou mais, Bond pôde ver que eram algemas.

O homem deteve-se a alguns metros de distância e disse:

— Levantem os braços. Punhos juntos e caminhem em minha direção. Você primeiro, inglês. Devagar ou receberá mais um umbigo.

Bond obedeceu e quando estava a um passo do homem, este prendeu o revólver entre os dentes, e esticou os braços e atou os seus pulsos com as algemas. Bond examinou aquele rosto iluminado pelas chamas azuis. Era uma cara brutal, com olhos estrábicos. O agente do Dr. No fitou-o com desprezo. — Bastardo imbecil! — disse.

Bond deu as costas ao homem e começou a se afastar. Ia ver o corpo de Quarrel. Tinha que lhe dizer adeus. Ouviu-se o ruído de um disparo e uma bala jogou-lhe areia nos pés. Bond parou, e voltando-se lentamente disse:

— Não fique nervoso. Vou dar uma espiada no homem que você acabou de assassinar. Voltarei.

O homem abaixou o revólver e riu grosseiramente: — Muito bem. Divirta-se. Desculpe se não temos uma coroa. Volte logo, se não daremos uma amostra à boneca. Dois minutos.

Bond caminhou em direção ao cerrado de arbustos fumegantes. Ali chegando, olhou para baixo. Seus olhos e boca se contraíram. Sim, tinha sido bem como ele imaginara. Pior, mesmo. Disse docemente: — Perdoe-me, Quarrel. — Com o pé soltou um pouco de areia, que colheu com as mãos algemadas e verteu-a sobre os restos dos olhos de Quarrel. Depois caminhou lentamente, de volta, e ficou ao lado da jovem.

O homem empurrou-os para a frente com o revólver. Deram a volta por trás da máquina, onde havia uma pequena porta quadrada. Uma voz do interior disse: — Entrem e sentem-se no chão. Não toquem em nada ou ficarão com os dedos partidos.

Com dificuldade, arrastaram-se para dentro daquela caixa de ferro, que cheirava a óleo e suor. Havia lugar apenas para que ambos se sentassem com as pernas encolhidas, de joelhos para cima. O homem que empunhava o revólver e que vinha atrás deles saltou por último para dentro do carro e fechou a porta. Ligou uma lâmpada e sentou-se num assento de ferro, ao lado do chofer. — Muito bem, Sam, vamos andando. Você pode apagar o fogo. Há luz bastante para dirigir — disse.

Na painel de controle podia-se ver uma fileira de mostradores. O motorista esticou a mão e deslocou para baixo um par de interruptores. Engrenou o motor e olhou através de uma estreita fresta, cortada na parede de ferro, diante dele. Bond sentiu que o veículo dava uma volta. Ouviu-se um movimento mais rápido do motor, e o veículo avançou.

O ombro da jovem apertou-se de encontro ao de Bond.

— Para onde estão eles nos levando? — O seu sussurro traía um estremecimento.

Bond voltou a cabeça e olhou para ela. Era a primeira vez que podia ver os seus cabelos depois de secos. Estavam desfeitos pelo sono, mas não eram mais mechas de rabichos empastados. Caíam densamente até os ombros, onde terminavam em anéis voltados para dentro. Eram do mais pálido louro acinzentado e despediam reflexos quase prateados sob a luz elétrica. Ela olhou para o alto, para ele. A pele, à volta dos olhos e nos cantos da boca, mostrava-se lívida de medo.

Bond deu de ombros, procurando aparentar uma indiferença que não sentia!. Sussurrou: — Oh, espero que vamos ver o Dr. No. Não se preocupe demais, Honey. Esses homens não passam de pequenos bandidos. Com ele, as coisas serão diferentes. Quando estivermos diante dele, não diga nada, falarei por nos dois. — Ele apertou o seu ombro e disse: — Gosto da maneira por que você penteia o seu cabelo, e fico contente porque você não o apara muito curto.

Um pouco da tenção desapareceu do rosto dela. — Como é que você pode pensar em coisas como essa? — Deu um leve sorriso para ele, e acrescentou: — Mas estou contente por você gostar de meu penteado. Lavo os meus cabelos com óleo de coco uma vez por semana.

À lembrança de sua outra vida, seus olhos ficaram brilhantes. Ela baixou a cabeça para as mãos algemadas, a fim de esconder as lágrimas. Sussurrou quase para si mesma: — Tentarei ser brava. Tudo estará bem, desde que você esteja lá.

Bond aconchegou-se a ela. Levantou suas mãos algemadas até a altura dos olhos e examinou as algemas. Eram do tipo usado pela polícia norte-americana. Contraiu sua mão esquerda, a mais fina das duas, e tentou fazê-la deslizar pelo anel de aço. Mesmo o suor de sua pele de nada adiantou. Era inútil.

Os dois homens sentavam-se em seus bancos de ferro, indiferentes, e com as costas voltadas para eles. Sabiam que dominavam inteiramente a situação. Não havia possibilidade de que Bond oferecesse qualquer incômodo. Não poderia levantar-se ou dar o necessário impulso aos seus punhos para causar qualquer mal às cabeças de seus adversários, utilizando as algemas. Se conseguisse abrir a porta e pular para a água, o que lograria com isso? Imediatamente eles sentiriam a brisa fresca, nas costas, e parariam a máquina para queimá-lo na água ou içá-lo novamente. Bond aborrecia-se em pensar que os homens pouco se preocupavam com ele, pois sabiam tê-lo completamente em seu poder. Também não gostou da idéia de que aqueles homens eram bastante inteligentes para saber que ele não representava nenhuma ameaça. Indivíduos mais estúpidos teriam ficado em cima deles, de revólver em punho, tê-los-iam surrado, a ele e à jovem, barbaramente, e talvez os tivessem deixado inconscientes. Aqueles dois conheciam o ofício. Eram profissionais, ou tinham sido treinados para o serem.

Os dois homens não falaram. Não houve nenhum comentário sobre o quão hábil eles tinham sido, ou quanto ao seu cansaço ou destino. Apenas dirigiam a máquina serenamente, ultimando com eficiência a sua tarefa.

Bond continuava sem a mínima idéia do que seria aquilo. Sob a tinta negra e dourada, assim como sob o resto daquela fantasia, a máquina parecia uma espécie de trator, como ele nunca vira. Não tinha conseguido descobrir nomes de marcas comerciais, nos pneumáticos, pois estivera muito escuro, mas certamente que deveriam ser de borracha sólida ou porosa. Atrás havia um pequena roda para dar estabilidade ao conjunto. Uma espécie de barbatana de ferro fora ainda acrescentada e pintada também de preto e ouro, a fim de ajudar a dar a aparência de dragão. Os altos pára-lamas tinham sofrido um prolongamento, na forma de curtas asas voltadas para trás. Uma comprida cabeça de dragão, feita em metal, fora fixada ao radiador e os faróis receberam pontos centrais negros, para parecerem olhos. Era tudo, sem falar da cabina que fora recoberta com uma cúpula blindada e dotada de um lança-chamas. Era, como pensara Bond, um trator preparado para assustar e queimar — embora não pudesse atinar porque estava dotado de um lança-chamas e não de uma metralhadora. Era, evidentemente, a única espécie de veículo que poderia percorrer a ilha. Suas gigantescas rodas podiam avançar sobre os mangues, pântanos e ainda atravessar o lago raso. Galgaria também os agrestes planaltos de coral e, desde que andasse à noite, o calor experimentado na cabina seria pelo menos tolerável.

Bond ficara impressionado. Impressionado pelo toque de profissionalismo. O Dr. No era sem dúvida um homem que se preocupava intensamente com as coisas. Em pouco iria encontrá-lo. E em breve estaria diante do segredo do Dr. No. Então, o que aconteceria? Bond sorriu amargamente. Sim, não o deixariam sair dali com o seu conhecimento. Certamente seria morto, a menos que pudesse fugir ou conseguir a sua liberdade por meios persuasivos. E o que aconteceria à jovem? Poderia ele provar sua inocência e conseguir com que ela fosse poupada? Possivelmente, mas nunca mais ela teria permissão para deixar a ilha. Ali teria de ficar para o resto da vida, como amante ou mulher de um dos homens, ou do próprio Dr. No, se ela o impressionasse.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um trecho do percurso mais difícil, como se podia sentir pela trepidação. Tinham atravessado o lago e estavam no caminho que levava para o alto da montanha, junto às cabanas. A cabina vibrava e a máquina começou a galgar o terreno. Dentro de cinco minutos estariam lá.

O ajudante do motorista olhou por sobre o ombro para Bond e a jovem. Bond sorriu confiantemente para ele dizendo: Você receberá uma medalha por isso.

Os olhos amarelos e marrons olharam impassivelmente dentro dos dele, enquanto os lábios arroxeados e oleosos se fenderam num sorriso no qual havia um ódio repousado: Feche a boca, se... Depois, deu-lhe as costas.

A jovem tocou-o com o cotovelo e sussurrou: — Por que eles são tão rudes? Por que nos odeiam tanto?

Bond esboçou um sorriso e disse: — Acho que é porque lhes causamos medo. Talvez ainda estejam com medo, e isto porque não parecemos ter medo deles. Devemos mantê-los assim.

A jovem aconchegou-se a ele e disse: — Tentarei.

Agora a subida estava-se tornando mais íngreme. Uma luz azul-acinzentada atravessava as frestas da armadura. A madrugada se aproximava. Fora, em breve estaria começando mais um dia de calor abrasador, de execrável vento, carregado com o cheiro de gás dos pântanos. Bond pensou em Quarrel, o bravo gigante que não mais veria aquele dia, e com o qual eles deveriam agora estar caminhando através dos pauis de mangues. Quarrel tinha pressentido a morte, mas apesar disso tinha acompanhado Bond sem qualquer objeção. Sua fé em Bond tinha sido maior do que o seu medo. E Bond tinha-lhe faltado. Seria ele ainda o causador da morte da jovem?

O motorista esticou o braço em direção ao painel e na parte dianteira do veículo fez-se ouvir o breve zunido de uma sirena de polícia, que foi desaparecendo num gemido fúnebre. Mais um minuto e o veículo parava, continuando o motor em regime neutro. O homem apertou um interruptor e tirou um microfone de um gancho, a seu lado. Falou por aquele microfone e Bond pôde ouvir a sua voz aumentada, do lado de fora, por um altofalante. — Tudo bem. Apanhamos o inglês e a garota. O outro homem morreu. Isso é tudo. Abram. — Bond ouviu que uma porta se deslocava para o lado, sobre rolamentos. O motorista embreou e eles avançaram lentamente para a frente, parando alguns metros adiante. O motorista desligou o motor. Ouviu-se o ruído metálico da tranca e a porta foi aberta pelo lado de fora. Uma lufada de ar fresco e uma luz mais brilhante penetraram na cabina. Várias mãos agarraram Bond e arrastaram-no para trás, até um chão de cimento. Bond agora estava de pé e sentia o cano de um revólver encostado ao seu flanco. Uma voz disse: — Fique onde está. Nada de espertezas. — Bond olhou para o homem. Era mais um chinês negro, do mesmo tipo que os outros. Os olhos amarelos examinaram-no com curiosidade. Bond virou-se com indiferença. Outro homem estava cutucando a jovem com a arma. Bond disse asperamente: — Deixe a garota em paz! Em seguida, caminhou e pôs-se ao lado da jovem. Os dois homens pareceram surpresos. Deixaram-se ficar de pé, apontando as armas com hesitação.

Bond olhou à volta. Estavam numa das cabanas pré-fabricadas que ele vira do rio. Era ao mesmo tempo uma garagem e uma oficina. O “dragão” tinha sido colocado sobre um fosso de vistoria, no chão de concreto. Um motor de popa desmontado estava sobre uma das bancadas. Longos tubos de luz fluorescente estavam afixados ao teto e o ambiente estava impregnado do cheiro de óleo e fumaça de exaustor. O motorista e o seu companheiro examinavam a máquina. Em seguida deram alguns passos pelo galpão, como se andassem sem propósito.

Um dos guardas anunciou: — Enviei a mensagem. A ordem é que eles sejam levados. Foi tudo bem?

O ajudante de motorista, que parecia o homem mais responsável, ali presente, disse: — Sem dúvida. Alguns disparos. Os faróis foram partidos. Talvez haja alguns furos nos pneumáticos. Ponha os rapazes em ação — uma vistoria completa. Conduzirei esses dois e tirarei um cochilo. — E, voltando-se para Bond: — Bem, vamos andando — e indicou o caminho que saía do longo galpão.

Bond disse: — Vá andando você; e cuidado com os modos. Diga àqueles macacos que tirem as armas de cima de nós. Podem disparar por engano. Parecem bastante idiotas.

O homem se aproximou, e os outros os acompanharam logo atrás. O ódio brilhava em seus olhos. O chefe levantou o punho cerrado, tão grande quanto um pequeno malho e chegou-o à altura do nariz de Bond. Procurava controlar-se com esforço, e disse: — Ouça, senhor. Às vezes, nós, os rapazes, temos permissão para participar da festa final. Estou rezando para que essa seja uma dessas vezes. Certa ocasião fizemos com que a coisa durasse toda uma semana. E se eu o pego...

Riu e os seus olhos brilharam com crueldade. Olhou para o lado de Bond, fixando a garota. Seus olhos pareciam transformados em bocas que agitavam os lábios. Enfiou as mãos nos bolsos laterais das calças. A ponta de sua língua mostrava-se muito vermelha, entre os lábios arroxeados. Voltando-se para os companheiros disse: — Que tal, rapazes?

Os três homens estavam olhando também para a jovem. Fizeram um sinal de assentimento, como crianças diante de uma árvore de Natal.

Bond desejou atirar-se como um louco sobre eles, golpeando as suas caras com os punhos algemados e aceitando a sua vingança sangrenta. Não fosse pela jovem, bem que o teria feito. Mas tudo o que tinha conseguido com suas corajosas palavras fora amedrontá-la. Disse apenas: — Muito bem, muito bem. Vocês são quatro e nós somos dois, ainda por cima com as mãos atadas. Vamos, não queremos atingi-los. Apenas não nos empurrem muito de um lado para outro. O Dr. No poderia não ficar satisfeito.

Àquele nome, os rostos dos homens se modificaram. Três pares de olhos passaram apàticamente de Bond para o chefe. Por um segundo, este olhou com desconfiança para Bond, intrigado, tentando descobrir se Bond teria alguma influência junto ao Dr. No. Sua boca abriu-se para dizer algo, mas logo pareceu pensar melhor, e apenas disse de maneira incerta: — Bem, bem, estávamos simplesmente brincando. — Voltou-se para os homens, em busca de confirmação: — Não é?

— Sem dúvida, sem dúvida! — foi a resposta dada por um coro áspero, e os homens desviaram o olhar.

O chefe disse com mau humor: — Por aqui, senhor. — E ele mesmo pôs-se a caminho, percorrendo o comprido galpão.

Bond segurou o pulso da jovem e seguiu o chefe. Estava impressionado com a reação causada naqueles homens pelo nome do Dr. No. Aquilo era alguma coisa a lembrar se eles tivessem que se haver novamente com aquela turma.

O homem chegou a uma porta de madeira situada na extremidade do galpão. Ao lado havia um botão de campainha que ele pressionou duas vezes e esperou. Ouviu-se um estalido e a porta se abriu, mostrando dez metros de uma passagem rochosa, mas atapetada e que ia dar, na outra extremidade, em outra porta mais elegante e pintada de creme.

O homem ficou de lado. Siga em frente, senhor — disse; — bata na porta e será atendido pela recepcionista. — Não havia nenhuma ironia em sua voz e seus olhos se mostravam impassíveis.

Bond conduziu Honey pela passagem. Ouviu que a porta se fechava às suas costas. Deteve-se por um momento e fitou-a, perguntando-lhe: — E agora?

Ela riu, trêmula, mas respondeu: — Ê bom sentir-se tapete sob os pés.

Bond apertou o seu pulso. Andou até a porta pintada de creme e bateu.

A porta abriu-se e Bond entrou com a jovem ao lado. Quando se deteve instantaneamente, não chegou a perceber o encontrão que lhe dava a jovem, pois continuou estarrecido.


XIII - GAIOLA DE OURO


Era a espécie de sala de recepção que as maiores corporações norte-americanas possuem no andar em que se situa o escritório do presidente, em seus arranha-céus de Nova Iorque. Suas proporções eram agradáveis, com cerca de vinte pés quadrados. O chão era todo recoberto pelo mais espesso tapete Wilton cor-de-vinho. O teto e as paredes estavam pintados numa suave tonalidade cinza pombo. Viam-se ainda reproduções litográficas de esboços de balé de Degas penduradas em séries, nas paredes, e a iluminação era feita com altos e modernos jogos de abajures de seda verde-escuro, imitando a forma de elegantes barricas.

À direita de Bond estavam uma larga mesa de mogno, com o tampo recoberto com couro verde, outras peças que se harmonizavam perfeitamente com a mesa, e um caro sistema de intercomunicações. Duas cadeiras altas, de antiquado, aguardavam os visitantes. Do outro lado da sala via-se uma mesa do tipo refeitório, sobre a qual estavam várias revistas com capas em cores vivas e mais duas cadeiras. Tanto na mesa de escritório, como na outra, viam-se vasos de hibiscos. O ar era fresco e impregnado de leve fragrância.

Duas mulheres estavam naquela sala. Por trás da mesa de trabalho, empunhando uma caneta que descansava sobre um formulário impresso, estava sentada uma jovem chinesa, de aspecto eficiente, com óculos de armação de chifre, sob uma franja de cabelos negros cortados curtos. Em seus olhos e em sua boca havia o sorriso padrão de boas-vindas que qualquer recepcionista exibe — a um tempo claro, obsequioso e inquisitivo.

Ainda com a mão na maçaneta da porta pela qual eles tinham passado, e esperando que os recém-chegados se adiantassem mais, a fim de que ela a pudesse fechar, estava uma mulher mais velha, com aspecto de matrona, e que deveria ter cerca de quarenta e cinco anos. Era fácil ver-se que também tinha sangue chinês. Sua aparência, saudável, de farto busto, era viva e quase excessivamente graciosa. O seu “pince-nez” de lentes cortadas em quadrado brilhava com o desejo da recepcionista de os pôr à vontade.

Ambas as mulheres vestiam roupas imaculadamente alvas, com meias brancas e sapatos de camurça branca como costumam apresentar-se as auxiliares empregadas nos mais luxuosos salões de beleza norte-americanos. Havia um que de suave e pálido em suas peles, como se elas raramente saíssem para o ar-livre.

Bond observou o ambiente, enquanto a mulher junto à porta lhe dizia frases convencionais de boas-vindas, como se eles tivessem sido colhidos por uma tempestade o chegado com atraso a uma festa.

— Oh, coitados! Nós não sabíamos quando vocês iriam chegar. A todo momento nos diziam que vocês já estavam a caminho... primeiro à hora do chá, ontem, depois na hora do jantar, e apenas há uma hora fomos informadas de que vocês chegariam à hora do desjejum. Devem estar com fome. Venham aqui e ajudem a irmã Rosa a preencher o formulário; depois eu os prepararei para a cama. Devem estar muito cansados.

Ia dizendo aquilo com voz doce e cacarejante, ao mesmo tempo que fechava a porta e os levava para junto da mesa e os fazia sentar nas cadeiras. Depois disse: — Bem, eu sou a irmã Lírio, e esta é a irmã Rosa. Ela irá fazer-lhes apenas algumas perguntas. Agora, aceitam um cigarro? — e pegou uma caixa de couro trabalhado que estava em cima da mesa. Abriu-a e pô-la diante deles. A caixa tinha três divisões, e a chinesinha explicou apontando com um dedo: “Esses são americanos, esses são ingleses e esses turcos.” Ela apanhou um luxuoso isqueiro de mesa e esperou.

Bond estendeu as mãos algemadas para tirar um cigarro turco.

A irmã Lírio deu um gritinho de espanto: — Oh, mas francamente. — Parecia sinceramente embaraçada. — Irmã Rosa, dê-me a chave, depressa. Já disse por várias vezes que os pacientes não devem ser trazidos dessa maneira. — Havia impaciência e aborrecimento em sua voz. — Francamente, aquela gente lá de fora! Já era tempo que eles fossem chamados à ordem.

A irmã Rosa estava tão embaraçada quanto a irmã Lírio. Rapidamente remexeu dentro de uma gaveta e entregou uma chave à irmã Lírio, que com muitas desculpas e cheia de dedos abriu os dois pares de algemas e, afastando-se para trás da mesa, deixou aquelas duas pulseiras de aço caírem dentro da cesta de papéis como se fossem ataduras sujas.

— Obrigado, — disse Bond, que não sabia como enfrentar aquela situação, a não ser procurando desempenhar um papel qualquer na comédia que se estava representando. Ele estendeu o braço, apanhou um cigarro e acendeu-o. Lançou um olhar para Honeyehile Rider, que parecia estonteada e nervosamente apertava com as mãos os braços de sua cadeira. Bond dirigiu-lhe um sorriso de conforto.

— Agora, por favor; — disse a irmã Rosa e inclinou-se sobre um comprido formulário impresso em papel caro. — Prometo ser o mais rápida que puder. O seu nome, sr... sr...

— Bryce, John Bryce.

Ela escreveu a resposta com grande concentração. — Endereço permanente?

— Aos cuidados do Jardim Zoológico Real, Regents Park, Londres, Inglaterra.

— Profissão?

— Ornitologista.

— Oh, meu Deus!, poderia o senhor soletrar isso? Bond atendeu-a.

— Muito obrigada. Agora, vejamos, objeto da viagem?

— Aves — respondeu Bond. — Sou também representante da Sociedade Audubon de Nova Iorque. Eles arrendaram parte desta ilha.

— Oh, sem dúvida. — Bond observou que a pena escrevia exatamente o que ele dizia. Depois da última palavra ela pôs um claro ponto de interrogação entre parênteses.

— E — a irmã Rosa sorriu polidamente em direção a Honeyehile — a sua esposa? Ela também está interessada em pássaros?

— Sim, sem dúvida.

— O seu primeiro nome?

— Honeyehile.

A irmã Rosa estava encantada. — Que nome lindo! — Ela voltou a escrever apressadamente. — E agora os parentes mais próximos de ambos, e estará tudo acabado.

Bond deu o verdadeiro nome de M como o parente mais próximo de ambos. Apresentou-o como “tio” e indicou o seu endereço como sendo “Diretor-Gerente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres.”

A irmã Rosa acabou de escrever e disse: — Pronto, está tudo feito. Muito obrigada, sr. Bryce, e espero que ambos apreciem a permanência aqui.

— Muito obrigado. Estou certo de que apreciaremos. — Bond levantou-se e Honeyehile fez o mesmo, ainda com expressão vazia.

A irmã Lírio disse: — Agora, venham comigo, queridos.

— Ela caminhou até uma porta na parede distante e deteve-se com a mão na maçaneta talhada em vidro. — Oh, meu Deus, — disse —, não é que agora me esqueci do número de seus quartos? É o apartamento creme, não é, irmã?

— Isso mesmo. Catorze e quinze.

— Obrigada, querida. E agora — ela abriu a porta — se vocês quiserem me seguir... Receio que seja uma caminhada um pouco longa. — Fechou a porta, por trás deles, e pôs-se à frente, indicando o caminho. — O Doutor tem falado várias vezes em instalar uma dessas escadas rolantes, ou algo de parecido, mas sabem como são os homens ocupados: — Ela riu alegremente. — Ele tem tantas outras coisas em que pensar!

— Sim, acredito, — disse Bond polidamente.

Bond tomou a mão da jovem e seguiram ambos a maternal e agitada chinesa através de cem metros de um alto corredor, do mesmo estilo da sala de recepção, mas que era iluminado a freqüentes intervalos por caros tubos luminosos fixados às paredes.

Bond respondia com polidos monossílabos aos comentários ocasionais que a irmã Lírio lhe lançava por sobre os ombros. Toda a sua mente se concentrava nas extraordinárias circunstâncias de sua recepção. Tinha certeza de que aquelas duas mulheres tinham sido sinceras. Nenhum só olhar ou palavra conseguira registrar que estivesse fora de propósito. Evidentemente aquilo era alguma espécie de fachada, mas de qualquer forma uma fachada sólida, meticulosamente apoiada pelo cenário e pelo elenco. A ausência de ressonância, na sala, e agora no corredor, estava a indicar que eles tinham deixado o galpão pré-fabricado para se internarem no flanco da montanha e agora estavam atravessando a sua base. Segundo o seu palpite estavam mesmo andando em direção oeste — em direção à penedia na qual terminava a ilha. Não havia umidade nas paredes e o ar parecia fresco e puro, com uma brisa a afagá-los. Muito dinheiro e uma bela realização de engenharia tinham sido os responsáveis por aquilo. A palidez das duas mulheres estava a sugerir que passavam a maior parte do tempo internadas no âmago da montanha. Do que a irmã dissera, parecia que elas faziam parte de um grupo de funcionários internos que nada tinham a ver com o destacamento de choque do exterior, e que talvez não soubessem a espécie de homens que eles eram.

Aquilo era grotesco, concluiu Bond ao se aproximar de uma porta, na extremidade do corredor, perigosamente grotesco, mas em nada adiantava pensar nisso no momento. Ele apenas podia seguir o papel que lhe tinha sido destinado. Pelo menos, aquilo era melhor do que os bastidores, na arena exterior da ilha.

Junto à porta, a irmã Lírio fez soar uma campainha. Já eram esperados e a porta abriu-se imediatamente. Uma encantadora jovem chinesa, de quimono lilás e branco, ficou a sorrir e a curvar-se, como se deve esperar que o façam as jovens chinesas. E, mais uma vez só havia calor e um sentimento de boas-vindas naquele rosto pálido como uma for. A irmã Lírio exclamou: — Aqui estão eles, finalmente, May! São o senhor e a senhora John Bryce. E sei que ambos devem estar exaustos, por isso devemos levá-los imediatamente aos seus aposentos, para que possam repousar e dormir. — Voltando-se para Bond: — Esta é May, muito boazinha. Ela tratará de ambos. Qualquer coisa que queiram é só tocar a campainha que May atenderá. É uma espécie de favorita de todos os nossos hóspedes.

Hóspedes!, pensou Bond. Essa é a segunda vez que ela usa a palavra. Sorriu polidamente para a jovem, e disse;

— Muito prazer; sim, certamente que gostaríamos de ir para os nossos aposentos.

May envolveu-os num cálido sorriso, e disse em voz baixa e atraente: — Espero que ambos se sintam bem, sr. Bryce. Tomei a liberdade de mandar vir uma refeição assim que soube que os senhores iam chegar. Vamos...? — Corredores saiam para a esquerda e a direita de portas duplas de elevadores, instalados na parede oposta. A jovem adiantou-se, caminhando na frente, para a direita, logo seguida de Bond e Honeyehile, que tinham atrás a irmã Lírio.

Ao longo do corredor, dos dois lados, viam-se portas numeradas. A decoração era feita no mais pálido cor-de-rosa, com um tapete cinza-pombo. Os números nas portas eram superiores a dez. O corredor terminava abruptamente, com duas portas, uma em frente a outra, com a numeração catorze e quinze. A irmã May abriu a porta catorze e o casal a seguiu, entrando na peça.

Era um lindo quarto de casal, em moderno estilo Mia-mi, com paredes verde-escuro, chão encerado de mogno escuro, com um ou outro espesso tapete branco e bem desenhado mobiliário de bambu com um tecido “chintz” de grandes rosas vermelhas sobre fundo branco. Havia uma porta de comunicação para um quarto de vestir masculino e outra que dava para um banheiro moderno e extremamente luxuoso, com uma banheira de descida e um bidê.

Era como se tivessem sido introduzidos num apartamento do mais moderno hotel da Flórida, com exceção de dois detalhes que não passaram despercebidos a Bond. Não havia janelas e nenhuma maçaneta interior nas portas.

May olhou com expressão de expectativa, de um para o outro.

Bond voltou-se para Honeyehile e sorriu-lhe: — Parece muito confortável, não acha, querida?

A jovem brincava com a barra da saia e fez um sinal de assentimento sem olhar para Bond.

Ouviu-se uma tímida batida na porta e outra jovem, tão linda quanto May, entrou carregando uma bandeja que se equilibrava sobre as palmas das mãos. A jovem descansou a bandeja sobre a mesa do centro e puxou duas cadeiras. Retirou a toalha de linho imaculadamente limpa e saiu. Sentiu-se um delicioso cheiro de fiambre e café.

May e a irmã Lírio também se encaminharam para a porta. A mulher mais idosa se deteve por um instante e disse:

— E agora nós os deixaremos em paz. Se desejarem alguma coisa, basta tocar a campainha. Os interruptores estão ao lado da cama. Ah, outra coisa, poderão encontrar roupa limpa nos aparadores. Receio que sejam apenas de estilo chinês,

— acrescentou, como a desculpar-se —, mas espero que os tamanhos satisfaçam. A rouparia só recebeu as medidas ontem à noite. O Dr. deu ordens severas para que os senhores não fossem perturbados. Ficará encantado se puderem reunir-se a ele, esta noite, para o jantar. Deseja, entretanto, que tenham todo o resto do dia à vontade, a fim de que melhor se ambientem, compreendem? — Fez uma pausa e olhou para um e para outro, com um sorriso indagador. — Posso dizer que os senhores...?

— Sim, por favor, — disse Bond. — Pode dizer ao D., que teremos muito prazer em jantar com ele.

— Oh, sei que ficará contente. — Com uma derradeira mesura, as duas chinesas se retiraram e fecharam a porta.

Bond voltou-se para Honeyehile, que parecia embaraçada e ainda evitava os seus olhos. Ocorreu então a Bond que talvez jamais tivesse ela tido um tratamento tão cortês ou visto tanto luxo em sua vida. Para ela, tudo aquilo devia ser muito mais estranho e aterrador do que o que tinham passado ao lado de fora. Ela continuou na mesma posição, brincando com a barra da saia. Podiam-se notar vestígios de suor seco, sal e poeira em seu rosto. Suas pernas nuas estavam sujas e Bond observou que os dedos de seus pés se moviam, suavemente, ao pisarem nervosamente o maravilhoso e espesso tapete.

Bond riu. Riu com gosto ao pensamento de que os temores da jovem tivessem sido abafados pelas preocupações de etiqueta e comportamento, e riu-se também da figura que ambos faziam — ela em farrapos e ele com a suja camisa azul, as calças pretas e os sapatos de lona enlameados.

Aproximou-se dela e segurou-lhe mãos. Estavam frias. Disse: — Honey, somos um par de espantalhos, mas há apenas um problema básico. Devemos tomar o nosso desjejum primeiro, enquanto está quente, ou tiraremos antes esses farrapos e tomaremos um banho, tomando a nossa refeição fria? Não se preocupe com mais nada. Estamos aqui nessa maravilhosa casinha e isto é tudo o que importa. O que faremos, então?

Ela sorriu hesitante. Seus olhos azuis fixavam-se no rosto dele, na ânsia de obter segurança. Depois disse: — Você não está preocupado com o que nos possa acontecer? — Fez um sinal para o quarto e acrescentou: — Não acha que tudo isso pode ser uma armadilha?

— Se se trata de uma armadilha, já caímos nela. Agora nada mais podemos fazer senão comer a isca. A única questão que subsiste é a de saber se a comeremos quente ou fria. — Apertou-lhe as mãos e continuou: — Seriamente, Honey. Deixe as preocupações comigo. Pense apenas onde estávamos apenas há uma hora. Isso aqui não é melhor? Agora, decidamos a única coisa realmente importante. Banho ou desjejum?

Ela respondeu com relutância: — Bem, se você acha... Quero dizer — preferiria antes lavar-me. — Mas logo acrescentou: — Você terá que ajudar-me. — E sacudiu a cabeça em direção ao banheiro, dizendo: Não sei como mexer numa coisa dessas. Como é que se faz?

Bond respondeu com toda seriedade: — É muito fácil. Vou preparar tudo para você. Enquanto você estivar tomando o seu banho tomarei o meu desjejum. Ao mesmo tempo tratarei de fazer com que o seu não esfrie.

Bond aproximou-se de um dos armários embutidos e abriu a porta. No interior havia uma meia dúzia de quimonos, alguns de seda e outros de linho. Apanhou um de linho, ao acaso. Depois, voltando-se para ela, disse: — Tire suas roupas e meta-se nisso aqui, enquanto preparo o seu banho. Mais tarde você escolherá as coisas que preferir, para a cama e para o jantar.

Ela respondeu com gratidão: — Oh, sim, James. Se você apenas me mostrasse... — E logo começou a desabotoar a saia.

Bond pensou em tomá-la nos braços e beijá-la, mas, ao invés disso, disse abruptamente: — ótimo, Honey — e, adiantando-se para o banheiro, abriu as torneiras.

Havia de tudo naquele banheiro: essência para banhos Floris Lime, para homens, e pastilhas de Guarlain para o banho de senhoras. Esfarelou uma pastilha na água e imediatamente o banheiro perfumou-se como uma loja de orquídeas. O sabonete era o Sapoceti de Guarlain “Fleurs des Alpes”. Num pequeno armário de remédios, atrás de um espelho, em cima da pia, podiam-se encontrar tubos de pasta, escovas de dente e palitos “Steradent”, água “Rose” para lavagem bucal, aspirina e leite de magnésia. Havia também um aparelho de barbear elétrico, loção “Lentheric” para barba, e duas escovas de náilon para cabelos e pentes. Tudo era novo e ainda não tinha sido tocado.

Bond olhou para o seu rosto sujo e sem barbear, no espelho, e riu sardonicamente para os próprios olhos, cinzentos, de pária queimado pelo sol. O revestimento da pílula certamente que era do melhor açúcar. Seria inteligente esperar que o remédio, no interior daquela pílula, fosse dos mais amargos.

Tocou a água, com a mão, a fim de sentir a temperatura. Talvez estivesse muito quente para quem jamais tinha tomado antes um banho quente. Deixou então que corresse um pouco mais de água fria. Ao inclinar-se, sentiu que dois braços lhe eram passados em torno do pescoço. Endireitou-se. Aquele corpo dourado resplandecia no banheiro todo revestido de ladrilhos brancos. Ela beijou-o impetuosamente nos lábios. Ele passou-lhe os braços à volta da cintura e esmagou-a de encontro a seu corpo, com o coração aos pulos. Ela disse sem fôlego, ao seu ouvido: — Achei estranhas as roupas chinesas, mas de qualquer maneira você disse à mulher que nós éramos casados.

Uma das mãos de Bond estava pousada sobre o seu seio esquerdo, cujo mamilo estava completamente endurecido pela paixão. O ventre da jovem se comprimia contra o seu. Por que não? Por que não? Não seja tolo! Este é um momento louco para isso. Vocês dois estão diante de um perigo mortal. Você deve continuar frio como gelo, para ter alguma possibilidade de se livrar dessa enrascada. Mais tarde! Mais tarde! Não seja fraco.

Bond retirou a mão do seio dela e espalmou-a à volta de seu pescoço. Esfregou o rosto de encontro ao dela e depois aproximou a boca da boca da jovem e deu-lhe um prolongado beijo.

Afastou-se depois e manteve-a à distância de um braço. Por um momento ambos se olharam, com os olhos brilhando de desejo. Ela respirava ofegantemente, com os lábios entreabertos, de modo que ele podia ver-lhe o brilho dos dentes. Ele disse com a voz trêmula: — Honey, entre no banho antes que eu lhe dê uma surra.

Ela sorriu e sem nada dizer entrou na banheira e deitou-se em todo seu comprimento. Do fundo da banheira ergueu os olhos para ele. Os cabelos louros, em seu corpo, brilhavam como moedas de ouro. Ela disse provocadoramente: — Você tem que me esfregar. Não sei como devo fazer, e você terá que mostrar-me.

Bond respondeu desesperadamente: — Cale a boca, Honey, e deixe de namoros. Apanhe a esponja, o sabonete e comece logo a se esfregar. Que diabo! Isso não é o momento de se fazer amor. Vou tomar o meu desjejum. — Esticou a mão para a porta e segurou na maçaneta. Ela disse docemente: — James! — Ele olhou para trás e viu que ela lhe fazia uma careta, com a língua de fora. Retribuiu com uma careta selvagem e bateu a porta com força.

Em seguida, Bond dirigiu-se para o quarto de vestir e deixou-se ficar durante algum tempo, de pé, no centro da peça, esperando que as batidas de seu coração se acalmassem. Esfregou as mãos no rosto e sacudiu a cabeça, procurando esquecê-la.

Para clarear a mente, percorreu ainda cuidadosamente as duas peças, procurando saídas, possíveis armas, microfones, qualquer coisa enfim que lhe aumentasse o conhecimento da situação em que se achava. Nada disso, entretanto, pôde encontrar. Na parede havia um relógio elétrico que marcava oito e meia e uma série de botões de campainhas, ao lado da cama de casal. Esses botões traziam a indicação de “Sala de serviço”, “cabeleireiro”, “manicure”, “empregada”. Não havia telefone. Bem no alto, a um canto de ambas as peças, viam-se as grades de um pequeno ventilador. Cada uma dessas grades era de dois pés quadrados. Tudo inútil. As portas pareciam ser feitas de algum metal leve, pintadas para combinarem com as paredes. Bond jogou todo o peso de seu corpo contra uma delas, mas ela não cedeu um só milímetro. Bond esfregou o ombro. Aquele lugar era uma verdadeira prisão. Não adiantava discutir a situação. A armadilha tinha-se fechado hermèticamente sobre eles. Agora, a única coisa que restava aos ratos era tirarem o melhor proveito possível da isca de queijo.

Bond sentou-se à mesa do desjejum, sobre a qual estava uma grande jarra com suco de abacaxi, metida num pequeno balde de prata cheio de cubos de gelo. Serviu-se rapidamente e levantou a tampa de uma travessa. Ali estavam ovos mexidos sobre torradas, quatro fatias de toucinho defumado, um rim grelhado e o que parecia quatro salsichas inglesas de carne de porco. Havia também duas torradas quentes, pãezinhos conservados quentes dentro de guardanapos, geléia de laranja e morango e mel. O café estava quase fervendo numa grande garrafa térmica, e o creme exalava um odor fresco e agradável.

Do banheiro vinham as notas da canção “Marion” que a jovem estava cantarolando. Bond resolveu não dar ouvidos à cantoria e concentrou-se nos ovos.

Dez minutos depois, Bond ouviu que a porta do banheiro se abria. Descansou uma torrada que tinha numa das mãos e cobriu os olhos com a outra. Ela riu e disse: — Ele é um covarde. Tem medo de uma simples jovem. — Em seguida Bond ouviu-a a remexer nos armários. Ela continuava falando, em parte consigo mesma: — Não sei porque ele está assustado. Naturalmente que se eu lutasse com ele facilmente o dominaria. Talvez esteja com medo disso. Talvez não seja realmente muito forte, embora seus braços e peito pareçam bastante rijos. Contudo, ainda não vi o resto. Talvez seja fraco. Sim, deve ser isso. Essa é a razão pela qual não ousa despir-se na minha frente. Hum, agora vamos ver, será que ele gostaria de mim com essas roupas? — Ela elevou a voz: — Querido James, você gostaria de me ver de branco, com pássaros azul-pálido esvoaçando sobre o meu corpo?

— Sim, bolas! Agora acabe com essa conversa e venha comer. Estou começando a sentir sono.

Ela soltou uma exclamação: — Oh, se você quer dizer que já está na hora de irmos para a cama, naturalmente que me apressarei.

Ouviu-se uma agitação de passos apressados e Bond logo a via sentar-se diante de si. Ele deixou cair as mãos e ela sorriu-lhe. Estava linda. Seu cabelo estava escovado e penteado de um dos lados caindo sobre o rosto, e do outro com as madeixas puxadas para trás da orelha. Sua pele brilhava de frescura e os grandes olhos azuis resplandeciam de felicidade. Agora Bond estava gostando daquele nariz quebrado. Tinha-se tornado parte de seus pensamentos relativamente a ela, e subitamente lhe ocorreu perguntar-se por que estaria ele triste quando ela era tão imaculadamente bela quanto tantas outras lindas jovens. Sentou-se circunspectamente, com as mãos no colo, e a metade dos seios aparecendo na abertura do quimono.

Bond disse severamente: — Agora, ouça, Honey. Você está maravilhosa, mas esta não é a maneira de usar-se um quimono. Feche-o no corpo, prenda-o bem e deixe de tentar parecer uma prostituta. Isso simplesmente não são bons modos à mesa.

— Oh, você não passa de um boneco idiota. — E ajeitou o quimono, fechando-o um pouco, em uma ou duas polegadas. — Por que você não gosta de brincar? Gostaria de brincar de estar casada.

— Não à hora do desjejum — respondeu Bond com firmeza. — Vamos, coma logo. Está delicioso. De qualquer maneira estou muito sujo, e agora vou fazer a barba e tomar um banho. — Levantou-se, deu volta à mesa e beijou-lhe o alto da cabeça. — E quanto a essa história de brincar, como você diz, gostaria mais de brincar com você do que com qualquer outra pessoa do mundo. Mas não agora. — Sem esperar pela resposta, dirigiu-se ao banheiro e fechou a porta.

Bond barbeou-se e tomou um banho de chuveiro. Sentia-se desesperadamente sonolento. O sono chegava-lhe, de modo que de quando em quando tinha que interromper o que fazia e inclinar a cabeça, repousando-a entre os joelhos. Quando começou a escovar os dentes, o seu estado era tal que mal podia fazê-lo. Estava começando a reconhecer os sintomas. Tinha sido narcotizado. A coisa teria sido posta no suco de abacaxi ou no café? Este era um detalhe sem importância. Aliás, nada tinha importância. Tudo o que queria fazer era estender-se naquele chão de ladrilhos e fechar os olhos. Assim mesmo, dirigiu-se cambaleante para a porta, esquecendo-se de que estava nu. Isso também pouca importância tinha. A jovem já tinha terminado a refeição e agora estava na cama. Continuou trôpego, até ela, segurando-se nos móveis. O quimono tinha sido abandonado no chão e ela dormia pesadamente, completamente nua, sob um simples lençol.

Bond olhou para o travesseiro, ao lado da jovem. Não! Procurou o interruptor e apagou as luzes. Agora teve que se arrastar pelo chão até chegar ao seu quarto. Chegou até junto de sua cama e atirou-se nela. Com grande esforço conseguiu ainda esticar o braço, tocar o interruptor e tentar apagar a lâmpada do criado-mudo. Mas não o conseguiu: sua mão deslizou, atirou o abajur ao chão e a lâmpada espatifou-se. Com um derradeiro esforço, Bond virou-se ainda no leito e adormeceu profundamente.

Os números luminosos do relógio elétrico, no quarto de casal, anunciavam nove e meia.

Às dez horas, a porta do quarto abriu-se suavemente. Um vulto muito alto e magro destacava-se na luz do corredor. Era um homem. Talvez tivesse dois metros de altura. Permaneceu no limiar da porta, com os braços cruzados, ouvindo. Dando-se por satisfeito, caminhou vagarosamente pelo quarto e aproximou-se da cama. Conhecia perfeitamente o caminho. Curvou-se sobre o leito e ouviu a serena respiração da jovem. Depois de um momento, tocou em seu próprio peito e acionou um interruptor. Imediatamente um amplo feixe de luz difusa projetou-se na cama. O farolete estava preso ao corpo do homem por meio de um cinto que o fixava à altura do esterno.

Inclinou-se novamente para a frente, de modo que a luz clareou o rosto da jovem.

O intruso examinou aquele rosto durante alguns minutos. Uma de suas mãos avançou, apanhou a orla do lençol, à altura do queixo da jovem, e puxou-o lentamente até os pés da cama. Mas a mão que puxara aquele lençol não era u’a mão. Era um par de pinças de aço muito bem articuladas na extremidade de uma espécie de talo metálico que desaparecia dentro de uma manga de seda negra. Era u’a mão mecânica.

O homem contemplou durante longo tempo aquele corpo nu, deslocando o seu peito de um lado para outro, de modo que todo o leito fosse submetido ao feixe luminoso. Depois, a garra saiu novamente de sob aquela manga e delicadamente levantou a ponta do lençol, puxando-o dos pés da cama até recobrir todo o corpo da jovem. O homem demorou-se ainda por um momento a contemplar o rosto adormecido, depois apagou o farolete e atravessou silenciosamente o quarto em direção à porta aberta, além da qual estava Bond dormindo.

O homem demorou-se mais tempo ao lado do leito de Bond. Perscrutou cada linha, cada sombra do rosto moreno e quase cruel que jazia quase sem vida, sobre o travesseiro. Observou a circulação à altura do pescoço e contou-lhe as batidas; depois, quando puxou o lençol para baixo, fez o mesmo na área do coração. Estudou a curva dos músculos, nos braços de Bond e nas coxas, e considerou pensativo a força oculta no ventre musculoso de Bond. Chegou até mesmo a curvar-se sobre a mão direita de Bond, estudando-lhe cuidadosamente as linhas da vida e do destino.

Por fim, com grande cuidado, a pinça de aço puxou novamente o lençol, desta vez para cobrir o corpo de Bond até o pescoço. Por mais um minuto o elevado vulto permaneceu ao lado do homem adormecido, depois se retirou rapidamente, ganhando o corredor, enquanto a porta se fechava com um estalido metálico e seco.


CONTINUA

XI - VIDA NO CANAVIAL


Seriam cerca de oito horas, pensou Bond. A não ser o coaxar dos sapos, tudo estava mergulhado em silêncio. No canto mais distante da clareira, ele podia vislumbrar o vulto de Quarrel.

Podia-se ouvir o tinir metálico, enquanto ele se ocupava em desmontar e secar a sua “Remington”.

Por entre as árvores podiam-se ver também as luzes distantes, vindas do depósito de guano, riscar caminhos luminosos e festivos sobre a superfície escura do lago. O desagradável vento desaparecera e o abominável cenário estava mergulhado em trevas. Estava bastante fresco. As roupas de Bond tinham secado no corpo. A comida tinha aquecido o seu estômago. Ele experimentou uma agradável sensação de conforto, sonolência e paz. O dia seguinte ainda estava muito longe e não apresentava problemas, a não ser uma boa dose de exercício físico. A vida, subitamente, pareceu-lhe fácil e boa.

A jovem estava a seu lado, metida no saco de dormir. Estava deitada de costas, com a cabeça descansando nas mãos, e olhando para o teto de estrelas. Ele apenas conseguia divisar os pálidos contornos de seu rosto. De repente, ela disse: James, você prometeu dizer-me o que significava tudo isso. Vamos. Eu não dormirei enquanto você não o disser.

Bond riu. — Eu direi se você também disser. Também quero saber o que você pretende.

— Pois não, não tenho segredos: mas você deve falar primeiro.

— Está certo. — Bond puxou os joelhos até a altura do queixo e passou os braços à volta deles. — Eu sou uma espécie de policial. Eles me enviam de Londres quando há alguma coisa de estranho acontecendo em alguma parte do mundo e que não interessa a ninguém. Bem, não faz muito tempo, um dos funcionários do Governador, em Kingston, um homem chamado Strangways, aliás meu amigo, desapareceu. Sua secretária, que era uma linda jovem, também desapareceu sem deixar vestígios. Muitos pensaram que eles tivessem fugido juntos, mas eu não acreditei nisso. Eu...”

Bond contou tudo com simplicidade, falando em homens bons e maus, como numa história de aventuras lida em algum livro. Depois terminou: Como você vê, Honey, temos de voltar a Jamaica, amanhã à noite, todos nós, na canoa, e então o Governador nos dará ouvidos e enviará um destacamento de soldados para apanhar este chinês. Espero que isso terá como conseqüência levá-lo à prisão. Ele com certeza também sabe disso, e essa é a razão pela qual procura aniquilar-nos. Essa é a história. Agora é a sua vez.

A jovem disse: Você parece viver uma vida muita excitante. Sua mulher não deve gostar que você fique fora tanto tempo. Ela não tem medo de que você se fira?

— Não sou casado. A única que se preocupa com a possibilidade de que eu me fira é a minha companhia de seguros.

Ela continuou sondando: Mas suponho que você tenha namoradas.

— Não permanentes.

— Oh!

Fez-se uma pausa. Quarrel se aproximou e disse: “Capitão, farei o primeiro quarto, se for melhor. Estarei na extremidade da restinga e virei chamá-lo à meia-noite. Então talvez o senhor possa ir até as cinco horas, quando nós nos poremos em marcha. Precisamos estar fora daqui antes que clareie o dia.

— Está bem — respondeu Bond. — Acorde-me se você vir alguma coisa. O revólver está em ordem?

— Perfeito — respondeu Quarrel com evidente mostra de contentamento. Depois, dirigindo-se à jovem disse com leve tom de insinuação: — Durma bem, senhorita. Em seguida, desapareceu silenciosamente nas sombras.

— Gosto de Quarrel — disse a jovem. E, após uma pausa: — Você quer realmente saber alguma coisa a meu respeito? A história não é tão excitante quanto a sua.

— É claro que quero. E não omita nada.

— Não há nada a omitir. Você poderia escrever toda a história de minha vida nas costas de um cartão postal. Para começar, nunca saí de Jamaica. Vivi toda a minha vida num lugar chamado Beau Desert, na costa setentrional, nas proximidades do Porto Morgan.

Bond riu. — É estranho: posso dizer o mesmo; pelo menos por enquanto. Não notei você pela região. Você vive em cima de uma árvore?

— Ah, imagino que você tenha ficado na casa da praia. Eu nunca chego até ali. Vivo na Casa Grande.

— Mas nada ficou dela. É uma ruína no meio dos canaviais.

— Eu vivo na adega. Tenho vivido ali desde a idade de cinco anos. Depois a casa se incendiou e meus pais morreram. Nada me lembro deles, por isso você não precisa manifestar pesar. A princípio vivi ali com a minha ama negra, mas depois ela morreu, quando eu tinha apenas quinze anos. Nos últimos cinco anos tenho vivido ali sozinha.

— Nossa Senhora! — Bond estava boquiaberto. — Mas não havia ninguém para tomar conta de você? Os seus pais não deixaram nenhum dinheiro?

— Nem um tostão. — Não havia o mínimo traço de amargura na voz da jovem — talvez orgulho, se houvesse alguma coisa. — Você sabe, os Riders eram uma das mais antigas famílias de Jamaica. O primeiro Rider recebera de Cromwell as terras de Beau Desert, por ter sido um dos que assinaram o veredicto de morte contra o rei Carlos. Ele construiu a Casa Grande e minha família viveu ora nela ora fora dela, desde aquela época. Mas depois veio a decadência do açúcar e eu acho que a propriedade foi pessimamente administrada, e, ao tempo em que meu pai tomou conta da herança, havia somente dívidas — hipotecas e outros ônus. Assim, quando meu pai e minha mãe morreram a propriedade foi vendida. Eu pouco me importei, pois era muito jovem. Minha ama deve ter sido maravilhosa. Quiseram que alguém me adotasse, mas a minha babá reuniu os pedaços de mobília que não tinham sido queimados e com eles nós nos instalamos da melhor forma no meio daquelas ruínas. Depois de algum tempo ninguém mais veio interferir conosco. Ela cosia um pouco e lavava para algumas freguesas da aldeia, ao mesmo tempo que plantava bananas e outras coisas, sem falar do grande pé de fruta-pão que havia diante da casa. Comíamos o que era a ração habitual do povo de Jamaica. E havia os pés de cana-de-açúcar à nossa volta. Ela fizera também uma rede para apanhar peixes, a qual nós recolhíamos todos os dias. Tudo corria bem e nós tínhamos o suficiente para comer. Ela ensinou-me a ler e escrever, como pôde. Tínhamos uma pilha de velhos livros que escapara ao incêndio, inclusive uma enciclopédia. Comecei com o A quando tinha apenas oito anos, e cheguei até o meio do T. — Ela disse um tanto na defensiva: — Aposto que sei mais do que você sobre muitas coisas.

— Estou certo de que sim. — Bond estava perdido na visão daquela jovem de cabelos de linho errando pelas ruínas de uma grande construção, com uma obstinada negra a vigiá-la e a chamá-la para receber as lições que deveriam ter sido um mistério para ela mesma. — Sua ama deve ter sido uma criatura extraordinária.

— Ela era um amor. — Era uma afirmação peremptória. — Pensei que fosse morrer quando ela faleceu. As coisas não foram tão fáceis para mim depois disso. Antes eu levava uma vida de criança, mas subitamente tive que crescer e fazer tudo por mim mesma. E os homens tentaram apanhar-me e atingir-me. Diziam que queriam fazer amor comigo. — Fez uma pausa e acrescentou: — Eu era bonita naquela época. Bond disse muito sério:

— Você é uma das jovens mais belas que já vi.

— Com este nariz? Não seja tolo.

— Você não compreende. — Bond tentou encontrar palavras nas quais ela pudesse crer. — É claro que qualquer pessoa pode ver que o seu nariz está quebrado; mas desde esta manhã dificilmente eu pude notá-lo. Quando se olha para uma pessoa, olha-se para os seus olhos ou para a sua boca. Nesses dois pontos se encontram a expressão. Um nariz quebrado não tem maior significação do que uma orelha torta. Narizes e orelhas são peças do mobiliário facial. Algumas são mais bonitas do que outras, mas não são tão importantes quanto o resto. Se você tivesse um nariz bonito, tão bonito como o resto, você seria a jovem mais bela de Jamaica.

— Você é sincero? — Sua voz era ansiosa. — Você acha que eu poderia ser bela? Sei que muita coisa em mim está bem, mas quando olho no espelho só vejo o meu nariz quebrado. Estou certa de que o mesmo ocorre com outras pessoas que são, que são — bem — mais ou menos aleijadas.

Bond disse com impaciência: — Você não é aleijada! Não diga tolices. E aliás você pode endireitá-lo mediante uma simples operação. Basta que você vá aos Estados Unidos e a coisa levará apenas uma semana.

Ela disse com irritação: — Como é que você quer que eu faça isso? Tenho cerca de quinze libras debaixo de uma pedra, na minha adega. Tenho ainda três saias, três blusas, uma faca e uma panela de peixe. Conheço muito bem essas operações. O médico de Porto Maria já pediu informações para mim. Ele é um homem muito bom e escreveu para os Estados Unidos. Pois para que a operação seja bem feita, eu teria que gastar cerca de quinhentas libras, sem falar da passagem para Nova York, a conta do hospital e tudo o mais.

Sua voz tornou-se desesperançada: — Como é que você espera que eu possa ter todo esse dinheiro?

Bond já decidira sobre o que teria de ser feito, mas no momento apenas disse ternamente: — Bem, espero que se possam encontrar meios; mas, de qualquer maneira, prossiga com a sua história. Ela é muito excitante — muito mais interessante do que a minha. Você tinha chegado ao ponto em que a sua ama morreu. O que aconteceu depois?

A jovem recomeçou com relutância.

— Bem, a culpa é sua por ter interrompido. E você não deve falar de coisas que não compreende. Suponho que as pessoas lhe digam que você é simpático. Você deve também ter todas as namoradas que desejar. Bem, isso não aconteceria se você fosse vesgo ou tivesse um lábio leporino. — Na verdade, ele pôde ouvir o sorriso em sua voz: — Acho que quando voltarmos eu irei ter com o feiticeiro para que lhe faça uma mandinga e lhe dê alguma coisa assim. — E ela acrescentou tristemente: — Dessa forma, nós seremos mais parecidos.

Bond estendeu o braço e sua mão tocou nela: — Eu tenho outros planos. Mas continuemos, quero ouvir o resto da sua história.

— Bem, — disse a jovem com um suspiro. — Eu terei que me atrasar um pouco. Como você sabe, toda a propriedade é representada pela cana-de-açúcar e pela velha casa que está situada no meio da plantação. Bem, umas duas vezes por ano eles cortam a cana e mandam-na para o moinho. E quando eles o fazem, todos os animais e insetos que vivem nos canaviais entram em pânico e a maioria deles têm as suas tocas destruídas e são mortos. Na época da safra, alguns deles começaram a vir para as ruínas da casa, onde se escondiam. No princípio, minha babá ficava aterrorizada, pois lá vinham os mangustos, as cobras e os escorpiões, mas eu preparei dois quartos da adega para recebê-los. Não me assustei com eles, e eles nunca me fizeram mal. Pareciam compreender que eu estava cuidando deles. E devem ter contado aquilo aos seus amigos, ou alguma coisa parecida, pois depois de algum tempo era perfeitamente natural que todos viessem acantonar-se em seus dois quartos, onde ficavam até que os canaviais começassem novamente a crescer, quando então iam saindo e voltando para os campos. Dei-lhes toda a comida que podíamos pôr de lado, quando eles ficavam conosco, e todos se portavam muito bem, a não ser por algum odor e às vezes uma ou outra luta entre si. Mas eram muito mansos comigo. Naturalmente os cortadores de cana perceberam tudo e viam-me andando pelo lugar com cobras à volta do meu pescoço, e assim por diante, a ponto de ficarem aterrorizados comigo e me considerarem uma feiticeira. Por causa disso, eles nos deixaram completamente isoladas. Ela fez uma pausa, e depois recomeçou:

— Foi assim que aprendi tanta coisa sobre animais e insetos. Eu costumava ainda passar muito tempo no mar, aprendendo coisas sobre os animais marinhos, assim como sobre os pássaros. Se se chega a saber o que todas essas criaturas gostam de comer e do que têm medo, pode-se muito bem fazer amizade com elas. — Levantou os olhos para Bond e disse: Você não sabe o que perde ignorando todas essas coisas.

— Receio que perca muito — respondeu Bond com sinceridade. — Suponho que eles sejam muito melhores e mais interessantes que os homens.

Sobre isso nada sei — respondeu a jovem pensativa-mente. — Não conheço muitas pessoas. A maioria das que conheci foram detestáveis, mas acho que deve haver criaturas interessantes também. — Fez uma pausa, e prosseguiu: — Nunca pensei realmente que chegasse a gostar de alguma pessoa como gosto dos animais. Com exceção da babá, naturalmente. Até que... — Ela se interrompeu com um sorriso de timidez. — Bem, de qualquer forma, nós vivemos muito felizes juntas, até que eu fiz quinze anos, quando então a babá morreu e as coisas se tornaram muito difíceis. Havia um homem chamado Mander. Um homem horroroso. Era o capataz branco que servia aos proprietários da plantação. Ele vivia me procurando. Queria que eu fosse viver com ele, em sua casa de Porto Maria.

Eu o odiava, e costumava esconder-me sempre que ouvia o seu cavalo aproximando-se do canavial. Certa noite ele veio a pé e eu não o ouvi. Estava bêbado. Entrou na adega e lutou comigo porque não queria fazer o que ele desejava. Você sabe, as coisas que fazem as pessoas quando estão apaixonadas.

— Sim, já sei.

— Tentei matá-lo com a minha faca, mas ele era muito forte e deu-me um soco tão forte no rosto que me quebrou o nariz. Deixou-me inconsciente e acho que fez alguma coisa comigo. Sei que ele fez mesmo. No dia seguinte eu quis me matar quando vi o meu rosto e verifiquei o que ele me havia feito. Pensei que iria ter um filho. Teria sem dúvida me matado se tivesse tido um filho daquele homem. Em todo caso, não tive, e tudo continuou assim. Fui ao médico e ele fez o que pôde com o meu nariz e não me cobrou nada. Quanto ao resto, eu nada lhe contei, pois estava muito envergonhada. O homem não voltou mais. Eu esperei e nada fiz até a próxima colheita de cana-de-açúcar. Tinha um plano. Estava esperando que as aranhas viúvas-negras viessem procurar abrigo. Um belo dia elas chegaram. Apanhei a maior das fêmeas e á deixei numa caixa sem nada para comer. As fêmeas são terríveis. Então esperei que fizesse uma noite escura, sem luar. Na primeira noite dessas, apanhei a caixa com a aranha e caminhei até chegar à casa do homem. Estava muito escuro e eu me sentia aterrorizada com a possibilidade de encontrar algum assaltante pela estrada, mas não houve nada. Esperei em seu jardim, oculta entre os arbustos, até que ele se recolheu à cama. Então subi por uma árvore e ganhei a sacada; aguardei até que ele começasse a roncar e depois entrei pela janela. Ele estava nu, estendido na cama, sob o mosquiteiro. Levantei uma aba do filó, abri a caixa e sacudi-lhe a aranha sobre o ventre. Depois saí e voltei para casa.

— Deus do céu! — exclamou Bond reverentemente. — O que aconteceu com o homem?

Ela respondeu com satisfação: — Levou uma semana para morrer. Deve ter-lhe doído terrivelmente. Você sabe, a mordida dessa aranha é pavorosa. Os feiticeiros dizem que não há nada que se lhe compare. — Ela fez uma pausa, e como Bond não fizesse nenhum comentário, acrescentou: — Você não acha que eu fiz mal, não é?

— Bem, não faça disso um hábito — respondeu Bond suavemente. — Mas não posso culpá-la, diante do que ele tinha feito. E, depois, o que aconteceu?

— Bem, depois me estabeleci novamente — sua voz era firme. — Tive que me concentrar na tarefa de obter alimento suficiente, e naturalmente. — Acrescentou persuasivamente: — Eu tinha de fato um nariz muito bonito, antes. Você acha que os médicos podem torná-lo igualzinho ao que era antes?

— Eles poderão fazê-lo de qualquer forma que você quiser — disse Bond em tom definitivo. — Como é que você ganhou dinheiro?

— Foi graças à enciclopédia. Li nela que há pessoas que gostam de colecionar conchas marinhas e que as conchas raras podiam ser vendidas. Falei com o mestre-escola local, sem contar-lhe naturalmente o meu segredo, e ele descobriu para mim que havia uma revista norte-americana chamada “Nautilus”, dedicada aos colecionadores de conchas. Eu tinha apenas o dinheiro suficiente para tomar uma assinatura daquela revista e comecei a procurar as conchas que as pessoas pediam em seus anúncios. Escrevi a um comerciante de Miami e ele começou a comprar as minhas conchas. Foi emocionante. Naturalmente que cometi alguns erros, no princípio. Pensei, por exemplo, que as pessoas gostariam das conchas mais bonitas, mas esse não era o caso. Freqüentemente elas preferiam as conchas mais feias. Depois, quando achava conchas raras, punha-me a limpá-las e poli-las a fim de torná-las mais bonitas, mas isso também foi um erro. Os colecionadores querem as conchas exatamente como saem do mar, com o animal em seu interior também. Então consegui algum formol com o médico e o punha entre as conchas vivas, para que elas não tivessem mau cheiro, e depois mandava-as para o tal comerciante de Miami. Só aprendi bem o negócio de um ano para cá e já consegui quinze libras. Consegui esse resultado agora que sei como é que eles querem as conchas e se tivesse sorte, poderia fazer pelo menos cinqüenta libras por ano. Então, em dez anos poderia ir aos Estados Unidos e operar-me. Mas, continuou ela com intenso contentamento, tive uma notável maré de sorte. Fui a Crab Key pelo Natal, onde já tinha estado antes. Mas dessa vez eu encontrei essas conchas purpúreas. Não parecem grande coisa, mas eu enviei uma ou duas para Miami e o comerciante escreveu-me para dizer que compraria tantas dessas conchas quantas eu pudesse encontrar, e ao preço de até cinco dólares pelas perfeitas. Disse-me ainda que eu deveria manter segredo sobre o lugar de onde as tirava, pois de outra forma o “mercado seria estragado”, como disse ele, e os preços cairiam. É como se se tivesse uma mina de ouro particular. Agora serei capaz de juntar o dinheiro em cinco anos. Esse foi o motivo pelo qual tive grandes suspeitas de você, quando o encontrei na praia. Pensei que você tivesse vindo para roubar as minhas conchas.

— Você me deu um susto, pois pensei que você fosse a garota do Dr. No.

— Muito obrigada.

— Mas depois que você tiver feito a operação, o que irá fazer? Você não pode continuar vivendo numa adega durante toda a vida.

— Pensei em me tornar uma prostituta. — Ela o disse como se tivesse dito “enfermeira” ou “secretária”.

— Oh, o que é que você quer dizer com isso? — Talvez ela já tivesse ouvido aquela expressão sem compreendê-la bem.

— Uma dessas jovens que possuem um bonito apartamento e lindas roupas. Você sabe o que quero dizer — acrescentou ela com impaciência. — Os homens telefonam, marcam encontro, chegam, fazem amor e pagam. Elas ganham cem dólares de cada vez, em Nova Iorque, onde pensei começar. Naturalmente — admitiu — terei de fazer por menos, no começo, até que aprenda a trabalhar bem. Quanto é que vocês pagam pelas que não têm experiência?

Bond riu. — Francamente, não me lembro. Há muito tempo que não me encontro com essas mulheres.

Ela suspirou. — Sim, suponho que você possa ter tantas mulheres quantas queira, por nada. Suponho que apenas os homens feios paguem, mas isso é inevitável. Qualquer espécie de trabalho nas grandes cidades deve ser horrível. Pelo menos pode-se ganhar muito mais como prostituta. Depois, poderia voltar para Jamaica e comprar Beau Desert. Seria bastante rica para encontrar um marido bonito e ter alguns filhos. Agora que encontrei essas conchas, penso que poderia estar de volta a Jamaica quando tivesse trinta anos. Não seria formidável?

— Gosto da última parte do plano, mas não tenho muita confiança na primeira. De qualquer forma, como é que você veio a saber dessa história de prostitutas? Encontrou isso na letra P, na enciclopédia?

— Claro que não; não seja tolo. Há uns dois anos houve em Nova Iorque um escândalo sobre elas, envolvendo também um “play-boy” chamado Jelke. Ele tinha toda uma cadeia de prostitutas, e eu li muito sobre o caso no “Gleaner”. O jornal deu inclusive os preços que elas cobravam e tudo o mais. De qualquer forma, há milhares dessas jovens em Kingston, embora não sejam tão boas. Recebem apenas cinco xelins e não têm um lugar apropriado para fazer amor, a não ser no mato. Minha babá chegou a falar-me delas. Disse-me que eu não deveria imitá-las, pois do contrário seria muito infeliz. É claro que seria, recebendo apenas cinco xelins. Mas por cem dólares!...

Bond observou: — Você não conseguiria guardar todo esse dinheiro. Precisaria ter uma espécie de gerente para arranjar os homens, e teria ainda de dar gorjetas à polícia, para deixá-la em paz. Por fim, poderia ir facilmente parar na cadeia se tudo não corresse bem. Na verdade, com tudo o que você sabe sobre animais, bem poderia ter um ótimo emprego, cuidando deles, em algum jardim zoológico norte-americano. E o que me diz do Instituto de Jamaica? Tenho certeza de que você gostaria mais de trabalhar ali. E poderia também facilmente encontrar um bom marido. De qualquer forma, você não deve mais pensar em ser prostituta. Você tem um belo corpo e deve guardá-lo para o homem que amar.

— Isso é o que dizem as pessoas nos livros — disse ela com ar de dúvida. — A dificuldade está em que não há nenhum homem para ser amado em Beau Desert. — Depois acrescentou timidamente: — Você é o único inglês com quem jamais falei. Gostei de você desde o princípio, e não me importo de dizer-lhe essas coisas agora. Penso que há muitas pessoas das quais chegaria a gostar se saísse daqui.

— É claro que há. Centenas. E você é uma garota formidável; o que pensei assim que a vi.

— Assim que viu as minhas nádegas, você quer dizer. — Sua voz estava-se tornando sonolenta, mas cheia de prazer.

Bond riu. — Bem, eram nádegas maravilhosas. E o outro lado também era maravilhoso. — O corpo de Bond começou a se agitar com a lembrança de como a vira pela primeira vez. Depois de um instante, disse com mau humor: — Agora vamos, Honey. Está na hora de dormir. Haverá muito tempo para conversarmos quando voltarmos a Jamaica.

— Haverá? — perguntou ela desconsoladamente. — Você promete?

— Prometo.

Ele a viu agitar-se dentro do saco de dormir. Olhou para baixo e apenas pôde divisar o seu pálido perfil voltado para ele. Ela deixou escapar o profundo suspiro de uma criança, antes de adormecer.

Reinava silêncio na clareira e o tempo estava esfriando. Bond descansou a cabeça sobre os joelhos unidos. Sabia que era inútil procurar dormir, pois sua mente estava cheia dos acontecimentos do dia e dessa extraordinária mulher Tarzan que aparecera em sua vida. Era como se algum animal muito bonito se lhe tivesse dedicado. E não largaria os cordéis enquanto não tivesse resolvido os problemas dela. Estava sentindo isso. Naturalmente que não haveria grandes dificuldades para a maioria de seus problemas. Quanto à operação, seria fácil arranjá-la, e até mesmo encontrar-lhe um emprego, com o auxílio de amigos, e um lar. Tinha dinheiro e haveria de comprar-lhe roupas, mandaria ajeitar os seus cabelos e a lançaria no grande mundo. Seria divertido. Mas quanto ao resto? Quanto ao desejo físico que sentia por ela? Não se podia fazer amor com uma criança. Mas, seria ela uma criança? Não haveria nada de infantil relativamente ao seu corpo ou à sua personalidade. Era perfeitamente adulta e bem inteligente, a seu modo, e muito mais capaz de tomar conta de si mesma do que qualquer outra jovem de vinte anos que Bond conhecera.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um puxão em sua manga. A vozinha disse: — Por que você não vai dormir? Não está sentindo frio?

— Não; estou bem.

— Aqui no saco de dormir está bom e quente. Você quer vir para cá? Tem bastante lugar.

— Não, obrigado, Honey. Estou bem.

Houve uma pausa, e depois ela disse num sussurro: — Se você está pensando... Quero dizer — você não precisa fazer amor comigo... Eu poderia dormir de costas para o seu peito.

— Honey, querida, vá dormir. Seria maravilhoso dormir assim com você, mas não esta noite. De qualquer maneira, em breve terei de render Quarrel.

— Muito bem, — disse ela com voz mal humorada. — Talvez quando voltarmos a Jamaica.

— Talvez.

— Prometa. Não dormirei enquanto você não prometer.

Bond disse desesperadamente: — Naturalmente que prometo. Agora, vá dormir, Honeychile.

A sua voz se fez ouvir outra vez, triunfante: — Agora você tem uma dívida comigo. Você prometeu. Boa-noite, querido James.

— Boa noite, querida Honey.


XII - A COISA


O aperto no braço de Bond era ansioso. Ele de um salto pôs-se de pé.

Quarrel sussurrou tensamente: — Alguma coisa está-se aproximando pela água, capitão! Com certeza é o dragão!

A jovem levantou-se e perguntou nervosamente: — Que aconteceu?

Bond apenas disse: — Fique aí, Honey! Não se mexa. Eu voltarei.

Internou-se pelos arbustos do lado oposto da montanha e correu pela restinga, com Quarrel ao lado.

Chegaram até a extremidade da restinga, a vinte metros da clareira, e pararam sob o abrigo dos últimos arbustos, que Bond apartou com as mãos para ter um melhor campo de visão.

O que seria aquilo? A meia milha de distância, atravessando o lago, vinha algo informe, com dois olhos brilhantes cor de laranja, e pupilas negras. Entre estes, onde deveria estar a boca, tremulava um metro de chama azul. A luminosidade cinzenta das estrelas deixava ver uma espécie de cabeça abaulada entre duas pequenas asas semelhantes às de um morcego. Aquela coisa estranha deixava escapar um ronco surdo e baixo, que abafava um outro ruído, uma espécie de vibração rítmica. Aquela massa avançava na direção deles, à velocidade de uns dezesseis quilômetros por hora, deixando atrás de si uma esteira de espuma.

Quarrel sussurrou:

— Nossa, capitão! Que coisa é aquela?

Bond continuou de pé e respondeu laconicamente: — Não sei exatamente. Uma espécie de trator arranjado para meter medo. Está trabalhando com um motor diesel, e por isso você pode deixar os dragões de lado. Agora, vejamos... — Bond falava como se para si mesmo. — Não adianta fugir. Aquilo se move mais depressa do que nós e sabemos que pode esmagar árvores e atravessar pântanos. Temos que lhe dar combate aqui mesmo. Quais serão os seus pontos fracos? Os motoristas. Com certeza, dispõem de proteção. Em todo caso, não sabemos muito sobre esse ponto. Quarrel, você começará a disparar contra aquela cúpula quando estiverem a uns duzentos metros de nós. Faça a pontaria cuidadosamente e continue atirando. Visarei os faróis quando estiverem a cinqüenta metros. Não se está movendo sobre lagartas. Deve ter alguma espécie de rodas gigantescas, provavelmente de avião. Visarei as rodas também. Fique aí. Ficarei dez metros para baixo. Naturalmente vão reagir e nós temos que manter as balas longe da garota. Está combinado? — Bond esticou o braço e apertou o enorme ombro de Quarrel. — E não se preocupe demais. Esqueça-se de dragões. Trata-se apenas de alguma trapaça do Dr. No. Mataremos os motoristas, tomaremos conta do veículo e ganharemos com ele a costa. Isso economizará as nossas solas. Está bem?

Quarrel deu uma breve risada. — Está bem, capitão. Desde que o senhor assim o diz. Mas que Nosso Senhor saiba também que aquilo não é dragão!

Bond desceu pela restinga e se internou pelos arbustos, até que encontrou um ponto de onde podia ter um bom campo de tiro. Disse suavemente: — Honey!

— Sim, James — e a voz dela deixou transparecer alívio.

— Faça um buraco na areia como fizemos na praia. Faça-o por trás de raízes grossas e fique lá deitada. Talvez haja um tiroteio. Não tenha medo de dragões. Isto é apenas um veículo pintado, dirigido por alguns dos homens do Dr. No. Não se assuste. Estou aqui perto.

— Muito bem, James. Tenha cuidado! — A voz agora deixava transparecer um vivo temor.

Bond curvou-se, apoiando um joelho no chão, sobre as folhas e a areia, e olhou para fora.

Agora o veículo achava-se a uns trezentos metros de distância, e os seus faróis amarelos estavam iluminando a areia. Chamas azuis continuavam saindo da boca daquele engenho. Saíam de uma espécie de longo focinho, no qual se pintaram mandíbulas entreabertas, para darem ao todo a aparência de dragão. Um lança-chamas! Aquilo explicava as árvores queimadas e a história do administrador. A coloração azul da chama seria dada por alguma espécie de queimador, disposto adiante do lança-chamas.

Bond teve que admitir que aquela visão era algo de terrível, à medida que o veículo avançava pelo lago raso. Evidentemente fora calculado para infundir terror. Ele mesmo ter-se-ia assustado, não fora a vibração rítmica do motor diesel. Mas até que ponto aquilo seria vulnerável para homens que não fossem dominados pelo pânico?

A resposta ele a teve quase imediatamente. Ouviu-se o estampido da “Remington” de Quarrel. Uma centelha saiu da cabina encimada pela cúpula e logo se ouviu um ruído metálico. Quarrel disparou mais um tiro e, logo em seguida, uma rajada. As balas chocaram-se inutilmente de encontro à cabina. Não houve mesmo uma simples redução de velocidade. O monstro continuava avançando para o ponto de onde tinham partido os disparos. Bond descansou o cano de seu “Smith & Wesson” no braço, e fez cuidadosa pontaria. O profundo ruído surdo de sua arma fez-se ouvir por sobre o matraquear da “Remington” de Quarrel. Um dos faróis fora atingido e despedaçara-se. Bond disparou mais quatro tiros contra o outro e atingiu-o com o quinto e último disparo de seu revólver. O fantástico aparelho parecia continuar não dando importância, e foi avançando para o lugar de onde tinham partido os disparos do “Smith & Wesson”. Bond tornou a carregar a arma e começou a atirar contra os pneumáticos, sob as asas negro e ouro. A distância agora era de apenas trinta metros e podia jurar que já atingira mais de uma vez a roda mais próxima, sem nenhum resultado. Seria borracha sólida? O primeiro estremecimento de medo percorreu a pele de Bond.

Carregou mais uma vez. Seria aquela coisa maldita vulnerável pela retaguarda? Deveria correr para o lago e tentar uma abordagem? Avançou um passo, através dos arbustos, mas logo ficou imóvel, incapaz de prosseguir.

Subitamente, daquele focinho ameaçador, uma língua de fogo azulada tinha sido lançada na direção do esconderijo de Quarrel. À direita de Bond, no mato, surgira apenas uma chama laranja e vermelha, simultaneamente com um estranho urro, que imediatamente silenciou. Satisfeita, aquela língua de fogo se recolhera à sua boca. Agora aquilo fizera um movimento de rotação sobre o seu eixo e parará completamente. O buraco azulado da boca apontava diretamente para Bond.

Bond deixou-se ficar, esperando pelo horroroso fim. Olhou através das mandíbulas da morte e viu o brilhante f-lamento vermelho do queimador, bem no fundo do comprido tubo. Pensou no corpo de Quarrel — mas não havia tempo para pensar em Quarrel — e imaginou-o completamente carbonizado. Dentro em pouco ele também se incendiaria como uma tocha. Um único berro seria arrancado dele e os seus membros se encolheriam na pose de dançarino dos corpos queimados. Depois viria a vez de Honey. Meu Deus, para o quê ele os havia arrastado! Por que fora tão insano a ponto de enfrentar aquele homem com todo o seu arsenal? Por que não aceitara a advertência que lhe fora feita pelo longo dedo que o alcançara já em Jamaica? Bond trincou os dentes. Vamos, canalhas. Depressa.

Ouviu-se a sonoridade de um alto-falante, que anunciava metàlicamente: “Saia daí, inglês. E a boneca também. Depressa ou será frito no inferno, como o seu amigo”. Para dar mais força àquela ordem, uma língua de fogo foi lançada em sua direção. Bond deu um passo atrás para recuar daquele intenso calor. Sentiu o corpo da garota de encontro às suas costas. Ela disse historicamente: — Tive que vir, tive que vir.

Bond disse: — Está bem, Honey. Fique atrás de mim.

Ele tinha-se decidido. Não havia alternativa. Mesmo que a morte viesse mais tarde, não poderia ser pior do que aquela morte diante do lança-chamas. Bond apanhou a mão da jovem e puxou-a consigo para fora, saindo para a areia.

A voz se fez ouvir novamente: — Pare aí, camarada. E deixe cair o lança-ervilhas. Nada de truques, senão os caranguejos terão um bom almoço.

Bond deixou cair a sua arma. Lá se fora o “Smith & Wesson”. O “Beretta” não teria tido melhor sorte: A jovem lastimou-se, e Bond apertou a sua mão. — Agüente, Honey, — disse ele. — Nós nos livraremos disso.

Bond troçou de si mesmo por causa daquela mentira. Ouviu-se o ruído de uma porta de ferro que se abria. Por trás da cúpula, um homem saltou para a água e caminhou até eles, com um revólver na mão. Ao mesmo tempo ia-se mantendo fora da linha de fogo do lança-chamas. A trêmula chama azul iluminou o seu rosto. Era um chinês negro, de enorme estatura, vestindo apenas calças. Alguma coisa balançava em sua mão esquerda, e quando ele se aproximou mais, Bond pôde ver que eram algemas.

O homem deteve-se a alguns metros de distância e disse:

— Levantem os braços. Punhos juntos e caminhem em minha direção. Você primeiro, inglês. Devagar ou receberá mais um umbigo.

Bond obedeceu e quando estava a um passo do homem, este prendeu o revólver entre os dentes, e esticou os braços e atou os seus pulsos com as algemas. Bond examinou aquele rosto iluminado pelas chamas azuis. Era uma cara brutal, com olhos estrábicos. O agente do Dr. No fitou-o com desprezo. — Bastardo imbecil! — disse.

Bond deu as costas ao homem e começou a se afastar. Ia ver o corpo de Quarrel. Tinha que lhe dizer adeus. Ouviu-se o ruído de um disparo e uma bala jogou-lhe areia nos pés. Bond parou, e voltando-se lentamente disse:

— Não fique nervoso. Vou dar uma espiada no homem que você acabou de assassinar. Voltarei.

O homem abaixou o revólver e riu grosseiramente: — Muito bem. Divirta-se. Desculpe se não temos uma coroa. Volte logo, se não daremos uma amostra à boneca. Dois minutos.

Bond caminhou em direção ao cerrado de arbustos fumegantes. Ali chegando, olhou para baixo. Seus olhos e boca se contraíram. Sim, tinha sido bem como ele imaginara. Pior, mesmo. Disse docemente: — Perdoe-me, Quarrel. — Com o pé soltou um pouco de areia, que colheu com as mãos algemadas e verteu-a sobre os restos dos olhos de Quarrel. Depois caminhou lentamente, de volta, e ficou ao lado da jovem.

O homem empurrou-os para a frente com o revólver. Deram a volta por trás da máquina, onde havia uma pequena porta quadrada. Uma voz do interior disse: — Entrem e sentem-se no chão. Não toquem em nada ou ficarão com os dedos partidos.

Com dificuldade, arrastaram-se para dentro daquela caixa de ferro, que cheirava a óleo e suor. Havia lugar apenas para que ambos se sentassem com as pernas encolhidas, de joelhos para cima. O homem que empunhava o revólver e que vinha atrás deles saltou por último para dentro do carro e fechou a porta. Ligou uma lâmpada e sentou-se num assento de ferro, ao lado do chofer. — Muito bem, Sam, vamos andando. Você pode apagar o fogo. Há luz bastante para dirigir — disse.

Na painel de controle podia-se ver uma fileira de mostradores. O motorista esticou a mão e deslocou para baixo um par de interruptores. Engrenou o motor e olhou através de uma estreita fresta, cortada na parede de ferro, diante dele. Bond sentiu que o veículo dava uma volta. Ouviu-se um movimento mais rápido do motor, e o veículo avançou.

O ombro da jovem apertou-se de encontro ao de Bond.

— Para onde estão eles nos levando? — O seu sussurro traía um estremecimento.

Bond voltou a cabeça e olhou para ela. Era a primeira vez que podia ver os seus cabelos depois de secos. Estavam desfeitos pelo sono, mas não eram mais mechas de rabichos empastados. Caíam densamente até os ombros, onde terminavam em anéis voltados para dentro. Eram do mais pálido louro acinzentado e despediam reflexos quase prateados sob a luz elétrica. Ela olhou para o alto, para ele. A pele, à volta dos olhos e nos cantos da boca, mostrava-se lívida de medo.

Bond deu de ombros, procurando aparentar uma indiferença que não sentia!. Sussurrou: — Oh, espero que vamos ver o Dr. No. Não se preocupe demais, Honey. Esses homens não passam de pequenos bandidos. Com ele, as coisas serão diferentes. Quando estivermos diante dele, não diga nada, falarei por nos dois. — Ele apertou o seu ombro e disse: — Gosto da maneira por que você penteia o seu cabelo, e fico contente porque você não o apara muito curto.

Um pouco da tenção desapareceu do rosto dela. — Como é que você pode pensar em coisas como essa? — Deu um leve sorriso para ele, e acrescentou: — Mas estou contente por você gostar de meu penteado. Lavo os meus cabelos com óleo de coco uma vez por semana.

À lembrança de sua outra vida, seus olhos ficaram brilhantes. Ela baixou a cabeça para as mãos algemadas, a fim de esconder as lágrimas. Sussurrou quase para si mesma: — Tentarei ser brava. Tudo estará bem, desde que você esteja lá.

Bond aconchegou-se a ela. Levantou suas mãos algemadas até a altura dos olhos e examinou as algemas. Eram do tipo usado pela polícia norte-americana. Contraiu sua mão esquerda, a mais fina das duas, e tentou fazê-la deslizar pelo anel de aço. Mesmo o suor de sua pele de nada adiantou. Era inútil.

Os dois homens sentavam-se em seus bancos de ferro, indiferentes, e com as costas voltadas para eles. Sabiam que dominavam inteiramente a situação. Não havia possibilidade de que Bond oferecesse qualquer incômodo. Não poderia levantar-se ou dar o necessário impulso aos seus punhos para causar qualquer mal às cabeças de seus adversários, utilizando as algemas. Se conseguisse abrir a porta e pular para a água, o que lograria com isso? Imediatamente eles sentiriam a brisa fresca, nas costas, e parariam a máquina para queimá-lo na água ou içá-lo novamente. Bond aborrecia-se em pensar que os homens pouco se preocupavam com ele, pois sabiam tê-lo completamente em seu poder. Também não gostou da idéia de que aqueles homens eram bastante inteligentes para saber que ele não representava nenhuma ameaça. Indivíduos mais estúpidos teriam ficado em cima deles, de revólver em punho, tê-los-iam surrado, a ele e à jovem, barbaramente, e talvez os tivessem deixado inconscientes. Aqueles dois conheciam o ofício. Eram profissionais, ou tinham sido treinados para o serem.

Os dois homens não falaram. Não houve nenhum comentário sobre o quão hábil eles tinham sido, ou quanto ao seu cansaço ou destino. Apenas dirigiam a máquina serenamente, ultimando com eficiência a sua tarefa.

Bond continuava sem a mínima idéia do que seria aquilo. Sob a tinta negra e dourada, assim como sob o resto daquela fantasia, a máquina parecia uma espécie de trator, como ele nunca vira. Não tinha conseguido descobrir nomes de marcas comerciais, nos pneumáticos, pois estivera muito escuro, mas certamente que deveriam ser de borracha sólida ou porosa. Atrás havia um pequena roda para dar estabilidade ao conjunto. Uma espécie de barbatana de ferro fora ainda acrescentada e pintada também de preto e ouro, a fim de ajudar a dar a aparência de dragão. Os altos pára-lamas tinham sofrido um prolongamento, na forma de curtas asas voltadas para trás. Uma comprida cabeça de dragão, feita em metal, fora fixada ao radiador e os faróis receberam pontos centrais negros, para parecerem olhos. Era tudo, sem falar da cabina que fora recoberta com uma cúpula blindada e dotada de um lança-chamas. Era, como pensara Bond, um trator preparado para assustar e queimar — embora não pudesse atinar porque estava dotado de um lança-chamas e não de uma metralhadora. Era, evidentemente, a única espécie de veículo que poderia percorrer a ilha. Suas gigantescas rodas podiam avançar sobre os mangues, pântanos e ainda atravessar o lago raso. Galgaria também os agrestes planaltos de coral e, desde que andasse à noite, o calor experimentado na cabina seria pelo menos tolerável.

Bond ficara impressionado. Impressionado pelo toque de profissionalismo. O Dr. No era sem dúvida um homem que se preocupava intensamente com as coisas. Em pouco iria encontrá-lo. E em breve estaria diante do segredo do Dr. No. Então, o que aconteceria? Bond sorriu amargamente. Sim, não o deixariam sair dali com o seu conhecimento. Certamente seria morto, a menos que pudesse fugir ou conseguir a sua liberdade por meios persuasivos. E o que aconteceria à jovem? Poderia ele provar sua inocência e conseguir com que ela fosse poupada? Possivelmente, mas nunca mais ela teria permissão para deixar a ilha. Ali teria de ficar para o resto da vida, como amante ou mulher de um dos homens, ou do próprio Dr. No, se ela o impressionasse.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um trecho do percurso mais difícil, como se podia sentir pela trepidação. Tinham atravessado o lago e estavam no caminho que levava para o alto da montanha, junto às cabanas. A cabina vibrava e a máquina começou a galgar o terreno. Dentro de cinco minutos estariam lá.

O ajudante do motorista olhou por sobre o ombro para Bond e a jovem. Bond sorriu confiantemente para ele dizendo: Você receberá uma medalha por isso.

Os olhos amarelos e marrons olharam impassivelmente dentro dos dele, enquanto os lábios arroxeados e oleosos se fenderam num sorriso no qual havia um ódio repousado: Feche a boca, se... Depois, deu-lhe as costas.

A jovem tocou-o com o cotovelo e sussurrou: — Por que eles são tão rudes? Por que nos odeiam tanto?

Bond esboçou um sorriso e disse: — Acho que é porque lhes causamos medo. Talvez ainda estejam com medo, e isto porque não parecemos ter medo deles. Devemos mantê-los assim.

A jovem aconchegou-se a ele e disse: — Tentarei.

Agora a subida estava-se tornando mais íngreme. Uma luz azul-acinzentada atravessava as frestas da armadura. A madrugada se aproximava. Fora, em breve estaria começando mais um dia de calor abrasador, de execrável vento, carregado com o cheiro de gás dos pântanos. Bond pensou em Quarrel, o bravo gigante que não mais veria aquele dia, e com o qual eles deveriam agora estar caminhando através dos pauis de mangues. Quarrel tinha pressentido a morte, mas apesar disso tinha acompanhado Bond sem qualquer objeção. Sua fé em Bond tinha sido maior do que o seu medo. E Bond tinha-lhe faltado. Seria ele ainda o causador da morte da jovem?

O motorista esticou o braço em direção ao painel e na parte dianteira do veículo fez-se ouvir o breve zunido de uma sirena de polícia, que foi desaparecendo num gemido fúnebre. Mais um minuto e o veículo parava, continuando o motor em regime neutro. O homem apertou um interruptor e tirou um microfone de um gancho, a seu lado. Falou por aquele microfone e Bond pôde ouvir a sua voz aumentada, do lado de fora, por um altofalante. — Tudo bem. Apanhamos o inglês e a garota. O outro homem morreu. Isso é tudo. Abram. — Bond ouviu que uma porta se deslocava para o lado, sobre rolamentos. O motorista embreou e eles avançaram lentamente para a frente, parando alguns metros adiante. O motorista desligou o motor. Ouviu-se o ruído metálico da tranca e a porta foi aberta pelo lado de fora. Uma lufada de ar fresco e uma luz mais brilhante penetraram na cabina. Várias mãos agarraram Bond e arrastaram-no para trás, até um chão de cimento. Bond agora estava de pé e sentia o cano de um revólver encostado ao seu flanco. Uma voz disse: — Fique onde está. Nada de espertezas. — Bond olhou para o homem. Era mais um chinês negro, do mesmo tipo que os outros. Os olhos amarelos examinaram-no com curiosidade. Bond virou-se com indiferença. Outro homem estava cutucando a jovem com a arma. Bond disse asperamente: — Deixe a garota em paz! Em seguida, caminhou e pôs-se ao lado da jovem. Os dois homens pareceram surpresos. Deixaram-se ficar de pé, apontando as armas com hesitação.

Bond olhou à volta. Estavam numa das cabanas pré-fabricadas que ele vira do rio. Era ao mesmo tempo uma garagem e uma oficina. O “dragão” tinha sido colocado sobre um fosso de vistoria, no chão de concreto. Um motor de popa desmontado estava sobre uma das bancadas. Longos tubos de luz fluorescente estavam afixados ao teto e o ambiente estava impregnado do cheiro de óleo e fumaça de exaustor. O motorista e o seu companheiro examinavam a máquina. Em seguida deram alguns passos pelo galpão, como se andassem sem propósito.

Um dos guardas anunciou: — Enviei a mensagem. A ordem é que eles sejam levados. Foi tudo bem?

O ajudante de motorista, que parecia o homem mais responsável, ali presente, disse: — Sem dúvida. Alguns disparos. Os faróis foram partidos. Talvez haja alguns furos nos pneumáticos. Ponha os rapazes em ação — uma vistoria completa. Conduzirei esses dois e tirarei um cochilo. — E, voltando-se para Bond: — Bem, vamos andando — e indicou o caminho que saía do longo galpão.

Bond disse: — Vá andando você; e cuidado com os modos. Diga àqueles macacos que tirem as armas de cima de nós. Podem disparar por engano. Parecem bastante idiotas.

O homem se aproximou, e os outros os acompanharam logo atrás. O ódio brilhava em seus olhos. O chefe levantou o punho cerrado, tão grande quanto um pequeno malho e chegou-o à altura do nariz de Bond. Procurava controlar-se com esforço, e disse: — Ouça, senhor. Às vezes, nós, os rapazes, temos permissão para participar da festa final. Estou rezando para que essa seja uma dessas vezes. Certa ocasião fizemos com que a coisa durasse toda uma semana. E se eu o pego...

Riu e os seus olhos brilharam com crueldade. Olhou para o lado de Bond, fixando a garota. Seus olhos pareciam transformados em bocas que agitavam os lábios. Enfiou as mãos nos bolsos laterais das calças. A ponta de sua língua mostrava-se muito vermelha, entre os lábios arroxeados. Voltando-se para os companheiros disse: — Que tal, rapazes?

Os três homens estavam olhando também para a jovem. Fizeram um sinal de assentimento, como crianças diante de uma árvore de Natal.

Bond desejou atirar-se como um louco sobre eles, golpeando as suas caras com os punhos algemados e aceitando a sua vingança sangrenta. Não fosse pela jovem, bem que o teria feito. Mas tudo o que tinha conseguido com suas corajosas palavras fora amedrontá-la. Disse apenas: — Muito bem, muito bem. Vocês são quatro e nós somos dois, ainda por cima com as mãos atadas. Vamos, não queremos atingi-los. Apenas não nos empurrem muito de um lado para outro. O Dr. No poderia não ficar satisfeito.

Àquele nome, os rostos dos homens se modificaram. Três pares de olhos passaram apàticamente de Bond para o chefe. Por um segundo, este olhou com desconfiança para Bond, intrigado, tentando descobrir se Bond teria alguma influência junto ao Dr. No. Sua boca abriu-se para dizer algo, mas logo pareceu pensar melhor, e apenas disse de maneira incerta: — Bem, bem, estávamos simplesmente brincando. — Voltou-se para os homens, em busca de confirmação: — Não é?

— Sem dúvida, sem dúvida! — foi a resposta dada por um coro áspero, e os homens desviaram o olhar.

O chefe disse com mau humor: — Por aqui, senhor. — E ele mesmo pôs-se a caminho, percorrendo o comprido galpão.

Bond segurou o pulso da jovem e seguiu o chefe. Estava impressionado com a reação causada naqueles homens pelo nome do Dr. No. Aquilo era alguma coisa a lembrar se eles tivessem que se haver novamente com aquela turma.

O homem chegou a uma porta de madeira situada na extremidade do galpão. Ao lado havia um botão de campainha que ele pressionou duas vezes e esperou. Ouviu-se um estalido e a porta se abriu, mostrando dez metros de uma passagem rochosa, mas atapetada e que ia dar, na outra extremidade, em outra porta mais elegante e pintada de creme.

O homem ficou de lado. Siga em frente, senhor — disse; — bata na porta e será atendido pela recepcionista. — Não havia nenhuma ironia em sua voz e seus olhos se mostravam impassíveis.

Bond conduziu Honey pela passagem. Ouviu que a porta se fechava às suas costas. Deteve-se por um momento e fitou-a, perguntando-lhe: — E agora?

Ela riu, trêmula, mas respondeu: — Ê bom sentir-se tapete sob os pés.

Bond apertou o seu pulso. Andou até a porta pintada de creme e bateu.

A porta abriu-se e Bond entrou com a jovem ao lado. Quando se deteve instantaneamente, não chegou a perceber o encontrão que lhe dava a jovem, pois continuou estarrecido.


XIII - GAIOLA DE OURO


Era a espécie de sala de recepção que as maiores corporações norte-americanas possuem no andar em que se situa o escritório do presidente, em seus arranha-céus de Nova Iorque. Suas proporções eram agradáveis, com cerca de vinte pés quadrados. O chão era todo recoberto pelo mais espesso tapete Wilton cor-de-vinho. O teto e as paredes estavam pintados numa suave tonalidade cinza pombo. Viam-se ainda reproduções litográficas de esboços de balé de Degas penduradas em séries, nas paredes, e a iluminação era feita com altos e modernos jogos de abajures de seda verde-escuro, imitando a forma de elegantes barricas.

À direita de Bond estavam uma larga mesa de mogno, com o tampo recoberto com couro verde, outras peças que se harmonizavam perfeitamente com a mesa, e um caro sistema de intercomunicações. Duas cadeiras altas, de antiquado, aguardavam os visitantes. Do outro lado da sala via-se uma mesa do tipo refeitório, sobre a qual estavam várias revistas com capas em cores vivas e mais duas cadeiras. Tanto na mesa de escritório, como na outra, viam-se vasos de hibiscos. O ar era fresco e impregnado de leve fragrância.

Duas mulheres estavam naquela sala. Por trás da mesa de trabalho, empunhando uma caneta que descansava sobre um formulário impresso, estava sentada uma jovem chinesa, de aspecto eficiente, com óculos de armação de chifre, sob uma franja de cabelos negros cortados curtos. Em seus olhos e em sua boca havia o sorriso padrão de boas-vindas que qualquer recepcionista exibe — a um tempo claro, obsequioso e inquisitivo.

Ainda com a mão na maçaneta da porta pela qual eles tinham passado, e esperando que os recém-chegados se adiantassem mais, a fim de que ela a pudesse fechar, estava uma mulher mais velha, com aspecto de matrona, e que deveria ter cerca de quarenta e cinco anos. Era fácil ver-se que também tinha sangue chinês. Sua aparência, saudável, de farto busto, era viva e quase excessivamente graciosa. O seu “pince-nez” de lentes cortadas em quadrado brilhava com o desejo da recepcionista de os pôr à vontade.

Ambas as mulheres vestiam roupas imaculadamente alvas, com meias brancas e sapatos de camurça branca como costumam apresentar-se as auxiliares empregadas nos mais luxuosos salões de beleza norte-americanos. Havia um que de suave e pálido em suas peles, como se elas raramente saíssem para o ar-livre.

Bond observou o ambiente, enquanto a mulher junto à porta lhe dizia frases convencionais de boas-vindas, como se eles tivessem sido colhidos por uma tempestade o chegado com atraso a uma festa.

— Oh, coitados! Nós não sabíamos quando vocês iriam chegar. A todo momento nos diziam que vocês já estavam a caminho... primeiro à hora do chá, ontem, depois na hora do jantar, e apenas há uma hora fomos informadas de que vocês chegariam à hora do desjejum. Devem estar com fome. Venham aqui e ajudem a irmã Rosa a preencher o formulário; depois eu os prepararei para a cama. Devem estar muito cansados.

Ia dizendo aquilo com voz doce e cacarejante, ao mesmo tempo que fechava a porta e os levava para junto da mesa e os fazia sentar nas cadeiras. Depois disse: — Bem, eu sou a irmã Lírio, e esta é a irmã Rosa. Ela irá fazer-lhes apenas algumas perguntas. Agora, aceitam um cigarro? — e pegou uma caixa de couro trabalhado que estava em cima da mesa. Abriu-a e pô-la diante deles. A caixa tinha três divisões, e a chinesinha explicou apontando com um dedo: “Esses são americanos, esses são ingleses e esses turcos.” Ela apanhou um luxuoso isqueiro de mesa e esperou.

Bond estendeu as mãos algemadas para tirar um cigarro turco.

A irmã Lírio deu um gritinho de espanto: — Oh, mas francamente. — Parecia sinceramente embaraçada. — Irmã Rosa, dê-me a chave, depressa. Já disse por várias vezes que os pacientes não devem ser trazidos dessa maneira. — Havia impaciência e aborrecimento em sua voz. — Francamente, aquela gente lá de fora! Já era tempo que eles fossem chamados à ordem.

A irmã Rosa estava tão embaraçada quanto a irmã Lírio. Rapidamente remexeu dentro de uma gaveta e entregou uma chave à irmã Lírio, que com muitas desculpas e cheia de dedos abriu os dois pares de algemas e, afastando-se para trás da mesa, deixou aquelas duas pulseiras de aço caírem dentro da cesta de papéis como se fossem ataduras sujas.

— Obrigado, — disse Bond, que não sabia como enfrentar aquela situação, a não ser procurando desempenhar um papel qualquer na comédia que se estava representando. Ele estendeu o braço, apanhou um cigarro e acendeu-o. Lançou um olhar para Honeyehile Rider, que parecia estonteada e nervosamente apertava com as mãos os braços de sua cadeira. Bond dirigiu-lhe um sorriso de conforto.

— Agora, por favor; — disse a irmã Rosa e inclinou-se sobre um comprido formulário impresso em papel caro. — Prometo ser o mais rápida que puder. O seu nome, sr... sr...

— Bryce, John Bryce.

Ela escreveu a resposta com grande concentração. — Endereço permanente?

— Aos cuidados do Jardim Zoológico Real, Regents Park, Londres, Inglaterra.

— Profissão?

— Ornitologista.

— Oh, meu Deus!, poderia o senhor soletrar isso? Bond atendeu-a.

— Muito obrigada. Agora, vejamos, objeto da viagem?

— Aves — respondeu Bond. — Sou também representante da Sociedade Audubon de Nova Iorque. Eles arrendaram parte desta ilha.

— Oh, sem dúvida. — Bond observou que a pena escrevia exatamente o que ele dizia. Depois da última palavra ela pôs um claro ponto de interrogação entre parênteses.

— E — a irmã Rosa sorriu polidamente em direção a Honeyehile — a sua esposa? Ela também está interessada em pássaros?

— Sim, sem dúvida.

— O seu primeiro nome?

— Honeyehile.

A irmã Rosa estava encantada. — Que nome lindo! — Ela voltou a escrever apressadamente. — E agora os parentes mais próximos de ambos, e estará tudo acabado.

Bond deu o verdadeiro nome de M como o parente mais próximo de ambos. Apresentou-o como “tio” e indicou o seu endereço como sendo “Diretor-Gerente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres.”

A irmã Rosa acabou de escrever e disse: — Pronto, está tudo feito. Muito obrigada, sr. Bryce, e espero que ambos apreciem a permanência aqui.

— Muito obrigado. Estou certo de que apreciaremos. — Bond levantou-se e Honeyehile fez o mesmo, ainda com expressão vazia.

A irmã Lírio disse: — Agora, venham comigo, queridos.

— Ela caminhou até uma porta na parede distante e deteve-se com a mão na maçaneta talhada em vidro. — Oh, meu Deus, — disse —, não é que agora me esqueci do número de seus quartos? É o apartamento creme, não é, irmã?

— Isso mesmo. Catorze e quinze.

— Obrigada, querida. E agora — ela abriu a porta — se vocês quiserem me seguir... Receio que seja uma caminhada um pouco longa. — Fechou a porta, por trás deles, e pôs-se à frente, indicando o caminho. — O Doutor tem falado várias vezes em instalar uma dessas escadas rolantes, ou algo de parecido, mas sabem como são os homens ocupados: — Ela riu alegremente. — Ele tem tantas outras coisas em que pensar!

— Sim, acredito, — disse Bond polidamente.

Bond tomou a mão da jovem e seguiram ambos a maternal e agitada chinesa através de cem metros de um alto corredor, do mesmo estilo da sala de recepção, mas que era iluminado a freqüentes intervalos por caros tubos luminosos fixados às paredes.

Bond respondia com polidos monossílabos aos comentários ocasionais que a irmã Lírio lhe lançava por sobre os ombros. Toda a sua mente se concentrava nas extraordinárias circunstâncias de sua recepção. Tinha certeza de que aquelas duas mulheres tinham sido sinceras. Nenhum só olhar ou palavra conseguira registrar que estivesse fora de propósito. Evidentemente aquilo era alguma espécie de fachada, mas de qualquer forma uma fachada sólida, meticulosamente apoiada pelo cenário e pelo elenco. A ausência de ressonância, na sala, e agora no corredor, estava a indicar que eles tinham deixado o galpão pré-fabricado para se internarem no flanco da montanha e agora estavam atravessando a sua base. Segundo o seu palpite estavam mesmo andando em direção oeste — em direção à penedia na qual terminava a ilha. Não havia umidade nas paredes e o ar parecia fresco e puro, com uma brisa a afagá-los. Muito dinheiro e uma bela realização de engenharia tinham sido os responsáveis por aquilo. A palidez das duas mulheres estava a sugerir que passavam a maior parte do tempo internadas no âmago da montanha. Do que a irmã dissera, parecia que elas faziam parte de um grupo de funcionários internos que nada tinham a ver com o destacamento de choque do exterior, e que talvez não soubessem a espécie de homens que eles eram.

Aquilo era grotesco, concluiu Bond ao se aproximar de uma porta, na extremidade do corredor, perigosamente grotesco, mas em nada adiantava pensar nisso no momento. Ele apenas podia seguir o papel que lhe tinha sido destinado. Pelo menos, aquilo era melhor do que os bastidores, na arena exterior da ilha.

Junto à porta, a irmã Lírio fez soar uma campainha. Já eram esperados e a porta abriu-se imediatamente. Uma encantadora jovem chinesa, de quimono lilás e branco, ficou a sorrir e a curvar-se, como se deve esperar que o façam as jovens chinesas. E, mais uma vez só havia calor e um sentimento de boas-vindas naquele rosto pálido como uma for. A irmã Lírio exclamou: — Aqui estão eles, finalmente, May! São o senhor e a senhora John Bryce. E sei que ambos devem estar exaustos, por isso devemos levá-los imediatamente aos seus aposentos, para que possam repousar e dormir. — Voltando-se para Bond: — Esta é May, muito boazinha. Ela tratará de ambos. Qualquer coisa que queiram é só tocar a campainha que May atenderá. É uma espécie de favorita de todos os nossos hóspedes.

Hóspedes!, pensou Bond. Essa é a segunda vez que ela usa a palavra. Sorriu polidamente para a jovem, e disse;

— Muito prazer; sim, certamente que gostaríamos de ir para os nossos aposentos.

May envolveu-os num cálido sorriso, e disse em voz baixa e atraente: — Espero que ambos se sintam bem, sr. Bryce. Tomei a liberdade de mandar vir uma refeição assim que soube que os senhores iam chegar. Vamos...? — Corredores saiam para a esquerda e a direita de portas duplas de elevadores, instalados na parede oposta. A jovem adiantou-se, caminhando na frente, para a direita, logo seguida de Bond e Honeyehile, que tinham atrás a irmã Lírio.

Ao longo do corredor, dos dois lados, viam-se portas numeradas. A decoração era feita no mais pálido cor-de-rosa, com um tapete cinza-pombo. Os números nas portas eram superiores a dez. O corredor terminava abruptamente, com duas portas, uma em frente a outra, com a numeração catorze e quinze. A irmã May abriu a porta catorze e o casal a seguiu, entrando na peça.

Era um lindo quarto de casal, em moderno estilo Mia-mi, com paredes verde-escuro, chão encerado de mogno escuro, com um ou outro espesso tapete branco e bem desenhado mobiliário de bambu com um tecido “chintz” de grandes rosas vermelhas sobre fundo branco. Havia uma porta de comunicação para um quarto de vestir masculino e outra que dava para um banheiro moderno e extremamente luxuoso, com uma banheira de descida e um bidê.

Era como se tivessem sido introduzidos num apartamento do mais moderno hotel da Flórida, com exceção de dois detalhes que não passaram despercebidos a Bond. Não havia janelas e nenhuma maçaneta interior nas portas.

May olhou com expressão de expectativa, de um para o outro.

Bond voltou-se para Honeyehile e sorriu-lhe: — Parece muito confortável, não acha, querida?

A jovem brincava com a barra da saia e fez um sinal de assentimento sem olhar para Bond.

Ouviu-se uma tímida batida na porta e outra jovem, tão linda quanto May, entrou carregando uma bandeja que se equilibrava sobre as palmas das mãos. A jovem descansou a bandeja sobre a mesa do centro e puxou duas cadeiras. Retirou a toalha de linho imaculadamente limpa e saiu. Sentiu-se um delicioso cheiro de fiambre e café.

May e a irmã Lírio também se encaminharam para a porta. A mulher mais idosa se deteve por um instante e disse:

— E agora nós os deixaremos em paz. Se desejarem alguma coisa, basta tocar a campainha. Os interruptores estão ao lado da cama. Ah, outra coisa, poderão encontrar roupa limpa nos aparadores. Receio que sejam apenas de estilo chinês,

— acrescentou, como a desculpar-se —, mas espero que os tamanhos satisfaçam. A rouparia só recebeu as medidas ontem à noite. O Dr. deu ordens severas para que os senhores não fossem perturbados. Ficará encantado se puderem reunir-se a ele, esta noite, para o jantar. Deseja, entretanto, que tenham todo o resto do dia à vontade, a fim de que melhor se ambientem, compreendem? — Fez uma pausa e olhou para um e para outro, com um sorriso indagador. — Posso dizer que os senhores...?

— Sim, por favor, — disse Bond. — Pode dizer ao D., que teremos muito prazer em jantar com ele.

— Oh, sei que ficará contente. — Com uma derradeira mesura, as duas chinesas se retiraram e fecharam a porta.

Bond voltou-se para Honeyehile, que parecia embaraçada e ainda evitava os seus olhos. Ocorreu então a Bond que talvez jamais tivesse ela tido um tratamento tão cortês ou visto tanto luxo em sua vida. Para ela, tudo aquilo devia ser muito mais estranho e aterrador do que o que tinham passado ao lado de fora. Ela continuou na mesma posição, brincando com a barra da saia. Podiam-se notar vestígios de suor seco, sal e poeira em seu rosto. Suas pernas nuas estavam sujas e Bond observou que os dedos de seus pés se moviam, suavemente, ao pisarem nervosamente o maravilhoso e espesso tapete.

Bond riu. Riu com gosto ao pensamento de que os temores da jovem tivessem sido abafados pelas preocupações de etiqueta e comportamento, e riu-se também da figura que ambos faziam — ela em farrapos e ele com a suja camisa azul, as calças pretas e os sapatos de lona enlameados.

Aproximou-se dela e segurou-lhe mãos. Estavam frias. Disse: — Honey, somos um par de espantalhos, mas há apenas um problema básico. Devemos tomar o nosso desjejum primeiro, enquanto está quente, ou tiraremos antes esses farrapos e tomaremos um banho, tomando a nossa refeição fria? Não se preocupe com mais nada. Estamos aqui nessa maravilhosa casinha e isto é tudo o que importa. O que faremos, então?

Ela sorriu hesitante. Seus olhos azuis fixavam-se no rosto dele, na ânsia de obter segurança. Depois disse: — Você não está preocupado com o que nos possa acontecer? — Fez um sinal para o quarto e acrescentou: — Não acha que tudo isso pode ser uma armadilha?

— Se se trata de uma armadilha, já caímos nela. Agora nada mais podemos fazer senão comer a isca. A única questão que subsiste é a de saber se a comeremos quente ou fria. — Apertou-lhe as mãos e continuou: — Seriamente, Honey. Deixe as preocupações comigo. Pense apenas onde estávamos apenas há uma hora. Isso aqui não é melhor? Agora, decidamos a única coisa realmente importante. Banho ou desjejum?

Ela respondeu com relutância: — Bem, se você acha... Quero dizer — preferiria antes lavar-me. — Mas logo acrescentou: — Você terá que ajudar-me. — E sacudiu a cabeça em direção ao banheiro, dizendo: Não sei como mexer numa coisa dessas. Como é que se faz?

Bond respondeu com toda seriedade: — É muito fácil. Vou preparar tudo para você. Enquanto você estivar tomando o seu banho tomarei o meu desjejum. Ao mesmo tempo tratarei de fazer com que o seu não esfrie.

Bond aproximou-se de um dos armários embutidos e abriu a porta. No interior havia uma meia dúzia de quimonos, alguns de seda e outros de linho. Apanhou um de linho, ao acaso. Depois, voltando-se para ela, disse: — Tire suas roupas e meta-se nisso aqui, enquanto preparo o seu banho. Mais tarde você escolherá as coisas que preferir, para a cama e para o jantar.

Ela respondeu com gratidão: — Oh, sim, James. Se você apenas me mostrasse... — E logo começou a desabotoar a saia.

Bond pensou em tomá-la nos braços e beijá-la, mas, ao invés disso, disse abruptamente: — ótimo, Honey — e, adiantando-se para o banheiro, abriu as torneiras.

Havia de tudo naquele banheiro: essência para banhos Floris Lime, para homens, e pastilhas de Guarlain para o banho de senhoras. Esfarelou uma pastilha na água e imediatamente o banheiro perfumou-se como uma loja de orquídeas. O sabonete era o Sapoceti de Guarlain “Fleurs des Alpes”. Num pequeno armário de remédios, atrás de um espelho, em cima da pia, podiam-se encontrar tubos de pasta, escovas de dente e palitos “Steradent”, água “Rose” para lavagem bucal, aspirina e leite de magnésia. Havia também um aparelho de barbear elétrico, loção “Lentheric” para barba, e duas escovas de náilon para cabelos e pentes. Tudo era novo e ainda não tinha sido tocado.

Bond olhou para o seu rosto sujo e sem barbear, no espelho, e riu sardonicamente para os próprios olhos, cinzentos, de pária queimado pelo sol. O revestimento da pílula certamente que era do melhor açúcar. Seria inteligente esperar que o remédio, no interior daquela pílula, fosse dos mais amargos.

Tocou a água, com a mão, a fim de sentir a temperatura. Talvez estivesse muito quente para quem jamais tinha tomado antes um banho quente. Deixou então que corresse um pouco mais de água fria. Ao inclinar-se, sentiu que dois braços lhe eram passados em torno do pescoço. Endireitou-se. Aquele corpo dourado resplandecia no banheiro todo revestido de ladrilhos brancos. Ela beijou-o impetuosamente nos lábios. Ele passou-lhe os braços à volta da cintura e esmagou-a de encontro a seu corpo, com o coração aos pulos. Ela disse sem fôlego, ao seu ouvido: — Achei estranhas as roupas chinesas, mas de qualquer maneira você disse à mulher que nós éramos casados.

Uma das mãos de Bond estava pousada sobre o seu seio esquerdo, cujo mamilo estava completamente endurecido pela paixão. O ventre da jovem se comprimia contra o seu. Por que não? Por que não? Não seja tolo! Este é um momento louco para isso. Vocês dois estão diante de um perigo mortal. Você deve continuar frio como gelo, para ter alguma possibilidade de se livrar dessa enrascada. Mais tarde! Mais tarde! Não seja fraco.

Bond retirou a mão do seio dela e espalmou-a à volta de seu pescoço. Esfregou o rosto de encontro ao dela e depois aproximou a boca da boca da jovem e deu-lhe um prolongado beijo.

Afastou-se depois e manteve-a à distância de um braço. Por um momento ambos se olharam, com os olhos brilhando de desejo. Ela respirava ofegantemente, com os lábios entreabertos, de modo que ele podia ver-lhe o brilho dos dentes. Ele disse com a voz trêmula: — Honey, entre no banho antes que eu lhe dê uma surra.

Ela sorriu e sem nada dizer entrou na banheira e deitou-se em todo seu comprimento. Do fundo da banheira ergueu os olhos para ele. Os cabelos louros, em seu corpo, brilhavam como moedas de ouro. Ela disse provocadoramente: — Você tem que me esfregar. Não sei como devo fazer, e você terá que mostrar-me.

Bond respondeu desesperadamente: — Cale a boca, Honey, e deixe de namoros. Apanhe a esponja, o sabonete e comece logo a se esfregar. Que diabo! Isso não é o momento de se fazer amor. Vou tomar o meu desjejum. — Esticou a mão para a porta e segurou na maçaneta. Ela disse docemente: — James! — Ele olhou para trás e viu que ela lhe fazia uma careta, com a língua de fora. Retribuiu com uma careta selvagem e bateu a porta com força.

Em seguida, Bond dirigiu-se para o quarto de vestir e deixou-se ficar durante algum tempo, de pé, no centro da peça, esperando que as batidas de seu coração se acalmassem. Esfregou as mãos no rosto e sacudiu a cabeça, procurando esquecê-la.

Para clarear a mente, percorreu ainda cuidadosamente as duas peças, procurando saídas, possíveis armas, microfones, qualquer coisa enfim que lhe aumentasse o conhecimento da situação em que se achava. Nada disso, entretanto, pôde encontrar. Na parede havia um relógio elétrico que marcava oito e meia e uma série de botões de campainhas, ao lado da cama de casal. Esses botões traziam a indicação de “Sala de serviço”, “cabeleireiro”, “manicure”, “empregada”. Não havia telefone. Bem no alto, a um canto de ambas as peças, viam-se as grades de um pequeno ventilador. Cada uma dessas grades era de dois pés quadrados. Tudo inútil. As portas pareciam ser feitas de algum metal leve, pintadas para combinarem com as paredes. Bond jogou todo o peso de seu corpo contra uma delas, mas ela não cedeu um só milímetro. Bond esfregou o ombro. Aquele lugar era uma verdadeira prisão. Não adiantava discutir a situação. A armadilha tinha-se fechado hermèticamente sobre eles. Agora, a única coisa que restava aos ratos era tirarem o melhor proveito possível da isca de queijo.

Bond sentou-se à mesa do desjejum, sobre a qual estava uma grande jarra com suco de abacaxi, metida num pequeno balde de prata cheio de cubos de gelo. Serviu-se rapidamente e levantou a tampa de uma travessa. Ali estavam ovos mexidos sobre torradas, quatro fatias de toucinho defumado, um rim grelhado e o que parecia quatro salsichas inglesas de carne de porco. Havia também duas torradas quentes, pãezinhos conservados quentes dentro de guardanapos, geléia de laranja e morango e mel. O café estava quase fervendo numa grande garrafa térmica, e o creme exalava um odor fresco e agradável.

Do banheiro vinham as notas da canção “Marion” que a jovem estava cantarolando. Bond resolveu não dar ouvidos à cantoria e concentrou-se nos ovos.

Dez minutos depois, Bond ouviu que a porta do banheiro se abria. Descansou uma torrada que tinha numa das mãos e cobriu os olhos com a outra. Ela riu e disse: — Ele é um covarde. Tem medo de uma simples jovem. — Em seguida Bond ouviu-a a remexer nos armários. Ela continuava falando, em parte consigo mesma: — Não sei porque ele está assustado. Naturalmente que se eu lutasse com ele facilmente o dominaria. Talvez esteja com medo disso. Talvez não seja realmente muito forte, embora seus braços e peito pareçam bastante rijos. Contudo, ainda não vi o resto. Talvez seja fraco. Sim, deve ser isso. Essa é a razão pela qual não ousa despir-se na minha frente. Hum, agora vamos ver, será que ele gostaria de mim com essas roupas? — Ela elevou a voz: — Querido James, você gostaria de me ver de branco, com pássaros azul-pálido esvoaçando sobre o meu corpo?

— Sim, bolas! Agora acabe com essa conversa e venha comer. Estou começando a sentir sono.

Ela soltou uma exclamação: — Oh, se você quer dizer que já está na hora de irmos para a cama, naturalmente que me apressarei.

Ouviu-se uma agitação de passos apressados e Bond logo a via sentar-se diante de si. Ele deixou cair as mãos e ela sorriu-lhe. Estava linda. Seu cabelo estava escovado e penteado de um dos lados caindo sobre o rosto, e do outro com as madeixas puxadas para trás da orelha. Sua pele brilhava de frescura e os grandes olhos azuis resplandeciam de felicidade. Agora Bond estava gostando daquele nariz quebrado. Tinha-se tornado parte de seus pensamentos relativamente a ela, e subitamente lhe ocorreu perguntar-se por que estaria ele triste quando ela era tão imaculadamente bela quanto tantas outras lindas jovens. Sentou-se circunspectamente, com as mãos no colo, e a metade dos seios aparecendo na abertura do quimono.

Bond disse severamente: — Agora, ouça, Honey. Você está maravilhosa, mas esta não é a maneira de usar-se um quimono. Feche-o no corpo, prenda-o bem e deixe de tentar parecer uma prostituta. Isso simplesmente não são bons modos à mesa.

— Oh, você não passa de um boneco idiota. — E ajeitou o quimono, fechando-o um pouco, em uma ou duas polegadas. — Por que você não gosta de brincar? Gostaria de brincar de estar casada.

— Não à hora do desjejum — respondeu Bond com firmeza. — Vamos, coma logo. Está delicioso. De qualquer maneira estou muito sujo, e agora vou fazer a barba e tomar um banho. — Levantou-se, deu volta à mesa e beijou-lhe o alto da cabeça. — E quanto a essa história de brincar, como você diz, gostaria mais de brincar com você do que com qualquer outra pessoa do mundo. Mas não agora. — Sem esperar pela resposta, dirigiu-se ao banheiro e fechou a porta.

Bond barbeou-se e tomou um banho de chuveiro. Sentia-se desesperadamente sonolento. O sono chegava-lhe, de modo que de quando em quando tinha que interromper o que fazia e inclinar a cabeça, repousando-a entre os joelhos. Quando começou a escovar os dentes, o seu estado era tal que mal podia fazê-lo. Estava começando a reconhecer os sintomas. Tinha sido narcotizado. A coisa teria sido posta no suco de abacaxi ou no café? Este era um detalhe sem importância. Aliás, nada tinha importância. Tudo o que queria fazer era estender-se naquele chão de ladrilhos e fechar os olhos. Assim mesmo, dirigiu-se cambaleante para a porta, esquecendo-se de que estava nu. Isso também pouca importância tinha. A jovem já tinha terminado a refeição e agora estava na cama. Continuou trôpego, até ela, segurando-se nos móveis. O quimono tinha sido abandonado no chão e ela dormia pesadamente, completamente nua, sob um simples lençol.

Bond olhou para o travesseiro, ao lado da jovem. Não! Procurou o interruptor e apagou as luzes. Agora teve que se arrastar pelo chão até chegar ao seu quarto. Chegou até junto de sua cama e atirou-se nela. Com grande esforço conseguiu ainda esticar o braço, tocar o interruptor e tentar apagar a lâmpada do criado-mudo. Mas não o conseguiu: sua mão deslizou, atirou o abajur ao chão e a lâmpada espatifou-se. Com um derradeiro esforço, Bond virou-se ainda no leito e adormeceu profundamente.

Os números luminosos do relógio elétrico, no quarto de casal, anunciavam nove e meia.

Às dez horas, a porta do quarto abriu-se suavemente. Um vulto muito alto e magro destacava-se na luz do corredor. Era um homem. Talvez tivesse dois metros de altura. Permaneceu no limiar da porta, com os braços cruzados, ouvindo. Dando-se por satisfeito, caminhou vagarosamente pelo quarto e aproximou-se da cama. Conhecia perfeitamente o caminho. Curvou-se sobre o leito e ouviu a serena respiração da jovem. Depois de um momento, tocou em seu próprio peito e acionou um interruptor. Imediatamente um amplo feixe de luz difusa projetou-se na cama. O farolete estava preso ao corpo do homem por meio de um cinto que o fixava à altura do esterno.

Inclinou-se novamente para a frente, de modo que a luz clareou o rosto da jovem.

O intruso examinou aquele rosto durante alguns minutos. Uma de suas mãos avançou, apanhou a orla do lençol, à altura do queixo da jovem, e puxou-o lentamente até os pés da cama. Mas a mão que puxara aquele lençol não era u’a mão. Era um par de pinças de aço muito bem articuladas na extremidade de uma espécie de talo metálico que desaparecia dentro de uma manga de seda negra. Era u’a mão mecânica.

O homem contemplou durante longo tempo aquele corpo nu, deslocando o seu peito de um lado para outro, de modo que todo o leito fosse submetido ao feixe luminoso. Depois, a garra saiu novamente de sob aquela manga e delicadamente levantou a ponta do lençol, puxando-o dos pés da cama até recobrir todo o corpo da jovem. O homem demorou-se ainda por um momento a contemplar o rosto adormecido, depois apagou o farolete e atravessou silenciosamente o quarto em direção à porta aberta, além da qual estava Bond dormindo.

O homem demorou-se mais tempo ao lado do leito de Bond. Perscrutou cada linha, cada sombra do rosto moreno e quase cruel que jazia quase sem vida, sobre o travesseiro. Observou a circulação à altura do pescoço e contou-lhe as batidas; depois, quando puxou o lençol para baixo, fez o mesmo na área do coração. Estudou a curva dos músculos, nos braços de Bond e nas coxas, e considerou pensativo a força oculta no ventre musculoso de Bond. Chegou até mesmo a curvar-se sobre a mão direita de Bond, estudando-lhe cuidadosamente as linhas da vida e do destino.

Por fim, com grande cuidado, a pinça de aço puxou novamente o lençol, desta vez para cobrir o corpo de Bond até o pescoço. Por mais um minuto o elevado vulto permaneceu ao lado do homem adormecido, depois se retirou rapidamente, ganhando o corredor, enquanto a porta se fechava com um estalido metálico e seco.


CONTINUA

XI - VIDA NO CANAVIAL


Seriam cerca de oito horas, pensou Bond. A não ser o coaxar dos sapos, tudo estava mergulhado em silêncio. No canto mais distante da clareira, ele podia vislumbrar o vulto de Quarrel.

Podia-se ouvir o tinir metálico, enquanto ele se ocupava em desmontar e secar a sua “Remington”.

Por entre as árvores podiam-se ver também as luzes distantes, vindas do depósito de guano, riscar caminhos luminosos e festivos sobre a superfície escura do lago. O desagradável vento desaparecera e o abominável cenário estava mergulhado em trevas. Estava bastante fresco. As roupas de Bond tinham secado no corpo. A comida tinha aquecido o seu estômago. Ele experimentou uma agradável sensação de conforto, sonolência e paz. O dia seguinte ainda estava muito longe e não apresentava problemas, a não ser uma boa dose de exercício físico. A vida, subitamente, pareceu-lhe fácil e boa.

A jovem estava a seu lado, metida no saco de dormir. Estava deitada de costas, com a cabeça descansando nas mãos, e olhando para o teto de estrelas. Ele apenas conseguia divisar os pálidos contornos de seu rosto. De repente, ela disse: James, você prometeu dizer-me o que significava tudo isso. Vamos. Eu não dormirei enquanto você não o disser.

Bond riu. — Eu direi se você também disser. Também quero saber o que você pretende.

— Pois não, não tenho segredos: mas você deve falar primeiro.

— Está certo. — Bond puxou os joelhos até a altura do queixo e passou os braços à volta deles. — Eu sou uma espécie de policial. Eles me enviam de Londres quando há alguma coisa de estranho acontecendo em alguma parte do mundo e que não interessa a ninguém. Bem, não faz muito tempo, um dos funcionários do Governador, em Kingston, um homem chamado Strangways, aliás meu amigo, desapareceu. Sua secretária, que era uma linda jovem, também desapareceu sem deixar vestígios. Muitos pensaram que eles tivessem fugido juntos, mas eu não acreditei nisso. Eu...”

Bond contou tudo com simplicidade, falando em homens bons e maus, como numa história de aventuras lida em algum livro. Depois terminou: Como você vê, Honey, temos de voltar a Jamaica, amanhã à noite, todos nós, na canoa, e então o Governador nos dará ouvidos e enviará um destacamento de soldados para apanhar este chinês. Espero que isso terá como conseqüência levá-lo à prisão. Ele com certeza também sabe disso, e essa é a razão pela qual procura aniquilar-nos. Essa é a história. Agora é a sua vez.

A jovem disse: Você parece viver uma vida muita excitante. Sua mulher não deve gostar que você fique fora tanto tempo. Ela não tem medo de que você se fira?

— Não sou casado. A única que se preocupa com a possibilidade de que eu me fira é a minha companhia de seguros.

Ela continuou sondando: Mas suponho que você tenha namoradas.

— Não permanentes.

— Oh!

Fez-se uma pausa. Quarrel se aproximou e disse: “Capitão, farei o primeiro quarto, se for melhor. Estarei na extremidade da restinga e virei chamá-lo à meia-noite. Então talvez o senhor possa ir até as cinco horas, quando nós nos poremos em marcha. Precisamos estar fora daqui antes que clareie o dia.

— Está bem — respondeu Bond. — Acorde-me se você vir alguma coisa. O revólver está em ordem?

— Perfeito — respondeu Quarrel com evidente mostra de contentamento. Depois, dirigindo-se à jovem disse com leve tom de insinuação: — Durma bem, senhorita. Em seguida, desapareceu silenciosamente nas sombras.

— Gosto de Quarrel — disse a jovem. E, após uma pausa: — Você quer realmente saber alguma coisa a meu respeito? A história não é tão excitante quanto a sua.

— É claro que quero. E não omita nada.

— Não há nada a omitir. Você poderia escrever toda a história de minha vida nas costas de um cartão postal. Para começar, nunca saí de Jamaica. Vivi toda a minha vida num lugar chamado Beau Desert, na costa setentrional, nas proximidades do Porto Morgan.

Bond riu. — É estranho: posso dizer o mesmo; pelo menos por enquanto. Não notei você pela região. Você vive em cima de uma árvore?

— Ah, imagino que você tenha ficado na casa da praia. Eu nunca chego até ali. Vivo na Casa Grande.

— Mas nada ficou dela. É uma ruína no meio dos canaviais.

— Eu vivo na adega. Tenho vivido ali desde a idade de cinco anos. Depois a casa se incendiou e meus pais morreram. Nada me lembro deles, por isso você não precisa manifestar pesar. A princípio vivi ali com a minha ama negra, mas depois ela morreu, quando eu tinha apenas quinze anos. Nos últimos cinco anos tenho vivido ali sozinha.

— Nossa Senhora! — Bond estava boquiaberto. — Mas não havia ninguém para tomar conta de você? Os seus pais não deixaram nenhum dinheiro?

— Nem um tostão. — Não havia o mínimo traço de amargura na voz da jovem — talvez orgulho, se houvesse alguma coisa. — Você sabe, os Riders eram uma das mais antigas famílias de Jamaica. O primeiro Rider recebera de Cromwell as terras de Beau Desert, por ter sido um dos que assinaram o veredicto de morte contra o rei Carlos. Ele construiu a Casa Grande e minha família viveu ora nela ora fora dela, desde aquela época. Mas depois veio a decadência do açúcar e eu acho que a propriedade foi pessimamente administrada, e, ao tempo em que meu pai tomou conta da herança, havia somente dívidas — hipotecas e outros ônus. Assim, quando meu pai e minha mãe morreram a propriedade foi vendida. Eu pouco me importei, pois era muito jovem. Minha ama deve ter sido maravilhosa. Quiseram que alguém me adotasse, mas a minha babá reuniu os pedaços de mobília que não tinham sido queimados e com eles nós nos instalamos da melhor forma no meio daquelas ruínas. Depois de algum tempo ninguém mais veio interferir conosco. Ela cosia um pouco e lavava para algumas freguesas da aldeia, ao mesmo tempo que plantava bananas e outras coisas, sem falar do grande pé de fruta-pão que havia diante da casa. Comíamos o que era a ração habitual do povo de Jamaica. E havia os pés de cana-de-açúcar à nossa volta. Ela fizera também uma rede para apanhar peixes, a qual nós recolhíamos todos os dias. Tudo corria bem e nós tínhamos o suficiente para comer. Ela ensinou-me a ler e escrever, como pôde. Tínhamos uma pilha de velhos livros que escapara ao incêndio, inclusive uma enciclopédia. Comecei com o A quando tinha apenas oito anos, e cheguei até o meio do T. — Ela disse um tanto na defensiva: — Aposto que sei mais do que você sobre muitas coisas.

— Estou certo de que sim. — Bond estava perdido na visão daquela jovem de cabelos de linho errando pelas ruínas de uma grande construção, com uma obstinada negra a vigiá-la e a chamá-la para receber as lições que deveriam ter sido um mistério para ela mesma. — Sua ama deve ter sido uma criatura extraordinária.

— Ela era um amor. — Era uma afirmação peremptória. — Pensei que fosse morrer quando ela faleceu. As coisas não foram tão fáceis para mim depois disso. Antes eu levava uma vida de criança, mas subitamente tive que crescer e fazer tudo por mim mesma. E os homens tentaram apanhar-me e atingir-me. Diziam que queriam fazer amor comigo. — Fez uma pausa e acrescentou: — Eu era bonita naquela época. Bond disse muito sério:

— Você é uma das jovens mais belas que já vi.

— Com este nariz? Não seja tolo.

— Você não compreende. — Bond tentou encontrar palavras nas quais ela pudesse crer. — É claro que qualquer pessoa pode ver que o seu nariz está quebrado; mas desde esta manhã dificilmente eu pude notá-lo. Quando se olha para uma pessoa, olha-se para os seus olhos ou para a sua boca. Nesses dois pontos se encontram a expressão. Um nariz quebrado não tem maior significação do que uma orelha torta. Narizes e orelhas são peças do mobiliário facial. Algumas são mais bonitas do que outras, mas não são tão importantes quanto o resto. Se você tivesse um nariz bonito, tão bonito como o resto, você seria a jovem mais bela de Jamaica.

— Você é sincero? — Sua voz era ansiosa. — Você acha que eu poderia ser bela? Sei que muita coisa em mim está bem, mas quando olho no espelho só vejo o meu nariz quebrado. Estou certa de que o mesmo ocorre com outras pessoas que são, que são — bem — mais ou menos aleijadas.

Bond disse com impaciência: — Você não é aleijada! Não diga tolices. E aliás você pode endireitá-lo mediante uma simples operação. Basta que você vá aos Estados Unidos e a coisa levará apenas uma semana.

Ela disse com irritação: — Como é que você quer que eu faça isso? Tenho cerca de quinze libras debaixo de uma pedra, na minha adega. Tenho ainda três saias, três blusas, uma faca e uma panela de peixe. Conheço muito bem essas operações. O médico de Porto Maria já pediu informações para mim. Ele é um homem muito bom e escreveu para os Estados Unidos. Pois para que a operação seja bem feita, eu teria que gastar cerca de quinhentas libras, sem falar da passagem para Nova York, a conta do hospital e tudo o mais.

Sua voz tornou-se desesperançada: — Como é que você espera que eu possa ter todo esse dinheiro?

Bond já decidira sobre o que teria de ser feito, mas no momento apenas disse ternamente: — Bem, espero que se possam encontrar meios; mas, de qualquer maneira, prossiga com a sua história. Ela é muito excitante — muito mais interessante do que a minha. Você tinha chegado ao ponto em que a sua ama morreu. O que aconteceu depois?

A jovem recomeçou com relutância.

— Bem, a culpa é sua por ter interrompido. E você não deve falar de coisas que não compreende. Suponho que as pessoas lhe digam que você é simpático. Você deve também ter todas as namoradas que desejar. Bem, isso não aconteceria se você fosse vesgo ou tivesse um lábio leporino. — Na verdade, ele pôde ouvir o sorriso em sua voz: — Acho que quando voltarmos eu irei ter com o feiticeiro para que lhe faça uma mandinga e lhe dê alguma coisa assim. — E ela acrescentou tristemente: — Dessa forma, nós seremos mais parecidos.

Bond estendeu o braço e sua mão tocou nela: — Eu tenho outros planos. Mas continuemos, quero ouvir o resto da sua história.

— Bem, — disse a jovem com um suspiro. — Eu terei que me atrasar um pouco. Como você sabe, toda a propriedade é representada pela cana-de-açúcar e pela velha casa que está situada no meio da plantação. Bem, umas duas vezes por ano eles cortam a cana e mandam-na para o moinho. E quando eles o fazem, todos os animais e insetos que vivem nos canaviais entram em pânico e a maioria deles têm as suas tocas destruídas e são mortos. Na época da safra, alguns deles começaram a vir para as ruínas da casa, onde se escondiam. No princípio, minha babá ficava aterrorizada, pois lá vinham os mangustos, as cobras e os escorpiões, mas eu preparei dois quartos da adega para recebê-los. Não me assustei com eles, e eles nunca me fizeram mal. Pareciam compreender que eu estava cuidando deles. E devem ter contado aquilo aos seus amigos, ou alguma coisa parecida, pois depois de algum tempo era perfeitamente natural que todos viessem acantonar-se em seus dois quartos, onde ficavam até que os canaviais começassem novamente a crescer, quando então iam saindo e voltando para os campos. Dei-lhes toda a comida que podíamos pôr de lado, quando eles ficavam conosco, e todos se portavam muito bem, a não ser por algum odor e às vezes uma ou outra luta entre si. Mas eram muito mansos comigo. Naturalmente os cortadores de cana perceberam tudo e viam-me andando pelo lugar com cobras à volta do meu pescoço, e assim por diante, a ponto de ficarem aterrorizados comigo e me considerarem uma feiticeira. Por causa disso, eles nos deixaram completamente isoladas. Ela fez uma pausa, e depois recomeçou:

— Foi assim que aprendi tanta coisa sobre animais e insetos. Eu costumava ainda passar muito tempo no mar, aprendendo coisas sobre os animais marinhos, assim como sobre os pássaros. Se se chega a saber o que todas essas criaturas gostam de comer e do que têm medo, pode-se muito bem fazer amizade com elas. — Levantou os olhos para Bond e disse: Você não sabe o que perde ignorando todas essas coisas.

— Receio que perca muito — respondeu Bond com sinceridade. — Suponho que eles sejam muito melhores e mais interessantes que os homens.

Sobre isso nada sei — respondeu a jovem pensativa-mente. — Não conheço muitas pessoas. A maioria das que conheci foram detestáveis, mas acho que deve haver criaturas interessantes também. — Fez uma pausa, e prosseguiu: — Nunca pensei realmente que chegasse a gostar de alguma pessoa como gosto dos animais. Com exceção da babá, naturalmente. Até que... — Ela se interrompeu com um sorriso de timidez. — Bem, de qualquer forma, nós vivemos muito felizes juntas, até que eu fiz quinze anos, quando então a babá morreu e as coisas se tornaram muito difíceis. Havia um homem chamado Mander. Um homem horroroso. Era o capataz branco que servia aos proprietários da plantação. Ele vivia me procurando. Queria que eu fosse viver com ele, em sua casa de Porto Maria.

Eu o odiava, e costumava esconder-me sempre que ouvia o seu cavalo aproximando-se do canavial. Certa noite ele veio a pé e eu não o ouvi. Estava bêbado. Entrou na adega e lutou comigo porque não queria fazer o que ele desejava. Você sabe, as coisas que fazem as pessoas quando estão apaixonadas.

— Sim, já sei.

— Tentei matá-lo com a minha faca, mas ele era muito forte e deu-me um soco tão forte no rosto que me quebrou o nariz. Deixou-me inconsciente e acho que fez alguma coisa comigo. Sei que ele fez mesmo. No dia seguinte eu quis me matar quando vi o meu rosto e verifiquei o que ele me havia feito. Pensei que iria ter um filho. Teria sem dúvida me matado se tivesse tido um filho daquele homem. Em todo caso, não tive, e tudo continuou assim. Fui ao médico e ele fez o que pôde com o meu nariz e não me cobrou nada. Quanto ao resto, eu nada lhe contei, pois estava muito envergonhada. O homem não voltou mais. Eu esperei e nada fiz até a próxima colheita de cana-de-açúcar. Tinha um plano. Estava esperando que as aranhas viúvas-negras viessem procurar abrigo. Um belo dia elas chegaram. Apanhei a maior das fêmeas e á deixei numa caixa sem nada para comer. As fêmeas são terríveis. Então esperei que fizesse uma noite escura, sem luar. Na primeira noite dessas, apanhei a caixa com a aranha e caminhei até chegar à casa do homem. Estava muito escuro e eu me sentia aterrorizada com a possibilidade de encontrar algum assaltante pela estrada, mas não houve nada. Esperei em seu jardim, oculta entre os arbustos, até que ele se recolheu à cama. Então subi por uma árvore e ganhei a sacada; aguardei até que ele começasse a roncar e depois entrei pela janela. Ele estava nu, estendido na cama, sob o mosquiteiro. Levantei uma aba do filó, abri a caixa e sacudi-lhe a aranha sobre o ventre. Depois saí e voltei para casa.

— Deus do céu! — exclamou Bond reverentemente. — O que aconteceu com o homem?

Ela respondeu com satisfação: — Levou uma semana para morrer. Deve ter-lhe doído terrivelmente. Você sabe, a mordida dessa aranha é pavorosa. Os feiticeiros dizem que não há nada que se lhe compare. — Ela fez uma pausa, e como Bond não fizesse nenhum comentário, acrescentou: — Você não acha que eu fiz mal, não é?

— Bem, não faça disso um hábito — respondeu Bond suavemente. — Mas não posso culpá-la, diante do que ele tinha feito. E, depois, o que aconteceu?

— Bem, depois me estabeleci novamente — sua voz era firme. — Tive que me concentrar na tarefa de obter alimento suficiente, e naturalmente. — Acrescentou persuasivamente: — Eu tinha de fato um nariz muito bonito, antes. Você acha que os médicos podem torná-lo igualzinho ao que era antes?

— Eles poderão fazê-lo de qualquer forma que você quiser — disse Bond em tom definitivo. — Como é que você ganhou dinheiro?

— Foi graças à enciclopédia. Li nela que há pessoas que gostam de colecionar conchas marinhas e que as conchas raras podiam ser vendidas. Falei com o mestre-escola local, sem contar-lhe naturalmente o meu segredo, e ele descobriu para mim que havia uma revista norte-americana chamada “Nautilus”, dedicada aos colecionadores de conchas. Eu tinha apenas o dinheiro suficiente para tomar uma assinatura daquela revista e comecei a procurar as conchas que as pessoas pediam em seus anúncios. Escrevi a um comerciante de Miami e ele começou a comprar as minhas conchas. Foi emocionante. Naturalmente que cometi alguns erros, no princípio. Pensei, por exemplo, que as pessoas gostariam das conchas mais bonitas, mas esse não era o caso. Freqüentemente elas preferiam as conchas mais feias. Depois, quando achava conchas raras, punha-me a limpá-las e poli-las a fim de torná-las mais bonitas, mas isso também foi um erro. Os colecionadores querem as conchas exatamente como saem do mar, com o animal em seu interior também. Então consegui algum formol com o médico e o punha entre as conchas vivas, para que elas não tivessem mau cheiro, e depois mandava-as para o tal comerciante de Miami. Só aprendi bem o negócio de um ano para cá e já consegui quinze libras. Consegui esse resultado agora que sei como é que eles querem as conchas e se tivesse sorte, poderia fazer pelo menos cinqüenta libras por ano. Então, em dez anos poderia ir aos Estados Unidos e operar-me. Mas, continuou ela com intenso contentamento, tive uma notável maré de sorte. Fui a Crab Key pelo Natal, onde já tinha estado antes. Mas dessa vez eu encontrei essas conchas purpúreas. Não parecem grande coisa, mas eu enviei uma ou duas para Miami e o comerciante escreveu-me para dizer que compraria tantas dessas conchas quantas eu pudesse encontrar, e ao preço de até cinco dólares pelas perfeitas. Disse-me ainda que eu deveria manter segredo sobre o lugar de onde as tirava, pois de outra forma o “mercado seria estragado”, como disse ele, e os preços cairiam. É como se se tivesse uma mina de ouro particular. Agora serei capaz de juntar o dinheiro em cinco anos. Esse foi o motivo pelo qual tive grandes suspeitas de você, quando o encontrei na praia. Pensei que você tivesse vindo para roubar as minhas conchas.

— Você me deu um susto, pois pensei que você fosse a garota do Dr. No.

— Muito obrigada.

— Mas depois que você tiver feito a operação, o que irá fazer? Você não pode continuar vivendo numa adega durante toda a vida.

— Pensei em me tornar uma prostituta. — Ela o disse como se tivesse dito “enfermeira” ou “secretária”.

— Oh, o que é que você quer dizer com isso? — Talvez ela já tivesse ouvido aquela expressão sem compreendê-la bem.

— Uma dessas jovens que possuem um bonito apartamento e lindas roupas. Você sabe o que quero dizer — acrescentou ela com impaciência. — Os homens telefonam, marcam encontro, chegam, fazem amor e pagam. Elas ganham cem dólares de cada vez, em Nova Iorque, onde pensei começar. Naturalmente — admitiu — terei de fazer por menos, no começo, até que aprenda a trabalhar bem. Quanto é que vocês pagam pelas que não têm experiência?

Bond riu. — Francamente, não me lembro. Há muito tempo que não me encontro com essas mulheres.

Ela suspirou. — Sim, suponho que você possa ter tantas mulheres quantas queira, por nada. Suponho que apenas os homens feios paguem, mas isso é inevitável. Qualquer espécie de trabalho nas grandes cidades deve ser horrível. Pelo menos pode-se ganhar muito mais como prostituta. Depois, poderia voltar para Jamaica e comprar Beau Desert. Seria bastante rica para encontrar um marido bonito e ter alguns filhos. Agora que encontrei essas conchas, penso que poderia estar de volta a Jamaica quando tivesse trinta anos. Não seria formidável?

— Gosto da última parte do plano, mas não tenho muita confiança na primeira. De qualquer forma, como é que você veio a saber dessa história de prostitutas? Encontrou isso na letra P, na enciclopédia?

— Claro que não; não seja tolo. Há uns dois anos houve em Nova Iorque um escândalo sobre elas, envolvendo também um “play-boy” chamado Jelke. Ele tinha toda uma cadeia de prostitutas, e eu li muito sobre o caso no “Gleaner”. O jornal deu inclusive os preços que elas cobravam e tudo o mais. De qualquer forma, há milhares dessas jovens em Kingston, embora não sejam tão boas. Recebem apenas cinco xelins e não têm um lugar apropriado para fazer amor, a não ser no mato. Minha babá chegou a falar-me delas. Disse-me que eu não deveria imitá-las, pois do contrário seria muito infeliz. É claro que seria, recebendo apenas cinco xelins. Mas por cem dólares!...

Bond observou: — Você não conseguiria guardar todo esse dinheiro. Precisaria ter uma espécie de gerente para arranjar os homens, e teria ainda de dar gorjetas à polícia, para deixá-la em paz. Por fim, poderia ir facilmente parar na cadeia se tudo não corresse bem. Na verdade, com tudo o que você sabe sobre animais, bem poderia ter um ótimo emprego, cuidando deles, em algum jardim zoológico norte-americano. E o que me diz do Instituto de Jamaica? Tenho certeza de que você gostaria mais de trabalhar ali. E poderia também facilmente encontrar um bom marido. De qualquer forma, você não deve mais pensar em ser prostituta. Você tem um belo corpo e deve guardá-lo para o homem que amar.

— Isso é o que dizem as pessoas nos livros — disse ela com ar de dúvida. — A dificuldade está em que não há nenhum homem para ser amado em Beau Desert. — Depois acrescentou timidamente: — Você é o único inglês com quem jamais falei. Gostei de você desde o princípio, e não me importo de dizer-lhe essas coisas agora. Penso que há muitas pessoas das quais chegaria a gostar se saísse daqui.

— É claro que há. Centenas. E você é uma garota formidável; o que pensei assim que a vi.

— Assim que viu as minhas nádegas, você quer dizer. — Sua voz estava-se tornando sonolenta, mas cheia de prazer.

Bond riu. — Bem, eram nádegas maravilhosas. E o outro lado também era maravilhoso. — O corpo de Bond começou a se agitar com a lembrança de como a vira pela primeira vez. Depois de um instante, disse com mau humor: — Agora vamos, Honey. Está na hora de dormir. Haverá muito tempo para conversarmos quando voltarmos a Jamaica.

— Haverá? — perguntou ela desconsoladamente. — Você promete?

— Prometo.

Ele a viu agitar-se dentro do saco de dormir. Olhou para baixo e apenas pôde divisar o seu pálido perfil voltado para ele. Ela deixou escapar o profundo suspiro de uma criança, antes de adormecer.

Reinava silêncio na clareira e o tempo estava esfriando. Bond descansou a cabeça sobre os joelhos unidos. Sabia que era inútil procurar dormir, pois sua mente estava cheia dos acontecimentos do dia e dessa extraordinária mulher Tarzan que aparecera em sua vida. Era como se algum animal muito bonito se lhe tivesse dedicado. E não largaria os cordéis enquanto não tivesse resolvido os problemas dela. Estava sentindo isso. Naturalmente que não haveria grandes dificuldades para a maioria de seus problemas. Quanto à operação, seria fácil arranjá-la, e até mesmo encontrar-lhe um emprego, com o auxílio de amigos, e um lar. Tinha dinheiro e haveria de comprar-lhe roupas, mandaria ajeitar os seus cabelos e a lançaria no grande mundo. Seria divertido. Mas quanto ao resto? Quanto ao desejo físico que sentia por ela? Não se podia fazer amor com uma criança. Mas, seria ela uma criança? Não haveria nada de infantil relativamente ao seu corpo ou à sua personalidade. Era perfeitamente adulta e bem inteligente, a seu modo, e muito mais capaz de tomar conta de si mesma do que qualquer outra jovem de vinte anos que Bond conhecera.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um puxão em sua manga. A vozinha disse: — Por que você não vai dormir? Não está sentindo frio?

— Não; estou bem.

— Aqui no saco de dormir está bom e quente. Você quer vir para cá? Tem bastante lugar.

— Não, obrigado, Honey. Estou bem.

Houve uma pausa, e depois ela disse num sussurro: — Se você está pensando... Quero dizer — você não precisa fazer amor comigo... Eu poderia dormir de costas para o seu peito.

— Honey, querida, vá dormir. Seria maravilhoso dormir assim com você, mas não esta noite. De qualquer maneira, em breve terei de render Quarrel.

— Muito bem, — disse ela com voz mal humorada. — Talvez quando voltarmos a Jamaica.

— Talvez.

— Prometa. Não dormirei enquanto você não prometer.

Bond disse desesperadamente: — Naturalmente que prometo. Agora, vá dormir, Honeychile.

A sua voz se fez ouvir outra vez, triunfante: — Agora você tem uma dívida comigo. Você prometeu. Boa-noite, querido James.

— Boa noite, querida Honey.


XII - A COISA


O aperto no braço de Bond era ansioso. Ele de um salto pôs-se de pé.

Quarrel sussurrou tensamente: — Alguma coisa está-se aproximando pela água, capitão! Com certeza é o dragão!

A jovem levantou-se e perguntou nervosamente: — Que aconteceu?

Bond apenas disse: — Fique aí, Honey! Não se mexa. Eu voltarei.

Internou-se pelos arbustos do lado oposto da montanha e correu pela restinga, com Quarrel ao lado.

Chegaram até a extremidade da restinga, a vinte metros da clareira, e pararam sob o abrigo dos últimos arbustos, que Bond apartou com as mãos para ter um melhor campo de visão.

O que seria aquilo? A meia milha de distância, atravessando o lago, vinha algo informe, com dois olhos brilhantes cor de laranja, e pupilas negras. Entre estes, onde deveria estar a boca, tremulava um metro de chama azul. A luminosidade cinzenta das estrelas deixava ver uma espécie de cabeça abaulada entre duas pequenas asas semelhantes às de um morcego. Aquela coisa estranha deixava escapar um ronco surdo e baixo, que abafava um outro ruído, uma espécie de vibração rítmica. Aquela massa avançava na direção deles, à velocidade de uns dezesseis quilômetros por hora, deixando atrás de si uma esteira de espuma.

Quarrel sussurrou:

— Nossa, capitão! Que coisa é aquela?

Bond continuou de pé e respondeu laconicamente: — Não sei exatamente. Uma espécie de trator arranjado para meter medo. Está trabalhando com um motor diesel, e por isso você pode deixar os dragões de lado. Agora, vejamos... — Bond falava como se para si mesmo. — Não adianta fugir. Aquilo se move mais depressa do que nós e sabemos que pode esmagar árvores e atravessar pântanos. Temos que lhe dar combate aqui mesmo. Quais serão os seus pontos fracos? Os motoristas. Com certeza, dispõem de proteção. Em todo caso, não sabemos muito sobre esse ponto. Quarrel, você começará a disparar contra aquela cúpula quando estiverem a uns duzentos metros de nós. Faça a pontaria cuidadosamente e continue atirando. Visarei os faróis quando estiverem a cinqüenta metros. Não se está movendo sobre lagartas. Deve ter alguma espécie de rodas gigantescas, provavelmente de avião. Visarei as rodas também. Fique aí. Ficarei dez metros para baixo. Naturalmente vão reagir e nós temos que manter as balas longe da garota. Está combinado? — Bond esticou o braço e apertou o enorme ombro de Quarrel. — E não se preocupe demais. Esqueça-se de dragões. Trata-se apenas de alguma trapaça do Dr. No. Mataremos os motoristas, tomaremos conta do veículo e ganharemos com ele a costa. Isso economizará as nossas solas. Está bem?

Quarrel deu uma breve risada. — Está bem, capitão. Desde que o senhor assim o diz. Mas que Nosso Senhor saiba também que aquilo não é dragão!

Bond desceu pela restinga e se internou pelos arbustos, até que encontrou um ponto de onde podia ter um bom campo de tiro. Disse suavemente: — Honey!

— Sim, James — e a voz dela deixou transparecer alívio.

— Faça um buraco na areia como fizemos na praia. Faça-o por trás de raízes grossas e fique lá deitada. Talvez haja um tiroteio. Não tenha medo de dragões. Isto é apenas um veículo pintado, dirigido por alguns dos homens do Dr. No. Não se assuste. Estou aqui perto.

— Muito bem, James. Tenha cuidado! — A voz agora deixava transparecer um vivo temor.

Bond curvou-se, apoiando um joelho no chão, sobre as folhas e a areia, e olhou para fora.

Agora o veículo achava-se a uns trezentos metros de distância, e os seus faróis amarelos estavam iluminando a areia. Chamas azuis continuavam saindo da boca daquele engenho. Saíam de uma espécie de longo focinho, no qual se pintaram mandíbulas entreabertas, para darem ao todo a aparência de dragão. Um lança-chamas! Aquilo explicava as árvores queimadas e a história do administrador. A coloração azul da chama seria dada por alguma espécie de queimador, disposto adiante do lança-chamas.

Bond teve que admitir que aquela visão era algo de terrível, à medida que o veículo avançava pelo lago raso. Evidentemente fora calculado para infundir terror. Ele mesmo ter-se-ia assustado, não fora a vibração rítmica do motor diesel. Mas até que ponto aquilo seria vulnerável para homens que não fossem dominados pelo pânico?

A resposta ele a teve quase imediatamente. Ouviu-se o estampido da “Remington” de Quarrel. Uma centelha saiu da cabina encimada pela cúpula e logo se ouviu um ruído metálico. Quarrel disparou mais um tiro e, logo em seguida, uma rajada. As balas chocaram-se inutilmente de encontro à cabina. Não houve mesmo uma simples redução de velocidade. O monstro continuava avançando para o ponto de onde tinham partido os disparos. Bond descansou o cano de seu “Smith & Wesson” no braço, e fez cuidadosa pontaria. O profundo ruído surdo de sua arma fez-se ouvir por sobre o matraquear da “Remington” de Quarrel. Um dos faróis fora atingido e despedaçara-se. Bond disparou mais quatro tiros contra o outro e atingiu-o com o quinto e último disparo de seu revólver. O fantástico aparelho parecia continuar não dando importância, e foi avançando para o lugar de onde tinham partido os disparos do “Smith & Wesson”. Bond tornou a carregar a arma e começou a atirar contra os pneumáticos, sob as asas negro e ouro. A distância agora era de apenas trinta metros e podia jurar que já atingira mais de uma vez a roda mais próxima, sem nenhum resultado. Seria borracha sólida? O primeiro estremecimento de medo percorreu a pele de Bond.

Carregou mais uma vez. Seria aquela coisa maldita vulnerável pela retaguarda? Deveria correr para o lago e tentar uma abordagem? Avançou um passo, através dos arbustos, mas logo ficou imóvel, incapaz de prosseguir.

Subitamente, daquele focinho ameaçador, uma língua de fogo azulada tinha sido lançada na direção do esconderijo de Quarrel. À direita de Bond, no mato, surgira apenas uma chama laranja e vermelha, simultaneamente com um estranho urro, que imediatamente silenciou. Satisfeita, aquela língua de fogo se recolhera à sua boca. Agora aquilo fizera um movimento de rotação sobre o seu eixo e parará completamente. O buraco azulado da boca apontava diretamente para Bond.

Bond deixou-se ficar, esperando pelo horroroso fim. Olhou através das mandíbulas da morte e viu o brilhante f-lamento vermelho do queimador, bem no fundo do comprido tubo. Pensou no corpo de Quarrel — mas não havia tempo para pensar em Quarrel — e imaginou-o completamente carbonizado. Dentro em pouco ele também se incendiaria como uma tocha. Um único berro seria arrancado dele e os seus membros se encolheriam na pose de dançarino dos corpos queimados. Depois viria a vez de Honey. Meu Deus, para o quê ele os havia arrastado! Por que fora tão insano a ponto de enfrentar aquele homem com todo o seu arsenal? Por que não aceitara a advertência que lhe fora feita pelo longo dedo que o alcançara já em Jamaica? Bond trincou os dentes. Vamos, canalhas. Depressa.

Ouviu-se a sonoridade de um alto-falante, que anunciava metàlicamente: “Saia daí, inglês. E a boneca também. Depressa ou será frito no inferno, como o seu amigo”. Para dar mais força àquela ordem, uma língua de fogo foi lançada em sua direção. Bond deu um passo atrás para recuar daquele intenso calor. Sentiu o corpo da garota de encontro às suas costas. Ela disse historicamente: — Tive que vir, tive que vir.

Bond disse: — Está bem, Honey. Fique atrás de mim.

Ele tinha-se decidido. Não havia alternativa. Mesmo que a morte viesse mais tarde, não poderia ser pior do que aquela morte diante do lança-chamas. Bond apanhou a mão da jovem e puxou-a consigo para fora, saindo para a areia.

A voz se fez ouvir novamente: — Pare aí, camarada. E deixe cair o lança-ervilhas. Nada de truques, senão os caranguejos terão um bom almoço.

Bond deixou cair a sua arma. Lá se fora o “Smith & Wesson”. O “Beretta” não teria tido melhor sorte: A jovem lastimou-se, e Bond apertou a sua mão. — Agüente, Honey, — disse ele. — Nós nos livraremos disso.

Bond troçou de si mesmo por causa daquela mentira. Ouviu-se o ruído de uma porta de ferro que se abria. Por trás da cúpula, um homem saltou para a água e caminhou até eles, com um revólver na mão. Ao mesmo tempo ia-se mantendo fora da linha de fogo do lança-chamas. A trêmula chama azul iluminou o seu rosto. Era um chinês negro, de enorme estatura, vestindo apenas calças. Alguma coisa balançava em sua mão esquerda, e quando ele se aproximou mais, Bond pôde ver que eram algemas.

O homem deteve-se a alguns metros de distância e disse:

— Levantem os braços. Punhos juntos e caminhem em minha direção. Você primeiro, inglês. Devagar ou receberá mais um umbigo.

Bond obedeceu e quando estava a um passo do homem, este prendeu o revólver entre os dentes, e esticou os braços e atou os seus pulsos com as algemas. Bond examinou aquele rosto iluminado pelas chamas azuis. Era uma cara brutal, com olhos estrábicos. O agente do Dr. No fitou-o com desprezo. — Bastardo imbecil! — disse.

Bond deu as costas ao homem e começou a se afastar. Ia ver o corpo de Quarrel. Tinha que lhe dizer adeus. Ouviu-se o ruído de um disparo e uma bala jogou-lhe areia nos pés. Bond parou, e voltando-se lentamente disse:

— Não fique nervoso. Vou dar uma espiada no homem que você acabou de assassinar. Voltarei.

O homem abaixou o revólver e riu grosseiramente: — Muito bem. Divirta-se. Desculpe se não temos uma coroa. Volte logo, se não daremos uma amostra à boneca. Dois minutos.

Bond caminhou em direção ao cerrado de arbustos fumegantes. Ali chegando, olhou para baixo. Seus olhos e boca se contraíram. Sim, tinha sido bem como ele imaginara. Pior, mesmo. Disse docemente: — Perdoe-me, Quarrel. — Com o pé soltou um pouco de areia, que colheu com as mãos algemadas e verteu-a sobre os restos dos olhos de Quarrel. Depois caminhou lentamente, de volta, e ficou ao lado da jovem.

O homem empurrou-os para a frente com o revólver. Deram a volta por trás da máquina, onde havia uma pequena porta quadrada. Uma voz do interior disse: — Entrem e sentem-se no chão. Não toquem em nada ou ficarão com os dedos partidos.

Com dificuldade, arrastaram-se para dentro daquela caixa de ferro, que cheirava a óleo e suor. Havia lugar apenas para que ambos se sentassem com as pernas encolhidas, de joelhos para cima. O homem que empunhava o revólver e que vinha atrás deles saltou por último para dentro do carro e fechou a porta. Ligou uma lâmpada e sentou-se num assento de ferro, ao lado do chofer. — Muito bem, Sam, vamos andando. Você pode apagar o fogo. Há luz bastante para dirigir — disse.

Na painel de controle podia-se ver uma fileira de mostradores. O motorista esticou a mão e deslocou para baixo um par de interruptores. Engrenou o motor e olhou através de uma estreita fresta, cortada na parede de ferro, diante dele. Bond sentiu que o veículo dava uma volta. Ouviu-se um movimento mais rápido do motor, e o veículo avançou.

O ombro da jovem apertou-se de encontro ao de Bond.

— Para onde estão eles nos levando? — O seu sussurro traía um estremecimento.

Bond voltou a cabeça e olhou para ela. Era a primeira vez que podia ver os seus cabelos depois de secos. Estavam desfeitos pelo sono, mas não eram mais mechas de rabichos empastados. Caíam densamente até os ombros, onde terminavam em anéis voltados para dentro. Eram do mais pálido louro acinzentado e despediam reflexos quase prateados sob a luz elétrica. Ela olhou para o alto, para ele. A pele, à volta dos olhos e nos cantos da boca, mostrava-se lívida de medo.

Bond deu de ombros, procurando aparentar uma indiferença que não sentia!. Sussurrou: — Oh, espero que vamos ver o Dr. No. Não se preocupe demais, Honey. Esses homens não passam de pequenos bandidos. Com ele, as coisas serão diferentes. Quando estivermos diante dele, não diga nada, falarei por nos dois. — Ele apertou o seu ombro e disse: — Gosto da maneira por que você penteia o seu cabelo, e fico contente porque você não o apara muito curto.

Um pouco da tenção desapareceu do rosto dela. — Como é que você pode pensar em coisas como essa? — Deu um leve sorriso para ele, e acrescentou: — Mas estou contente por você gostar de meu penteado. Lavo os meus cabelos com óleo de coco uma vez por semana.

À lembrança de sua outra vida, seus olhos ficaram brilhantes. Ela baixou a cabeça para as mãos algemadas, a fim de esconder as lágrimas. Sussurrou quase para si mesma: — Tentarei ser brava. Tudo estará bem, desde que você esteja lá.

Bond aconchegou-se a ela. Levantou suas mãos algemadas até a altura dos olhos e examinou as algemas. Eram do tipo usado pela polícia norte-americana. Contraiu sua mão esquerda, a mais fina das duas, e tentou fazê-la deslizar pelo anel de aço. Mesmo o suor de sua pele de nada adiantou. Era inútil.

Os dois homens sentavam-se em seus bancos de ferro, indiferentes, e com as costas voltadas para eles. Sabiam que dominavam inteiramente a situação. Não havia possibilidade de que Bond oferecesse qualquer incômodo. Não poderia levantar-se ou dar o necessário impulso aos seus punhos para causar qualquer mal às cabeças de seus adversários, utilizando as algemas. Se conseguisse abrir a porta e pular para a água, o que lograria com isso? Imediatamente eles sentiriam a brisa fresca, nas costas, e parariam a máquina para queimá-lo na água ou içá-lo novamente. Bond aborrecia-se em pensar que os homens pouco se preocupavam com ele, pois sabiam tê-lo completamente em seu poder. Também não gostou da idéia de que aqueles homens eram bastante inteligentes para saber que ele não representava nenhuma ameaça. Indivíduos mais estúpidos teriam ficado em cima deles, de revólver em punho, tê-los-iam surrado, a ele e à jovem, barbaramente, e talvez os tivessem deixado inconscientes. Aqueles dois conheciam o ofício. Eram profissionais, ou tinham sido treinados para o serem.

Os dois homens não falaram. Não houve nenhum comentário sobre o quão hábil eles tinham sido, ou quanto ao seu cansaço ou destino. Apenas dirigiam a máquina serenamente, ultimando com eficiência a sua tarefa.

Bond continuava sem a mínima idéia do que seria aquilo. Sob a tinta negra e dourada, assim como sob o resto daquela fantasia, a máquina parecia uma espécie de trator, como ele nunca vira. Não tinha conseguido descobrir nomes de marcas comerciais, nos pneumáticos, pois estivera muito escuro, mas certamente que deveriam ser de borracha sólida ou porosa. Atrás havia um pequena roda para dar estabilidade ao conjunto. Uma espécie de barbatana de ferro fora ainda acrescentada e pintada também de preto e ouro, a fim de ajudar a dar a aparência de dragão. Os altos pára-lamas tinham sofrido um prolongamento, na forma de curtas asas voltadas para trás. Uma comprida cabeça de dragão, feita em metal, fora fixada ao radiador e os faróis receberam pontos centrais negros, para parecerem olhos. Era tudo, sem falar da cabina que fora recoberta com uma cúpula blindada e dotada de um lança-chamas. Era, como pensara Bond, um trator preparado para assustar e queimar — embora não pudesse atinar porque estava dotado de um lança-chamas e não de uma metralhadora. Era, evidentemente, a única espécie de veículo que poderia percorrer a ilha. Suas gigantescas rodas podiam avançar sobre os mangues, pântanos e ainda atravessar o lago raso. Galgaria também os agrestes planaltos de coral e, desde que andasse à noite, o calor experimentado na cabina seria pelo menos tolerável.

Bond ficara impressionado. Impressionado pelo toque de profissionalismo. O Dr. No era sem dúvida um homem que se preocupava intensamente com as coisas. Em pouco iria encontrá-lo. E em breve estaria diante do segredo do Dr. No. Então, o que aconteceria? Bond sorriu amargamente. Sim, não o deixariam sair dali com o seu conhecimento. Certamente seria morto, a menos que pudesse fugir ou conseguir a sua liberdade por meios persuasivos. E o que aconteceria à jovem? Poderia ele provar sua inocência e conseguir com que ela fosse poupada? Possivelmente, mas nunca mais ela teria permissão para deixar a ilha. Ali teria de ficar para o resto da vida, como amante ou mulher de um dos homens, ou do próprio Dr. No, se ela o impressionasse.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um trecho do percurso mais difícil, como se podia sentir pela trepidação. Tinham atravessado o lago e estavam no caminho que levava para o alto da montanha, junto às cabanas. A cabina vibrava e a máquina começou a galgar o terreno. Dentro de cinco minutos estariam lá.

O ajudante do motorista olhou por sobre o ombro para Bond e a jovem. Bond sorriu confiantemente para ele dizendo: Você receberá uma medalha por isso.

Os olhos amarelos e marrons olharam impassivelmente dentro dos dele, enquanto os lábios arroxeados e oleosos se fenderam num sorriso no qual havia um ódio repousado: Feche a boca, se... Depois, deu-lhe as costas.

A jovem tocou-o com o cotovelo e sussurrou: — Por que eles são tão rudes? Por que nos odeiam tanto?

Bond esboçou um sorriso e disse: — Acho que é porque lhes causamos medo. Talvez ainda estejam com medo, e isto porque não parecemos ter medo deles. Devemos mantê-los assim.

A jovem aconchegou-se a ele e disse: — Tentarei.

Agora a subida estava-se tornando mais íngreme. Uma luz azul-acinzentada atravessava as frestas da armadura. A madrugada se aproximava. Fora, em breve estaria começando mais um dia de calor abrasador, de execrável vento, carregado com o cheiro de gás dos pântanos. Bond pensou em Quarrel, o bravo gigante que não mais veria aquele dia, e com o qual eles deveriam agora estar caminhando através dos pauis de mangues. Quarrel tinha pressentido a morte, mas apesar disso tinha acompanhado Bond sem qualquer objeção. Sua fé em Bond tinha sido maior do que o seu medo. E Bond tinha-lhe faltado. Seria ele ainda o causador da morte da jovem?

O motorista esticou o braço em direção ao painel e na parte dianteira do veículo fez-se ouvir o breve zunido de uma sirena de polícia, que foi desaparecendo num gemido fúnebre. Mais um minuto e o veículo parava, continuando o motor em regime neutro. O homem apertou um interruptor e tirou um microfone de um gancho, a seu lado. Falou por aquele microfone e Bond pôde ouvir a sua voz aumentada, do lado de fora, por um altofalante. — Tudo bem. Apanhamos o inglês e a garota. O outro homem morreu. Isso é tudo. Abram. — Bond ouviu que uma porta se deslocava para o lado, sobre rolamentos. O motorista embreou e eles avançaram lentamente para a frente, parando alguns metros adiante. O motorista desligou o motor. Ouviu-se o ruído metálico da tranca e a porta foi aberta pelo lado de fora. Uma lufada de ar fresco e uma luz mais brilhante penetraram na cabina. Várias mãos agarraram Bond e arrastaram-no para trás, até um chão de cimento. Bond agora estava de pé e sentia o cano de um revólver encostado ao seu flanco. Uma voz disse: — Fique onde está. Nada de espertezas. — Bond olhou para o homem. Era mais um chinês negro, do mesmo tipo que os outros. Os olhos amarelos examinaram-no com curiosidade. Bond virou-se com indiferença. Outro homem estava cutucando a jovem com a arma. Bond disse asperamente: — Deixe a garota em paz! Em seguida, caminhou e pôs-se ao lado da jovem. Os dois homens pareceram surpresos. Deixaram-se ficar de pé, apontando as armas com hesitação.

Bond olhou à volta. Estavam numa das cabanas pré-fabricadas que ele vira do rio. Era ao mesmo tempo uma garagem e uma oficina. O “dragão” tinha sido colocado sobre um fosso de vistoria, no chão de concreto. Um motor de popa desmontado estava sobre uma das bancadas. Longos tubos de luz fluorescente estavam afixados ao teto e o ambiente estava impregnado do cheiro de óleo e fumaça de exaustor. O motorista e o seu companheiro examinavam a máquina. Em seguida deram alguns passos pelo galpão, como se andassem sem propósito.

Um dos guardas anunciou: — Enviei a mensagem. A ordem é que eles sejam levados. Foi tudo bem?

O ajudante de motorista, que parecia o homem mais responsável, ali presente, disse: — Sem dúvida. Alguns disparos. Os faróis foram partidos. Talvez haja alguns furos nos pneumáticos. Ponha os rapazes em ação — uma vistoria completa. Conduzirei esses dois e tirarei um cochilo. — E, voltando-se para Bond: — Bem, vamos andando — e indicou o caminho que saía do longo galpão.

Bond disse: — Vá andando você; e cuidado com os modos. Diga àqueles macacos que tirem as armas de cima de nós. Podem disparar por engano. Parecem bastante idiotas.

O homem se aproximou, e os outros os acompanharam logo atrás. O ódio brilhava em seus olhos. O chefe levantou o punho cerrado, tão grande quanto um pequeno malho e chegou-o à altura do nariz de Bond. Procurava controlar-se com esforço, e disse: — Ouça, senhor. Às vezes, nós, os rapazes, temos permissão para participar da festa final. Estou rezando para que essa seja uma dessas vezes. Certa ocasião fizemos com que a coisa durasse toda uma semana. E se eu o pego...

Riu e os seus olhos brilharam com crueldade. Olhou para o lado de Bond, fixando a garota. Seus olhos pareciam transformados em bocas que agitavam os lábios. Enfiou as mãos nos bolsos laterais das calças. A ponta de sua língua mostrava-se muito vermelha, entre os lábios arroxeados. Voltando-se para os companheiros disse: — Que tal, rapazes?

Os três homens estavam olhando também para a jovem. Fizeram um sinal de assentimento, como crianças diante de uma árvore de Natal.

Bond desejou atirar-se como um louco sobre eles, golpeando as suas caras com os punhos algemados e aceitando a sua vingança sangrenta. Não fosse pela jovem, bem que o teria feito. Mas tudo o que tinha conseguido com suas corajosas palavras fora amedrontá-la. Disse apenas: — Muito bem, muito bem. Vocês são quatro e nós somos dois, ainda por cima com as mãos atadas. Vamos, não queremos atingi-los. Apenas não nos empurrem muito de um lado para outro. O Dr. No poderia não ficar satisfeito.

Àquele nome, os rostos dos homens se modificaram. Três pares de olhos passaram apàticamente de Bond para o chefe. Por um segundo, este olhou com desconfiança para Bond, intrigado, tentando descobrir se Bond teria alguma influência junto ao Dr. No. Sua boca abriu-se para dizer algo, mas logo pareceu pensar melhor, e apenas disse de maneira incerta: — Bem, bem, estávamos simplesmente brincando. — Voltou-se para os homens, em busca de confirmação: — Não é?

— Sem dúvida, sem dúvida! — foi a resposta dada por um coro áspero, e os homens desviaram o olhar.

O chefe disse com mau humor: — Por aqui, senhor. — E ele mesmo pôs-se a caminho, percorrendo o comprido galpão.

Bond segurou o pulso da jovem e seguiu o chefe. Estava impressionado com a reação causada naqueles homens pelo nome do Dr. No. Aquilo era alguma coisa a lembrar se eles tivessem que se haver novamente com aquela turma.

O homem chegou a uma porta de madeira situada na extremidade do galpão. Ao lado havia um botão de campainha que ele pressionou duas vezes e esperou. Ouviu-se um estalido e a porta se abriu, mostrando dez metros de uma passagem rochosa, mas atapetada e que ia dar, na outra extremidade, em outra porta mais elegante e pintada de creme.

O homem ficou de lado. Siga em frente, senhor — disse; — bata na porta e será atendido pela recepcionista. — Não havia nenhuma ironia em sua voz e seus olhos se mostravam impassíveis.

Bond conduziu Honey pela passagem. Ouviu que a porta se fechava às suas costas. Deteve-se por um momento e fitou-a, perguntando-lhe: — E agora?

Ela riu, trêmula, mas respondeu: — Ê bom sentir-se tapete sob os pés.

Bond apertou o seu pulso. Andou até a porta pintada de creme e bateu.

A porta abriu-se e Bond entrou com a jovem ao lado. Quando se deteve instantaneamente, não chegou a perceber o encontrão que lhe dava a jovem, pois continuou estarrecido.


XIII - GAIOLA DE OURO


Era a espécie de sala de recepção que as maiores corporações norte-americanas possuem no andar em que se situa o escritório do presidente, em seus arranha-céus de Nova Iorque. Suas proporções eram agradáveis, com cerca de vinte pés quadrados. O chão era todo recoberto pelo mais espesso tapete Wilton cor-de-vinho. O teto e as paredes estavam pintados numa suave tonalidade cinza pombo. Viam-se ainda reproduções litográficas de esboços de balé de Degas penduradas em séries, nas paredes, e a iluminação era feita com altos e modernos jogos de abajures de seda verde-escuro, imitando a forma de elegantes barricas.

À direita de Bond estavam uma larga mesa de mogno, com o tampo recoberto com couro verde, outras peças que se harmonizavam perfeitamente com a mesa, e um caro sistema de intercomunicações. Duas cadeiras altas, de antiquado, aguardavam os visitantes. Do outro lado da sala via-se uma mesa do tipo refeitório, sobre a qual estavam várias revistas com capas em cores vivas e mais duas cadeiras. Tanto na mesa de escritório, como na outra, viam-se vasos de hibiscos. O ar era fresco e impregnado de leve fragrância.

Duas mulheres estavam naquela sala. Por trás da mesa de trabalho, empunhando uma caneta que descansava sobre um formulário impresso, estava sentada uma jovem chinesa, de aspecto eficiente, com óculos de armação de chifre, sob uma franja de cabelos negros cortados curtos. Em seus olhos e em sua boca havia o sorriso padrão de boas-vindas que qualquer recepcionista exibe — a um tempo claro, obsequioso e inquisitivo.

Ainda com a mão na maçaneta da porta pela qual eles tinham passado, e esperando que os recém-chegados se adiantassem mais, a fim de que ela a pudesse fechar, estava uma mulher mais velha, com aspecto de matrona, e que deveria ter cerca de quarenta e cinco anos. Era fácil ver-se que também tinha sangue chinês. Sua aparência, saudável, de farto busto, era viva e quase excessivamente graciosa. O seu “pince-nez” de lentes cortadas em quadrado brilhava com o desejo da recepcionista de os pôr à vontade.

Ambas as mulheres vestiam roupas imaculadamente alvas, com meias brancas e sapatos de camurça branca como costumam apresentar-se as auxiliares empregadas nos mais luxuosos salões de beleza norte-americanos. Havia um que de suave e pálido em suas peles, como se elas raramente saíssem para o ar-livre.

Bond observou o ambiente, enquanto a mulher junto à porta lhe dizia frases convencionais de boas-vindas, como se eles tivessem sido colhidos por uma tempestade o chegado com atraso a uma festa.

— Oh, coitados! Nós não sabíamos quando vocês iriam chegar. A todo momento nos diziam que vocês já estavam a caminho... primeiro à hora do chá, ontem, depois na hora do jantar, e apenas há uma hora fomos informadas de que vocês chegariam à hora do desjejum. Devem estar com fome. Venham aqui e ajudem a irmã Rosa a preencher o formulário; depois eu os prepararei para a cama. Devem estar muito cansados.

Ia dizendo aquilo com voz doce e cacarejante, ao mesmo tempo que fechava a porta e os levava para junto da mesa e os fazia sentar nas cadeiras. Depois disse: — Bem, eu sou a irmã Lírio, e esta é a irmã Rosa. Ela irá fazer-lhes apenas algumas perguntas. Agora, aceitam um cigarro? — e pegou uma caixa de couro trabalhado que estava em cima da mesa. Abriu-a e pô-la diante deles. A caixa tinha três divisões, e a chinesinha explicou apontando com um dedo: “Esses são americanos, esses são ingleses e esses turcos.” Ela apanhou um luxuoso isqueiro de mesa e esperou.

Bond estendeu as mãos algemadas para tirar um cigarro turco.

A irmã Lírio deu um gritinho de espanto: — Oh, mas francamente. — Parecia sinceramente embaraçada. — Irmã Rosa, dê-me a chave, depressa. Já disse por várias vezes que os pacientes não devem ser trazidos dessa maneira. — Havia impaciência e aborrecimento em sua voz. — Francamente, aquela gente lá de fora! Já era tempo que eles fossem chamados à ordem.

A irmã Rosa estava tão embaraçada quanto a irmã Lírio. Rapidamente remexeu dentro de uma gaveta e entregou uma chave à irmã Lírio, que com muitas desculpas e cheia de dedos abriu os dois pares de algemas e, afastando-se para trás da mesa, deixou aquelas duas pulseiras de aço caírem dentro da cesta de papéis como se fossem ataduras sujas.

— Obrigado, — disse Bond, que não sabia como enfrentar aquela situação, a não ser procurando desempenhar um papel qualquer na comédia que se estava representando. Ele estendeu o braço, apanhou um cigarro e acendeu-o. Lançou um olhar para Honeyehile Rider, que parecia estonteada e nervosamente apertava com as mãos os braços de sua cadeira. Bond dirigiu-lhe um sorriso de conforto.

— Agora, por favor; — disse a irmã Rosa e inclinou-se sobre um comprido formulário impresso em papel caro. — Prometo ser o mais rápida que puder. O seu nome, sr... sr...

— Bryce, John Bryce.

Ela escreveu a resposta com grande concentração. — Endereço permanente?

— Aos cuidados do Jardim Zoológico Real, Regents Park, Londres, Inglaterra.

— Profissão?

— Ornitologista.

— Oh, meu Deus!, poderia o senhor soletrar isso? Bond atendeu-a.

— Muito obrigada. Agora, vejamos, objeto da viagem?

— Aves — respondeu Bond. — Sou também representante da Sociedade Audubon de Nova Iorque. Eles arrendaram parte desta ilha.

— Oh, sem dúvida. — Bond observou que a pena escrevia exatamente o que ele dizia. Depois da última palavra ela pôs um claro ponto de interrogação entre parênteses.

— E — a irmã Rosa sorriu polidamente em direção a Honeyehile — a sua esposa? Ela também está interessada em pássaros?

— Sim, sem dúvida.

— O seu primeiro nome?

— Honeyehile.

A irmã Rosa estava encantada. — Que nome lindo! — Ela voltou a escrever apressadamente. — E agora os parentes mais próximos de ambos, e estará tudo acabado.

Bond deu o verdadeiro nome de M como o parente mais próximo de ambos. Apresentou-o como “tio” e indicou o seu endereço como sendo “Diretor-Gerente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres.”

A irmã Rosa acabou de escrever e disse: — Pronto, está tudo feito. Muito obrigada, sr. Bryce, e espero que ambos apreciem a permanência aqui.

— Muito obrigado. Estou certo de que apreciaremos. — Bond levantou-se e Honeyehile fez o mesmo, ainda com expressão vazia.

A irmã Lírio disse: — Agora, venham comigo, queridos.

— Ela caminhou até uma porta na parede distante e deteve-se com a mão na maçaneta talhada em vidro. — Oh, meu Deus, — disse —, não é que agora me esqueci do número de seus quartos? É o apartamento creme, não é, irmã?

— Isso mesmo. Catorze e quinze.

— Obrigada, querida. E agora — ela abriu a porta — se vocês quiserem me seguir... Receio que seja uma caminhada um pouco longa. — Fechou a porta, por trás deles, e pôs-se à frente, indicando o caminho. — O Doutor tem falado várias vezes em instalar uma dessas escadas rolantes, ou algo de parecido, mas sabem como são os homens ocupados: — Ela riu alegremente. — Ele tem tantas outras coisas em que pensar!

— Sim, acredito, — disse Bond polidamente.

Bond tomou a mão da jovem e seguiram ambos a maternal e agitada chinesa através de cem metros de um alto corredor, do mesmo estilo da sala de recepção, mas que era iluminado a freqüentes intervalos por caros tubos luminosos fixados às paredes.

Bond respondia com polidos monossílabos aos comentários ocasionais que a irmã Lírio lhe lançava por sobre os ombros. Toda a sua mente se concentrava nas extraordinárias circunstâncias de sua recepção. Tinha certeza de que aquelas duas mulheres tinham sido sinceras. Nenhum só olhar ou palavra conseguira registrar que estivesse fora de propósito. Evidentemente aquilo era alguma espécie de fachada, mas de qualquer forma uma fachada sólida, meticulosamente apoiada pelo cenário e pelo elenco. A ausência de ressonância, na sala, e agora no corredor, estava a indicar que eles tinham deixado o galpão pré-fabricado para se internarem no flanco da montanha e agora estavam atravessando a sua base. Segundo o seu palpite estavam mesmo andando em direção oeste — em direção à penedia na qual terminava a ilha. Não havia umidade nas paredes e o ar parecia fresco e puro, com uma brisa a afagá-los. Muito dinheiro e uma bela realização de engenharia tinham sido os responsáveis por aquilo. A palidez das duas mulheres estava a sugerir que passavam a maior parte do tempo internadas no âmago da montanha. Do que a irmã dissera, parecia que elas faziam parte de um grupo de funcionários internos que nada tinham a ver com o destacamento de choque do exterior, e que talvez não soubessem a espécie de homens que eles eram.

Aquilo era grotesco, concluiu Bond ao se aproximar de uma porta, na extremidade do corredor, perigosamente grotesco, mas em nada adiantava pensar nisso no momento. Ele apenas podia seguir o papel que lhe tinha sido destinado. Pelo menos, aquilo era melhor do que os bastidores, na arena exterior da ilha.

Junto à porta, a irmã Lírio fez soar uma campainha. Já eram esperados e a porta abriu-se imediatamente. Uma encantadora jovem chinesa, de quimono lilás e branco, ficou a sorrir e a curvar-se, como se deve esperar que o façam as jovens chinesas. E, mais uma vez só havia calor e um sentimento de boas-vindas naquele rosto pálido como uma for. A irmã Lírio exclamou: — Aqui estão eles, finalmente, May! São o senhor e a senhora John Bryce. E sei que ambos devem estar exaustos, por isso devemos levá-los imediatamente aos seus aposentos, para que possam repousar e dormir. — Voltando-se para Bond: — Esta é May, muito boazinha. Ela tratará de ambos. Qualquer coisa que queiram é só tocar a campainha que May atenderá. É uma espécie de favorita de todos os nossos hóspedes.

Hóspedes!, pensou Bond. Essa é a segunda vez que ela usa a palavra. Sorriu polidamente para a jovem, e disse;

— Muito prazer; sim, certamente que gostaríamos de ir para os nossos aposentos.

May envolveu-os num cálido sorriso, e disse em voz baixa e atraente: — Espero que ambos se sintam bem, sr. Bryce. Tomei a liberdade de mandar vir uma refeição assim que soube que os senhores iam chegar. Vamos...? — Corredores saiam para a esquerda e a direita de portas duplas de elevadores, instalados na parede oposta. A jovem adiantou-se, caminhando na frente, para a direita, logo seguida de Bond e Honeyehile, que tinham atrás a irmã Lírio.

Ao longo do corredor, dos dois lados, viam-se portas numeradas. A decoração era feita no mais pálido cor-de-rosa, com um tapete cinza-pombo. Os números nas portas eram superiores a dez. O corredor terminava abruptamente, com duas portas, uma em frente a outra, com a numeração catorze e quinze. A irmã May abriu a porta catorze e o casal a seguiu, entrando na peça.

Era um lindo quarto de casal, em moderno estilo Mia-mi, com paredes verde-escuro, chão encerado de mogno escuro, com um ou outro espesso tapete branco e bem desenhado mobiliário de bambu com um tecido “chintz” de grandes rosas vermelhas sobre fundo branco. Havia uma porta de comunicação para um quarto de vestir masculino e outra que dava para um banheiro moderno e extremamente luxuoso, com uma banheira de descida e um bidê.

Era como se tivessem sido introduzidos num apartamento do mais moderno hotel da Flórida, com exceção de dois detalhes que não passaram despercebidos a Bond. Não havia janelas e nenhuma maçaneta interior nas portas.

May olhou com expressão de expectativa, de um para o outro.

Bond voltou-se para Honeyehile e sorriu-lhe: — Parece muito confortável, não acha, querida?

A jovem brincava com a barra da saia e fez um sinal de assentimento sem olhar para Bond.

Ouviu-se uma tímida batida na porta e outra jovem, tão linda quanto May, entrou carregando uma bandeja que se equilibrava sobre as palmas das mãos. A jovem descansou a bandeja sobre a mesa do centro e puxou duas cadeiras. Retirou a toalha de linho imaculadamente limpa e saiu. Sentiu-se um delicioso cheiro de fiambre e café.

May e a irmã Lírio também se encaminharam para a porta. A mulher mais idosa se deteve por um instante e disse:

— E agora nós os deixaremos em paz. Se desejarem alguma coisa, basta tocar a campainha. Os interruptores estão ao lado da cama. Ah, outra coisa, poderão encontrar roupa limpa nos aparadores. Receio que sejam apenas de estilo chinês,

— acrescentou, como a desculpar-se —, mas espero que os tamanhos satisfaçam. A rouparia só recebeu as medidas ontem à noite. O Dr. deu ordens severas para que os senhores não fossem perturbados. Ficará encantado se puderem reunir-se a ele, esta noite, para o jantar. Deseja, entretanto, que tenham todo o resto do dia à vontade, a fim de que melhor se ambientem, compreendem? — Fez uma pausa e olhou para um e para outro, com um sorriso indagador. — Posso dizer que os senhores...?

— Sim, por favor, — disse Bond. — Pode dizer ao D., que teremos muito prazer em jantar com ele.

— Oh, sei que ficará contente. — Com uma derradeira mesura, as duas chinesas se retiraram e fecharam a porta.

Bond voltou-se para Honeyehile, que parecia embaraçada e ainda evitava os seus olhos. Ocorreu então a Bond que talvez jamais tivesse ela tido um tratamento tão cortês ou visto tanto luxo em sua vida. Para ela, tudo aquilo devia ser muito mais estranho e aterrador do que o que tinham passado ao lado de fora. Ela continuou na mesma posição, brincando com a barra da saia. Podiam-se notar vestígios de suor seco, sal e poeira em seu rosto. Suas pernas nuas estavam sujas e Bond observou que os dedos de seus pés se moviam, suavemente, ao pisarem nervosamente o maravilhoso e espesso tapete.

Bond riu. Riu com gosto ao pensamento de que os temores da jovem tivessem sido abafados pelas preocupações de etiqueta e comportamento, e riu-se também da figura que ambos faziam — ela em farrapos e ele com a suja camisa azul, as calças pretas e os sapatos de lona enlameados.

Aproximou-se dela e segurou-lhe mãos. Estavam frias. Disse: — Honey, somos um par de espantalhos, mas há apenas um problema básico. Devemos tomar o nosso desjejum primeiro, enquanto está quente, ou tiraremos antes esses farrapos e tomaremos um banho, tomando a nossa refeição fria? Não se preocupe com mais nada. Estamos aqui nessa maravilhosa casinha e isto é tudo o que importa. O que faremos, então?

Ela sorriu hesitante. Seus olhos azuis fixavam-se no rosto dele, na ânsia de obter segurança. Depois disse: — Você não está preocupado com o que nos possa acontecer? — Fez um sinal para o quarto e acrescentou: — Não acha que tudo isso pode ser uma armadilha?

— Se se trata de uma armadilha, já caímos nela. Agora nada mais podemos fazer senão comer a isca. A única questão que subsiste é a de saber se a comeremos quente ou fria. — Apertou-lhe as mãos e continuou: — Seriamente, Honey. Deixe as preocupações comigo. Pense apenas onde estávamos apenas há uma hora. Isso aqui não é melhor? Agora, decidamos a única coisa realmente importante. Banho ou desjejum?

Ela respondeu com relutância: — Bem, se você acha... Quero dizer — preferiria antes lavar-me. — Mas logo acrescentou: — Você terá que ajudar-me. — E sacudiu a cabeça em direção ao banheiro, dizendo: Não sei como mexer numa coisa dessas. Como é que se faz?

Bond respondeu com toda seriedade: — É muito fácil. Vou preparar tudo para você. Enquanto você estivar tomando o seu banho tomarei o meu desjejum. Ao mesmo tempo tratarei de fazer com que o seu não esfrie.

Bond aproximou-se de um dos armários embutidos e abriu a porta. No interior havia uma meia dúzia de quimonos, alguns de seda e outros de linho. Apanhou um de linho, ao acaso. Depois, voltando-se para ela, disse: — Tire suas roupas e meta-se nisso aqui, enquanto preparo o seu banho. Mais tarde você escolherá as coisas que preferir, para a cama e para o jantar.

Ela respondeu com gratidão: — Oh, sim, James. Se você apenas me mostrasse... — E logo começou a desabotoar a saia.

Bond pensou em tomá-la nos braços e beijá-la, mas, ao invés disso, disse abruptamente: — ótimo, Honey — e, adiantando-se para o banheiro, abriu as torneiras.

Havia de tudo naquele banheiro: essência para banhos Floris Lime, para homens, e pastilhas de Guarlain para o banho de senhoras. Esfarelou uma pastilha na água e imediatamente o banheiro perfumou-se como uma loja de orquídeas. O sabonete era o Sapoceti de Guarlain “Fleurs des Alpes”. Num pequeno armário de remédios, atrás de um espelho, em cima da pia, podiam-se encontrar tubos de pasta, escovas de dente e palitos “Steradent”, água “Rose” para lavagem bucal, aspirina e leite de magnésia. Havia também um aparelho de barbear elétrico, loção “Lentheric” para barba, e duas escovas de náilon para cabelos e pentes. Tudo era novo e ainda não tinha sido tocado.

Bond olhou para o seu rosto sujo e sem barbear, no espelho, e riu sardonicamente para os próprios olhos, cinzentos, de pária queimado pelo sol. O revestimento da pílula certamente que era do melhor açúcar. Seria inteligente esperar que o remédio, no interior daquela pílula, fosse dos mais amargos.

Tocou a água, com a mão, a fim de sentir a temperatura. Talvez estivesse muito quente para quem jamais tinha tomado antes um banho quente. Deixou então que corresse um pouco mais de água fria. Ao inclinar-se, sentiu que dois braços lhe eram passados em torno do pescoço. Endireitou-se. Aquele corpo dourado resplandecia no banheiro todo revestido de ladrilhos brancos. Ela beijou-o impetuosamente nos lábios. Ele passou-lhe os braços à volta da cintura e esmagou-a de encontro a seu corpo, com o coração aos pulos. Ela disse sem fôlego, ao seu ouvido: — Achei estranhas as roupas chinesas, mas de qualquer maneira você disse à mulher que nós éramos casados.

Uma das mãos de Bond estava pousada sobre o seu seio esquerdo, cujo mamilo estava completamente endurecido pela paixão. O ventre da jovem se comprimia contra o seu. Por que não? Por que não? Não seja tolo! Este é um momento louco para isso. Vocês dois estão diante de um perigo mortal. Você deve continuar frio como gelo, para ter alguma possibilidade de se livrar dessa enrascada. Mais tarde! Mais tarde! Não seja fraco.

Bond retirou a mão do seio dela e espalmou-a à volta de seu pescoço. Esfregou o rosto de encontro ao dela e depois aproximou a boca da boca da jovem e deu-lhe um prolongado beijo.

Afastou-se depois e manteve-a à distância de um braço. Por um momento ambos se olharam, com os olhos brilhando de desejo. Ela respirava ofegantemente, com os lábios entreabertos, de modo que ele podia ver-lhe o brilho dos dentes. Ele disse com a voz trêmula: — Honey, entre no banho antes que eu lhe dê uma surra.

Ela sorriu e sem nada dizer entrou na banheira e deitou-se em todo seu comprimento. Do fundo da banheira ergueu os olhos para ele. Os cabelos louros, em seu corpo, brilhavam como moedas de ouro. Ela disse provocadoramente: — Você tem que me esfregar. Não sei como devo fazer, e você terá que mostrar-me.

Bond respondeu desesperadamente: — Cale a boca, Honey, e deixe de namoros. Apanhe a esponja, o sabonete e comece logo a se esfregar. Que diabo! Isso não é o momento de se fazer amor. Vou tomar o meu desjejum. — Esticou a mão para a porta e segurou na maçaneta. Ela disse docemente: — James! — Ele olhou para trás e viu que ela lhe fazia uma careta, com a língua de fora. Retribuiu com uma careta selvagem e bateu a porta com força.

Em seguida, Bond dirigiu-se para o quarto de vestir e deixou-se ficar durante algum tempo, de pé, no centro da peça, esperando que as batidas de seu coração se acalmassem. Esfregou as mãos no rosto e sacudiu a cabeça, procurando esquecê-la.

Para clarear a mente, percorreu ainda cuidadosamente as duas peças, procurando saídas, possíveis armas, microfones, qualquer coisa enfim que lhe aumentasse o conhecimento da situação em que se achava. Nada disso, entretanto, pôde encontrar. Na parede havia um relógio elétrico que marcava oito e meia e uma série de botões de campainhas, ao lado da cama de casal. Esses botões traziam a indicação de “Sala de serviço”, “cabeleireiro”, “manicure”, “empregada”. Não havia telefone. Bem no alto, a um canto de ambas as peças, viam-se as grades de um pequeno ventilador. Cada uma dessas grades era de dois pés quadrados. Tudo inútil. As portas pareciam ser feitas de algum metal leve, pintadas para combinarem com as paredes. Bond jogou todo o peso de seu corpo contra uma delas, mas ela não cedeu um só milímetro. Bond esfregou o ombro. Aquele lugar era uma verdadeira prisão. Não adiantava discutir a situação. A armadilha tinha-se fechado hermèticamente sobre eles. Agora, a única coisa que restava aos ratos era tirarem o melhor proveito possível da isca de queijo.

Bond sentou-se à mesa do desjejum, sobre a qual estava uma grande jarra com suco de abacaxi, metida num pequeno balde de prata cheio de cubos de gelo. Serviu-se rapidamente e levantou a tampa de uma travessa. Ali estavam ovos mexidos sobre torradas, quatro fatias de toucinho defumado, um rim grelhado e o que parecia quatro salsichas inglesas de carne de porco. Havia também duas torradas quentes, pãezinhos conservados quentes dentro de guardanapos, geléia de laranja e morango e mel. O café estava quase fervendo numa grande garrafa térmica, e o creme exalava um odor fresco e agradável.

Do banheiro vinham as notas da canção “Marion” que a jovem estava cantarolando. Bond resolveu não dar ouvidos à cantoria e concentrou-se nos ovos.

Dez minutos depois, Bond ouviu que a porta do banheiro se abria. Descansou uma torrada que tinha numa das mãos e cobriu os olhos com a outra. Ela riu e disse: — Ele é um covarde. Tem medo de uma simples jovem. — Em seguida Bond ouviu-a a remexer nos armários. Ela continuava falando, em parte consigo mesma: — Não sei porque ele está assustado. Naturalmente que se eu lutasse com ele facilmente o dominaria. Talvez esteja com medo disso. Talvez não seja realmente muito forte, embora seus braços e peito pareçam bastante rijos. Contudo, ainda não vi o resto. Talvez seja fraco. Sim, deve ser isso. Essa é a razão pela qual não ousa despir-se na minha frente. Hum, agora vamos ver, será que ele gostaria de mim com essas roupas? — Ela elevou a voz: — Querido James, você gostaria de me ver de branco, com pássaros azul-pálido esvoaçando sobre o meu corpo?

— Sim, bolas! Agora acabe com essa conversa e venha comer. Estou começando a sentir sono.

Ela soltou uma exclamação: — Oh, se você quer dizer que já está na hora de irmos para a cama, naturalmente que me apressarei.

Ouviu-se uma agitação de passos apressados e Bond logo a via sentar-se diante de si. Ele deixou cair as mãos e ela sorriu-lhe. Estava linda. Seu cabelo estava escovado e penteado de um dos lados caindo sobre o rosto, e do outro com as madeixas puxadas para trás da orelha. Sua pele brilhava de frescura e os grandes olhos azuis resplandeciam de felicidade. Agora Bond estava gostando daquele nariz quebrado. Tinha-se tornado parte de seus pensamentos relativamente a ela, e subitamente lhe ocorreu perguntar-se por que estaria ele triste quando ela era tão imaculadamente bela quanto tantas outras lindas jovens. Sentou-se circunspectamente, com as mãos no colo, e a metade dos seios aparecendo na abertura do quimono.

Bond disse severamente: — Agora, ouça, Honey. Você está maravilhosa, mas esta não é a maneira de usar-se um quimono. Feche-o no corpo, prenda-o bem e deixe de tentar parecer uma prostituta. Isso simplesmente não são bons modos à mesa.

— Oh, você não passa de um boneco idiota. — E ajeitou o quimono, fechando-o um pouco, em uma ou duas polegadas. — Por que você não gosta de brincar? Gostaria de brincar de estar casada.

— Não à hora do desjejum — respondeu Bond com firmeza. — Vamos, coma logo. Está delicioso. De qualquer maneira estou muito sujo, e agora vou fazer a barba e tomar um banho. — Levantou-se, deu volta à mesa e beijou-lhe o alto da cabeça. — E quanto a essa história de brincar, como você diz, gostaria mais de brincar com você do que com qualquer outra pessoa do mundo. Mas não agora. — Sem esperar pela resposta, dirigiu-se ao banheiro e fechou a porta.

Bond barbeou-se e tomou um banho de chuveiro. Sentia-se desesperadamente sonolento. O sono chegava-lhe, de modo que de quando em quando tinha que interromper o que fazia e inclinar a cabeça, repousando-a entre os joelhos. Quando começou a escovar os dentes, o seu estado era tal que mal podia fazê-lo. Estava começando a reconhecer os sintomas. Tinha sido narcotizado. A coisa teria sido posta no suco de abacaxi ou no café? Este era um detalhe sem importância. Aliás, nada tinha importância. Tudo o que queria fazer era estender-se naquele chão de ladrilhos e fechar os olhos. Assim mesmo, dirigiu-se cambaleante para a porta, esquecendo-se de que estava nu. Isso também pouca importância tinha. A jovem já tinha terminado a refeição e agora estava na cama. Continuou trôpego, até ela, segurando-se nos móveis. O quimono tinha sido abandonado no chão e ela dormia pesadamente, completamente nua, sob um simples lençol.

Bond olhou para o travesseiro, ao lado da jovem. Não! Procurou o interruptor e apagou as luzes. Agora teve que se arrastar pelo chão até chegar ao seu quarto. Chegou até junto de sua cama e atirou-se nela. Com grande esforço conseguiu ainda esticar o braço, tocar o interruptor e tentar apagar a lâmpada do criado-mudo. Mas não o conseguiu: sua mão deslizou, atirou o abajur ao chão e a lâmpada espatifou-se. Com um derradeiro esforço, Bond virou-se ainda no leito e adormeceu profundamente.

Os números luminosos do relógio elétrico, no quarto de casal, anunciavam nove e meia.

Às dez horas, a porta do quarto abriu-se suavemente. Um vulto muito alto e magro destacava-se na luz do corredor. Era um homem. Talvez tivesse dois metros de altura. Permaneceu no limiar da porta, com os braços cruzados, ouvindo. Dando-se por satisfeito, caminhou vagarosamente pelo quarto e aproximou-se da cama. Conhecia perfeitamente o caminho. Curvou-se sobre o leito e ouviu a serena respiração da jovem. Depois de um momento, tocou em seu próprio peito e acionou um interruptor. Imediatamente um amplo feixe de luz difusa projetou-se na cama. O farolete estava preso ao corpo do homem por meio de um cinto que o fixava à altura do esterno.

Inclinou-se novamente para a frente, de modo que a luz clareou o rosto da jovem.

O intruso examinou aquele rosto durante alguns minutos. Uma de suas mãos avançou, apanhou a orla do lençol, à altura do queixo da jovem, e puxou-o lentamente até os pés da cama. Mas a mão que puxara aquele lençol não era u’a mão. Era um par de pinças de aço muito bem articuladas na extremidade de uma espécie de talo metálico que desaparecia dentro de uma manga de seda negra. Era u’a mão mecânica.

O homem contemplou durante longo tempo aquele corpo nu, deslocando o seu peito de um lado para outro, de modo que todo o leito fosse submetido ao feixe luminoso. Depois, a garra saiu novamente de sob aquela manga e delicadamente levantou a ponta do lençol, puxando-o dos pés da cama até recobrir todo o corpo da jovem. O homem demorou-se ainda por um momento a contemplar o rosto adormecido, depois apagou o farolete e atravessou silenciosamente o quarto em direção à porta aberta, além da qual estava Bond dormindo.

O homem demorou-se mais tempo ao lado do leito de Bond. Perscrutou cada linha, cada sombra do rosto moreno e quase cruel que jazia quase sem vida, sobre o travesseiro. Observou a circulação à altura do pescoço e contou-lhe as batidas; depois, quando puxou o lençol para baixo, fez o mesmo na área do coração. Estudou a curva dos músculos, nos braços de Bond e nas coxas, e considerou pensativo a força oculta no ventre musculoso de Bond. Chegou até mesmo a curvar-se sobre a mão direita de Bond, estudando-lhe cuidadosamente as linhas da vida e do destino.

Por fim, com grande cuidado, a pinça de aço puxou novamente o lençol, desta vez para cobrir o corpo de Bond até o pescoço. Por mais um minuto o elevado vulto permaneceu ao lado do homem adormecido, depois se retirou rapidamente, ganhando o corredor, enquanto a porta se fechava com um estalido metálico e seco.


CONTINUA

XI - VIDA NO CANAVIAL


Seriam cerca de oito horas, pensou Bond. A não ser o coaxar dos sapos, tudo estava mergulhado em silêncio. No canto mais distante da clareira, ele podia vislumbrar o vulto de Quarrel.

Podia-se ouvir o tinir metálico, enquanto ele se ocupava em desmontar e secar a sua “Remington”.

Por entre as árvores podiam-se ver também as luzes distantes, vindas do depósito de guano, riscar caminhos luminosos e festivos sobre a superfície escura do lago. O desagradável vento desaparecera e o abominável cenário estava mergulhado em trevas. Estava bastante fresco. As roupas de Bond tinham secado no corpo. A comida tinha aquecido o seu estômago. Ele experimentou uma agradável sensação de conforto, sonolência e paz. O dia seguinte ainda estava muito longe e não apresentava problemas, a não ser uma boa dose de exercício físico. A vida, subitamente, pareceu-lhe fácil e boa.

A jovem estava a seu lado, metida no saco de dormir. Estava deitada de costas, com a cabeça descansando nas mãos, e olhando para o teto de estrelas. Ele apenas conseguia divisar os pálidos contornos de seu rosto. De repente, ela disse: James, você prometeu dizer-me o que significava tudo isso. Vamos. Eu não dormirei enquanto você não o disser.

Bond riu. — Eu direi se você também disser. Também quero saber o que você pretende.

— Pois não, não tenho segredos: mas você deve falar primeiro.

— Está certo. — Bond puxou os joelhos até a altura do queixo e passou os braços à volta deles. — Eu sou uma espécie de policial. Eles me enviam de Londres quando há alguma coisa de estranho acontecendo em alguma parte do mundo e que não interessa a ninguém. Bem, não faz muito tempo, um dos funcionários do Governador, em Kingston, um homem chamado Strangways, aliás meu amigo, desapareceu. Sua secretária, que era uma linda jovem, também desapareceu sem deixar vestígios. Muitos pensaram que eles tivessem fugido juntos, mas eu não acreditei nisso. Eu...”

Bond contou tudo com simplicidade, falando em homens bons e maus, como numa história de aventuras lida em algum livro. Depois terminou: Como você vê, Honey, temos de voltar a Jamaica, amanhã à noite, todos nós, na canoa, e então o Governador nos dará ouvidos e enviará um destacamento de soldados para apanhar este chinês. Espero que isso terá como conseqüência levá-lo à prisão. Ele com certeza também sabe disso, e essa é a razão pela qual procura aniquilar-nos. Essa é a história. Agora é a sua vez.

A jovem disse: Você parece viver uma vida muita excitante. Sua mulher não deve gostar que você fique fora tanto tempo. Ela não tem medo de que você se fira?

— Não sou casado. A única que se preocupa com a possibilidade de que eu me fira é a minha companhia de seguros.

Ela continuou sondando: Mas suponho que você tenha namoradas.

— Não permanentes.

— Oh!

Fez-se uma pausa. Quarrel se aproximou e disse: “Capitão, farei o primeiro quarto, se for melhor. Estarei na extremidade da restinga e virei chamá-lo à meia-noite. Então talvez o senhor possa ir até as cinco horas, quando nós nos poremos em marcha. Precisamos estar fora daqui antes que clareie o dia.

— Está bem — respondeu Bond. — Acorde-me se você vir alguma coisa. O revólver está em ordem?

— Perfeito — respondeu Quarrel com evidente mostra de contentamento. Depois, dirigindo-se à jovem disse com leve tom de insinuação: — Durma bem, senhorita. Em seguida, desapareceu silenciosamente nas sombras.

— Gosto de Quarrel — disse a jovem. E, após uma pausa: — Você quer realmente saber alguma coisa a meu respeito? A história não é tão excitante quanto a sua.

— É claro que quero. E não omita nada.

— Não há nada a omitir. Você poderia escrever toda a história de minha vida nas costas de um cartão postal. Para começar, nunca saí de Jamaica. Vivi toda a minha vida num lugar chamado Beau Desert, na costa setentrional, nas proximidades do Porto Morgan.

Bond riu. — É estranho: posso dizer o mesmo; pelo menos por enquanto. Não notei você pela região. Você vive em cima de uma árvore?

— Ah, imagino que você tenha ficado na casa da praia. Eu nunca chego até ali. Vivo na Casa Grande.

— Mas nada ficou dela. É uma ruína no meio dos canaviais.

— Eu vivo na adega. Tenho vivido ali desde a idade de cinco anos. Depois a casa se incendiou e meus pais morreram. Nada me lembro deles, por isso você não precisa manifestar pesar. A princípio vivi ali com a minha ama negra, mas depois ela morreu, quando eu tinha apenas quinze anos. Nos últimos cinco anos tenho vivido ali sozinha.

— Nossa Senhora! — Bond estava boquiaberto. — Mas não havia ninguém para tomar conta de você? Os seus pais não deixaram nenhum dinheiro?

— Nem um tostão. — Não havia o mínimo traço de amargura na voz da jovem — talvez orgulho, se houvesse alguma coisa. — Você sabe, os Riders eram uma das mais antigas famílias de Jamaica. O primeiro Rider recebera de Cromwell as terras de Beau Desert, por ter sido um dos que assinaram o veredicto de morte contra o rei Carlos. Ele construiu a Casa Grande e minha família viveu ora nela ora fora dela, desde aquela época. Mas depois veio a decadência do açúcar e eu acho que a propriedade foi pessimamente administrada, e, ao tempo em que meu pai tomou conta da herança, havia somente dívidas — hipotecas e outros ônus. Assim, quando meu pai e minha mãe morreram a propriedade foi vendida. Eu pouco me importei, pois era muito jovem. Minha ama deve ter sido maravilhosa. Quiseram que alguém me adotasse, mas a minha babá reuniu os pedaços de mobília que não tinham sido queimados e com eles nós nos instalamos da melhor forma no meio daquelas ruínas. Depois de algum tempo ninguém mais veio interferir conosco. Ela cosia um pouco e lavava para algumas freguesas da aldeia, ao mesmo tempo que plantava bananas e outras coisas, sem falar do grande pé de fruta-pão que havia diante da casa. Comíamos o que era a ração habitual do povo de Jamaica. E havia os pés de cana-de-açúcar à nossa volta. Ela fizera também uma rede para apanhar peixes, a qual nós recolhíamos todos os dias. Tudo corria bem e nós tínhamos o suficiente para comer. Ela ensinou-me a ler e escrever, como pôde. Tínhamos uma pilha de velhos livros que escapara ao incêndio, inclusive uma enciclopédia. Comecei com o A quando tinha apenas oito anos, e cheguei até o meio do T. — Ela disse um tanto na defensiva: — Aposto que sei mais do que você sobre muitas coisas.

— Estou certo de que sim. — Bond estava perdido na visão daquela jovem de cabelos de linho errando pelas ruínas de uma grande construção, com uma obstinada negra a vigiá-la e a chamá-la para receber as lições que deveriam ter sido um mistério para ela mesma. — Sua ama deve ter sido uma criatura extraordinária.

— Ela era um amor. — Era uma afirmação peremptória. — Pensei que fosse morrer quando ela faleceu. As coisas não foram tão fáceis para mim depois disso. Antes eu levava uma vida de criança, mas subitamente tive que crescer e fazer tudo por mim mesma. E os homens tentaram apanhar-me e atingir-me. Diziam que queriam fazer amor comigo. — Fez uma pausa e acrescentou: — Eu era bonita naquela época. Bond disse muito sério:

— Você é uma das jovens mais belas que já vi.

— Com este nariz? Não seja tolo.

— Você não compreende. — Bond tentou encontrar palavras nas quais ela pudesse crer. — É claro que qualquer pessoa pode ver que o seu nariz está quebrado; mas desde esta manhã dificilmente eu pude notá-lo. Quando se olha para uma pessoa, olha-se para os seus olhos ou para a sua boca. Nesses dois pontos se encontram a expressão. Um nariz quebrado não tem maior significação do que uma orelha torta. Narizes e orelhas são peças do mobiliário facial. Algumas são mais bonitas do que outras, mas não são tão importantes quanto o resto. Se você tivesse um nariz bonito, tão bonito como o resto, você seria a jovem mais bela de Jamaica.

— Você é sincero? — Sua voz era ansiosa. — Você acha que eu poderia ser bela? Sei que muita coisa em mim está bem, mas quando olho no espelho só vejo o meu nariz quebrado. Estou certa de que o mesmo ocorre com outras pessoas que são, que são — bem — mais ou menos aleijadas.

Bond disse com impaciência: — Você não é aleijada! Não diga tolices. E aliás você pode endireitá-lo mediante uma simples operação. Basta que você vá aos Estados Unidos e a coisa levará apenas uma semana.

Ela disse com irritação: — Como é que você quer que eu faça isso? Tenho cerca de quinze libras debaixo de uma pedra, na minha adega. Tenho ainda três saias, três blusas, uma faca e uma panela de peixe. Conheço muito bem essas operações. O médico de Porto Maria já pediu informações para mim. Ele é um homem muito bom e escreveu para os Estados Unidos. Pois para que a operação seja bem feita, eu teria que gastar cerca de quinhentas libras, sem falar da passagem para Nova York, a conta do hospital e tudo o mais.

Sua voz tornou-se desesperançada: — Como é que você espera que eu possa ter todo esse dinheiro?

Bond já decidira sobre o que teria de ser feito, mas no momento apenas disse ternamente: — Bem, espero que se possam encontrar meios; mas, de qualquer maneira, prossiga com a sua história. Ela é muito excitante — muito mais interessante do que a minha. Você tinha chegado ao ponto em que a sua ama morreu. O que aconteceu depois?

A jovem recomeçou com relutância.

— Bem, a culpa é sua por ter interrompido. E você não deve falar de coisas que não compreende. Suponho que as pessoas lhe digam que você é simpático. Você deve também ter todas as namoradas que desejar. Bem, isso não aconteceria se você fosse vesgo ou tivesse um lábio leporino. — Na verdade, ele pôde ouvir o sorriso em sua voz: — Acho que quando voltarmos eu irei ter com o feiticeiro para que lhe faça uma mandinga e lhe dê alguma coisa assim. — E ela acrescentou tristemente: — Dessa forma, nós seremos mais parecidos.

Bond estendeu o braço e sua mão tocou nela: — Eu tenho outros planos. Mas continuemos, quero ouvir o resto da sua história.

— Bem, — disse a jovem com um suspiro. — Eu terei que me atrasar um pouco. Como você sabe, toda a propriedade é representada pela cana-de-açúcar e pela velha casa que está situada no meio da plantação. Bem, umas duas vezes por ano eles cortam a cana e mandam-na para o moinho. E quando eles o fazem, todos os animais e insetos que vivem nos canaviais entram em pânico e a maioria deles têm as suas tocas destruídas e são mortos. Na época da safra, alguns deles começaram a vir para as ruínas da casa, onde se escondiam. No princípio, minha babá ficava aterrorizada, pois lá vinham os mangustos, as cobras e os escorpiões, mas eu preparei dois quartos da adega para recebê-los. Não me assustei com eles, e eles nunca me fizeram mal. Pareciam compreender que eu estava cuidando deles. E devem ter contado aquilo aos seus amigos, ou alguma coisa parecida, pois depois de algum tempo era perfeitamente natural que todos viessem acantonar-se em seus dois quartos, onde ficavam até que os canaviais começassem novamente a crescer, quando então iam saindo e voltando para os campos. Dei-lhes toda a comida que podíamos pôr de lado, quando eles ficavam conosco, e todos se portavam muito bem, a não ser por algum odor e às vezes uma ou outra luta entre si. Mas eram muito mansos comigo. Naturalmente os cortadores de cana perceberam tudo e viam-me andando pelo lugar com cobras à volta do meu pescoço, e assim por diante, a ponto de ficarem aterrorizados comigo e me considerarem uma feiticeira. Por causa disso, eles nos deixaram completamente isoladas. Ela fez uma pausa, e depois recomeçou:

— Foi assim que aprendi tanta coisa sobre animais e insetos. Eu costumava ainda passar muito tempo no mar, aprendendo coisas sobre os animais marinhos, assim como sobre os pássaros. Se se chega a saber o que todas essas criaturas gostam de comer e do que têm medo, pode-se muito bem fazer amizade com elas. — Levantou os olhos para Bond e disse: Você não sabe o que perde ignorando todas essas coisas.

— Receio que perca muito — respondeu Bond com sinceridade. — Suponho que eles sejam muito melhores e mais interessantes que os homens.

Sobre isso nada sei — respondeu a jovem pensativa-mente. — Não conheço muitas pessoas. A maioria das que conheci foram detestáveis, mas acho que deve haver criaturas interessantes também. — Fez uma pausa, e prosseguiu: — Nunca pensei realmente que chegasse a gostar de alguma pessoa como gosto dos animais. Com exceção da babá, naturalmente. Até que... — Ela se interrompeu com um sorriso de timidez. — Bem, de qualquer forma, nós vivemos muito felizes juntas, até que eu fiz quinze anos, quando então a babá morreu e as coisas se tornaram muito difíceis. Havia um homem chamado Mander. Um homem horroroso. Era o capataz branco que servia aos proprietários da plantação. Ele vivia me procurando. Queria que eu fosse viver com ele, em sua casa de Porto Maria.

Eu o odiava, e costumava esconder-me sempre que ouvia o seu cavalo aproximando-se do canavial. Certa noite ele veio a pé e eu não o ouvi. Estava bêbado. Entrou na adega e lutou comigo porque não queria fazer o que ele desejava. Você sabe, as coisas que fazem as pessoas quando estão apaixonadas.

— Sim, já sei.

— Tentei matá-lo com a minha faca, mas ele era muito forte e deu-me um soco tão forte no rosto que me quebrou o nariz. Deixou-me inconsciente e acho que fez alguma coisa comigo. Sei que ele fez mesmo. No dia seguinte eu quis me matar quando vi o meu rosto e verifiquei o que ele me havia feito. Pensei que iria ter um filho. Teria sem dúvida me matado se tivesse tido um filho daquele homem. Em todo caso, não tive, e tudo continuou assim. Fui ao médico e ele fez o que pôde com o meu nariz e não me cobrou nada. Quanto ao resto, eu nada lhe contei, pois estava muito envergonhada. O homem não voltou mais. Eu esperei e nada fiz até a próxima colheita de cana-de-açúcar. Tinha um plano. Estava esperando que as aranhas viúvas-negras viessem procurar abrigo. Um belo dia elas chegaram. Apanhei a maior das fêmeas e á deixei numa caixa sem nada para comer. As fêmeas são terríveis. Então esperei que fizesse uma noite escura, sem luar. Na primeira noite dessas, apanhei a caixa com a aranha e caminhei até chegar à casa do homem. Estava muito escuro e eu me sentia aterrorizada com a possibilidade de encontrar algum assaltante pela estrada, mas não houve nada. Esperei em seu jardim, oculta entre os arbustos, até que ele se recolheu à cama. Então subi por uma árvore e ganhei a sacada; aguardei até que ele começasse a roncar e depois entrei pela janela. Ele estava nu, estendido na cama, sob o mosquiteiro. Levantei uma aba do filó, abri a caixa e sacudi-lhe a aranha sobre o ventre. Depois saí e voltei para casa.

— Deus do céu! — exclamou Bond reverentemente. — O que aconteceu com o homem?

Ela respondeu com satisfação: — Levou uma semana para morrer. Deve ter-lhe doído terrivelmente. Você sabe, a mordida dessa aranha é pavorosa. Os feiticeiros dizem que não há nada que se lhe compare. — Ela fez uma pausa, e como Bond não fizesse nenhum comentário, acrescentou: — Você não acha que eu fiz mal, não é?

— Bem, não faça disso um hábito — respondeu Bond suavemente. — Mas não posso culpá-la, diante do que ele tinha feito. E, depois, o que aconteceu?

— Bem, depois me estabeleci novamente — sua voz era firme. — Tive que me concentrar na tarefa de obter alimento suficiente, e naturalmente. — Acrescentou persuasivamente: — Eu tinha de fato um nariz muito bonito, antes. Você acha que os médicos podem torná-lo igualzinho ao que era antes?

— Eles poderão fazê-lo de qualquer forma que você quiser — disse Bond em tom definitivo. — Como é que você ganhou dinheiro?

— Foi graças à enciclopédia. Li nela que há pessoas que gostam de colecionar conchas marinhas e que as conchas raras podiam ser vendidas. Falei com o mestre-escola local, sem contar-lhe naturalmente o meu segredo, e ele descobriu para mim que havia uma revista norte-americana chamada “Nautilus”, dedicada aos colecionadores de conchas. Eu tinha apenas o dinheiro suficiente para tomar uma assinatura daquela revista e comecei a procurar as conchas que as pessoas pediam em seus anúncios. Escrevi a um comerciante de Miami e ele começou a comprar as minhas conchas. Foi emocionante. Naturalmente que cometi alguns erros, no princípio. Pensei, por exemplo, que as pessoas gostariam das conchas mais bonitas, mas esse não era o caso. Freqüentemente elas preferiam as conchas mais feias. Depois, quando achava conchas raras, punha-me a limpá-las e poli-las a fim de torná-las mais bonitas, mas isso também foi um erro. Os colecionadores querem as conchas exatamente como saem do mar, com o animal em seu interior também. Então consegui algum formol com o médico e o punha entre as conchas vivas, para que elas não tivessem mau cheiro, e depois mandava-as para o tal comerciante de Miami. Só aprendi bem o negócio de um ano para cá e já consegui quinze libras. Consegui esse resultado agora que sei como é que eles querem as conchas e se tivesse sorte, poderia fazer pelo menos cinqüenta libras por ano. Então, em dez anos poderia ir aos Estados Unidos e operar-me. Mas, continuou ela com intenso contentamento, tive uma notável maré de sorte. Fui a Crab Key pelo Natal, onde já tinha estado antes. Mas dessa vez eu encontrei essas conchas purpúreas. Não parecem grande coisa, mas eu enviei uma ou duas para Miami e o comerciante escreveu-me para dizer que compraria tantas dessas conchas quantas eu pudesse encontrar, e ao preço de até cinco dólares pelas perfeitas. Disse-me ainda que eu deveria manter segredo sobre o lugar de onde as tirava, pois de outra forma o “mercado seria estragado”, como disse ele, e os preços cairiam. É como se se tivesse uma mina de ouro particular. Agora serei capaz de juntar o dinheiro em cinco anos. Esse foi o motivo pelo qual tive grandes suspeitas de você, quando o encontrei na praia. Pensei que você tivesse vindo para roubar as minhas conchas.

— Você me deu um susto, pois pensei que você fosse a garota do Dr. No.

— Muito obrigada.

— Mas depois que você tiver feito a operação, o que irá fazer? Você não pode continuar vivendo numa adega durante toda a vida.

— Pensei em me tornar uma prostituta. — Ela o disse como se tivesse dito “enfermeira” ou “secretária”.

— Oh, o que é que você quer dizer com isso? — Talvez ela já tivesse ouvido aquela expressão sem compreendê-la bem.

— Uma dessas jovens que possuem um bonito apartamento e lindas roupas. Você sabe o que quero dizer — acrescentou ela com impaciência. — Os homens telefonam, marcam encontro, chegam, fazem amor e pagam. Elas ganham cem dólares de cada vez, em Nova Iorque, onde pensei começar. Naturalmente — admitiu — terei de fazer por menos, no começo, até que aprenda a trabalhar bem. Quanto é que vocês pagam pelas que não têm experiência?

Bond riu. — Francamente, não me lembro. Há muito tempo que não me encontro com essas mulheres.

Ela suspirou. — Sim, suponho que você possa ter tantas mulheres quantas queira, por nada. Suponho que apenas os homens feios paguem, mas isso é inevitável. Qualquer espécie de trabalho nas grandes cidades deve ser horrível. Pelo menos pode-se ganhar muito mais como prostituta. Depois, poderia voltar para Jamaica e comprar Beau Desert. Seria bastante rica para encontrar um marido bonito e ter alguns filhos. Agora que encontrei essas conchas, penso que poderia estar de volta a Jamaica quando tivesse trinta anos. Não seria formidável?

— Gosto da última parte do plano, mas não tenho muita confiança na primeira. De qualquer forma, como é que você veio a saber dessa história de prostitutas? Encontrou isso na letra P, na enciclopédia?

— Claro que não; não seja tolo. Há uns dois anos houve em Nova Iorque um escândalo sobre elas, envolvendo também um “play-boy” chamado Jelke. Ele tinha toda uma cadeia de prostitutas, e eu li muito sobre o caso no “Gleaner”. O jornal deu inclusive os preços que elas cobravam e tudo o mais. De qualquer forma, há milhares dessas jovens em Kingston, embora não sejam tão boas. Recebem apenas cinco xelins e não têm um lugar apropriado para fazer amor, a não ser no mato. Minha babá chegou a falar-me delas. Disse-me que eu não deveria imitá-las, pois do contrário seria muito infeliz. É claro que seria, recebendo apenas cinco xelins. Mas por cem dólares!...

Bond observou: — Você não conseguiria guardar todo esse dinheiro. Precisaria ter uma espécie de gerente para arranjar os homens, e teria ainda de dar gorjetas à polícia, para deixá-la em paz. Por fim, poderia ir facilmente parar na cadeia se tudo não corresse bem. Na verdade, com tudo o que você sabe sobre animais, bem poderia ter um ótimo emprego, cuidando deles, em algum jardim zoológico norte-americano. E o que me diz do Instituto de Jamaica? Tenho certeza de que você gostaria mais de trabalhar ali. E poderia também facilmente encontrar um bom marido. De qualquer forma, você não deve mais pensar em ser prostituta. Você tem um belo corpo e deve guardá-lo para o homem que amar.

— Isso é o que dizem as pessoas nos livros — disse ela com ar de dúvida. — A dificuldade está em que não há nenhum homem para ser amado em Beau Desert. — Depois acrescentou timidamente: — Você é o único inglês com quem jamais falei. Gostei de você desde o princípio, e não me importo de dizer-lhe essas coisas agora. Penso que há muitas pessoas das quais chegaria a gostar se saísse daqui.

— É claro que há. Centenas. E você é uma garota formidável; o que pensei assim que a vi.

— Assim que viu as minhas nádegas, você quer dizer. — Sua voz estava-se tornando sonolenta, mas cheia de prazer.

Bond riu. — Bem, eram nádegas maravilhosas. E o outro lado também era maravilhoso. — O corpo de Bond começou a se agitar com a lembrança de como a vira pela primeira vez. Depois de um instante, disse com mau humor: — Agora vamos, Honey. Está na hora de dormir. Haverá muito tempo para conversarmos quando voltarmos a Jamaica.

— Haverá? — perguntou ela desconsoladamente. — Você promete?

— Prometo.

Ele a viu agitar-se dentro do saco de dormir. Olhou para baixo e apenas pôde divisar o seu pálido perfil voltado para ele. Ela deixou escapar o profundo suspiro de uma criança, antes de adormecer.

Reinava silêncio na clareira e o tempo estava esfriando. Bond descansou a cabeça sobre os joelhos unidos. Sabia que era inútil procurar dormir, pois sua mente estava cheia dos acontecimentos do dia e dessa extraordinária mulher Tarzan que aparecera em sua vida. Era como se algum animal muito bonito se lhe tivesse dedicado. E não largaria os cordéis enquanto não tivesse resolvido os problemas dela. Estava sentindo isso. Naturalmente que não haveria grandes dificuldades para a maioria de seus problemas. Quanto à operação, seria fácil arranjá-la, e até mesmo encontrar-lhe um emprego, com o auxílio de amigos, e um lar. Tinha dinheiro e haveria de comprar-lhe roupas, mandaria ajeitar os seus cabelos e a lançaria no grande mundo. Seria divertido. Mas quanto ao resto? Quanto ao desejo físico que sentia por ela? Não se podia fazer amor com uma criança. Mas, seria ela uma criança? Não haveria nada de infantil relativamente ao seu corpo ou à sua personalidade. Era perfeitamente adulta e bem inteligente, a seu modo, e muito mais capaz de tomar conta de si mesma do que qualquer outra jovem de vinte anos que Bond conhecera.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um puxão em sua manga. A vozinha disse: — Por que você não vai dormir? Não está sentindo frio?

— Não; estou bem.

— Aqui no saco de dormir está bom e quente. Você quer vir para cá? Tem bastante lugar.

— Não, obrigado, Honey. Estou bem.

Houve uma pausa, e depois ela disse num sussurro: — Se você está pensando... Quero dizer — você não precisa fazer amor comigo... Eu poderia dormir de costas para o seu peito.

— Honey, querida, vá dormir. Seria maravilhoso dormir assim com você, mas não esta noite. De qualquer maneira, em breve terei de render Quarrel.

— Muito bem, — disse ela com voz mal humorada. — Talvez quando voltarmos a Jamaica.

— Talvez.

— Prometa. Não dormirei enquanto você não prometer.

Bond disse desesperadamente: — Naturalmente que prometo. Agora, vá dormir, Honeychile.

A sua voz se fez ouvir outra vez, triunfante: — Agora você tem uma dívida comigo. Você prometeu. Boa-noite, querido James.

— Boa noite, querida Honey.


XII - A COISA


O aperto no braço de Bond era ansioso. Ele de um salto pôs-se de pé.

Quarrel sussurrou tensamente: — Alguma coisa está-se aproximando pela água, capitão! Com certeza é o dragão!

A jovem levantou-se e perguntou nervosamente: — Que aconteceu?

Bond apenas disse: — Fique aí, Honey! Não se mexa. Eu voltarei.

Internou-se pelos arbustos do lado oposto da montanha e correu pela restinga, com Quarrel ao lado.

Chegaram até a extremidade da restinga, a vinte metros da clareira, e pararam sob o abrigo dos últimos arbustos, que Bond apartou com as mãos para ter um melhor campo de visão.

O que seria aquilo? A meia milha de distância, atravessando o lago, vinha algo informe, com dois olhos brilhantes cor de laranja, e pupilas negras. Entre estes, onde deveria estar a boca, tremulava um metro de chama azul. A luminosidade cinzenta das estrelas deixava ver uma espécie de cabeça abaulada entre duas pequenas asas semelhantes às de um morcego. Aquela coisa estranha deixava escapar um ronco surdo e baixo, que abafava um outro ruído, uma espécie de vibração rítmica. Aquela massa avançava na direção deles, à velocidade de uns dezesseis quilômetros por hora, deixando atrás de si uma esteira de espuma.

Quarrel sussurrou:

— Nossa, capitão! Que coisa é aquela?

Bond continuou de pé e respondeu laconicamente: — Não sei exatamente. Uma espécie de trator arranjado para meter medo. Está trabalhando com um motor diesel, e por isso você pode deixar os dragões de lado. Agora, vejamos... — Bond falava como se para si mesmo. — Não adianta fugir. Aquilo se move mais depressa do que nós e sabemos que pode esmagar árvores e atravessar pântanos. Temos que lhe dar combate aqui mesmo. Quais serão os seus pontos fracos? Os motoristas. Com certeza, dispõem de proteção. Em todo caso, não sabemos muito sobre esse ponto. Quarrel, você começará a disparar contra aquela cúpula quando estiverem a uns duzentos metros de nós. Faça a pontaria cuidadosamente e continue atirando. Visarei os faróis quando estiverem a cinqüenta metros. Não se está movendo sobre lagartas. Deve ter alguma espécie de rodas gigantescas, provavelmente de avião. Visarei as rodas também. Fique aí. Ficarei dez metros para baixo. Naturalmente vão reagir e nós temos que manter as balas longe da garota. Está combinado? — Bond esticou o braço e apertou o enorme ombro de Quarrel. — E não se preocupe demais. Esqueça-se de dragões. Trata-se apenas de alguma trapaça do Dr. No. Mataremos os motoristas, tomaremos conta do veículo e ganharemos com ele a costa. Isso economizará as nossas solas. Está bem?

Quarrel deu uma breve risada. — Está bem, capitão. Desde que o senhor assim o diz. Mas que Nosso Senhor saiba também que aquilo não é dragão!

Bond desceu pela restinga e se internou pelos arbustos, até que encontrou um ponto de onde podia ter um bom campo de tiro. Disse suavemente: — Honey!

— Sim, James — e a voz dela deixou transparecer alívio.

— Faça um buraco na areia como fizemos na praia. Faça-o por trás de raízes grossas e fique lá deitada. Talvez haja um tiroteio. Não tenha medo de dragões. Isto é apenas um veículo pintado, dirigido por alguns dos homens do Dr. No. Não se assuste. Estou aqui perto.

— Muito bem, James. Tenha cuidado! — A voz agora deixava transparecer um vivo temor.

Bond curvou-se, apoiando um joelho no chão, sobre as folhas e a areia, e olhou para fora.

Agora o veículo achava-se a uns trezentos metros de distância, e os seus faróis amarelos estavam iluminando a areia. Chamas azuis continuavam saindo da boca daquele engenho. Saíam de uma espécie de longo focinho, no qual se pintaram mandíbulas entreabertas, para darem ao todo a aparência de dragão. Um lança-chamas! Aquilo explicava as árvores queimadas e a história do administrador. A coloração azul da chama seria dada por alguma espécie de queimador, disposto adiante do lança-chamas.

Bond teve que admitir que aquela visão era algo de terrível, à medida que o veículo avançava pelo lago raso. Evidentemente fora calculado para infundir terror. Ele mesmo ter-se-ia assustado, não fora a vibração rítmica do motor diesel. Mas até que ponto aquilo seria vulnerável para homens que não fossem dominados pelo pânico?

A resposta ele a teve quase imediatamente. Ouviu-se o estampido da “Remington” de Quarrel. Uma centelha saiu da cabina encimada pela cúpula e logo se ouviu um ruído metálico. Quarrel disparou mais um tiro e, logo em seguida, uma rajada. As balas chocaram-se inutilmente de encontro à cabina. Não houve mesmo uma simples redução de velocidade. O monstro continuava avançando para o ponto de onde tinham partido os disparos. Bond descansou o cano de seu “Smith & Wesson” no braço, e fez cuidadosa pontaria. O profundo ruído surdo de sua arma fez-se ouvir por sobre o matraquear da “Remington” de Quarrel. Um dos faróis fora atingido e despedaçara-se. Bond disparou mais quatro tiros contra o outro e atingiu-o com o quinto e último disparo de seu revólver. O fantástico aparelho parecia continuar não dando importância, e foi avançando para o lugar de onde tinham partido os disparos do “Smith & Wesson”. Bond tornou a carregar a arma e começou a atirar contra os pneumáticos, sob as asas negro e ouro. A distância agora era de apenas trinta metros e podia jurar que já atingira mais de uma vez a roda mais próxima, sem nenhum resultado. Seria borracha sólida? O primeiro estremecimento de medo percorreu a pele de Bond.

Carregou mais uma vez. Seria aquela coisa maldita vulnerável pela retaguarda? Deveria correr para o lago e tentar uma abordagem? Avançou um passo, através dos arbustos, mas logo ficou imóvel, incapaz de prosseguir.

Subitamente, daquele focinho ameaçador, uma língua de fogo azulada tinha sido lançada na direção do esconderijo de Quarrel. À direita de Bond, no mato, surgira apenas uma chama laranja e vermelha, simultaneamente com um estranho urro, que imediatamente silenciou. Satisfeita, aquela língua de fogo se recolhera à sua boca. Agora aquilo fizera um movimento de rotação sobre o seu eixo e parará completamente. O buraco azulado da boca apontava diretamente para Bond.

Bond deixou-se ficar, esperando pelo horroroso fim. Olhou através das mandíbulas da morte e viu o brilhante f-lamento vermelho do queimador, bem no fundo do comprido tubo. Pensou no corpo de Quarrel — mas não havia tempo para pensar em Quarrel — e imaginou-o completamente carbonizado. Dentro em pouco ele também se incendiaria como uma tocha. Um único berro seria arrancado dele e os seus membros se encolheriam na pose de dançarino dos corpos queimados. Depois viria a vez de Honey. Meu Deus, para o quê ele os havia arrastado! Por que fora tão insano a ponto de enfrentar aquele homem com todo o seu arsenal? Por que não aceitara a advertência que lhe fora feita pelo longo dedo que o alcançara já em Jamaica? Bond trincou os dentes. Vamos, canalhas. Depressa.

Ouviu-se a sonoridade de um alto-falante, que anunciava metàlicamente: “Saia daí, inglês. E a boneca também. Depressa ou será frito no inferno, como o seu amigo”. Para dar mais força àquela ordem, uma língua de fogo foi lançada em sua direção. Bond deu um passo atrás para recuar daquele intenso calor. Sentiu o corpo da garota de encontro às suas costas. Ela disse historicamente: — Tive que vir, tive que vir.

Bond disse: — Está bem, Honey. Fique atrás de mim.

Ele tinha-se decidido. Não havia alternativa. Mesmo que a morte viesse mais tarde, não poderia ser pior do que aquela morte diante do lança-chamas. Bond apanhou a mão da jovem e puxou-a consigo para fora, saindo para a areia.

A voz se fez ouvir novamente: — Pare aí, camarada. E deixe cair o lança-ervilhas. Nada de truques, senão os caranguejos terão um bom almoço.

Bond deixou cair a sua arma. Lá se fora o “Smith & Wesson”. O “Beretta” não teria tido melhor sorte: A jovem lastimou-se, e Bond apertou a sua mão. — Agüente, Honey, — disse ele. — Nós nos livraremos disso.

Bond troçou de si mesmo por causa daquela mentira. Ouviu-se o ruído de uma porta de ferro que se abria. Por trás da cúpula, um homem saltou para a água e caminhou até eles, com um revólver na mão. Ao mesmo tempo ia-se mantendo fora da linha de fogo do lança-chamas. A trêmula chama azul iluminou o seu rosto. Era um chinês negro, de enorme estatura, vestindo apenas calças. Alguma coisa balançava em sua mão esquerda, e quando ele se aproximou mais, Bond pôde ver que eram algemas.

O homem deteve-se a alguns metros de distância e disse:

— Levantem os braços. Punhos juntos e caminhem em minha direção. Você primeiro, inglês. Devagar ou receberá mais um umbigo.

Bond obedeceu e quando estava a um passo do homem, este prendeu o revólver entre os dentes, e esticou os braços e atou os seus pulsos com as algemas. Bond examinou aquele rosto iluminado pelas chamas azuis. Era uma cara brutal, com olhos estrábicos. O agente do Dr. No fitou-o com desprezo. — Bastardo imbecil! — disse.

Bond deu as costas ao homem e começou a se afastar. Ia ver o corpo de Quarrel. Tinha que lhe dizer adeus. Ouviu-se o ruído de um disparo e uma bala jogou-lhe areia nos pés. Bond parou, e voltando-se lentamente disse:

— Não fique nervoso. Vou dar uma espiada no homem que você acabou de assassinar. Voltarei.

O homem abaixou o revólver e riu grosseiramente: — Muito bem. Divirta-se. Desculpe se não temos uma coroa. Volte logo, se não daremos uma amostra à boneca. Dois minutos.

Bond caminhou em direção ao cerrado de arbustos fumegantes. Ali chegando, olhou para baixo. Seus olhos e boca se contraíram. Sim, tinha sido bem como ele imaginara. Pior, mesmo. Disse docemente: — Perdoe-me, Quarrel. — Com o pé soltou um pouco de areia, que colheu com as mãos algemadas e verteu-a sobre os restos dos olhos de Quarrel. Depois caminhou lentamente, de volta, e ficou ao lado da jovem.

O homem empurrou-os para a frente com o revólver. Deram a volta por trás da máquina, onde havia uma pequena porta quadrada. Uma voz do interior disse: — Entrem e sentem-se no chão. Não toquem em nada ou ficarão com os dedos partidos.

Com dificuldade, arrastaram-se para dentro daquela caixa de ferro, que cheirava a óleo e suor. Havia lugar apenas para que ambos se sentassem com as pernas encolhidas, de joelhos para cima. O homem que empunhava o revólver e que vinha atrás deles saltou por último para dentro do carro e fechou a porta. Ligou uma lâmpada e sentou-se num assento de ferro, ao lado do chofer. — Muito bem, Sam, vamos andando. Você pode apagar o fogo. Há luz bastante para dirigir — disse.

Na painel de controle podia-se ver uma fileira de mostradores. O motorista esticou a mão e deslocou para baixo um par de interruptores. Engrenou o motor e olhou através de uma estreita fresta, cortada na parede de ferro, diante dele. Bond sentiu que o veículo dava uma volta. Ouviu-se um movimento mais rápido do motor, e o veículo avançou.

O ombro da jovem apertou-se de encontro ao de Bond.

— Para onde estão eles nos levando? — O seu sussurro traía um estremecimento.

Bond voltou a cabeça e olhou para ela. Era a primeira vez que podia ver os seus cabelos depois de secos. Estavam desfeitos pelo sono, mas não eram mais mechas de rabichos empastados. Caíam densamente até os ombros, onde terminavam em anéis voltados para dentro. Eram do mais pálido louro acinzentado e despediam reflexos quase prateados sob a luz elétrica. Ela olhou para o alto, para ele. A pele, à volta dos olhos e nos cantos da boca, mostrava-se lívida de medo.

Bond deu de ombros, procurando aparentar uma indiferença que não sentia!. Sussurrou: — Oh, espero que vamos ver o Dr. No. Não se preocupe demais, Honey. Esses homens não passam de pequenos bandidos. Com ele, as coisas serão diferentes. Quando estivermos diante dele, não diga nada, falarei por nos dois. — Ele apertou o seu ombro e disse: — Gosto da maneira por que você penteia o seu cabelo, e fico contente porque você não o apara muito curto.

Um pouco da tenção desapareceu do rosto dela. — Como é que você pode pensar em coisas como essa? — Deu um leve sorriso para ele, e acrescentou: — Mas estou contente por você gostar de meu penteado. Lavo os meus cabelos com óleo de coco uma vez por semana.

À lembrança de sua outra vida, seus olhos ficaram brilhantes. Ela baixou a cabeça para as mãos algemadas, a fim de esconder as lágrimas. Sussurrou quase para si mesma: — Tentarei ser brava. Tudo estará bem, desde que você esteja lá.

Bond aconchegou-se a ela. Levantou suas mãos algemadas até a altura dos olhos e examinou as algemas. Eram do tipo usado pela polícia norte-americana. Contraiu sua mão esquerda, a mais fina das duas, e tentou fazê-la deslizar pelo anel de aço. Mesmo o suor de sua pele de nada adiantou. Era inútil.

Os dois homens sentavam-se em seus bancos de ferro, indiferentes, e com as costas voltadas para eles. Sabiam que dominavam inteiramente a situação. Não havia possibilidade de que Bond oferecesse qualquer incômodo. Não poderia levantar-se ou dar o necessário impulso aos seus punhos para causar qualquer mal às cabeças de seus adversários, utilizando as algemas. Se conseguisse abrir a porta e pular para a água, o que lograria com isso? Imediatamente eles sentiriam a brisa fresca, nas costas, e parariam a máquina para queimá-lo na água ou içá-lo novamente. Bond aborrecia-se em pensar que os homens pouco se preocupavam com ele, pois sabiam tê-lo completamente em seu poder. Também não gostou da idéia de que aqueles homens eram bastante inteligentes para saber que ele não representava nenhuma ameaça. Indivíduos mais estúpidos teriam ficado em cima deles, de revólver em punho, tê-los-iam surrado, a ele e à jovem, barbaramente, e talvez os tivessem deixado inconscientes. Aqueles dois conheciam o ofício. Eram profissionais, ou tinham sido treinados para o serem.

Os dois homens não falaram. Não houve nenhum comentário sobre o quão hábil eles tinham sido, ou quanto ao seu cansaço ou destino. Apenas dirigiam a máquina serenamente, ultimando com eficiência a sua tarefa.

Bond continuava sem a mínima idéia do que seria aquilo. Sob a tinta negra e dourada, assim como sob o resto daquela fantasia, a máquina parecia uma espécie de trator, como ele nunca vira. Não tinha conseguido descobrir nomes de marcas comerciais, nos pneumáticos, pois estivera muito escuro, mas certamente que deveriam ser de borracha sólida ou porosa. Atrás havia um pequena roda para dar estabilidade ao conjunto. Uma espécie de barbatana de ferro fora ainda acrescentada e pintada também de preto e ouro, a fim de ajudar a dar a aparência de dragão. Os altos pára-lamas tinham sofrido um prolongamento, na forma de curtas asas voltadas para trás. Uma comprida cabeça de dragão, feita em metal, fora fixada ao radiador e os faróis receberam pontos centrais negros, para parecerem olhos. Era tudo, sem falar da cabina que fora recoberta com uma cúpula blindada e dotada de um lança-chamas. Era, como pensara Bond, um trator preparado para assustar e queimar — embora não pudesse atinar porque estava dotado de um lança-chamas e não de uma metralhadora. Era, evidentemente, a única espécie de veículo que poderia percorrer a ilha. Suas gigantescas rodas podiam avançar sobre os mangues, pântanos e ainda atravessar o lago raso. Galgaria também os agrestes planaltos de coral e, desde que andasse à noite, o calor experimentado na cabina seria pelo menos tolerável.

Bond ficara impressionado. Impressionado pelo toque de profissionalismo. O Dr. No era sem dúvida um homem que se preocupava intensamente com as coisas. Em pouco iria encontrá-lo. E em breve estaria diante do segredo do Dr. No. Então, o que aconteceria? Bond sorriu amargamente. Sim, não o deixariam sair dali com o seu conhecimento. Certamente seria morto, a menos que pudesse fugir ou conseguir a sua liberdade por meios persuasivos. E o que aconteceria à jovem? Poderia ele provar sua inocência e conseguir com que ela fosse poupada? Possivelmente, mas nunca mais ela teria permissão para deixar a ilha. Ali teria de ficar para o resto da vida, como amante ou mulher de um dos homens, ou do próprio Dr. No, se ela o impressionasse.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um trecho do percurso mais difícil, como se podia sentir pela trepidação. Tinham atravessado o lago e estavam no caminho que levava para o alto da montanha, junto às cabanas. A cabina vibrava e a máquina começou a galgar o terreno. Dentro de cinco minutos estariam lá.

O ajudante do motorista olhou por sobre o ombro para Bond e a jovem. Bond sorriu confiantemente para ele dizendo: Você receberá uma medalha por isso.

Os olhos amarelos e marrons olharam impassivelmente dentro dos dele, enquanto os lábios arroxeados e oleosos se fenderam num sorriso no qual havia um ódio repousado: Feche a boca, se... Depois, deu-lhe as costas.

A jovem tocou-o com o cotovelo e sussurrou: — Por que eles são tão rudes? Por que nos odeiam tanto?

Bond esboçou um sorriso e disse: — Acho que é porque lhes causamos medo. Talvez ainda estejam com medo, e isto porque não parecemos ter medo deles. Devemos mantê-los assim.

A jovem aconchegou-se a ele e disse: — Tentarei.

Agora a subida estava-se tornando mais íngreme. Uma luz azul-acinzentada atravessava as frestas da armadura. A madrugada se aproximava. Fora, em breve estaria começando mais um dia de calor abrasador, de execrável vento, carregado com o cheiro de gás dos pântanos. Bond pensou em Quarrel, o bravo gigante que não mais veria aquele dia, e com o qual eles deveriam agora estar caminhando através dos pauis de mangues. Quarrel tinha pressentido a morte, mas apesar disso tinha acompanhado Bond sem qualquer objeção. Sua fé em Bond tinha sido maior do que o seu medo. E Bond tinha-lhe faltado. Seria ele ainda o causador da morte da jovem?

O motorista esticou o braço em direção ao painel e na parte dianteira do veículo fez-se ouvir o breve zunido de uma sirena de polícia, que foi desaparecendo num gemido fúnebre. Mais um minuto e o veículo parava, continuando o motor em regime neutro. O homem apertou um interruptor e tirou um microfone de um gancho, a seu lado. Falou por aquele microfone e Bond pôde ouvir a sua voz aumentada, do lado de fora, por um altofalante. — Tudo bem. Apanhamos o inglês e a garota. O outro homem morreu. Isso é tudo. Abram. — Bond ouviu que uma porta se deslocava para o lado, sobre rolamentos. O motorista embreou e eles avançaram lentamente para a frente, parando alguns metros adiante. O motorista desligou o motor. Ouviu-se o ruído metálico da tranca e a porta foi aberta pelo lado de fora. Uma lufada de ar fresco e uma luz mais brilhante penetraram na cabina. Várias mãos agarraram Bond e arrastaram-no para trás, até um chão de cimento. Bond agora estava de pé e sentia o cano de um revólver encostado ao seu flanco. Uma voz disse: — Fique onde está. Nada de espertezas. — Bond olhou para o homem. Era mais um chinês negro, do mesmo tipo que os outros. Os olhos amarelos examinaram-no com curiosidade. Bond virou-se com indiferença. Outro homem estava cutucando a jovem com a arma. Bond disse asperamente: — Deixe a garota em paz! Em seguida, caminhou e pôs-se ao lado da jovem. Os dois homens pareceram surpresos. Deixaram-se ficar de pé, apontando as armas com hesitação.

Bond olhou à volta. Estavam numa das cabanas pré-fabricadas que ele vira do rio. Era ao mesmo tempo uma garagem e uma oficina. O “dragão” tinha sido colocado sobre um fosso de vistoria, no chão de concreto. Um motor de popa desmontado estava sobre uma das bancadas. Longos tubos de luz fluorescente estavam afixados ao teto e o ambiente estava impregnado do cheiro de óleo e fumaça de exaustor. O motorista e o seu companheiro examinavam a máquina. Em seguida deram alguns passos pelo galpão, como se andassem sem propósito.

Um dos guardas anunciou: — Enviei a mensagem. A ordem é que eles sejam levados. Foi tudo bem?

O ajudante de motorista, que parecia o homem mais responsável, ali presente, disse: — Sem dúvida. Alguns disparos. Os faróis foram partidos. Talvez haja alguns furos nos pneumáticos. Ponha os rapazes em ação — uma vistoria completa. Conduzirei esses dois e tirarei um cochilo. — E, voltando-se para Bond: — Bem, vamos andando — e indicou o caminho que saía do longo galpão.

Bond disse: — Vá andando você; e cuidado com os modos. Diga àqueles macacos que tirem as armas de cima de nós. Podem disparar por engano. Parecem bastante idiotas.

O homem se aproximou, e os outros os acompanharam logo atrás. O ódio brilhava em seus olhos. O chefe levantou o punho cerrado, tão grande quanto um pequeno malho e chegou-o à altura do nariz de Bond. Procurava controlar-se com esforço, e disse: — Ouça, senhor. Às vezes, nós, os rapazes, temos permissão para participar da festa final. Estou rezando para que essa seja uma dessas vezes. Certa ocasião fizemos com que a coisa durasse toda uma semana. E se eu o pego...

Riu e os seus olhos brilharam com crueldade. Olhou para o lado de Bond, fixando a garota. Seus olhos pareciam transformados em bocas que agitavam os lábios. Enfiou as mãos nos bolsos laterais das calças. A ponta de sua língua mostrava-se muito vermelha, entre os lábios arroxeados. Voltando-se para os companheiros disse: — Que tal, rapazes?

Os três homens estavam olhando também para a jovem. Fizeram um sinal de assentimento, como crianças diante de uma árvore de Natal.

Bond desejou atirar-se como um louco sobre eles, golpeando as suas caras com os punhos algemados e aceitando a sua vingança sangrenta. Não fosse pela jovem, bem que o teria feito. Mas tudo o que tinha conseguido com suas corajosas palavras fora amedrontá-la. Disse apenas: — Muito bem, muito bem. Vocês são quatro e nós somos dois, ainda por cima com as mãos atadas. Vamos, não queremos atingi-los. Apenas não nos empurrem muito de um lado para outro. O Dr. No poderia não ficar satisfeito.

Àquele nome, os rostos dos homens se modificaram. Três pares de olhos passaram apàticamente de Bond para o chefe. Por um segundo, este olhou com desconfiança para Bond, intrigado, tentando descobrir se Bond teria alguma influência junto ao Dr. No. Sua boca abriu-se para dizer algo, mas logo pareceu pensar melhor, e apenas disse de maneira incerta: — Bem, bem, estávamos simplesmente brincando. — Voltou-se para os homens, em busca de confirmação: — Não é?

— Sem dúvida, sem dúvida! — foi a resposta dada por um coro áspero, e os homens desviaram o olhar.

O chefe disse com mau humor: — Por aqui, senhor. — E ele mesmo pôs-se a caminho, percorrendo o comprido galpão.

Bond segurou o pulso da jovem e seguiu o chefe. Estava impressionado com a reação causada naqueles homens pelo nome do Dr. No. Aquilo era alguma coisa a lembrar se eles tivessem que se haver novamente com aquela turma.

O homem chegou a uma porta de madeira situada na extremidade do galpão. Ao lado havia um botão de campainha que ele pressionou duas vezes e esperou. Ouviu-se um estalido e a porta se abriu, mostrando dez metros de uma passagem rochosa, mas atapetada e que ia dar, na outra extremidade, em outra porta mais elegante e pintada de creme.

O homem ficou de lado. Siga em frente, senhor — disse; — bata na porta e será atendido pela recepcionista. — Não havia nenhuma ironia em sua voz e seus olhos se mostravam impassíveis.

Bond conduziu Honey pela passagem. Ouviu que a porta se fechava às suas costas. Deteve-se por um momento e fitou-a, perguntando-lhe: — E agora?

Ela riu, trêmula, mas respondeu: — Ê bom sentir-se tapete sob os pés.

Bond apertou o seu pulso. Andou até a porta pintada de creme e bateu.

A porta abriu-se e Bond entrou com a jovem ao lado. Quando se deteve instantaneamente, não chegou a perceber o encontrão que lhe dava a jovem, pois continuou estarrecido.


XIII - GAIOLA DE OURO


Era a espécie de sala de recepção que as maiores corporações norte-americanas possuem no andar em que se situa o escritório do presidente, em seus arranha-céus de Nova Iorque. Suas proporções eram agradáveis, com cerca de vinte pés quadrados. O chão era todo recoberto pelo mais espesso tapete Wilton cor-de-vinho. O teto e as paredes estavam pintados numa suave tonalidade cinza pombo. Viam-se ainda reproduções litográficas de esboços de balé de Degas penduradas em séries, nas paredes, e a iluminação era feita com altos e modernos jogos de abajures de seda verde-escuro, imitando a forma de elegantes barricas.

À direita de Bond estavam uma larga mesa de mogno, com o tampo recoberto com couro verde, outras peças que se harmonizavam perfeitamente com a mesa, e um caro sistema de intercomunicações. Duas cadeiras altas, de antiquado, aguardavam os visitantes. Do outro lado da sala via-se uma mesa do tipo refeitório, sobre a qual estavam várias revistas com capas em cores vivas e mais duas cadeiras. Tanto na mesa de escritório, como na outra, viam-se vasos de hibiscos. O ar era fresco e impregnado de leve fragrância.

Duas mulheres estavam naquela sala. Por trás da mesa de trabalho, empunhando uma caneta que descansava sobre um formulário impresso, estava sentada uma jovem chinesa, de aspecto eficiente, com óculos de armação de chifre, sob uma franja de cabelos negros cortados curtos. Em seus olhos e em sua boca havia o sorriso padrão de boas-vindas que qualquer recepcionista exibe — a um tempo claro, obsequioso e inquisitivo.

Ainda com a mão na maçaneta da porta pela qual eles tinham passado, e esperando que os recém-chegados se adiantassem mais, a fim de que ela a pudesse fechar, estava uma mulher mais velha, com aspecto de matrona, e que deveria ter cerca de quarenta e cinco anos. Era fácil ver-se que também tinha sangue chinês. Sua aparência, saudável, de farto busto, era viva e quase excessivamente graciosa. O seu “pince-nez” de lentes cortadas em quadrado brilhava com o desejo da recepcionista de os pôr à vontade.

Ambas as mulheres vestiam roupas imaculadamente alvas, com meias brancas e sapatos de camurça branca como costumam apresentar-se as auxiliares empregadas nos mais luxuosos salões de beleza norte-americanos. Havia um que de suave e pálido em suas peles, como se elas raramente saíssem para o ar-livre.

Bond observou o ambiente, enquanto a mulher junto à porta lhe dizia frases convencionais de boas-vindas, como se eles tivessem sido colhidos por uma tempestade o chegado com atraso a uma festa.

— Oh, coitados! Nós não sabíamos quando vocês iriam chegar. A todo momento nos diziam que vocês já estavam a caminho... primeiro à hora do chá, ontem, depois na hora do jantar, e apenas há uma hora fomos informadas de que vocês chegariam à hora do desjejum. Devem estar com fome. Venham aqui e ajudem a irmã Rosa a preencher o formulário; depois eu os prepararei para a cama. Devem estar muito cansados.

Ia dizendo aquilo com voz doce e cacarejante, ao mesmo tempo que fechava a porta e os levava para junto da mesa e os fazia sentar nas cadeiras. Depois disse: — Bem, eu sou a irmã Lírio, e esta é a irmã Rosa. Ela irá fazer-lhes apenas algumas perguntas. Agora, aceitam um cigarro? — e pegou uma caixa de couro trabalhado que estava em cima da mesa. Abriu-a e pô-la diante deles. A caixa tinha três divisões, e a chinesinha explicou apontando com um dedo: “Esses são americanos, esses são ingleses e esses turcos.” Ela apanhou um luxuoso isqueiro de mesa e esperou.

Bond estendeu as mãos algemadas para tirar um cigarro turco.

A irmã Lírio deu um gritinho de espanto: — Oh, mas francamente. — Parecia sinceramente embaraçada. — Irmã Rosa, dê-me a chave, depressa. Já disse por várias vezes que os pacientes não devem ser trazidos dessa maneira. — Havia impaciência e aborrecimento em sua voz. — Francamente, aquela gente lá de fora! Já era tempo que eles fossem chamados à ordem.

A irmã Rosa estava tão embaraçada quanto a irmã Lírio. Rapidamente remexeu dentro de uma gaveta e entregou uma chave à irmã Lírio, que com muitas desculpas e cheia de dedos abriu os dois pares de algemas e, afastando-se para trás da mesa, deixou aquelas duas pulseiras de aço caírem dentro da cesta de papéis como se fossem ataduras sujas.

— Obrigado, — disse Bond, que não sabia como enfrentar aquela situação, a não ser procurando desempenhar um papel qualquer na comédia que se estava representando. Ele estendeu o braço, apanhou um cigarro e acendeu-o. Lançou um olhar para Honeyehile Rider, que parecia estonteada e nervosamente apertava com as mãos os braços de sua cadeira. Bond dirigiu-lhe um sorriso de conforto.

— Agora, por favor; — disse a irmã Rosa e inclinou-se sobre um comprido formulário impresso em papel caro. — Prometo ser o mais rápida que puder. O seu nome, sr... sr...

— Bryce, John Bryce.

Ela escreveu a resposta com grande concentração. — Endereço permanente?

— Aos cuidados do Jardim Zoológico Real, Regents Park, Londres, Inglaterra.

— Profissão?

— Ornitologista.

— Oh, meu Deus!, poderia o senhor soletrar isso? Bond atendeu-a.

— Muito obrigada. Agora, vejamos, objeto da viagem?

— Aves — respondeu Bond. — Sou também representante da Sociedade Audubon de Nova Iorque. Eles arrendaram parte desta ilha.

— Oh, sem dúvida. — Bond observou que a pena escrevia exatamente o que ele dizia. Depois da última palavra ela pôs um claro ponto de interrogação entre parênteses.

— E — a irmã Rosa sorriu polidamente em direção a Honeyehile — a sua esposa? Ela também está interessada em pássaros?

— Sim, sem dúvida.

— O seu primeiro nome?

— Honeyehile.

A irmã Rosa estava encantada. — Que nome lindo! — Ela voltou a escrever apressadamente. — E agora os parentes mais próximos de ambos, e estará tudo acabado.

Bond deu o verdadeiro nome de M como o parente mais próximo de ambos. Apresentou-o como “tio” e indicou o seu endereço como sendo “Diretor-Gerente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres.”

A irmã Rosa acabou de escrever e disse: — Pronto, está tudo feito. Muito obrigada, sr. Bryce, e espero que ambos apreciem a permanência aqui.

— Muito obrigado. Estou certo de que apreciaremos. — Bond levantou-se e Honeyehile fez o mesmo, ainda com expressão vazia.

A irmã Lírio disse: — Agora, venham comigo, queridos.

— Ela caminhou até uma porta na parede distante e deteve-se com a mão na maçaneta talhada em vidro. — Oh, meu Deus, — disse —, não é que agora me esqueci do número de seus quartos? É o apartamento creme, não é, irmã?

— Isso mesmo. Catorze e quinze.

— Obrigada, querida. E agora — ela abriu a porta — se vocês quiserem me seguir... Receio que seja uma caminhada um pouco longa. — Fechou a porta, por trás deles, e pôs-se à frente, indicando o caminho. — O Doutor tem falado várias vezes em instalar uma dessas escadas rolantes, ou algo de parecido, mas sabem como são os homens ocupados: — Ela riu alegremente. — Ele tem tantas outras coisas em que pensar!

— Sim, acredito, — disse Bond polidamente.

Bond tomou a mão da jovem e seguiram ambos a maternal e agitada chinesa através de cem metros de um alto corredor, do mesmo estilo da sala de recepção, mas que era iluminado a freqüentes intervalos por caros tubos luminosos fixados às paredes.

Bond respondia com polidos monossílabos aos comentários ocasionais que a irmã Lírio lhe lançava por sobre os ombros. Toda a sua mente se concentrava nas extraordinárias circunstâncias de sua recepção. Tinha certeza de que aquelas duas mulheres tinham sido sinceras. Nenhum só olhar ou palavra conseguira registrar que estivesse fora de propósito. Evidentemente aquilo era alguma espécie de fachada, mas de qualquer forma uma fachada sólida, meticulosamente apoiada pelo cenário e pelo elenco. A ausência de ressonância, na sala, e agora no corredor, estava a indicar que eles tinham deixado o galpão pré-fabricado para se internarem no flanco da montanha e agora estavam atravessando a sua base. Segundo o seu palpite estavam mesmo andando em direção oeste — em direção à penedia na qual terminava a ilha. Não havia umidade nas paredes e o ar parecia fresco e puro, com uma brisa a afagá-los. Muito dinheiro e uma bela realização de engenharia tinham sido os responsáveis por aquilo. A palidez das duas mulheres estava a sugerir que passavam a maior parte do tempo internadas no âmago da montanha. Do que a irmã dissera, parecia que elas faziam parte de um grupo de funcionários internos que nada tinham a ver com o destacamento de choque do exterior, e que talvez não soubessem a espécie de homens que eles eram.

Aquilo era grotesco, concluiu Bond ao se aproximar de uma porta, na extremidade do corredor, perigosamente grotesco, mas em nada adiantava pensar nisso no momento. Ele apenas podia seguir o papel que lhe tinha sido destinado. Pelo menos, aquilo era melhor do que os bastidores, na arena exterior da ilha.

Junto à porta, a irmã Lírio fez soar uma campainha. Já eram esperados e a porta abriu-se imediatamente. Uma encantadora jovem chinesa, de quimono lilás e branco, ficou a sorrir e a curvar-se, como se deve esperar que o façam as jovens chinesas. E, mais uma vez só havia calor e um sentimento de boas-vindas naquele rosto pálido como uma for. A irmã Lírio exclamou: — Aqui estão eles, finalmente, May! São o senhor e a senhora John Bryce. E sei que ambos devem estar exaustos, por isso devemos levá-los imediatamente aos seus aposentos, para que possam repousar e dormir. — Voltando-se para Bond: — Esta é May, muito boazinha. Ela tratará de ambos. Qualquer coisa que queiram é só tocar a campainha que May atenderá. É uma espécie de favorita de todos os nossos hóspedes.

Hóspedes!, pensou Bond. Essa é a segunda vez que ela usa a palavra. Sorriu polidamente para a jovem, e disse;

— Muito prazer; sim, certamente que gostaríamos de ir para os nossos aposentos.

May envolveu-os num cálido sorriso, e disse em voz baixa e atraente: — Espero que ambos se sintam bem, sr. Bryce. Tomei a liberdade de mandar vir uma refeição assim que soube que os senhores iam chegar. Vamos...? — Corredores saiam para a esquerda e a direita de portas duplas de elevadores, instalados na parede oposta. A jovem adiantou-se, caminhando na frente, para a direita, logo seguida de Bond e Honeyehile, que tinham atrás a irmã Lírio.

Ao longo do corredor, dos dois lados, viam-se portas numeradas. A decoração era feita no mais pálido cor-de-rosa, com um tapete cinza-pombo. Os números nas portas eram superiores a dez. O corredor terminava abruptamente, com duas portas, uma em frente a outra, com a numeração catorze e quinze. A irmã May abriu a porta catorze e o casal a seguiu, entrando na peça.

Era um lindo quarto de casal, em moderno estilo Mia-mi, com paredes verde-escuro, chão encerado de mogno escuro, com um ou outro espesso tapete branco e bem desenhado mobiliário de bambu com um tecido “chintz” de grandes rosas vermelhas sobre fundo branco. Havia uma porta de comunicação para um quarto de vestir masculino e outra que dava para um banheiro moderno e extremamente luxuoso, com uma banheira de descida e um bidê.

Era como se tivessem sido introduzidos num apartamento do mais moderno hotel da Flórida, com exceção de dois detalhes que não passaram despercebidos a Bond. Não havia janelas e nenhuma maçaneta interior nas portas.

May olhou com expressão de expectativa, de um para o outro.

Bond voltou-se para Honeyehile e sorriu-lhe: — Parece muito confortável, não acha, querida?

A jovem brincava com a barra da saia e fez um sinal de assentimento sem olhar para Bond.

Ouviu-se uma tímida batida na porta e outra jovem, tão linda quanto May, entrou carregando uma bandeja que se equilibrava sobre as palmas das mãos. A jovem descansou a bandeja sobre a mesa do centro e puxou duas cadeiras. Retirou a toalha de linho imaculadamente limpa e saiu. Sentiu-se um delicioso cheiro de fiambre e café.

May e a irmã Lírio também se encaminharam para a porta. A mulher mais idosa se deteve por um instante e disse:

— E agora nós os deixaremos em paz. Se desejarem alguma coisa, basta tocar a campainha. Os interruptores estão ao lado da cama. Ah, outra coisa, poderão encontrar roupa limpa nos aparadores. Receio que sejam apenas de estilo chinês,

— acrescentou, como a desculpar-se —, mas espero que os tamanhos satisfaçam. A rouparia só recebeu as medidas ontem à noite. O Dr. deu ordens severas para que os senhores não fossem perturbados. Ficará encantado se puderem reunir-se a ele, esta noite, para o jantar. Deseja, entretanto, que tenham todo o resto do dia à vontade, a fim de que melhor se ambientem, compreendem? — Fez uma pausa e olhou para um e para outro, com um sorriso indagador. — Posso dizer que os senhores...?

— Sim, por favor, — disse Bond. — Pode dizer ao D., que teremos muito prazer em jantar com ele.

— Oh, sei que ficará contente. — Com uma derradeira mesura, as duas chinesas se retiraram e fecharam a porta.

Bond voltou-se para Honeyehile, que parecia embaraçada e ainda evitava os seus olhos. Ocorreu então a Bond que talvez jamais tivesse ela tido um tratamento tão cortês ou visto tanto luxo em sua vida. Para ela, tudo aquilo devia ser muito mais estranho e aterrador do que o que tinham passado ao lado de fora. Ela continuou na mesma posição, brincando com a barra da saia. Podiam-se notar vestígios de suor seco, sal e poeira em seu rosto. Suas pernas nuas estavam sujas e Bond observou que os dedos de seus pés se moviam, suavemente, ao pisarem nervosamente o maravilhoso e espesso tapete.

Bond riu. Riu com gosto ao pensamento de que os temores da jovem tivessem sido abafados pelas preocupações de etiqueta e comportamento, e riu-se também da figura que ambos faziam — ela em farrapos e ele com a suja camisa azul, as calças pretas e os sapatos de lona enlameados.

Aproximou-se dela e segurou-lhe mãos. Estavam frias. Disse: — Honey, somos um par de espantalhos, mas há apenas um problema básico. Devemos tomar o nosso desjejum primeiro, enquanto está quente, ou tiraremos antes esses farrapos e tomaremos um banho, tomando a nossa refeição fria? Não se preocupe com mais nada. Estamos aqui nessa maravilhosa casinha e isto é tudo o que importa. O que faremos, então?

Ela sorriu hesitante. Seus olhos azuis fixavam-se no rosto dele, na ânsia de obter segurança. Depois disse: — Você não está preocupado com o que nos possa acontecer? — Fez um sinal para o quarto e acrescentou: — Não acha que tudo isso pode ser uma armadilha?

— Se se trata de uma armadilha, já caímos nela. Agora nada mais podemos fazer senão comer a isca. A única questão que subsiste é a de saber se a comeremos quente ou fria. — Apertou-lhe as mãos e continuou: — Seriamente, Honey. Deixe as preocupações comigo. Pense apenas onde estávamos apenas há uma hora. Isso aqui não é melhor? Agora, decidamos a única coisa realmente importante. Banho ou desjejum?

Ela respondeu com relutância: — Bem, se você acha... Quero dizer — preferiria antes lavar-me. — Mas logo acrescentou: — Você terá que ajudar-me. — E sacudiu a cabeça em direção ao banheiro, dizendo: Não sei como mexer numa coisa dessas. Como é que se faz?

Bond respondeu com toda seriedade: — É muito fácil. Vou preparar tudo para você. Enquanto você estivar tomando o seu banho tomarei o meu desjejum. Ao mesmo tempo tratarei de fazer com que o seu não esfrie.

Bond aproximou-se de um dos armários embutidos e abriu a porta. No interior havia uma meia dúzia de quimonos, alguns de seda e outros de linho. Apanhou um de linho, ao acaso. Depois, voltando-se para ela, disse: — Tire suas roupas e meta-se nisso aqui, enquanto preparo o seu banho. Mais tarde você escolherá as coisas que preferir, para a cama e para o jantar.

Ela respondeu com gratidão: — Oh, sim, James. Se você apenas me mostrasse... — E logo começou a desabotoar a saia.

Bond pensou em tomá-la nos braços e beijá-la, mas, ao invés disso, disse abruptamente: — ótimo, Honey — e, adiantando-se para o banheiro, abriu as torneiras.

Havia de tudo naquele banheiro: essência para banhos Floris Lime, para homens, e pastilhas de Guarlain para o banho de senhoras. Esfarelou uma pastilha na água e imediatamente o banheiro perfumou-se como uma loja de orquídeas. O sabonete era o Sapoceti de Guarlain “Fleurs des Alpes”. Num pequeno armário de remédios, atrás de um espelho, em cima da pia, podiam-se encontrar tubos de pasta, escovas de dente e palitos “Steradent”, água “Rose” para lavagem bucal, aspirina e leite de magnésia. Havia também um aparelho de barbear elétrico, loção “Lentheric” para barba, e duas escovas de náilon para cabelos e pentes. Tudo era novo e ainda não tinha sido tocado.

Bond olhou para o seu rosto sujo e sem barbear, no espelho, e riu sardonicamente para os próprios olhos, cinzentos, de pária queimado pelo sol. O revestimento da pílula certamente que era do melhor açúcar. Seria inteligente esperar que o remédio, no interior daquela pílula, fosse dos mais amargos.

Tocou a água, com a mão, a fim de sentir a temperatura. Talvez estivesse muito quente para quem jamais tinha tomado antes um banho quente. Deixou então que corresse um pouco mais de água fria. Ao inclinar-se, sentiu que dois braços lhe eram passados em torno do pescoço. Endireitou-se. Aquele corpo dourado resplandecia no banheiro todo revestido de ladrilhos brancos. Ela beijou-o impetuosamente nos lábios. Ele passou-lhe os braços à volta da cintura e esmagou-a de encontro a seu corpo, com o coração aos pulos. Ela disse sem fôlego, ao seu ouvido: — Achei estranhas as roupas chinesas, mas de qualquer maneira você disse à mulher que nós éramos casados.

Uma das mãos de Bond estava pousada sobre o seu seio esquerdo, cujo mamilo estava completamente endurecido pela paixão. O ventre da jovem se comprimia contra o seu. Por que não? Por que não? Não seja tolo! Este é um momento louco para isso. Vocês dois estão diante de um perigo mortal. Você deve continuar frio como gelo, para ter alguma possibilidade de se livrar dessa enrascada. Mais tarde! Mais tarde! Não seja fraco.

Bond retirou a mão do seio dela e espalmou-a à volta de seu pescoço. Esfregou o rosto de encontro ao dela e depois aproximou a boca da boca da jovem e deu-lhe um prolongado beijo.

Afastou-se depois e manteve-a à distância de um braço. Por um momento ambos se olharam, com os olhos brilhando de desejo. Ela respirava ofegantemente, com os lábios entreabertos, de modo que ele podia ver-lhe o brilho dos dentes. Ele disse com a voz trêmula: — Honey, entre no banho antes que eu lhe dê uma surra.

Ela sorriu e sem nada dizer entrou na banheira e deitou-se em todo seu comprimento. Do fundo da banheira ergueu os olhos para ele. Os cabelos louros, em seu corpo, brilhavam como moedas de ouro. Ela disse provocadoramente: — Você tem que me esfregar. Não sei como devo fazer, e você terá que mostrar-me.

Bond respondeu desesperadamente: — Cale a boca, Honey, e deixe de namoros. Apanhe a esponja, o sabonete e comece logo a se esfregar. Que diabo! Isso não é o momento de se fazer amor. Vou tomar o meu desjejum. — Esticou a mão para a porta e segurou na maçaneta. Ela disse docemente: — James! — Ele olhou para trás e viu que ela lhe fazia uma careta, com a língua de fora. Retribuiu com uma careta selvagem e bateu a porta com força.

Em seguida, Bond dirigiu-se para o quarto de vestir e deixou-se ficar durante algum tempo, de pé, no centro da peça, esperando que as batidas de seu coração se acalmassem. Esfregou as mãos no rosto e sacudiu a cabeça, procurando esquecê-la.

Para clarear a mente, percorreu ainda cuidadosamente as duas peças, procurando saídas, possíveis armas, microfones, qualquer coisa enfim que lhe aumentasse o conhecimento da situação em que se achava. Nada disso, entretanto, pôde encontrar. Na parede havia um relógio elétrico que marcava oito e meia e uma série de botões de campainhas, ao lado da cama de casal. Esses botões traziam a indicação de “Sala de serviço”, “cabeleireiro”, “manicure”, “empregada”. Não havia telefone. Bem no alto, a um canto de ambas as peças, viam-se as grades de um pequeno ventilador. Cada uma dessas grades era de dois pés quadrados. Tudo inútil. As portas pareciam ser feitas de algum metal leve, pintadas para combinarem com as paredes. Bond jogou todo o peso de seu corpo contra uma delas, mas ela não cedeu um só milímetro. Bond esfregou o ombro. Aquele lugar era uma verdadeira prisão. Não adiantava discutir a situação. A armadilha tinha-se fechado hermèticamente sobre eles. Agora, a única coisa que restava aos ratos era tirarem o melhor proveito possível da isca de queijo.

Bond sentou-se à mesa do desjejum, sobre a qual estava uma grande jarra com suco de abacaxi, metida num pequeno balde de prata cheio de cubos de gelo. Serviu-se rapidamente e levantou a tampa de uma travessa. Ali estavam ovos mexidos sobre torradas, quatro fatias de toucinho defumado, um rim grelhado e o que parecia quatro salsichas inglesas de carne de porco. Havia também duas torradas quentes, pãezinhos conservados quentes dentro de guardanapos, geléia de laranja e morango e mel. O café estava quase fervendo numa grande garrafa térmica, e o creme exalava um odor fresco e agradável.

Do banheiro vinham as notas da canção “Marion” que a jovem estava cantarolando. Bond resolveu não dar ouvidos à cantoria e concentrou-se nos ovos.

Dez minutos depois, Bond ouviu que a porta do banheiro se abria. Descansou uma torrada que tinha numa das mãos e cobriu os olhos com a outra. Ela riu e disse: — Ele é um covarde. Tem medo de uma simples jovem. — Em seguida Bond ouviu-a a remexer nos armários. Ela continuava falando, em parte consigo mesma: — Não sei porque ele está assustado. Naturalmente que se eu lutasse com ele facilmente o dominaria. Talvez esteja com medo disso. Talvez não seja realmente muito forte, embora seus braços e peito pareçam bastante rijos. Contudo, ainda não vi o resto. Talvez seja fraco. Sim, deve ser isso. Essa é a razão pela qual não ousa despir-se na minha frente. Hum, agora vamos ver, será que ele gostaria de mim com essas roupas? — Ela elevou a voz: — Querido James, você gostaria de me ver de branco, com pássaros azul-pálido esvoaçando sobre o meu corpo?

— Sim, bolas! Agora acabe com essa conversa e venha comer. Estou começando a sentir sono.

Ela soltou uma exclamação: — Oh, se você quer dizer que já está na hora de irmos para a cama, naturalmente que me apressarei.

Ouviu-se uma agitação de passos apressados e Bond logo a via sentar-se diante de si. Ele deixou cair as mãos e ela sorriu-lhe. Estava linda. Seu cabelo estava escovado e penteado de um dos lados caindo sobre o rosto, e do outro com as madeixas puxadas para trás da orelha. Sua pele brilhava de frescura e os grandes olhos azuis resplandeciam de felicidade. Agora Bond estava gostando daquele nariz quebrado. Tinha-se tornado parte de seus pensamentos relativamente a ela, e subitamente lhe ocorreu perguntar-se por que estaria ele triste quando ela era tão imaculadamente bela quanto tantas outras lindas jovens. Sentou-se circunspectamente, com as mãos no colo, e a metade dos seios aparecendo na abertura do quimono.

Bond disse severamente: — Agora, ouça, Honey. Você está maravilhosa, mas esta não é a maneira de usar-se um quimono. Feche-o no corpo, prenda-o bem e deixe de tentar parecer uma prostituta. Isso simplesmente não são bons modos à mesa.

— Oh, você não passa de um boneco idiota. — E ajeitou o quimono, fechando-o um pouco, em uma ou duas polegadas. — Por que você não gosta de brincar? Gostaria de brincar de estar casada.

— Não à hora do desjejum — respondeu Bond com firmeza. — Vamos, coma logo. Está delicioso. De qualquer maneira estou muito sujo, e agora vou fazer a barba e tomar um banho. — Levantou-se, deu volta à mesa e beijou-lhe o alto da cabeça. — E quanto a essa história de brincar, como você diz, gostaria mais de brincar com você do que com qualquer outra pessoa do mundo. Mas não agora. — Sem esperar pela resposta, dirigiu-se ao banheiro e fechou a porta.

Bond barbeou-se e tomou um banho de chuveiro. Sentia-se desesperadamente sonolento. O sono chegava-lhe, de modo que de quando em quando tinha que interromper o que fazia e inclinar a cabeça, repousando-a entre os joelhos. Quando começou a escovar os dentes, o seu estado era tal que mal podia fazê-lo. Estava começando a reconhecer os sintomas. Tinha sido narcotizado. A coisa teria sido posta no suco de abacaxi ou no café? Este era um detalhe sem importância. Aliás, nada tinha importância. Tudo o que queria fazer era estender-se naquele chão de ladrilhos e fechar os olhos. Assim mesmo, dirigiu-se cambaleante para a porta, esquecendo-se de que estava nu. Isso também pouca importância tinha. A jovem já tinha terminado a refeição e agora estava na cama. Continuou trôpego, até ela, segurando-se nos móveis. O quimono tinha sido abandonado no chão e ela dormia pesadamente, completamente nua, sob um simples lençol.

Bond olhou para o travesseiro, ao lado da jovem. Não! Procurou o interruptor e apagou as luzes. Agora teve que se arrastar pelo chão até chegar ao seu quarto. Chegou até junto de sua cama e atirou-se nela. Com grande esforço conseguiu ainda esticar o braço, tocar o interruptor e tentar apagar a lâmpada do criado-mudo. Mas não o conseguiu: sua mão deslizou, atirou o abajur ao chão e a lâmpada espatifou-se. Com um derradeiro esforço, Bond virou-se ainda no leito e adormeceu profundamente.

Os números luminosos do relógio elétrico, no quarto de casal, anunciavam nove e meia.

Às dez horas, a porta do quarto abriu-se suavemente. Um vulto muito alto e magro destacava-se na luz do corredor. Era um homem. Talvez tivesse dois metros de altura. Permaneceu no limiar da porta, com os braços cruzados, ouvindo. Dando-se por satisfeito, caminhou vagarosamente pelo quarto e aproximou-se da cama. Conhecia perfeitamente o caminho. Curvou-se sobre o leito e ouviu a serena respiração da jovem. Depois de um momento, tocou em seu próprio peito e acionou um interruptor. Imediatamente um amplo feixe de luz difusa projetou-se na cama. O farolete estava preso ao corpo do homem por meio de um cinto que o fixava à altura do esterno.

Inclinou-se novamente para a frente, de modo que a luz clareou o rosto da jovem.

O intruso examinou aquele rosto durante alguns minutos. Uma de suas mãos avançou, apanhou a orla do lençol, à altura do queixo da jovem, e puxou-o lentamente até os pés da cama. Mas a mão que puxara aquele lençol não era u’a mão. Era um par de pinças de aço muito bem articuladas na extremidade de uma espécie de talo metálico que desaparecia dentro de uma manga de seda negra. Era u’a mão mecânica.

O homem contemplou durante longo tempo aquele corpo nu, deslocando o seu peito de um lado para outro, de modo que todo o leito fosse submetido ao feixe luminoso. Depois, a garra saiu novamente de sob aquela manga e delicadamente levantou a ponta do lençol, puxando-o dos pés da cama até recobrir todo o corpo da jovem. O homem demorou-se ainda por um momento a contemplar o rosto adormecido, depois apagou o farolete e atravessou silenciosamente o quarto em direção à porta aberta, além da qual estava Bond dormindo.

O homem demorou-se mais tempo ao lado do leito de Bond. Perscrutou cada linha, cada sombra do rosto moreno e quase cruel que jazia quase sem vida, sobre o travesseiro. Observou a circulação à altura do pescoço e contou-lhe as batidas; depois, quando puxou o lençol para baixo, fez o mesmo na área do coração. Estudou a curva dos músculos, nos braços de Bond e nas coxas, e considerou pensativo a força oculta no ventre musculoso de Bond. Chegou até mesmo a curvar-se sobre a mão direita de Bond, estudando-lhe cuidadosamente as linhas da vida e do destino.

Por fim, com grande cuidado, a pinça de aço puxou novamente o lençol, desta vez para cobrir o corpo de Bond até o pescoço. Por mais um minuto o elevado vulto permaneceu ao lado do homem adormecido, depois se retirou rapidamente, ganhando o corredor, enquanto a porta se fechava com um estalido metálico e seco.


CONTINUA

XI - VIDA NO CANAVIAL


Seriam cerca de oito horas, pensou Bond. A não ser o coaxar dos sapos, tudo estava mergulhado em silêncio. No canto mais distante da clareira, ele podia vislumbrar o vulto de Quarrel.

Podia-se ouvir o tinir metálico, enquanto ele se ocupava em desmontar e secar a sua “Remington”.

Por entre as árvores podiam-se ver também as luzes distantes, vindas do depósito de guano, riscar caminhos luminosos e festivos sobre a superfície escura do lago. O desagradável vento desaparecera e o abominável cenário estava mergulhado em trevas. Estava bastante fresco. As roupas de Bond tinham secado no corpo. A comida tinha aquecido o seu estômago. Ele experimentou uma agradável sensação de conforto, sonolência e paz. O dia seguinte ainda estava muito longe e não apresentava problemas, a não ser uma boa dose de exercício físico. A vida, subitamente, pareceu-lhe fácil e boa.

A jovem estava a seu lado, metida no saco de dormir. Estava deitada de costas, com a cabeça descansando nas mãos, e olhando para o teto de estrelas. Ele apenas conseguia divisar os pálidos contornos de seu rosto. De repente, ela disse: James, você prometeu dizer-me o que significava tudo isso. Vamos. Eu não dormirei enquanto você não o disser.

Bond riu. — Eu direi se você também disser. Também quero saber o que você pretende.

— Pois não, não tenho segredos: mas você deve falar primeiro.

— Está certo. — Bond puxou os joelhos até a altura do queixo e passou os braços à volta deles. — Eu sou uma espécie de policial. Eles me enviam de Londres quando há alguma coisa de estranho acontecendo em alguma parte do mundo e que não interessa a ninguém. Bem, não faz muito tempo, um dos funcionários do Governador, em Kingston, um homem chamado Strangways, aliás meu amigo, desapareceu. Sua secretária, que era uma linda jovem, também desapareceu sem deixar vestígios. Muitos pensaram que eles tivessem fugido juntos, mas eu não acreditei nisso. Eu...”

Bond contou tudo com simplicidade, falando em homens bons e maus, como numa história de aventuras lida em algum livro. Depois terminou: Como você vê, Honey, temos de voltar a Jamaica, amanhã à noite, todos nós, na canoa, e então o Governador nos dará ouvidos e enviará um destacamento de soldados para apanhar este chinês. Espero que isso terá como conseqüência levá-lo à prisão. Ele com certeza também sabe disso, e essa é a razão pela qual procura aniquilar-nos. Essa é a história. Agora é a sua vez.

A jovem disse: Você parece viver uma vida muita excitante. Sua mulher não deve gostar que você fique fora tanto tempo. Ela não tem medo de que você se fira?

— Não sou casado. A única que se preocupa com a possibilidade de que eu me fira é a minha companhia de seguros.

Ela continuou sondando: Mas suponho que você tenha namoradas.

— Não permanentes.

— Oh!

Fez-se uma pausa. Quarrel se aproximou e disse: “Capitão, farei o primeiro quarto, se for melhor. Estarei na extremidade da restinga e virei chamá-lo à meia-noite. Então talvez o senhor possa ir até as cinco horas, quando nós nos poremos em marcha. Precisamos estar fora daqui antes que clareie o dia.

— Está bem — respondeu Bond. — Acorde-me se você vir alguma coisa. O revólver está em ordem?

— Perfeito — respondeu Quarrel com evidente mostra de contentamento. Depois, dirigindo-se à jovem disse com leve tom de insinuação: — Durma bem, senhorita. Em seguida, desapareceu silenciosamente nas sombras.

— Gosto de Quarrel — disse a jovem. E, após uma pausa: — Você quer realmente saber alguma coisa a meu respeito? A história não é tão excitante quanto a sua.

— É claro que quero. E não omita nada.

— Não há nada a omitir. Você poderia escrever toda a história de minha vida nas costas de um cartão postal. Para começar, nunca saí de Jamaica. Vivi toda a minha vida num lugar chamado Beau Desert, na costa setentrional, nas proximidades do Porto Morgan.

Bond riu. — É estranho: posso dizer o mesmo; pelo menos por enquanto. Não notei você pela região. Você vive em cima de uma árvore?

— Ah, imagino que você tenha ficado na casa da praia. Eu nunca chego até ali. Vivo na Casa Grande.

— Mas nada ficou dela. É uma ruína no meio dos canaviais.

— Eu vivo na adega. Tenho vivido ali desde a idade de cinco anos. Depois a casa se incendiou e meus pais morreram. Nada me lembro deles, por isso você não precisa manifestar pesar. A princípio vivi ali com a minha ama negra, mas depois ela morreu, quando eu tinha apenas quinze anos. Nos últimos cinco anos tenho vivido ali sozinha.

— Nossa Senhora! — Bond estava boquiaberto. — Mas não havia ninguém para tomar conta de você? Os seus pais não deixaram nenhum dinheiro?

— Nem um tostão. — Não havia o mínimo traço de amargura na voz da jovem — talvez orgulho, se houvesse alguma coisa. — Você sabe, os Riders eram uma das mais antigas famílias de Jamaica. O primeiro Rider recebera de Cromwell as terras de Beau Desert, por ter sido um dos que assinaram o veredicto de morte contra o rei Carlos. Ele construiu a Casa Grande e minha família viveu ora nela ora fora dela, desde aquela época. Mas depois veio a decadência do açúcar e eu acho que a propriedade foi pessimamente administrada, e, ao tempo em que meu pai tomou conta da herança, havia somente dívidas — hipotecas e outros ônus. Assim, quando meu pai e minha mãe morreram a propriedade foi vendida. Eu pouco me importei, pois era muito jovem. Minha ama deve ter sido maravilhosa. Quiseram que alguém me adotasse, mas a minha babá reuniu os pedaços de mobília que não tinham sido queimados e com eles nós nos instalamos da melhor forma no meio daquelas ruínas. Depois de algum tempo ninguém mais veio interferir conosco. Ela cosia um pouco e lavava para algumas freguesas da aldeia, ao mesmo tempo que plantava bananas e outras coisas, sem falar do grande pé de fruta-pão que havia diante da casa. Comíamos o que era a ração habitual do povo de Jamaica. E havia os pés de cana-de-açúcar à nossa volta. Ela fizera também uma rede para apanhar peixes, a qual nós recolhíamos todos os dias. Tudo corria bem e nós tínhamos o suficiente para comer. Ela ensinou-me a ler e escrever, como pôde. Tínhamos uma pilha de velhos livros que escapara ao incêndio, inclusive uma enciclopédia. Comecei com o A quando tinha apenas oito anos, e cheguei até o meio do T. — Ela disse um tanto na defensiva: — Aposto que sei mais do que você sobre muitas coisas.

— Estou certo de que sim. — Bond estava perdido na visão daquela jovem de cabelos de linho errando pelas ruínas de uma grande construção, com uma obstinada negra a vigiá-la e a chamá-la para receber as lições que deveriam ter sido um mistério para ela mesma. — Sua ama deve ter sido uma criatura extraordinária.

— Ela era um amor. — Era uma afirmação peremptória. — Pensei que fosse morrer quando ela faleceu. As coisas não foram tão fáceis para mim depois disso. Antes eu levava uma vida de criança, mas subitamente tive que crescer e fazer tudo por mim mesma. E os homens tentaram apanhar-me e atingir-me. Diziam que queriam fazer amor comigo. — Fez uma pausa e acrescentou: — Eu era bonita naquela época. Bond disse muito sério:

— Você é uma das jovens mais belas que já vi.

— Com este nariz? Não seja tolo.

— Você não compreende. — Bond tentou encontrar palavras nas quais ela pudesse crer. — É claro que qualquer pessoa pode ver que o seu nariz está quebrado; mas desde esta manhã dificilmente eu pude notá-lo. Quando se olha para uma pessoa, olha-se para os seus olhos ou para a sua boca. Nesses dois pontos se encontram a expressão. Um nariz quebrado não tem maior significação do que uma orelha torta. Narizes e orelhas são peças do mobiliário facial. Algumas são mais bonitas do que outras, mas não são tão importantes quanto o resto. Se você tivesse um nariz bonito, tão bonito como o resto, você seria a jovem mais bela de Jamaica.

— Você é sincero? — Sua voz era ansiosa. — Você acha que eu poderia ser bela? Sei que muita coisa em mim está bem, mas quando olho no espelho só vejo o meu nariz quebrado. Estou certa de que o mesmo ocorre com outras pessoas que são, que são — bem — mais ou menos aleijadas.

Bond disse com impaciência: — Você não é aleijada! Não diga tolices. E aliás você pode endireitá-lo mediante uma simples operação. Basta que você vá aos Estados Unidos e a coisa levará apenas uma semana.

Ela disse com irritação: — Como é que você quer que eu faça isso? Tenho cerca de quinze libras debaixo de uma pedra, na minha adega. Tenho ainda três saias, três blusas, uma faca e uma panela de peixe. Conheço muito bem essas operações. O médico de Porto Maria já pediu informações para mim. Ele é um homem muito bom e escreveu para os Estados Unidos. Pois para que a operação seja bem feita, eu teria que gastar cerca de quinhentas libras, sem falar da passagem para Nova York, a conta do hospital e tudo o mais.

Sua voz tornou-se desesperançada: — Como é que você espera que eu possa ter todo esse dinheiro?

Bond já decidira sobre o que teria de ser feito, mas no momento apenas disse ternamente: — Bem, espero que se possam encontrar meios; mas, de qualquer maneira, prossiga com a sua história. Ela é muito excitante — muito mais interessante do que a minha. Você tinha chegado ao ponto em que a sua ama morreu. O que aconteceu depois?

A jovem recomeçou com relutância.

— Bem, a culpa é sua por ter interrompido. E você não deve falar de coisas que não compreende. Suponho que as pessoas lhe digam que você é simpático. Você deve também ter todas as namoradas que desejar. Bem, isso não aconteceria se você fosse vesgo ou tivesse um lábio leporino. — Na verdade, ele pôde ouvir o sorriso em sua voz: — Acho que quando voltarmos eu irei ter com o feiticeiro para que lhe faça uma mandinga e lhe dê alguma coisa assim. — E ela acrescentou tristemente: — Dessa forma, nós seremos mais parecidos.

Bond estendeu o braço e sua mão tocou nela: — Eu tenho outros planos. Mas continuemos, quero ouvir o resto da sua história.

— Bem, — disse a jovem com um suspiro. — Eu terei que me atrasar um pouco. Como você sabe, toda a propriedade é representada pela cana-de-açúcar e pela velha casa que está situada no meio da plantação. Bem, umas duas vezes por ano eles cortam a cana e mandam-na para o moinho. E quando eles o fazem, todos os animais e insetos que vivem nos canaviais entram em pânico e a maioria deles têm as suas tocas destruídas e são mortos. Na época da safra, alguns deles começaram a vir para as ruínas da casa, onde se escondiam. No princípio, minha babá ficava aterrorizada, pois lá vinham os mangustos, as cobras e os escorpiões, mas eu preparei dois quartos da adega para recebê-los. Não me assustei com eles, e eles nunca me fizeram mal. Pareciam compreender que eu estava cuidando deles. E devem ter contado aquilo aos seus amigos, ou alguma coisa parecida, pois depois de algum tempo era perfeitamente natural que todos viessem acantonar-se em seus dois quartos, onde ficavam até que os canaviais começassem novamente a crescer, quando então iam saindo e voltando para os campos. Dei-lhes toda a comida que podíamos pôr de lado, quando eles ficavam conosco, e todos se portavam muito bem, a não ser por algum odor e às vezes uma ou outra luta entre si. Mas eram muito mansos comigo. Naturalmente os cortadores de cana perceberam tudo e viam-me andando pelo lugar com cobras à volta do meu pescoço, e assim por diante, a ponto de ficarem aterrorizados comigo e me considerarem uma feiticeira. Por causa disso, eles nos deixaram completamente isoladas. Ela fez uma pausa, e depois recomeçou:

— Foi assim que aprendi tanta coisa sobre animais e insetos. Eu costumava ainda passar muito tempo no mar, aprendendo coisas sobre os animais marinhos, assim como sobre os pássaros. Se se chega a saber o que todas essas criaturas gostam de comer e do que têm medo, pode-se muito bem fazer amizade com elas. — Levantou os olhos para Bond e disse: Você não sabe o que perde ignorando todas essas coisas.

— Receio que perca muito — respondeu Bond com sinceridade. — Suponho que eles sejam muito melhores e mais interessantes que os homens.

Sobre isso nada sei — respondeu a jovem pensativa-mente. — Não conheço muitas pessoas. A maioria das que conheci foram detestáveis, mas acho que deve haver criaturas interessantes também. — Fez uma pausa, e prosseguiu: — Nunca pensei realmente que chegasse a gostar de alguma pessoa como gosto dos animais. Com exceção da babá, naturalmente. Até que... — Ela se interrompeu com um sorriso de timidez. — Bem, de qualquer forma, nós vivemos muito felizes juntas, até que eu fiz quinze anos, quando então a babá morreu e as coisas se tornaram muito difíceis. Havia um homem chamado Mander. Um homem horroroso. Era o capataz branco que servia aos proprietários da plantação. Ele vivia me procurando. Queria que eu fosse viver com ele, em sua casa de Porto Maria.

Eu o odiava, e costumava esconder-me sempre que ouvia o seu cavalo aproximando-se do canavial. Certa noite ele veio a pé e eu não o ouvi. Estava bêbado. Entrou na adega e lutou comigo porque não queria fazer o que ele desejava. Você sabe, as coisas que fazem as pessoas quando estão apaixonadas.

— Sim, já sei.

— Tentei matá-lo com a minha faca, mas ele era muito forte e deu-me um soco tão forte no rosto que me quebrou o nariz. Deixou-me inconsciente e acho que fez alguma coisa comigo. Sei que ele fez mesmo. No dia seguinte eu quis me matar quando vi o meu rosto e verifiquei o que ele me havia feito. Pensei que iria ter um filho. Teria sem dúvida me matado se tivesse tido um filho daquele homem. Em todo caso, não tive, e tudo continuou assim. Fui ao médico e ele fez o que pôde com o meu nariz e não me cobrou nada. Quanto ao resto, eu nada lhe contei, pois estava muito envergonhada. O homem não voltou mais. Eu esperei e nada fiz até a próxima colheita de cana-de-açúcar. Tinha um plano. Estava esperando que as aranhas viúvas-negras viessem procurar abrigo. Um belo dia elas chegaram. Apanhei a maior das fêmeas e á deixei numa caixa sem nada para comer. As fêmeas são terríveis. Então esperei que fizesse uma noite escura, sem luar. Na primeira noite dessas, apanhei a caixa com a aranha e caminhei até chegar à casa do homem. Estava muito escuro e eu me sentia aterrorizada com a possibilidade de encontrar algum assaltante pela estrada, mas não houve nada. Esperei em seu jardim, oculta entre os arbustos, até que ele se recolheu à cama. Então subi por uma árvore e ganhei a sacada; aguardei até que ele começasse a roncar e depois entrei pela janela. Ele estava nu, estendido na cama, sob o mosquiteiro. Levantei uma aba do filó, abri a caixa e sacudi-lhe a aranha sobre o ventre. Depois saí e voltei para casa.

— Deus do céu! — exclamou Bond reverentemente. — O que aconteceu com o homem?

Ela respondeu com satisfação: — Levou uma semana para morrer. Deve ter-lhe doído terrivelmente. Você sabe, a mordida dessa aranha é pavorosa. Os feiticeiros dizem que não há nada que se lhe compare. — Ela fez uma pausa, e como Bond não fizesse nenhum comentário, acrescentou: — Você não acha que eu fiz mal, não é?

— Bem, não faça disso um hábito — respondeu Bond suavemente. — Mas não posso culpá-la, diante do que ele tinha feito. E, depois, o que aconteceu?

— Bem, depois me estabeleci novamente — sua voz era firme. — Tive que me concentrar na tarefa de obter alimento suficiente, e naturalmente. — Acrescentou persuasivamente: — Eu tinha de fato um nariz muito bonito, antes. Você acha que os médicos podem torná-lo igualzinho ao que era antes?

— Eles poderão fazê-lo de qualquer forma que você quiser — disse Bond em tom definitivo. — Como é que você ganhou dinheiro?

— Foi graças à enciclopédia. Li nela que há pessoas que gostam de colecionar conchas marinhas e que as conchas raras podiam ser vendidas. Falei com o mestre-escola local, sem contar-lhe naturalmente o meu segredo, e ele descobriu para mim que havia uma revista norte-americana chamada “Nautilus”, dedicada aos colecionadores de conchas. Eu tinha apenas o dinheiro suficiente para tomar uma assinatura daquela revista e comecei a procurar as conchas que as pessoas pediam em seus anúncios. Escrevi a um comerciante de Miami e ele começou a comprar as minhas conchas. Foi emocionante. Naturalmente que cometi alguns erros, no princípio. Pensei, por exemplo, que as pessoas gostariam das conchas mais bonitas, mas esse não era o caso. Freqüentemente elas preferiam as conchas mais feias. Depois, quando achava conchas raras, punha-me a limpá-las e poli-las a fim de torná-las mais bonitas, mas isso também foi um erro. Os colecionadores querem as conchas exatamente como saem do mar, com o animal em seu interior também. Então consegui algum formol com o médico e o punha entre as conchas vivas, para que elas não tivessem mau cheiro, e depois mandava-as para o tal comerciante de Miami. Só aprendi bem o negócio de um ano para cá e já consegui quinze libras. Consegui esse resultado agora que sei como é que eles querem as conchas e se tivesse sorte, poderia fazer pelo menos cinqüenta libras por ano. Então, em dez anos poderia ir aos Estados Unidos e operar-me. Mas, continuou ela com intenso contentamento, tive uma notável maré de sorte. Fui a Crab Key pelo Natal, onde já tinha estado antes. Mas dessa vez eu encontrei essas conchas purpúreas. Não parecem grande coisa, mas eu enviei uma ou duas para Miami e o comerciante escreveu-me para dizer que compraria tantas dessas conchas quantas eu pudesse encontrar, e ao preço de até cinco dólares pelas perfeitas. Disse-me ainda que eu deveria manter segredo sobre o lugar de onde as tirava, pois de outra forma o “mercado seria estragado”, como disse ele, e os preços cairiam. É como se se tivesse uma mina de ouro particular. Agora serei capaz de juntar o dinheiro em cinco anos. Esse foi o motivo pelo qual tive grandes suspeitas de você, quando o encontrei na praia. Pensei que você tivesse vindo para roubar as minhas conchas.

— Você me deu um susto, pois pensei que você fosse a garota do Dr. No.

— Muito obrigada.

— Mas depois que você tiver feito a operação, o que irá fazer? Você não pode continuar vivendo numa adega durante toda a vida.

— Pensei em me tornar uma prostituta. — Ela o disse como se tivesse dito “enfermeira” ou “secretária”.

— Oh, o que é que você quer dizer com isso? — Talvez ela já tivesse ouvido aquela expressão sem compreendê-la bem.

— Uma dessas jovens que possuem um bonito apartamento e lindas roupas. Você sabe o que quero dizer — acrescentou ela com impaciência. — Os homens telefonam, marcam encontro, chegam, fazem amor e pagam. Elas ganham cem dólares de cada vez, em Nova Iorque, onde pensei começar. Naturalmente — admitiu — terei de fazer por menos, no começo, até que aprenda a trabalhar bem. Quanto é que vocês pagam pelas que não têm experiência?

Bond riu. — Francamente, não me lembro. Há muito tempo que não me encontro com essas mulheres.

Ela suspirou. — Sim, suponho que você possa ter tantas mulheres quantas queira, por nada. Suponho que apenas os homens feios paguem, mas isso é inevitável. Qualquer espécie de trabalho nas grandes cidades deve ser horrível. Pelo menos pode-se ganhar muito mais como prostituta. Depois, poderia voltar para Jamaica e comprar Beau Desert. Seria bastante rica para encontrar um marido bonito e ter alguns filhos. Agora que encontrei essas conchas, penso que poderia estar de volta a Jamaica quando tivesse trinta anos. Não seria formidável?

— Gosto da última parte do plano, mas não tenho muita confiança na primeira. De qualquer forma, como é que você veio a saber dessa história de prostitutas? Encontrou isso na letra P, na enciclopédia?

— Claro que não; não seja tolo. Há uns dois anos houve em Nova Iorque um escândalo sobre elas, envolvendo também um “play-boy” chamado Jelke. Ele tinha toda uma cadeia de prostitutas, e eu li muito sobre o caso no “Gleaner”. O jornal deu inclusive os preços que elas cobravam e tudo o mais. De qualquer forma, há milhares dessas jovens em Kingston, embora não sejam tão boas. Recebem apenas cinco xelins e não têm um lugar apropriado para fazer amor, a não ser no mato. Minha babá chegou a falar-me delas. Disse-me que eu não deveria imitá-las, pois do contrário seria muito infeliz. É claro que seria, recebendo apenas cinco xelins. Mas por cem dólares!...

Bond observou: — Você não conseguiria guardar todo esse dinheiro. Precisaria ter uma espécie de gerente para arranjar os homens, e teria ainda de dar gorjetas à polícia, para deixá-la em paz. Por fim, poderia ir facilmente parar na cadeia se tudo não corresse bem. Na verdade, com tudo o que você sabe sobre animais, bem poderia ter um ótimo emprego, cuidando deles, em algum jardim zoológico norte-americano. E o que me diz do Instituto de Jamaica? Tenho certeza de que você gostaria mais de trabalhar ali. E poderia também facilmente encontrar um bom marido. De qualquer forma, você não deve mais pensar em ser prostituta. Você tem um belo corpo e deve guardá-lo para o homem que amar.

— Isso é o que dizem as pessoas nos livros — disse ela com ar de dúvida. — A dificuldade está em que não há nenhum homem para ser amado em Beau Desert. — Depois acrescentou timidamente: — Você é o único inglês com quem jamais falei. Gostei de você desde o princípio, e não me importo de dizer-lhe essas coisas agora. Penso que há muitas pessoas das quais chegaria a gostar se saísse daqui.

— É claro que há. Centenas. E você é uma garota formidável; o que pensei assim que a vi.

— Assim que viu as minhas nádegas, você quer dizer. — Sua voz estava-se tornando sonolenta, mas cheia de prazer.

Bond riu. — Bem, eram nádegas maravilhosas. E o outro lado também era maravilhoso. — O corpo de Bond começou a se agitar com a lembrança de como a vira pela primeira vez. Depois de um instante, disse com mau humor: — Agora vamos, Honey. Está na hora de dormir. Haverá muito tempo para conversarmos quando voltarmos a Jamaica.

— Haverá? — perguntou ela desconsoladamente. — Você promete?

— Prometo.

Ele a viu agitar-se dentro do saco de dormir. Olhou para baixo e apenas pôde divisar o seu pálido perfil voltado para ele. Ela deixou escapar o profundo suspiro de uma criança, antes de adormecer.

Reinava silêncio na clareira e o tempo estava esfriando. Bond descansou a cabeça sobre os joelhos unidos. Sabia que era inútil procurar dormir, pois sua mente estava cheia dos acontecimentos do dia e dessa extraordinária mulher Tarzan que aparecera em sua vida. Era como se algum animal muito bonito se lhe tivesse dedicado. E não largaria os cordéis enquanto não tivesse resolvido os problemas dela. Estava sentindo isso. Naturalmente que não haveria grandes dificuldades para a maioria de seus problemas. Quanto à operação, seria fácil arranjá-la, e até mesmo encontrar-lhe um emprego, com o auxílio de amigos, e um lar. Tinha dinheiro e haveria de comprar-lhe roupas, mandaria ajeitar os seus cabelos e a lançaria no grande mundo. Seria divertido. Mas quanto ao resto? Quanto ao desejo físico que sentia por ela? Não se podia fazer amor com uma criança. Mas, seria ela uma criança? Não haveria nada de infantil relativamente ao seu corpo ou à sua personalidade. Era perfeitamente adulta e bem inteligente, a seu modo, e muito mais capaz de tomar conta de si mesma do que qualquer outra jovem de vinte anos que Bond conhecera.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um puxão em sua manga. A vozinha disse: — Por que você não vai dormir? Não está sentindo frio?

— Não; estou bem.

— Aqui no saco de dormir está bom e quente. Você quer vir para cá? Tem bastante lugar.

— Não, obrigado, Honey. Estou bem.

Houve uma pausa, e depois ela disse num sussurro: — Se você está pensando... Quero dizer — você não precisa fazer amor comigo... Eu poderia dormir de costas para o seu peito.

— Honey, querida, vá dormir. Seria maravilhoso dormir assim com você, mas não esta noite. De qualquer maneira, em breve terei de render Quarrel.

— Muito bem, — disse ela com voz mal humorada. — Talvez quando voltarmos a Jamaica.

— Talvez.

— Prometa. Não dormirei enquanto você não prometer.

Bond disse desesperadamente: — Naturalmente que prometo. Agora, vá dormir, Honeychile.

A sua voz se fez ouvir outra vez, triunfante: — Agora você tem uma dívida comigo. Você prometeu. Boa-noite, querido James.

— Boa noite, querida Honey.


XII - A COISA


O aperto no braço de Bond era ansioso. Ele de um salto pôs-se de pé.

Quarrel sussurrou tensamente: — Alguma coisa está-se aproximando pela água, capitão! Com certeza é o dragão!

A jovem levantou-se e perguntou nervosamente: — Que aconteceu?

Bond apenas disse: — Fique aí, Honey! Não se mexa. Eu voltarei.

Internou-se pelos arbustos do lado oposto da montanha e correu pela restinga, com Quarrel ao lado.

Chegaram até a extremidade da restinga, a vinte metros da clareira, e pararam sob o abrigo dos últimos arbustos, que Bond apartou com as mãos para ter um melhor campo de visão.

O que seria aquilo? A meia milha de distância, atravessando o lago, vinha algo informe, com dois olhos brilhantes cor de laranja, e pupilas negras. Entre estes, onde deveria estar a boca, tremulava um metro de chama azul. A luminosidade cinzenta das estrelas deixava ver uma espécie de cabeça abaulada entre duas pequenas asas semelhantes às de um morcego. Aquela coisa estranha deixava escapar um ronco surdo e baixo, que abafava um outro ruído, uma espécie de vibração rítmica. Aquela massa avançava na direção deles, à velocidade de uns dezesseis quilômetros por hora, deixando atrás de si uma esteira de espuma.

Quarrel sussurrou:

— Nossa, capitão! Que coisa é aquela?

Bond continuou de pé e respondeu laconicamente: — Não sei exatamente. Uma espécie de trator arranjado para meter medo. Está trabalhando com um motor diesel, e por isso você pode deixar os dragões de lado. Agora, vejamos... — Bond falava como se para si mesmo. — Não adianta fugir. Aquilo se move mais depressa do que nós e sabemos que pode esmagar árvores e atravessar pântanos. Temos que lhe dar combate aqui mesmo. Quais serão os seus pontos fracos? Os motoristas. Com certeza, dispõem de proteção. Em todo caso, não sabemos muito sobre esse ponto. Quarrel, você começará a disparar contra aquela cúpula quando estiverem a uns duzentos metros de nós. Faça a pontaria cuidadosamente e continue atirando. Visarei os faróis quando estiverem a cinqüenta metros. Não se está movendo sobre lagartas. Deve ter alguma espécie de rodas gigantescas, provavelmente de avião. Visarei as rodas também. Fique aí. Ficarei dez metros para baixo. Naturalmente vão reagir e nós temos que manter as balas longe da garota. Está combinado? — Bond esticou o braço e apertou o enorme ombro de Quarrel. — E não se preocupe demais. Esqueça-se de dragões. Trata-se apenas de alguma trapaça do Dr. No. Mataremos os motoristas, tomaremos conta do veículo e ganharemos com ele a costa. Isso economizará as nossas solas. Está bem?

Quarrel deu uma breve risada. — Está bem, capitão. Desde que o senhor assim o diz. Mas que Nosso Senhor saiba também que aquilo não é dragão!

Bond desceu pela restinga e se internou pelos arbustos, até que encontrou um ponto de onde podia ter um bom campo de tiro. Disse suavemente: — Honey!

— Sim, James — e a voz dela deixou transparecer alívio.

— Faça um buraco na areia como fizemos na praia. Faça-o por trás de raízes grossas e fique lá deitada. Talvez haja um tiroteio. Não tenha medo de dragões. Isto é apenas um veículo pintado, dirigido por alguns dos homens do Dr. No. Não se assuste. Estou aqui perto.

— Muito bem, James. Tenha cuidado! — A voz agora deixava transparecer um vivo temor.

Bond curvou-se, apoiando um joelho no chão, sobre as folhas e a areia, e olhou para fora.

Agora o veículo achava-se a uns trezentos metros de distância, e os seus faróis amarelos estavam iluminando a areia. Chamas azuis continuavam saindo da boca daquele engenho. Saíam de uma espécie de longo focinho, no qual se pintaram mandíbulas entreabertas, para darem ao todo a aparência de dragão. Um lança-chamas! Aquilo explicava as árvores queimadas e a história do administrador. A coloração azul da chama seria dada por alguma espécie de queimador, disposto adiante do lança-chamas.

Bond teve que admitir que aquela visão era algo de terrível, à medida que o veículo avançava pelo lago raso. Evidentemente fora calculado para infundir terror. Ele mesmo ter-se-ia assustado, não fora a vibração rítmica do motor diesel. Mas até que ponto aquilo seria vulnerável para homens que não fossem dominados pelo pânico?

A resposta ele a teve quase imediatamente. Ouviu-se o estampido da “Remington” de Quarrel. Uma centelha saiu da cabina encimada pela cúpula e logo se ouviu um ruído metálico. Quarrel disparou mais um tiro e, logo em seguida, uma rajada. As balas chocaram-se inutilmente de encontro à cabina. Não houve mesmo uma simples redução de velocidade. O monstro continuava avançando para o ponto de onde tinham partido os disparos. Bond descansou o cano de seu “Smith & Wesson” no braço, e fez cuidadosa pontaria. O profundo ruído surdo de sua arma fez-se ouvir por sobre o matraquear da “Remington” de Quarrel. Um dos faróis fora atingido e despedaçara-se. Bond disparou mais quatro tiros contra o outro e atingiu-o com o quinto e último disparo de seu revólver. O fantástico aparelho parecia continuar não dando importância, e foi avançando para o lugar de onde tinham partido os disparos do “Smith & Wesson”. Bond tornou a carregar a arma e começou a atirar contra os pneumáticos, sob as asas negro e ouro. A distância agora era de apenas trinta metros e podia jurar que já atingira mais de uma vez a roda mais próxima, sem nenhum resultado. Seria borracha sólida? O primeiro estremecimento de medo percorreu a pele de Bond.

Carregou mais uma vez. Seria aquela coisa maldita vulnerável pela retaguarda? Deveria correr para o lago e tentar uma abordagem? Avançou um passo, através dos arbustos, mas logo ficou imóvel, incapaz de prosseguir.

Subitamente, daquele focinho ameaçador, uma língua de fogo azulada tinha sido lançada na direção do esconderijo de Quarrel. À direita de Bond, no mato, surgira apenas uma chama laranja e vermelha, simultaneamente com um estranho urro, que imediatamente silenciou. Satisfeita, aquela língua de fogo se recolhera à sua boca. Agora aquilo fizera um movimento de rotação sobre o seu eixo e parará completamente. O buraco azulado da boca apontava diretamente para Bond.

Bond deixou-se ficar, esperando pelo horroroso fim. Olhou através das mandíbulas da morte e viu o brilhante f-lamento vermelho do queimador, bem no fundo do comprido tubo. Pensou no corpo de Quarrel — mas não havia tempo para pensar em Quarrel — e imaginou-o completamente carbonizado. Dentro em pouco ele também se incendiaria como uma tocha. Um único berro seria arrancado dele e os seus membros se encolheriam na pose de dançarino dos corpos queimados. Depois viria a vez de Honey. Meu Deus, para o quê ele os havia arrastado! Por que fora tão insano a ponto de enfrentar aquele homem com todo o seu arsenal? Por que não aceitara a advertência que lhe fora feita pelo longo dedo que o alcançara já em Jamaica? Bond trincou os dentes. Vamos, canalhas. Depressa.

Ouviu-se a sonoridade de um alto-falante, que anunciava metàlicamente: “Saia daí, inglês. E a boneca também. Depressa ou será frito no inferno, como o seu amigo”. Para dar mais força àquela ordem, uma língua de fogo foi lançada em sua direção. Bond deu um passo atrás para recuar daquele intenso calor. Sentiu o corpo da garota de encontro às suas costas. Ela disse historicamente: — Tive que vir, tive que vir.

Bond disse: — Está bem, Honey. Fique atrás de mim.

Ele tinha-se decidido. Não havia alternativa. Mesmo que a morte viesse mais tarde, não poderia ser pior do que aquela morte diante do lança-chamas. Bond apanhou a mão da jovem e puxou-a consigo para fora, saindo para a areia.

A voz se fez ouvir novamente: — Pare aí, camarada. E deixe cair o lança-ervilhas. Nada de truques, senão os caranguejos terão um bom almoço.

Bond deixou cair a sua arma. Lá se fora o “Smith & Wesson”. O “Beretta” não teria tido melhor sorte: A jovem lastimou-se, e Bond apertou a sua mão. — Agüente, Honey, — disse ele. — Nós nos livraremos disso.

Bond troçou de si mesmo por causa daquela mentira. Ouviu-se o ruído de uma porta de ferro que se abria. Por trás da cúpula, um homem saltou para a água e caminhou até eles, com um revólver na mão. Ao mesmo tempo ia-se mantendo fora da linha de fogo do lança-chamas. A trêmula chama azul iluminou o seu rosto. Era um chinês negro, de enorme estatura, vestindo apenas calças. Alguma coisa balançava em sua mão esquerda, e quando ele se aproximou mais, Bond pôde ver que eram algemas.

O homem deteve-se a alguns metros de distância e disse:

— Levantem os braços. Punhos juntos e caminhem em minha direção. Você primeiro, inglês. Devagar ou receberá mais um umbigo.

Bond obedeceu e quando estava a um passo do homem, este prendeu o revólver entre os dentes, e esticou os braços e atou os seus pulsos com as algemas. Bond examinou aquele rosto iluminado pelas chamas azuis. Era uma cara brutal, com olhos estrábicos. O agente do Dr. No fitou-o com desprezo. — Bastardo imbecil! — disse.

Bond deu as costas ao homem e começou a se afastar. Ia ver o corpo de Quarrel. Tinha que lhe dizer adeus. Ouviu-se o ruído de um disparo e uma bala jogou-lhe areia nos pés. Bond parou, e voltando-se lentamente disse:

— Não fique nervoso. Vou dar uma espiada no homem que você acabou de assassinar. Voltarei.

O homem abaixou o revólver e riu grosseiramente: — Muito bem. Divirta-se. Desculpe se não temos uma coroa. Volte logo, se não daremos uma amostra à boneca. Dois minutos.

Bond caminhou em direção ao cerrado de arbustos fumegantes. Ali chegando, olhou para baixo. Seus olhos e boca se contraíram. Sim, tinha sido bem como ele imaginara. Pior, mesmo. Disse docemente: — Perdoe-me, Quarrel. — Com o pé soltou um pouco de areia, que colheu com as mãos algemadas e verteu-a sobre os restos dos olhos de Quarrel. Depois caminhou lentamente, de volta, e ficou ao lado da jovem.

O homem empurrou-os para a frente com o revólver. Deram a volta por trás da máquina, onde havia uma pequena porta quadrada. Uma voz do interior disse: — Entrem e sentem-se no chão. Não toquem em nada ou ficarão com os dedos partidos.

Com dificuldade, arrastaram-se para dentro daquela caixa de ferro, que cheirava a óleo e suor. Havia lugar apenas para que ambos se sentassem com as pernas encolhidas, de joelhos para cima. O homem que empunhava o revólver e que vinha atrás deles saltou por último para dentro do carro e fechou a porta. Ligou uma lâmpada e sentou-se num assento de ferro, ao lado do chofer. — Muito bem, Sam, vamos andando. Você pode apagar o fogo. Há luz bastante para dirigir — disse.

Na painel de controle podia-se ver uma fileira de mostradores. O motorista esticou a mão e deslocou para baixo um par de interruptores. Engrenou o motor e olhou através de uma estreita fresta, cortada na parede de ferro, diante dele. Bond sentiu que o veículo dava uma volta. Ouviu-se um movimento mais rápido do motor, e o veículo avançou.

O ombro da jovem apertou-se de encontro ao de Bond.

— Para onde estão eles nos levando? — O seu sussurro traía um estremecimento.

Bond voltou a cabeça e olhou para ela. Era a primeira vez que podia ver os seus cabelos depois de secos. Estavam desfeitos pelo sono, mas não eram mais mechas de rabichos empastados. Caíam densamente até os ombros, onde terminavam em anéis voltados para dentro. Eram do mais pálido louro acinzentado e despediam reflexos quase prateados sob a luz elétrica. Ela olhou para o alto, para ele. A pele, à volta dos olhos e nos cantos da boca, mostrava-se lívida de medo.

Bond deu de ombros, procurando aparentar uma indiferença que não sentia!. Sussurrou: — Oh, espero que vamos ver o Dr. No. Não se preocupe demais, Honey. Esses homens não passam de pequenos bandidos. Com ele, as coisas serão diferentes. Quando estivermos diante dele, não diga nada, falarei por nos dois. — Ele apertou o seu ombro e disse: — Gosto da maneira por que você penteia o seu cabelo, e fico contente porque você não o apara muito curto.

Um pouco da tenção desapareceu do rosto dela. — Como é que você pode pensar em coisas como essa? — Deu um leve sorriso para ele, e acrescentou: — Mas estou contente por você gostar de meu penteado. Lavo os meus cabelos com óleo de coco uma vez por semana.

À lembrança de sua outra vida, seus olhos ficaram brilhantes. Ela baixou a cabeça para as mãos algemadas, a fim de esconder as lágrimas. Sussurrou quase para si mesma: — Tentarei ser brava. Tudo estará bem, desde que você esteja lá.

Bond aconchegou-se a ela. Levantou suas mãos algemadas até a altura dos olhos e examinou as algemas. Eram do tipo usado pela polícia norte-americana. Contraiu sua mão esquerda, a mais fina das duas, e tentou fazê-la deslizar pelo anel de aço. Mesmo o suor de sua pele de nada adiantou. Era inútil.

Os dois homens sentavam-se em seus bancos de ferro, indiferentes, e com as costas voltadas para eles. Sabiam que dominavam inteiramente a situação. Não havia possibilidade de que Bond oferecesse qualquer incômodo. Não poderia levantar-se ou dar o necessário impulso aos seus punhos para causar qualquer mal às cabeças de seus adversários, utilizando as algemas. Se conseguisse abrir a porta e pular para a água, o que lograria com isso? Imediatamente eles sentiriam a brisa fresca, nas costas, e parariam a máquina para queimá-lo na água ou içá-lo novamente. Bond aborrecia-se em pensar que os homens pouco se preocupavam com ele, pois sabiam tê-lo completamente em seu poder. Também não gostou da idéia de que aqueles homens eram bastante inteligentes para saber que ele não representava nenhuma ameaça. Indivíduos mais estúpidos teriam ficado em cima deles, de revólver em punho, tê-los-iam surrado, a ele e à jovem, barbaramente, e talvez os tivessem deixado inconscientes. Aqueles dois conheciam o ofício. Eram profissionais, ou tinham sido treinados para o serem.

Os dois homens não falaram. Não houve nenhum comentário sobre o quão hábil eles tinham sido, ou quanto ao seu cansaço ou destino. Apenas dirigiam a máquina serenamente, ultimando com eficiência a sua tarefa.

Bond continuava sem a mínima idéia do que seria aquilo. Sob a tinta negra e dourada, assim como sob o resto daquela fantasia, a máquina parecia uma espécie de trator, como ele nunca vira. Não tinha conseguido descobrir nomes de marcas comerciais, nos pneumáticos, pois estivera muito escuro, mas certamente que deveriam ser de borracha sólida ou porosa. Atrás havia um pequena roda para dar estabilidade ao conjunto. Uma espécie de barbatana de ferro fora ainda acrescentada e pintada também de preto e ouro, a fim de ajudar a dar a aparência de dragão. Os altos pára-lamas tinham sofrido um prolongamento, na forma de curtas asas voltadas para trás. Uma comprida cabeça de dragão, feita em metal, fora fixada ao radiador e os faróis receberam pontos centrais negros, para parecerem olhos. Era tudo, sem falar da cabina que fora recoberta com uma cúpula blindada e dotada de um lança-chamas. Era, como pensara Bond, um trator preparado para assustar e queimar — embora não pudesse atinar porque estava dotado de um lança-chamas e não de uma metralhadora. Era, evidentemente, a única espécie de veículo que poderia percorrer a ilha. Suas gigantescas rodas podiam avançar sobre os mangues, pântanos e ainda atravessar o lago raso. Galgaria também os agrestes planaltos de coral e, desde que andasse à noite, o calor experimentado na cabina seria pelo menos tolerável.

Bond ficara impressionado. Impressionado pelo toque de profissionalismo. O Dr. No era sem dúvida um homem que se preocupava intensamente com as coisas. Em pouco iria encontrá-lo. E em breve estaria diante do segredo do Dr. No. Então, o que aconteceria? Bond sorriu amargamente. Sim, não o deixariam sair dali com o seu conhecimento. Certamente seria morto, a menos que pudesse fugir ou conseguir a sua liberdade por meios persuasivos. E o que aconteceria à jovem? Poderia ele provar sua inocência e conseguir com que ela fosse poupada? Possivelmente, mas nunca mais ela teria permissão para deixar a ilha. Ali teria de ficar para o resto da vida, como amante ou mulher de um dos homens, ou do próprio Dr. No, se ela o impressionasse.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um trecho do percurso mais difícil, como se podia sentir pela trepidação. Tinham atravessado o lago e estavam no caminho que levava para o alto da montanha, junto às cabanas. A cabina vibrava e a máquina começou a galgar o terreno. Dentro de cinco minutos estariam lá.

O ajudante do motorista olhou por sobre o ombro para Bond e a jovem. Bond sorriu confiantemente para ele dizendo: Você receberá uma medalha por isso.

Os olhos amarelos e marrons olharam impassivelmente dentro dos dele, enquanto os lábios arroxeados e oleosos se fenderam num sorriso no qual havia um ódio repousado: Feche a boca, se... Depois, deu-lhe as costas.

A jovem tocou-o com o cotovelo e sussurrou: — Por que eles são tão rudes? Por que nos odeiam tanto?

Bond esboçou um sorriso e disse: — Acho que é porque lhes causamos medo. Talvez ainda estejam com medo, e isto porque não parecemos ter medo deles. Devemos mantê-los assim.

A jovem aconchegou-se a ele e disse: — Tentarei.

Agora a subida estava-se tornando mais íngreme. Uma luz azul-acinzentada atravessava as frestas da armadura. A madrugada se aproximava. Fora, em breve estaria começando mais um dia de calor abrasador, de execrável vento, carregado com o cheiro de gás dos pântanos. Bond pensou em Quarrel, o bravo gigante que não mais veria aquele dia, e com o qual eles deveriam agora estar caminhando através dos pauis de mangues. Quarrel tinha pressentido a morte, mas apesar disso tinha acompanhado Bond sem qualquer objeção. Sua fé em Bond tinha sido maior do que o seu medo. E Bond tinha-lhe faltado. Seria ele ainda o causador da morte da jovem?

O motorista esticou o braço em direção ao painel e na parte dianteira do veículo fez-se ouvir o breve zunido de uma sirena de polícia, que foi desaparecendo num gemido fúnebre. Mais um minuto e o veículo parava, continuando o motor em regime neutro. O homem apertou um interruptor e tirou um microfone de um gancho, a seu lado. Falou por aquele microfone e Bond pôde ouvir a sua voz aumentada, do lado de fora, por um altofalante. — Tudo bem. Apanhamos o inglês e a garota. O outro homem morreu. Isso é tudo. Abram. — Bond ouviu que uma porta se deslocava para o lado, sobre rolamentos. O motorista embreou e eles avançaram lentamente para a frente, parando alguns metros adiante. O motorista desligou o motor. Ouviu-se o ruído metálico da tranca e a porta foi aberta pelo lado de fora. Uma lufada de ar fresco e uma luz mais brilhante penetraram na cabina. Várias mãos agarraram Bond e arrastaram-no para trás, até um chão de cimento. Bond agora estava de pé e sentia o cano de um revólver encostado ao seu flanco. Uma voz disse: — Fique onde está. Nada de espertezas. — Bond olhou para o homem. Era mais um chinês negro, do mesmo tipo que os outros. Os olhos amarelos examinaram-no com curiosidade. Bond virou-se com indiferença. Outro homem estava cutucando a jovem com a arma. Bond disse asperamente: — Deixe a garota em paz! Em seguida, caminhou e pôs-se ao lado da jovem. Os dois homens pareceram surpresos. Deixaram-se ficar de pé, apontando as armas com hesitação.

Bond olhou à volta. Estavam numa das cabanas pré-fabricadas que ele vira do rio. Era ao mesmo tempo uma garagem e uma oficina. O “dragão” tinha sido colocado sobre um fosso de vistoria, no chão de concreto. Um motor de popa desmontado estava sobre uma das bancadas. Longos tubos de luz fluorescente estavam afixados ao teto e o ambiente estava impregnado do cheiro de óleo e fumaça de exaustor. O motorista e o seu companheiro examinavam a máquina. Em seguida deram alguns passos pelo galpão, como se andassem sem propósito.

Um dos guardas anunciou: — Enviei a mensagem. A ordem é que eles sejam levados. Foi tudo bem?

O ajudante de motorista, que parecia o homem mais responsável, ali presente, disse: — Sem dúvida. Alguns disparos. Os faróis foram partidos. Talvez haja alguns furos nos pneumáticos. Ponha os rapazes em ação — uma vistoria completa. Conduzirei esses dois e tirarei um cochilo. — E, voltando-se para Bond: — Bem, vamos andando — e indicou o caminho que saía do longo galpão.

Bond disse: — Vá andando você; e cuidado com os modos. Diga àqueles macacos que tirem as armas de cima de nós. Podem disparar por engano. Parecem bastante idiotas.

O homem se aproximou, e os outros os acompanharam logo atrás. O ódio brilhava em seus olhos. O chefe levantou o punho cerrado, tão grande quanto um pequeno malho e chegou-o à altura do nariz de Bond. Procurava controlar-se com esforço, e disse: — Ouça, senhor. Às vezes, nós, os rapazes, temos permissão para participar da festa final. Estou rezando para que essa seja uma dessas vezes. Certa ocasião fizemos com que a coisa durasse toda uma semana. E se eu o pego...

Riu e os seus olhos brilharam com crueldade. Olhou para o lado de Bond, fixando a garota. Seus olhos pareciam transformados em bocas que agitavam os lábios. Enfiou as mãos nos bolsos laterais das calças. A ponta de sua língua mostrava-se muito vermelha, entre os lábios arroxeados. Voltando-se para os companheiros disse: — Que tal, rapazes?

Os três homens estavam olhando também para a jovem. Fizeram um sinal de assentimento, como crianças diante de uma árvore de Natal.

Bond desejou atirar-se como um louco sobre eles, golpeando as suas caras com os punhos algemados e aceitando a sua vingança sangrenta. Não fosse pela jovem, bem que o teria feito. Mas tudo o que tinha conseguido com suas corajosas palavras fora amedrontá-la. Disse apenas: — Muito bem, muito bem. Vocês são quatro e nós somos dois, ainda por cima com as mãos atadas. Vamos, não queremos atingi-los. Apenas não nos empurrem muito de um lado para outro. O Dr. No poderia não ficar satisfeito.

Àquele nome, os rostos dos homens se modificaram. Três pares de olhos passaram apàticamente de Bond para o chefe. Por um segundo, este olhou com desconfiança para Bond, intrigado, tentando descobrir se Bond teria alguma influência junto ao Dr. No. Sua boca abriu-se para dizer algo, mas logo pareceu pensar melhor, e apenas disse de maneira incerta: — Bem, bem, estávamos simplesmente brincando. — Voltou-se para os homens, em busca de confirmação: — Não é?

— Sem dúvida, sem dúvida! — foi a resposta dada por um coro áspero, e os homens desviaram o olhar.

O chefe disse com mau humor: — Por aqui, senhor. — E ele mesmo pôs-se a caminho, percorrendo o comprido galpão.

Bond segurou o pulso da jovem e seguiu o chefe. Estava impressionado com a reação causada naqueles homens pelo nome do Dr. No. Aquilo era alguma coisa a lembrar se eles tivessem que se haver novamente com aquela turma.

O homem chegou a uma porta de madeira situada na extremidade do galpão. Ao lado havia um botão de campainha que ele pressionou duas vezes e esperou. Ouviu-se um estalido e a porta se abriu, mostrando dez metros de uma passagem rochosa, mas atapetada e que ia dar, na outra extremidade, em outra porta mais elegante e pintada de creme.

O homem ficou de lado. Siga em frente, senhor — disse; — bata na porta e será atendido pela recepcionista. — Não havia nenhuma ironia em sua voz e seus olhos se mostravam impassíveis.

Bond conduziu Honey pela passagem. Ouviu que a porta se fechava às suas costas. Deteve-se por um momento e fitou-a, perguntando-lhe: — E agora?

Ela riu, trêmula, mas respondeu: — Ê bom sentir-se tapete sob os pés.

Bond apertou o seu pulso. Andou até a porta pintada de creme e bateu.

A porta abriu-se e Bond entrou com a jovem ao lado. Quando se deteve instantaneamente, não chegou a perceber o encontrão que lhe dava a jovem, pois continuou estarrecido.


XIII - GAIOLA DE OURO


Era a espécie de sala de recepção que as maiores corporações norte-americanas possuem no andar em que se situa o escritório do presidente, em seus arranha-céus de Nova Iorque. Suas proporções eram agradáveis, com cerca de vinte pés quadrados. O chão era todo recoberto pelo mais espesso tapete Wilton cor-de-vinho. O teto e as paredes estavam pintados numa suave tonalidade cinza pombo. Viam-se ainda reproduções litográficas de esboços de balé de Degas penduradas em séries, nas paredes, e a iluminação era feita com altos e modernos jogos de abajures de seda verde-escuro, imitando a forma de elegantes barricas.

À direita de Bond estavam uma larga mesa de mogno, com o tampo recoberto com couro verde, outras peças que se harmonizavam perfeitamente com a mesa, e um caro sistema de intercomunicações. Duas cadeiras altas, de antiquado, aguardavam os visitantes. Do outro lado da sala via-se uma mesa do tipo refeitório, sobre a qual estavam várias revistas com capas em cores vivas e mais duas cadeiras. Tanto na mesa de escritório, como na outra, viam-se vasos de hibiscos. O ar era fresco e impregnado de leve fragrância.

Duas mulheres estavam naquela sala. Por trás da mesa de trabalho, empunhando uma caneta que descansava sobre um formulário impresso, estava sentada uma jovem chinesa, de aspecto eficiente, com óculos de armação de chifre, sob uma franja de cabelos negros cortados curtos. Em seus olhos e em sua boca havia o sorriso padrão de boas-vindas que qualquer recepcionista exibe — a um tempo claro, obsequioso e inquisitivo.

Ainda com a mão na maçaneta da porta pela qual eles tinham passado, e esperando que os recém-chegados se adiantassem mais, a fim de que ela a pudesse fechar, estava uma mulher mais velha, com aspecto de matrona, e que deveria ter cerca de quarenta e cinco anos. Era fácil ver-se que também tinha sangue chinês. Sua aparência, saudável, de farto busto, era viva e quase excessivamente graciosa. O seu “pince-nez” de lentes cortadas em quadrado brilhava com o desejo da recepcionista de os pôr à vontade.

Ambas as mulheres vestiam roupas imaculadamente alvas, com meias brancas e sapatos de camurça branca como costumam apresentar-se as auxiliares empregadas nos mais luxuosos salões de beleza norte-americanos. Havia um que de suave e pálido em suas peles, como se elas raramente saíssem para o ar-livre.

Bond observou o ambiente, enquanto a mulher junto à porta lhe dizia frases convencionais de boas-vindas, como se eles tivessem sido colhidos por uma tempestade o chegado com atraso a uma festa.

— Oh, coitados! Nós não sabíamos quando vocês iriam chegar. A todo momento nos diziam que vocês já estavam a caminho... primeiro à hora do chá, ontem, depois na hora do jantar, e apenas há uma hora fomos informadas de que vocês chegariam à hora do desjejum. Devem estar com fome. Venham aqui e ajudem a irmã Rosa a preencher o formulário; depois eu os prepararei para a cama. Devem estar muito cansados.

Ia dizendo aquilo com voz doce e cacarejante, ao mesmo tempo que fechava a porta e os levava para junto da mesa e os fazia sentar nas cadeiras. Depois disse: — Bem, eu sou a irmã Lírio, e esta é a irmã Rosa. Ela irá fazer-lhes apenas algumas perguntas. Agora, aceitam um cigarro? — e pegou uma caixa de couro trabalhado que estava em cima da mesa. Abriu-a e pô-la diante deles. A caixa tinha três divisões, e a chinesinha explicou apontando com um dedo: “Esses são americanos, esses são ingleses e esses turcos.” Ela apanhou um luxuoso isqueiro de mesa e esperou.

Bond estendeu as mãos algemadas para tirar um cigarro turco.

A irmã Lírio deu um gritinho de espanto: — Oh, mas francamente. — Parecia sinceramente embaraçada. — Irmã Rosa, dê-me a chave, depressa. Já disse por várias vezes que os pacientes não devem ser trazidos dessa maneira. — Havia impaciência e aborrecimento em sua voz. — Francamente, aquela gente lá de fora! Já era tempo que eles fossem chamados à ordem.

A irmã Rosa estava tão embaraçada quanto a irmã Lírio. Rapidamente remexeu dentro de uma gaveta e entregou uma chave à irmã Lírio, que com muitas desculpas e cheia de dedos abriu os dois pares de algemas e, afastando-se para trás da mesa, deixou aquelas duas pulseiras de aço caírem dentro da cesta de papéis como se fossem ataduras sujas.

— Obrigado, — disse Bond, que não sabia como enfrentar aquela situação, a não ser procurando desempenhar um papel qualquer na comédia que se estava representando. Ele estendeu o braço, apanhou um cigarro e acendeu-o. Lançou um olhar para Honeyehile Rider, que parecia estonteada e nervosamente apertava com as mãos os braços de sua cadeira. Bond dirigiu-lhe um sorriso de conforto.

— Agora, por favor; — disse a irmã Rosa e inclinou-se sobre um comprido formulário impresso em papel caro. — Prometo ser o mais rápida que puder. O seu nome, sr... sr...

— Bryce, John Bryce.

Ela escreveu a resposta com grande concentração. — Endereço permanente?

— Aos cuidados do Jardim Zoológico Real, Regents Park, Londres, Inglaterra.

— Profissão?

— Ornitologista.

— Oh, meu Deus!, poderia o senhor soletrar isso? Bond atendeu-a.

— Muito obrigada. Agora, vejamos, objeto da viagem?

— Aves — respondeu Bond. — Sou também representante da Sociedade Audubon de Nova Iorque. Eles arrendaram parte desta ilha.

— Oh, sem dúvida. — Bond observou que a pena escrevia exatamente o que ele dizia. Depois da última palavra ela pôs um claro ponto de interrogação entre parênteses.

— E — a irmã Rosa sorriu polidamente em direção a Honeyehile — a sua esposa? Ela também está interessada em pássaros?

— Sim, sem dúvida.

— O seu primeiro nome?

— Honeyehile.

A irmã Rosa estava encantada. — Que nome lindo! — Ela voltou a escrever apressadamente. — E agora os parentes mais próximos de ambos, e estará tudo acabado.

Bond deu o verdadeiro nome de M como o parente mais próximo de ambos. Apresentou-o como “tio” e indicou o seu endereço como sendo “Diretor-Gerente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres.”

A irmã Rosa acabou de escrever e disse: — Pronto, está tudo feito. Muito obrigada, sr. Bryce, e espero que ambos apreciem a permanência aqui.

— Muito obrigado. Estou certo de que apreciaremos. — Bond levantou-se e Honeyehile fez o mesmo, ainda com expressão vazia.

A irmã Lírio disse: — Agora, venham comigo, queridos.

— Ela caminhou até uma porta na parede distante e deteve-se com a mão na maçaneta talhada em vidro. — Oh, meu Deus, — disse —, não é que agora me esqueci do número de seus quartos? É o apartamento creme, não é, irmã?

— Isso mesmo. Catorze e quinze.

— Obrigada, querida. E agora — ela abriu a porta — se vocês quiserem me seguir... Receio que seja uma caminhada um pouco longa. — Fechou a porta, por trás deles, e pôs-se à frente, indicando o caminho. — O Doutor tem falado várias vezes em instalar uma dessas escadas rolantes, ou algo de parecido, mas sabem como são os homens ocupados: — Ela riu alegremente. — Ele tem tantas outras coisas em que pensar!

— Sim, acredito, — disse Bond polidamente.

Bond tomou a mão da jovem e seguiram ambos a maternal e agitada chinesa através de cem metros de um alto corredor, do mesmo estilo da sala de recepção, mas que era iluminado a freqüentes intervalos por caros tubos luminosos fixados às paredes.

Bond respondia com polidos monossílabos aos comentários ocasionais que a irmã Lírio lhe lançava por sobre os ombros. Toda a sua mente se concentrava nas extraordinárias circunstâncias de sua recepção. Tinha certeza de que aquelas duas mulheres tinham sido sinceras. Nenhum só olhar ou palavra conseguira registrar que estivesse fora de propósito. Evidentemente aquilo era alguma espécie de fachada, mas de qualquer forma uma fachada sólida, meticulosamente apoiada pelo cenário e pelo elenco. A ausência de ressonância, na sala, e agora no corredor, estava a indicar que eles tinham deixado o galpão pré-fabricado para se internarem no flanco da montanha e agora estavam atravessando a sua base. Segundo o seu palpite estavam mesmo andando em direção oeste — em direção à penedia na qual terminava a ilha. Não havia umidade nas paredes e o ar parecia fresco e puro, com uma brisa a afagá-los. Muito dinheiro e uma bela realização de engenharia tinham sido os responsáveis por aquilo. A palidez das duas mulheres estava a sugerir que passavam a maior parte do tempo internadas no âmago da montanha. Do que a irmã dissera, parecia que elas faziam parte de um grupo de funcionários internos que nada tinham a ver com o destacamento de choque do exterior, e que talvez não soubessem a espécie de homens que eles eram.

Aquilo era grotesco, concluiu Bond ao se aproximar de uma porta, na extremidade do corredor, perigosamente grotesco, mas em nada adiantava pensar nisso no momento. Ele apenas podia seguir o papel que lhe tinha sido destinado. Pelo menos, aquilo era melhor do que os bastidores, na arena exterior da ilha.

Junto à porta, a irmã Lírio fez soar uma campainha. Já eram esperados e a porta abriu-se imediatamente. Uma encantadora jovem chinesa, de quimono lilás e branco, ficou a sorrir e a curvar-se, como se deve esperar que o façam as jovens chinesas. E, mais uma vez só havia calor e um sentimento de boas-vindas naquele rosto pálido como uma for. A irmã Lírio exclamou: — Aqui estão eles, finalmente, May! São o senhor e a senhora John Bryce. E sei que ambos devem estar exaustos, por isso devemos levá-los imediatamente aos seus aposentos, para que possam repousar e dormir. — Voltando-se para Bond: — Esta é May, muito boazinha. Ela tratará de ambos. Qualquer coisa que queiram é só tocar a campainha que May atenderá. É uma espécie de favorita de todos os nossos hóspedes.

Hóspedes!, pensou Bond. Essa é a segunda vez que ela usa a palavra. Sorriu polidamente para a jovem, e disse;

— Muito prazer; sim, certamente que gostaríamos de ir para os nossos aposentos.

May envolveu-os num cálido sorriso, e disse em voz baixa e atraente: — Espero que ambos se sintam bem, sr. Bryce. Tomei a liberdade de mandar vir uma refeição assim que soube que os senhores iam chegar. Vamos...? — Corredores saiam para a esquerda e a direita de portas duplas de elevadores, instalados na parede oposta. A jovem adiantou-se, caminhando na frente, para a direita, logo seguida de Bond e Honeyehile, que tinham atrás a irmã Lírio.

Ao longo do corredor, dos dois lados, viam-se portas numeradas. A decoração era feita no mais pálido cor-de-rosa, com um tapete cinza-pombo. Os números nas portas eram superiores a dez. O corredor terminava abruptamente, com duas portas, uma em frente a outra, com a numeração catorze e quinze. A irmã May abriu a porta catorze e o casal a seguiu, entrando na peça.

Era um lindo quarto de casal, em moderno estilo Mia-mi, com paredes verde-escuro, chão encerado de mogno escuro, com um ou outro espesso tapete branco e bem desenhado mobiliário de bambu com um tecido “chintz” de grandes rosas vermelhas sobre fundo branco. Havia uma porta de comunicação para um quarto de vestir masculino e outra que dava para um banheiro moderno e extremamente luxuoso, com uma banheira de descida e um bidê.

Era como se tivessem sido introduzidos num apartamento do mais moderno hotel da Flórida, com exceção de dois detalhes que não passaram despercebidos a Bond. Não havia janelas e nenhuma maçaneta interior nas portas.

May olhou com expressão de expectativa, de um para o outro.

Bond voltou-se para Honeyehile e sorriu-lhe: — Parece muito confortável, não acha, querida?

A jovem brincava com a barra da saia e fez um sinal de assentimento sem olhar para Bond.

Ouviu-se uma tímida batida na porta e outra jovem, tão linda quanto May, entrou carregando uma bandeja que se equilibrava sobre as palmas das mãos. A jovem descansou a bandeja sobre a mesa do centro e puxou duas cadeiras. Retirou a toalha de linho imaculadamente limpa e saiu. Sentiu-se um delicioso cheiro de fiambre e café.

May e a irmã Lírio também se encaminharam para a porta. A mulher mais idosa se deteve por um instante e disse:

— E agora nós os deixaremos em paz. Se desejarem alguma coisa, basta tocar a campainha. Os interruptores estão ao lado da cama. Ah, outra coisa, poderão encontrar roupa limpa nos aparadores. Receio que sejam apenas de estilo chinês,

— acrescentou, como a desculpar-se —, mas espero que os tamanhos satisfaçam. A rouparia só recebeu as medidas ontem à noite. O Dr. deu ordens severas para que os senhores não fossem perturbados. Ficará encantado se puderem reunir-se a ele, esta noite, para o jantar. Deseja, entretanto, que tenham todo o resto do dia à vontade, a fim de que melhor se ambientem, compreendem? — Fez uma pausa e olhou para um e para outro, com um sorriso indagador. — Posso dizer que os senhores...?

— Sim, por favor, — disse Bond. — Pode dizer ao D., que teremos muito prazer em jantar com ele.

— Oh, sei que ficará contente. — Com uma derradeira mesura, as duas chinesas se retiraram e fecharam a porta.

Bond voltou-se para Honeyehile, que parecia embaraçada e ainda evitava os seus olhos. Ocorreu então a Bond que talvez jamais tivesse ela tido um tratamento tão cortês ou visto tanto luxo em sua vida. Para ela, tudo aquilo devia ser muito mais estranho e aterrador do que o que tinham passado ao lado de fora. Ela continuou na mesma posição, brincando com a barra da saia. Podiam-se notar vestígios de suor seco, sal e poeira em seu rosto. Suas pernas nuas estavam sujas e Bond observou que os dedos de seus pés se moviam, suavemente, ao pisarem nervosamente o maravilhoso e espesso tapete.

Bond riu. Riu com gosto ao pensamento de que os temores da jovem tivessem sido abafados pelas preocupações de etiqueta e comportamento, e riu-se também da figura que ambos faziam — ela em farrapos e ele com a suja camisa azul, as calças pretas e os sapatos de lona enlameados.

Aproximou-se dela e segurou-lhe mãos. Estavam frias. Disse: — Honey, somos um par de espantalhos, mas há apenas um problema básico. Devemos tomar o nosso desjejum primeiro, enquanto está quente, ou tiraremos antes esses farrapos e tomaremos um banho, tomando a nossa refeição fria? Não se preocupe com mais nada. Estamos aqui nessa maravilhosa casinha e isto é tudo o que importa. O que faremos, então?

Ela sorriu hesitante. Seus olhos azuis fixavam-se no rosto dele, na ânsia de obter segurança. Depois disse: — Você não está preocupado com o que nos possa acontecer? — Fez um sinal para o quarto e acrescentou: — Não acha que tudo isso pode ser uma armadilha?

— Se se trata de uma armadilha, já caímos nela. Agora nada mais podemos fazer senão comer a isca. A única questão que subsiste é a de saber se a comeremos quente ou fria. — Apertou-lhe as mãos e continuou: — Seriamente, Honey. Deixe as preocupações comigo. Pense apenas onde estávamos apenas há uma hora. Isso aqui não é melhor? Agora, decidamos a única coisa realmente importante. Banho ou desjejum?

Ela respondeu com relutância: — Bem, se você acha... Quero dizer — preferiria antes lavar-me. — Mas logo acrescentou: — Você terá que ajudar-me. — E sacudiu a cabeça em direção ao banheiro, dizendo: Não sei como mexer numa coisa dessas. Como é que se faz?

Bond respondeu com toda seriedade: — É muito fácil. Vou preparar tudo para você. Enquanto você estivar tomando o seu banho tomarei o meu desjejum. Ao mesmo tempo tratarei de fazer com que o seu não esfrie.

Bond aproximou-se de um dos armários embutidos e abriu a porta. No interior havia uma meia dúzia de quimonos, alguns de seda e outros de linho. Apanhou um de linho, ao acaso. Depois, voltando-se para ela, disse: — Tire suas roupas e meta-se nisso aqui, enquanto preparo o seu banho. Mais tarde você escolherá as coisas que preferir, para a cama e para o jantar.

Ela respondeu com gratidão: — Oh, sim, James. Se você apenas me mostrasse... — E logo começou a desabotoar a saia.

Bond pensou em tomá-la nos braços e beijá-la, mas, ao invés disso, disse abruptamente: — ótimo, Honey — e, adiantando-se para o banheiro, abriu as torneiras.

Havia de tudo naquele banheiro: essência para banhos Floris Lime, para homens, e pastilhas de Guarlain para o banho de senhoras. Esfarelou uma pastilha na água e imediatamente o banheiro perfumou-se como uma loja de orquídeas. O sabonete era o Sapoceti de Guarlain “Fleurs des Alpes”. Num pequeno armário de remédios, atrás de um espelho, em cima da pia, podiam-se encontrar tubos de pasta, escovas de dente e palitos “Steradent”, água “Rose” para lavagem bucal, aspirina e leite de magnésia. Havia também um aparelho de barbear elétrico, loção “Lentheric” para barba, e duas escovas de náilon para cabelos e pentes. Tudo era novo e ainda não tinha sido tocado.

Bond olhou para o seu rosto sujo e sem barbear, no espelho, e riu sardonicamente para os próprios olhos, cinzentos, de pária queimado pelo sol. O revestimento da pílula certamente que era do melhor açúcar. Seria inteligente esperar que o remédio, no interior daquela pílula, fosse dos mais amargos.

Tocou a água, com a mão, a fim de sentir a temperatura. Talvez estivesse muito quente para quem jamais tinha tomado antes um banho quente. Deixou então que corresse um pouco mais de água fria. Ao inclinar-se, sentiu que dois braços lhe eram passados em torno do pescoço. Endireitou-se. Aquele corpo dourado resplandecia no banheiro todo revestido de ladrilhos brancos. Ela beijou-o impetuosamente nos lábios. Ele passou-lhe os braços à volta da cintura e esmagou-a de encontro a seu corpo, com o coração aos pulos. Ela disse sem fôlego, ao seu ouvido: — Achei estranhas as roupas chinesas, mas de qualquer maneira você disse à mulher que nós éramos casados.

Uma das mãos de Bond estava pousada sobre o seu seio esquerdo, cujo mamilo estava completamente endurecido pela paixão. O ventre da jovem se comprimia contra o seu. Por que não? Por que não? Não seja tolo! Este é um momento louco para isso. Vocês dois estão diante de um perigo mortal. Você deve continuar frio como gelo, para ter alguma possibilidade de se livrar dessa enrascada. Mais tarde! Mais tarde! Não seja fraco.

Bond retirou a mão do seio dela e espalmou-a à volta de seu pescoço. Esfregou o rosto de encontro ao dela e depois aproximou a boca da boca da jovem e deu-lhe um prolongado beijo.

Afastou-se depois e manteve-a à distância de um braço. Por um momento ambos se olharam, com os olhos brilhando de desejo. Ela respirava ofegantemente, com os lábios entreabertos, de modo que ele podia ver-lhe o brilho dos dentes. Ele disse com a voz trêmula: — Honey, entre no banho antes que eu lhe dê uma surra.

Ela sorriu e sem nada dizer entrou na banheira e deitou-se em todo seu comprimento. Do fundo da banheira ergueu os olhos para ele. Os cabelos louros, em seu corpo, brilhavam como moedas de ouro. Ela disse provocadoramente: — Você tem que me esfregar. Não sei como devo fazer, e você terá que mostrar-me.

Bond respondeu desesperadamente: — Cale a boca, Honey, e deixe de namoros. Apanhe a esponja, o sabonete e comece logo a se esfregar. Que diabo! Isso não é o momento de se fazer amor. Vou tomar o meu desjejum. — Esticou a mão para a porta e segurou na maçaneta. Ela disse docemente: — James! — Ele olhou para trás e viu que ela lhe fazia uma careta, com a língua de fora. Retribuiu com uma careta selvagem e bateu a porta com força.

Em seguida, Bond dirigiu-se para o quarto de vestir e deixou-se ficar durante algum tempo, de pé, no centro da peça, esperando que as batidas de seu coração se acalmassem. Esfregou as mãos no rosto e sacudiu a cabeça, procurando esquecê-la.

Para clarear a mente, percorreu ainda cuidadosamente as duas peças, procurando saídas, possíveis armas, microfones, qualquer coisa enfim que lhe aumentasse o conhecimento da situação em que se achava. Nada disso, entretanto, pôde encontrar. Na parede havia um relógio elétrico que marcava oito e meia e uma série de botões de campainhas, ao lado da cama de casal. Esses botões traziam a indicação de “Sala de serviço”, “cabeleireiro”, “manicure”, “empregada”. Não havia telefone. Bem no alto, a um canto de ambas as peças, viam-se as grades de um pequeno ventilador. Cada uma dessas grades era de dois pés quadrados. Tudo inútil. As portas pareciam ser feitas de algum metal leve, pintadas para combinarem com as paredes. Bond jogou todo o peso de seu corpo contra uma delas, mas ela não cedeu um só milímetro. Bond esfregou o ombro. Aquele lugar era uma verdadeira prisão. Não adiantava discutir a situação. A armadilha tinha-se fechado hermèticamente sobre eles. Agora, a única coisa que restava aos ratos era tirarem o melhor proveito possível da isca de queijo.

Bond sentou-se à mesa do desjejum, sobre a qual estava uma grande jarra com suco de abacaxi, metida num pequeno balde de prata cheio de cubos de gelo. Serviu-se rapidamente e levantou a tampa de uma travessa. Ali estavam ovos mexidos sobre torradas, quatro fatias de toucinho defumado, um rim grelhado e o que parecia quatro salsichas inglesas de carne de porco. Havia também duas torradas quentes, pãezinhos conservados quentes dentro de guardanapos, geléia de laranja e morango e mel. O café estava quase fervendo numa grande garrafa térmica, e o creme exalava um odor fresco e agradável.

Do banheiro vinham as notas da canção “Marion” que a jovem estava cantarolando. Bond resolveu não dar ouvidos à cantoria e concentrou-se nos ovos.

Dez minutos depois, Bond ouviu que a porta do banheiro se abria. Descansou uma torrada que tinha numa das mãos e cobriu os olhos com a outra. Ela riu e disse: — Ele é um covarde. Tem medo de uma simples jovem. — Em seguida Bond ouviu-a a remexer nos armários. Ela continuava falando, em parte consigo mesma: — Não sei porque ele está assustado. Naturalmente que se eu lutasse com ele facilmente o dominaria. Talvez esteja com medo disso. Talvez não seja realmente muito forte, embora seus braços e peito pareçam bastante rijos. Contudo, ainda não vi o resto. Talvez seja fraco. Sim, deve ser isso. Essa é a razão pela qual não ousa despir-se na minha frente. Hum, agora vamos ver, será que ele gostaria de mim com essas roupas? — Ela elevou a voz: — Querido James, você gostaria de me ver de branco, com pássaros azul-pálido esvoaçando sobre o meu corpo?

— Sim, bolas! Agora acabe com essa conversa e venha comer. Estou começando a sentir sono.

Ela soltou uma exclamação: — Oh, se você quer dizer que já está na hora de irmos para a cama, naturalmente que me apressarei.

Ouviu-se uma agitação de passos apressados e Bond logo a via sentar-se diante de si. Ele deixou cair as mãos e ela sorriu-lhe. Estava linda. Seu cabelo estava escovado e penteado de um dos lados caindo sobre o rosto, e do outro com as madeixas puxadas para trás da orelha. Sua pele brilhava de frescura e os grandes olhos azuis resplandeciam de felicidade. Agora Bond estava gostando daquele nariz quebrado. Tinha-se tornado parte de seus pensamentos relativamente a ela, e subitamente lhe ocorreu perguntar-se por que estaria ele triste quando ela era tão imaculadamente bela quanto tantas outras lindas jovens. Sentou-se circunspectamente, com as mãos no colo, e a metade dos seios aparecendo na abertura do quimono.

Bond disse severamente: — Agora, ouça, Honey. Você está maravilhosa, mas esta não é a maneira de usar-se um quimono. Feche-o no corpo, prenda-o bem e deixe de tentar parecer uma prostituta. Isso simplesmente não são bons modos à mesa.

— Oh, você não passa de um boneco idiota. — E ajeitou o quimono, fechando-o um pouco, em uma ou duas polegadas. — Por que você não gosta de brincar? Gostaria de brincar de estar casada.

— Não à hora do desjejum — respondeu Bond com firmeza. — Vamos, coma logo. Está delicioso. De qualquer maneira estou muito sujo, e agora vou fazer a barba e tomar um banho. — Levantou-se, deu volta à mesa e beijou-lhe o alto da cabeça. — E quanto a essa história de brincar, como você diz, gostaria mais de brincar com você do que com qualquer outra pessoa do mundo. Mas não agora. — Sem esperar pela resposta, dirigiu-se ao banheiro e fechou a porta.

Bond barbeou-se e tomou um banho de chuveiro. Sentia-se desesperadamente sonolento. O sono chegava-lhe, de modo que de quando em quando tinha que interromper o que fazia e inclinar a cabeça, repousando-a entre os joelhos. Quando começou a escovar os dentes, o seu estado era tal que mal podia fazê-lo. Estava começando a reconhecer os sintomas. Tinha sido narcotizado. A coisa teria sido posta no suco de abacaxi ou no café? Este era um detalhe sem importância. Aliás, nada tinha importância. Tudo o que queria fazer era estender-se naquele chão de ladrilhos e fechar os olhos. Assim mesmo, dirigiu-se cambaleante para a porta, esquecendo-se de que estava nu. Isso também pouca importância tinha. A jovem já tinha terminado a refeição e agora estava na cama. Continuou trôpego, até ela, segurando-se nos móveis. O quimono tinha sido abandonado no chão e ela dormia pesadamente, completamente nua, sob um simples lençol.

Bond olhou para o travesseiro, ao lado da jovem. Não! Procurou o interruptor e apagou as luzes. Agora teve que se arrastar pelo chão até chegar ao seu quarto. Chegou até junto de sua cama e atirou-se nela. Com grande esforço conseguiu ainda esticar o braço, tocar o interruptor e tentar apagar a lâmpada do criado-mudo. Mas não o conseguiu: sua mão deslizou, atirou o abajur ao chão e a lâmpada espatifou-se. Com um derradeiro esforço, Bond virou-se ainda no leito e adormeceu profundamente.

Os números luminosos do relógio elétrico, no quarto de casal, anunciavam nove e meia.

Às dez horas, a porta do quarto abriu-se suavemente. Um vulto muito alto e magro destacava-se na luz do corredor. Era um homem. Talvez tivesse dois metros de altura. Permaneceu no limiar da porta, com os braços cruzados, ouvindo. Dando-se por satisfeito, caminhou vagarosamente pelo quarto e aproximou-se da cama. Conhecia perfeitamente o caminho. Curvou-se sobre o leito e ouviu a serena respiração da jovem. Depois de um momento, tocou em seu próprio peito e acionou um interruptor. Imediatamente um amplo feixe de luz difusa projetou-se na cama. O farolete estava preso ao corpo do homem por meio de um cinto que o fixava à altura do esterno.

Inclinou-se novamente para a frente, de modo que a luz clareou o rosto da jovem.

O intruso examinou aquele rosto durante alguns minutos. Uma de suas mãos avançou, apanhou a orla do lençol, à altura do queixo da jovem, e puxou-o lentamente até os pés da cama. Mas a mão que puxara aquele lençol não era u’a mão. Era um par de pinças de aço muito bem articuladas na extremidade de uma espécie de talo metálico que desaparecia dentro de uma manga de seda negra. Era u’a mão mecânica.

O homem contemplou durante longo tempo aquele corpo nu, deslocando o seu peito de um lado para outro, de modo que todo o leito fosse submetido ao feixe luminoso. Depois, a garra saiu novamente de sob aquela manga e delicadamente levantou a ponta do lençol, puxando-o dos pés da cama até recobrir todo o corpo da jovem. O homem demorou-se ainda por um momento a contemplar o rosto adormecido, depois apagou o farolete e atravessou silenciosamente o quarto em direção à porta aberta, além da qual estava Bond dormindo.

O homem demorou-se mais tempo ao lado do leito de Bond. Perscrutou cada linha, cada sombra do rosto moreno e quase cruel que jazia quase sem vida, sobre o travesseiro. Observou a circulação à altura do pescoço e contou-lhe as batidas; depois, quando puxou o lençol para baixo, fez o mesmo na área do coração. Estudou a curva dos músculos, nos braços de Bond e nas coxas, e considerou pensativo a força oculta no ventre musculoso de Bond. Chegou até mesmo a curvar-se sobre a mão direita de Bond, estudando-lhe cuidadosamente as linhas da vida e do destino.

Por fim, com grande cuidado, a pinça de aço puxou novamente o lençol, desta vez para cobrir o corpo de Bond até o pescoço. Por mais um minuto o elevado vulto permaneceu ao lado do homem adormecido, depois se retirou rapidamente, ganhando o corredor, enquanto a porta se fechava com um estalido metálico e seco.


CONTINUA

XI - VIDA NO CANAVIAL


Seriam cerca de oito horas, pensou Bond. A não ser o coaxar dos sapos, tudo estava mergulhado em silêncio. No canto mais distante da clareira, ele podia vislumbrar o vulto de Quarrel.

Podia-se ouvir o tinir metálico, enquanto ele se ocupava em desmontar e secar a sua “Remington”.

Por entre as árvores podiam-se ver também as luzes distantes, vindas do depósito de guano, riscar caminhos luminosos e festivos sobre a superfície escura do lago. O desagradável vento desaparecera e o abominável cenário estava mergulhado em trevas. Estava bastante fresco. As roupas de Bond tinham secado no corpo. A comida tinha aquecido o seu estômago. Ele experimentou uma agradável sensação de conforto, sonolência e paz. O dia seguinte ainda estava muito longe e não apresentava problemas, a não ser uma boa dose de exercício físico. A vida, subitamente, pareceu-lhe fácil e boa.

A jovem estava a seu lado, metida no saco de dormir. Estava deitada de costas, com a cabeça descansando nas mãos, e olhando para o teto de estrelas. Ele apenas conseguia divisar os pálidos contornos de seu rosto. De repente, ela disse: James, você prometeu dizer-me o que significava tudo isso. Vamos. Eu não dormirei enquanto você não o disser.

Bond riu. — Eu direi se você também disser. Também quero saber o que você pretende.

— Pois não, não tenho segredos: mas você deve falar primeiro.

— Está certo. — Bond puxou os joelhos até a altura do queixo e passou os braços à volta deles. — Eu sou uma espécie de policial. Eles me enviam de Londres quando há alguma coisa de estranho acontecendo em alguma parte do mundo e que não interessa a ninguém. Bem, não faz muito tempo, um dos funcionários do Governador, em Kingston, um homem chamado Strangways, aliás meu amigo, desapareceu. Sua secretária, que era uma linda jovem, também desapareceu sem deixar vestígios. Muitos pensaram que eles tivessem fugido juntos, mas eu não acreditei nisso. Eu...”

Bond contou tudo com simplicidade, falando em homens bons e maus, como numa história de aventuras lida em algum livro. Depois terminou: Como você vê, Honey, temos de voltar a Jamaica, amanhã à noite, todos nós, na canoa, e então o Governador nos dará ouvidos e enviará um destacamento de soldados para apanhar este chinês. Espero que isso terá como conseqüência levá-lo à prisão. Ele com certeza também sabe disso, e essa é a razão pela qual procura aniquilar-nos. Essa é a história. Agora é a sua vez.

A jovem disse: Você parece viver uma vida muita excitante. Sua mulher não deve gostar que você fique fora tanto tempo. Ela não tem medo de que você se fira?

— Não sou casado. A única que se preocupa com a possibilidade de que eu me fira é a minha companhia de seguros.

Ela continuou sondando: Mas suponho que você tenha namoradas.

— Não permanentes.

— Oh!

Fez-se uma pausa. Quarrel se aproximou e disse: “Capitão, farei o primeiro quarto, se for melhor. Estarei na extremidade da restinga e virei chamá-lo à meia-noite. Então talvez o senhor possa ir até as cinco horas, quando nós nos poremos em marcha. Precisamos estar fora daqui antes que clareie o dia.

— Está bem — respondeu Bond. — Acorde-me se você vir alguma coisa. O revólver está em ordem?

— Perfeito — respondeu Quarrel com evidente mostra de contentamento. Depois, dirigindo-se à jovem disse com leve tom de insinuação: — Durma bem, senhorita. Em seguida, desapareceu silenciosamente nas sombras.

— Gosto de Quarrel — disse a jovem. E, após uma pausa: — Você quer realmente saber alguma coisa a meu respeito? A história não é tão excitante quanto a sua.

— É claro que quero. E não omita nada.

— Não há nada a omitir. Você poderia escrever toda a história de minha vida nas costas de um cartão postal. Para começar, nunca saí de Jamaica. Vivi toda a minha vida num lugar chamado Beau Desert, na costa setentrional, nas proximidades do Porto Morgan.

Bond riu. — É estranho: posso dizer o mesmo; pelo menos por enquanto. Não notei você pela região. Você vive em cima de uma árvore?

— Ah, imagino que você tenha ficado na casa da praia. Eu nunca chego até ali. Vivo na Casa Grande.

— Mas nada ficou dela. É uma ruína no meio dos canaviais.

— Eu vivo na adega. Tenho vivido ali desde a idade de cinco anos. Depois a casa se incendiou e meus pais morreram. Nada me lembro deles, por isso você não precisa manifestar pesar. A princípio vivi ali com a minha ama negra, mas depois ela morreu, quando eu tinha apenas quinze anos. Nos últimos cinco anos tenho vivido ali sozinha.

— Nossa Senhora! — Bond estava boquiaberto. — Mas não havia ninguém para tomar conta de você? Os seus pais não deixaram nenhum dinheiro?

— Nem um tostão. — Não havia o mínimo traço de amargura na voz da jovem — talvez orgulho, se houvesse alguma coisa. — Você sabe, os Riders eram uma das mais antigas famílias de Jamaica. O primeiro Rider recebera de Cromwell as terras de Beau Desert, por ter sido um dos que assinaram o veredicto de morte contra o rei Carlos. Ele construiu a Casa Grande e minha família viveu ora nela ora fora dela, desde aquela época. Mas depois veio a decadência do açúcar e eu acho que a propriedade foi pessimamente administrada, e, ao tempo em que meu pai tomou conta da herança, havia somente dívidas — hipotecas e outros ônus. Assim, quando meu pai e minha mãe morreram a propriedade foi vendida. Eu pouco me importei, pois era muito jovem. Minha ama deve ter sido maravilhosa. Quiseram que alguém me adotasse, mas a minha babá reuniu os pedaços de mobília que não tinham sido queimados e com eles nós nos instalamos da melhor forma no meio daquelas ruínas. Depois de algum tempo ninguém mais veio interferir conosco. Ela cosia um pouco e lavava para algumas freguesas da aldeia, ao mesmo tempo que plantava bananas e outras coisas, sem falar do grande pé de fruta-pão que havia diante da casa. Comíamos o que era a ração habitual do povo de Jamaica. E havia os pés de cana-de-açúcar à nossa volta. Ela fizera também uma rede para apanhar peixes, a qual nós recolhíamos todos os dias. Tudo corria bem e nós tínhamos o suficiente para comer. Ela ensinou-me a ler e escrever, como pôde. Tínhamos uma pilha de velhos livros que escapara ao incêndio, inclusive uma enciclopédia. Comecei com o A quando tinha apenas oito anos, e cheguei até o meio do T. — Ela disse um tanto na defensiva: — Aposto que sei mais do que você sobre muitas coisas.

— Estou certo de que sim. — Bond estava perdido na visão daquela jovem de cabelos de linho errando pelas ruínas de uma grande construção, com uma obstinada negra a vigiá-la e a chamá-la para receber as lições que deveriam ter sido um mistério para ela mesma. — Sua ama deve ter sido uma criatura extraordinária.

— Ela era um amor. — Era uma afirmação peremptória. — Pensei que fosse morrer quando ela faleceu. As coisas não foram tão fáceis para mim depois disso. Antes eu levava uma vida de criança, mas subitamente tive que crescer e fazer tudo por mim mesma. E os homens tentaram apanhar-me e atingir-me. Diziam que queriam fazer amor comigo. — Fez uma pausa e acrescentou: — Eu era bonita naquela época. Bond disse muito sério:

— Você é uma das jovens mais belas que já vi.

— Com este nariz? Não seja tolo.

— Você não compreende. — Bond tentou encontrar palavras nas quais ela pudesse crer. — É claro que qualquer pessoa pode ver que o seu nariz está quebrado; mas desde esta manhã dificilmente eu pude notá-lo. Quando se olha para uma pessoa, olha-se para os seus olhos ou para a sua boca. Nesses dois pontos se encontram a expressão. Um nariz quebrado não tem maior significação do que uma orelha torta. Narizes e orelhas são peças do mobiliário facial. Algumas são mais bonitas do que outras, mas não são tão importantes quanto o resto. Se você tivesse um nariz bonito, tão bonito como o resto, você seria a jovem mais bela de Jamaica.

— Você é sincero? — Sua voz era ansiosa. — Você acha que eu poderia ser bela? Sei que muita coisa em mim está bem, mas quando olho no espelho só vejo o meu nariz quebrado. Estou certa de que o mesmo ocorre com outras pessoas que são, que são — bem — mais ou menos aleijadas.

Bond disse com impaciência: — Você não é aleijada! Não diga tolices. E aliás você pode endireitá-lo mediante uma simples operação. Basta que você vá aos Estados Unidos e a coisa levará apenas uma semana.

Ela disse com irritação: — Como é que você quer que eu faça isso? Tenho cerca de quinze libras debaixo de uma pedra, na minha adega. Tenho ainda três saias, três blusas, uma faca e uma panela de peixe. Conheço muito bem essas operações. O médico de Porto Maria já pediu informações para mim. Ele é um homem muito bom e escreveu para os Estados Unidos. Pois para que a operação seja bem feita, eu teria que gastar cerca de quinhentas libras, sem falar da passagem para Nova York, a conta do hospital e tudo o mais.

Sua voz tornou-se desesperançada: — Como é que você espera que eu possa ter todo esse dinheiro?

Bond já decidira sobre o que teria de ser feito, mas no momento apenas disse ternamente: — Bem, espero que se possam encontrar meios; mas, de qualquer maneira, prossiga com a sua história. Ela é muito excitante — muito mais interessante do que a minha. Você tinha chegado ao ponto em que a sua ama morreu. O que aconteceu depois?

A jovem recomeçou com relutância.

— Bem, a culpa é sua por ter interrompido. E você não deve falar de coisas que não compreende. Suponho que as pessoas lhe digam que você é simpático. Você deve também ter todas as namoradas que desejar. Bem, isso não aconteceria se você fosse vesgo ou tivesse um lábio leporino. — Na verdade, ele pôde ouvir o sorriso em sua voz: — Acho que quando voltarmos eu irei ter com o feiticeiro para que lhe faça uma mandinga e lhe dê alguma coisa assim. — E ela acrescentou tristemente: — Dessa forma, nós seremos mais parecidos.

Bond estendeu o braço e sua mão tocou nela: — Eu tenho outros planos. Mas continuemos, quero ouvir o resto da sua história.

— Bem, — disse a jovem com um suspiro. — Eu terei que me atrasar um pouco. Como você sabe, toda a propriedade é representada pela cana-de-açúcar e pela velha casa que está situada no meio da plantação. Bem, umas duas vezes por ano eles cortam a cana e mandam-na para o moinho. E quando eles o fazem, todos os animais e insetos que vivem nos canaviais entram em pânico e a maioria deles têm as suas tocas destruídas e são mortos. Na época da safra, alguns deles começaram a vir para as ruínas da casa, onde se escondiam. No princípio, minha babá ficava aterrorizada, pois lá vinham os mangustos, as cobras e os escorpiões, mas eu preparei dois quartos da adega para recebê-los. Não me assustei com eles, e eles nunca me fizeram mal. Pareciam compreender que eu estava cuidando deles. E devem ter contado aquilo aos seus amigos, ou alguma coisa parecida, pois depois de algum tempo era perfeitamente natural que todos viessem acantonar-se em seus dois quartos, onde ficavam até que os canaviais começassem novamente a crescer, quando então iam saindo e voltando para os campos. Dei-lhes toda a comida que podíamos pôr de lado, quando eles ficavam conosco, e todos se portavam muito bem, a não ser por algum odor e às vezes uma ou outra luta entre si. Mas eram muito mansos comigo. Naturalmente os cortadores de cana perceberam tudo e viam-me andando pelo lugar com cobras à volta do meu pescoço, e assim por diante, a ponto de ficarem aterrorizados comigo e me considerarem uma feiticeira. Por causa disso, eles nos deixaram completamente isoladas. Ela fez uma pausa, e depois recomeçou:

— Foi assim que aprendi tanta coisa sobre animais e insetos. Eu costumava ainda passar muito tempo no mar, aprendendo coisas sobre os animais marinhos, assim como sobre os pássaros. Se se chega a saber o que todas essas criaturas gostam de comer e do que têm medo, pode-se muito bem fazer amizade com elas. — Levantou os olhos para Bond e disse: Você não sabe o que perde ignorando todas essas coisas.

— Receio que perca muito — respondeu Bond com sinceridade. — Suponho que eles sejam muito melhores e mais interessantes que os homens.

Sobre isso nada sei — respondeu a jovem pensativa-mente. — Não conheço muitas pessoas. A maioria das que conheci foram detestáveis, mas acho que deve haver criaturas interessantes também. — Fez uma pausa, e prosseguiu: — Nunca pensei realmente que chegasse a gostar de alguma pessoa como gosto dos animais. Com exceção da babá, naturalmente. Até que... — Ela se interrompeu com um sorriso de timidez. — Bem, de qualquer forma, nós vivemos muito felizes juntas, até que eu fiz quinze anos, quando então a babá morreu e as coisas se tornaram muito difíceis. Havia um homem chamado Mander. Um homem horroroso. Era o capataz branco que servia aos proprietários da plantação. Ele vivia me procurando. Queria que eu fosse viver com ele, em sua casa de Porto Maria.

Eu o odiava, e costumava esconder-me sempre que ouvia o seu cavalo aproximando-se do canavial. Certa noite ele veio a pé e eu não o ouvi. Estava bêbado. Entrou na adega e lutou comigo porque não queria fazer o que ele desejava. Você sabe, as coisas que fazem as pessoas quando estão apaixonadas.

— Sim, já sei.

— Tentei matá-lo com a minha faca, mas ele era muito forte e deu-me um soco tão forte no rosto que me quebrou o nariz. Deixou-me inconsciente e acho que fez alguma coisa comigo. Sei que ele fez mesmo. No dia seguinte eu quis me matar quando vi o meu rosto e verifiquei o que ele me havia feito. Pensei que iria ter um filho. Teria sem dúvida me matado se tivesse tido um filho daquele homem. Em todo caso, não tive, e tudo continuou assim. Fui ao médico e ele fez o que pôde com o meu nariz e não me cobrou nada. Quanto ao resto, eu nada lhe contei, pois estava muito envergonhada. O homem não voltou mais. Eu esperei e nada fiz até a próxima colheita de cana-de-açúcar. Tinha um plano. Estava esperando que as aranhas viúvas-negras viessem procurar abrigo. Um belo dia elas chegaram. Apanhei a maior das fêmeas e á deixei numa caixa sem nada para comer. As fêmeas são terríveis. Então esperei que fizesse uma noite escura, sem luar. Na primeira noite dessas, apanhei a caixa com a aranha e caminhei até chegar à casa do homem. Estava muito escuro e eu me sentia aterrorizada com a possibilidade de encontrar algum assaltante pela estrada, mas não houve nada. Esperei em seu jardim, oculta entre os arbustos, até que ele se recolheu à cama. Então subi por uma árvore e ganhei a sacada; aguardei até que ele começasse a roncar e depois entrei pela janela. Ele estava nu, estendido na cama, sob o mosquiteiro. Levantei uma aba do filó, abri a caixa e sacudi-lhe a aranha sobre o ventre. Depois saí e voltei para casa.

— Deus do céu! — exclamou Bond reverentemente. — O que aconteceu com o homem?

Ela respondeu com satisfação: — Levou uma semana para morrer. Deve ter-lhe doído terrivelmente. Você sabe, a mordida dessa aranha é pavorosa. Os feiticeiros dizem que não há nada que se lhe compare. — Ela fez uma pausa, e como Bond não fizesse nenhum comentário, acrescentou: — Você não acha que eu fiz mal, não é?

— Bem, não faça disso um hábito — respondeu Bond suavemente. — Mas não posso culpá-la, diante do que ele tinha feito. E, depois, o que aconteceu?

— Bem, depois me estabeleci novamente — sua voz era firme. — Tive que me concentrar na tarefa de obter alimento suficiente, e naturalmente. — Acrescentou persuasivamente: — Eu tinha de fato um nariz muito bonito, antes. Você acha que os médicos podem torná-lo igualzinho ao que era antes?

— Eles poderão fazê-lo de qualquer forma que você quiser — disse Bond em tom definitivo. — Como é que você ganhou dinheiro?

— Foi graças à enciclopédia. Li nela que há pessoas que gostam de colecionar conchas marinhas e que as conchas raras podiam ser vendidas. Falei com o mestre-escola local, sem contar-lhe naturalmente o meu segredo, e ele descobriu para mim que havia uma revista norte-americana chamada “Nautilus”, dedicada aos colecionadores de conchas. Eu tinha apenas o dinheiro suficiente para tomar uma assinatura daquela revista e comecei a procurar as conchas que as pessoas pediam em seus anúncios. Escrevi a um comerciante de Miami e ele começou a comprar as minhas conchas. Foi emocionante. Naturalmente que cometi alguns erros, no princípio. Pensei, por exemplo, que as pessoas gostariam das conchas mais bonitas, mas esse não era o caso. Freqüentemente elas preferiam as conchas mais feias. Depois, quando achava conchas raras, punha-me a limpá-las e poli-las a fim de torná-las mais bonitas, mas isso também foi um erro. Os colecionadores querem as conchas exatamente como saem do mar, com o animal em seu interior também. Então consegui algum formol com o médico e o punha entre as conchas vivas, para que elas não tivessem mau cheiro, e depois mandava-as para o tal comerciante de Miami. Só aprendi bem o negócio de um ano para cá e já consegui quinze libras. Consegui esse resultado agora que sei como é que eles querem as conchas e se tivesse sorte, poderia fazer pelo menos cinqüenta libras por ano. Então, em dez anos poderia ir aos Estados Unidos e operar-me. Mas, continuou ela com intenso contentamento, tive uma notável maré de sorte. Fui a Crab Key pelo Natal, onde já tinha estado antes. Mas dessa vez eu encontrei essas conchas purpúreas. Não parecem grande coisa, mas eu enviei uma ou duas para Miami e o comerciante escreveu-me para dizer que compraria tantas dessas conchas quantas eu pudesse encontrar, e ao preço de até cinco dólares pelas perfeitas. Disse-me ainda que eu deveria manter segredo sobre o lugar de onde as tirava, pois de outra forma o “mercado seria estragado”, como disse ele, e os preços cairiam. É como se se tivesse uma mina de ouro particular. Agora serei capaz de juntar o dinheiro em cinco anos. Esse foi o motivo pelo qual tive grandes suspeitas de você, quando o encontrei na praia. Pensei que você tivesse vindo para roubar as minhas conchas.

— Você me deu um susto, pois pensei que você fosse a garota do Dr. No.

— Muito obrigada.

— Mas depois que você tiver feito a operação, o que irá fazer? Você não pode continuar vivendo numa adega durante toda a vida.

— Pensei em me tornar uma prostituta. — Ela o disse como se tivesse dito “enfermeira” ou “secretária”.

— Oh, o que é que você quer dizer com isso? — Talvez ela já tivesse ouvido aquela expressão sem compreendê-la bem.

— Uma dessas jovens que possuem um bonito apartamento e lindas roupas. Você sabe o que quero dizer — acrescentou ela com impaciência. — Os homens telefonam, marcam encontro, chegam, fazem amor e pagam. Elas ganham cem dólares de cada vez, em Nova Iorque, onde pensei começar. Naturalmente — admitiu — terei de fazer por menos, no começo, até que aprenda a trabalhar bem. Quanto é que vocês pagam pelas que não têm experiência?

Bond riu. — Francamente, não me lembro. Há muito tempo que não me encontro com essas mulheres.

Ela suspirou. — Sim, suponho que você possa ter tantas mulheres quantas queira, por nada. Suponho que apenas os homens feios paguem, mas isso é inevitável. Qualquer espécie de trabalho nas grandes cidades deve ser horrível. Pelo menos pode-se ganhar muito mais como prostituta. Depois, poderia voltar para Jamaica e comprar Beau Desert. Seria bastante rica para encontrar um marido bonito e ter alguns filhos. Agora que encontrei essas conchas, penso que poderia estar de volta a Jamaica quando tivesse trinta anos. Não seria formidável?

— Gosto da última parte do plano, mas não tenho muita confiança na primeira. De qualquer forma, como é que você veio a saber dessa história de prostitutas? Encontrou isso na letra P, na enciclopédia?

— Claro que não; não seja tolo. Há uns dois anos houve em Nova Iorque um escândalo sobre elas, envolvendo também um “play-boy” chamado Jelke. Ele tinha toda uma cadeia de prostitutas, e eu li muito sobre o caso no “Gleaner”. O jornal deu inclusive os preços que elas cobravam e tudo o mais. De qualquer forma, há milhares dessas jovens em Kingston, embora não sejam tão boas. Recebem apenas cinco xelins e não têm um lugar apropriado para fazer amor, a não ser no mato. Minha babá chegou a falar-me delas. Disse-me que eu não deveria imitá-las, pois do contrário seria muito infeliz. É claro que seria, recebendo apenas cinco xelins. Mas por cem dólares!...

Bond observou: — Você não conseguiria guardar todo esse dinheiro. Precisaria ter uma espécie de gerente para arranjar os homens, e teria ainda de dar gorjetas à polícia, para deixá-la em paz. Por fim, poderia ir facilmente parar na cadeia se tudo não corresse bem. Na verdade, com tudo o que você sabe sobre animais, bem poderia ter um ótimo emprego, cuidando deles, em algum jardim zoológico norte-americano. E o que me diz do Instituto de Jamaica? Tenho certeza de que você gostaria mais de trabalhar ali. E poderia também facilmente encontrar um bom marido. De qualquer forma, você não deve mais pensar em ser prostituta. Você tem um belo corpo e deve guardá-lo para o homem que amar.

— Isso é o que dizem as pessoas nos livros — disse ela com ar de dúvida. — A dificuldade está em que não há nenhum homem para ser amado em Beau Desert. — Depois acrescentou timidamente: — Você é o único inglês com quem jamais falei. Gostei de você desde o princípio, e não me importo de dizer-lhe essas coisas agora. Penso que há muitas pessoas das quais chegaria a gostar se saísse daqui.

— É claro que há. Centenas. E você é uma garota formidável; o que pensei assim que a vi.

— Assim que viu as minhas nádegas, você quer dizer. — Sua voz estava-se tornando sonolenta, mas cheia de prazer.

Bond riu. — Bem, eram nádegas maravilhosas. E o outro lado também era maravilhoso. — O corpo de Bond começou a se agitar com a lembrança de como a vira pela primeira vez. Depois de um instante, disse com mau humor: — Agora vamos, Honey. Está na hora de dormir. Haverá muito tempo para conversarmos quando voltarmos a Jamaica.

— Haverá? — perguntou ela desconsoladamente. — Você promete?

— Prometo.

Ele a viu agitar-se dentro do saco de dormir. Olhou para baixo e apenas pôde divisar o seu pálido perfil voltado para ele. Ela deixou escapar o profundo suspiro de uma criança, antes de adormecer.

Reinava silêncio na clareira e o tempo estava esfriando. Bond descansou a cabeça sobre os joelhos unidos. Sabia que era inútil procurar dormir, pois sua mente estava cheia dos acontecimentos do dia e dessa extraordinária mulher Tarzan que aparecera em sua vida. Era como se algum animal muito bonito se lhe tivesse dedicado. E não largaria os cordéis enquanto não tivesse resolvido os problemas dela. Estava sentindo isso. Naturalmente que não haveria grandes dificuldades para a maioria de seus problemas. Quanto à operação, seria fácil arranjá-la, e até mesmo encontrar-lhe um emprego, com o auxílio de amigos, e um lar. Tinha dinheiro e haveria de comprar-lhe roupas, mandaria ajeitar os seus cabelos e a lançaria no grande mundo. Seria divertido. Mas quanto ao resto? Quanto ao desejo físico que sentia por ela? Não se podia fazer amor com uma criança. Mas, seria ela uma criança? Não haveria nada de infantil relativamente ao seu corpo ou à sua personalidade. Era perfeitamente adulta e bem inteligente, a seu modo, e muito mais capaz de tomar conta de si mesma do que qualquer outra jovem de vinte anos que Bond conhecera.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um puxão em sua manga. A vozinha disse: — Por que você não vai dormir? Não está sentindo frio?

— Não; estou bem.

— Aqui no saco de dormir está bom e quente. Você quer vir para cá? Tem bastante lugar.

— Não, obrigado, Honey. Estou bem.

Houve uma pausa, e depois ela disse num sussurro: — Se você está pensando... Quero dizer — você não precisa fazer amor comigo... Eu poderia dormir de costas para o seu peito.

— Honey, querida, vá dormir. Seria maravilhoso dormir assim com você, mas não esta noite. De qualquer maneira, em breve terei de render Quarrel.

— Muito bem, — disse ela com voz mal humorada. — Talvez quando voltarmos a Jamaica.

— Talvez.

— Prometa. Não dormirei enquanto você não prometer.

Bond disse desesperadamente: — Naturalmente que prometo. Agora, vá dormir, Honeychile.

A sua voz se fez ouvir outra vez, triunfante: — Agora você tem uma dívida comigo. Você prometeu. Boa-noite, querido James.

— Boa noite, querida Honey.


XII - A COISA


O aperto no braço de Bond era ansioso. Ele de um salto pôs-se de pé.

Quarrel sussurrou tensamente: — Alguma coisa está-se aproximando pela água, capitão! Com certeza é o dragão!

A jovem levantou-se e perguntou nervosamente: — Que aconteceu?

Bond apenas disse: — Fique aí, Honey! Não se mexa. Eu voltarei.

Internou-se pelos arbustos do lado oposto da montanha e correu pela restinga, com Quarrel ao lado.

Chegaram até a extremidade da restinga, a vinte metros da clareira, e pararam sob o abrigo dos últimos arbustos, que Bond apartou com as mãos para ter um melhor campo de visão.

O que seria aquilo? A meia milha de distância, atravessando o lago, vinha algo informe, com dois olhos brilhantes cor de laranja, e pupilas negras. Entre estes, onde deveria estar a boca, tremulava um metro de chama azul. A luminosidade cinzenta das estrelas deixava ver uma espécie de cabeça abaulada entre duas pequenas asas semelhantes às de um morcego. Aquela coisa estranha deixava escapar um ronco surdo e baixo, que abafava um outro ruído, uma espécie de vibração rítmica. Aquela massa avançava na direção deles, à velocidade de uns dezesseis quilômetros por hora, deixando atrás de si uma esteira de espuma.

Quarrel sussurrou:

— Nossa, capitão! Que coisa é aquela?

Bond continuou de pé e respondeu laconicamente: — Não sei exatamente. Uma espécie de trator arranjado para meter medo. Está trabalhando com um motor diesel, e por isso você pode deixar os dragões de lado. Agora, vejamos... — Bond falava como se para si mesmo. — Não adianta fugir. Aquilo se move mais depressa do que nós e sabemos que pode esmagar árvores e atravessar pântanos. Temos que lhe dar combate aqui mesmo. Quais serão os seus pontos fracos? Os motoristas. Com certeza, dispõem de proteção. Em todo caso, não sabemos muito sobre esse ponto. Quarrel, você começará a disparar contra aquela cúpula quando estiverem a uns duzentos metros de nós. Faça a pontaria cuidadosamente e continue atirando. Visarei os faróis quando estiverem a cinqüenta metros. Não se está movendo sobre lagartas. Deve ter alguma espécie de rodas gigantescas, provavelmente de avião. Visarei as rodas também. Fique aí. Ficarei dez metros para baixo. Naturalmente vão reagir e nós temos que manter as balas longe da garota. Está combinado? — Bond esticou o braço e apertou o enorme ombro de Quarrel. — E não se preocupe demais. Esqueça-se de dragões. Trata-se apenas de alguma trapaça do Dr. No. Mataremos os motoristas, tomaremos conta do veículo e ganharemos com ele a costa. Isso economizará as nossas solas. Está bem?

Quarrel deu uma breve risada. — Está bem, capitão. Desde que o senhor assim o diz. Mas que Nosso Senhor saiba também que aquilo não é dragão!

Bond desceu pela restinga e se internou pelos arbustos, até que encontrou um ponto de onde podia ter um bom campo de tiro. Disse suavemente: — Honey!

— Sim, James — e a voz dela deixou transparecer alívio.

— Faça um buraco na areia como fizemos na praia. Faça-o por trás de raízes grossas e fique lá deitada. Talvez haja um tiroteio. Não tenha medo de dragões. Isto é apenas um veículo pintado, dirigido por alguns dos homens do Dr. No. Não se assuste. Estou aqui perto.

— Muito bem, James. Tenha cuidado! — A voz agora deixava transparecer um vivo temor.

Bond curvou-se, apoiando um joelho no chão, sobre as folhas e a areia, e olhou para fora.

Agora o veículo achava-se a uns trezentos metros de distância, e os seus faróis amarelos estavam iluminando a areia. Chamas azuis continuavam saindo da boca daquele engenho. Saíam de uma espécie de longo focinho, no qual se pintaram mandíbulas entreabertas, para darem ao todo a aparência de dragão. Um lança-chamas! Aquilo explicava as árvores queimadas e a história do administrador. A coloração azul da chama seria dada por alguma espécie de queimador, disposto adiante do lança-chamas.

Bond teve que admitir que aquela visão era algo de terrível, à medida que o veículo avançava pelo lago raso. Evidentemente fora calculado para infundir terror. Ele mesmo ter-se-ia assustado, não fora a vibração rítmica do motor diesel. Mas até que ponto aquilo seria vulnerável para homens que não fossem dominados pelo pânico?

A resposta ele a teve quase imediatamente. Ouviu-se o estampido da “Remington” de Quarrel. Uma centelha saiu da cabina encimada pela cúpula e logo se ouviu um ruído metálico. Quarrel disparou mais um tiro e, logo em seguida, uma rajada. As balas chocaram-se inutilmente de encontro à cabina. Não houve mesmo uma simples redução de velocidade. O monstro continuava avançando para o ponto de onde tinham partido os disparos. Bond descansou o cano de seu “Smith & Wesson” no braço, e fez cuidadosa pontaria. O profundo ruído surdo de sua arma fez-se ouvir por sobre o matraquear da “Remington” de Quarrel. Um dos faróis fora atingido e despedaçara-se. Bond disparou mais quatro tiros contra o outro e atingiu-o com o quinto e último disparo de seu revólver. O fantástico aparelho parecia continuar não dando importância, e foi avançando para o lugar de onde tinham partido os disparos do “Smith & Wesson”. Bond tornou a carregar a arma e começou a atirar contra os pneumáticos, sob as asas negro e ouro. A distância agora era de apenas trinta metros e podia jurar que já atingira mais de uma vez a roda mais próxima, sem nenhum resultado. Seria borracha sólida? O primeiro estremecimento de medo percorreu a pele de Bond.

Carregou mais uma vez. Seria aquela coisa maldita vulnerável pela retaguarda? Deveria correr para o lago e tentar uma abordagem? Avançou um passo, através dos arbustos, mas logo ficou imóvel, incapaz de prosseguir.

Subitamente, daquele focinho ameaçador, uma língua de fogo azulada tinha sido lançada na direção do esconderijo de Quarrel. À direita de Bond, no mato, surgira apenas uma chama laranja e vermelha, simultaneamente com um estranho urro, que imediatamente silenciou. Satisfeita, aquela língua de fogo se recolhera à sua boca. Agora aquilo fizera um movimento de rotação sobre o seu eixo e parará completamente. O buraco azulado da boca apontava diretamente para Bond.

Bond deixou-se ficar, esperando pelo horroroso fim. Olhou através das mandíbulas da morte e viu o brilhante f-lamento vermelho do queimador, bem no fundo do comprido tubo. Pensou no corpo de Quarrel — mas não havia tempo para pensar em Quarrel — e imaginou-o completamente carbonizado. Dentro em pouco ele também se incendiaria como uma tocha. Um único berro seria arrancado dele e os seus membros se encolheriam na pose de dançarino dos corpos queimados. Depois viria a vez de Honey. Meu Deus, para o quê ele os havia arrastado! Por que fora tão insano a ponto de enfrentar aquele homem com todo o seu arsenal? Por que não aceitara a advertência que lhe fora feita pelo longo dedo que o alcançara já em Jamaica? Bond trincou os dentes. Vamos, canalhas. Depressa.

Ouviu-se a sonoridade de um alto-falante, que anunciava metàlicamente: “Saia daí, inglês. E a boneca também. Depressa ou será frito no inferno, como o seu amigo”. Para dar mais força àquela ordem, uma língua de fogo foi lançada em sua direção. Bond deu um passo atrás para recuar daquele intenso calor. Sentiu o corpo da garota de encontro às suas costas. Ela disse historicamente: — Tive que vir, tive que vir.

Bond disse: — Está bem, Honey. Fique atrás de mim.

Ele tinha-se decidido. Não havia alternativa. Mesmo que a morte viesse mais tarde, não poderia ser pior do que aquela morte diante do lança-chamas. Bond apanhou a mão da jovem e puxou-a consigo para fora, saindo para a areia.

A voz se fez ouvir novamente: — Pare aí, camarada. E deixe cair o lança-ervilhas. Nada de truques, senão os caranguejos terão um bom almoço.

Bond deixou cair a sua arma. Lá se fora o “Smith & Wesson”. O “Beretta” não teria tido melhor sorte: A jovem lastimou-se, e Bond apertou a sua mão. — Agüente, Honey, — disse ele. — Nós nos livraremos disso.

Bond troçou de si mesmo por causa daquela mentira. Ouviu-se o ruído de uma porta de ferro que se abria. Por trás da cúpula, um homem saltou para a água e caminhou até eles, com um revólver na mão. Ao mesmo tempo ia-se mantendo fora da linha de fogo do lança-chamas. A trêmula chama azul iluminou o seu rosto. Era um chinês negro, de enorme estatura, vestindo apenas calças. Alguma coisa balançava em sua mão esquerda, e quando ele se aproximou mais, Bond pôde ver que eram algemas.

O homem deteve-se a alguns metros de distância e disse:

— Levantem os braços. Punhos juntos e caminhem em minha direção. Você primeiro, inglês. Devagar ou receberá mais um umbigo.

Bond obedeceu e quando estava a um passo do homem, este prendeu o revólver entre os dentes, e esticou os braços e atou os seus pulsos com as algemas. Bond examinou aquele rosto iluminado pelas chamas azuis. Era uma cara brutal, com olhos estrábicos. O agente do Dr. No fitou-o com desprezo. — Bastardo imbecil! — disse.

Bond deu as costas ao homem e começou a se afastar. Ia ver o corpo de Quarrel. Tinha que lhe dizer adeus. Ouviu-se o ruído de um disparo e uma bala jogou-lhe areia nos pés. Bond parou, e voltando-se lentamente disse:

— Não fique nervoso. Vou dar uma espiada no homem que você acabou de assassinar. Voltarei.

O homem abaixou o revólver e riu grosseiramente: — Muito bem. Divirta-se. Desculpe se não temos uma coroa. Volte logo, se não daremos uma amostra à boneca. Dois minutos.

Bond caminhou em direção ao cerrado de arbustos fumegantes. Ali chegando, olhou para baixo. Seus olhos e boca se contraíram. Sim, tinha sido bem como ele imaginara. Pior, mesmo. Disse docemente: — Perdoe-me, Quarrel. — Com o pé soltou um pouco de areia, que colheu com as mãos algemadas e verteu-a sobre os restos dos olhos de Quarrel. Depois caminhou lentamente, de volta, e ficou ao lado da jovem.

O homem empurrou-os para a frente com o revólver. Deram a volta por trás da máquina, onde havia uma pequena porta quadrada. Uma voz do interior disse: — Entrem e sentem-se no chão. Não toquem em nada ou ficarão com os dedos partidos.

Com dificuldade, arrastaram-se para dentro daquela caixa de ferro, que cheirava a óleo e suor. Havia lugar apenas para que ambos se sentassem com as pernas encolhidas, de joelhos para cima. O homem que empunhava o revólver e que vinha atrás deles saltou por último para dentro do carro e fechou a porta. Ligou uma lâmpada e sentou-se num assento de ferro, ao lado do chofer. — Muito bem, Sam, vamos andando. Você pode apagar o fogo. Há luz bastante para dirigir — disse.

Na painel de controle podia-se ver uma fileira de mostradores. O motorista esticou a mão e deslocou para baixo um par de interruptores. Engrenou o motor e olhou através de uma estreita fresta, cortada na parede de ferro, diante dele. Bond sentiu que o veículo dava uma volta. Ouviu-se um movimento mais rápido do motor, e o veículo avançou.

O ombro da jovem apertou-se de encontro ao de Bond.

— Para onde estão eles nos levando? — O seu sussurro traía um estremecimento.

Bond voltou a cabeça e olhou para ela. Era a primeira vez que podia ver os seus cabelos depois de secos. Estavam desfeitos pelo sono, mas não eram mais mechas de rabichos empastados. Caíam densamente até os ombros, onde terminavam em anéis voltados para dentro. Eram do mais pálido louro acinzentado e despediam reflexos quase prateados sob a luz elétrica. Ela olhou para o alto, para ele. A pele, à volta dos olhos e nos cantos da boca, mostrava-se lívida de medo.

Bond deu de ombros, procurando aparentar uma indiferença que não sentia!. Sussurrou: — Oh, espero que vamos ver o Dr. No. Não se preocupe demais, Honey. Esses homens não passam de pequenos bandidos. Com ele, as coisas serão diferentes. Quando estivermos diante dele, não diga nada, falarei por nos dois. — Ele apertou o seu ombro e disse: — Gosto da maneira por que você penteia o seu cabelo, e fico contente porque você não o apara muito curto.

Um pouco da tenção desapareceu do rosto dela. — Como é que você pode pensar em coisas como essa? — Deu um leve sorriso para ele, e acrescentou: — Mas estou contente por você gostar de meu penteado. Lavo os meus cabelos com óleo de coco uma vez por semana.

À lembrança de sua outra vida, seus olhos ficaram brilhantes. Ela baixou a cabeça para as mãos algemadas, a fim de esconder as lágrimas. Sussurrou quase para si mesma: — Tentarei ser brava. Tudo estará bem, desde que você esteja lá.

Bond aconchegou-se a ela. Levantou suas mãos algemadas até a altura dos olhos e examinou as algemas. Eram do tipo usado pela polícia norte-americana. Contraiu sua mão esquerda, a mais fina das duas, e tentou fazê-la deslizar pelo anel de aço. Mesmo o suor de sua pele de nada adiantou. Era inútil.

Os dois homens sentavam-se em seus bancos de ferro, indiferentes, e com as costas voltadas para eles. Sabiam que dominavam inteiramente a situação. Não havia possibilidade de que Bond oferecesse qualquer incômodo. Não poderia levantar-se ou dar o necessário impulso aos seus punhos para causar qualquer mal às cabeças de seus adversários, utilizando as algemas. Se conseguisse abrir a porta e pular para a água, o que lograria com isso? Imediatamente eles sentiriam a brisa fresca, nas costas, e parariam a máquina para queimá-lo na água ou içá-lo novamente. Bond aborrecia-se em pensar que os homens pouco se preocupavam com ele, pois sabiam tê-lo completamente em seu poder. Também não gostou da idéia de que aqueles homens eram bastante inteligentes para saber que ele não representava nenhuma ameaça. Indivíduos mais estúpidos teriam ficado em cima deles, de revólver em punho, tê-los-iam surrado, a ele e à jovem, barbaramente, e talvez os tivessem deixado inconscientes. Aqueles dois conheciam o ofício. Eram profissionais, ou tinham sido treinados para o serem.

Os dois homens não falaram. Não houve nenhum comentário sobre o quão hábil eles tinham sido, ou quanto ao seu cansaço ou destino. Apenas dirigiam a máquina serenamente, ultimando com eficiência a sua tarefa.

Bond continuava sem a mínima idéia do que seria aquilo. Sob a tinta negra e dourada, assim como sob o resto daquela fantasia, a máquina parecia uma espécie de trator, como ele nunca vira. Não tinha conseguido descobrir nomes de marcas comerciais, nos pneumáticos, pois estivera muito escuro, mas certamente que deveriam ser de borracha sólida ou porosa. Atrás havia um pequena roda para dar estabilidade ao conjunto. Uma espécie de barbatana de ferro fora ainda acrescentada e pintada também de preto e ouro, a fim de ajudar a dar a aparência de dragão. Os altos pára-lamas tinham sofrido um prolongamento, na forma de curtas asas voltadas para trás. Uma comprida cabeça de dragão, feita em metal, fora fixada ao radiador e os faróis receberam pontos centrais negros, para parecerem olhos. Era tudo, sem falar da cabina que fora recoberta com uma cúpula blindada e dotada de um lança-chamas. Era, como pensara Bond, um trator preparado para assustar e queimar — embora não pudesse atinar porque estava dotado de um lança-chamas e não de uma metralhadora. Era, evidentemente, a única espécie de veículo que poderia percorrer a ilha. Suas gigantescas rodas podiam avançar sobre os mangues, pântanos e ainda atravessar o lago raso. Galgaria também os agrestes planaltos de coral e, desde que andasse à noite, o calor experimentado na cabina seria pelo menos tolerável.

Bond ficara impressionado. Impressionado pelo toque de profissionalismo. O Dr. No era sem dúvida um homem que se preocupava intensamente com as coisas. Em pouco iria encontrá-lo. E em breve estaria diante do segredo do Dr. No. Então, o que aconteceria? Bond sorriu amargamente. Sim, não o deixariam sair dali com o seu conhecimento. Certamente seria morto, a menos que pudesse fugir ou conseguir a sua liberdade por meios persuasivos. E o que aconteceria à jovem? Poderia ele provar sua inocência e conseguir com que ela fosse poupada? Possivelmente, mas nunca mais ela teria permissão para deixar a ilha. Ali teria de ficar para o resto da vida, como amante ou mulher de um dos homens, ou do próprio Dr. No, se ela o impressionasse.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um trecho do percurso mais difícil, como se podia sentir pela trepidação. Tinham atravessado o lago e estavam no caminho que levava para o alto da montanha, junto às cabanas. A cabina vibrava e a máquina começou a galgar o terreno. Dentro de cinco minutos estariam lá.

O ajudante do motorista olhou por sobre o ombro para Bond e a jovem. Bond sorriu confiantemente para ele dizendo: Você receberá uma medalha por isso.

Os olhos amarelos e marrons olharam impassivelmente dentro dos dele, enquanto os lábios arroxeados e oleosos se fenderam num sorriso no qual havia um ódio repousado: Feche a boca, se... Depois, deu-lhe as costas.

A jovem tocou-o com o cotovelo e sussurrou: — Por que eles são tão rudes? Por que nos odeiam tanto?

Bond esboçou um sorriso e disse: — Acho que é porque lhes causamos medo. Talvez ainda estejam com medo, e isto porque não parecemos ter medo deles. Devemos mantê-los assim.

A jovem aconchegou-se a ele e disse: — Tentarei.

Agora a subida estava-se tornando mais íngreme. Uma luz azul-acinzentada atravessava as frestas da armadura. A madrugada se aproximava. Fora, em breve estaria começando mais um dia de calor abrasador, de execrável vento, carregado com o cheiro de gás dos pântanos. Bond pensou em Quarrel, o bravo gigante que não mais veria aquele dia, e com o qual eles deveriam agora estar caminhando através dos pauis de mangues. Quarrel tinha pressentido a morte, mas apesar disso tinha acompanhado Bond sem qualquer objeção. Sua fé em Bond tinha sido maior do que o seu medo. E Bond tinha-lhe faltado. Seria ele ainda o causador da morte da jovem?

O motorista esticou o braço em direção ao painel e na parte dianteira do veículo fez-se ouvir o breve zunido de uma sirena de polícia, que foi desaparecendo num gemido fúnebre. Mais um minuto e o veículo parava, continuando o motor em regime neutro. O homem apertou um interruptor e tirou um microfone de um gancho, a seu lado. Falou por aquele microfone e Bond pôde ouvir a sua voz aumentada, do lado de fora, por um altofalante. — Tudo bem. Apanhamos o inglês e a garota. O outro homem morreu. Isso é tudo. Abram. — Bond ouviu que uma porta se deslocava para o lado, sobre rolamentos. O motorista embreou e eles avançaram lentamente para a frente, parando alguns metros adiante. O motorista desligou o motor. Ouviu-se o ruído metálico da tranca e a porta foi aberta pelo lado de fora. Uma lufada de ar fresco e uma luz mais brilhante penetraram na cabina. Várias mãos agarraram Bond e arrastaram-no para trás, até um chão de cimento. Bond agora estava de pé e sentia o cano de um revólver encostado ao seu flanco. Uma voz disse: — Fique onde está. Nada de espertezas. — Bond olhou para o homem. Era mais um chinês negro, do mesmo tipo que os outros. Os olhos amarelos examinaram-no com curiosidade. Bond virou-se com indiferença. Outro homem estava cutucando a jovem com a arma. Bond disse asperamente: — Deixe a garota em paz! Em seguida, caminhou e pôs-se ao lado da jovem. Os dois homens pareceram surpresos. Deixaram-se ficar de pé, apontando as armas com hesitação.

Bond olhou à volta. Estavam numa das cabanas pré-fabricadas que ele vira do rio. Era ao mesmo tempo uma garagem e uma oficina. O “dragão” tinha sido colocado sobre um fosso de vistoria, no chão de concreto. Um motor de popa desmontado estava sobre uma das bancadas. Longos tubos de luz fluorescente estavam afixados ao teto e o ambiente estava impregnado do cheiro de óleo e fumaça de exaustor. O motorista e o seu companheiro examinavam a máquina. Em seguida deram alguns passos pelo galpão, como se andassem sem propósito.

Um dos guardas anunciou: — Enviei a mensagem. A ordem é que eles sejam levados. Foi tudo bem?

O ajudante de motorista, que parecia o homem mais responsável, ali presente, disse: — Sem dúvida. Alguns disparos. Os faróis foram partidos. Talvez haja alguns furos nos pneumáticos. Ponha os rapazes em ação — uma vistoria completa. Conduzirei esses dois e tirarei um cochilo. — E, voltando-se para Bond: — Bem, vamos andando — e indicou o caminho que saía do longo galpão.

Bond disse: — Vá andando você; e cuidado com os modos. Diga àqueles macacos que tirem as armas de cima de nós. Podem disparar por engano. Parecem bastante idiotas.

O homem se aproximou, e os outros os acompanharam logo atrás. O ódio brilhava em seus olhos. O chefe levantou o punho cerrado, tão grande quanto um pequeno malho e chegou-o à altura do nariz de Bond. Procurava controlar-se com esforço, e disse: — Ouça, senhor. Às vezes, nós, os rapazes, temos permissão para participar da festa final. Estou rezando para que essa seja uma dessas vezes. Certa ocasião fizemos com que a coisa durasse toda uma semana. E se eu o pego...

Riu e os seus olhos brilharam com crueldade. Olhou para o lado de Bond, fixando a garota. Seus olhos pareciam transformados em bocas que agitavam os lábios. Enfiou as mãos nos bolsos laterais das calças. A ponta de sua língua mostrava-se muito vermelha, entre os lábios arroxeados. Voltando-se para os companheiros disse: — Que tal, rapazes?

Os três homens estavam olhando também para a jovem. Fizeram um sinal de assentimento, como crianças diante de uma árvore de Natal.

Bond desejou atirar-se como um louco sobre eles, golpeando as suas caras com os punhos algemados e aceitando a sua vingança sangrenta. Não fosse pela jovem, bem que o teria feito. Mas tudo o que tinha conseguido com suas corajosas palavras fora amedrontá-la. Disse apenas: — Muito bem, muito bem. Vocês são quatro e nós somos dois, ainda por cima com as mãos atadas. Vamos, não queremos atingi-los. Apenas não nos empurrem muito de um lado para outro. O Dr. No poderia não ficar satisfeito.

Àquele nome, os rostos dos homens se modificaram. Três pares de olhos passaram apàticamente de Bond para o chefe. Por um segundo, este olhou com desconfiança para Bond, intrigado, tentando descobrir se Bond teria alguma influência junto ao Dr. No. Sua boca abriu-se para dizer algo, mas logo pareceu pensar melhor, e apenas disse de maneira incerta: — Bem, bem, estávamos simplesmente brincando. — Voltou-se para os homens, em busca de confirmação: — Não é?

— Sem dúvida, sem dúvida! — foi a resposta dada por um coro áspero, e os homens desviaram o olhar.

O chefe disse com mau humor: — Por aqui, senhor. — E ele mesmo pôs-se a caminho, percorrendo o comprido galpão.

Bond segurou o pulso da jovem e seguiu o chefe. Estava impressionado com a reação causada naqueles homens pelo nome do Dr. No. Aquilo era alguma coisa a lembrar se eles tivessem que se haver novamente com aquela turma.

O homem chegou a uma porta de madeira situada na extremidade do galpão. Ao lado havia um botão de campainha que ele pressionou duas vezes e esperou. Ouviu-se um estalido e a porta se abriu, mostrando dez metros de uma passagem rochosa, mas atapetada e que ia dar, na outra extremidade, em outra porta mais elegante e pintada de creme.

O homem ficou de lado. Siga em frente, senhor — disse; — bata na porta e será atendido pela recepcionista. — Não havia nenhuma ironia em sua voz e seus olhos se mostravam impassíveis.

Bond conduziu Honey pela passagem. Ouviu que a porta se fechava às suas costas. Deteve-se por um momento e fitou-a, perguntando-lhe: — E agora?

Ela riu, trêmula, mas respondeu: — Ê bom sentir-se tapete sob os pés.

Bond apertou o seu pulso. Andou até a porta pintada de creme e bateu.

A porta abriu-se e Bond entrou com a jovem ao lado. Quando se deteve instantaneamente, não chegou a perceber o encontrão que lhe dava a jovem, pois continuou estarrecido.


XIII - GAIOLA DE OURO


Era a espécie de sala de recepção que as maiores corporações norte-americanas possuem no andar em que se situa o escritório do presidente, em seus arranha-céus de Nova Iorque. Suas proporções eram agradáveis, com cerca de vinte pés quadrados. O chão era todo recoberto pelo mais espesso tapete Wilton cor-de-vinho. O teto e as paredes estavam pintados numa suave tonalidade cinza pombo. Viam-se ainda reproduções litográficas de esboços de balé de Degas penduradas em séries, nas paredes, e a iluminação era feita com altos e modernos jogos de abajures de seda verde-escuro, imitando a forma de elegantes barricas.

À direita de Bond estavam uma larga mesa de mogno, com o tampo recoberto com couro verde, outras peças que se harmonizavam perfeitamente com a mesa, e um caro sistema de intercomunicações. Duas cadeiras altas, de antiquado, aguardavam os visitantes. Do outro lado da sala via-se uma mesa do tipo refeitório, sobre a qual estavam várias revistas com capas em cores vivas e mais duas cadeiras. Tanto na mesa de escritório, como na outra, viam-se vasos de hibiscos. O ar era fresco e impregnado de leve fragrância.

Duas mulheres estavam naquela sala. Por trás da mesa de trabalho, empunhando uma caneta que descansava sobre um formulário impresso, estava sentada uma jovem chinesa, de aspecto eficiente, com óculos de armação de chifre, sob uma franja de cabelos negros cortados curtos. Em seus olhos e em sua boca havia o sorriso padrão de boas-vindas que qualquer recepcionista exibe — a um tempo claro, obsequioso e inquisitivo.

Ainda com a mão na maçaneta da porta pela qual eles tinham passado, e esperando que os recém-chegados se adiantassem mais, a fim de que ela a pudesse fechar, estava uma mulher mais velha, com aspecto de matrona, e que deveria ter cerca de quarenta e cinco anos. Era fácil ver-se que também tinha sangue chinês. Sua aparência, saudável, de farto busto, era viva e quase excessivamente graciosa. O seu “pince-nez” de lentes cortadas em quadrado brilhava com o desejo da recepcionista de os pôr à vontade.

Ambas as mulheres vestiam roupas imaculadamente alvas, com meias brancas e sapatos de camurça branca como costumam apresentar-se as auxiliares empregadas nos mais luxuosos salões de beleza norte-americanos. Havia um que de suave e pálido em suas peles, como se elas raramente saíssem para o ar-livre.

Bond observou o ambiente, enquanto a mulher junto à porta lhe dizia frases convencionais de boas-vindas, como se eles tivessem sido colhidos por uma tempestade o chegado com atraso a uma festa.

— Oh, coitados! Nós não sabíamos quando vocês iriam chegar. A todo momento nos diziam que vocês já estavam a caminho... primeiro à hora do chá, ontem, depois na hora do jantar, e apenas há uma hora fomos informadas de que vocês chegariam à hora do desjejum. Devem estar com fome. Venham aqui e ajudem a irmã Rosa a preencher o formulário; depois eu os prepararei para a cama. Devem estar muito cansados.

Ia dizendo aquilo com voz doce e cacarejante, ao mesmo tempo que fechava a porta e os levava para junto da mesa e os fazia sentar nas cadeiras. Depois disse: — Bem, eu sou a irmã Lírio, e esta é a irmã Rosa. Ela irá fazer-lhes apenas algumas perguntas. Agora, aceitam um cigarro? — e pegou uma caixa de couro trabalhado que estava em cima da mesa. Abriu-a e pô-la diante deles. A caixa tinha três divisões, e a chinesinha explicou apontando com um dedo: “Esses são americanos, esses são ingleses e esses turcos.” Ela apanhou um luxuoso isqueiro de mesa e esperou.

Bond estendeu as mãos algemadas para tirar um cigarro turco.

A irmã Lírio deu um gritinho de espanto: — Oh, mas francamente. — Parecia sinceramente embaraçada. — Irmã Rosa, dê-me a chave, depressa. Já disse por várias vezes que os pacientes não devem ser trazidos dessa maneira. — Havia impaciência e aborrecimento em sua voz. — Francamente, aquela gente lá de fora! Já era tempo que eles fossem chamados à ordem.

A irmã Rosa estava tão embaraçada quanto a irmã Lírio. Rapidamente remexeu dentro de uma gaveta e entregou uma chave à irmã Lírio, que com muitas desculpas e cheia de dedos abriu os dois pares de algemas e, afastando-se para trás da mesa, deixou aquelas duas pulseiras de aço caírem dentro da cesta de papéis como se fossem ataduras sujas.

— Obrigado, — disse Bond, que não sabia como enfrentar aquela situação, a não ser procurando desempenhar um papel qualquer na comédia que se estava representando. Ele estendeu o braço, apanhou um cigarro e acendeu-o. Lançou um olhar para Honeyehile Rider, que parecia estonteada e nervosamente apertava com as mãos os braços de sua cadeira. Bond dirigiu-lhe um sorriso de conforto.

— Agora, por favor; — disse a irmã Rosa e inclinou-se sobre um comprido formulário impresso em papel caro. — Prometo ser o mais rápida que puder. O seu nome, sr... sr...

— Bryce, John Bryce.

Ela escreveu a resposta com grande concentração. — Endereço permanente?

— Aos cuidados do Jardim Zoológico Real, Regents Park, Londres, Inglaterra.

— Profissão?

— Ornitologista.

— Oh, meu Deus!, poderia o senhor soletrar isso? Bond atendeu-a.

— Muito obrigada. Agora, vejamos, objeto da viagem?

— Aves — respondeu Bond. — Sou também representante da Sociedade Audubon de Nova Iorque. Eles arrendaram parte desta ilha.

— Oh, sem dúvida. — Bond observou que a pena escrevia exatamente o que ele dizia. Depois da última palavra ela pôs um claro ponto de interrogação entre parênteses.

— E — a irmã Rosa sorriu polidamente em direção a Honeyehile — a sua esposa? Ela também está interessada em pássaros?

— Sim, sem dúvida.

— O seu primeiro nome?

— Honeyehile.

A irmã Rosa estava encantada. — Que nome lindo! — Ela voltou a escrever apressadamente. — E agora os parentes mais próximos de ambos, e estará tudo acabado.

Bond deu o verdadeiro nome de M como o parente mais próximo de ambos. Apresentou-o como “tio” e indicou o seu endereço como sendo “Diretor-Gerente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres.”

A irmã Rosa acabou de escrever e disse: — Pronto, está tudo feito. Muito obrigada, sr. Bryce, e espero que ambos apreciem a permanência aqui.

— Muito obrigado. Estou certo de que apreciaremos. — Bond levantou-se e Honeyehile fez o mesmo, ainda com expressão vazia.

A irmã Lírio disse: — Agora, venham comigo, queridos.

— Ela caminhou até uma porta na parede distante e deteve-se com a mão na maçaneta talhada em vidro. — Oh, meu Deus, — disse —, não é que agora me esqueci do número de seus quartos? É o apartamento creme, não é, irmã?

— Isso mesmo. Catorze e quinze.

— Obrigada, querida. E agora — ela abriu a porta — se vocês quiserem me seguir... Receio que seja uma caminhada um pouco longa. — Fechou a porta, por trás deles, e pôs-se à frente, indicando o caminho. — O Doutor tem falado várias vezes em instalar uma dessas escadas rolantes, ou algo de parecido, mas sabem como são os homens ocupados: — Ela riu alegremente. — Ele tem tantas outras coisas em que pensar!

— Sim, acredito, — disse Bond polidamente.

Bond tomou a mão da jovem e seguiram ambos a maternal e agitada chinesa através de cem metros de um alto corredor, do mesmo estilo da sala de recepção, mas que era iluminado a freqüentes intervalos por caros tubos luminosos fixados às paredes.

Bond respondia com polidos monossílabos aos comentários ocasionais que a irmã Lírio lhe lançava por sobre os ombros. Toda a sua mente se concentrava nas extraordinárias circunstâncias de sua recepção. Tinha certeza de que aquelas duas mulheres tinham sido sinceras. Nenhum só olhar ou palavra conseguira registrar que estivesse fora de propósito. Evidentemente aquilo era alguma espécie de fachada, mas de qualquer forma uma fachada sólida, meticulosamente apoiada pelo cenário e pelo elenco. A ausência de ressonância, na sala, e agora no corredor, estava a indicar que eles tinham deixado o galpão pré-fabricado para se internarem no flanco da montanha e agora estavam atravessando a sua base. Segundo o seu palpite estavam mesmo andando em direção oeste — em direção à penedia na qual terminava a ilha. Não havia umidade nas paredes e o ar parecia fresco e puro, com uma brisa a afagá-los. Muito dinheiro e uma bela realização de engenharia tinham sido os responsáveis por aquilo. A palidez das duas mulheres estava a sugerir que passavam a maior parte do tempo internadas no âmago da montanha. Do que a irmã dissera, parecia que elas faziam parte de um grupo de funcionários internos que nada tinham a ver com o destacamento de choque do exterior, e que talvez não soubessem a espécie de homens que eles eram.

Aquilo era grotesco, concluiu Bond ao se aproximar de uma porta, na extremidade do corredor, perigosamente grotesco, mas em nada adiantava pensar nisso no momento. Ele apenas podia seguir o papel que lhe tinha sido destinado. Pelo menos, aquilo era melhor do que os bastidores, na arena exterior da ilha.

Junto à porta, a irmã Lírio fez soar uma campainha. Já eram esperados e a porta abriu-se imediatamente. Uma encantadora jovem chinesa, de quimono lilás e branco, ficou a sorrir e a curvar-se, como se deve esperar que o façam as jovens chinesas. E, mais uma vez só havia calor e um sentimento de boas-vindas naquele rosto pálido como uma for. A irmã Lírio exclamou: — Aqui estão eles, finalmente, May! São o senhor e a senhora John Bryce. E sei que ambos devem estar exaustos, por isso devemos levá-los imediatamente aos seus aposentos, para que possam repousar e dormir. — Voltando-se para Bond: — Esta é May, muito boazinha. Ela tratará de ambos. Qualquer coisa que queiram é só tocar a campainha que May atenderá. É uma espécie de favorita de todos os nossos hóspedes.

Hóspedes!, pensou Bond. Essa é a segunda vez que ela usa a palavra. Sorriu polidamente para a jovem, e disse;

— Muito prazer; sim, certamente que gostaríamos de ir para os nossos aposentos.

May envolveu-os num cálido sorriso, e disse em voz baixa e atraente: — Espero que ambos se sintam bem, sr. Bryce. Tomei a liberdade de mandar vir uma refeição assim que soube que os senhores iam chegar. Vamos...? — Corredores saiam para a esquerda e a direita de portas duplas de elevadores, instalados na parede oposta. A jovem adiantou-se, caminhando na frente, para a direita, logo seguida de Bond e Honeyehile, que tinham atrás a irmã Lírio.

Ao longo do corredor, dos dois lados, viam-se portas numeradas. A decoração era feita no mais pálido cor-de-rosa, com um tapete cinza-pombo. Os números nas portas eram superiores a dez. O corredor terminava abruptamente, com duas portas, uma em frente a outra, com a numeração catorze e quinze. A irmã May abriu a porta catorze e o casal a seguiu, entrando na peça.

Era um lindo quarto de casal, em moderno estilo Mia-mi, com paredes verde-escuro, chão encerado de mogno escuro, com um ou outro espesso tapete branco e bem desenhado mobiliário de bambu com um tecido “chintz” de grandes rosas vermelhas sobre fundo branco. Havia uma porta de comunicação para um quarto de vestir masculino e outra que dava para um banheiro moderno e extremamente luxuoso, com uma banheira de descida e um bidê.

Era como se tivessem sido introduzidos num apartamento do mais moderno hotel da Flórida, com exceção de dois detalhes que não passaram despercebidos a Bond. Não havia janelas e nenhuma maçaneta interior nas portas.

May olhou com expressão de expectativa, de um para o outro.

Bond voltou-se para Honeyehile e sorriu-lhe: — Parece muito confortável, não acha, querida?

A jovem brincava com a barra da saia e fez um sinal de assentimento sem olhar para Bond.

Ouviu-se uma tímida batida na porta e outra jovem, tão linda quanto May, entrou carregando uma bandeja que se equilibrava sobre as palmas das mãos. A jovem descansou a bandeja sobre a mesa do centro e puxou duas cadeiras. Retirou a toalha de linho imaculadamente limpa e saiu. Sentiu-se um delicioso cheiro de fiambre e café.

May e a irmã Lírio também se encaminharam para a porta. A mulher mais idosa se deteve por um instante e disse:

— E agora nós os deixaremos em paz. Se desejarem alguma coisa, basta tocar a campainha. Os interruptores estão ao lado da cama. Ah, outra coisa, poderão encontrar roupa limpa nos aparadores. Receio que sejam apenas de estilo chinês,

— acrescentou, como a desculpar-se —, mas espero que os tamanhos satisfaçam. A rouparia só recebeu as medidas ontem à noite. O Dr. deu ordens severas para que os senhores não fossem perturbados. Ficará encantado se puderem reunir-se a ele, esta noite, para o jantar. Deseja, entretanto, que tenham todo o resto do dia à vontade, a fim de que melhor se ambientem, compreendem? — Fez uma pausa e olhou para um e para outro, com um sorriso indagador. — Posso dizer que os senhores...?

— Sim, por favor, — disse Bond. — Pode dizer ao D., que teremos muito prazer em jantar com ele.

— Oh, sei que ficará contente. — Com uma derradeira mesura, as duas chinesas se retiraram e fecharam a porta.

Bond voltou-se para Honeyehile, que parecia embaraçada e ainda evitava os seus olhos. Ocorreu então a Bond que talvez jamais tivesse ela tido um tratamento tão cortês ou visto tanto luxo em sua vida. Para ela, tudo aquilo devia ser muito mais estranho e aterrador do que o que tinham passado ao lado de fora. Ela continuou na mesma posição, brincando com a barra da saia. Podiam-se notar vestígios de suor seco, sal e poeira em seu rosto. Suas pernas nuas estavam sujas e Bond observou que os dedos de seus pés se moviam, suavemente, ao pisarem nervosamente o maravilhoso e espesso tapete.

Bond riu. Riu com gosto ao pensamento de que os temores da jovem tivessem sido abafados pelas preocupações de etiqueta e comportamento, e riu-se também da figura que ambos faziam — ela em farrapos e ele com a suja camisa azul, as calças pretas e os sapatos de lona enlameados.

Aproximou-se dela e segurou-lhe mãos. Estavam frias. Disse: — Honey, somos um par de espantalhos, mas há apenas um problema básico. Devemos tomar o nosso desjejum primeiro, enquanto está quente, ou tiraremos antes esses farrapos e tomaremos um banho, tomando a nossa refeição fria? Não se preocupe com mais nada. Estamos aqui nessa maravilhosa casinha e isto é tudo o que importa. O que faremos, então?

Ela sorriu hesitante. Seus olhos azuis fixavam-se no rosto dele, na ânsia de obter segurança. Depois disse: — Você não está preocupado com o que nos possa acontecer? — Fez um sinal para o quarto e acrescentou: — Não acha que tudo isso pode ser uma armadilha?

— Se se trata de uma armadilha, já caímos nela. Agora nada mais podemos fazer senão comer a isca. A única questão que subsiste é a de saber se a comeremos quente ou fria. — Apertou-lhe as mãos e continuou: — Seriamente, Honey. Deixe as preocupações comigo. Pense apenas onde estávamos apenas há uma hora. Isso aqui não é melhor? Agora, decidamos a única coisa realmente importante. Banho ou desjejum?

Ela respondeu com relutância: — Bem, se você acha... Quero dizer — preferiria antes lavar-me. — Mas logo acrescentou: — Você terá que ajudar-me. — E sacudiu a cabeça em direção ao banheiro, dizendo: Não sei como mexer numa coisa dessas. Como é que se faz?

Bond respondeu com toda seriedade: — É muito fácil. Vou preparar tudo para você. Enquanto você estivar tomando o seu banho tomarei o meu desjejum. Ao mesmo tempo tratarei de fazer com que o seu não esfrie.

Bond aproximou-se de um dos armários embutidos e abriu a porta. No interior havia uma meia dúzia de quimonos, alguns de seda e outros de linho. Apanhou um de linho, ao acaso. Depois, voltando-se para ela, disse: — Tire suas roupas e meta-se nisso aqui, enquanto preparo o seu banho. Mais tarde você escolherá as coisas que preferir, para a cama e para o jantar.

Ela respondeu com gratidão: — Oh, sim, James. Se você apenas me mostrasse... — E logo começou a desabotoar a saia.

Bond pensou em tomá-la nos braços e beijá-la, mas, ao invés disso, disse abruptamente: — ótimo, Honey — e, adiantando-se para o banheiro, abriu as torneiras.

Havia de tudo naquele banheiro: essência para banhos Floris Lime, para homens, e pastilhas de Guarlain para o banho de senhoras. Esfarelou uma pastilha na água e imediatamente o banheiro perfumou-se como uma loja de orquídeas. O sabonete era o Sapoceti de Guarlain “Fleurs des Alpes”. Num pequeno armário de remédios, atrás de um espelho, em cima da pia, podiam-se encontrar tubos de pasta, escovas de dente e palitos “Steradent”, água “Rose” para lavagem bucal, aspirina e leite de magnésia. Havia também um aparelho de barbear elétrico, loção “Lentheric” para barba, e duas escovas de náilon para cabelos e pentes. Tudo era novo e ainda não tinha sido tocado.

Bond olhou para o seu rosto sujo e sem barbear, no espelho, e riu sardonicamente para os próprios olhos, cinzentos, de pária queimado pelo sol. O revestimento da pílula certamente que era do melhor açúcar. Seria inteligente esperar que o remédio, no interior daquela pílula, fosse dos mais amargos.

Tocou a água, com a mão, a fim de sentir a temperatura. Talvez estivesse muito quente para quem jamais tinha tomado antes um banho quente. Deixou então que corresse um pouco mais de água fria. Ao inclinar-se, sentiu que dois braços lhe eram passados em torno do pescoço. Endireitou-se. Aquele corpo dourado resplandecia no banheiro todo revestido de ladrilhos brancos. Ela beijou-o impetuosamente nos lábios. Ele passou-lhe os braços à volta da cintura e esmagou-a de encontro a seu corpo, com o coração aos pulos. Ela disse sem fôlego, ao seu ouvido: — Achei estranhas as roupas chinesas, mas de qualquer maneira você disse à mulher que nós éramos casados.

Uma das mãos de Bond estava pousada sobre o seu seio esquerdo, cujo mamilo estava completamente endurecido pela paixão. O ventre da jovem se comprimia contra o seu. Por que não? Por que não? Não seja tolo! Este é um momento louco para isso. Vocês dois estão diante de um perigo mortal. Você deve continuar frio como gelo, para ter alguma possibilidade de se livrar dessa enrascada. Mais tarde! Mais tarde! Não seja fraco.

Bond retirou a mão do seio dela e espalmou-a à volta de seu pescoço. Esfregou o rosto de encontro ao dela e depois aproximou a boca da boca da jovem e deu-lhe um prolongado beijo.

Afastou-se depois e manteve-a à distância de um braço. Por um momento ambos se olharam, com os olhos brilhando de desejo. Ela respirava ofegantemente, com os lábios entreabertos, de modo que ele podia ver-lhe o brilho dos dentes. Ele disse com a voz trêmula: — Honey, entre no banho antes que eu lhe dê uma surra.

Ela sorriu e sem nada dizer entrou na banheira e deitou-se em todo seu comprimento. Do fundo da banheira ergueu os olhos para ele. Os cabelos louros, em seu corpo, brilhavam como moedas de ouro. Ela disse provocadoramente: — Você tem que me esfregar. Não sei como devo fazer, e você terá que mostrar-me.

Bond respondeu desesperadamente: — Cale a boca, Honey, e deixe de namoros. Apanhe a esponja, o sabonete e comece logo a se esfregar. Que diabo! Isso não é o momento de se fazer amor. Vou tomar o meu desjejum. — Esticou a mão para a porta e segurou na maçaneta. Ela disse docemente: — James! — Ele olhou para trás e viu que ela lhe fazia uma careta, com a língua de fora. Retribuiu com uma careta selvagem e bateu a porta com força.

Em seguida, Bond dirigiu-se para o quarto de vestir e deixou-se ficar durante algum tempo, de pé, no centro da peça, esperando que as batidas de seu coração se acalmassem. Esfregou as mãos no rosto e sacudiu a cabeça, procurando esquecê-la.

Para clarear a mente, percorreu ainda cuidadosamente as duas peças, procurando saídas, possíveis armas, microfones, qualquer coisa enfim que lhe aumentasse o conhecimento da situação em que se achava. Nada disso, entretanto, pôde encontrar. Na parede havia um relógio elétrico que marcava oito e meia e uma série de botões de campainhas, ao lado da cama de casal. Esses botões traziam a indicação de “Sala de serviço”, “cabeleireiro”, “manicure”, “empregada”. Não havia telefone. Bem no alto, a um canto de ambas as peças, viam-se as grades de um pequeno ventilador. Cada uma dessas grades era de dois pés quadrados. Tudo inútil. As portas pareciam ser feitas de algum metal leve, pintadas para combinarem com as paredes. Bond jogou todo o peso de seu corpo contra uma delas, mas ela não cedeu um só milímetro. Bond esfregou o ombro. Aquele lugar era uma verdadeira prisão. Não adiantava discutir a situação. A armadilha tinha-se fechado hermèticamente sobre eles. Agora, a única coisa que restava aos ratos era tirarem o melhor proveito possível da isca de queijo.

Bond sentou-se à mesa do desjejum, sobre a qual estava uma grande jarra com suco de abacaxi, metida num pequeno balde de prata cheio de cubos de gelo. Serviu-se rapidamente e levantou a tampa de uma travessa. Ali estavam ovos mexidos sobre torradas, quatro fatias de toucinho defumado, um rim grelhado e o que parecia quatro salsichas inglesas de carne de porco. Havia também duas torradas quentes, pãezinhos conservados quentes dentro de guardanapos, geléia de laranja e morango e mel. O café estava quase fervendo numa grande garrafa térmica, e o creme exalava um odor fresco e agradável.

Do banheiro vinham as notas da canção “Marion” que a jovem estava cantarolando. Bond resolveu não dar ouvidos à cantoria e concentrou-se nos ovos.

Dez minutos depois, Bond ouviu que a porta do banheiro se abria. Descansou uma torrada que tinha numa das mãos e cobriu os olhos com a outra. Ela riu e disse: — Ele é um covarde. Tem medo de uma simples jovem. — Em seguida Bond ouviu-a a remexer nos armários. Ela continuava falando, em parte consigo mesma: — Não sei porque ele está assustado. Naturalmente que se eu lutasse com ele facilmente o dominaria. Talvez esteja com medo disso. Talvez não seja realmente muito forte, embora seus braços e peito pareçam bastante rijos. Contudo, ainda não vi o resto. Talvez seja fraco. Sim, deve ser isso. Essa é a razão pela qual não ousa despir-se na minha frente. Hum, agora vamos ver, será que ele gostaria de mim com essas roupas? — Ela elevou a voz: — Querido James, você gostaria de me ver de branco, com pássaros azul-pálido esvoaçando sobre o meu corpo?

— Sim, bolas! Agora acabe com essa conversa e venha comer. Estou começando a sentir sono.

Ela soltou uma exclamação: — Oh, se você quer dizer que já está na hora de irmos para a cama, naturalmente que me apressarei.

Ouviu-se uma agitação de passos apressados e Bond logo a via sentar-se diante de si. Ele deixou cair as mãos e ela sorriu-lhe. Estava linda. Seu cabelo estava escovado e penteado de um dos lados caindo sobre o rosto, e do outro com as madeixas puxadas para trás da orelha. Sua pele brilhava de frescura e os grandes olhos azuis resplandeciam de felicidade. Agora Bond estava gostando daquele nariz quebrado. Tinha-se tornado parte de seus pensamentos relativamente a ela, e subitamente lhe ocorreu perguntar-se por que estaria ele triste quando ela era tão imaculadamente bela quanto tantas outras lindas jovens. Sentou-se circunspectamente, com as mãos no colo, e a metade dos seios aparecendo na abertura do quimono.

Bond disse severamente: — Agora, ouça, Honey. Você está maravilhosa, mas esta não é a maneira de usar-se um quimono. Feche-o no corpo, prenda-o bem e deixe de tentar parecer uma prostituta. Isso simplesmente não são bons modos à mesa.

— Oh, você não passa de um boneco idiota. — E ajeitou o quimono, fechando-o um pouco, em uma ou duas polegadas. — Por que você não gosta de brincar? Gostaria de brincar de estar casada.

— Não à hora do desjejum — respondeu Bond com firmeza. — Vamos, coma logo. Está delicioso. De qualquer maneira estou muito sujo, e agora vou fazer a barba e tomar um banho. — Levantou-se, deu volta à mesa e beijou-lhe o alto da cabeça. — E quanto a essa história de brincar, como você diz, gostaria mais de brincar com você do que com qualquer outra pessoa do mundo. Mas não agora. — Sem esperar pela resposta, dirigiu-se ao banheiro e fechou a porta.

Bond barbeou-se e tomou um banho de chuveiro. Sentia-se desesperadamente sonolento. O sono chegava-lhe, de modo que de quando em quando tinha que interromper o que fazia e inclinar a cabeça, repousando-a entre os joelhos. Quando começou a escovar os dentes, o seu estado era tal que mal podia fazê-lo. Estava começando a reconhecer os sintomas. Tinha sido narcotizado. A coisa teria sido posta no suco de abacaxi ou no café? Este era um detalhe sem importância. Aliás, nada tinha importância. Tudo o que queria fazer era estender-se naquele chão de ladrilhos e fechar os olhos. Assim mesmo, dirigiu-se cambaleante para a porta, esquecendo-se de que estava nu. Isso também pouca importância tinha. A jovem já tinha terminado a refeição e agora estava na cama. Continuou trôpego, até ela, segurando-se nos móveis. O quimono tinha sido abandonado no chão e ela dormia pesadamente, completamente nua, sob um simples lençol.

Bond olhou para o travesseiro, ao lado da jovem. Não! Procurou o interruptor e apagou as luzes. Agora teve que se arrastar pelo chão até chegar ao seu quarto. Chegou até junto de sua cama e atirou-se nela. Com grande esforço conseguiu ainda esticar o braço, tocar o interruptor e tentar apagar a lâmpada do criado-mudo. Mas não o conseguiu: sua mão deslizou, atirou o abajur ao chão e a lâmpada espatifou-se. Com um derradeiro esforço, Bond virou-se ainda no leito e adormeceu profundamente.

Os números luminosos do relógio elétrico, no quarto de casal, anunciavam nove e meia.

Às dez horas, a porta do quarto abriu-se suavemente. Um vulto muito alto e magro destacava-se na luz do corredor. Era um homem. Talvez tivesse dois metros de altura. Permaneceu no limiar da porta, com os braços cruzados, ouvindo. Dando-se por satisfeito, caminhou vagarosamente pelo quarto e aproximou-se da cama. Conhecia perfeitamente o caminho. Curvou-se sobre o leito e ouviu a serena respiração da jovem. Depois de um momento, tocou em seu próprio peito e acionou um interruptor. Imediatamente um amplo feixe de luz difusa projetou-se na cama. O farolete estava preso ao corpo do homem por meio de um cinto que o fixava à altura do esterno.

Inclinou-se novamente para a frente, de modo que a luz clareou o rosto da jovem.

O intruso examinou aquele rosto durante alguns minutos. Uma de suas mãos avançou, apanhou a orla do lençol, à altura do queixo da jovem, e puxou-o lentamente até os pés da cama. Mas a mão que puxara aquele lençol não era u’a mão. Era um par de pinças de aço muito bem articuladas na extremidade de uma espécie de talo metálico que desaparecia dentro de uma manga de seda negra. Era u’a mão mecânica.

O homem contemplou durante longo tempo aquele corpo nu, deslocando o seu peito de um lado para outro, de modo que todo o leito fosse submetido ao feixe luminoso. Depois, a garra saiu novamente de sob aquela manga e delicadamente levantou a ponta do lençol, puxando-o dos pés da cama até recobrir todo o corpo da jovem. O homem demorou-se ainda por um momento a contemplar o rosto adormecido, depois apagou o farolete e atravessou silenciosamente o quarto em direção à porta aberta, além da qual estava Bond dormindo.

O homem demorou-se mais tempo ao lado do leito de Bond. Perscrutou cada linha, cada sombra do rosto moreno e quase cruel que jazia quase sem vida, sobre o travesseiro. Observou a circulação à altura do pescoço e contou-lhe as batidas; depois, quando puxou o lençol para baixo, fez o mesmo na área do coração. Estudou a curva dos músculos, nos braços de Bond e nas coxas, e considerou pensativo a força oculta no ventre musculoso de Bond. Chegou até mesmo a curvar-se sobre a mão direita de Bond, estudando-lhe cuidadosamente as linhas da vida e do destino.

Por fim, com grande cuidado, a pinça de aço puxou novamente o lençol, desta vez para cobrir o corpo de Bond até o pescoço. Por mais um minuto o elevado vulto permaneceu ao lado do homem adormecido, depois se retirou rapidamente, ganhando o corredor, enquanto a porta se fechava com um estalido metálico e seco.


CONTINUA

XI - VIDA NO CANAVIAL


Seriam cerca de oito horas, pensou Bond. A não ser o coaxar dos sapos, tudo estava mergulhado em silêncio. No canto mais distante da clareira, ele podia vislumbrar o vulto de Quarrel.

Podia-se ouvir o tinir metálico, enquanto ele se ocupava em desmontar e secar a sua “Remington”.

Por entre as árvores podiam-se ver também as luzes distantes, vindas do depósito de guano, riscar caminhos luminosos e festivos sobre a superfície escura do lago. O desagradável vento desaparecera e o abominável cenário estava mergulhado em trevas. Estava bastante fresco. As roupas de Bond tinham secado no corpo. A comida tinha aquecido o seu estômago. Ele experimentou uma agradável sensação de conforto, sonolência e paz. O dia seguinte ainda estava muito longe e não apresentava problemas, a não ser uma boa dose de exercício físico. A vida, subitamente, pareceu-lhe fácil e boa.

A jovem estava a seu lado, metida no saco de dormir. Estava deitada de costas, com a cabeça descansando nas mãos, e olhando para o teto de estrelas. Ele apenas conseguia divisar os pálidos contornos de seu rosto. De repente, ela disse: James, você prometeu dizer-me o que significava tudo isso. Vamos. Eu não dormirei enquanto você não o disser.

Bond riu. — Eu direi se você também disser. Também quero saber o que você pretende.

— Pois não, não tenho segredos: mas você deve falar primeiro.

— Está certo. — Bond puxou os joelhos até a altura do queixo e passou os braços à volta deles. — Eu sou uma espécie de policial. Eles me enviam de Londres quando há alguma coisa de estranho acontecendo em alguma parte do mundo e que não interessa a ninguém. Bem, não faz muito tempo, um dos funcionários do Governador, em Kingston, um homem chamado Strangways, aliás meu amigo, desapareceu. Sua secretária, que era uma linda jovem, também desapareceu sem deixar vestígios. Muitos pensaram que eles tivessem fugido juntos, mas eu não acreditei nisso. Eu...”

Bond contou tudo com simplicidade, falando em homens bons e maus, como numa história de aventuras lida em algum livro. Depois terminou: Como você vê, Honey, temos de voltar a Jamaica, amanhã à noite, todos nós, na canoa, e então o Governador nos dará ouvidos e enviará um destacamento de soldados para apanhar este chinês. Espero que isso terá como conseqüência levá-lo à prisão. Ele com certeza também sabe disso, e essa é a razão pela qual procura aniquilar-nos. Essa é a história. Agora é a sua vez.

A jovem disse: Você parece viver uma vida muita excitante. Sua mulher não deve gostar que você fique fora tanto tempo. Ela não tem medo de que você se fira?

— Não sou casado. A única que se preocupa com a possibilidade de que eu me fira é a minha companhia de seguros.

Ela continuou sondando: Mas suponho que você tenha namoradas.

— Não permanentes.

— Oh!

Fez-se uma pausa. Quarrel se aproximou e disse: “Capitão, farei o primeiro quarto, se for melhor. Estarei na extremidade da restinga e virei chamá-lo à meia-noite. Então talvez o senhor possa ir até as cinco horas, quando nós nos poremos em marcha. Precisamos estar fora daqui antes que clareie o dia.

— Está bem — respondeu Bond. — Acorde-me se você vir alguma coisa. O revólver está em ordem?

— Perfeito — respondeu Quarrel com evidente mostra de contentamento. Depois, dirigindo-se à jovem disse com leve tom de insinuação: — Durma bem, senhorita. Em seguida, desapareceu silenciosamente nas sombras.

— Gosto de Quarrel — disse a jovem. E, após uma pausa: — Você quer realmente saber alguma coisa a meu respeito? A história não é tão excitante quanto a sua.

— É claro que quero. E não omita nada.

— Não há nada a omitir. Você poderia escrever toda a história de minha vida nas costas de um cartão postal. Para começar, nunca saí de Jamaica. Vivi toda a minha vida num lugar chamado Beau Desert, na costa setentrional, nas proximidades do Porto Morgan.

Bond riu. — É estranho: posso dizer o mesmo; pelo menos por enquanto. Não notei você pela região. Você vive em cima de uma árvore?

— Ah, imagino que você tenha ficado na casa da praia. Eu nunca chego até ali. Vivo na Casa Grande.

— Mas nada ficou dela. É uma ruína no meio dos canaviais.

— Eu vivo na adega. Tenho vivido ali desde a idade de cinco anos. Depois a casa se incendiou e meus pais morreram. Nada me lembro deles, por isso você não precisa manifestar pesar. A princípio vivi ali com a minha ama negra, mas depois ela morreu, quando eu tinha apenas quinze anos. Nos últimos cinco anos tenho vivido ali sozinha.

— Nossa Senhora! — Bond estava boquiaberto. — Mas não havia ninguém para tomar conta de você? Os seus pais não deixaram nenhum dinheiro?

— Nem um tostão. — Não havia o mínimo traço de amargura na voz da jovem — talvez orgulho, se houvesse alguma coisa. — Você sabe, os Riders eram uma das mais antigas famílias de Jamaica. O primeiro Rider recebera de Cromwell as terras de Beau Desert, por ter sido um dos que assinaram o veredicto de morte contra o rei Carlos. Ele construiu a Casa Grande e minha família viveu ora nela ora fora dela, desde aquela época. Mas depois veio a decadência do açúcar e eu acho que a propriedade foi pessimamente administrada, e, ao tempo em que meu pai tomou conta da herança, havia somente dívidas — hipotecas e outros ônus. Assim, quando meu pai e minha mãe morreram a propriedade foi vendida. Eu pouco me importei, pois era muito jovem. Minha ama deve ter sido maravilhosa. Quiseram que alguém me adotasse, mas a minha babá reuniu os pedaços de mobília que não tinham sido queimados e com eles nós nos instalamos da melhor forma no meio daquelas ruínas. Depois de algum tempo ninguém mais veio interferir conosco. Ela cosia um pouco e lavava para algumas freguesas da aldeia, ao mesmo tempo que plantava bananas e outras coisas, sem falar do grande pé de fruta-pão que havia diante da casa. Comíamos o que era a ração habitual do povo de Jamaica. E havia os pés de cana-de-açúcar à nossa volta. Ela fizera também uma rede para apanhar peixes, a qual nós recolhíamos todos os dias. Tudo corria bem e nós tínhamos o suficiente para comer. Ela ensinou-me a ler e escrever, como pôde. Tínhamos uma pilha de velhos livros que escapara ao incêndio, inclusive uma enciclopédia. Comecei com o A quando tinha apenas oito anos, e cheguei até o meio do T. — Ela disse um tanto na defensiva: — Aposto que sei mais do que você sobre muitas coisas.

— Estou certo de que sim. — Bond estava perdido na visão daquela jovem de cabelos de linho errando pelas ruínas de uma grande construção, com uma obstinada negra a vigiá-la e a chamá-la para receber as lições que deveriam ter sido um mistério para ela mesma. — Sua ama deve ter sido uma criatura extraordinária.

— Ela era um amor. — Era uma afirmação peremptória. — Pensei que fosse morrer quando ela faleceu. As coisas não foram tão fáceis para mim depois disso. Antes eu levava uma vida de criança, mas subitamente tive que crescer e fazer tudo por mim mesma. E os homens tentaram apanhar-me e atingir-me. Diziam que queriam fazer amor comigo. — Fez uma pausa e acrescentou: — Eu era bonita naquela época. Bond disse muito sério:

— Você é uma das jovens mais belas que já vi.

— Com este nariz? Não seja tolo.

— Você não compreende. — Bond tentou encontrar palavras nas quais ela pudesse crer. — É claro que qualquer pessoa pode ver que o seu nariz está quebrado; mas desde esta manhã dificilmente eu pude notá-lo. Quando se olha para uma pessoa, olha-se para os seus olhos ou para a sua boca. Nesses dois pontos se encontram a expressão. Um nariz quebrado não tem maior significação do que uma orelha torta. Narizes e orelhas são peças do mobiliário facial. Algumas são mais bonitas do que outras, mas não são tão importantes quanto o resto. Se você tivesse um nariz bonito, tão bonito como o resto, você seria a jovem mais bela de Jamaica.

— Você é sincero? — Sua voz era ansiosa. — Você acha que eu poderia ser bela? Sei que muita coisa em mim está bem, mas quando olho no espelho só vejo o meu nariz quebrado. Estou certa de que o mesmo ocorre com outras pessoas que são, que são — bem — mais ou menos aleijadas.

Bond disse com impaciência: — Você não é aleijada! Não diga tolices. E aliás você pode endireitá-lo mediante uma simples operação. Basta que você vá aos Estados Unidos e a coisa levará apenas uma semana.

Ela disse com irritação: — Como é que você quer que eu faça isso? Tenho cerca de quinze libras debaixo de uma pedra, na minha adega. Tenho ainda três saias, três blusas, uma faca e uma panela de peixe. Conheço muito bem essas operações. O médico de Porto Maria já pediu informações para mim. Ele é um homem muito bom e escreveu para os Estados Unidos. Pois para que a operação seja bem feita, eu teria que gastar cerca de quinhentas libras, sem falar da passagem para Nova York, a conta do hospital e tudo o mais.

Sua voz tornou-se desesperançada: — Como é que você espera que eu possa ter todo esse dinheiro?

Bond já decidira sobre o que teria de ser feito, mas no momento apenas disse ternamente: — Bem, espero que se possam encontrar meios; mas, de qualquer maneira, prossiga com a sua história. Ela é muito excitante — muito mais interessante do que a minha. Você tinha chegado ao ponto em que a sua ama morreu. O que aconteceu depois?

A jovem recomeçou com relutância.

— Bem, a culpa é sua por ter interrompido. E você não deve falar de coisas que não compreende. Suponho que as pessoas lhe digam que você é simpático. Você deve também ter todas as namoradas que desejar. Bem, isso não aconteceria se você fosse vesgo ou tivesse um lábio leporino. — Na verdade, ele pôde ouvir o sorriso em sua voz: — Acho que quando voltarmos eu irei ter com o feiticeiro para que lhe faça uma mandinga e lhe dê alguma coisa assim. — E ela acrescentou tristemente: — Dessa forma, nós seremos mais parecidos.

Bond estendeu o braço e sua mão tocou nela: — Eu tenho outros planos. Mas continuemos, quero ouvir o resto da sua história.

— Bem, — disse a jovem com um suspiro. — Eu terei que me atrasar um pouco. Como você sabe, toda a propriedade é representada pela cana-de-açúcar e pela velha casa que está situada no meio da plantação. Bem, umas duas vezes por ano eles cortam a cana e mandam-na para o moinho. E quando eles o fazem, todos os animais e insetos que vivem nos canaviais entram em pânico e a maioria deles têm as suas tocas destruídas e são mortos. Na época da safra, alguns deles começaram a vir para as ruínas da casa, onde se escondiam. No princípio, minha babá ficava aterrorizada, pois lá vinham os mangustos, as cobras e os escorpiões, mas eu preparei dois quartos da adega para recebê-los. Não me assustei com eles, e eles nunca me fizeram mal. Pareciam compreender que eu estava cuidando deles. E devem ter contado aquilo aos seus amigos, ou alguma coisa parecida, pois depois de algum tempo era perfeitamente natural que todos viessem acantonar-se em seus dois quartos, onde ficavam até que os canaviais começassem novamente a crescer, quando então iam saindo e voltando para os campos. Dei-lhes toda a comida que podíamos pôr de lado, quando eles ficavam conosco, e todos se portavam muito bem, a não ser por algum odor e às vezes uma ou outra luta entre si. Mas eram muito mansos comigo. Naturalmente os cortadores de cana perceberam tudo e viam-me andando pelo lugar com cobras à volta do meu pescoço, e assim por diante, a ponto de ficarem aterrorizados comigo e me considerarem uma feiticeira. Por causa disso, eles nos deixaram completamente isoladas. Ela fez uma pausa, e depois recomeçou:

— Foi assim que aprendi tanta coisa sobre animais e insetos. Eu costumava ainda passar muito tempo no mar, aprendendo coisas sobre os animais marinhos, assim como sobre os pássaros. Se se chega a saber o que todas essas criaturas gostam de comer e do que têm medo, pode-se muito bem fazer amizade com elas. — Levantou os olhos para Bond e disse: Você não sabe o que perde ignorando todas essas coisas.

— Receio que perca muito — respondeu Bond com sinceridade. — Suponho que eles sejam muito melhores e mais interessantes que os homens.

Sobre isso nada sei — respondeu a jovem pensativa-mente. — Não conheço muitas pessoas. A maioria das que conheci foram detestáveis, mas acho que deve haver criaturas interessantes também. — Fez uma pausa, e prosseguiu: — Nunca pensei realmente que chegasse a gostar de alguma pessoa como gosto dos animais. Com exceção da babá, naturalmente. Até que... — Ela se interrompeu com um sorriso de timidez. — Bem, de qualquer forma, nós vivemos muito felizes juntas, até que eu fiz quinze anos, quando então a babá morreu e as coisas se tornaram muito difíceis. Havia um homem chamado Mander. Um homem horroroso. Era o capataz branco que servia aos proprietários da plantação. Ele vivia me procurando. Queria que eu fosse viver com ele, em sua casa de Porto Maria.

Eu o odiava, e costumava esconder-me sempre que ouvia o seu cavalo aproximando-se do canavial. Certa noite ele veio a pé e eu não o ouvi. Estava bêbado. Entrou na adega e lutou comigo porque não queria fazer o que ele desejava. Você sabe, as coisas que fazem as pessoas quando estão apaixonadas.

— Sim, já sei.

— Tentei matá-lo com a minha faca, mas ele era muito forte e deu-me um soco tão forte no rosto que me quebrou o nariz. Deixou-me inconsciente e acho que fez alguma coisa comigo. Sei que ele fez mesmo. No dia seguinte eu quis me matar quando vi o meu rosto e verifiquei o que ele me havia feito. Pensei que iria ter um filho. Teria sem dúvida me matado se tivesse tido um filho daquele homem. Em todo caso, não tive, e tudo continuou assim. Fui ao médico e ele fez o que pôde com o meu nariz e não me cobrou nada. Quanto ao resto, eu nada lhe contei, pois estava muito envergonhada. O homem não voltou mais. Eu esperei e nada fiz até a próxima colheita de cana-de-açúcar. Tinha um plano. Estava esperando que as aranhas viúvas-negras viessem procurar abrigo. Um belo dia elas chegaram. Apanhei a maior das fêmeas e á deixei numa caixa sem nada para comer. As fêmeas são terríveis. Então esperei que fizesse uma noite escura, sem luar. Na primeira noite dessas, apanhei a caixa com a aranha e caminhei até chegar à casa do homem. Estava muito escuro e eu me sentia aterrorizada com a possibilidade de encontrar algum assaltante pela estrada, mas não houve nada. Esperei em seu jardim, oculta entre os arbustos, até que ele se recolheu à cama. Então subi por uma árvore e ganhei a sacada; aguardei até que ele começasse a roncar e depois entrei pela janela. Ele estava nu, estendido na cama, sob o mosquiteiro. Levantei uma aba do filó, abri a caixa e sacudi-lhe a aranha sobre o ventre. Depois saí e voltei para casa.

— Deus do céu! — exclamou Bond reverentemente. — O que aconteceu com o homem?

Ela respondeu com satisfação: — Levou uma semana para morrer. Deve ter-lhe doído terrivelmente. Você sabe, a mordida dessa aranha é pavorosa. Os feiticeiros dizem que não há nada que se lhe compare. — Ela fez uma pausa, e como Bond não fizesse nenhum comentário, acrescentou: — Você não acha que eu fiz mal, não é?

— Bem, não faça disso um hábito — respondeu Bond suavemente. — Mas não posso culpá-la, diante do que ele tinha feito. E, depois, o que aconteceu?

— Bem, depois me estabeleci novamente — sua voz era firme. — Tive que me concentrar na tarefa de obter alimento suficiente, e naturalmente. — Acrescentou persuasivamente: — Eu tinha de fato um nariz muito bonito, antes. Você acha que os médicos podem torná-lo igualzinho ao que era antes?

— Eles poderão fazê-lo de qualquer forma que você quiser — disse Bond em tom definitivo. — Como é que você ganhou dinheiro?

— Foi graças à enciclopédia. Li nela que há pessoas que gostam de colecionar conchas marinhas e que as conchas raras podiam ser vendidas. Falei com o mestre-escola local, sem contar-lhe naturalmente o meu segredo, e ele descobriu para mim que havia uma revista norte-americana chamada “Nautilus”, dedicada aos colecionadores de conchas. Eu tinha apenas o dinheiro suficiente para tomar uma assinatura daquela revista e comecei a procurar as conchas que as pessoas pediam em seus anúncios. Escrevi a um comerciante de Miami e ele começou a comprar as minhas conchas. Foi emocionante. Naturalmente que cometi alguns erros, no princípio. Pensei, por exemplo, que as pessoas gostariam das conchas mais bonitas, mas esse não era o caso. Freqüentemente elas preferiam as conchas mais feias. Depois, quando achava conchas raras, punha-me a limpá-las e poli-las a fim de torná-las mais bonitas, mas isso também foi um erro. Os colecionadores querem as conchas exatamente como saem do mar, com o animal em seu interior também. Então consegui algum formol com o médico e o punha entre as conchas vivas, para que elas não tivessem mau cheiro, e depois mandava-as para o tal comerciante de Miami. Só aprendi bem o negócio de um ano para cá e já consegui quinze libras. Consegui esse resultado agora que sei como é que eles querem as conchas e se tivesse sorte, poderia fazer pelo menos cinqüenta libras por ano. Então, em dez anos poderia ir aos Estados Unidos e operar-me. Mas, continuou ela com intenso contentamento, tive uma notável maré de sorte. Fui a Crab Key pelo Natal, onde já tinha estado antes. Mas dessa vez eu encontrei essas conchas purpúreas. Não parecem grande coisa, mas eu enviei uma ou duas para Miami e o comerciante escreveu-me para dizer que compraria tantas dessas conchas quantas eu pudesse encontrar, e ao preço de até cinco dólares pelas perfeitas. Disse-me ainda que eu deveria manter segredo sobre o lugar de onde as tirava, pois de outra forma o “mercado seria estragado”, como disse ele, e os preços cairiam. É como se se tivesse uma mina de ouro particular. Agora serei capaz de juntar o dinheiro em cinco anos. Esse foi o motivo pelo qual tive grandes suspeitas de você, quando o encontrei na praia. Pensei que você tivesse vindo para roubar as minhas conchas.

— Você me deu um susto, pois pensei que você fosse a garota do Dr. No.

— Muito obrigada.

— Mas depois que você tiver feito a operação, o que irá fazer? Você não pode continuar vivendo numa adega durante toda a vida.

— Pensei em me tornar uma prostituta. — Ela o disse como se tivesse dito “enfermeira” ou “secretária”.

— Oh, o que é que você quer dizer com isso? — Talvez ela já tivesse ouvido aquela expressão sem compreendê-la bem.

— Uma dessas jovens que possuem um bonito apartamento e lindas roupas. Você sabe o que quero dizer — acrescentou ela com impaciência. — Os homens telefonam, marcam encontro, chegam, fazem amor e pagam. Elas ganham cem dólares de cada vez, em Nova Iorque, onde pensei começar. Naturalmente — admitiu — terei de fazer por menos, no começo, até que aprenda a trabalhar bem. Quanto é que vocês pagam pelas que não têm experiência?

Bond riu. — Francamente, não me lembro. Há muito tempo que não me encontro com essas mulheres.

Ela suspirou. — Sim, suponho que você possa ter tantas mulheres quantas queira, por nada. Suponho que apenas os homens feios paguem, mas isso é inevitável. Qualquer espécie de trabalho nas grandes cidades deve ser horrível. Pelo menos pode-se ganhar muito mais como prostituta. Depois, poderia voltar para Jamaica e comprar Beau Desert. Seria bastante rica para encontrar um marido bonito e ter alguns filhos. Agora que encontrei essas conchas, penso que poderia estar de volta a Jamaica quando tivesse trinta anos. Não seria formidável?

— Gosto da última parte do plano, mas não tenho muita confiança na primeira. De qualquer forma, como é que você veio a saber dessa história de prostitutas? Encontrou isso na letra P, na enciclopédia?

— Claro que não; não seja tolo. Há uns dois anos houve em Nova Iorque um escândalo sobre elas, envolvendo também um “play-boy” chamado Jelke. Ele tinha toda uma cadeia de prostitutas, e eu li muito sobre o caso no “Gleaner”. O jornal deu inclusive os preços que elas cobravam e tudo o mais. De qualquer forma, há milhares dessas jovens em Kingston, embora não sejam tão boas. Recebem apenas cinco xelins e não têm um lugar apropriado para fazer amor, a não ser no mato. Minha babá chegou a falar-me delas. Disse-me que eu não deveria imitá-las, pois do contrário seria muito infeliz. É claro que seria, recebendo apenas cinco xelins. Mas por cem dólares!...

Bond observou: — Você não conseguiria guardar todo esse dinheiro. Precisaria ter uma espécie de gerente para arranjar os homens, e teria ainda de dar gorjetas à polícia, para deixá-la em paz. Por fim, poderia ir facilmente parar na cadeia se tudo não corresse bem. Na verdade, com tudo o que você sabe sobre animais, bem poderia ter um ótimo emprego, cuidando deles, em algum jardim zoológico norte-americano. E o que me diz do Instituto de Jamaica? Tenho certeza de que você gostaria mais de trabalhar ali. E poderia também facilmente encontrar um bom marido. De qualquer forma, você não deve mais pensar em ser prostituta. Você tem um belo corpo e deve guardá-lo para o homem que amar.

— Isso é o que dizem as pessoas nos livros — disse ela com ar de dúvida. — A dificuldade está em que não há nenhum homem para ser amado em Beau Desert. — Depois acrescentou timidamente: — Você é o único inglês com quem jamais falei. Gostei de você desde o princípio, e não me importo de dizer-lhe essas coisas agora. Penso que há muitas pessoas das quais chegaria a gostar se saísse daqui.

— É claro que há. Centenas. E você é uma garota formidável; o que pensei assim que a vi.

— Assim que viu as minhas nádegas, você quer dizer. — Sua voz estava-se tornando sonolenta, mas cheia de prazer.

Bond riu. — Bem, eram nádegas maravilhosas. E o outro lado também era maravilhoso. — O corpo de Bond começou a se agitar com a lembrança de como a vira pela primeira vez. Depois de um instante, disse com mau humor: — Agora vamos, Honey. Está na hora de dormir. Haverá muito tempo para conversarmos quando voltarmos a Jamaica.

— Haverá? — perguntou ela desconsoladamente. — Você promete?

— Prometo.

Ele a viu agitar-se dentro do saco de dormir. Olhou para baixo e apenas pôde divisar o seu pálido perfil voltado para ele. Ela deixou escapar o profundo suspiro de uma criança, antes de adormecer.

Reinava silêncio na clareira e o tempo estava esfriando. Bond descansou a cabeça sobre os joelhos unidos. Sabia que era inútil procurar dormir, pois sua mente estava cheia dos acontecimentos do dia e dessa extraordinária mulher Tarzan que aparecera em sua vida. Era como se algum animal muito bonito se lhe tivesse dedicado. E não largaria os cordéis enquanto não tivesse resolvido os problemas dela. Estava sentindo isso. Naturalmente que não haveria grandes dificuldades para a maioria de seus problemas. Quanto à operação, seria fácil arranjá-la, e até mesmo encontrar-lhe um emprego, com o auxílio de amigos, e um lar. Tinha dinheiro e haveria de comprar-lhe roupas, mandaria ajeitar os seus cabelos e a lançaria no grande mundo. Seria divertido. Mas quanto ao resto? Quanto ao desejo físico que sentia por ela? Não se podia fazer amor com uma criança. Mas, seria ela uma criança? Não haveria nada de infantil relativamente ao seu corpo ou à sua personalidade. Era perfeitamente adulta e bem inteligente, a seu modo, e muito mais capaz de tomar conta de si mesma do que qualquer outra jovem de vinte anos que Bond conhecera.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um puxão em sua manga. A vozinha disse: — Por que você não vai dormir? Não está sentindo frio?

— Não; estou bem.

— Aqui no saco de dormir está bom e quente. Você quer vir para cá? Tem bastante lugar.

— Não, obrigado, Honey. Estou bem.

Houve uma pausa, e depois ela disse num sussurro: — Se você está pensando... Quero dizer — você não precisa fazer amor comigo... Eu poderia dormir de costas para o seu peito.

— Honey, querida, vá dormir. Seria maravilhoso dormir assim com você, mas não esta noite. De qualquer maneira, em breve terei de render Quarrel.

— Muito bem, — disse ela com voz mal humorada. — Talvez quando voltarmos a Jamaica.

— Talvez.

— Prometa. Não dormirei enquanto você não prometer.

Bond disse desesperadamente: — Naturalmente que prometo. Agora, vá dormir, Honeychile.

A sua voz se fez ouvir outra vez, triunfante: — Agora você tem uma dívida comigo. Você prometeu. Boa-noite, querido James.

— Boa noite, querida Honey.


XII - A COISA


O aperto no braço de Bond era ansioso. Ele de um salto pôs-se de pé.

Quarrel sussurrou tensamente: — Alguma coisa está-se aproximando pela água, capitão! Com certeza é o dragão!

A jovem levantou-se e perguntou nervosamente: — Que aconteceu?

Bond apenas disse: — Fique aí, Honey! Não se mexa. Eu voltarei.

Internou-se pelos arbustos do lado oposto da montanha e correu pela restinga, com Quarrel ao lado.

Chegaram até a extremidade da restinga, a vinte metros da clareira, e pararam sob o abrigo dos últimos arbustos, que Bond apartou com as mãos para ter um melhor campo de visão.

O que seria aquilo? A meia milha de distância, atravessando o lago, vinha algo informe, com dois olhos brilhantes cor de laranja, e pupilas negras. Entre estes, onde deveria estar a boca, tremulava um metro de chama azul. A luminosidade cinzenta das estrelas deixava ver uma espécie de cabeça abaulada entre duas pequenas asas semelhantes às de um morcego. Aquela coisa estranha deixava escapar um ronco surdo e baixo, que abafava um outro ruído, uma espécie de vibração rítmica. Aquela massa avançava na direção deles, à velocidade de uns dezesseis quilômetros por hora, deixando atrás de si uma esteira de espuma.

Quarrel sussurrou:

— Nossa, capitão! Que coisa é aquela?

Bond continuou de pé e respondeu laconicamente: — Não sei exatamente. Uma espécie de trator arranjado para meter medo. Está trabalhando com um motor diesel, e por isso você pode deixar os dragões de lado. Agora, vejamos... — Bond falava como se para si mesmo. — Não adianta fugir. Aquilo se move mais depressa do que nós e sabemos que pode esmagar árvores e atravessar pântanos. Temos que lhe dar combate aqui mesmo. Quais serão os seus pontos fracos? Os motoristas. Com certeza, dispõem de proteção. Em todo caso, não sabemos muito sobre esse ponto. Quarrel, você começará a disparar contra aquela cúpula quando estiverem a uns duzentos metros de nós. Faça a pontaria cuidadosamente e continue atirando. Visarei os faróis quando estiverem a cinqüenta metros. Não se está movendo sobre lagartas. Deve ter alguma espécie de rodas gigantescas, provavelmente de avião. Visarei as rodas também. Fique aí. Ficarei dez metros para baixo. Naturalmente vão reagir e nós temos que manter as balas longe da garota. Está combinado? — Bond esticou o braço e apertou o enorme ombro de Quarrel. — E não se preocupe demais. Esqueça-se de dragões. Trata-se apenas de alguma trapaça do Dr. No. Mataremos os motoristas, tomaremos conta do veículo e ganharemos com ele a costa. Isso economizará as nossas solas. Está bem?

Quarrel deu uma breve risada. — Está bem, capitão. Desde que o senhor assim o diz. Mas que Nosso Senhor saiba também que aquilo não é dragão!

Bond desceu pela restinga e se internou pelos arbustos, até que encontrou um ponto de onde podia ter um bom campo de tiro. Disse suavemente: — Honey!

— Sim, James — e a voz dela deixou transparecer alívio.

— Faça um buraco na areia como fizemos na praia. Faça-o por trás de raízes grossas e fique lá deitada. Talvez haja um tiroteio. Não tenha medo de dragões. Isto é apenas um veículo pintado, dirigido por alguns dos homens do Dr. No. Não se assuste. Estou aqui perto.

— Muito bem, James. Tenha cuidado! — A voz agora deixava transparecer um vivo temor.

Bond curvou-se, apoiando um joelho no chão, sobre as folhas e a areia, e olhou para fora.

Agora o veículo achava-se a uns trezentos metros de distância, e os seus faróis amarelos estavam iluminando a areia. Chamas azuis continuavam saindo da boca daquele engenho. Saíam de uma espécie de longo focinho, no qual se pintaram mandíbulas entreabertas, para darem ao todo a aparência de dragão. Um lança-chamas! Aquilo explicava as árvores queimadas e a história do administrador. A coloração azul da chama seria dada por alguma espécie de queimador, disposto adiante do lança-chamas.

Bond teve que admitir que aquela visão era algo de terrível, à medida que o veículo avançava pelo lago raso. Evidentemente fora calculado para infundir terror. Ele mesmo ter-se-ia assustado, não fora a vibração rítmica do motor diesel. Mas até que ponto aquilo seria vulnerável para homens que não fossem dominados pelo pânico?

A resposta ele a teve quase imediatamente. Ouviu-se o estampido da “Remington” de Quarrel. Uma centelha saiu da cabina encimada pela cúpula e logo se ouviu um ruído metálico. Quarrel disparou mais um tiro e, logo em seguida, uma rajada. As balas chocaram-se inutilmente de encontro à cabina. Não houve mesmo uma simples redução de velocidade. O monstro continuava avançando para o ponto de onde tinham partido os disparos. Bond descansou o cano de seu “Smith & Wesson” no braço, e fez cuidadosa pontaria. O profundo ruído surdo de sua arma fez-se ouvir por sobre o matraquear da “Remington” de Quarrel. Um dos faróis fora atingido e despedaçara-se. Bond disparou mais quatro tiros contra o outro e atingiu-o com o quinto e último disparo de seu revólver. O fantástico aparelho parecia continuar não dando importância, e foi avançando para o lugar de onde tinham partido os disparos do “Smith & Wesson”. Bond tornou a carregar a arma e começou a atirar contra os pneumáticos, sob as asas negro e ouro. A distância agora era de apenas trinta metros e podia jurar que já atingira mais de uma vez a roda mais próxima, sem nenhum resultado. Seria borracha sólida? O primeiro estremecimento de medo percorreu a pele de Bond.

Carregou mais uma vez. Seria aquela coisa maldita vulnerável pela retaguarda? Deveria correr para o lago e tentar uma abordagem? Avançou um passo, através dos arbustos, mas logo ficou imóvel, incapaz de prosseguir.

Subitamente, daquele focinho ameaçador, uma língua de fogo azulada tinha sido lançada na direção do esconderijo de Quarrel. À direita de Bond, no mato, surgira apenas uma chama laranja e vermelha, simultaneamente com um estranho urro, que imediatamente silenciou. Satisfeita, aquela língua de fogo se recolhera à sua boca. Agora aquilo fizera um movimento de rotação sobre o seu eixo e parará completamente. O buraco azulado da boca apontava diretamente para Bond.

Bond deixou-se ficar, esperando pelo horroroso fim. Olhou através das mandíbulas da morte e viu o brilhante f-lamento vermelho do queimador, bem no fundo do comprido tubo. Pensou no corpo de Quarrel — mas não havia tempo para pensar em Quarrel — e imaginou-o completamente carbonizado. Dentro em pouco ele também se incendiaria como uma tocha. Um único berro seria arrancado dele e os seus membros se encolheriam na pose de dançarino dos corpos queimados. Depois viria a vez de Honey. Meu Deus, para o quê ele os havia arrastado! Por que fora tão insano a ponto de enfrentar aquele homem com todo o seu arsenal? Por que não aceitara a advertência que lhe fora feita pelo longo dedo que o alcançara já em Jamaica? Bond trincou os dentes. Vamos, canalhas. Depressa.

Ouviu-se a sonoridade de um alto-falante, que anunciava metàlicamente: “Saia daí, inglês. E a boneca também. Depressa ou será frito no inferno, como o seu amigo”. Para dar mais força àquela ordem, uma língua de fogo foi lançada em sua direção. Bond deu um passo atrás para recuar daquele intenso calor. Sentiu o corpo da garota de encontro às suas costas. Ela disse historicamente: — Tive que vir, tive que vir.

Bond disse: — Está bem, Honey. Fique atrás de mim.

Ele tinha-se decidido. Não havia alternativa. Mesmo que a morte viesse mais tarde, não poderia ser pior do que aquela morte diante do lança-chamas. Bond apanhou a mão da jovem e puxou-a consigo para fora, saindo para a areia.

A voz se fez ouvir novamente: — Pare aí, camarada. E deixe cair o lança-ervilhas. Nada de truques, senão os caranguejos terão um bom almoço.

Bond deixou cair a sua arma. Lá se fora o “Smith & Wesson”. O “Beretta” não teria tido melhor sorte: A jovem lastimou-se, e Bond apertou a sua mão. — Agüente, Honey, — disse ele. — Nós nos livraremos disso.

Bond troçou de si mesmo por causa daquela mentira. Ouviu-se o ruído de uma porta de ferro que se abria. Por trás da cúpula, um homem saltou para a água e caminhou até eles, com um revólver na mão. Ao mesmo tempo ia-se mantendo fora da linha de fogo do lança-chamas. A trêmula chama azul iluminou o seu rosto. Era um chinês negro, de enorme estatura, vestindo apenas calças. Alguma coisa balançava em sua mão esquerda, e quando ele se aproximou mais, Bond pôde ver que eram algemas.

O homem deteve-se a alguns metros de distância e disse:

— Levantem os braços. Punhos juntos e caminhem em minha direção. Você primeiro, inglês. Devagar ou receberá mais um umbigo.

Bond obedeceu e quando estava a um passo do homem, este prendeu o revólver entre os dentes, e esticou os braços e atou os seus pulsos com as algemas. Bond examinou aquele rosto iluminado pelas chamas azuis. Era uma cara brutal, com olhos estrábicos. O agente do Dr. No fitou-o com desprezo. — Bastardo imbecil! — disse.

Bond deu as costas ao homem e começou a se afastar. Ia ver o corpo de Quarrel. Tinha que lhe dizer adeus. Ouviu-se o ruído de um disparo e uma bala jogou-lhe areia nos pés. Bond parou, e voltando-se lentamente disse:

— Não fique nervoso. Vou dar uma espiada no homem que você acabou de assassinar. Voltarei.

O homem abaixou o revólver e riu grosseiramente: — Muito bem. Divirta-se. Desculpe se não temos uma coroa. Volte logo, se não daremos uma amostra à boneca. Dois minutos.

Bond caminhou em direção ao cerrado de arbustos fumegantes. Ali chegando, olhou para baixo. Seus olhos e boca se contraíram. Sim, tinha sido bem como ele imaginara. Pior, mesmo. Disse docemente: — Perdoe-me, Quarrel. — Com o pé soltou um pouco de areia, que colheu com as mãos algemadas e verteu-a sobre os restos dos olhos de Quarrel. Depois caminhou lentamente, de volta, e ficou ao lado da jovem.

O homem empurrou-os para a frente com o revólver. Deram a volta por trás da máquina, onde havia uma pequena porta quadrada. Uma voz do interior disse: — Entrem e sentem-se no chão. Não toquem em nada ou ficarão com os dedos partidos.

Com dificuldade, arrastaram-se para dentro daquela caixa de ferro, que cheirava a óleo e suor. Havia lugar apenas para que ambos se sentassem com as pernas encolhidas, de joelhos para cima. O homem que empunhava o revólver e que vinha atrás deles saltou por último para dentro do carro e fechou a porta. Ligou uma lâmpada e sentou-se num assento de ferro, ao lado do chofer. — Muito bem, Sam, vamos andando. Você pode apagar o fogo. Há luz bastante para dirigir — disse.

Na painel de controle podia-se ver uma fileira de mostradores. O motorista esticou a mão e deslocou para baixo um par de interruptores. Engrenou o motor e olhou através de uma estreita fresta, cortada na parede de ferro, diante dele. Bond sentiu que o veículo dava uma volta. Ouviu-se um movimento mais rápido do motor, e o veículo avançou.

O ombro da jovem apertou-se de encontro ao de Bond.

— Para onde estão eles nos levando? — O seu sussurro traía um estremecimento.

Bond voltou a cabeça e olhou para ela. Era a primeira vez que podia ver os seus cabelos depois de secos. Estavam desfeitos pelo sono, mas não eram mais mechas de rabichos empastados. Caíam densamente até os ombros, onde terminavam em anéis voltados para dentro. Eram do mais pálido louro acinzentado e despediam reflexos quase prateados sob a luz elétrica. Ela olhou para o alto, para ele. A pele, à volta dos olhos e nos cantos da boca, mostrava-se lívida de medo.

Bond deu de ombros, procurando aparentar uma indiferença que não sentia!. Sussurrou: — Oh, espero que vamos ver o Dr. No. Não se preocupe demais, Honey. Esses homens não passam de pequenos bandidos. Com ele, as coisas serão diferentes. Quando estivermos diante dele, não diga nada, falarei por nos dois. — Ele apertou o seu ombro e disse: — Gosto da maneira por que você penteia o seu cabelo, e fico contente porque você não o apara muito curto.

Um pouco da tenção desapareceu do rosto dela. — Como é que você pode pensar em coisas como essa? — Deu um leve sorriso para ele, e acrescentou: — Mas estou contente por você gostar de meu penteado. Lavo os meus cabelos com óleo de coco uma vez por semana.

À lembrança de sua outra vida, seus olhos ficaram brilhantes. Ela baixou a cabeça para as mãos algemadas, a fim de esconder as lágrimas. Sussurrou quase para si mesma: — Tentarei ser brava. Tudo estará bem, desde que você esteja lá.

Bond aconchegou-se a ela. Levantou suas mãos algemadas até a altura dos olhos e examinou as algemas. Eram do tipo usado pela polícia norte-americana. Contraiu sua mão esquerda, a mais fina das duas, e tentou fazê-la deslizar pelo anel de aço. Mesmo o suor de sua pele de nada adiantou. Era inútil.

Os dois homens sentavam-se em seus bancos de ferro, indiferentes, e com as costas voltadas para eles. Sabiam que dominavam inteiramente a situação. Não havia possibilidade de que Bond oferecesse qualquer incômodo. Não poderia levantar-se ou dar o necessário impulso aos seus punhos para causar qualquer mal às cabeças de seus adversários, utilizando as algemas. Se conseguisse abrir a porta e pular para a água, o que lograria com isso? Imediatamente eles sentiriam a brisa fresca, nas costas, e parariam a máquina para queimá-lo na água ou içá-lo novamente. Bond aborrecia-se em pensar que os homens pouco se preocupavam com ele, pois sabiam tê-lo completamente em seu poder. Também não gostou da idéia de que aqueles homens eram bastante inteligentes para saber que ele não representava nenhuma ameaça. Indivíduos mais estúpidos teriam ficado em cima deles, de revólver em punho, tê-los-iam surrado, a ele e à jovem, barbaramente, e talvez os tivessem deixado inconscientes. Aqueles dois conheciam o ofício. Eram profissionais, ou tinham sido treinados para o serem.

Os dois homens não falaram. Não houve nenhum comentário sobre o quão hábil eles tinham sido, ou quanto ao seu cansaço ou destino. Apenas dirigiam a máquina serenamente, ultimando com eficiência a sua tarefa.

Bond continuava sem a mínima idéia do que seria aquilo. Sob a tinta negra e dourada, assim como sob o resto daquela fantasia, a máquina parecia uma espécie de trator, como ele nunca vira. Não tinha conseguido descobrir nomes de marcas comerciais, nos pneumáticos, pois estivera muito escuro, mas certamente que deveriam ser de borracha sólida ou porosa. Atrás havia um pequena roda para dar estabilidade ao conjunto. Uma espécie de barbatana de ferro fora ainda acrescentada e pintada também de preto e ouro, a fim de ajudar a dar a aparência de dragão. Os altos pára-lamas tinham sofrido um prolongamento, na forma de curtas asas voltadas para trás. Uma comprida cabeça de dragão, feita em metal, fora fixada ao radiador e os faróis receberam pontos centrais negros, para parecerem olhos. Era tudo, sem falar da cabina que fora recoberta com uma cúpula blindada e dotada de um lança-chamas. Era, como pensara Bond, um trator preparado para assustar e queimar — embora não pudesse atinar porque estava dotado de um lança-chamas e não de uma metralhadora. Era, evidentemente, a única espécie de veículo que poderia percorrer a ilha. Suas gigantescas rodas podiam avançar sobre os mangues, pântanos e ainda atravessar o lago raso. Galgaria também os agrestes planaltos de coral e, desde que andasse à noite, o calor experimentado na cabina seria pelo menos tolerável.

Bond ficara impressionado. Impressionado pelo toque de profissionalismo. O Dr. No era sem dúvida um homem que se preocupava intensamente com as coisas. Em pouco iria encontrá-lo. E em breve estaria diante do segredo do Dr. No. Então, o que aconteceria? Bond sorriu amargamente. Sim, não o deixariam sair dali com o seu conhecimento. Certamente seria morto, a menos que pudesse fugir ou conseguir a sua liberdade por meios persuasivos. E o que aconteceria à jovem? Poderia ele provar sua inocência e conseguir com que ela fosse poupada? Possivelmente, mas nunca mais ela teria permissão para deixar a ilha. Ali teria de ficar para o resto da vida, como amante ou mulher de um dos homens, ou do próprio Dr. No, se ela o impressionasse.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um trecho do percurso mais difícil, como se podia sentir pela trepidação. Tinham atravessado o lago e estavam no caminho que levava para o alto da montanha, junto às cabanas. A cabina vibrava e a máquina começou a galgar o terreno. Dentro de cinco minutos estariam lá.

O ajudante do motorista olhou por sobre o ombro para Bond e a jovem. Bond sorriu confiantemente para ele dizendo: Você receberá uma medalha por isso.

Os olhos amarelos e marrons olharam impassivelmente dentro dos dele, enquanto os lábios arroxeados e oleosos se fenderam num sorriso no qual havia um ódio repousado: Feche a boca, se... Depois, deu-lhe as costas.

A jovem tocou-o com o cotovelo e sussurrou: — Por que eles são tão rudes? Por que nos odeiam tanto?

Bond esboçou um sorriso e disse: — Acho que é porque lhes causamos medo. Talvez ainda estejam com medo, e isto porque não parecemos ter medo deles. Devemos mantê-los assim.

A jovem aconchegou-se a ele e disse: — Tentarei.

Agora a subida estava-se tornando mais íngreme. Uma luz azul-acinzentada atravessava as frestas da armadura. A madrugada se aproximava. Fora, em breve estaria começando mais um dia de calor abrasador, de execrável vento, carregado com o cheiro de gás dos pântanos. Bond pensou em Quarrel, o bravo gigante que não mais veria aquele dia, e com o qual eles deveriam agora estar caminhando através dos pauis de mangues. Quarrel tinha pressentido a morte, mas apesar disso tinha acompanhado Bond sem qualquer objeção. Sua fé em Bond tinha sido maior do que o seu medo. E Bond tinha-lhe faltado. Seria ele ainda o causador da morte da jovem?

O motorista esticou o braço em direção ao painel e na parte dianteira do veículo fez-se ouvir o breve zunido de uma sirena de polícia, que foi desaparecendo num gemido fúnebre. Mais um minuto e o veículo parava, continuando o motor em regime neutro. O homem apertou um interruptor e tirou um microfone de um gancho, a seu lado. Falou por aquele microfone e Bond pôde ouvir a sua voz aumentada, do lado de fora, por um altofalante. — Tudo bem. Apanhamos o inglês e a garota. O outro homem morreu. Isso é tudo. Abram. — Bond ouviu que uma porta se deslocava para o lado, sobre rolamentos. O motorista embreou e eles avançaram lentamente para a frente, parando alguns metros adiante. O motorista desligou o motor. Ouviu-se o ruído metálico da tranca e a porta foi aberta pelo lado de fora. Uma lufada de ar fresco e uma luz mais brilhante penetraram na cabina. Várias mãos agarraram Bond e arrastaram-no para trás, até um chão de cimento. Bond agora estava de pé e sentia o cano de um revólver encostado ao seu flanco. Uma voz disse: — Fique onde está. Nada de espertezas. — Bond olhou para o homem. Era mais um chinês negro, do mesmo tipo que os outros. Os olhos amarelos examinaram-no com curiosidade. Bond virou-se com indiferença. Outro homem estava cutucando a jovem com a arma. Bond disse asperamente: — Deixe a garota em paz! Em seguida, caminhou e pôs-se ao lado da jovem. Os dois homens pareceram surpresos. Deixaram-se ficar de pé, apontando as armas com hesitação.

Bond olhou à volta. Estavam numa das cabanas pré-fabricadas que ele vira do rio. Era ao mesmo tempo uma garagem e uma oficina. O “dragão” tinha sido colocado sobre um fosso de vistoria, no chão de concreto. Um motor de popa desmontado estava sobre uma das bancadas. Longos tubos de luz fluorescente estavam afixados ao teto e o ambiente estava impregnado do cheiro de óleo e fumaça de exaustor. O motorista e o seu companheiro examinavam a máquina. Em seguida deram alguns passos pelo galpão, como se andassem sem propósito.

Um dos guardas anunciou: — Enviei a mensagem. A ordem é que eles sejam levados. Foi tudo bem?

O ajudante de motorista, que parecia o homem mais responsável, ali presente, disse: — Sem dúvida. Alguns disparos. Os faróis foram partidos. Talvez haja alguns furos nos pneumáticos. Ponha os rapazes em ação — uma vistoria completa. Conduzirei esses dois e tirarei um cochilo. — E, voltando-se para Bond: — Bem, vamos andando — e indicou o caminho que saía do longo galpão.

Bond disse: — Vá andando você; e cuidado com os modos. Diga àqueles macacos que tirem as armas de cima de nós. Podem disparar por engano. Parecem bastante idiotas.

O homem se aproximou, e os outros os acompanharam logo atrás. O ódio brilhava em seus olhos. O chefe levantou o punho cerrado, tão grande quanto um pequeno malho e chegou-o à altura do nariz de Bond. Procurava controlar-se com esforço, e disse: — Ouça, senhor. Às vezes, nós, os rapazes, temos permissão para participar da festa final. Estou rezando para que essa seja uma dessas vezes. Certa ocasião fizemos com que a coisa durasse toda uma semana. E se eu o pego...

Riu e os seus olhos brilharam com crueldade. Olhou para o lado de Bond, fixando a garota. Seus olhos pareciam transformados em bocas que agitavam os lábios. Enfiou as mãos nos bolsos laterais das calças. A ponta de sua língua mostrava-se muito vermelha, entre os lábios arroxeados. Voltando-se para os companheiros disse: — Que tal, rapazes?

Os três homens estavam olhando também para a jovem. Fizeram um sinal de assentimento, como crianças diante de uma árvore de Natal.

Bond desejou atirar-se como um louco sobre eles, golpeando as suas caras com os punhos algemados e aceitando a sua vingança sangrenta. Não fosse pela jovem, bem que o teria feito. Mas tudo o que tinha conseguido com suas corajosas palavras fora amedrontá-la. Disse apenas: — Muito bem, muito bem. Vocês são quatro e nós somos dois, ainda por cima com as mãos atadas. Vamos, não queremos atingi-los. Apenas não nos empurrem muito de um lado para outro. O Dr. No poderia não ficar satisfeito.

Àquele nome, os rostos dos homens se modificaram. Três pares de olhos passaram apàticamente de Bond para o chefe. Por um segundo, este olhou com desconfiança para Bond, intrigado, tentando descobrir se Bond teria alguma influência junto ao Dr. No. Sua boca abriu-se para dizer algo, mas logo pareceu pensar melhor, e apenas disse de maneira incerta: — Bem, bem, estávamos simplesmente brincando. — Voltou-se para os homens, em busca de confirmação: — Não é?

— Sem dúvida, sem dúvida! — foi a resposta dada por um coro áspero, e os homens desviaram o olhar.

O chefe disse com mau humor: — Por aqui, senhor. — E ele mesmo pôs-se a caminho, percorrendo o comprido galpão.

Bond segurou o pulso da jovem e seguiu o chefe. Estava impressionado com a reação causada naqueles homens pelo nome do Dr. No. Aquilo era alguma coisa a lembrar se eles tivessem que se haver novamente com aquela turma.

O homem chegou a uma porta de madeira situada na extremidade do galpão. Ao lado havia um botão de campainha que ele pressionou duas vezes e esperou. Ouviu-se um estalido e a porta se abriu, mostrando dez metros de uma passagem rochosa, mas atapetada e que ia dar, na outra extremidade, em outra porta mais elegante e pintada de creme.

O homem ficou de lado. Siga em frente, senhor — disse; — bata na porta e será atendido pela recepcionista. — Não havia nenhuma ironia em sua voz e seus olhos se mostravam impassíveis.

Bond conduziu Honey pela passagem. Ouviu que a porta se fechava às suas costas. Deteve-se por um momento e fitou-a, perguntando-lhe: — E agora?

Ela riu, trêmula, mas respondeu: — Ê bom sentir-se tapete sob os pés.

Bond apertou o seu pulso. Andou até a porta pintada de creme e bateu.

A porta abriu-se e Bond entrou com a jovem ao lado. Quando se deteve instantaneamente, não chegou a perceber o encontrão que lhe dava a jovem, pois continuou estarrecido.


XIII - GAIOLA DE OURO


Era a espécie de sala de recepção que as maiores corporações norte-americanas possuem no andar em que se situa o escritório do presidente, em seus arranha-céus de Nova Iorque. Suas proporções eram agradáveis, com cerca de vinte pés quadrados. O chão era todo recoberto pelo mais espesso tapete Wilton cor-de-vinho. O teto e as paredes estavam pintados numa suave tonalidade cinza pombo. Viam-se ainda reproduções litográficas de esboços de balé de Degas penduradas em séries, nas paredes, e a iluminação era feita com altos e modernos jogos de abajures de seda verde-escuro, imitando a forma de elegantes barricas.

À direita de Bond estavam uma larga mesa de mogno, com o tampo recoberto com couro verde, outras peças que se harmonizavam perfeitamente com a mesa, e um caro sistema de intercomunicações. Duas cadeiras altas, de antiquado, aguardavam os visitantes. Do outro lado da sala via-se uma mesa do tipo refeitório, sobre a qual estavam várias revistas com capas em cores vivas e mais duas cadeiras. Tanto na mesa de escritório, como na outra, viam-se vasos de hibiscos. O ar era fresco e impregnado de leve fragrância.

Duas mulheres estavam naquela sala. Por trás da mesa de trabalho, empunhando uma caneta que descansava sobre um formulário impresso, estava sentada uma jovem chinesa, de aspecto eficiente, com óculos de armação de chifre, sob uma franja de cabelos negros cortados curtos. Em seus olhos e em sua boca havia o sorriso padrão de boas-vindas que qualquer recepcionista exibe — a um tempo claro, obsequioso e inquisitivo.

Ainda com a mão na maçaneta da porta pela qual eles tinham passado, e esperando que os recém-chegados se adiantassem mais, a fim de que ela a pudesse fechar, estava uma mulher mais velha, com aspecto de matrona, e que deveria ter cerca de quarenta e cinco anos. Era fácil ver-se que também tinha sangue chinês. Sua aparência, saudável, de farto busto, era viva e quase excessivamente graciosa. O seu “pince-nez” de lentes cortadas em quadrado brilhava com o desejo da recepcionista de os pôr à vontade.

Ambas as mulheres vestiam roupas imaculadamente alvas, com meias brancas e sapatos de camurça branca como costumam apresentar-se as auxiliares empregadas nos mais luxuosos salões de beleza norte-americanos. Havia um que de suave e pálido em suas peles, como se elas raramente saíssem para o ar-livre.

Bond observou o ambiente, enquanto a mulher junto à porta lhe dizia frases convencionais de boas-vindas, como se eles tivessem sido colhidos por uma tempestade o chegado com atraso a uma festa.

— Oh, coitados! Nós não sabíamos quando vocês iriam chegar. A todo momento nos diziam que vocês já estavam a caminho... primeiro à hora do chá, ontem, depois na hora do jantar, e apenas há uma hora fomos informadas de que vocês chegariam à hora do desjejum. Devem estar com fome. Venham aqui e ajudem a irmã Rosa a preencher o formulário; depois eu os prepararei para a cama. Devem estar muito cansados.

Ia dizendo aquilo com voz doce e cacarejante, ao mesmo tempo que fechava a porta e os levava para junto da mesa e os fazia sentar nas cadeiras. Depois disse: — Bem, eu sou a irmã Lírio, e esta é a irmã Rosa. Ela irá fazer-lhes apenas algumas perguntas. Agora, aceitam um cigarro? — e pegou uma caixa de couro trabalhado que estava em cima da mesa. Abriu-a e pô-la diante deles. A caixa tinha três divisões, e a chinesinha explicou apontando com um dedo: “Esses são americanos, esses são ingleses e esses turcos.” Ela apanhou um luxuoso isqueiro de mesa e esperou.

Bond estendeu as mãos algemadas para tirar um cigarro turco.

A irmã Lírio deu um gritinho de espanto: — Oh, mas francamente. — Parecia sinceramente embaraçada. — Irmã Rosa, dê-me a chave, depressa. Já disse por várias vezes que os pacientes não devem ser trazidos dessa maneira. — Havia impaciência e aborrecimento em sua voz. — Francamente, aquela gente lá de fora! Já era tempo que eles fossem chamados à ordem.

A irmã Rosa estava tão embaraçada quanto a irmã Lírio. Rapidamente remexeu dentro de uma gaveta e entregou uma chave à irmã Lírio, que com muitas desculpas e cheia de dedos abriu os dois pares de algemas e, afastando-se para trás da mesa, deixou aquelas duas pulseiras de aço caírem dentro da cesta de papéis como se fossem ataduras sujas.

— Obrigado, — disse Bond, que não sabia como enfrentar aquela situação, a não ser procurando desempenhar um papel qualquer na comédia que se estava representando. Ele estendeu o braço, apanhou um cigarro e acendeu-o. Lançou um olhar para Honeyehile Rider, que parecia estonteada e nervosamente apertava com as mãos os braços de sua cadeira. Bond dirigiu-lhe um sorriso de conforto.

— Agora, por favor; — disse a irmã Rosa e inclinou-se sobre um comprido formulário impresso em papel caro. — Prometo ser o mais rápida que puder. O seu nome, sr... sr...

— Bryce, John Bryce.

Ela escreveu a resposta com grande concentração. — Endereço permanente?

— Aos cuidados do Jardim Zoológico Real, Regents Park, Londres, Inglaterra.

— Profissão?

— Ornitologista.

— Oh, meu Deus!, poderia o senhor soletrar isso? Bond atendeu-a.

— Muito obrigada. Agora, vejamos, objeto da viagem?

— Aves — respondeu Bond. — Sou também representante da Sociedade Audubon de Nova Iorque. Eles arrendaram parte desta ilha.

— Oh, sem dúvida. — Bond observou que a pena escrevia exatamente o que ele dizia. Depois da última palavra ela pôs um claro ponto de interrogação entre parênteses.

— E — a irmã Rosa sorriu polidamente em direção a Honeyehile — a sua esposa? Ela também está interessada em pássaros?

— Sim, sem dúvida.

— O seu primeiro nome?

— Honeyehile.

A irmã Rosa estava encantada. — Que nome lindo! — Ela voltou a escrever apressadamente. — E agora os parentes mais próximos de ambos, e estará tudo acabado.

Bond deu o verdadeiro nome de M como o parente mais próximo de ambos. Apresentou-o como “tio” e indicou o seu endereço como sendo “Diretor-Gerente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres.”

A irmã Rosa acabou de escrever e disse: — Pronto, está tudo feito. Muito obrigada, sr. Bryce, e espero que ambos apreciem a permanência aqui.

— Muito obrigado. Estou certo de que apreciaremos. — Bond levantou-se e Honeyehile fez o mesmo, ainda com expressão vazia.

A irmã Lírio disse: — Agora, venham comigo, queridos.

— Ela caminhou até uma porta na parede distante e deteve-se com a mão na maçaneta talhada em vidro. — Oh, meu Deus, — disse —, não é que agora me esqueci do número de seus quartos? É o apartamento creme, não é, irmã?

— Isso mesmo. Catorze e quinze.

— Obrigada, querida. E agora — ela abriu a porta — se vocês quiserem me seguir... Receio que seja uma caminhada um pouco longa. — Fechou a porta, por trás deles, e pôs-se à frente, indicando o caminho. — O Doutor tem falado várias vezes em instalar uma dessas escadas rolantes, ou algo de parecido, mas sabem como são os homens ocupados: — Ela riu alegremente. — Ele tem tantas outras coisas em que pensar!

— Sim, acredito, — disse Bond polidamente.

Bond tomou a mão da jovem e seguiram ambos a maternal e agitada chinesa através de cem metros de um alto corredor, do mesmo estilo da sala de recepção, mas que era iluminado a freqüentes intervalos por caros tubos luminosos fixados às paredes.

Bond respondia com polidos monossílabos aos comentários ocasionais que a irmã Lírio lhe lançava por sobre os ombros. Toda a sua mente se concentrava nas extraordinárias circunstâncias de sua recepção. Tinha certeza de que aquelas duas mulheres tinham sido sinceras. Nenhum só olhar ou palavra conseguira registrar que estivesse fora de propósito. Evidentemente aquilo era alguma espécie de fachada, mas de qualquer forma uma fachada sólida, meticulosamente apoiada pelo cenário e pelo elenco. A ausência de ressonância, na sala, e agora no corredor, estava a indicar que eles tinham deixado o galpão pré-fabricado para se internarem no flanco da montanha e agora estavam atravessando a sua base. Segundo o seu palpite estavam mesmo andando em direção oeste — em direção à penedia na qual terminava a ilha. Não havia umidade nas paredes e o ar parecia fresco e puro, com uma brisa a afagá-los. Muito dinheiro e uma bela realização de engenharia tinham sido os responsáveis por aquilo. A palidez das duas mulheres estava a sugerir que passavam a maior parte do tempo internadas no âmago da montanha. Do que a irmã dissera, parecia que elas faziam parte de um grupo de funcionários internos que nada tinham a ver com o destacamento de choque do exterior, e que talvez não soubessem a espécie de homens que eles eram.

Aquilo era grotesco, concluiu Bond ao se aproximar de uma porta, na extremidade do corredor, perigosamente grotesco, mas em nada adiantava pensar nisso no momento. Ele apenas podia seguir o papel que lhe tinha sido destinado. Pelo menos, aquilo era melhor do que os bastidores, na arena exterior da ilha.

Junto à porta, a irmã Lírio fez soar uma campainha. Já eram esperados e a porta abriu-se imediatamente. Uma encantadora jovem chinesa, de quimono lilás e branco, ficou a sorrir e a curvar-se, como se deve esperar que o façam as jovens chinesas. E, mais uma vez só havia calor e um sentimento de boas-vindas naquele rosto pálido como uma for. A irmã Lírio exclamou: — Aqui estão eles, finalmente, May! São o senhor e a senhora John Bryce. E sei que ambos devem estar exaustos, por isso devemos levá-los imediatamente aos seus aposentos, para que possam repousar e dormir. — Voltando-se para Bond: — Esta é May, muito boazinha. Ela tratará de ambos. Qualquer coisa que queiram é só tocar a campainha que May atenderá. É uma espécie de favorita de todos os nossos hóspedes.

Hóspedes!, pensou Bond. Essa é a segunda vez que ela usa a palavra. Sorriu polidamente para a jovem, e disse;

— Muito prazer; sim, certamente que gostaríamos de ir para os nossos aposentos.

May envolveu-os num cálido sorriso, e disse em voz baixa e atraente: — Espero que ambos se sintam bem, sr. Bryce. Tomei a liberdade de mandar vir uma refeição assim que soube que os senhores iam chegar. Vamos...? — Corredores saiam para a esquerda e a direita de portas duplas de elevadores, instalados na parede oposta. A jovem adiantou-se, caminhando na frente, para a direita, logo seguida de Bond e Honeyehile, que tinham atrás a irmã Lírio.

Ao longo do corredor, dos dois lados, viam-se portas numeradas. A decoração era feita no mais pálido cor-de-rosa, com um tapete cinza-pombo. Os números nas portas eram superiores a dez. O corredor terminava abruptamente, com duas portas, uma em frente a outra, com a numeração catorze e quinze. A irmã May abriu a porta catorze e o casal a seguiu, entrando na peça.

Era um lindo quarto de casal, em moderno estilo Mia-mi, com paredes verde-escuro, chão encerado de mogno escuro, com um ou outro espesso tapete branco e bem desenhado mobiliário de bambu com um tecido “chintz” de grandes rosas vermelhas sobre fundo branco. Havia uma porta de comunicação para um quarto de vestir masculino e outra que dava para um banheiro moderno e extremamente luxuoso, com uma banheira de descida e um bidê.

Era como se tivessem sido introduzidos num apartamento do mais moderno hotel da Flórida, com exceção de dois detalhes que não passaram despercebidos a Bond. Não havia janelas e nenhuma maçaneta interior nas portas.

May olhou com expressão de expectativa, de um para o outro.

Bond voltou-se para Honeyehile e sorriu-lhe: — Parece muito confortável, não acha, querida?

A jovem brincava com a barra da saia e fez um sinal de assentimento sem olhar para Bond.

Ouviu-se uma tímida batida na porta e outra jovem, tão linda quanto May, entrou carregando uma bandeja que se equilibrava sobre as palmas das mãos. A jovem descansou a bandeja sobre a mesa do centro e puxou duas cadeiras. Retirou a toalha de linho imaculadamente limpa e saiu. Sentiu-se um delicioso cheiro de fiambre e café.

May e a irmã Lírio também se encaminharam para a porta. A mulher mais idosa se deteve por um instante e disse:

— E agora nós os deixaremos em paz. Se desejarem alguma coisa, basta tocar a campainha. Os interruptores estão ao lado da cama. Ah, outra coisa, poderão encontrar roupa limpa nos aparadores. Receio que sejam apenas de estilo chinês,

— acrescentou, como a desculpar-se —, mas espero que os tamanhos satisfaçam. A rouparia só recebeu as medidas ontem à noite. O Dr. deu ordens severas para que os senhores não fossem perturbados. Ficará encantado se puderem reunir-se a ele, esta noite, para o jantar. Deseja, entretanto, que tenham todo o resto do dia à vontade, a fim de que melhor se ambientem, compreendem? — Fez uma pausa e olhou para um e para outro, com um sorriso indagador. — Posso dizer que os senhores...?

— Sim, por favor, — disse Bond. — Pode dizer ao D., que teremos muito prazer em jantar com ele.

— Oh, sei que ficará contente. — Com uma derradeira mesura, as duas chinesas se retiraram e fecharam a porta.

Bond voltou-se para Honeyehile, que parecia embaraçada e ainda evitava os seus olhos. Ocorreu então a Bond que talvez jamais tivesse ela tido um tratamento tão cortês ou visto tanto luxo em sua vida. Para ela, tudo aquilo devia ser muito mais estranho e aterrador do que o que tinham passado ao lado de fora. Ela continuou na mesma posição, brincando com a barra da saia. Podiam-se notar vestígios de suor seco, sal e poeira em seu rosto. Suas pernas nuas estavam sujas e Bond observou que os dedos de seus pés se moviam, suavemente, ao pisarem nervosamente o maravilhoso e espesso tapete.

Bond riu. Riu com gosto ao pensamento de que os temores da jovem tivessem sido abafados pelas preocupações de etiqueta e comportamento, e riu-se também da figura que ambos faziam — ela em farrapos e ele com a suja camisa azul, as calças pretas e os sapatos de lona enlameados.

Aproximou-se dela e segurou-lhe mãos. Estavam frias. Disse: — Honey, somos um par de espantalhos, mas há apenas um problema básico. Devemos tomar o nosso desjejum primeiro, enquanto está quente, ou tiraremos antes esses farrapos e tomaremos um banho, tomando a nossa refeição fria? Não se preocupe com mais nada. Estamos aqui nessa maravilhosa casinha e isto é tudo o que importa. O que faremos, então?

Ela sorriu hesitante. Seus olhos azuis fixavam-se no rosto dele, na ânsia de obter segurança. Depois disse: — Você não está preocupado com o que nos possa acontecer? — Fez um sinal para o quarto e acrescentou: — Não acha que tudo isso pode ser uma armadilha?

— Se se trata de uma armadilha, já caímos nela. Agora nada mais podemos fazer senão comer a isca. A única questão que subsiste é a de saber se a comeremos quente ou fria. — Apertou-lhe as mãos e continuou: — Seriamente, Honey. Deixe as preocupações comigo. Pense apenas onde estávamos apenas há uma hora. Isso aqui não é melhor? Agora, decidamos a única coisa realmente importante. Banho ou desjejum?

Ela respondeu com relutância: — Bem, se você acha... Quero dizer — preferiria antes lavar-me. — Mas logo acrescentou: — Você terá que ajudar-me. — E sacudiu a cabeça em direção ao banheiro, dizendo: Não sei como mexer numa coisa dessas. Como é que se faz?

Bond respondeu com toda seriedade: — É muito fácil. Vou preparar tudo para você. Enquanto você estivar tomando o seu banho tomarei o meu desjejum. Ao mesmo tempo tratarei de fazer com que o seu não esfrie.

Bond aproximou-se de um dos armários embutidos e abriu a porta. No interior havia uma meia dúzia de quimonos, alguns de seda e outros de linho. Apanhou um de linho, ao acaso. Depois, voltando-se para ela, disse: — Tire suas roupas e meta-se nisso aqui, enquanto preparo o seu banho. Mais tarde você escolherá as coisas que preferir, para a cama e para o jantar.

Ela respondeu com gratidão: — Oh, sim, James. Se você apenas me mostrasse... — E logo começou a desabotoar a saia.

Bond pensou em tomá-la nos braços e beijá-la, mas, ao invés disso, disse abruptamente: — ótimo, Honey — e, adiantando-se para o banheiro, abriu as torneiras.

Havia de tudo naquele banheiro: essência para banhos Floris Lime, para homens, e pastilhas de Guarlain para o banho de senhoras. Esfarelou uma pastilha na água e imediatamente o banheiro perfumou-se como uma loja de orquídeas. O sabonete era o Sapoceti de Guarlain “Fleurs des Alpes”. Num pequeno armário de remédios, atrás de um espelho, em cima da pia, podiam-se encontrar tubos de pasta, escovas de dente e palitos “Steradent”, água “Rose” para lavagem bucal, aspirina e leite de magnésia. Havia também um aparelho de barbear elétrico, loção “Lentheric” para barba, e duas escovas de náilon para cabelos e pentes. Tudo era novo e ainda não tinha sido tocado.

Bond olhou para o seu rosto sujo e sem barbear, no espelho, e riu sardonicamente para os próprios olhos, cinzentos, de pária queimado pelo sol. O revestimento da pílula certamente que era do melhor açúcar. Seria inteligente esperar que o remédio, no interior daquela pílula, fosse dos mais amargos.

Tocou a água, com a mão, a fim de sentir a temperatura. Talvez estivesse muito quente para quem jamais tinha tomado antes um banho quente. Deixou então que corresse um pouco mais de água fria. Ao inclinar-se, sentiu que dois braços lhe eram passados em torno do pescoço. Endireitou-se. Aquele corpo dourado resplandecia no banheiro todo revestido de ladrilhos brancos. Ela beijou-o impetuosamente nos lábios. Ele passou-lhe os braços à volta da cintura e esmagou-a de encontro a seu corpo, com o coração aos pulos. Ela disse sem fôlego, ao seu ouvido: — Achei estranhas as roupas chinesas, mas de qualquer maneira você disse à mulher que nós éramos casados.

Uma das mãos de Bond estava pousada sobre o seu seio esquerdo, cujo mamilo estava completamente endurecido pela paixão. O ventre da jovem se comprimia contra o seu. Por que não? Por que não? Não seja tolo! Este é um momento louco para isso. Vocês dois estão diante de um perigo mortal. Você deve continuar frio como gelo, para ter alguma possibilidade de se livrar dessa enrascada. Mais tarde! Mais tarde! Não seja fraco.

Bond retirou a mão do seio dela e espalmou-a à volta de seu pescoço. Esfregou o rosto de encontro ao dela e depois aproximou a boca da boca da jovem e deu-lhe um prolongado beijo.

Afastou-se depois e manteve-a à distância de um braço. Por um momento ambos se olharam, com os olhos brilhando de desejo. Ela respirava ofegantemente, com os lábios entreabertos, de modo que ele podia ver-lhe o brilho dos dentes. Ele disse com a voz trêmula: — Honey, entre no banho antes que eu lhe dê uma surra.

Ela sorriu e sem nada dizer entrou na banheira e deitou-se em todo seu comprimento. Do fundo da banheira ergueu os olhos para ele. Os cabelos louros, em seu corpo, brilhavam como moedas de ouro. Ela disse provocadoramente: — Você tem que me esfregar. Não sei como devo fazer, e você terá que mostrar-me.

Bond respondeu desesperadamente: — Cale a boca, Honey, e deixe de namoros. Apanhe a esponja, o sabonete e comece logo a se esfregar. Que diabo! Isso não é o momento de se fazer amor. Vou tomar o meu desjejum. — Esticou a mão para a porta e segurou na maçaneta. Ela disse docemente: — James! — Ele olhou para trás e viu que ela lhe fazia uma careta, com a língua de fora. Retribuiu com uma careta selvagem e bateu a porta com força.

Em seguida, Bond dirigiu-se para o quarto de vestir e deixou-se ficar durante algum tempo, de pé, no centro da peça, esperando que as batidas de seu coração se acalmassem. Esfregou as mãos no rosto e sacudiu a cabeça, procurando esquecê-la.

Para clarear a mente, percorreu ainda cuidadosamente as duas peças, procurando saídas, possíveis armas, microfones, qualquer coisa enfim que lhe aumentasse o conhecimento da situação em que se achava. Nada disso, entretanto, pôde encontrar. Na parede havia um relógio elétrico que marcava oito e meia e uma série de botões de campainhas, ao lado da cama de casal. Esses botões traziam a indicação de “Sala de serviço”, “cabeleireiro”, “manicure”, “empregada”. Não havia telefone. Bem no alto, a um canto de ambas as peças, viam-se as grades de um pequeno ventilador. Cada uma dessas grades era de dois pés quadrados. Tudo inútil. As portas pareciam ser feitas de algum metal leve, pintadas para combinarem com as paredes. Bond jogou todo o peso de seu corpo contra uma delas, mas ela não cedeu um só milímetro. Bond esfregou o ombro. Aquele lugar era uma verdadeira prisão. Não adiantava discutir a situação. A armadilha tinha-se fechado hermèticamente sobre eles. Agora, a única coisa que restava aos ratos era tirarem o melhor proveito possível da isca de queijo.

Bond sentou-se à mesa do desjejum, sobre a qual estava uma grande jarra com suco de abacaxi, metida num pequeno balde de prata cheio de cubos de gelo. Serviu-se rapidamente e levantou a tampa de uma travessa. Ali estavam ovos mexidos sobre torradas, quatro fatias de toucinho defumado, um rim grelhado e o que parecia quatro salsichas inglesas de carne de porco. Havia também duas torradas quentes, pãezinhos conservados quentes dentro de guardanapos, geléia de laranja e morango e mel. O café estava quase fervendo numa grande garrafa térmica, e o creme exalava um odor fresco e agradável.

Do banheiro vinham as notas da canção “Marion” que a jovem estava cantarolando. Bond resolveu não dar ouvidos à cantoria e concentrou-se nos ovos.

Dez minutos depois, Bond ouviu que a porta do banheiro se abria. Descansou uma torrada que tinha numa das mãos e cobriu os olhos com a outra. Ela riu e disse: — Ele é um covarde. Tem medo de uma simples jovem. — Em seguida Bond ouviu-a a remexer nos armários. Ela continuava falando, em parte consigo mesma: — Não sei porque ele está assustado. Naturalmente que se eu lutasse com ele facilmente o dominaria. Talvez esteja com medo disso. Talvez não seja realmente muito forte, embora seus braços e peito pareçam bastante rijos. Contudo, ainda não vi o resto. Talvez seja fraco. Sim, deve ser isso. Essa é a razão pela qual não ousa despir-se na minha frente. Hum, agora vamos ver, será que ele gostaria de mim com essas roupas? — Ela elevou a voz: — Querido James, você gostaria de me ver de branco, com pássaros azul-pálido esvoaçando sobre o meu corpo?

— Sim, bolas! Agora acabe com essa conversa e venha comer. Estou começando a sentir sono.

Ela soltou uma exclamação: — Oh, se você quer dizer que já está na hora de irmos para a cama, naturalmente que me apressarei.

Ouviu-se uma agitação de passos apressados e Bond logo a via sentar-se diante de si. Ele deixou cair as mãos e ela sorriu-lhe. Estava linda. Seu cabelo estava escovado e penteado de um dos lados caindo sobre o rosto, e do outro com as madeixas puxadas para trás da orelha. Sua pele brilhava de frescura e os grandes olhos azuis resplandeciam de felicidade. Agora Bond estava gostando daquele nariz quebrado. Tinha-se tornado parte de seus pensamentos relativamente a ela, e subitamente lhe ocorreu perguntar-se por que estaria ele triste quando ela era tão imaculadamente bela quanto tantas outras lindas jovens. Sentou-se circunspectamente, com as mãos no colo, e a metade dos seios aparecendo na abertura do quimono.

Bond disse severamente: — Agora, ouça, Honey. Você está maravilhosa, mas esta não é a maneira de usar-se um quimono. Feche-o no corpo, prenda-o bem e deixe de tentar parecer uma prostituta. Isso simplesmente não são bons modos à mesa.

— Oh, você não passa de um boneco idiota. — E ajeitou o quimono, fechando-o um pouco, em uma ou duas polegadas. — Por que você não gosta de brincar? Gostaria de brincar de estar casada.

— Não à hora do desjejum — respondeu Bond com firmeza. — Vamos, coma logo. Está delicioso. De qualquer maneira estou muito sujo, e agora vou fazer a barba e tomar um banho. — Levantou-se, deu volta à mesa e beijou-lhe o alto da cabeça. — E quanto a essa história de brincar, como você diz, gostaria mais de brincar com você do que com qualquer outra pessoa do mundo. Mas não agora. — Sem esperar pela resposta, dirigiu-se ao banheiro e fechou a porta.

Bond barbeou-se e tomou um banho de chuveiro. Sentia-se desesperadamente sonolento. O sono chegava-lhe, de modo que de quando em quando tinha que interromper o que fazia e inclinar a cabeça, repousando-a entre os joelhos. Quando começou a escovar os dentes, o seu estado era tal que mal podia fazê-lo. Estava começando a reconhecer os sintomas. Tinha sido narcotizado. A coisa teria sido posta no suco de abacaxi ou no café? Este era um detalhe sem importância. Aliás, nada tinha importância. Tudo o que queria fazer era estender-se naquele chão de ladrilhos e fechar os olhos. Assim mesmo, dirigiu-se cambaleante para a porta, esquecendo-se de que estava nu. Isso também pouca importância tinha. A jovem já tinha terminado a refeição e agora estava na cama. Continuou trôpego, até ela, segurando-se nos móveis. O quimono tinha sido abandonado no chão e ela dormia pesadamente, completamente nua, sob um simples lençol.

Bond olhou para o travesseiro, ao lado da jovem. Não! Procurou o interruptor e apagou as luzes. Agora teve que se arrastar pelo chão até chegar ao seu quarto. Chegou até junto de sua cama e atirou-se nela. Com grande esforço conseguiu ainda esticar o braço, tocar o interruptor e tentar apagar a lâmpada do criado-mudo. Mas não o conseguiu: sua mão deslizou, atirou o abajur ao chão e a lâmpada espatifou-se. Com um derradeiro esforço, Bond virou-se ainda no leito e adormeceu profundamente.

Os números luminosos do relógio elétrico, no quarto de casal, anunciavam nove e meia.

Às dez horas, a porta do quarto abriu-se suavemente. Um vulto muito alto e magro destacava-se na luz do corredor. Era um homem. Talvez tivesse dois metros de altura. Permaneceu no limiar da porta, com os braços cruzados, ouvindo. Dando-se por satisfeito, caminhou vagarosamente pelo quarto e aproximou-se da cama. Conhecia perfeitamente o caminho. Curvou-se sobre o leito e ouviu a serena respiração da jovem. Depois de um momento, tocou em seu próprio peito e acionou um interruptor. Imediatamente um amplo feixe de luz difusa projetou-se na cama. O farolete estava preso ao corpo do homem por meio de um cinto que o fixava à altura do esterno.

Inclinou-se novamente para a frente, de modo que a luz clareou o rosto da jovem.

O intruso examinou aquele rosto durante alguns minutos. Uma de suas mãos avançou, apanhou a orla do lençol, à altura do queixo da jovem, e puxou-o lentamente até os pés da cama. Mas a mão que puxara aquele lençol não era u’a mão. Era um par de pinças de aço muito bem articuladas na extremidade de uma espécie de talo metálico que desaparecia dentro de uma manga de seda negra. Era u’a mão mecânica.

O homem contemplou durante longo tempo aquele corpo nu, deslocando o seu peito de um lado para outro, de modo que todo o leito fosse submetido ao feixe luminoso. Depois, a garra saiu novamente de sob aquela manga e delicadamente levantou a ponta do lençol, puxando-o dos pés da cama até recobrir todo o corpo da jovem. O homem demorou-se ainda por um momento a contemplar o rosto adormecido, depois apagou o farolete e atravessou silenciosamente o quarto em direção à porta aberta, além da qual estava Bond dormindo.

O homem demorou-se mais tempo ao lado do leito de Bond. Perscrutou cada linha, cada sombra do rosto moreno e quase cruel que jazia quase sem vida, sobre o travesseiro. Observou a circulação à altura do pescoço e contou-lhe as batidas; depois, quando puxou o lençol para baixo, fez o mesmo na área do coração. Estudou a curva dos músculos, nos braços de Bond e nas coxas, e considerou pensativo a força oculta no ventre musculoso de Bond. Chegou até mesmo a curvar-se sobre a mão direita de Bond, estudando-lhe cuidadosamente as linhas da vida e do destino.

Por fim, com grande cuidado, a pinça de aço puxou novamente o lençol, desta vez para cobrir o corpo de Bond até o pescoço. Por mais um minuto o elevado vulto permaneceu ao lado do homem adormecido, depois se retirou rapidamente, ganhando o corredor, enquanto a porta se fechava com um estalido metálico e seco.


CONTINUA

XI - VIDA NO CANAVIAL


Seriam cerca de oito horas, pensou Bond. A não ser o coaxar dos sapos, tudo estava mergulhado em silêncio. No canto mais distante da clareira, ele podia vislumbrar o vulto de Quarrel.

Podia-se ouvir o tinir metálico, enquanto ele se ocupava em desmontar e secar a sua “Remington”.

Por entre as árvores podiam-se ver também as luzes distantes, vindas do depósito de guano, riscar caminhos luminosos e festivos sobre a superfície escura do lago. O desagradável vento desaparecera e o abominável cenário estava mergulhado em trevas. Estava bastante fresco. As roupas de Bond tinham secado no corpo. A comida tinha aquecido o seu estômago. Ele experimentou uma agradável sensação de conforto, sonolência e paz. O dia seguinte ainda estava muito longe e não apresentava problemas, a não ser uma boa dose de exercício físico. A vida, subitamente, pareceu-lhe fácil e boa.

A jovem estava a seu lado, metida no saco de dormir. Estava deitada de costas, com a cabeça descansando nas mãos, e olhando para o teto de estrelas. Ele apenas conseguia divisar os pálidos contornos de seu rosto. De repente, ela disse: James, você prometeu dizer-me o que significava tudo isso. Vamos. Eu não dormirei enquanto você não o disser.

Bond riu. — Eu direi se você também disser. Também quero saber o que você pretende.

— Pois não, não tenho segredos: mas você deve falar primeiro.

— Está certo. — Bond puxou os joelhos até a altura do queixo e passou os braços à volta deles. — Eu sou uma espécie de policial. Eles me enviam de Londres quando há alguma coisa de estranho acontecendo em alguma parte do mundo e que não interessa a ninguém. Bem, não faz muito tempo, um dos funcionários do Governador, em Kingston, um homem chamado Strangways, aliás meu amigo, desapareceu. Sua secretária, que era uma linda jovem, também desapareceu sem deixar vestígios. Muitos pensaram que eles tivessem fugido juntos, mas eu não acreditei nisso. Eu...”

Bond contou tudo com simplicidade, falando em homens bons e maus, como numa história de aventuras lida em algum livro. Depois terminou: Como você vê, Honey, temos de voltar a Jamaica, amanhã à noite, todos nós, na canoa, e então o Governador nos dará ouvidos e enviará um destacamento de soldados para apanhar este chinês. Espero que isso terá como conseqüência levá-lo à prisão. Ele com certeza também sabe disso, e essa é a razão pela qual procura aniquilar-nos. Essa é a história. Agora é a sua vez.

A jovem disse: Você parece viver uma vida muita excitante. Sua mulher não deve gostar que você fique fora tanto tempo. Ela não tem medo de que você se fira?

— Não sou casado. A única que se preocupa com a possibilidade de que eu me fira é a minha companhia de seguros.

Ela continuou sondando: Mas suponho que você tenha namoradas.

— Não permanentes.

— Oh!

Fez-se uma pausa. Quarrel se aproximou e disse: “Capitão, farei o primeiro quarto, se for melhor. Estarei na extremidade da restinga e virei chamá-lo à meia-noite. Então talvez o senhor possa ir até as cinco horas, quando nós nos poremos em marcha. Precisamos estar fora daqui antes que clareie o dia.

— Está bem — respondeu Bond. — Acorde-me se você vir alguma coisa. O revólver está em ordem?

— Perfeito — respondeu Quarrel com evidente mostra de contentamento. Depois, dirigindo-se à jovem disse com leve tom de insinuação: — Durma bem, senhorita. Em seguida, desapareceu silenciosamente nas sombras.

— Gosto de Quarrel — disse a jovem. E, após uma pausa: — Você quer realmente saber alguma coisa a meu respeito? A história não é tão excitante quanto a sua.

— É claro que quero. E não omita nada.

— Não há nada a omitir. Você poderia escrever toda a história de minha vida nas costas de um cartão postal. Para começar, nunca saí de Jamaica. Vivi toda a minha vida num lugar chamado Beau Desert, na costa setentrional, nas proximidades do Porto Morgan.

Bond riu. — É estranho: posso dizer o mesmo; pelo menos por enquanto. Não notei você pela região. Você vive em cima de uma árvore?

— Ah, imagino que você tenha ficado na casa da praia. Eu nunca chego até ali. Vivo na Casa Grande.

— Mas nada ficou dela. É uma ruína no meio dos canaviais.

— Eu vivo na adega. Tenho vivido ali desde a idade de cinco anos. Depois a casa se incendiou e meus pais morreram. Nada me lembro deles, por isso você não precisa manifestar pesar. A princípio vivi ali com a minha ama negra, mas depois ela morreu, quando eu tinha apenas quinze anos. Nos últimos cinco anos tenho vivido ali sozinha.

— Nossa Senhora! — Bond estava boquiaberto. — Mas não havia ninguém para tomar conta de você? Os seus pais não deixaram nenhum dinheiro?

— Nem um tostão. — Não havia o mínimo traço de amargura na voz da jovem — talvez orgulho, se houvesse alguma coisa. — Você sabe, os Riders eram uma das mais antigas famílias de Jamaica. O primeiro Rider recebera de Cromwell as terras de Beau Desert, por ter sido um dos que assinaram o veredicto de morte contra o rei Carlos. Ele construiu a Casa Grande e minha família viveu ora nela ora fora dela, desde aquela época. Mas depois veio a decadência do açúcar e eu acho que a propriedade foi pessimamente administrada, e, ao tempo em que meu pai tomou conta da herança, havia somente dívidas — hipotecas e outros ônus. Assim, quando meu pai e minha mãe morreram a propriedade foi vendida. Eu pouco me importei, pois era muito jovem. Minha ama deve ter sido maravilhosa. Quiseram que alguém me adotasse, mas a minha babá reuniu os pedaços de mobília que não tinham sido queimados e com eles nós nos instalamos da melhor forma no meio daquelas ruínas. Depois de algum tempo ninguém mais veio interferir conosco. Ela cosia um pouco e lavava para algumas freguesas da aldeia, ao mesmo tempo que plantava bananas e outras coisas, sem falar do grande pé de fruta-pão que havia diante da casa. Comíamos o que era a ração habitual do povo de Jamaica. E havia os pés de cana-de-açúcar à nossa volta. Ela fizera também uma rede para apanhar peixes, a qual nós recolhíamos todos os dias. Tudo corria bem e nós tínhamos o suficiente para comer. Ela ensinou-me a ler e escrever, como pôde. Tínhamos uma pilha de velhos livros que escapara ao incêndio, inclusive uma enciclopédia. Comecei com o A quando tinha apenas oito anos, e cheguei até o meio do T. — Ela disse um tanto na defensiva: — Aposto que sei mais do que você sobre muitas coisas.

— Estou certo de que sim. — Bond estava perdido na visão daquela jovem de cabelos de linho errando pelas ruínas de uma grande construção, com uma obstinada negra a vigiá-la e a chamá-la para receber as lições que deveriam ter sido um mistério para ela mesma. — Sua ama deve ter sido uma criatura extraordinária.

— Ela era um amor. — Era uma afirmação peremptória. — Pensei que fosse morrer quando ela faleceu. As coisas não foram tão fáceis para mim depois disso. Antes eu levava uma vida de criança, mas subitamente tive que crescer e fazer tudo por mim mesma. E os homens tentaram apanhar-me e atingir-me. Diziam que queriam fazer amor comigo. — Fez uma pausa e acrescentou: — Eu era bonita naquela época. Bond disse muito sério:

— Você é uma das jovens mais belas que já vi.

— Com este nariz? Não seja tolo.

— Você não compreende. — Bond tentou encontrar palavras nas quais ela pudesse crer. — É claro que qualquer pessoa pode ver que o seu nariz está quebrado; mas desde esta manhã dificilmente eu pude notá-lo. Quando se olha para uma pessoa, olha-se para os seus olhos ou para a sua boca. Nesses dois pontos se encontram a expressão. Um nariz quebrado não tem maior significação do que uma orelha torta. Narizes e orelhas são peças do mobiliário facial. Algumas são mais bonitas do que outras, mas não são tão importantes quanto o resto. Se você tivesse um nariz bonito, tão bonito como o resto, você seria a jovem mais bela de Jamaica.

— Você é sincero? — Sua voz era ansiosa. — Você acha que eu poderia ser bela? Sei que muita coisa em mim está bem, mas quando olho no espelho só vejo o meu nariz quebrado. Estou certa de que o mesmo ocorre com outras pessoas que são, que são — bem — mais ou menos aleijadas.

Bond disse com impaciência: — Você não é aleijada! Não diga tolices. E aliás você pode endireitá-lo mediante uma simples operação. Basta que você vá aos Estados Unidos e a coisa levará apenas uma semana.

Ela disse com irritação: — Como é que você quer que eu faça isso? Tenho cerca de quinze libras debaixo de uma pedra, na minha adega. Tenho ainda três saias, três blusas, uma faca e uma panela de peixe. Conheço muito bem essas operações. O médico de Porto Maria já pediu informações para mim. Ele é um homem muito bom e escreveu para os Estados Unidos. Pois para que a operação seja bem feita, eu teria que gastar cerca de quinhentas libras, sem falar da passagem para Nova York, a conta do hospital e tudo o mais.

Sua voz tornou-se desesperançada: — Como é que você espera que eu possa ter todo esse dinheiro?

Bond já decidira sobre o que teria de ser feito, mas no momento apenas disse ternamente: — Bem, espero que se possam encontrar meios; mas, de qualquer maneira, prossiga com a sua história. Ela é muito excitante — muito mais interessante do que a minha. Você tinha chegado ao ponto em que a sua ama morreu. O que aconteceu depois?

A jovem recomeçou com relutância.

— Bem, a culpa é sua por ter interrompido. E você não deve falar de coisas que não compreende. Suponho que as pessoas lhe digam que você é simpático. Você deve também ter todas as namoradas que desejar. Bem, isso não aconteceria se você fosse vesgo ou tivesse um lábio leporino. — Na verdade, ele pôde ouvir o sorriso em sua voz: — Acho que quando voltarmos eu irei ter com o feiticeiro para que lhe faça uma mandinga e lhe dê alguma coisa assim. — E ela acrescentou tristemente: — Dessa forma, nós seremos mais parecidos.

Bond estendeu o braço e sua mão tocou nela: — Eu tenho outros planos. Mas continuemos, quero ouvir o resto da sua história.

— Bem, — disse a jovem com um suspiro. — Eu terei que me atrasar um pouco. Como você sabe, toda a propriedade é representada pela cana-de-açúcar e pela velha casa que está situada no meio da plantação. Bem, umas duas vezes por ano eles cortam a cana e mandam-na para o moinho. E quando eles o fazem, todos os animais e insetos que vivem nos canaviais entram em pânico e a maioria deles têm as suas tocas destruídas e são mortos. Na época da safra, alguns deles começaram a vir para as ruínas da casa, onde se escondiam. No princípio, minha babá ficava aterrorizada, pois lá vinham os mangustos, as cobras e os escorpiões, mas eu preparei dois quartos da adega para recebê-los. Não me assustei com eles, e eles nunca me fizeram mal. Pareciam compreender que eu estava cuidando deles. E devem ter contado aquilo aos seus amigos, ou alguma coisa parecida, pois depois de algum tempo era perfeitamente natural que todos viessem acantonar-se em seus dois quartos, onde ficavam até que os canaviais começassem novamente a crescer, quando então iam saindo e voltando para os campos. Dei-lhes toda a comida que podíamos pôr de lado, quando eles ficavam conosco, e todos se portavam muito bem, a não ser por algum odor e às vezes uma ou outra luta entre si. Mas eram muito mansos comigo. Naturalmente os cortadores de cana perceberam tudo e viam-me andando pelo lugar com cobras à volta do meu pescoço, e assim por diante, a ponto de ficarem aterrorizados comigo e me considerarem uma feiticeira. Por causa disso, eles nos deixaram completamente isoladas. Ela fez uma pausa, e depois recomeçou:

— Foi assim que aprendi tanta coisa sobre animais e insetos. Eu costumava ainda passar muito tempo no mar, aprendendo coisas sobre os animais marinhos, assim como sobre os pássaros. Se se chega a saber o que todas essas criaturas gostam de comer e do que têm medo, pode-se muito bem fazer amizade com elas. — Levantou os olhos para Bond e disse: Você não sabe o que perde ignorando todas essas coisas.

— Receio que perca muito — respondeu Bond com sinceridade. — Suponho que eles sejam muito melhores e mais interessantes que os homens.

Sobre isso nada sei — respondeu a jovem pensativa-mente. — Não conheço muitas pessoas. A maioria das que conheci foram detestáveis, mas acho que deve haver criaturas interessantes também. — Fez uma pausa, e prosseguiu: — Nunca pensei realmente que chegasse a gostar de alguma pessoa como gosto dos animais. Com exceção da babá, naturalmente. Até que... — Ela se interrompeu com um sorriso de timidez. — Bem, de qualquer forma, nós vivemos muito felizes juntas, até que eu fiz quinze anos, quando então a babá morreu e as coisas se tornaram muito difíceis. Havia um homem chamado Mander. Um homem horroroso. Era o capataz branco que servia aos proprietários da plantação. Ele vivia me procurando. Queria que eu fosse viver com ele, em sua casa de Porto Maria.

Eu o odiava, e costumava esconder-me sempre que ouvia o seu cavalo aproximando-se do canavial. Certa noite ele veio a pé e eu não o ouvi. Estava bêbado. Entrou na adega e lutou comigo porque não queria fazer o que ele desejava. Você sabe, as coisas que fazem as pessoas quando estão apaixonadas.

— Sim, já sei.

— Tentei matá-lo com a minha faca, mas ele era muito forte e deu-me um soco tão forte no rosto que me quebrou o nariz. Deixou-me inconsciente e acho que fez alguma coisa comigo. Sei que ele fez mesmo. No dia seguinte eu quis me matar quando vi o meu rosto e verifiquei o que ele me havia feito. Pensei que iria ter um filho. Teria sem dúvida me matado se tivesse tido um filho daquele homem. Em todo caso, não tive, e tudo continuou assim. Fui ao médico e ele fez o que pôde com o meu nariz e não me cobrou nada. Quanto ao resto, eu nada lhe contei, pois estava muito envergonhada. O homem não voltou mais. Eu esperei e nada fiz até a próxima colheita de cana-de-açúcar. Tinha um plano. Estava esperando que as aranhas viúvas-negras viessem procurar abrigo. Um belo dia elas chegaram. Apanhei a maior das fêmeas e á deixei numa caixa sem nada para comer. As fêmeas são terríveis. Então esperei que fizesse uma noite escura, sem luar. Na primeira noite dessas, apanhei a caixa com a aranha e caminhei até chegar à casa do homem. Estava muito escuro e eu me sentia aterrorizada com a possibilidade de encontrar algum assaltante pela estrada, mas não houve nada. Esperei em seu jardim, oculta entre os arbustos, até que ele se recolheu à cama. Então subi por uma árvore e ganhei a sacada; aguardei até que ele começasse a roncar e depois entrei pela janela. Ele estava nu, estendido na cama, sob o mosquiteiro. Levantei uma aba do filó, abri a caixa e sacudi-lhe a aranha sobre o ventre. Depois saí e voltei para casa.

— Deus do céu! — exclamou Bond reverentemente. — O que aconteceu com o homem?

Ela respondeu com satisfação: — Levou uma semana para morrer. Deve ter-lhe doído terrivelmente. Você sabe, a mordida dessa aranha é pavorosa. Os feiticeiros dizem que não há nada que se lhe compare. — Ela fez uma pausa, e como Bond não fizesse nenhum comentário, acrescentou: — Você não acha que eu fiz mal, não é?

— Bem, não faça disso um hábito — respondeu Bond suavemente. — Mas não posso culpá-la, diante do que ele tinha feito. E, depois, o que aconteceu?

— Bem, depois me estabeleci novamente — sua voz era firme. — Tive que me concentrar na tarefa de obter alimento suficiente, e naturalmente. — Acrescentou persuasivamente: — Eu tinha de fato um nariz muito bonito, antes. Você acha que os médicos podem torná-lo igualzinho ao que era antes?

— Eles poderão fazê-lo de qualquer forma que você quiser — disse Bond em tom definitivo. — Como é que você ganhou dinheiro?

— Foi graças à enciclopédia. Li nela que há pessoas que gostam de colecionar conchas marinhas e que as conchas raras podiam ser vendidas. Falei com o mestre-escola local, sem contar-lhe naturalmente o meu segredo, e ele descobriu para mim que havia uma revista norte-americana chamada “Nautilus”, dedicada aos colecionadores de conchas. Eu tinha apenas o dinheiro suficiente para tomar uma assinatura daquela revista e comecei a procurar as conchas que as pessoas pediam em seus anúncios. Escrevi a um comerciante de Miami e ele começou a comprar as minhas conchas. Foi emocionante. Naturalmente que cometi alguns erros, no princípio. Pensei, por exemplo, que as pessoas gostariam das conchas mais bonitas, mas esse não era o caso. Freqüentemente elas preferiam as conchas mais feias. Depois, quando achava conchas raras, punha-me a limpá-las e poli-las a fim de torná-las mais bonitas, mas isso também foi um erro. Os colecionadores querem as conchas exatamente como saem do mar, com o animal em seu interior também. Então consegui algum formol com o médico e o punha entre as conchas vivas, para que elas não tivessem mau cheiro, e depois mandava-as para o tal comerciante de Miami. Só aprendi bem o negócio de um ano para cá e já consegui quinze libras. Consegui esse resultado agora que sei como é que eles querem as conchas e se tivesse sorte, poderia fazer pelo menos cinqüenta libras por ano. Então, em dez anos poderia ir aos Estados Unidos e operar-me. Mas, continuou ela com intenso contentamento, tive uma notável maré de sorte. Fui a Crab Key pelo Natal, onde já tinha estado antes. Mas dessa vez eu encontrei essas conchas purpúreas. Não parecem grande coisa, mas eu enviei uma ou duas para Miami e o comerciante escreveu-me para dizer que compraria tantas dessas conchas quantas eu pudesse encontrar, e ao preço de até cinco dólares pelas perfeitas. Disse-me ainda que eu deveria manter segredo sobre o lugar de onde as tirava, pois de outra forma o “mercado seria estragado”, como disse ele, e os preços cairiam. É como se se tivesse uma mina de ouro particular. Agora serei capaz de juntar o dinheiro em cinco anos. Esse foi o motivo pelo qual tive grandes suspeitas de você, quando o encontrei na praia. Pensei que você tivesse vindo para roubar as minhas conchas.

— Você me deu um susto, pois pensei que você fosse a garota do Dr. No.

— Muito obrigada.

— Mas depois que você tiver feito a operação, o que irá fazer? Você não pode continuar vivendo numa adega durante toda a vida.

— Pensei em me tornar uma prostituta. — Ela o disse como se tivesse dito “enfermeira” ou “secretária”.

— Oh, o que é que você quer dizer com isso? — Talvez ela já tivesse ouvido aquela expressão sem compreendê-la bem.

— Uma dessas jovens que possuem um bonito apartamento e lindas roupas. Você sabe o que quero dizer — acrescentou ela com impaciência. — Os homens telefonam, marcam encontro, chegam, fazem amor e pagam. Elas ganham cem dólares de cada vez, em Nova Iorque, onde pensei começar. Naturalmente — admitiu — terei de fazer por menos, no começo, até que aprenda a trabalhar bem. Quanto é que vocês pagam pelas que não têm experiência?

Bond riu. — Francamente, não me lembro. Há muito tempo que não me encontro com essas mulheres.

Ela suspirou. — Sim, suponho que você possa ter tantas mulheres quantas queira, por nada. Suponho que apenas os homens feios paguem, mas isso é inevitável. Qualquer espécie de trabalho nas grandes cidades deve ser horrível. Pelo menos pode-se ganhar muito mais como prostituta. Depois, poderia voltar para Jamaica e comprar Beau Desert. Seria bastante rica para encontrar um marido bonito e ter alguns filhos. Agora que encontrei essas conchas, penso que poderia estar de volta a Jamaica quando tivesse trinta anos. Não seria formidável?

— Gosto da última parte do plano, mas não tenho muita confiança na primeira. De qualquer forma, como é que você veio a saber dessa história de prostitutas? Encontrou isso na letra P, na enciclopédia?

— Claro que não; não seja tolo. Há uns dois anos houve em Nova Iorque um escândalo sobre elas, envolvendo também um “play-boy” chamado Jelke. Ele tinha toda uma cadeia de prostitutas, e eu li muito sobre o caso no “Gleaner”. O jornal deu inclusive os preços que elas cobravam e tudo o mais. De qualquer forma, há milhares dessas jovens em Kingston, embora não sejam tão boas. Recebem apenas cinco xelins e não têm um lugar apropriado para fazer amor, a não ser no mato. Minha babá chegou a falar-me delas. Disse-me que eu não deveria imitá-las, pois do contrário seria muito infeliz. É claro que seria, recebendo apenas cinco xelins. Mas por cem dólares!...

Bond observou: — Você não conseguiria guardar todo esse dinheiro. Precisaria ter uma espécie de gerente para arranjar os homens, e teria ainda de dar gorjetas à polícia, para deixá-la em paz. Por fim, poderia ir facilmente parar na cadeia se tudo não corresse bem. Na verdade, com tudo o que você sabe sobre animais, bem poderia ter um ótimo emprego, cuidando deles, em algum jardim zoológico norte-americano. E o que me diz do Instituto de Jamaica? Tenho certeza de que você gostaria mais de trabalhar ali. E poderia também facilmente encontrar um bom marido. De qualquer forma, você não deve mais pensar em ser prostituta. Você tem um belo corpo e deve guardá-lo para o homem que amar.

— Isso é o que dizem as pessoas nos livros — disse ela com ar de dúvida. — A dificuldade está em que não há nenhum homem para ser amado em Beau Desert. — Depois acrescentou timidamente: — Você é o único inglês com quem jamais falei. Gostei de você desde o princípio, e não me importo de dizer-lhe essas coisas agora. Penso que há muitas pessoas das quais chegaria a gostar se saísse daqui.

— É claro que há. Centenas. E você é uma garota formidável; o que pensei assim que a vi.

— Assim que viu as minhas nádegas, você quer dizer. — Sua voz estava-se tornando sonolenta, mas cheia de prazer.

Bond riu. — Bem, eram nádegas maravilhosas. E o outro lado também era maravilhoso. — O corpo de Bond começou a se agitar com a lembrança de como a vira pela primeira vez. Depois de um instante, disse com mau humor: — Agora vamos, Honey. Está na hora de dormir. Haverá muito tempo para conversarmos quando voltarmos a Jamaica.

— Haverá? — perguntou ela desconsoladamente. — Você promete?

— Prometo.

Ele a viu agitar-se dentro do saco de dormir. Olhou para baixo e apenas pôde divisar o seu pálido perfil voltado para ele. Ela deixou escapar o profundo suspiro de uma criança, antes de adormecer.

Reinava silêncio na clareira e o tempo estava esfriando. Bond descansou a cabeça sobre os joelhos unidos. Sabia que era inútil procurar dormir, pois sua mente estava cheia dos acontecimentos do dia e dessa extraordinária mulher Tarzan que aparecera em sua vida. Era como se algum animal muito bonito se lhe tivesse dedicado. E não largaria os cordéis enquanto não tivesse resolvido os problemas dela. Estava sentindo isso. Naturalmente que não haveria grandes dificuldades para a maioria de seus problemas. Quanto à operação, seria fácil arranjá-la, e até mesmo encontrar-lhe um emprego, com o auxílio de amigos, e um lar. Tinha dinheiro e haveria de comprar-lhe roupas, mandaria ajeitar os seus cabelos e a lançaria no grande mundo. Seria divertido. Mas quanto ao resto? Quanto ao desejo físico que sentia por ela? Não se podia fazer amor com uma criança. Mas, seria ela uma criança? Não haveria nada de infantil relativamente ao seu corpo ou à sua personalidade. Era perfeitamente adulta e bem inteligente, a seu modo, e muito mais capaz de tomar conta de si mesma do que qualquer outra jovem de vinte anos que Bond conhecera.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um puxão em sua manga. A vozinha disse: — Por que você não vai dormir? Não está sentindo frio?

— Não; estou bem.

— Aqui no saco de dormir está bom e quente. Você quer vir para cá? Tem bastante lugar.

— Não, obrigado, Honey. Estou bem.

Houve uma pausa, e depois ela disse num sussurro: — Se você está pensando... Quero dizer — você não precisa fazer amor comigo... Eu poderia dormir de costas para o seu peito.

— Honey, querida, vá dormir. Seria maravilhoso dormir assim com você, mas não esta noite. De qualquer maneira, em breve terei de render Quarrel.

— Muito bem, — disse ela com voz mal humorada. — Talvez quando voltarmos a Jamaica.

— Talvez.

— Prometa. Não dormirei enquanto você não prometer.

Bond disse desesperadamente: — Naturalmente que prometo. Agora, vá dormir, Honeychile.

A sua voz se fez ouvir outra vez, triunfante: — Agora você tem uma dívida comigo. Você prometeu. Boa-noite, querido James.

— Boa noite, querida Honey.


XII - A COISA


O aperto no braço de Bond era ansioso. Ele de um salto pôs-se de pé.

Quarrel sussurrou tensamente: — Alguma coisa está-se aproximando pela água, capitão! Com certeza é o dragão!

A jovem levantou-se e perguntou nervosamente: — Que aconteceu?

Bond apenas disse: — Fique aí, Honey! Não se mexa. Eu voltarei.

Internou-se pelos arbustos do lado oposto da montanha e correu pela restinga, com Quarrel ao lado.

Chegaram até a extremidade da restinga, a vinte metros da clareira, e pararam sob o abrigo dos últimos arbustos, que Bond apartou com as mãos para ter um melhor campo de visão.

O que seria aquilo? A meia milha de distância, atravessando o lago, vinha algo informe, com dois olhos brilhantes cor de laranja, e pupilas negras. Entre estes, onde deveria estar a boca, tremulava um metro de chama azul. A luminosidade cinzenta das estrelas deixava ver uma espécie de cabeça abaulada entre duas pequenas asas semelhantes às de um morcego. Aquela coisa estranha deixava escapar um ronco surdo e baixo, que abafava um outro ruído, uma espécie de vibração rítmica. Aquela massa avançava na direção deles, à velocidade de uns dezesseis quilômetros por hora, deixando atrás de si uma esteira de espuma.

Quarrel sussurrou:

— Nossa, capitão! Que coisa é aquela?

Bond continuou de pé e respondeu laconicamente: — Não sei exatamente. Uma espécie de trator arranjado para meter medo. Está trabalhando com um motor diesel, e por isso você pode deixar os dragões de lado. Agora, vejamos... — Bond falava como se para si mesmo. — Não adianta fugir. Aquilo se move mais depressa do que nós e sabemos que pode esmagar árvores e atravessar pântanos. Temos que lhe dar combate aqui mesmo. Quais serão os seus pontos fracos? Os motoristas. Com certeza, dispõem de proteção. Em todo caso, não sabemos muito sobre esse ponto. Quarrel, você começará a disparar contra aquela cúpula quando estiverem a uns duzentos metros de nós. Faça a pontaria cuidadosamente e continue atirando. Visarei os faróis quando estiverem a cinqüenta metros. Não se está movendo sobre lagartas. Deve ter alguma espécie de rodas gigantescas, provavelmente de avião. Visarei as rodas também. Fique aí. Ficarei dez metros para baixo. Naturalmente vão reagir e nós temos que manter as balas longe da garota. Está combinado? — Bond esticou o braço e apertou o enorme ombro de Quarrel. — E não se preocupe demais. Esqueça-se de dragões. Trata-se apenas de alguma trapaça do Dr. No. Mataremos os motoristas, tomaremos conta do veículo e ganharemos com ele a costa. Isso economizará as nossas solas. Está bem?

Quarrel deu uma breve risada. — Está bem, capitão. Desde que o senhor assim o diz. Mas que Nosso Senhor saiba também que aquilo não é dragão!

Bond desceu pela restinga e se internou pelos arbustos, até que encontrou um ponto de onde podia ter um bom campo de tiro. Disse suavemente: — Honey!

— Sim, James — e a voz dela deixou transparecer alívio.

— Faça um buraco na areia como fizemos na praia. Faça-o por trás de raízes grossas e fique lá deitada. Talvez haja um tiroteio. Não tenha medo de dragões. Isto é apenas um veículo pintado, dirigido por alguns dos homens do Dr. No. Não se assuste. Estou aqui perto.

— Muito bem, James. Tenha cuidado! — A voz agora deixava transparecer um vivo temor.

Bond curvou-se, apoiando um joelho no chão, sobre as folhas e a areia, e olhou para fora.

Agora o veículo achava-se a uns trezentos metros de distância, e os seus faróis amarelos estavam iluminando a areia. Chamas azuis continuavam saindo da boca daquele engenho. Saíam de uma espécie de longo focinho, no qual se pintaram mandíbulas entreabertas, para darem ao todo a aparência de dragão. Um lança-chamas! Aquilo explicava as árvores queimadas e a história do administrador. A coloração azul da chama seria dada por alguma espécie de queimador, disposto adiante do lança-chamas.

Bond teve que admitir que aquela visão era algo de terrível, à medida que o veículo avançava pelo lago raso. Evidentemente fora calculado para infundir terror. Ele mesmo ter-se-ia assustado, não fora a vibração rítmica do motor diesel. Mas até que ponto aquilo seria vulnerável para homens que não fossem dominados pelo pânico?

A resposta ele a teve quase imediatamente. Ouviu-se o estampido da “Remington” de Quarrel. Uma centelha saiu da cabina encimada pela cúpula e logo se ouviu um ruído metálico. Quarrel disparou mais um tiro e, logo em seguida, uma rajada. As balas chocaram-se inutilmente de encontro à cabina. Não houve mesmo uma simples redução de velocidade. O monstro continuava avançando para o ponto de onde tinham partido os disparos. Bond descansou o cano de seu “Smith & Wesson” no braço, e fez cuidadosa pontaria. O profundo ruído surdo de sua arma fez-se ouvir por sobre o matraquear da “Remington” de Quarrel. Um dos faróis fora atingido e despedaçara-se. Bond disparou mais quatro tiros contra o outro e atingiu-o com o quinto e último disparo de seu revólver. O fantástico aparelho parecia continuar não dando importância, e foi avançando para o lugar de onde tinham partido os disparos do “Smith & Wesson”. Bond tornou a carregar a arma e começou a atirar contra os pneumáticos, sob as asas negro e ouro. A distância agora era de apenas trinta metros e podia jurar que já atingira mais de uma vez a roda mais próxima, sem nenhum resultado. Seria borracha sólida? O primeiro estremecimento de medo percorreu a pele de Bond.

Carregou mais uma vez. Seria aquela coisa maldita vulnerável pela retaguarda? Deveria correr para o lago e tentar uma abordagem? Avançou um passo, através dos arbustos, mas logo ficou imóvel, incapaz de prosseguir.

Subitamente, daquele focinho ameaçador, uma língua de fogo azulada tinha sido lançada na direção do esconderijo de Quarrel. À direita de Bond, no mato, surgira apenas uma chama laranja e vermelha, simultaneamente com um estranho urro, que imediatamente silenciou. Satisfeita, aquela língua de fogo se recolhera à sua boca. Agora aquilo fizera um movimento de rotação sobre o seu eixo e parará completamente. O buraco azulado da boca apontava diretamente para Bond.

Bond deixou-se ficar, esperando pelo horroroso fim. Olhou através das mandíbulas da morte e viu o brilhante f-lamento vermelho do queimador, bem no fundo do comprido tubo. Pensou no corpo de Quarrel — mas não havia tempo para pensar em Quarrel — e imaginou-o completamente carbonizado. Dentro em pouco ele também se incendiaria como uma tocha. Um único berro seria arrancado dele e os seus membros se encolheriam na pose de dançarino dos corpos queimados. Depois viria a vez de Honey. Meu Deus, para o quê ele os havia arrastado! Por que fora tão insano a ponto de enfrentar aquele homem com todo o seu arsenal? Por que não aceitara a advertência que lhe fora feita pelo longo dedo que o alcançara já em Jamaica? Bond trincou os dentes. Vamos, canalhas. Depressa.

Ouviu-se a sonoridade de um alto-falante, que anunciava metàlicamente: “Saia daí, inglês. E a boneca também. Depressa ou será frito no inferno, como o seu amigo”. Para dar mais força àquela ordem, uma língua de fogo foi lançada em sua direção. Bond deu um passo atrás para recuar daquele intenso calor. Sentiu o corpo da garota de encontro às suas costas. Ela disse historicamente: — Tive que vir, tive que vir.

Bond disse: — Está bem, Honey. Fique atrás de mim.

Ele tinha-se decidido. Não havia alternativa. Mesmo que a morte viesse mais tarde, não poderia ser pior do que aquela morte diante do lança-chamas. Bond apanhou a mão da jovem e puxou-a consigo para fora, saindo para a areia.

A voz se fez ouvir novamente: — Pare aí, camarada. E deixe cair o lança-ervilhas. Nada de truques, senão os caranguejos terão um bom almoço.

Bond deixou cair a sua arma. Lá se fora o “Smith & Wesson”. O “Beretta” não teria tido melhor sorte: A jovem lastimou-se, e Bond apertou a sua mão. — Agüente, Honey, — disse ele. — Nós nos livraremos disso.

Bond troçou de si mesmo por causa daquela mentira. Ouviu-se o ruído de uma porta de ferro que se abria. Por trás da cúpula, um homem saltou para a água e caminhou até eles, com um revólver na mão. Ao mesmo tempo ia-se mantendo fora da linha de fogo do lança-chamas. A trêmula chama azul iluminou o seu rosto. Era um chinês negro, de enorme estatura, vestindo apenas calças. Alguma coisa balançava em sua mão esquerda, e quando ele se aproximou mais, Bond pôde ver que eram algemas.

O homem deteve-se a alguns metros de distância e disse:

— Levantem os braços. Punhos juntos e caminhem em minha direção. Você primeiro, inglês. Devagar ou receberá mais um umbigo.

Bond obedeceu e quando estava a um passo do homem, este prendeu o revólver entre os dentes, e esticou os braços e atou os seus pulsos com as algemas. Bond examinou aquele rosto iluminado pelas chamas azuis. Era uma cara brutal, com olhos estrábicos. O agente do Dr. No fitou-o com desprezo. — Bastardo imbecil! — disse.

Bond deu as costas ao homem e começou a se afastar. Ia ver o corpo de Quarrel. Tinha que lhe dizer adeus. Ouviu-se o ruído de um disparo e uma bala jogou-lhe areia nos pés. Bond parou, e voltando-se lentamente disse:

— Não fique nervoso. Vou dar uma espiada no homem que você acabou de assassinar. Voltarei.

O homem abaixou o revólver e riu grosseiramente: — Muito bem. Divirta-se. Desculpe se não temos uma coroa. Volte logo, se não daremos uma amostra à boneca. Dois minutos.

Bond caminhou em direção ao cerrado de arbustos fumegantes. Ali chegando, olhou para baixo. Seus olhos e boca se contraíram. Sim, tinha sido bem como ele imaginara. Pior, mesmo. Disse docemente: — Perdoe-me, Quarrel. — Com o pé soltou um pouco de areia, que colheu com as mãos algemadas e verteu-a sobre os restos dos olhos de Quarrel. Depois caminhou lentamente, de volta, e ficou ao lado da jovem.

O homem empurrou-os para a frente com o revólver. Deram a volta por trás da máquina, onde havia uma pequena porta quadrada. Uma voz do interior disse: — Entrem e sentem-se no chão. Não toquem em nada ou ficarão com os dedos partidos.

Com dificuldade, arrastaram-se para dentro daquela caixa de ferro, que cheirava a óleo e suor. Havia lugar apenas para que ambos se sentassem com as pernas encolhidas, de joelhos para cima. O homem que empunhava o revólver e que vinha atrás deles saltou por último para dentro do carro e fechou a porta. Ligou uma lâmpada e sentou-se num assento de ferro, ao lado do chofer. — Muito bem, Sam, vamos andando. Você pode apagar o fogo. Há luz bastante para dirigir — disse.

Na painel de controle podia-se ver uma fileira de mostradores. O motorista esticou a mão e deslocou para baixo um par de interruptores. Engrenou o motor e olhou através de uma estreita fresta, cortada na parede de ferro, diante dele. Bond sentiu que o veículo dava uma volta. Ouviu-se um movimento mais rápido do motor, e o veículo avançou.

O ombro da jovem apertou-se de encontro ao de Bond.

— Para onde estão eles nos levando? — O seu sussurro traía um estremecimento.

Bond voltou a cabeça e olhou para ela. Era a primeira vez que podia ver os seus cabelos depois de secos. Estavam desfeitos pelo sono, mas não eram mais mechas de rabichos empastados. Caíam densamente até os ombros, onde terminavam em anéis voltados para dentro. Eram do mais pálido louro acinzentado e despediam reflexos quase prateados sob a luz elétrica. Ela olhou para o alto, para ele. A pele, à volta dos olhos e nos cantos da boca, mostrava-se lívida de medo.

Bond deu de ombros, procurando aparentar uma indiferença que não sentia!. Sussurrou: — Oh, espero que vamos ver o Dr. No. Não se preocupe demais, Honey. Esses homens não passam de pequenos bandidos. Com ele, as coisas serão diferentes. Quando estivermos diante dele, não diga nada, falarei por nos dois. — Ele apertou o seu ombro e disse: — Gosto da maneira por que você penteia o seu cabelo, e fico contente porque você não o apara muito curto.

Um pouco da tenção desapareceu do rosto dela. — Como é que você pode pensar em coisas como essa? — Deu um leve sorriso para ele, e acrescentou: — Mas estou contente por você gostar de meu penteado. Lavo os meus cabelos com óleo de coco uma vez por semana.

À lembrança de sua outra vida, seus olhos ficaram brilhantes. Ela baixou a cabeça para as mãos algemadas, a fim de esconder as lágrimas. Sussurrou quase para si mesma: — Tentarei ser brava. Tudo estará bem, desde que você esteja lá.

Bond aconchegou-se a ela. Levantou suas mãos algemadas até a altura dos olhos e examinou as algemas. Eram do tipo usado pela polícia norte-americana. Contraiu sua mão esquerda, a mais fina das duas, e tentou fazê-la deslizar pelo anel de aço. Mesmo o suor de sua pele de nada adiantou. Era inútil.

Os dois homens sentavam-se em seus bancos de ferro, indiferentes, e com as costas voltadas para eles. Sabiam que dominavam inteiramente a situação. Não havia possibilidade de que Bond oferecesse qualquer incômodo. Não poderia levantar-se ou dar o necessário impulso aos seus punhos para causar qualquer mal às cabeças de seus adversários, utilizando as algemas. Se conseguisse abrir a porta e pular para a água, o que lograria com isso? Imediatamente eles sentiriam a brisa fresca, nas costas, e parariam a máquina para queimá-lo na água ou içá-lo novamente. Bond aborrecia-se em pensar que os homens pouco se preocupavam com ele, pois sabiam tê-lo completamente em seu poder. Também não gostou da idéia de que aqueles homens eram bastante inteligentes para saber que ele não representava nenhuma ameaça. Indivíduos mais estúpidos teriam ficado em cima deles, de revólver em punho, tê-los-iam surrado, a ele e à jovem, barbaramente, e talvez os tivessem deixado inconscientes. Aqueles dois conheciam o ofício. Eram profissionais, ou tinham sido treinados para o serem.

Os dois homens não falaram. Não houve nenhum comentário sobre o quão hábil eles tinham sido, ou quanto ao seu cansaço ou destino. Apenas dirigiam a máquina serenamente, ultimando com eficiência a sua tarefa.

Bond continuava sem a mínima idéia do que seria aquilo. Sob a tinta negra e dourada, assim como sob o resto daquela fantasia, a máquina parecia uma espécie de trator, como ele nunca vira. Não tinha conseguido descobrir nomes de marcas comerciais, nos pneumáticos, pois estivera muito escuro, mas certamente que deveriam ser de borracha sólida ou porosa. Atrás havia um pequena roda para dar estabilidade ao conjunto. Uma espécie de barbatana de ferro fora ainda acrescentada e pintada também de preto e ouro, a fim de ajudar a dar a aparência de dragão. Os altos pára-lamas tinham sofrido um prolongamento, na forma de curtas asas voltadas para trás. Uma comprida cabeça de dragão, feita em metal, fora fixada ao radiador e os faróis receberam pontos centrais negros, para parecerem olhos. Era tudo, sem falar da cabina que fora recoberta com uma cúpula blindada e dotada de um lança-chamas. Era, como pensara Bond, um trator preparado para assustar e queimar — embora não pudesse atinar porque estava dotado de um lança-chamas e não de uma metralhadora. Era, evidentemente, a única espécie de veículo que poderia percorrer a ilha. Suas gigantescas rodas podiam avançar sobre os mangues, pântanos e ainda atravessar o lago raso. Galgaria também os agrestes planaltos de coral e, desde que andasse à noite, o calor experimentado na cabina seria pelo menos tolerável.

Bond ficara impressionado. Impressionado pelo toque de profissionalismo. O Dr. No era sem dúvida um homem que se preocupava intensamente com as coisas. Em pouco iria encontrá-lo. E em breve estaria diante do segredo do Dr. No. Então, o que aconteceria? Bond sorriu amargamente. Sim, não o deixariam sair dali com o seu conhecimento. Certamente seria morto, a menos que pudesse fugir ou conseguir a sua liberdade por meios persuasivos. E o que aconteceria à jovem? Poderia ele provar sua inocência e conseguir com que ela fosse poupada? Possivelmente, mas nunca mais ela teria permissão para deixar a ilha. Ali teria de ficar para o resto da vida, como amante ou mulher de um dos homens, ou do próprio Dr. No, se ela o impressionasse.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um trecho do percurso mais difícil, como se podia sentir pela trepidação. Tinham atravessado o lago e estavam no caminho que levava para o alto da montanha, junto às cabanas. A cabina vibrava e a máquina começou a galgar o terreno. Dentro de cinco minutos estariam lá.

O ajudante do motorista olhou por sobre o ombro para Bond e a jovem. Bond sorriu confiantemente para ele dizendo: Você receberá uma medalha por isso.

Os olhos amarelos e marrons olharam impassivelmente dentro dos dele, enquanto os lábios arroxeados e oleosos se fenderam num sorriso no qual havia um ódio repousado: Feche a boca, se... Depois, deu-lhe as costas.

A jovem tocou-o com o cotovelo e sussurrou: — Por que eles são tão rudes? Por que nos odeiam tanto?

Bond esboçou um sorriso e disse: — Acho que é porque lhes causamos medo. Talvez ainda estejam com medo, e isto porque não parecemos ter medo deles. Devemos mantê-los assim.

A jovem aconchegou-se a ele e disse: — Tentarei.

Agora a subida estava-se tornando mais íngreme. Uma luz azul-acinzentada atravessava as frestas da armadura. A madrugada se aproximava. Fora, em breve estaria começando mais um dia de calor abrasador, de execrável vento, carregado com o cheiro de gás dos pântanos. Bond pensou em Quarrel, o bravo gigante que não mais veria aquele dia, e com o qual eles deveriam agora estar caminhando através dos pauis de mangues. Quarrel tinha pressentido a morte, mas apesar disso tinha acompanhado Bond sem qualquer objeção. Sua fé em Bond tinha sido maior do que o seu medo. E Bond tinha-lhe faltado. Seria ele ainda o causador da morte da jovem?

O motorista esticou o braço em direção ao painel e na parte dianteira do veículo fez-se ouvir o breve zunido de uma sirena de polícia, que foi desaparecendo num gemido fúnebre. Mais um minuto e o veículo parava, continuando o motor em regime neutro. O homem apertou um interruptor e tirou um microfone de um gancho, a seu lado. Falou por aquele microfone e Bond pôde ouvir a sua voz aumentada, do lado de fora, por um altofalante. — Tudo bem. Apanhamos o inglês e a garota. O outro homem morreu. Isso é tudo. Abram. — Bond ouviu que uma porta se deslocava para o lado, sobre rolamentos. O motorista embreou e eles avançaram lentamente para a frente, parando alguns metros adiante. O motorista desligou o motor. Ouviu-se o ruído metálico da tranca e a porta foi aberta pelo lado de fora. Uma lufada de ar fresco e uma luz mais brilhante penetraram na cabina. Várias mãos agarraram Bond e arrastaram-no para trás, até um chão de cimento. Bond agora estava de pé e sentia o cano de um revólver encostado ao seu flanco. Uma voz disse: — Fique onde está. Nada de espertezas. — Bond olhou para o homem. Era mais um chinês negro, do mesmo tipo que os outros. Os olhos amarelos examinaram-no com curiosidade. Bond virou-se com indiferença. Outro homem estava cutucando a jovem com a arma. Bond disse asperamente: — Deixe a garota em paz! Em seguida, caminhou e pôs-se ao lado da jovem. Os dois homens pareceram surpresos. Deixaram-se ficar de pé, apontando as armas com hesitação.

Bond olhou à volta. Estavam numa das cabanas pré-fabricadas que ele vira do rio. Era ao mesmo tempo uma garagem e uma oficina. O “dragão” tinha sido colocado sobre um fosso de vistoria, no chão de concreto. Um motor de popa desmontado estava sobre uma das bancadas. Longos tubos de luz fluorescente estavam afixados ao teto e o ambiente estava impregnado do cheiro de óleo e fumaça de exaustor. O motorista e o seu companheiro examinavam a máquina. Em seguida deram alguns passos pelo galpão, como se andassem sem propósito.

Um dos guardas anunciou: — Enviei a mensagem. A ordem é que eles sejam levados. Foi tudo bem?

O ajudante de motorista, que parecia o homem mais responsável, ali presente, disse: — Sem dúvida. Alguns disparos. Os faróis foram partidos. Talvez haja alguns furos nos pneumáticos. Ponha os rapazes em ação — uma vistoria completa. Conduzirei esses dois e tirarei um cochilo. — E, voltando-se para Bond: — Bem, vamos andando — e indicou o caminho que saía do longo galpão.

Bond disse: — Vá andando você; e cuidado com os modos. Diga àqueles macacos que tirem as armas de cima de nós. Podem disparar por engano. Parecem bastante idiotas.

O homem se aproximou, e os outros os acompanharam logo atrás. O ódio brilhava em seus olhos. O chefe levantou o punho cerrado, tão grande quanto um pequeno malho e chegou-o à altura do nariz de Bond. Procurava controlar-se com esforço, e disse: — Ouça, senhor. Às vezes, nós, os rapazes, temos permissão para participar da festa final. Estou rezando para que essa seja uma dessas vezes. Certa ocasião fizemos com que a coisa durasse toda uma semana. E se eu o pego...

Riu e os seus olhos brilharam com crueldade. Olhou para o lado de Bond, fixando a garota. Seus olhos pareciam transformados em bocas que agitavam os lábios. Enfiou as mãos nos bolsos laterais das calças. A ponta de sua língua mostrava-se muito vermelha, entre os lábios arroxeados. Voltando-se para os companheiros disse: — Que tal, rapazes?

Os três homens estavam olhando também para a jovem. Fizeram um sinal de assentimento, como crianças diante de uma árvore de Natal.

Bond desejou atirar-se como um louco sobre eles, golpeando as suas caras com os punhos algemados e aceitando a sua vingança sangrenta. Não fosse pela jovem, bem que o teria feito. Mas tudo o que tinha conseguido com suas corajosas palavras fora amedrontá-la. Disse apenas: — Muito bem, muito bem. Vocês são quatro e nós somos dois, ainda por cima com as mãos atadas. Vamos, não queremos atingi-los. Apenas não nos empurrem muito de um lado para outro. O Dr. No poderia não ficar satisfeito.

Àquele nome, os rostos dos homens se modificaram. Três pares de olhos passaram apàticamente de Bond para o chefe. Por um segundo, este olhou com desconfiança para Bond, intrigado, tentando descobrir se Bond teria alguma influência junto ao Dr. No. Sua boca abriu-se para dizer algo, mas logo pareceu pensar melhor, e apenas disse de maneira incerta: — Bem, bem, estávamos simplesmente brincando. — Voltou-se para os homens, em busca de confirmação: — Não é?

— Sem dúvida, sem dúvida! — foi a resposta dada por um coro áspero, e os homens desviaram o olhar.

O chefe disse com mau humor: — Por aqui, senhor. — E ele mesmo pôs-se a caminho, percorrendo o comprido galpão.

Bond segurou o pulso da jovem e seguiu o chefe. Estava impressionado com a reação causada naqueles homens pelo nome do Dr. No. Aquilo era alguma coisa a lembrar se eles tivessem que se haver novamente com aquela turma.

O homem chegou a uma porta de madeira situada na extremidade do galpão. Ao lado havia um botão de campainha que ele pressionou duas vezes e esperou. Ouviu-se um estalido e a porta se abriu, mostrando dez metros de uma passagem rochosa, mas atapetada e que ia dar, na outra extremidade, em outra porta mais elegante e pintada de creme.

O homem ficou de lado. Siga em frente, senhor — disse; — bata na porta e será atendido pela recepcionista. — Não havia nenhuma ironia em sua voz e seus olhos se mostravam impassíveis.

Bond conduziu Honey pela passagem. Ouviu que a porta se fechava às suas costas. Deteve-se por um momento e fitou-a, perguntando-lhe: — E agora?

Ela riu, trêmula, mas respondeu: — Ê bom sentir-se tapete sob os pés.

Bond apertou o seu pulso. Andou até a porta pintada de creme e bateu.

A porta abriu-se e Bond entrou com a jovem ao lado. Quando se deteve instantaneamente, não chegou a perceber o encontrão que lhe dava a jovem, pois continuou estarrecido.


XIII - GAIOLA DE OURO


Era a espécie de sala de recepção que as maiores corporações norte-americanas possuem no andar em que se situa o escritório do presidente, em seus arranha-céus de Nova Iorque. Suas proporções eram agradáveis, com cerca de vinte pés quadrados. O chão era todo recoberto pelo mais espesso tapete Wilton cor-de-vinho. O teto e as paredes estavam pintados numa suave tonalidade cinza pombo. Viam-se ainda reproduções litográficas de esboços de balé de Degas penduradas em séries, nas paredes, e a iluminação era feita com altos e modernos jogos de abajures de seda verde-escuro, imitando a forma de elegantes barricas.

À direita de Bond estavam uma larga mesa de mogno, com o tampo recoberto com couro verde, outras peças que se harmonizavam perfeitamente com a mesa, e um caro sistema de intercomunicações. Duas cadeiras altas, de antiquado, aguardavam os visitantes. Do outro lado da sala via-se uma mesa do tipo refeitório, sobre a qual estavam várias revistas com capas em cores vivas e mais duas cadeiras. Tanto na mesa de escritório, como na outra, viam-se vasos de hibiscos. O ar era fresco e impregnado de leve fragrância.

Duas mulheres estavam naquela sala. Por trás da mesa de trabalho, empunhando uma caneta que descansava sobre um formulário impresso, estava sentada uma jovem chinesa, de aspecto eficiente, com óculos de armação de chifre, sob uma franja de cabelos negros cortados curtos. Em seus olhos e em sua boca havia o sorriso padrão de boas-vindas que qualquer recepcionista exibe — a um tempo claro, obsequioso e inquisitivo.

Ainda com a mão na maçaneta da porta pela qual eles tinham passado, e esperando que os recém-chegados se adiantassem mais, a fim de que ela a pudesse fechar, estava uma mulher mais velha, com aspecto de matrona, e que deveria ter cerca de quarenta e cinco anos. Era fácil ver-se que também tinha sangue chinês. Sua aparência, saudável, de farto busto, era viva e quase excessivamente graciosa. O seu “pince-nez” de lentes cortadas em quadrado brilhava com o desejo da recepcionista de os pôr à vontade.

Ambas as mulheres vestiam roupas imaculadamente alvas, com meias brancas e sapatos de camurça branca como costumam apresentar-se as auxiliares empregadas nos mais luxuosos salões de beleza norte-americanos. Havia um que de suave e pálido em suas peles, como se elas raramente saíssem para o ar-livre.

Bond observou o ambiente, enquanto a mulher junto à porta lhe dizia frases convencionais de boas-vindas, como se eles tivessem sido colhidos por uma tempestade o chegado com atraso a uma festa.

— Oh, coitados! Nós não sabíamos quando vocês iriam chegar. A todo momento nos diziam que vocês já estavam a caminho... primeiro à hora do chá, ontem, depois na hora do jantar, e apenas há uma hora fomos informadas de que vocês chegariam à hora do desjejum. Devem estar com fome. Venham aqui e ajudem a irmã Rosa a preencher o formulário; depois eu os prepararei para a cama. Devem estar muito cansados.

Ia dizendo aquilo com voz doce e cacarejante, ao mesmo tempo que fechava a porta e os levava para junto da mesa e os fazia sentar nas cadeiras. Depois disse: — Bem, eu sou a irmã Lírio, e esta é a irmã Rosa. Ela irá fazer-lhes apenas algumas perguntas. Agora, aceitam um cigarro? — e pegou uma caixa de couro trabalhado que estava em cima da mesa. Abriu-a e pô-la diante deles. A caixa tinha três divisões, e a chinesinha explicou apontando com um dedo: “Esses são americanos, esses são ingleses e esses turcos.” Ela apanhou um luxuoso isqueiro de mesa e esperou.

Bond estendeu as mãos algemadas para tirar um cigarro turco.

A irmã Lírio deu um gritinho de espanto: — Oh, mas francamente. — Parecia sinceramente embaraçada. — Irmã Rosa, dê-me a chave, depressa. Já disse por várias vezes que os pacientes não devem ser trazidos dessa maneira. — Havia impaciência e aborrecimento em sua voz. — Francamente, aquela gente lá de fora! Já era tempo que eles fossem chamados à ordem.

A irmã Rosa estava tão embaraçada quanto a irmã Lírio. Rapidamente remexeu dentro de uma gaveta e entregou uma chave à irmã Lírio, que com muitas desculpas e cheia de dedos abriu os dois pares de algemas e, afastando-se para trás da mesa, deixou aquelas duas pulseiras de aço caírem dentro da cesta de papéis como se fossem ataduras sujas.

— Obrigado, — disse Bond, que não sabia como enfrentar aquela situação, a não ser procurando desempenhar um papel qualquer na comédia que se estava representando. Ele estendeu o braço, apanhou um cigarro e acendeu-o. Lançou um olhar para Honeyehile Rider, que parecia estonteada e nervosamente apertava com as mãos os braços de sua cadeira. Bond dirigiu-lhe um sorriso de conforto.

— Agora, por favor; — disse a irmã Rosa e inclinou-se sobre um comprido formulário impresso em papel caro. — Prometo ser o mais rápida que puder. O seu nome, sr... sr...

— Bryce, John Bryce.

Ela escreveu a resposta com grande concentração. — Endereço permanente?

— Aos cuidados do Jardim Zoológico Real, Regents Park, Londres, Inglaterra.

— Profissão?

— Ornitologista.

— Oh, meu Deus!, poderia o senhor soletrar isso? Bond atendeu-a.

— Muito obrigada. Agora, vejamos, objeto da viagem?

— Aves — respondeu Bond. — Sou também representante da Sociedade Audubon de Nova Iorque. Eles arrendaram parte desta ilha.

— Oh, sem dúvida. — Bond observou que a pena escrevia exatamente o que ele dizia. Depois da última palavra ela pôs um claro ponto de interrogação entre parênteses.

— E — a irmã Rosa sorriu polidamente em direção a Honeyehile — a sua esposa? Ela também está interessada em pássaros?

— Sim, sem dúvida.

— O seu primeiro nome?

— Honeyehile.

A irmã Rosa estava encantada. — Que nome lindo! — Ela voltou a escrever apressadamente. — E agora os parentes mais próximos de ambos, e estará tudo acabado.

Bond deu o verdadeiro nome de M como o parente mais próximo de ambos. Apresentou-o como “tio” e indicou o seu endereço como sendo “Diretor-Gerente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres.”

A irmã Rosa acabou de escrever e disse: — Pronto, está tudo feito. Muito obrigada, sr. Bryce, e espero que ambos apreciem a permanência aqui.

— Muito obrigado. Estou certo de que apreciaremos. — Bond levantou-se e Honeyehile fez o mesmo, ainda com expressão vazia.

A irmã Lírio disse: — Agora, venham comigo, queridos.

— Ela caminhou até uma porta na parede distante e deteve-se com a mão na maçaneta talhada em vidro. — Oh, meu Deus, — disse —, não é que agora me esqueci do número de seus quartos? É o apartamento creme, não é, irmã?

— Isso mesmo. Catorze e quinze.

— Obrigada, querida. E agora — ela abriu a porta — se vocês quiserem me seguir... Receio que seja uma caminhada um pouco longa. — Fechou a porta, por trás deles, e pôs-se à frente, indicando o caminho. — O Doutor tem falado várias vezes em instalar uma dessas escadas rolantes, ou algo de parecido, mas sabem como são os homens ocupados: — Ela riu alegremente. — Ele tem tantas outras coisas em que pensar!

— Sim, acredito, — disse Bond polidamente.

Bond tomou a mão da jovem e seguiram ambos a maternal e agitada chinesa através de cem metros de um alto corredor, do mesmo estilo da sala de recepção, mas que era iluminado a freqüentes intervalos por caros tubos luminosos fixados às paredes.

Bond respondia com polidos monossílabos aos comentários ocasionais que a irmã Lírio lhe lançava por sobre os ombros. Toda a sua mente se concentrava nas extraordinárias circunstâncias de sua recepção. Tinha certeza de que aquelas duas mulheres tinham sido sinceras. Nenhum só olhar ou palavra conseguira registrar que estivesse fora de propósito. Evidentemente aquilo era alguma espécie de fachada, mas de qualquer forma uma fachada sólida, meticulosamente apoiada pelo cenário e pelo elenco. A ausência de ressonância, na sala, e agora no corredor, estava a indicar que eles tinham deixado o galpão pré-fabricado para se internarem no flanco da montanha e agora estavam atravessando a sua base. Segundo o seu palpite estavam mesmo andando em direção oeste — em direção à penedia na qual terminava a ilha. Não havia umidade nas paredes e o ar parecia fresco e puro, com uma brisa a afagá-los. Muito dinheiro e uma bela realização de engenharia tinham sido os responsáveis por aquilo. A palidez das duas mulheres estava a sugerir que passavam a maior parte do tempo internadas no âmago da montanha. Do que a irmã dissera, parecia que elas faziam parte de um grupo de funcionários internos que nada tinham a ver com o destacamento de choque do exterior, e que talvez não soubessem a espécie de homens que eles eram.

Aquilo era grotesco, concluiu Bond ao se aproximar de uma porta, na extremidade do corredor, perigosamente grotesco, mas em nada adiantava pensar nisso no momento. Ele apenas podia seguir o papel que lhe tinha sido destinado. Pelo menos, aquilo era melhor do que os bastidores, na arena exterior da ilha.

Junto à porta, a irmã Lírio fez soar uma campainha. Já eram esperados e a porta abriu-se imediatamente. Uma encantadora jovem chinesa, de quimono lilás e branco, ficou a sorrir e a curvar-se, como se deve esperar que o façam as jovens chinesas. E, mais uma vez só havia calor e um sentimento de boas-vindas naquele rosto pálido como uma for. A irmã Lírio exclamou: — Aqui estão eles, finalmente, May! São o senhor e a senhora John Bryce. E sei que ambos devem estar exaustos, por isso devemos levá-los imediatamente aos seus aposentos, para que possam repousar e dormir. — Voltando-se para Bond: — Esta é May, muito boazinha. Ela tratará de ambos. Qualquer coisa que queiram é só tocar a campainha que May atenderá. É uma espécie de favorita de todos os nossos hóspedes.

Hóspedes!, pensou Bond. Essa é a segunda vez que ela usa a palavra. Sorriu polidamente para a jovem, e disse;

— Muito prazer; sim, certamente que gostaríamos de ir para os nossos aposentos.

May envolveu-os num cálido sorriso, e disse em voz baixa e atraente: — Espero que ambos se sintam bem, sr. Bryce. Tomei a liberdade de mandar vir uma refeição assim que soube que os senhores iam chegar. Vamos...? — Corredores saiam para a esquerda e a direita de portas duplas de elevadores, instalados na parede oposta. A jovem adiantou-se, caminhando na frente, para a direita, logo seguida de Bond e Honeyehile, que tinham atrás a irmã Lírio.

Ao longo do corredor, dos dois lados, viam-se portas numeradas. A decoração era feita no mais pálido cor-de-rosa, com um tapete cinza-pombo. Os números nas portas eram superiores a dez. O corredor terminava abruptamente, com duas portas, uma em frente a outra, com a numeração catorze e quinze. A irmã May abriu a porta catorze e o casal a seguiu, entrando na peça.

Era um lindo quarto de casal, em moderno estilo Mia-mi, com paredes verde-escuro, chão encerado de mogno escuro, com um ou outro espesso tapete branco e bem desenhado mobiliário de bambu com um tecido “chintz” de grandes rosas vermelhas sobre fundo branco. Havia uma porta de comunicação para um quarto de vestir masculino e outra que dava para um banheiro moderno e extremamente luxuoso, com uma banheira de descida e um bidê.

Era como se tivessem sido introduzidos num apartamento do mais moderno hotel da Flórida, com exceção de dois detalhes que não passaram despercebidos a Bond. Não havia janelas e nenhuma maçaneta interior nas portas.

May olhou com expressão de expectativa, de um para o outro.

Bond voltou-se para Honeyehile e sorriu-lhe: — Parece muito confortável, não acha, querida?

A jovem brincava com a barra da saia e fez um sinal de assentimento sem olhar para Bond.

Ouviu-se uma tímida batida na porta e outra jovem, tão linda quanto May, entrou carregando uma bandeja que se equilibrava sobre as palmas das mãos. A jovem descansou a bandeja sobre a mesa do centro e puxou duas cadeiras. Retirou a toalha de linho imaculadamente limpa e saiu. Sentiu-se um delicioso cheiro de fiambre e café.

May e a irmã Lírio também se encaminharam para a porta. A mulher mais idosa se deteve por um instante e disse:

— E agora nós os deixaremos em paz. Se desejarem alguma coisa, basta tocar a campainha. Os interruptores estão ao lado da cama. Ah, outra coisa, poderão encontrar roupa limpa nos aparadores. Receio que sejam apenas de estilo chinês,

— acrescentou, como a desculpar-se —, mas espero que os tamanhos satisfaçam. A rouparia só recebeu as medidas ontem à noite. O Dr. deu ordens severas para que os senhores não fossem perturbados. Ficará encantado se puderem reunir-se a ele, esta noite, para o jantar. Deseja, entretanto, que tenham todo o resto do dia à vontade, a fim de que melhor se ambientem, compreendem? — Fez uma pausa e olhou para um e para outro, com um sorriso indagador. — Posso dizer que os senhores...?

— Sim, por favor, — disse Bond. — Pode dizer ao D., que teremos muito prazer em jantar com ele.

— Oh, sei que ficará contente. — Com uma derradeira mesura, as duas chinesas se retiraram e fecharam a porta.

Bond voltou-se para Honeyehile, que parecia embaraçada e ainda evitava os seus olhos. Ocorreu então a Bond que talvez jamais tivesse ela tido um tratamento tão cortês ou visto tanto luxo em sua vida. Para ela, tudo aquilo devia ser muito mais estranho e aterrador do que o que tinham passado ao lado de fora. Ela continuou na mesma posição, brincando com a barra da saia. Podiam-se notar vestígios de suor seco, sal e poeira em seu rosto. Suas pernas nuas estavam sujas e Bond observou que os dedos de seus pés se moviam, suavemente, ao pisarem nervosamente o maravilhoso e espesso tapete.

Bond riu. Riu com gosto ao pensamento de que os temores da jovem tivessem sido abafados pelas preocupações de etiqueta e comportamento, e riu-se também da figura que ambos faziam — ela em farrapos e ele com a suja camisa azul, as calças pretas e os sapatos de lona enlameados.

Aproximou-se dela e segurou-lhe mãos. Estavam frias. Disse: — Honey, somos um par de espantalhos, mas há apenas um problema básico. Devemos tomar o nosso desjejum primeiro, enquanto está quente, ou tiraremos antes esses farrapos e tomaremos um banho, tomando a nossa refeição fria? Não se preocupe com mais nada. Estamos aqui nessa maravilhosa casinha e isto é tudo o que importa. O que faremos, então?

Ela sorriu hesitante. Seus olhos azuis fixavam-se no rosto dele, na ânsia de obter segurança. Depois disse: — Você não está preocupado com o que nos possa acontecer? — Fez um sinal para o quarto e acrescentou: — Não acha que tudo isso pode ser uma armadilha?

— Se se trata de uma armadilha, já caímos nela. Agora nada mais podemos fazer senão comer a isca. A única questão que subsiste é a de saber se a comeremos quente ou fria. — Apertou-lhe as mãos e continuou: — Seriamente, Honey. Deixe as preocupações comigo. Pense apenas onde estávamos apenas há uma hora. Isso aqui não é melhor? Agora, decidamos a única coisa realmente importante. Banho ou desjejum?

Ela respondeu com relutância: — Bem, se você acha... Quero dizer — preferiria antes lavar-me. — Mas logo acrescentou: — Você terá que ajudar-me. — E sacudiu a cabeça em direção ao banheiro, dizendo: Não sei como mexer numa coisa dessas. Como é que se faz?

Bond respondeu com toda seriedade: — É muito fácil. Vou preparar tudo para você. Enquanto você estivar tomando o seu banho tomarei o meu desjejum. Ao mesmo tempo tratarei de fazer com que o seu não esfrie.

Bond aproximou-se de um dos armários embutidos e abriu a porta. No interior havia uma meia dúzia de quimonos, alguns de seda e outros de linho. Apanhou um de linho, ao acaso. Depois, voltando-se para ela, disse: — Tire suas roupas e meta-se nisso aqui, enquanto preparo o seu banho. Mais tarde você escolherá as coisas que preferir, para a cama e para o jantar.

Ela respondeu com gratidão: — Oh, sim, James. Se você apenas me mostrasse... — E logo começou a desabotoar a saia.

Bond pensou em tomá-la nos braços e beijá-la, mas, ao invés disso, disse abruptamente: — ótimo, Honey — e, adiantando-se para o banheiro, abriu as torneiras.

Havia de tudo naquele banheiro: essência para banhos Floris Lime, para homens, e pastilhas de Guarlain para o banho de senhoras. Esfarelou uma pastilha na água e imediatamente o banheiro perfumou-se como uma loja de orquídeas. O sabonete era o Sapoceti de Guarlain “Fleurs des Alpes”. Num pequeno armário de remédios, atrás de um espelho, em cima da pia, podiam-se encontrar tubos de pasta, escovas de dente e palitos “Steradent”, água “Rose” para lavagem bucal, aspirina e leite de magnésia. Havia também um aparelho de barbear elétrico, loção “Lentheric” para barba, e duas escovas de náilon para cabelos e pentes. Tudo era novo e ainda não tinha sido tocado.

Bond olhou para o seu rosto sujo e sem barbear, no espelho, e riu sardonicamente para os próprios olhos, cinzentos, de pária queimado pelo sol. O revestimento da pílula certamente que era do melhor açúcar. Seria inteligente esperar que o remédio, no interior daquela pílula, fosse dos mais amargos.

Tocou a água, com a mão, a fim de sentir a temperatura. Talvez estivesse muito quente para quem jamais tinha tomado antes um banho quente. Deixou então que corresse um pouco mais de água fria. Ao inclinar-se, sentiu que dois braços lhe eram passados em torno do pescoço. Endireitou-se. Aquele corpo dourado resplandecia no banheiro todo revestido de ladrilhos brancos. Ela beijou-o impetuosamente nos lábios. Ele passou-lhe os braços à volta da cintura e esmagou-a de encontro a seu corpo, com o coração aos pulos. Ela disse sem fôlego, ao seu ouvido: — Achei estranhas as roupas chinesas, mas de qualquer maneira você disse à mulher que nós éramos casados.

Uma das mãos de Bond estava pousada sobre o seu seio esquerdo, cujo mamilo estava completamente endurecido pela paixão. O ventre da jovem se comprimia contra o seu. Por que não? Por que não? Não seja tolo! Este é um momento louco para isso. Vocês dois estão diante de um perigo mortal. Você deve continuar frio como gelo, para ter alguma possibilidade de se livrar dessa enrascada. Mais tarde! Mais tarde! Não seja fraco.

Bond retirou a mão do seio dela e espalmou-a à volta de seu pescoço. Esfregou o rosto de encontro ao dela e depois aproximou a boca da boca da jovem e deu-lhe um prolongado beijo.

Afastou-se depois e manteve-a à distância de um braço. Por um momento ambos se olharam, com os olhos brilhando de desejo. Ela respirava ofegantemente, com os lábios entreabertos, de modo que ele podia ver-lhe o brilho dos dentes. Ele disse com a voz trêmula: — Honey, entre no banho antes que eu lhe dê uma surra.

Ela sorriu e sem nada dizer entrou na banheira e deitou-se em todo seu comprimento. Do fundo da banheira ergueu os olhos para ele. Os cabelos louros, em seu corpo, brilhavam como moedas de ouro. Ela disse provocadoramente: — Você tem que me esfregar. Não sei como devo fazer, e você terá que mostrar-me.

Bond respondeu desesperadamente: — Cale a boca, Honey, e deixe de namoros. Apanhe a esponja, o sabonete e comece logo a se esfregar. Que diabo! Isso não é o momento de se fazer amor. Vou tomar o meu desjejum. — Esticou a mão para a porta e segurou na maçaneta. Ela disse docemente: — James! — Ele olhou para trás e viu que ela lhe fazia uma careta, com a língua de fora. Retribuiu com uma careta selvagem e bateu a porta com força.

Em seguida, Bond dirigiu-se para o quarto de vestir e deixou-se ficar durante algum tempo, de pé, no centro da peça, esperando que as batidas de seu coração se acalmassem. Esfregou as mãos no rosto e sacudiu a cabeça, procurando esquecê-la.

Para clarear a mente, percorreu ainda cuidadosamente as duas peças, procurando saídas, possíveis armas, microfones, qualquer coisa enfim que lhe aumentasse o conhecimento da situação em que se achava. Nada disso, entretanto, pôde encontrar. Na parede havia um relógio elétrico que marcava oito e meia e uma série de botões de campainhas, ao lado da cama de casal. Esses botões traziam a indicação de “Sala de serviço”, “cabeleireiro”, “manicure”, “empregada”. Não havia telefone. Bem no alto, a um canto de ambas as peças, viam-se as grades de um pequeno ventilador. Cada uma dessas grades era de dois pés quadrados. Tudo inútil. As portas pareciam ser feitas de algum metal leve, pintadas para combinarem com as paredes. Bond jogou todo o peso de seu corpo contra uma delas, mas ela não cedeu um só milímetro. Bond esfregou o ombro. Aquele lugar era uma verdadeira prisão. Não adiantava discutir a situação. A armadilha tinha-se fechado hermèticamente sobre eles. Agora, a única coisa que restava aos ratos era tirarem o melhor proveito possível da isca de queijo.

Bond sentou-se à mesa do desjejum, sobre a qual estava uma grande jarra com suco de abacaxi, metida num pequeno balde de prata cheio de cubos de gelo. Serviu-se rapidamente e levantou a tampa de uma travessa. Ali estavam ovos mexidos sobre torradas, quatro fatias de toucinho defumado, um rim grelhado e o que parecia quatro salsichas inglesas de carne de porco. Havia também duas torradas quentes, pãezinhos conservados quentes dentro de guardanapos, geléia de laranja e morango e mel. O café estava quase fervendo numa grande garrafa térmica, e o creme exalava um odor fresco e agradável.

Do banheiro vinham as notas da canção “Marion” que a jovem estava cantarolando. Bond resolveu não dar ouvidos à cantoria e concentrou-se nos ovos.

Dez minutos depois, Bond ouviu que a porta do banheiro se abria. Descansou uma torrada que tinha numa das mãos e cobriu os olhos com a outra. Ela riu e disse: — Ele é um covarde. Tem medo de uma simples jovem. — Em seguida Bond ouviu-a a remexer nos armários. Ela continuava falando, em parte consigo mesma: — Não sei porque ele está assustado. Naturalmente que se eu lutasse com ele facilmente o dominaria. Talvez esteja com medo disso. Talvez não seja realmente muito forte, embora seus braços e peito pareçam bastante rijos. Contudo, ainda não vi o resto. Talvez seja fraco. Sim, deve ser isso. Essa é a razão pela qual não ousa despir-se na minha frente. Hum, agora vamos ver, será que ele gostaria de mim com essas roupas? — Ela elevou a voz: — Querido James, você gostaria de me ver de branco, com pássaros azul-pálido esvoaçando sobre o meu corpo?

— Sim, bolas! Agora acabe com essa conversa e venha comer. Estou começando a sentir sono.

Ela soltou uma exclamação: — Oh, se você quer dizer que já está na hora de irmos para a cama, naturalmente que me apressarei.

Ouviu-se uma agitação de passos apressados e Bond logo a via sentar-se diante de si. Ele deixou cair as mãos e ela sorriu-lhe. Estava linda. Seu cabelo estava escovado e penteado de um dos lados caindo sobre o rosto, e do outro com as madeixas puxadas para trás da orelha. Sua pele brilhava de frescura e os grandes olhos azuis resplandeciam de felicidade. Agora Bond estava gostando daquele nariz quebrado. Tinha-se tornado parte de seus pensamentos relativamente a ela, e subitamente lhe ocorreu perguntar-se por que estaria ele triste quando ela era tão imaculadamente bela quanto tantas outras lindas jovens. Sentou-se circunspectamente, com as mãos no colo, e a metade dos seios aparecendo na abertura do quimono.

Bond disse severamente: — Agora, ouça, Honey. Você está maravilhosa, mas esta não é a maneira de usar-se um quimono. Feche-o no corpo, prenda-o bem e deixe de tentar parecer uma prostituta. Isso simplesmente não são bons modos à mesa.

— Oh, você não passa de um boneco idiota. — E ajeitou o quimono, fechando-o um pouco, em uma ou duas polegadas. — Por que você não gosta de brincar? Gostaria de brincar de estar casada.

— Não à hora do desjejum — respondeu Bond com firmeza. — Vamos, coma logo. Está delicioso. De qualquer maneira estou muito sujo, e agora vou fazer a barba e tomar um banho. — Levantou-se, deu volta à mesa e beijou-lhe o alto da cabeça. — E quanto a essa história de brincar, como você diz, gostaria mais de brincar com você do que com qualquer outra pessoa do mundo. Mas não agora. — Sem esperar pela resposta, dirigiu-se ao banheiro e fechou a porta.

Bond barbeou-se e tomou um banho de chuveiro. Sentia-se desesperadamente sonolento. O sono chegava-lhe, de modo que de quando em quando tinha que interromper o que fazia e inclinar a cabeça, repousando-a entre os joelhos. Quando começou a escovar os dentes, o seu estado era tal que mal podia fazê-lo. Estava começando a reconhecer os sintomas. Tinha sido narcotizado. A coisa teria sido posta no suco de abacaxi ou no café? Este era um detalhe sem importância. Aliás, nada tinha importância. Tudo o que queria fazer era estender-se naquele chão de ladrilhos e fechar os olhos. Assim mesmo, dirigiu-se cambaleante para a porta, esquecendo-se de que estava nu. Isso também pouca importância tinha. A jovem já tinha terminado a refeição e agora estava na cama. Continuou trôpego, até ela, segurando-se nos móveis. O quimono tinha sido abandonado no chão e ela dormia pesadamente, completamente nua, sob um simples lençol.

Bond olhou para o travesseiro, ao lado da jovem. Não! Procurou o interruptor e apagou as luzes. Agora teve que se arrastar pelo chão até chegar ao seu quarto. Chegou até junto de sua cama e atirou-se nela. Com grande esforço conseguiu ainda esticar o braço, tocar o interruptor e tentar apagar a lâmpada do criado-mudo. Mas não o conseguiu: sua mão deslizou, atirou o abajur ao chão e a lâmpada espatifou-se. Com um derradeiro esforço, Bond virou-se ainda no leito e adormeceu profundamente.

Os números luminosos do relógio elétrico, no quarto de casal, anunciavam nove e meia.

Às dez horas, a porta do quarto abriu-se suavemente. Um vulto muito alto e magro destacava-se na luz do corredor. Era um homem. Talvez tivesse dois metros de altura. Permaneceu no limiar da porta, com os braços cruzados, ouvindo. Dando-se por satisfeito, caminhou vagarosamente pelo quarto e aproximou-se da cama. Conhecia perfeitamente o caminho. Curvou-se sobre o leito e ouviu a serena respiração da jovem. Depois de um momento, tocou em seu próprio peito e acionou um interruptor. Imediatamente um amplo feixe de luz difusa projetou-se na cama. O farolete estava preso ao corpo do homem por meio de um cinto que o fixava à altura do esterno.

Inclinou-se novamente para a frente, de modo que a luz clareou o rosto da jovem.

O intruso examinou aquele rosto durante alguns minutos. Uma de suas mãos avançou, apanhou a orla do lençol, à altura do queixo da jovem, e puxou-o lentamente até os pés da cama. Mas a mão que puxara aquele lençol não era u’a mão. Era um par de pinças de aço muito bem articuladas na extremidade de uma espécie de talo metálico que desaparecia dentro de uma manga de seda negra. Era u’a mão mecânica.

O homem contemplou durante longo tempo aquele corpo nu, deslocando o seu peito de um lado para outro, de modo que todo o leito fosse submetido ao feixe luminoso. Depois, a garra saiu novamente de sob aquela manga e delicadamente levantou a ponta do lençol, puxando-o dos pés da cama até recobrir todo o corpo da jovem. O homem demorou-se ainda por um momento a contemplar o rosto adormecido, depois apagou o farolete e atravessou silenciosamente o quarto em direção à porta aberta, além da qual estava Bond dormindo.

O homem demorou-se mais tempo ao lado do leito de Bond. Perscrutou cada linha, cada sombra do rosto moreno e quase cruel que jazia quase sem vida, sobre o travesseiro. Observou a circulação à altura do pescoço e contou-lhe as batidas; depois, quando puxou o lençol para baixo, fez o mesmo na área do coração. Estudou a curva dos músculos, nos braços de Bond e nas coxas, e considerou pensativo a força oculta no ventre musculoso de Bond. Chegou até mesmo a curvar-se sobre a mão direita de Bond, estudando-lhe cuidadosamente as linhas da vida e do destino.

Por fim, com grande cuidado, a pinça de aço puxou novamente o lençol, desta vez para cobrir o corpo de Bond até o pescoço. Por mais um minuto o elevado vulto permaneceu ao lado do homem adormecido, depois se retirou rapidamente, ganhando o corredor, enquanto a porta se fechava com um estalido metálico e seco.


CONTINUA

XI - VIDA NO CANAVIAL


Seriam cerca de oito horas, pensou Bond. A não ser o coaxar dos sapos, tudo estava mergulhado em silêncio. No canto mais distante da clareira, ele podia vislumbrar o vulto de Quarrel.

Podia-se ouvir o tinir metálico, enquanto ele se ocupava em desmontar e secar a sua “Remington”.

Por entre as árvores podiam-se ver também as luzes distantes, vindas do depósito de guano, riscar caminhos luminosos e festivos sobre a superfície escura do lago. O desagradável vento desaparecera e o abominável cenário estava mergulhado em trevas. Estava bastante fresco. As roupas de Bond tinham secado no corpo. A comida tinha aquecido o seu estômago. Ele experimentou uma agradável sensação de conforto, sonolência e paz. O dia seguinte ainda estava muito longe e não apresentava problemas, a não ser uma boa dose de exercício físico. A vida, subitamente, pareceu-lhe fácil e boa.

A jovem estava a seu lado, metida no saco de dormir. Estava deitada de costas, com a cabeça descansando nas mãos, e olhando para o teto de estrelas. Ele apenas conseguia divisar os pálidos contornos de seu rosto. De repente, ela disse: James, você prometeu dizer-me o que significava tudo isso. Vamos. Eu não dormirei enquanto você não o disser.

Bond riu. — Eu direi se você também disser. Também quero saber o que você pretende.

— Pois não, não tenho segredos: mas você deve falar primeiro.

— Está certo. — Bond puxou os joelhos até a altura do queixo e passou os braços à volta deles. — Eu sou uma espécie de policial. Eles me enviam de Londres quando há alguma coisa de estranho acontecendo em alguma parte do mundo e que não interessa a ninguém. Bem, não faz muito tempo, um dos funcionários do Governador, em Kingston, um homem chamado Strangways, aliás meu amigo, desapareceu. Sua secretária, que era uma linda jovem, também desapareceu sem deixar vestígios. Muitos pensaram que eles tivessem fugido juntos, mas eu não acreditei nisso. Eu...”

Bond contou tudo com simplicidade, falando em homens bons e maus, como numa história de aventuras lida em algum livro. Depois terminou: Como você vê, Honey, temos de voltar a Jamaica, amanhã à noite, todos nós, na canoa, e então o Governador nos dará ouvidos e enviará um destacamento de soldados para apanhar este chinês. Espero que isso terá como conseqüência levá-lo à prisão. Ele com certeza também sabe disso, e essa é a razão pela qual procura aniquilar-nos. Essa é a história. Agora é a sua vez.

A jovem disse: Você parece viver uma vida muita excitante. Sua mulher não deve gostar que você fique fora tanto tempo. Ela não tem medo de que você se fira?

— Não sou casado. A única que se preocupa com a possibilidade de que eu me fira é a minha companhia de seguros.

Ela continuou sondando: Mas suponho que você tenha namoradas.

— Não permanentes.

— Oh!

Fez-se uma pausa. Quarrel se aproximou e disse: “Capitão, farei o primeiro quarto, se for melhor. Estarei na extremidade da restinga e virei chamá-lo à meia-noite. Então talvez o senhor possa ir até as cinco horas, quando nós nos poremos em marcha. Precisamos estar fora daqui antes que clareie o dia.

— Está bem — respondeu Bond. — Acorde-me se você vir alguma coisa. O revólver está em ordem?

— Perfeito — respondeu Quarrel com evidente mostra de contentamento. Depois, dirigindo-se à jovem disse com leve tom de insinuação: — Durma bem, senhorita. Em seguida, desapareceu silenciosamente nas sombras.

— Gosto de Quarrel — disse a jovem. E, após uma pausa: — Você quer realmente saber alguma coisa a meu respeito? A história não é tão excitante quanto a sua.

— É claro que quero. E não omita nada.

— Não há nada a omitir. Você poderia escrever toda a história de minha vida nas costas de um cartão postal. Para começar, nunca saí de Jamaica. Vivi toda a minha vida num lugar chamado Beau Desert, na costa setentrional, nas proximidades do Porto Morgan.

Bond riu. — É estranho: posso dizer o mesmo; pelo menos por enquanto. Não notei você pela região. Você vive em cima de uma árvore?

— Ah, imagino que você tenha ficado na casa da praia. Eu nunca chego até ali. Vivo na Casa Grande.

— Mas nada ficou dela. É uma ruína no meio dos canaviais.

— Eu vivo na adega. Tenho vivido ali desde a idade de cinco anos. Depois a casa se incendiou e meus pais morreram. Nada me lembro deles, por isso você não precisa manifestar pesar. A princípio vivi ali com a minha ama negra, mas depois ela morreu, quando eu tinha apenas quinze anos. Nos últimos cinco anos tenho vivido ali sozinha.

— Nossa Senhora! — Bond estava boquiaberto. — Mas não havia ninguém para tomar conta de você? Os seus pais não deixaram nenhum dinheiro?

— Nem um tostão. — Não havia o mínimo traço de amargura na voz da jovem — talvez orgulho, se houvesse alguma coisa. — Você sabe, os Riders eram uma das mais antigas famílias de Jamaica. O primeiro Rider recebera de Cromwell as terras de Beau Desert, por ter sido um dos que assinaram o veredicto de morte contra o rei Carlos. Ele construiu a Casa Grande e minha família viveu ora nela ora fora dela, desde aquela época. Mas depois veio a decadência do açúcar e eu acho que a propriedade foi pessimamente administrada, e, ao tempo em que meu pai tomou conta da herança, havia somente dívidas — hipotecas e outros ônus. Assim, quando meu pai e minha mãe morreram a propriedade foi vendida. Eu pouco me importei, pois era muito jovem. Minha ama deve ter sido maravilhosa. Quiseram que alguém me adotasse, mas a minha babá reuniu os pedaços de mobília que não tinham sido queimados e com eles nós nos instalamos da melhor forma no meio daquelas ruínas. Depois de algum tempo ninguém mais veio interferir conosco. Ela cosia um pouco e lavava para algumas freguesas da aldeia, ao mesmo tempo que plantava bananas e outras coisas, sem falar do grande pé de fruta-pão que havia diante da casa. Comíamos o que era a ração habitual do povo de Jamaica. E havia os pés de cana-de-açúcar à nossa volta. Ela fizera também uma rede para apanhar peixes, a qual nós recolhíamos todos os dias. Tudo corria bem e nós tínhamos o suficiente para comer. Ela ensinou-me a ler e escrever, como pôde. Tínhamos uma pilha de velhos livros que escapara ao incêndio, inclusive uma enciclopédia. Comecei com o A quando tinha apenas oito anos, e cheguei até o meio do T. — Ela disse um tanto na defensiva: — Aposto que sei mais do que você sobre muitas coisas.

— Estou certo de que sim. — Bond estava perdido na visão daquela jovem de cabelos de linho errando pelas ruínas de uma grande construção, com uma obstinada negra a vigiá-la e a chamá-la para receber as lições que deveriam ter sido um mistério para ela mesma. — Sua ama deve ter sido uma criatura extraordinária.

— Ela era um amor. — Era uma afirmação peremptória. — Pensei que fosse morrer quando ela faleceu. As coisas não foram tão fáceis para mim depois disso. Antes eu levava uma vida de criança, mas subitamente tive que crescer e fazer tudo por mim mesma. E os homens tentaram apanhar-me e atingir-me. Diziam que queriam fazer amor comigo. — Fez uma pausa e acrescentou: — Eu era bonita naquela época. Bond disse muito sério:

— Você é uma das jovens mais belas que já vi.

— Com este nariz? Não seja tolo.

— Você não compreende. — Bond tentou encontrar palavras nas quais ela pudesse crer. — É claro que qualquer pessoa pode ver que o seu nariz está quebrado; mas desde esta manhã dificilmente eu pude notá-lo. Quando se olha para uma pessoa, olha-se para os seus olhos ou para a sua boca. Nesses dois pontos se encontram a expressão. Um nariz quebrado não tem maior significação do que uma orelha torta. Narizes e orelhas são peças do mobiliário facial. Algumas são mais bonitas do que outras, mas não são tão importantes quanto o resto. Se você tivesse um nariz bonito, tão bonito como o resto, você seria a jovem mais bela de Jamaica.

— Você é sincero? — Sua voz era ansiosa. — Você acha que eu poderia ser bela? Sei que muita coisa em mim está bem, mas quando olho no espelho só vejo o meu nariz quebrado. Estou certa de que o mesmo ocorre com outras pessoas que são, que são — bem — mais ou menos aleijadas.

Bond disse com impaciência: — Você não é aleijada! Não diga tolices. E aliás você pode endireitá-lo mediante uma simples operação. Basta que você vá aos Estados Unidos e a coisa levará apenas uma semana.

Ela disse com irritação: — Como é que você quer que eu faça isso? Tenho cerca de quinze libras debaixo de uma pedra, na minha adega. Tenho ainda três saias, três blusas, uma faca e uma panela de peixe. Conheço muito bem essas operações. O médico de Porto Maria já pediu informações para mim. Ele é um homem muito bom e escreveu para os Estados Unidos. Pois para que a operação seja bem feita, eu teria que gastar cerca de quinhentas libras, sem falar da passagem para Nova York, a conta do hospital e tudo o mais.

Sua voz tornou-se desesperançada: — Como é que você espera que eu possa ter todo esse dinheiro?

Bond já decidira sobre o que teria de ser feito, mas no momento apenas disse ternamente: — Bem, espero que se possam encontrar meios; mas, de qualquer maneira, prossiga com a sua história. Ela é muito excitante — muito mais interessante do que a minha. Você tinha chegado ao ponto em que a sua ama morreu. O que aconteceu depois?

A jovem recomeçou com relutância.

— Bem, a culpa é sua por ter interrompido. E você não deve falar de coisas que não compreende. Suponho que as pessoas lhe digam que você é simpático. Você deve também ter todas as namoradas que desejar. Bem, isso não aconteceria se você fosse vesgo ou tivesse um lábio leporino. — Na verdade, ele pôde ouvir o sorriso em sua voz: — Acho que quando voltarmos eu irei ter com o feiticeiro para que lhe faça uma mandinga e lhe dê alguma coisa assim. — E ela acrescentou tristemente: — Dessa forma, nós seremos mais parecidos.

Bond estendeu o braço e sua mão tocou nela: — Eu tenho outros planos. Mas continuemos, quero ouvir o resto da sua história.

— Bem, — disse a jovem com um suspiro. — Eu terei que me atrasar um pouco. Como você sabe, toda a propriedade é representada pela cana-de-açúcar e pela velha casa que está situada no meio da plantação. Bem, umas duas vezes por ano eles cortam a cana e mandam-na para o moinho. E quando eles o fazem, todos os animais e insetos que vivem nos canaviais entram em pânico e a maioria deles têm as suas tocas destruídas e são mortos. Na época da safra, alguns deles começaram a vir para as ruínas da casa, onde se escondiam. No princípio, minha babá ficava aterrorizada, pois lá vinham os mangustos, as cobras e os escorpiões, mas eu preparei dois quartos da adega para recebê-los. Não me assustei com eles, e eles nunca me fizeram mal. Pareciam compreender que eu estava cuidando deles. E devem ter contado aquilo aos seus amigos, ou alguma coisa parecida, pois depois de algum tempo era perfeitamente natural que todos viessem acantonar-se em seus dois quartos, onde ficavam até que os canaviais começassem novamente a crescer, quando então iam saindo e voltando para os campos. Dei-lhes toda a comida que podíamos pôr de lado, quando eles ficavam conosco, e todos se portavam muito bem, a não ser por algum odor e às vezes uma ou outra luta entre si. Mas eram muito mansos comigo. Naturalmente os cortadores de cana perceberam tudo e viam-me andando pelo lugar com cobras à volta do meu pescoço, e assim por diante, a ponto de ficarem aterrorizados comigo e me considerarem uma feiticeira. Por causa disso, eles nos deixaram completamente isoladas. Ela fez uma pausa, e depois recomeçou:

— Foi assim que aprendi tanta coisa sobre animais e insetos. Eu costumava ainda passar muito tempo no mar, aprendendo coisas sobre os animais marinhos, assim como sobre os pássaros. Se se chega a saber o que todas essas criaturas gostam de comer e do que têm medo, pode-se muito bem fazer amizade com elas. — Levantou os olhos para Bond e disse: Você não sabe o que perde ignorando todas essas coisas.

— Receio que perca muito — respondeu Bond com sinceridade. — Suponho que eles sejam muito melhores e mais interessantes que os homens.

Sobre isso nada sei — respondeu a jovem pensativa-mente. — Não conheço muitas pessoas. A maioria das que conheci foram detestáveis, mas acho que deve haver criaturas interessantes também. — Fez uma pausa, e prosseguiu: — Nunca pensei realmente que chegasse a gostar de alguma pessoa como gosto dos animais. Com exceção da babá, naturalmente. Até que... — Ela se interrompeu com um sorriso de timidez. — Bem, de qualquer forma, nós vivemos muito felizes juntas, até que eu fiz quinze anos, quando então a babá morreu e as coisas se tornaram muito difíceis. Havia um homem chamado Mander. Um homem horroroso. Era o capataz branco que servia aos proprietários da plantação. Ele vivia me procurando. Queria que eu fosse viver com ele, em sua casa de Porto Maria.

Eu o odiava, e costumava esconder-me sempre que ouvia o seu cavalo aproximando-se do canavial. Certa noite ele veio a pé e eu não o ouvi. Estava bêbado. Entrou na adega e lutou comigo porque não queria fazer o que ele desejava. Você sabe, as coisas que fazem as pessoas quando estão apaixonadas.

— Sim, já sei.

— Tentei matá-lo com a minha faca, mas ele era muito forte e deu-me um soco tão forte no rosto que me quebrou o nariz. Deixou-me inconsciente e acho que fez alguma coisa comigo. Sei que ele fez mesmo. No dia seguinte eu quis me matar quando vi o meu rosto e verifiquei o que ele me havia feito. Pensei que iria ter um filho. Teria sem dúvida me matado se tivesse tido um filho daquele homem. Em todo caso, não tive, e tudo continuou assim. Fui ao médico e ele fez o que pôde com o meu nariz e não me cobrou nada. Quanto ao resto, eu nada lhe contei, pois estava muito envergonhada. O homem não voltou mais. Eu esperei e nada fiz até a próxima colheita de cana-de-açúcar. Tinha um plano. Estava esperando que as aranhas viúvas-negras viessem procurar abrigo. Um belo dia elas chegaram. Apanhei a maior das fêmeas e á deixei numa caixa sem nada para comer. As fêmeas são terríveis. Então esperei que fizesse uma noite escura, sem luar. Na primeira noite dessas, apanhei a caixa com a aranha e caminhei até chegar à casa do homem. Estava muito escuro e eu me sentia aterrorizada com a possibilidade de encontrar algum assaltante pela estrada, mas não houve nada. Esperei em seu jardim, oculta entre os arbustos, até que ele se recolheu à cama. Então subi por uma árvore e ganhei a sacada; aguardei até que ele começasse a roncar e depois entrei pela janela. Ele estava nu, estendido na cama, sob o mosquiteiro. Levantei uma aba do filó, abri a caixa e sacudi-lhe a aranha sobre o ventre. Depois saí e voltei para casa.

— Deus do céu! — exclamou Bond reverentemente. — O que aconteceu com o homem?

Ela respondeu com satisfação: — Levou uma semana para morrer. Deve ter-lhe doído terrivelmente. Você sabe, a mordida dessa aranha é pavorosa. Os feiticeiros dizem que não há nada que se lhe compare. — Ela fez uma pausa, e como Bond não fizesse nenhum comentário, acrescentou: — Você não acha que eu fiz mal, não é?

— Bem, não faça disso um hábito — respondeu Bond suavemente. — Mas não posso culpá-la, diante do que ele tinha feito. E, depois, o que aconteceu?

— Bem, depois me estabeleci novamente — sua voz era firme. — Tive que me concentrar na tarefa de obter alimento suficiente, e naturalmente. — Acrescentou persuasivamente: — Eu tinha de fato um nariz muito bonito, antes. Você acha que os médicos podem torná-lo igualzinho ao que era antes?

— Eles poderão fazê-lo de qualquer forma que você quiser — disse Bond em tom definitivo. — Como é que você ganhou dinheiro?

— Foi graças à enciclopédia. Li nela que há pessoas que gostam de colecionar conchas marinhas e que as conchas raras podiam ser vendidas. Falei com o mestre-escola local, sem contar-lhe naturalmente o meu segredo, e ele descobriu para mim que havia uma revista norte-americana chamada “Nautilus”, dedicada aos colecionadores de conchas. Eu tinha apenas o dinheiro suficiente para tomar uma assinatura daquela revista e comecei a procurar as conchas que as pessoas pediam em seus anúncios. Escrevi a um comerciante de Miami e ele começou a comprar as minhas conchas. Foi emocionante. Naturalmente que cometi alguns erros, no princípio. Pensei, por exemplo, que as pessoas gostariam das conchas mais bonitas, mas esse não era o caso. Freqüentemente elas preferiam as conchas mais feias. Depois, quando achava conchas raras, punha-me a limpá-las e poli-las a fim de torná-las mais bonitas, mas isso também foi um erro. Os colecionadores querem as conchas exatamente como saem do mar, com o animal em seu interior também. Então consegui algum formol com o médico e o punha entre as conchas vivas, para que elas não tivessem mau cheiro, e depois mandava-as para o tal comerciante de Miami. Só aprendi bem o negócio de um ano para cá e já consegui quinze libras. Consegui esse resultado agora que sei como é que eles querem as conchas e se tivesse sorte, poderia fazer pelo menos cinqüenta libras por ano. Então, em dez anos poderia ir aos Estados Unidos e operar-me. Mas, continuou ela com intenso contentamento, tive uma notável maré de sorte. Fui a Crab Key pelo Natal, onde já tinha estado antes. Mas dessa vez eu encontrei essas conchas purpúreas. Não parecem grande coisa, mas eu enviei uma ou duas para Miami e o comerciante escreveu-me para dizer que compraria tantas dessas conchas quantas eu pudesse encontrar, e ao preço de até cinco dólares pelas perfeitas. Disse-me ainda que eu deveria manter segredo sobre o lugar de onde as tirava, pois de outra forma o “mercado seria estragado”, como disse ele, e os preços cairiam. É como se se tivesse uma mina de ouro particular. Agora serei capaz de juntar o dinheiro em cinco anos. Esse foi o motivo pelo qual tive grandes suspeitas de você, quando o encontrei na praia. Pensei que você tivesse vindo para roubar as minhas conchas.

— Você me deu um susto, pois pensei que você fosse a garota do Dr. No.

— Muito obrigada.

— Mas depois que você tiver feito a operação, o que irá fazer? Você não pode continuar vivendo numa adega durante toda a vida.

— Pensei em me tornar uma prostituta. — Ela o disse como se tivesse dito “enfermeira” ou “secretária”.

— Oh, o que é que você quer dizer com isso? — Talvez ela já tivesse ouvido aquela expressão sem compreendê-la bem.

— Uma dessas jovens que possuem um bonito apartamento e lindas roupas. Você sabe o que quero dizer — acrescentou ela com impaciência. — Os homens telefonam, marcam encontro, chegam, fazem amor e pagam. Elas ganham cem dólares de cada vez, em Nova Iorque, onde pensei começar. Naturalmente — admitiu — terei de fazer por menos, no começo, até que aprenda a trabalhar bem. Quanto é que vocês pagam pelas que não têm experiência?

Bond riu. — Francamente, não me lembro. Há muito tempo que não me encontro com essas mulheres.

Ela suspirou. — Sim, suponho que você possa ter tantas mulheres quantas queira, por nada. Suponho que apenas os homens feios paguem, mas isso é inevitável. Qualquer espécie de trabalho nas grandes cidades deve ser horrível. Pelo menos pode-se ganhar muito mais como prostituta. Depois, poderia voltar para Jamaica e comprar Beau Desert. Seria bastante rica para encontrar um marido bonito e ter alguns filhos. Agora que encontrei essas conchas, penso que poderia estar de volta a Jamaica quando tivesse trinta anos. Não seria formidável?

— Gosto da última parte do plano, mas não tenho muita confiança na primeira. De qualquer forma, como é que você veio a saber dessa história de prostitutas? Encontrou isso na letra P, na enciclopédia?

— Claro que não; não seja tolo. Há uns dois anos houve em Nova Iorque um escândalo sobre elas, envolvendo também um “play-boy” chamado Jelke. Ele tinha toda uma cadeia de prostitutas, e eu li muito sobre o caso no “Gleaner”. O jornal deu inclusive os preços que elas cobravam e tudo o mais. De qualquer forma, há milhares dessas jovens em Kingston, embora não sejam tão boas. Recebem apenas cinco xelins e não têm um lugar apropriado para fazer amor, a não ser no mato. Minha babá chegou a falar-me delas. Disse-me que eu não deveria imitá-las, pois do contrário seria muito infeliz. É claro que seria, recebendo apenas cinco xelins. Mas por cem dólares!...

Bond observou: — Você não conseguiria guardar todo esse dinheiro. Precisaria ter uma espécie de gerente para arranjar os homens, e teria ainda de dar gorjetas à polícia, para deixá-la em paz. Por fim, poderia ir facilmente parar na cadeia se tudo não corresse bem. Na verdade, com tudo o que você sabe sobre animais, bem poderia ter um ótimo emprego, cuidando deles, em algum jardim zoológico norte-americano. E o que me diz do Instituto de Jamaica? Tenho certeza de que você gostaria mais de trabalhar ali. E poderia também facilmente encontrar um bom marido. De qualquer forma, você não deve mais pensar em ser prostituta. Você tem um belo corpo e deve guardá-lo para o homem que amar.

— Isso é o que dizem as pessoas nos livros — disse ela com ar de dúvida. — A dificuldade está em que não há nenhum homem para ser amado em Beau Desert. — Depois acrescentou timidamente: — Você é o único inglês com quem jamais falei. Gostei de você desde o princípio, e não me importo de dizer-lhe essas coisas agora. Penso que há muitas pessoas das quais chegaria a gostar se saísse daqui.

— É claro que há. Centenas. E você é uma garota formidável; o que pensei assim que a vi.

— Assim que viu as minhas nádegas, você quer dizer. — Sua voz estava-se tornando sonolenta, mas cheia de prazer.

Bond riu. — Bem, eram nádegas maravilhosas. E o outro lado também era maravilhoso. — O corpo de Bond começou a se agitar com a lembrança de como a vira pela primeira vez. Depois de um instante, disse com mau humor: — Agora vamos, Honey. Está na hora de dormir. Haverá muito tempo para conversarmos quando voltarmos a Jamaica.

— Haverá? — perguntou ela desconsoladamente. — Você promete?

— Prometo.

Ele a viu agitar-se dentro do saco de dormir. Olhou para baixo e apenas pôde divisar o seu pálido perfil voltado para ele. Ela deixou escapar o profundo suspiro de uma criança, antes de adormecer.

Reinava silêncio na clareira e o tempo estava esfriando. Bond descansou a cabeça sobre os joelhos unidos. Sabia que era inútil procurar dormir, pois sua mente estava cheia dos acontecimentos do dia e dessa extraordinária mulher Tarzan que aparecera em sua vida. Era como se algum animal muito bonito se lhe tivesse dedicado. E não largaria os cordéis enquanto não tivesse resolvido os problemas dela. Estava sentindo isso. Naturalmente que não haveria grandes dificuldades para a maioria de seus problemas. Quanto à operação, seria fácil arranjá-la, e até mesmo encontrar-lhe um emprego, com o auxílio de amigos, e um lar. Tinha dinheiro e haveria de comprar-lhe roupas, mandaria ajeitar os seus cabelos e a lançaria no grande mundo. Seria divertido. Mas quanto ao resto? Quanto ao desejo físico que sentia por ela? Não se podia fazer amor com uma criança. Mas, seria ela uma criança? Não haveria nada de infantil relativamente ao seu corpo ou à sua personalidade. Era perfeitamente adulta e bem inteligente, a seu modo, e muito mais capaz de tomar conta de si mesma do que qualquer outra jovem de vinte anos que Bond conhecera.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um puxão em sua manga. A vozinha disse: — Por que você não vai dormir? Não está sentindo frio?

— Não; estou bem.

— Aqui no saco de dormir está bom e quente. Você quer vir para cá? Tem bastante lugar.

— Não, obrigado, Honey. Estou bem.

Houve uma pausa, e depois ela disse num sussurro: — Se você está pensando... Quero dizer — você não precisa fazer amor comigo... Eu poderia dormir de costas para o seu peito.

— Honey, querida, vá dormir. Seria maravilhoso dormir assim com você, mas não esta noite. De qualquer maneira, em breve terei de render Quarrel.

— Muito bem, — disse ela com voz mal humorada. — Talvez quando voltarmos a Jamaica.

— Talvez.

— Prometa. Não dormirei enquanto você não prometer.

Bond disse desesperadamente: — Naturalmente que prometo. Agora, vá dormir, Honeychile.

A sua voz se fez ouvir outra vez, triunfante: — Agora você tem uma dívida comigo. Você prometeu. Boa-noite, querido James.

— Boa noite, querida Honey.


XII - A COISA


O aperto no braço de Bond era ansioso. Ele de um salto pôs-se de pé.

Quarrel sussurrou tensamente: — Alguma coisa está-se aproximando pela água, capitão! Com certeza é o dragão!

A jovem levantou-se e perguntou nervosamente: — Que aconteceu?

Bond apenas disse: — Fique aí, Honey! Não se mexa. Eu voltarei.

Internou-se pelos arbustos do lado oposto da montanha e correu pela restinga, com Quarrel ao lado.

Chegaram até a extremidade da restinga, a vinte metros da clareira, e pararam sob o abrigo dos últimos arbustos, que Bond apartou com as mãos para ter um melhor campo de visão.

O que seria aquilo? A meia milha de distância, atravessando o lago, vinha algo informe, com dois olhos brilhantes cor de laranja, e pupilas negras. Entre estes, onde deveria estar a boca, tremulava um metro de chama azul. A luminosidade cinzenta das estrelas deixava ver uma espécie de cabeça abaulada entre duas pequenas asas semelhantes às de um morcego. Aquela coisa estranha deixava escapar um ronco surdo e baixo, que abafava um outro ruído, uma espécie de vibração rítmica. Aquela massa avançava na direção deles, à velocidade de uns dezesseis quilômetros por hora, deixando atrás de si uma esteira de espuma.

Quarrel sussurrou:

— Nossa, capitão! Que coisa é aquela?

Bond continuou de pé e respondeu laconicamente: — Não sei exatamente. Uma espécie de trator arranjado para meter medo. Está trabalhando com um motor diesel, e por isso você pode deixar os dragões de lado. Agora, vejamos... — Bond falava como se para si mesmo. — Não adianta fugir. Aquilo se move mais depressa do que nós e sabemos que pode esmagar árvores e atravessar pântanos. Temos que lhe dar combate aqui mesmo. Quais serão os seus pontos fracos? Os motoristas. Com certeza, dispõem de proteção. Em todo caso, não sabemos muito sobre esse ponto. Quarrel, você começará a disparar contra aquela cúpula quando estiverem a uns duzentos metros de nós. Faça a pontaria cuidadosamente e continue atirando. Visarei os faróis quando estiverem a cinqüenta metros. Não se está movendo sobre lagartas. Deve ter alguma espécie de rodas gigantescas, provavelmente de avião. Visarei as rodas também. Fique aí. Ficarei dez metros para baixo. Naturalmente vão reagir e nós temos que manter as balas longe da garota. Está combinado? — Bond esticou o braço e apertou o enorme ombro de Quarrel. — E não se preocupe demais. Esqueça-se de dragões. Trata-se apenas de alguma trapaça do Dr. No. Mataremos os motoristas, tomaremos conta do veículo e ganharemos com ele a costa. Isso economizará as nossas solas. Está bem?

Quarrel deu uma breve risada. — Está bem, capitão. Desde que o senhor assim o diz. Mas que Nosso Senhor saiba também que aquilo não é dragão!

Bond desceu pela restinga e se internou pelos arbustos, até que encontrou um ponto de onde podia ter um bom campo de tiro. Disse suavemente: — Honey!

— Sim, James — e a voz dela deixou transparecer alívio.

— Faça um buraco na areia como fizemos na praia. Faça-o por trás de raízes grossas e fique lá deitada. Talvez haja um tiroteio. Não tenha medo de dragões. Isto é apenas um veículo pintado, dirigido por alguns dos homens do Dr. No. Não se assuste. Estou aqui perto.

— Muito bem, James. Tenha cuidado! — A voz agora deixava transparecer um vivo temor.

Bond curvou-se, apoiando um joelho no chão, sobre as folhas e a areia, e olhou para fora.

Agora o veículo achava-se a uns trezentos metros de distância, e os seus faróis amarelos estavam iluminando a areia. Chamas azuis continuavam saindo da boca daquele engenho. Saíam de uma espécie de longo focinho, no qual se pintaram mandíbulas entreabertas, para darem ao todo a aparência de dragão. Um lança-chamas! Aquilo explicava as árvores queimadas e a história do administrador. A coloração azul da chama seria dada por alguma espécie de queimador, disposto adiante do lança-chamas.

Bond teve que admitir que aquela visão era algo de terrível, à medida que o veículo avançava pelo lago raso. Evidentemente fora calculado para infundir terror. Ele mesmo ter-se-ia assustado, não fora a vibração rítmica do motor diesel. Mas até que ponto aquilo seria vulnerável para homens que não fossem dominados pelo pânico?

A resposta ele a teve quase imediatamente. Ouviu-se o estampido da “Remington” de Quarrel. Uma centelha saiu da cabina encimada pela cúpula e logo se ouviu um ruído metálico. Quarrel disparou mais um tiro e, logo em seguida, uma rajada. As balas chocaram-se inutilmente de encontro à cabina. Não houve mesmo uma simples redução de velocidade. O monstro continuava avançando para o ponto de onde tinham partido os disparos. Bond descansou o cano de seu “Smith & Wesson” no braço, e fez cuidadosa pontaria. O profundo ruído surdo de sua arma fez-se ouvir por sobre o matraquear da “Remington” de Quarrel. Um dos faróis fora atingido e despedaçara-se. Bond disparou mais quatro tiros contra o outro e atingiu-o com o quinto e último disparo de seu revólver. O fantástico aparelho parecia continuar não dando importância, e foi avançando para o lugar de onde tinham partido os disparos do “Smith & Wesson”. Bond tornou a carregar a arma e começou a atirar contra os pneumáticos, sob as asas negro e ouro. A distância agora era de apenas trinta metros e podia jurar que já atingira mais de uma vez a roda mais próxima, sem nenhum resultado. Seria borracha sólida? O primeiro estremecimento de medo percorreu a pele de Bond.

Carregou mais uma vez. Seria aquela coisa maldita vulnerável pela retaguarda? Deveria correr para o lago e tentar uma abordagem? Avançou um passo, através dos arbustos, mas logo ficou imóvel, incapaz de prosseguir.

Subitamente, daquele focinho ameaçador, uma língua de fogo azulada tinha sido lançada na direção do esconderijo de Quarrel. À direita de Bond, no mato, surgira apenas uma chama laranja e vermelha, simultaneamente com um estranho urro, que imediatamente silenciou. Satisfeita, aquela língua de fogo se recolhera à sua boca. Agora aquilo fizera um movimento de rotação sobre o seu eixo e parará completamente. O buraco azulado da boca apontava diretamente para Bond.

Bond deixou-se ficar, esperando pelo horroroso fim. Olhou através das mandíbulas da morte e viu o brilhante f-lamento vermelho do queimador, bem no fundo do comprido tubo. Pensou no corpo de Quarrel — mas não havia tempo para pensar em Quarrel — e imaginou-o completamente carbonizado. Dentro em pouco ele também se incendiaria como uma tocha. Um único berro seria arrancado dele e os seus membros se encolheriam na pose de dançarino dos corpos queimados. Depois viria a vez de Honey. Meu Deus, para o quê ele os havia arrastado! Por que fora tão insano a ponto de enfrentar aquele homem com todo o seu arsenal? Por que não aceitara a advertência que lhe fora feita pelo longo dedo que o alcançara já em Jamaica? Bond trincou os dentes. Vamos, canalhas. Depressa.

Ouviu-se a sonoridade de um alto-falante, que anunciava metàlicamente: “Saia daí, inglês. E a boneca também. Depressa ou será frito no inferno, como o seu amigo”. Para dar mais força àquela ordem, uma língua de fogo foi lançada em sua direção. Bond deu um passo atrás para recuar daquele intenso calor. Sentiu o corpo da garota de encontro às suas costas. Ela disse historicamente: — Tive que vir, tive que vir.

Bond disse: — Está bem, Honey. Fique atrás de mim.

Ele tinha-se decidido. Não havia alternativa. Mesmo que a morte viesse mais tarde, não poderia ser pior do que aquela morte diante do lança-chamas. Bond apanhou a mão da jovem e puxou-a consigo para fora, saindo para a areia.

A voz se fez ouvir novamente: — Pare aí, camarada. E deixe cair o lança-ervilhas. Nada de truques, senão os caranguejos terão um bom almoço.

Bond deixou cair a sua arma. Lá se fora o “Smith & Wesson”. O “Beretta” não teria tido melhor sorte: A jovem lastimou-se, e Bond apertou a sua mão. — Agüente, Honey, — disse ele. — Nós nos livraremos disso.

Bond troçou de si mesmo por causa daquela mentira. Ouviu-se o ruído de uma porta de ferro que se abria. Por trás da cúpula, um homem saltou para a água e caminhou até eles, com um revólver na mão. Ao mesmo tempo ia-se mantendo fora da linha de fogo do lança-chamas. A trêmula chama azul iluminou o seu rosto. Era um chinês negro, de enorme estatura, vestindo apenas calças. Alguma coisa balançava em sua mão esquerda, e quando ele se aproximou mais, Bond pôde ver que eram algemas.

O homem deteve-se a alguns metros de distância e disse:

— Levantem os braços. Punhos juntos e caminhem em minha direção. Você primeiro, inglês. Devagar ou receberá mais um umbigo.

Bond obedeceu e quando estava a um passo do homem, este prendeu o revólver entre os dentes, e esticou os braços e atou os seus pulsos com as algemas. Bond examinou aquele rosto iluminado pelas chamas azuis. Era uma cara brutal, com olhos estrábicos. O agente do Dr. No fitou-o com desprezo. — Bastardo imbecil! — disse.

Bond deu as costas ao homem e começou a se afastar. Ia ver o corpo de Quarrel. Tinha que lhe dizer adeus. Ouviu-se o ruído de um disparo e uma bala jogou-lhe areia nos pés. Bond parou, e voltando-se lentamente disse:

— Não fique nervoso. Vou dar uma espiada no homem que você acabou de assassinar. Voltarei.

O homem abaixou o revólver e riu grosseiramente: — Muito bem. Divirta-se. Desculpe se não temos uma coroa. Volte logo, se não daremos uma amostra à boneca. Dois minutos.

Bond caminhou em direção ao cerrado de arbustos fumegantes. Ali chegando, olhou para baixo. Seus olhos e boca se contraíram. Sim, tinha sido bem como ele imaginara. Pior, mesmo. Disse docemente: — Perdoe-me, Quarrel. — Com o pé soltou um pouco de areia, que colheu com as mãos algemadas e verteu-a sobre os restos dos olhos de Quarrel. Depois caminhou lentamente, de volta, e ficou ao lado da jovem.

O homem empurrou-os para a frente com o revólver. Deram a volta por trás da máquina, onde havia uma pequena porta quadrada. Uma voz do interior disse: — Entrem e sentem-se no chão. Não toquem em nada ou ficarão com os dedos partidos.

Com dificuldade, arrastaram-se para dentro daquela caixa de ferro, que cheirava a óleo e suor. Havia lugar apenas para que ambos se sentassem com as pernas encolhidas, de joelhos para cima. O homem que empunhava o revólver e que vinha atrás deles saltou por último para dentro do carro e fechou a porta. Ligou uma lâmpada e sentou-se num assento de ferro, ao lado do chofer. — Muito bem, Sam, vamos andando. Você pode apagar o fogo. Há luz bastante para dirigir — disse.

Na painel de controle podia-se ver uma fileira de mostradores. O motorista esticou a mão e deslocou para baixo um par de interruptores. Engrenou o motor e olhou através de uma estreita fresta, cortada na parede de ferro, diante dele. Bond sentiu que o veículo dava uma volta. Ouviu-se um movimento mais rápido do motor, e o veículo avançou.

O ombro da jovem apertou-se de encontro ao de Bond.

— Para onde estão eles nos levando? — O seu sussurro traía um estremecimento.

Bond voltou a cabeça e olhou para ela. Era a primeira vez que podia ver os seus cabelos depois de secos. Estavam desfeitos pelo sono, mas não eram mais mechas de rabichos empastados. Caíam densamente até os ombros, onde terminavam em anéis voltados para dentro. Eram do mais pálido louro acinzentado e despediam reflexos quase prateados sob a luz elétrica. Ela olhou para o alto, para ele. A pele, à volta dos olhos e nos cantos da boca, mostrava-se lívida de medo.

Bond deu de ombros, procurando aparentar uma indiferença que não sentia!. Sussurrou: — Oh, espero que vamos ver o Dr. No. Não se preocupe demais, Honey. Esses homens não passam de pequenos bandidos. Com ele, as coisas serão diferentes. Quando estivermos diante dele, não diga nada, falarei por nos dois. — Ele apertou o seu ombro e disse: — Gosto da maneira por que você penteia o seu cabelo, e fico contente porque você não o apara muito curto.

Um pouco da tenção desapareceu do rosto dela. — Como é que você pode pensar em coisas como essa? — Deu um leve sorriso para ele, e acrescentou: — Mas estou contente por você gostar de meu penteado. Lavo os meus cabelos com óleo de coco uma vez por semana.

À lembrança de sua outra vida, seus olhos ficaram brilhantes. Ela baixou a cabeça para as mãos algemadas, a fim de esconder as lágrimas. Sussurrou quase para si mesma: — Tentarei ser brava. Tudo estará bem, desde que você esteja lá.

Bond aconchegou-se a ela. Levantou suas mãos algemadas até a altura dos olhos e examinou as algemas. Eram do tipo usado pela polícia norte-americana. Contraiu sua mão esquerda, a mais fina das duas, e tentou fazê-la deslizar pelo anel de aço. Mesmo o suor de sua pele de nada adiantou. Era inútil.

Os dois homens sentavam-se em seus bancos de ferro, indiferentes, e com as costas voltadas para eles. Sabiam que dominavam inteiramente a situação. Não havia possibilidade de que Bond oferecesse qualquer incômodo. Não poderia levantar-se ou dar o necessário impulso aos seus punhos para causar qualquer mal às cabeças de seus adversários, utilizando as algemas. Se conseguisse abrir a porta e pular para a água, o que lograria com isso? Imediatamente eles sentiriam a brisa fresca, nas costas, e parariam a máquina para queimá-lo na água ou içá-lo novamente. Bond aborrecia-se em pensar que os homens pouco se preocupavam com ele, pois sabiam tê-lo completamente em seu poder. Também não gostou da idéia de que aqueles homens eram bastante inteligentes para saber que ele não representava nenhuma ameaça. Indivíduos mais estúpidos teriam ficado em cima deles, de revólver em punho, tê-los-iam surrado, a ele e à jovem, barbaramente, e talvez os tivessem deixado inconscientes. Aqueles dois conheciam o ofício. Eram profissionais, ou tinham sido treinados para o serem.

Os dois homens não falaram. Não houve nenhum comentário sobre o quão hábil eles tinham sido, ou quanto ao seu cansaço ou destino. Apenas dirigiam a máquina serenamente, ultimando com eficiência a sua tarefa.

Bond continuava sem a mínima idéia do que seria aquilo. Sob a tinta negra e dourada, assim como sob o resto daquela fantasia, a máquina parecia uma espécie de trator, como ele nunca vira. Não tinha conseguido descobrir nomes de marcas comerciais, nos pneumáticos, pois estivera muito escuro, mas certamente que deveriam ser de borracha sólida ou porosa. Atrás havia um pequena roda para dar estabilidade ao conjunto. Uma espécie de barbatana de ferro fora ainda acrescentada e pintada também de preto e ouro, a fim de ajudar a dar a aparência de dragão. Os altos pára-lamas tinham sofrido um prolongamento, na forma de curtas asas voltadas para trás. Uma comprida cabeça de dragão, feita em metal, fora fixada ao radiador e os faróis receberam pontos centrais negros, para parecerem olhos. Era tudo, sem falar da cabina que fora recoberta com uma cúpula blindada e dotada de um lança-chamas. Era, como pensara Bond, um trator preparado para assustar e queimar — embora não pudesse atinar porque estava dotado de um lança-chamas e não de uma metralhadora. Era, evidentemente, a única espécie de veículo que poderia percorrer a ilha. Suas gigantescas rodas podiam avançar sobre os mangues, pântanos e ainda atravessar o lago raso. Galgaria também os agrestes planaltos de coral e, desde que andasse à noite, o calor experimentado na cabina seria pelo menos tolerável.

Bond ficara impressionado. Impressionado pelo toque de profissionalismo. O Dr. No era sem dúvida um homem que se preocupava intensamente com as coisas. Em pouco iria encontrá-lo. E em breve estaria diante do segredo do Dr. No. Então, o que aconteceria? Bond sorriu amargamente. Sim, não o deixariam sair dali com o seu conhecimento. Certamente seria morto, a menos que pudesse fugir ou conseguir a sua liberdade por meios persuasivos. E o que aconteceria à jovem? Poderia ele provar sua inocência e conseguir com que ela fosse poupada? Possivelmente, mas nunca mais ela teria permissão para deixar a ilha. Ali teria de ficar para o resto da vida, como amante ou mulher de um dos homens, ou do próprio Dr. No, se ela o impressionasse.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um trecho do percurso mais difícil, como se podia sentir pela trepidação. Tinham atravessado o lago e estavam no caminho que levava para o alto da montanha, junto às cabanas. A cabina vibrava e a máquina começou a galgar o terreno. Dentro de cinco minutos estariam lá.

O ajudante do motorista olhou por sobre o ombro para Bond e a jovem. Bond sorriu confiantemente para ele dizendo: Você receberá uma medalha por isso.

Os olhos amarelos e marrons olharam impassivelmente dentro dos dele, enquanto os lábios arroxeados e oleosos se fenderam num sorriso no qual havia um ódio repousado: Feche a boca, se... Depois, deu-lhe as costas.

A jovem tocou-o com o cotovelo e sussurrou: — Por que eles são tão rudes? Por que nos odeiam tanto?

Bond esboçou um sorriso e disse: — Acho que é porque lhes causamos medo. Talvez ainda estejam com medo, e isto porque não parecemos ter medo deles. Devemos mantê-los assim.

A jovem aconchegou-se a ele e disse: — Tentarei.

Agora a subida estava-se tornando mais íngreme. Uma luz azul-acinzentada atravessava as frestas da armadura. A madrugada se aproximava. Fora, em breve estaria começando mais um dia de calor abrasador, de execrável vento, carregado com o cheiro de gás dos pântanos. Bond pensou em Quarrel, o bravo gigante que não mais veria aquele dia, e com o qual eles deveriam agora estar caminhando através dos pauis de mangues. Quarrel tinha pressentido a morte, mas apesar disso tinha acompanhado Bond sem qualquer objeção. Sua fé em Bond tinha sido maior do que o seu medo. E Bond tinha-lhe faltado. Seria ele ainda o causador da morte da jovem?

O motorista esticou o braço em direção ao painel e na parte dianteira do veículo fez-se ouvir o breve zunido de uma sirena de polícia, que foi desaparecendo num gemido fúnebre. Mais um minuto e o veículo parava, continuando o motor em regime neutro. O homem apertou um interruptor e tirou um microfone de um gancho, a seu lado. Falou por aquele microfone e Bond pôde ouvir a sua voz aumentada, do lado de fora, por um altofalante. — Tudo bem. Apanhamos o inglês e a garota. O outro homem morreu. Isso é tudo. Abram. — Bond ouviu que uma porta se deslocava para o lado, sobre rolamentos. O motorista embreou e eles avançaram lentamente para a frente, parando alguns metros adiante. O motorista desligou o motor. Ouviu-se o ruído metálico da tranca e a porta foi aberta pelo lado de fora. Uma lufada de ar fresco e uma luz mais brilhante penetraram na cabina. Várias mãos agarraram Bond e arrastaram-no para trás, até um chão de cimento. Bond agora estava de pé e sentia o cano de um revólver encostado ao seu flanco. Uma voz disse: — Fique onde está. Nada de espertezas. — Bond olhou para o homem. Era mais um chinês negro, do mesmo tipo que os outros. Os olhos amarelos examinaram-no com curiosidade. Bond virou-se com indiferença. Outro homem estava cutucando a jovem com a arma. Bond disse asperamente: — Deixe a garota em paz! Em seguida, caminhou e pôs-se ao lado da jovem. Os dois homens pareceram surpresos. Deixaram-se ficar de pé, apontando as armas com hesitação.

Bond olhou à volta. Estavam numa das cabanas pré-fabricadas que ele vira do rio. Era ao mesmo tempo uma garagem e uma oficina. O “dragão” tinha sido colocado sobre um fosso de vistoria, no chão de concreto. Um motor de popa desmontado estava sobre uma das bancadas. Longos tubos de luz fluorescente estavam afixados ao teto e o ambiente estava impregnado do cheiro de óleo e fumaça de exaustor. O motorista e o seu companheiro examinavam a máquina. Em seguida deram alguns passos pelo galpão, como se andassem sem propósito.

Um dos guardas anunciou: — Enviei a mensagem. A ordem é que eles sejam levados. Foi tudo bem?

O ajudante de motorista, que parecia o homem mais responsável, ali presente, disse: — Sem dúvida. Alguns disparos. Os faróis foram partidos. Talvez haja alguns furos nos pneumáticos. Ponha os rapazes em ação — uma vistoria completa. Conduzirei esses dois e tirarei um cochilo. — E, voltando-se para Bond: — Bem, vamos andando — e indicou o caminho que saía do longo galpão.

Bond disse: — Vá andando você; e cuidado com os modos. Diga àqueles macacos que tirem as armas de cima de nós. Podem disparar por engano. Parecem bastante idiotas.

O homem se aproximou, e os outros os acompanharam logo atrás. O ódio brilhava em seus olhos. O chefe levantou o punho cerrado, tão grande quanto um pequeno malho e chegou-o à altura do nariz de Bond. Procurava controlar-se com esforço, e disse: — Ouça, senhor. Às vezes, nós, os rapazes, temos permissão para participar da festa final. Estou rezando para que essa seja uma dessas vezes. Certa ocasião fizemos com que a coisa durasse toda uma semana. E se eu o pego...

Riu e os seus olhos brilharam com crueldade. Olhou para o lado de Bond, fixando a garota. Seus olhos pareciam transformados em bocas que agitavam os lábios. Enfiou as mãos nos bolsos laterais das calças. A ponta de sua língua mostrava-se muito vermelha, entre os lábios arroxeados. Voltando-se para os companheiros disse: — Que tal, rapazes?

Os três homens estavam olhando também para a jovem. Fizeram um sinal de assentimento, como crianças diante de uma árvore de Natal.

Bond desejou atirar-se como um louco sobre eles, golpeando as suas caras com os punhos algemados e aceitando a sua vingança sangrenta. Não fosse pela jovem, bem que o teria feito. Mas tudo o que tinha conseguido com suas corajosas palavras fora amedrontá-la. Disse apenas: — Muito bem, muito bem. Vocês são quatro e nós somos dois, ainda por cima com as mãos atadas. Vamos, não queremos atingi-los. Apenas não nos empurrem muito de um lado para outro. O Dr. No poderia não ficar satisfeito.

Àquele nome, os rostos dos homens se modificaram. Três pares de olhos passaram apàticamente de Bond para o chefe. Por um segundo, este olhou com desconfiança para Bond, intrigado, tentando descobrir se Bond teria alguma influência junto ao Dr. No. Sua boca abriu-se para dizer algo, mas logo pareceu pensar melhor, e apenas disse de maneira incerta: — Bem, bem, estávamos simplesmente brincando. — Voltou-se para os homens, em busca de confirmação: — Não é?

— Sem dúvida, sem dúvida! — foi a resposta dada por um coro áspero, e os homens desviaram o olhar.

O chefe disse com mau humor: — Por aqui, senhor. — E ele mesmo pôs-se a caminho, percorrendo o comprido galpão.

Bond segurou o pulso da jovem e seguiu o chefe. Estava impressionado com a reação causada naqueles homens pelo nome do Dr. No. Aquilo era alguma coisa a lembrar se eles tivessem que se haver novamente com aquela turma.

O homem chegou a uma porta de madeira situada na extremidade do galpão. Ao lado havia um botão de campainha que ele pressionou duas vezes e esperou. Ouviu-se um estalido e a porta se abriu, mostrando dez metros de uma passagem rochosa, mas atapetada e que ia dar, na outra extremidade, em outra porta mais elegante e pintada de creme.

O homem ficou de lado. Siga em frente, senhor — disse; — bata na porta e será atendido pela recepcionista. — Não havia nenhuma ironia em sua voz e seus olhos se mostravam impassíveis.

Bond conduziu Honey pela passagem. Ouviu que a porta se fechava às suas costas. Deteve-se por um momento e fitou-a, perguntando-lhe: — E agora?

Ela riu, trêmula, mas respondeu: — Ê bom sentir-se tapete sob os pés.

Bond apertou o seu pulso. Andou até a porta pintada de creme e bateu.

A porta abriu-se e Bond entrou com a jovem ao lado. Quando se deteve instantaneamente, não chegou a perceber o encontrão que lhe dava a jovem, pois continuou estarrecido.


XIII - GAIOLA DE OURO


Era a espécie de sala de recepção que as maiores corporações norte-americanas possuem no andar em que se situa o escritório do presidente, em seus arranha-céus de Nova Iorque. Suas proporções eram agradáveis, com cerca de vinte pés quadrados. O chão era todo recoberto pelo mais espesso tapete Wilton cor-de-vinho. O teto e as paredes estavam pintados numa suave tonalidade cinza pombo. Viam-se ainda reproduções litográficas de esboços de balé de Degas penduradas em séries, nas paredes, e a iluminação era feita com altos e modernos jogos de abajures de seda verde-escuro, imitando a forma de elegantes barricas.

À direita de Bond estavam uma larga mesa de mogno, com o tampo recoberto com couro verde, outras peças que se harmonizavam perfeitamente com a mesa, e um caro sistema de intercomunicações. Duas cadeiras altas, de antiquado, aguardavam os visitantes. Do outro lado da sala via-se uma mesa do tipo refeitório, sobre a qual estavam várias revistas com capas em cores vivas e mais duas cadeiras. Tanto na mesa de escritório, como na outra, viam-se vasos de hibiscos. O ar era fresco e impregnado de leve fragrância.

Duas mulheres estavam naquela sala. Por trás da mesa de trabalho, empunhando uma caneta que descansava sobre um formulário impresso, estava sentada uma jovem chinesa, de aspecto eficiente, com óculos de armação de chifre, sob uma franja de cabelos negros cortados curtos. Em seus olhos e em sua boca havia o sorriso padrão de boas-vindas que qualquer recepcionista exibe — a um tempo claro, obsequioso e inquisitivo.

Ainda com a mão na maçaneta da porta pela qual eles tinham passado, e esperando que os recém-chegados se adiantassem mais, a fim de que ela a pudesse fechar, estava uma mulher mais velha, com aspecto de matrona, e que deveria ter cerca de quarenta e cinco anos. Era fácil ver-se que também tinha sangue chinês. Sua aparência, saudável, de farto busto, era viva e quase excessivamente graciosa. O seu “pince-nez” de lentes cortadas em quadrado brilhava com o desejo da recepcionista de os pôr à vontade.

Ambas as mulheres vestiam roupas imaculadamente alvas, com meias brancas e sapatos de camurça branca como costumam apresentar-se as auxiliares empregadas nos mais luxuosos salões de beleza norte-americanos. Havia um que de suave e pálido em suas peles, como se elas raramente saíssem para o ar-livre.

Bond observou o ambiente, enquanto a mulher junto à porta lhe dizia frases convencionais de boas-vindas, como se eles tivessem sido colhidos por uma tempestade o chegado com atraso a uma festa.

— Oh, coitados! Nós não sabíamos quando vocês iriam chegar. A todo momento nos diziam que vocês já estavam a caminho... primeiro à hora do chá, ontem, depois na hora do jantar, e apenas há uma hora fomos informadas de que vocês chegariam à hora do desjejum. Devem estar com fome. Venham aqui e ajudem a irmã Rosa a preencher o formulário; depois eu os prepararei para a cama. Devem estar muito cansados.

Ia dizendo aquilo com voz doce e cacarejante, ao mesmo tempo que fechava a porta e os levava para junto da mesa e os fazia sentar nas cadeiras. Depois disse: — Bem, eu sou a irmã Lírio, e esta é a irmã Rosa. Ela irá fazer-lhes apenas algumas perguntas. Agora, aceitam um cigarro? — e pegou uma caixa de couro trabalhado que estava em cima da mesa. Abriu-a e pô-la diante deles. A caixa tinha três divisões, e a chinesinha explicou apontando com um dedo: “Esses são americanos, esses são ingleses e esses turcos.” Ela apanhou um luxuoso isqueiro de mesa e esperou.

Bond estendeu as mãos algemadas para tirar um cigarro turco.

A irmã Lírio deu um gritinho de espanto: — Oh, mas francamente. — Parecia sinceramente embaraçada. — Irmã Rosa, dê-me a chave, depressa. Já disse por várias vezes que os pacientes não devem ser trazidos dessa maneira. — Havia impaciência e aborrecimento em sua voz. — Francamente, aquela gente lá de fora! Já era tempo que eles fossem chamados à ordem.

A irmã Rosa estava tão embaraçada quanto a irmã Lírio. Rapidamente remexeu dentro de uma gaveta e entregou uma chave à irmã Lírio, que com muitas desculpas e cheia de dedos abriu os dois pares de algemas e, afastando-se para trás da mesa, deixou aquelas duas pulseiras de aço caírem dentro da cesta de papéis como se fossem ataduras sujas.

— Obrigado, — disse Bond, que não sabia como enfrentar aquela situação, a não ser procurando desempenhar um papel qualquer na comédia que se estava representando. Ele estendeu o braço, apanhou um cigarro e acendeu-o. Lançou um olhar para Honeyehile Rider, que parecia estonteada e nervosamente apertava com as mãos os braços de sua cadeira. Bond dirigiu-lhe um sorriso de conforto.

— Agora, por favor; — disse a irmã Rosa e inclinou-se sobre um comprido formulário impresso em papel caro. — Prometo ser o mais rápida que puder. O seu nome, sr... sr...

— Bryce, John Bryce.

Ela escreveu a resposta com grande concentração. — Endereço permanente?

— Aos cuidados do Jardim Zoológico Real, Regents Park, Londres, Inglaterra.

— Profissão?

— Ornitologista.

— Oh, meu Deus!, poderia o senhor soletrar isso? Bond atendeu-a.

— Muito obrigada. Agora, vejamos, objeto da viagem?

— Aves — respondeu Bond. — Sou também representante da Sociedade Audubon de Nova Iorque. Eles arrendaram parte desta ilha.

— Oh, sem dúvida. — Bond observou que a pena escrevia exatamente o que ele dizia. Depois da última palavra ela pôs um claro ponto de interrogação entre parênteses.

— E — a irmã Rosa sorriu polidamente em direção a Honeyehile — a sua esposa? Ela também está interessada em pássaros?

— Sim, sem dúvida.

— O seu primeiro nome?

— Honeyehile.

A irmã Rosa estava encantada. — Que nome lindo! — Ela voltou a escrever apressadamente. — E agora os parentes mais próximos de ambos, e estará tudo acabado.

Bond deu o verdadeiro nome de M como o parente mais próximo de ambos. Apresentou-o como “tio” e indicou o seu endereço como sendo “Diretor-Gerente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres.”

A irmã Rosa acabou de escrever e disse: — Pronto, está tudo feito. Muito obrigada, sr. Bryce, e espero que ambos apreciem a permanência aqui.

— Muito obrigado. Estou certo de que apreciaremos. — Bond levantou-se e Honeyehile fez o mesmo, ainda com expressão vazia.

A irmã Lírio disse: — Agora, venham comigo, queridos.

— Ela caminhou até uma porta na parede distante e deteve-se com a mão na maçaneta talhada em vidro. — Oh, meu Deus, — disse —, não é que agora me esqueci do número de seus quartos? É o apartamento creme, não é, irmã?

— Isso mesmo. Catorze e quinze.

— Obrigada, querida. E agora — ela abriu a porta — se vocês quiserem me seguir... Receio que seja uma caminhada um pouco longa. — Fechou a porta, por trás deles, e pôs-se à frente, indicando o caminho. — O Doutor tem falado várias vezes em instalar uma dessas escadas rolantes, ou algo de parecido, mas sabem como são os homens ocupados: — Ela riu alegremente. — Ele tem tantas outras coisas em que pensar!

— Sim, acredito, — disse Bond polidamente.

Bond tomou a mão da jovem e seguiram ambos a maternal e agitada chinesa através de cem metros de um alto corredor, do mesmo estilo da sala de recepção, mas que era iluminado a freqüentes intervalos por caros tubos luminosos fixados às paredes.

Bond respondia com polidos monossílabos aos comentários ocasionais que a irmã Lírio lhe lançava por sobre os ombros. Toda a sua mente se concentrava nas extraordinárias circunstâncias de sua recepção. Tinha certeza de que aquelas duas mulheres tinham sido sinceras. Nenhum só olhar ou palavra conseguira registrar que estivesse fora de propósito. Evidentemente aquilo era alguma espécie de fachada, mas de qualquer forma uma fachada sólida, meticulosamente apoiada pelo cenário e pelo elenco. A ausência de ressonância, na sala, e agora no corredor, estava a indicar que eles tinham deixado o galpão pré-fabricado para se internarem no flanco da montanha e agora estavam atravessando a sua base. Segundo o seu palpite estavam mesmo andando em direção oeste — em direção à penedia na qual terminava a ilha. Não havia umidade nas paredes e o ar parecia fresco e puro, com uma brisa a afagá-los. Muito dinheiro e uma bela realização de engenharia tinham sido os responsáveis por aquilo. A palidez das duas mulheres estava a sugerir que passavam a maior parte do tempo internadas no âmago da montanha. Do que a irmã dissera, parecia que elas faziam parte de um grupo de funcionários internos que nada tinham a ver com o destacamento de choque do exterior, e que talvez não soubessem a espécie de homens que eles eram.

Aquilo era grotesco, concluiu Bond ao se aproximar de uma porta, na extremidade do corredor, perigosamente grotesco, mas em nada adiantava pensar nisso no momento. Ele apenas podia seguir o papel que lhe tinha sido destinado. Pelo menos, aquilo era melhor do que os bastidores, na arena exterior da ilha.

Junto à porta, a irmã Lírio fez soar uma campainha. Já eram esperados e a porta abriu-se imediatamente. Uma encantadora jovem chinesa, de quimono lilás e branco, ficou a sorrir e a curvar-se, como se deve esperar que o façam as jovens chinesas. E, mais uma vez só havia calor e um sentimento de boas-vindas naquele rosto pálido como uma for. A irmã Lírio exclamou: — Aqui estão eles, finalmente, May! São o senhor e a senhora John Bryce. E sei que ambos devem estar exaustos, por isso devemos levá-los imediatamente aos seus aposentos, para que possam repousar e dormir. — Voltando-se para Bond: — Esta é May, muito boazinha. Ela tratará de ambos. Qualquer coisa que queiram é só tocar a campainha que May atenderá. É uma espécie de favorita de todos os nossos hóspedes.

Hóspedes!, pensou Bond. Essa é a segunda vez que ela usa a palavra. Sorriu polidamente para a jovem, e disse;

— Muito prazer; sim, certamente que gostaríamos de ir para os nossos aposentos.

May envolveu-os num cálido sorriso, e disse em voz baixa e atraente: — Espero que ambos se sintam bem, sr. Bryce. Tomei a liberdade de mandar vir uma refeição assim que soube que os senhores iam chegar. Vamos...? — Corredores saiam para a esquerda e a direita de portas duplas de elevadores, instalados na parede oposta. A jovem adiantou-se, caminhando na frente, para a direita, logo seguida de Bond e Honeyehile, que tinham atrás a irmã Lírio.

Ao longo do corredor, dos dois lados, viam-se portas numeradas. A decoração era feita no mais pálido cor-de-rosa, com um tapete cinza-pombo. Os números nas portas eram superiores a dez. O corredor terminava abruptamente, com duas portas, uma em frente a outra, com a numeração catorze e quinze. A irmã May abriu a porta catorze e o casal a seguiu, entrando na peça.

Era um lindo quarto de casal, em moderno estilo Mia-mi, com paredes verde-escuro, chão encerado de mogno escuro, com um ou outro espesso tapete branco e bem desenhado mobiliário de bambu com um tecido “chintz” de grandes rosas vermelhas sobre fundo branco. Havia uma porta de comunicação para um quarto de vestir masculino e outra que dava para um banheiro moderno e extremamente luxuoso, com uma banheira de descida e um bidê.

Era como se tivessem sido introduzidos num apartamento do mais moderno hotel da Flórida, com exceção de dois detalhes que não passaram despercebidos a Bond. Não havia janelas e nenhuma maçaneta interior nas portas.

May olhou com expressão de expectativa, de um para o outro.

Bond voltou-se para Honeyehile e sorriu-lhe: — Parece muito confortável, não acha, querida?

A jovem brincava com a barra da saia e fez um sinal de assentimento sem olhar para Bond.

Ouviu-se uma tímida batida na porta e outra jovem, tão linda quanto May, entrou carregando uma bandeja que se equilibrava sobre as palmas das mãos. A jovem descansou a bandeja sobre a mesa do centro e puxou duas cadeiras. Retirou a toalha de linho imaculadamente limpa e saiu. Sentiu-se um delicioso cheiro de fiambre e café.

May e a irmã Lírio também se encaminharam para a porta. A mulher mais idosa se deteve por um instante e disse:

— E agora nós os deixaremos em paz. Se desejarem alguma coisa, basta tocar a campainha. Os interruptores estão ao lado da cama. Ah, outra coisa, poderão encontrar roupa limpa nos aparadores. Receio que sejam apenas de estilo chinês,

— acrescentou, como a desculpar-se —, mas espero que os tamanhos satisfaçam. A rouparia só recebeu as medidas ontem à noite. O Dr. deu ordens severas para que os senhores não fossem perturbados. Ficará encantado se puderem reunir-se a ele, esta noite, para o jantar. Deseja, entretanto, que tenham todo o resto do dia à vontade, a fim de que melhor se ambientem, compreendem? — Fez uma pausa e olhou para um e para outro, com um sorriso indagador. — Posso dizer que os senhores...?

— Sim, por favor, — disse Bond. — Pode dizer ao D., que teremos muito prazer em jantar com ele.

— Oh, sei que ficará contente. — Com uma derradeira mesura, as duas chinesas se retiraram e fecharam a porta.

Bond voltou-se para Honeyehile, que parecia embaraçada e ainda evitava os seus olhos. Ocorreu então a Bond que talvez jamais tivesse ela tido um tratamento tão cortês ou visto tanto luxo em sua vida. Para ela, tudo aquilo devia ser muito mais estranho e aterrador do que o que tinham passado ao lado de fora. Ela continuou na mesma posição, brincando com a barra da saia. Podiam-se notar vestígios de suor seco, sal e poeira em seu rosto. Suas pernas nuas estavam sujas e Bond observou que os dedos de seus pés se moviam, suavemente, ao pisarem nervosamente o maravilhoso e espesso tapete.

Bond riu. Riu com gosto ao pensamento de que os temores da jovem tivessem sido abafados pelas preocupações de etiqueta e comportamento, e riu-se também da figura que ambos faziam — ela em farrapos e ele com a suja camisa azul, as calças pretas e os sapatos de lona enlameados.

Aproximou-se dela e segurou-lhe mãos. Estavam frias. Disse: — Honey, somos um par de espantalhos, mas há apenas um problema básico. Devemos tomar o nosso desjejum primeiro, enquanto está quente, ou tiraremos antes esses farrapos e tomaremos um banho, tomando a nossa refeição fria? Não se preocupe com mais nada. Estamos aqui nessa maravilhosa casinha e isto é tudo o que importa. O que faremos, então?

Ela sorriu hesitante. Seus olhos azuis fixavam-se no rosto dele, na ânsia de obter segurança. Depois disse: — Você não está preocupado com o que nos possa acontecer? — Fez um sinal para o quarto e acrescentou: — Não acha que tudo isso pode ser uma armadilha?

— Se se trata de uma armadilha, já caímos nela. Agora nada mais podemos fazer senão comer a isca. A única questão que subsiste é a de saber se a comeremos quente ou fria. — Apertou-lhe as mãos e continuou: — Seriamente, Honey. Deixe as preocupações comigo. Pense apenas onde estávamos apenas há uma hora. Isso aqui não é melhor? Agora, decidamos a única coisa realmente importante. Banho ou desjejum?

Ela respondeu com relutância: — Bem, se você acha... Quero dizer — preferiria antes lavar-me. — Mas logo acrescentou: — Você terá que ajudar-me. — E sacudiu a cabeça em direção ao banheiro, dizendo: Não sei como mexer numa coisa dessas. Como é que se faz?

Bond respondeu com toda seriedade: — É muito fácil. Vou preparar tudo para você. Enquanto você estivar tomando o seu banho tomarei o meu desjejum. Ao mesmo tempo tratarei de fazer com que o seu não esfrie.

Bond aproximou-se de um dos armários embutidos e abriu a porta. No interior havia uma meia dúzia de quimonos, alguns de seda e outros de linho. Apanhou um de linho, ao acaso. Depois, voltando-se para ela, disse: — Tire suas roupas e meta-se nisso aqui, enquanto preparo o seu banho. Mais tarde você escolherá as coisas que preferir, para a cama e para o jantar.

Ela respondeu com gratidão: — Oh, sim, James. Se você apenas me mostrasse... — E logo começou a desabotoar a saia.

Bond pensou em tomá-la nos braços e beijá-la, mas, ao invés disso, disse abruptamente: — ótimo, Honey — e, adiantando-se para o banheiro, abriu as torneiras.

Havia de tudo naquele banheiro: essência para banhos Floris Lime, para homens, e pastilhas de Guarlain para o banho de senhoras. Esfarelou uma pastilha na água e imediatamente o banheiro perfumou-se como uma loja de orquídeas. O sabonete era o Sapoceti de Guarlain “Fleurs des Alpes”. Num pequeno armário de remédios, atrás de um espelho, em cima da pia, podiam-se encontrar tubos de pasta, escovas de dente e palitos “Steradent”, água “Rose” para lavagem bucal, aspirina e leite de magnésia. Havia também um aparelho de barbear elétrico, loção “Lentheric” para barba, e duas escovas de náilon para cabelos e pentes. Tudo era novo e ainda não tinha sido tocado.

Bond olhou para o seu rosto sujo e sem barbear, no espelho, e riu sardonicamente para os próprios olhos, cinzentos, de pária queimado pelo sol. O revestimento da pílula certamente que era do melhor açúcar. Seria inteligente esperar que o remédio, no interior daquela pílula, fosse dos mais amargos.

Tocou a água, com a mão, a fim de sentir a temperatura. Talvez estivesse muito quente para quem jamais tinha tomado antes um banho quente. Deixou então que corresse um pouco mais de água fria. Ao inclinar-se, sentiu que dois braços lhe eram passados em torno do pescoço. Endireitou-se. Aquele corpo dourado resplandecia no banheiro todo revestido de ladrilhos brancos. Ela beijou-o impetuosamente nos lábios. Ele passou-lhe os braços à volta da cintura e esmagou-a de encontro a seu corpo, com o coração aos pulos. Ela disse sem fôlego, ao seu ouvido: — Achei estranhas as roupas chinesas, mas de qualquer maneira você disse à mulher que nós éramos casados.

Uma das mãos de Bond estava pousada sobre o seu seio esquerdo, cujo mamilo estava completamente endurecido pela paixão. O ventre da jovem se comprimia contra o seu. Por que não? Por que não? Não seja tolo! Este é um momento louco para isso. Vocês dois estão diante de um perigo mortal. Você deve continuar frio como gelo, para ter alguma possibilidade de se livrar dessa enrascada. Mais tarde! Mais tarde! Não seja fraco.

Bond retirou a mão do seio dela e espalmou-a à volta de seu pescoço. Esfregou o rosto de encontro ao dela e depois aproximou a boca da boca da jovem e deu-lhe um prolongado beijo.

Afastou-se depois e manteve-a à distância de um braço. Por um momento ambos se olharam, com os olhos brilhando de desejo. Ela respirava ofegantemente, com os lábios entreabertos, de modo que ele podia ver-lhe o brilho dos dentes. Ele disse com a voz trêmula: — Honey, entre no banho antes que eu lhe dê uma surra.

Ela sorriu e sem nada dizer entrou na banheira e deitou-se em todo seu comprimento. Do fundo da banheira ergueu os olhos para ele. Os cabelos louros, em seu corpo, brilhavam como moedas de ouro. Ela disse provocadoramente: — Você tem que me esfregar. Não sei como devo fazer, e você terá que mostrar-me.

Bond respondeu desesperadamente: — Cale a boca, Honey, e deixe de namoros. Apanhe a esponja, o sabonete e comece logo a se esfregar. Que diabo! Isso não é o momento de se fazer amor. Vou tomar o meu desjejum. — Esticou a mão para a porta e segurou na maçaneta. Ela disse docemente: — James! — Ele olhou para trás e viu que ela lhe fazia uma careta, com a língua de fora. Retribuiu com uma careta selvagem e bateu a porta com força.

Em seguida, Bond dirigiu-se para o quarto de vestir e deixou-se ficar durante algum tempo, de pé, no centro da peça, esperando que as batidas de seu coração se acalmassem. Esfregou as mãos no rosto e sacudiu a cabeça, procurando esquecê-la.

Para clarear a mente, percorreu ainda cuidadosamente as duas peças, procurando saídas, possíveis armas, microfones, qualquer coisa enfim que lhe aumentasse o conhecimento da situação em que se achava. Nada disso, entretanto, pôde encontrar. Na parede havia um relógio elétrico que marcava oito e meia e uma série de botões de campainhas, ao lado da cama de casal. Esses botões traziam a indicação de “Sala de serviço”, “cabeleireiro”, “manicure”, “empregada”. Não havia telefone. Bem no alto, a um canto de ambas as peças, viam-se as grades de um pequeno ventilador. Cada uma dessas grades era de dois pés quadrados. Tudo inútil. As portas pareciam ser feitas de algum metal leve, pintadas para combinarem com as paredes. Bond jogou todo o peso de seu corpo contra uma delas, mas ela não cedeu um só milímetro. Bond esfregou o ombro. Aquele lugar era uma verdadeira prisão. Não adiantava discutir a situação. A armadilha tinha-se fechado hermèticamente sobre eles. Agora, a única coisa que restava aos ratos era tirarem o melhor proveito possível da isca de queijo.

Bond sentou-se à mesa do desjejum, sobre a qual estava uma grande jarra com suco de abacaxi, metida num pequeno balde de prata cheio de cubos de gelo. Serviu-se rapidamente e levantou a tampa de uma travessa. Ali estavam ovos mexidos sobre torradas, quatro fatias de toucinho defumado, um rim grelhado e o que parecia quatro salsichas inglesas de carne de porco. Havia também duas torradas quentes, pãezinhos conservados quentes dentro de guardanapos, geléia de laranja e morango e mel. O café estava quase fervendo numa grande garrafa térmica, e o creme exalava um odor fresco e agradável.

Do banheiro vinham as notas da canção “Marion” que a jovem estava cantarolando. Bond resolveu não dar ouvidos à cantoria e concentrou-se nos ovos.

Dez minutos depois, Bond ouviu que a porta do banheiro se abria. Descansou uma torrada que tinha numa das mãos e cobriu os olhos com a outra. Ela riu e disse: — Ele é um covarde. Tem medo de uma simples jovem. — Em seguida Bond ouviu-a a remexer nos armários. Ela continuava falando, em parte consigo mesma: — Não sei porque ele está assustado. Naturalmente que se eu lutasse com ele facilmente o dominaria. Talvez esteja com medo disso. Talvez não seja realmente muito forte, embora seus braços e peito pareçam bastante rijos. Contudo, ainda não vi o resto. Talvez seja fraco. Sim, deve ser isso. Essa é a razão pela qual não ousa despir-se na minha frente. Hum, agora vamos ver, será que ele gostaria de mim com essas roupas? — Ela elevou a voz: — Querido James, você gostaria de me ver de branco, com pássaros azul-pálido esvoaçando sobre o meu corpo?

— Sim, bolas! Agora acabe com essa conversa e venha comer. Estou começando a sentir sono.

Ela soltou uma exclamação: — Oh, se você quer dizer que já está na hora de irmos para a cama, naturalmente que me apressarei.

Ouviu-se uma agitação de passos apressados e Bond logo a via sentar-se diante de si. Ele deixou cair as mãos e ela sorriu-lhe. Estava linda. Seu cabelo estava escovado e penteado de um dos lados caindo sobre o rosto, e do outro com as madeixas puxadas para trás da orelha. Sua pele brilhava de frescura e os grandes olhos azuis resplandeciam de felicidade. Agora Bond estava gostando daquele nariz quebrado. Tinha-se tornado parte de seus pensamentos relativamente a ela, e subitamente lhe ocorreu perguntar-se por que estaria ele triste quando ela era tão imaculadamente bela quanto tantas outras lindas jovens. Sentou-se circunspectamente, com as mãos no colo, e a metade dos seios aparecendo na abertura do quimono.

Bond disse severamente: — Agora, ouça, Honey. Você está maravilhosa, mas esta não é a maneira de usar-se um quimono. Feche-o no corpo, prenda-o bem e deixe de tentar parecer uma prostituta. Isso simplesmente não são bons modos à mesa.

— Oh, você não passa de um boneco idiota. — E ajeitou o quimono, fechando-o um pouco, em uma ou duas polegadas. — Por que você não gosta de brincar? Gostaria de brincar de estar casada.

— Não à hora do desjejum — respondeu Bond com firmeza. — Vamos, coma logo. Está delicioso. De qualquer maneira estou muito sujo, e agora vou fazer a barba e tomar um banho. — Levantou-se, deu volta à mesa e beijou-lhe o alto da cabeça. — E quanto a essa história de brincar, como você diz, gostaria mais de brincar com você do que com qualquer outra pessoa do mundo. Mas não agora. — Sem esperar pela resposta, dirigiu-se ao banheiro e fechou a porta.

Bond barbeou-se e tomou um banho de chuveiro. Sentia-se desesperadamente sonolento. O sono chegava-lhe, de modo que de quando em quando tinha que interromper o que fazia e inclinar a cabeça, repousando-a entre os joelhos. Quando começou a escovar os dentes, o seu estado era tal que mal podia fazê-lo. Estava começando a reconhecer os sintomas. Tinha sido narcotizado. A coisa teria sido posta no suco de abacaxi ou no café? Este era um detalhe sem importância. Aliás, nada tinha importância. Tudo o que queria fazer era estender-se naquele chão de ladrilhos e fechar os olhos. Assim mesmo, dirigiu-se cambaleante para a porta, esquecendo-se de que estava nu. Isso também pouca importância tinha. A jovem já tinha terminado a refeição e agora estava na cama. Continuou trôpego, até ela, segurando-se nos móveis. O quimono tinha sido abandonado no chão e ela dormia pesadamente, completamente nua, sob um simples lençol.

Bond olhou para o travesseiro, ao lado da jovem. Não! Procurou o interruptor e apagou as luzes. Agora teve que se arrastar pelo chão até chegar ao seu quarto. Chegou até junto de sua cama e atirou-se nela. Com grande esforço conseguiu ainda esticar o braço, tocar o interruptor e tentar apagar a lâmpada do criado-mudo. Mas não o conseguiu: sua mão deslizou, atirou o abajur ao chão e a lâmpada espatifou-se. Com um derradeiro esforço, Bond virou-se ainda no leito e adormeceu profundamente.

Os números luminosos do relógio elétrico, no quarto de casal, anunciavam nove e meia.

Às dez horas, a porta do quarto abriu-se suavemente. Um vulto muito alto e magro destacava-se na luz do corredor. Era um homem. Talvez tivesse dois metros de altura. Permaneceu no limiar da porta, com os braços cruzados, ouvindo. Dando-se por satisfeito, caminhou vagarosamente pelo quarto e aproximou-se da cama. Conhecia perfeitamente o caminho. Curvou-se sobre o leito e ouviu a serena respiração da jovem. Depois de um momento, tocou em seu próprio peito e acionou um interruptor. Imediatamente um amplo feixe de luz difusa projetou-se na cama. O farolete estava preso ao corpo do homem por meio de um cinto que o fixava à altura do esterno.

Inclinou-se novamente para a frente, de modo que a luz clareou o rosto da jovem.

O intruso examinou aquele rosto durante alguns minutos. Uma de suas mãos avançou, apanhou a orla do lençol, à altura do queixo da jovem, e puxou-o lentamente até os pés da cama. Mas a mão que puxara aquele lençol não era u’a mão. Era um par de pinças de aço muito bem articuladas na extremidade de uma espécie de talo metálico que desaparecia dentro de uma manga de seda negra. Era u’a mão mecânica.

O homem contemplou durante longo tempo aquele corpo nu, deslocando o seu peito de um lado para outro, de modo que todo o leito fosse submetido ao feixe luminoso. Depois, a garra saiu novamente de sob aquela manga e delicadamente levantou a ponta do lençol, puxando-o dos pés da cama até recobrir todo o corpo da jovem. O homem demorou-se ainda por um momento a contemplar o rosto adormecido, depois apagou o farolete e atravessou silenciosamente o quarto em direção à porta aberta, além da qual estava Bond dormindo.

O homem demorou-se mais tempo ao lado do leito de Bond. Perscrutou cada linha, cada sombra do rosto moreno e quase cruel que jazia quase sem vida, sobre o travesseiro. Observou a circulação à altura do pescoço e contou-lhe as batidas; depois, quando puxou o lençol para baixo, fez o mesmo na área do coração. Estudou a curva dos músculos, nos braços de Bond e nas coxas, e considerou pensativo a força oculta no ventre musculoso de Bond. Chegou até mesmo a curvar-se sobre a mão direita de Bond, estudando-lhe cuidadosamente as linhas da vida e do destino.

Por fim, com grande cuidado, a pinça de aço puxou novamente o lençol, desta vez para cobrir o corpo de Bond até o pescoço. Por mais um minuto o elevado vulto permaneceu ao lado do homem adormecido, depois se retirou rapidamente, ganhando o corredor, enquanto a porta se fechava com um estalido metálico e seco.


CONTINUA

XI - VIDA NO CANAVIAL


Seriam cerca de oito horas, pensou Bond. A não ser o coaxar dos sapos, tudo estava mergulhado em silêncio. No canto mais distante da clareira, ele podia vislumbrar o vulto de Quarrel.

Podia-se ouvir o tinir metálico, enquanto ele se ocupava em desmontar e secar a sua “Remington”.

Por entre as árvores podiam-se ver também as luzes distantes, vindas do depósito de guano, riscar caminhos luminosos e festivos sobre a superfície escura do lago. O desagradável vento desaparecera e o abominável cenário estava mergulhado em trevas. Estava bastante fresco. As roupas de Bond tinham secado no corpo. A comida tinha aquecido o seu estômago. Ele experimentou uma agradável sensação de conforto, sonolência e paz. O dia seguinte ainda estava muito longe e não apresentava problemas, a não ser uma boa dose de exercício físico. A vida, subitamente, pareceu-lhe fácil e boa.

A jovem estava a seu lado, metida no saco de dormir. Estava deitada de costas, com a cabeça descansando nas mãos, e olhando para o teto de estrelas. Ele apenas conseguia divisar os pálidos contornos de seu rosto. De repente, ela disse: James, você prometeu dizer-me o que significava tudo isso. Vamos. Eu não dormirei enquanto você não o disser.

Bond riu. — Eu direi se você também disser. Também quero saber o que você pretende.

— Pois não, não tenho segredos: mas você deve falar primeiro.

— Está certo. — Bond puxou os joelhos até a altura do queixo e passou os braços à volta deles. — Eu sou uma espécie de policial. Eles me enviam de Londres quando há alguma coisa de estranho acontecendo em alguma parte do mundo e que não interessa a ninguém. Bem, não faz muito tempo, um dos funcionários do Governador, em Kingston, um homem chamado Strangways, aliás meu amigo, desapareceu. Sua secretária, que era uma linda jovem, também desapareceu sem deixar vestígios. Muitos pensaram que eles tivessem fugido juntos, mas eu não acreditei nisso. Eu...”

Bond contou tudo com simplicidade, falando em homens bons e maus, como numa história de aventuras lida em algum livro. Depois terminou: Como você vê, Honey, temos de voltar a Jamaica, amanhã à noite, todos nós, na canoa, e então o Governador nos dará ouvidos e enviará um destacamento de soldados para apanhar este chinês. Espero que isso terá como conseqüência levá-lo à prisão. Ele com certeza também sabe disso, e essa é a razão pela qual procura aniquilar-nos. Essa é a história. Agora é a sua vez.

A jovem disse: Você parece viver uma vida muita excitante. Sua mulher não deve gostar que você fique fora tanto tempo. Ela não tem medo de que você se fira?

— Não sou casado. A única que se preocupa com a possibilidade de que eu me fira é a minha companhia de seguros.

Ela continuou sondando: Mas suponho que você tenha namoradas.

— Não permanentes.

— Oh!

Fez-se uma pausa. Quarrel se aproximou e disse: “Capitão, farei o primeiro quarto, se for melhor. Estarei na extremidade da restinga e virei chamá-lo à meia-noite. Então talvez o senhor possa ir até as cinco horas, quando nós nos poremos em marcha. Precisamos estar fora daqui antes que clareie o dia.

— Está bem — respondeu Bond. — Acorde-me se você vir alguma coisa. O revólver está em ordem?

— Perfeito — respondeu Quarrel com evidente mostra de contentamento. Depois, dirigindo-se à jovem disse com leve tom de insinuação: — Durma bem, senhorita. Em seguida, desapareceu silenciosamente nas sombras.

— Gosto de Quarrel — disse a jovem. E, após uma pausa: — Você quer realmente saber alguma coisa a meu respeito? A história não é tão excitante quanto a sua.

— É claro que quero. E não omita nada.

— Não há nada a omitir. Você poderia escrever toda a história de minha vida nas costas de um cartão postal. Para começar, nunca saí de Jamaica. Vivi toda a minha vida num lugar chamado Beau Desert, na costa setentrional, nas proximidades do Porto Morgan.

Bond riu. — É estranho: posso dizer o mesmo; pelo menos por enquanto. Não notei você pela região. Você vive em cima de uma árvore?

— Ah, imagino que você tenha ficado na casa da praia. Eu nunca chego até ali. Vivo na Casa Grande.

— Mas nada ficou dela. É uma ruína no meio dos canaviais.

— Eu vivo na adega. Tenho vivido ali desde a idade de cinco anos. Depois a casa se incendiou e meus pais morreram. Nada me lembro deles, por isso você não precisa manifestar pesar. A princípio vivi ali com a minha ama negra, mas depois ela morreu, quando eu tinha apenas quinze anos. Nos últimos cinco anos tenho vivido ali sozinha.

— Nossa Senhora! — Bond estava boquiaberto. — Mas não havia ninguém para tomar conta de você? Os seus pais não deixaram nenhum dinheiro?

— Nem um tostão. — Não havia o mínimo traço de amargura na voz da jovem — talvez orgulho, se houvesse alguma coisa. — Você sabe, os Riders eram uma das mais antigas famílias de Jamaica. O primeiro Rider recebera de Cromwell as terras de Beau Desert, por ter sido um dos que assinaram o veredicto de morte contra o rei Carlos. Ele construiu a Casa Grande e minha família viveu ora nela ora fora dela, desde aquela época. Mas depois veio a decadência do açúcar e eu acho que a propriedade foi pessimamente administrada, e, ao tempo em que meu pai tomou conta da herança, havia somente dívidas — hipotecas e outros ônus. Assim, quando meu pai e minha mãe morreram a propriedade foi vendida. Eu pouco me importei, pois era muito jovem. Minha ama deve ter sido maravilhosa. Quiseram que alguém me adotasse, mas a minha babá reuniu os pedaços de mobília que não tinham sido queimados e com eles nós nos instalamos da melhor forma no meio daquelas ruínas. Depois de algum tempo ninguém mais veio interferir conosco. Ela cosia um pouco e lavava para algumas freguesas da aldeia, ao mesmo tempo que plantava bananas e outras coisas, sem falar do grande pé de fruta-pão que havia diante da casa. Comíamos o que era a ração habitual do povo de Jamaica. E havia os pés de cana-de-açúcar à nossa volta. Ela fizera também uma rede para apanhar peixes, a qual nós recolhíamos todos os dias. Tudo corria bem e nós tínhamos o suficiente para comer. Ela ensinou-me a ler e escrever, como pôde. Tínhamos uma pilha de velhos livros que escapara ao incêndio, inclusive uma enciclopédia. Comecei com o A quando tinha apenas oito anos, e cheguei até o meio do T. — Ela disse um tanto na defensiva: — Aposto que sei mais do que você sobre muitas coisas.

— Estou certo de que sim. — Bond estava perdido na visão daquela jovem de cabelos de linho errando pelas ruínas de uma grande construção, com uma obstinada negra a vigiá-la e a chamá-la para receber as lições que deveriam ter sido um mistério para ela mesma. — Sua ama deve ter sido uma criatura extraordinária.

— Ela era um amor. — Era uma afirmação peremptória. — Pensei que fosse morrer quando ela faleceu. As coisas não foram tão fáceis para mim depois disso. Antes eu levava uma vida de criança, mas subitamente tive que crescer e fazer tudo por mim mesma. E os homens tentaram apanhar-me e atingir-me. Diziam que queriam fazer amor comigo. — Fez uma pausa e acrescentou: — Eu era bonita naquela época. Bond disse muito sério:

— Você é uma das jovens mais belas que já vi.

— Com este nariz? Não seja tolo.

— Você não compreende. — Bond tentou encontrar palavras nas quais ela pudesse crer. — É claro que qualquer pessoa pode ver que o seu nariz está quebrado; mas desde esta manhã dificilmente eu pude notá-lo. Quando se olha para uma pessoa, olha-se para os seus olhos ou para a sua boca. Nesses dois pontos se encontram a expressão. Um nariz quebrado não tem maior significação do que uma orelha torta. Narizes e orelhas são peças do mobiliário facial. Algumas são mais bonitas do que outras, mas não são tão importantes quanto o resto. Se você tivesse um nariz bonito, tão bonito como o resto, você seria a jovem mais bela de Jamaica.

— Você é sincero? — Sua voz era ansiosa. — Você acha que eu poderia ser bela? Sei que muita coisa em mim está bem, mas quando olho no espelho só vejo o meu nariz quebrado. Estou certa de que o mesmo ocorre com outras pessoas que são, que são — bem — mais ou menos aleijadas.

Bond disse com impaciência: — Você não é aleijada! Não diga tolices. E aliás você pode endireitá-lo mediante uma simples operação. Basta que você vá aos Estados Unidos e a coisa levará apenas uma semana.

Ela disse com irritação: — Como é que você quer que eu faça isso? Tenho cerca de quinze libras debaixo de uma pedra, na minha adega. Tenho ainda três saias, três blusas, uma faca e uma panela de peixe. Conheço muito bem essas operações. O médico de Porto Maria já pediu informações para mim. Ele é um homem muito bom e escreveu para os Estados Unidos. Pois para que a operação seja bem feita, eu teria que gastar cerca de quinhentas libras, sem falar da passagem para Nova York, a conta do hospital e tudo o mais.

Sua voz tornou-se desesperançada: — Como é que você espera que eu possa ter todo esse dinheiro?

Bond já decidira sobre o que teria de ser feito, mas no momento apenas disse ternamente: — Bem, espero que se possam encontrar meios; mas, de qualquer maneira, prossiga com a sua história. Ela é muito excitante — muito mais interessante do que a minha. Você tinha chegado ao ponto em que a sua ama morreu. O que aconteceu depois?

A jovem recomeçou com relutância.

— Bem, a culpa é sua por ter interrompido. E você não deve falar de coisas que não compreende. Suponho que as pessoas lhe digam que você é simpático. Você deve também ter todas as namoradas que desejar. Bem, isso não aconteceria se você fosse vesgo ou tivesse um lábio leporino. — Na verdade, ele pôde ouvir o sorriso em sua voz: — Acho que quando voltarmos eu irei ter com o feiticeiro para que lhe faça uma mandinga e lhe dê alguma coisa assim. — E ela acrescentou tristemente: — Dessa forma, nós seremos mais parecidos.

Bond estendeu o braço e sua mão tocou nela: — Eu tenho outros planos. Mas continuemos, quero ouvir o resto da sua história.

— Bem, — disse a jovem com um suspiro. — Eu terei que me atrasar um pouco. Como você sabe, toda a propriedade é representada pela cana-de-açúcar e pela velha casa que está situada no meio da plantação. Bem, umas duas vezes por ano eles cortam a cana e mandam-na para o moinho. E quando eles o fazem, todos os animais e insetos que vivem nos canaviais entram em pânico e a maioria deles têm as suas tocas destruídas e são mortos. Na época da safra, alguns deles começaram a vir para as ruínas da casa, onde se escondiam. No princípio, minha babá ficava aterrorizada, pois lá vinham os mangustos, as cobras e os escorpiões, mas eu preparei dois quartos da adega para recebê-los. Não me assustei com eles, e eles nunca me fizeram mal. Pareciam compreender que eu estava cuidando deles. E devem ter contado aquilo aos seus amigos, ou alguma coisa parecida, pois depois de algum tempo era perfeitamente natural que todos viessem acantonar-se em seus dois quartos, onde ficavam até que os canaviais começassem novamente a crescer, quando então iam saindo e voltando para os campos. Dei-lhes toda a comida que podíamos pôr de lado, quando eles ficavam conosco, e todos se portavam muito bem, a não ser por algum odor e às vezes uma ou outra luta entre si. Mas eram muito mansos comigo. Naturalmente os cortadores de cana perceberam tudo e viam-me andando pelo lugar com cobras à volta do meu pescoço, e assim por diante, a ponto de ficarem aterrorizados comigo e me considerarem uma feiticeira. Por causa disso, eles nos deixaram completamente isoladas. Ela fez uma pausa, e depois recomeçou:

— Foi assim que aprendi tanta coisa sobre animais e insetos. Eu costumava ainda passar muito tempo no mar, aprendendo coisas sobre os animais marinhos, assim como sobre os pássaros. Se se chega a saber o que todas essas criaturas gostam de comer e do que têm medo, pode-se muito bem fazer amizade com elas. — Levantou os olhos para Bond e disse: Você não sabe o que perde ignorando todas essas coisas.

— Receio que perca muito — respondeu Bond com sinceridade. — Suponho que eles sejam muito melhores e mais interessantes que os homens.

Sobre isso nada sei — respondeu a jovem pensativa-mente. — Não conheço muitas pessoas. A maioria das que conheci foram detestáveis, mas acho que deve haver criaturas interessantes também. — Fez uma pausa, e prosseguiu: — Nunca pensei realmente que chegasse a gostar de alguma pessoa como gosto dos animais. Com exceção da babá, naturalmente. Até que... — Ela se interrompeu com um sorriso de timidez. — Bem, de qualquer forma, nós vivemos muito felizes juntas, até que eu fiz quinze anos, quando então a babá morreu e as coisas se tornaram muito difíceis. Havia um homem chamado Mander. Um homem horroroso. Era o capataz branco que servia aos proprietários da plantação. Ele vivia me procurando. Queria que eu fosse viver com ele, em sua casa de Porto Maria.

Eu o odiava, e costumava esconder-me sempre que ouvia o seu cavalo aproximando-se do canavial. Certa noite ele veio a pé e eu não o ouvi. Estava bêbado. Entrou na adega e lutou comigo porque não queria fazer o que ele desejava. Você sabe, as coisas que fazem as pessoas quando estão apaixonadas.

— Sim, já sei.

— Tentei matá-lo com a minha faca, mas ele era muito forte e deu-me um soco tão forte no rosto que me quebrou o nariz. Deixou-me inconsciente e acho que fez alguma coisa comigo. Sei que ele fez mesmo. No dia seguinte eu quis me matar quando vi o meu rosto e verifiquei o que ele me havia feito. Pensei que iria ter um filho. Teria sem dúvida me matado se tivesse tido um filho daquele homem. Em todo caso, não tive, e tudo continuou assim. Fui ao médico e ele fez o que pôde com o meu nariz e não me cobrou nada. Quanto ao resto, eu nada lhe contei, pois estava muito envergonhada. O homem não voltou mais. Eu esperei e nada fiz até a próxima colheita de cana-de-açúcar. Tinha um plano. Estava esperando que as aranhas viúvas-negras viessem procurar abrigo. Um belo dia elas chegaram. Apanhei a maior das fêmeas e á deixei numa caixa sem nada para comer. As fêmeas são terríveis. Então esperei que fizesse uma noite escura, sem luar. Na primeira noite dessas, apanhei a caixa com a aranha e caminhei até chegar à casa do homem. Estava muito escuro e eu me sentia aterrorizada com a possibilidade de encontrar algum assaltante pela estrada, mas não houve nada. Esperei em seu jardim, oculta entre os arbustos, até que ele se recolheu à cama. Então subi por uma árvore e ganhei a sacada; aguardei até que ele começasse a roncar e depois entrei pela janela. Ele estava nu, estendido na cama, sob o mosquiteiro. Levantei uma aba do filó, abri a caixa e sacudi-lhe a aranha sobre o ventre. Depois saí e voltei para casa.

— Deus do céu! — exclamou Bond reverentemente. — O que aconteceu com o homem?

Ela respondeu com satisfação: — Levou uma semana para morrer. Deve ter-lhe doído terrivelmente. Você sabe, a mordida dessa aranha é pavorosa. Os feiticeiros dizem que não há nada que se lhe compare. — Ela fez uma pausa, e como Bond não fizesse nenhum comentário, acrescentou: — Você não acha que eu fiz mal, não é?

— Bem, não faça disso um hábito — respondeu Bond suavemente. — Mas não posso culpá-la, diante do que ele tinha feito. E, depois, o que aconteceu?

— Bem, depois me estabeleci novamente — sua voz era firme. — Tive que me concentrar na tarefa de obter alimento suficiente, e naturalmente. — Acrescentou persuasivamente: — Eu tinha de fato um nariz muito bonito, antes. Você acha que os médicos podem torná-lo igualzinho ao que era antes?

— Eles poderão fazê-lo de qualquer forma que você quiser — disse Bond em tom definitivo. — Como é que você ganhou dinheiro?

— Foi graças à enciclopédia. Li nela que há pessoas que gostam de colecionar conchas marinhas e que as conchas raras podiam ser vendidas. Falei com o mestre-escola local, sem contar-lhe naturalmente o meu segredo, e ele descobriu para mim que havia uma revista norte-americana chamada “Nautilus”, dedicada aos colecionadores de conchas. Eu tinha apenas o dinheiro suficiente para tomar uma assinatura daquela revista e comecei a procurar as conchas que as pessoas pediam em seus anúncios. Escrevi a um comerciante de Miami e ele começou a comprar as minhas conchas. Foi emocionante. Naturalmente que cometi alguns erros, no princípio. Pensei, por exemplo, que as pessoas gostariam das conchas mais bonitas, mas esse não era o caso. Freqüentemente elas preferiam as conchas mais feias. Depois, quando achava conchas raras, punha-me a limpá-las e poli-las a fim de torná-las mais bonitas, mas isso também foi um erro. Os colecionadores querem as conchas exatamente como saem do mar, com o animal em seu interior também. Então consegui algum formol com o médico e o punha entre as conchas vivas, para que elas não tivessem mau cheiro, e depois mandava-as para o tal comerciante de Miami. Só aprendi bem o negócio de um ano para cá e já consegui quinze libras. Consegui esse resultado agora que sei como é que eles querem as conchas e se tivesse sorte, poderia fazer pelo menos cinqüenta libras por ano. Então, em dez anos poderia ir aos Estados Unidos e operar-me. Mas, continuou ela com intenso contentamento, tive uma notável maré de sorte. Fui a Crab Key pelo Natal, onde já tinha estado antes. Mas dessa vez eu encontrei essas conchas purpúreas. Não parecem grande coisa, mas eu enviei uma ou duas para Miami e o comerciante escreveu-me para dizer que compraria tantas dessas conchas quantas eu pudesse encontrar, e ao preço de até cinco dólares pelas perfeitas. Disse-me ainda que eu deveria manter segredo sobre o lugar de onde as tirava, pois de outra forma o “mercado seria estragado”, como disse ele, e os preços cairiam. É como se se tivesse uma mina de ouro particular. Agora serei capaz de juntar o dinheiro em cinco anos. Esse foi o motivo pelo qual tive grandes suspeitas de você, quando o encontrei na praia. Pensei que você tivesse vindo para roubar as minhas conchas.

— Você me deu um susto, pois pensei que você fosse a garota do Dr. No.

— Muito obrigada.

— Mas depois que você tiver feito a operação, o que irá fazer? Você não pode continuar vivendo numa adega durante toda a vida.

— Pensei em me tornar uma prostituta. — Ela o disse como se tivesse dito “enfermeira” ou “secretária”.

— Oh, o que é que você quer dizer com isso? — Talvez ela já tivesse ouvido aquela expressão sem compreendê-la bem.

— Uma dessas jovens que possuem um bonito apartamento e lindas roupas. Você sabe o que quero dizer — acrescentou ela com impaciência. — Os homens telefonam, marcam encontro, chegam, fazem amor e pagam. Elas ganham cem dólares de cada vez, em Nova Iorque, onde pensei começar. Naturalmente — admitiu — terei de fazer por menos, no começo, até que aprenda a trabalhar bem. Quanto é que vocês pagam pelas que não têm experiência?

Bond riu. — Francamente, não me lembro. Há muito tempo que não me encontro com essas mulheres.

Ela suspirou. — Sim, suponho que você possa ter tantas mulheres quantas queira, por nada. Suponho que apenas os homens feios paguem, mas isso é inevitável. Qualquer espécie de trabalho nas grandes cidades deve ser horrível. Pelo menos pode-se ganhar muito mais como prostituta. Depois, poderia voltar para Jamaica e comprar Beau Desert. Seria bastante rica para encontrar um marido bonito e ter alguns filhos. Agora que encontrei essas conchas, penso que poderia estar de volta a Jamaica quando tivesse trinta anos. Não seria formidável?

— Gosto da última parte do plano, mas não tenho muita confiança na primeira. De qualquer forma, como é que você veio a saber dessa história de prostitutas? Encontrou isso na letra P, na enciclopédia?

— Claro que não; não seja tolo. Há uns dois anos houve em Nova Iorque um escândalo sobre elas, envolvendo também um “play-boy” chamado Jelke. Ele tinha toda uma cadeia de prostitutas, e eu li muito sobre o caso no “Gleaner”. O jornal deu inclusive os preços que elas cobravam e tudo o mais. De qualquer forma, há milhares dessas jovens em Kingston, embora não sejam tão boas. Recebem apenas cinco xelins e não têm um lugar apropriado para fazer amor, a não ser no mato. Minha babá chegou a falar-me delas. Disse-me que eu não deveria imitá-las, pois do contrário seria muito infeliz. É claro que seria, recebendo apenas cinco xelins. Mas por cem dólares!...

Bond observou: — Você não conseguiria guardar todo esse dinheiro. Precisaria ter uma espécie de gerente para arranjar os homens, e teria ainda de dar gorjetas à polícia, para deixá-la em paz. Por fim, poderia ir facilmente parar na cadeia se tudo não corresse bem. Na verdade, com tudo o que você sabe sobre animais, bem poderia ter um ótimo emprego, cuidando deles, em algum jardim zoológico norte-americano. E o que me diz do Instituto de Jamaica? Tenho certeza de que você gostaria mais de trabalhar ali. E poderia também facilmente encontrar um bom marido. De qualquer forma, você não deve mais pensar em ser prostituta. Você tem um belo corpo e deve guardá-lo para o homem que amar.

— Isso é o que dizem as pessoas nos livros — disse ela com ar de dúvida. — A dificuldade está em que não há nenhum homem para ser amado em Beau Desert. — Depois acrescentou timidamente: — Você é o único inglês com quem jamais falei. Gostei de você desde o princípio, e não me importo de dizer-lhe essas coisas agora. Penso que há muitas pessoas das quais chegaria a gostar se saísse daqui.

— É claro que há. Centenas. E você é uma garota formidável; o que pensei assim que a vi.

— Assim que viu as minhas nádegas, você quer dizer. — Sua voz estava-se tornando sonolenta, mas cheia de prazer.

Bond riu. — Bem, eram nádegas maravilhosas. E o outro lado também era maravilhoso. — O corpo de Bond começou a se agitar com a lembrança de como a vira pela primeira vez. Depois de um instante, disse com mau humor: — Agora vamos, Honey. Está na hora de dormir. Haverá muito tempo para conversarmos quando voltarmos a Jamaica.

— Haverá? — perguntou ela desconsoladamente. — Você promete?

— Prometo.

Ele a viu agitar-se dentro do saco de dormir. Olhou para baixo e apenas pôde divisar o seu pálido perfil voltado para ele. Ela deixou escapar o profundo suspiro de uma criança, antes de adormecer.

Reinava silêncio na clareira e o tempo estava esfriando. Bond descansou a cabeça sobre os joelhos unidos. Sabia que era inútil procurar dormir, pois sua mente estava cheia dos acontecimentos do dia e dessa extraordinária mulher Tarzan que aparecera em sua vida. Era como se algum animal muito bonito se lhe tivesse dedicado. E não largaria os cordéis enquanto não tivesse resolvido os problemas dela. Estava sentindo isso. Naturalmente que não haveria grandes dificuldades para a maioria de seus problemas. Quanto à operação, seria fácil arranjá-la, e até mesmo encontrar-lhe um emprego, com o auxílio de amigos, e um lar. Tinha dinheiro e haveria de comprar-lhe roupas, mandaria ajeitar os seus cabelos e a lançaria no grande mundo. Seria divertido. Mas quanto ao resto? Quanto ao desejo físico que sentia por ela? Não se podia fazer amor com uma criança. Mas, seria ela uma criança? Não haveria nada de infantil relativamente ao seu corpo ou à sua personalidade. Era perfeitamente adulta e bem inteligente, a seu modo, e muito mais capaz de tomar conta de si mesma do que qualquer outra jovem de vinte anos que Bond conhecera.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um puxão em sua manga. A vozinha disse: — Por que você não vai dormir? Não está sentindo frio?

— Não; estou bem.

— Aqui no saco de dormir está bom e quente. Você quer vir para cá? Tem bastante lugar.

— Não, obrigado, Honey. Estou bem.

Houve uma pausa, e depois ela disse num sussurro: — Se você está pensando... Quero dizer — você não precisa fazer amor comigo... Eu poderia dormir de costas para o seu peito.

— Honey, querida, vá dormir. Seria maravilhoso dormir assim com você, mas não esta noite. De qualquer maneira, em breve terei de render Quarrel.

— Muito bem, — disse ela com voz mal humorada. — Talvez quando voltarmos a Jamaica.

— Talvez.

— Prometa. Não dormirei enquanto você não prometer.

Bond disse desesperadamente: — Naturalmente que prometo. Agora, vá dormir, Honeychile.

A sua voz se fez ouvir outra vez, triunfante: — Agora você tem uma dívida comigo. Você prometeu. Boa-noite, querido James.

— Boa noite, querida Honey.


XII - A COISA


O aperto no braço de Bond era ansioso. Ele de um salto pôs-se de pé.

Quarrel sussurrou tensamente: — Alguma coisa está-se aproximando pela água, capitão! Com certeza é o dragão!

A jovem levantou-se e perguntou nervosamente: — Que aconteceu?

Bond apenas disse: — Fique aí, Honey! Não se mexa. Eu voltarei.

Internou-se pelos arbustos do lado oposto da montanha e correu pela restinga, com Quarrel ao lado.

Chegaram até a extremidade da restinga, a vinte metros da clareira, e pararam sob o abrigo dos últimos arbustos, que Bond apartou com as mãos para ter um melhor campo de visão.

O que seria aquilo? A meia milha de distância, atravessando o lago, vinha algo informe, com dois olhos brilhantes cor de laranja, e pupilas negras. Entre estes, onde deveria estar a boca, tremulava um metro de chama azul. A luminosidade cinzenta das estrelas deixava ver uma espécie de cabeça abaulada entre duas pequenas asas semelhantes às de um morcego. Aquela coisa estranha deixava escapar um ronco surdo e baixo, que abafava um outro ruído, uma espécie de vibração rítmica. Aquela massa avançava na direção deles, à velocidade de uns dezesseis quilômetros por hora, deixando atrás de si uma esteira de espuma.

Quarrel sussurrou:

— Nossa, capitão! Que coisa é aquela?

Bond continuou de pé e respondeu laconicamente: — Não sei exatamente. Uma espécie de trator arranjado para meter medo. Está trabalhando com um motor diesel, e por isso você pode deixar os dragões de lado. Agora, vejamos... — Bond falava como se para si mesmo. — Não adianta fugir. Aquilo se move mais depressa do que nós e sabemos que pode esmagar árvores e atravessar pântanos. Temos que lhe dar combate aqui mesmo. Quais serão os seus pontos fracos? Os motoristas. Com certeza, dispõem de proteção. Em todo caso, não sabemos muito sobre esse ponto. Quarrel, você começará a disparar contra aquela cúpula quando estiverem a uns duzentos metros de nós. Faça a pontaria cuidadosamente e continue atirando. Visarei os faróis quando estiverem a cinqüenta metros. Não se está movendo sobre lagartas. Deve ter alguma espécie de rodas gigantescas, provavelmente de avião. Visarei as rodas também. Fique aí. Ficarei dez metros para baixo. Naturalmente vão reagir e nós temos que manter as balas longe da garota. Está combinado? — Bond esticou o braço e apertou o enorme ombro de Quarrel. — E não se preocupe demais. Esqueça-se de dragões. Trata-se apenas de alguma trapaça do Dr. No. Mataremos os motoristas, tomaremos conta do veículo e ganharemos com ele a costa. Isso economizará as nossas solas. Está bem?

Quarrel deu uma breve risada. — Está bem, capitão. Desde que o senhor assim o diz. Mas que Nosso Senhor saiba também que aquilo não é dragão!

Bond desceu pela restinga e se internou pelos arbustos, até que encontrou um ponto de onde podia ter um bom campo de tiro. Disse suavemente: — Honey!

— Sim, James — e a voz dela deixou transparecer alívio.

— Faça um buraco na areia como fizemos na praia. Faça-o por trás de raízes grossas e fique lá deitada. Talvez haja um tiroteio. Não tenha medo de dragões. Isto é apenas um veículo pintado, dirigido por alguns dos homens do Dr. No. Não se assuste. Estou aqui perto.

— Muito bem, James. Tenha cuidado! — A voz agora deixava transparecer um vivo temor.

Bond curvou-se, apoiando um joelho no chão, sobre as folhas e a areia, e olhou para fora.

Agora o veículo achava-se a uns trezentos metros de distância, e os seus faróis amarelos estavam iluminando a areia. Chamas azuis continuavam saindo da boca daquele engenho. Saíam de uma espécie de longo focinho, no qual se pintaram mandíbulas entreabertas, para darem ao todo a aparência de dragão. Um lança-chamas! Aquilo explicava as árvores queimadas e a história do administrador. A coloração azul da chama seria dada por alguma espécie de queimador, disposto adiante do lança-chamas.

Bond teve que admitir que aquela visão era algo de terrível, à medida que o veículo avançava pelo lago raso. Evidentemente fora calculado para infundir terror. Ele mesmo ter-se-ia assustado, não fora a vibração rítmica do motor diesel. Mas até que ponto aquilo seria vulnerável para homens que não fossem dominados pelo pânico?

A resposta ele a teve quase imediatamente. Ouviu-se o estampido da “Remington” de Quarrel. Uma centelha saiu da cabina encimada pela cúpula e logo se ouviu um ruído metálico. Quarrel disparou mais um tiro e, logo em seguida, uma rajada. As balas chocaram-se inutilmente de encontro à cabina. Não houve mesmo uma simples redução de velocidade. O monstro continuava avançando para o ponto de onde tinham partido os disparos. Bond descansou o cano de seu “Smith & Wesson” no braço, e fez cuidadosa pontaria. O profundo ruído surdo de sua arma fez-se ouvir por sobre o matraquear da “Remington” de Quarrel. Um dos faróis fora atingido e despedaçara-se. Bond disparou mais quatro tiros contra o outro e atingiu-o com o quinto e último disparo de seu revólver. O fantástico aparelho parecia continuar não dando importância, e foi avançando para o lugar de onde tinham partido os disparos do “Smith & Wesson”. Bond tornou a carregar a arma e começou a atirar contra os pneumáticos, sob as asas negro e ouro. A distância agora era de apenas trinta metros e podia jurar que já atingira mais de uma vez a roda mais próxima, sem nenhum resultado. Seria borracha sólida? O primeiro estremecimento de medo percorreu a pele de Bond.

Carregou mais uma vez. Seria aquela coisa maldita vulnerável pela retaguarda? Deveria correr para o lago e tentar uma abordagem? Avançou um passo, através dos arbustos, mas logo ficou imóvel, incapaz de prosseguir.

Subitamente, daquele focinho ameaçador, uma língua de fogo azulada tinha sido lançada na direção do esconderijo de Quarrel. À direita de Bond, no mato, surgira apenas uma chama laranja e vermelha, simultaneamente com um estranho urro, que imediatamente silenciou. Satisfeita, aquela língua de fogo se recolhera à sua boca. Agora aquilo fizera um movimento de rotação sobre o seu eixo e parará completamente. O buraco azulado da boca apontava diretamente para Bond.

Bond deixou-se ficar, esperando pelo horroroso fim. Olhou através das mandíbulas da morte e viu o brilhante f-lamento vermelho do queimador, bem no fundo do comprido tubo. Pensou no corpo de Quarrel — mas não havia tempo para pensar em Quarrel — e imaginou-o completamente carbonizado. Dentro em pouco ele também se incendiaria como uma tocha. Um único berro seria arrancado dele e os seus membros se encolheriam na pose de dançarino dos corpos queimados. Depois viria a vez de Honey. Meu Deus, para o quê ele os havia arrastado! Por que fora tão insano a ponto de enfrentar aquele homem com todo o seu arsenal? Por que não aceitara a advertência que lhe fora feita pelo longo dedo que o alcançara já em Jamaica? Bond trincou os dentes. Vamos, canalhas. Depressa.

Ouviu-se a sonoridade de um alto-falante, que anunciava metàlicamente: “Saia daí, inglês. E a boneca também. Depressa ou será frito no inferno, como o seu amigo”. Para dar mais força àquela ordem, uma língua de fogo foi lançada em sua direção. Bond deu um passo atrás para recuar daquele intenso calor. Sentiu o corpo da garota de encontro às suas costas. Ela disse historicamente: — Tive que vir, tive que vir.

Bond disse: — Está bem, Honey. Fique atrás de mim.

Ele tinha-se decidido. Não havia alternativa. Mesmo que a morte viesse mais tarde, não poderia ser pior do que aquela morte diante do lança-chamas. Bond apanhou a mão da jovem e puxou-a consigo para fora, saindo para a areia.

A voz se fez ouvir novamente: — Pare aí, camarada. E deixe cair o lança-ervilhas. Nada de truques, senão os caranguejos terão um bom almoço.

Bond deixou cair a sua arma. Lá se fora o “Smith & Wesson”. O “Beretta” não teria tido melhor sorte: A jovem lastimou-se, e Bond apertou a sua mão. — Agüente, Honey, — disse ele. — Nós nos livraremos disso.

Bond troçou de si mesmo por causa daquela mentira. Ouviu-se o ruído de uma porta de ferro que se abria. Por trás da cúpula, um homem saltou para a água e caminhou até eles, com um revólver na mão. Ao mesmo tempo ia-se mantendo fora da linha de fogo do lança-chamas. A trêmula chama azul iluminou o seu rosto. Era um chinês negro, de enorme estatura, vestindo apenas calças. Alguma coisa balançava em sua mão esquerda, e quando ele se aproximou mais, Bond pôde ver que eram algemas.

O homem deteve-se a alguns metros de distância e disse:

— Levantem os braços. Punhos juntos e caminhem em minha direção. Você primeiro, inglês. Devagar ou receberá mais um umbigo.

Bond obedeceu e quando estava a um passo do homem, este prendeu o revólver entre os dentes, e esticou os braços e atou os seus pulsos com as algemas. Bond examinou aquele rosto iluminado pelas chamas azuis. Era uma cara brutal, com olhos estrábicos. O agente do Dr. No fitou-o com desprezo. — Bastardo imbecil! — disse.

Bond deu as costas ao homem e começou a se afastar. Ia ver o corpo de Quarrel. Tinha que lhe dizer adeus. Ouviu-se o ruído de um disparo e uma bala jogou-lhe areia nos pés. Bond parou, e voltando-se lentamente disse:

— Não fique nervoso. Vou dar uma espiada no homem que você acabou de assassinar. Voltarei.

O homem abaixou o revólver e riu grosseiramente: — Muito bem. Divirta-se. Desculpe se não temos uma coroa. Volte logo, se não daremos uma amostra à boneca. Dois minutos.

Bond caminhou em direção ao cerrado de arbustos fumegantes. Ali chegando, olhou para baixo. Seus olhos e boca se contraíram. Sim, tinha sido bem como ele imaginara. Pior, mesmo. Disse docemente: — Perdoe-me, Quarrel. — Com o pé soltou um pouco de areia, que colheu com as mãos algemadas e verteu-a sobre os restos dos olhos de Quarrel. Depois caminhou lentamente, de volta, e ficou ao lado da jovem.

O homem empurrou-os para a frente com o revólver. Deram a volta por trás da máquina, onde havia uma pequena porta quadrada. Uma voz do interior disse: — Entrem e sentem-se no chão. Não toquem em nada ou ficarão com os dedos partidos.

Com dificuldade, arrastaram-se para dentro daquela caixa de ferro, que cheirava a óleo e suor. Havia lugar apenas para que ambos se sentassem com as pernas encolhidas, de joelhos para cima. O homem que empunhava o revólver e que vinha atrás deles saltou por último para dentro do carro e fechou a porta. Ligou uma lâmpada e sentou-se num assento de ferro, ao lado do chofer. — Muito bem, Sam, vamos andando. Você pode apagar o fogo. Há luz bastante para dirigir — disse.

Na painel de controle podia-se ver uma fileira de mostradores. O motorista esticou a mão e deslocou para baixo um par de interruptores. Engrenou o motor e olhou através de uma estreita fresta, cortada na parede de ferro, diante dele. Bond sentiu que o veículo dava uma volta. Ouviu-se um movimento mais rápido do motor, e o veículo avançou.

O ombro da jovem apertou-se de encontro ao de Bond.

— Para onde estão eles nos levando? — O seu sussurro traía um estremecimento.

Bond voltou a cabeça e olhou para ela. Era a primeira vez que podia ver os seus cabelos depois de secos. Estavam desfeitos pelo sono, mas não eram mais mechas de rabichos empastados. Caíam densamente até os ombros, onde terminavam em anéis voltados para dentro. Eram do mais pálido louro acinzentado e despediam reflexos quase prateados sob a luz elétrica. Ela olhou para o alto, para ele. A pele, à volta dos olhos e nos cantos da boca, mostrava-se lívida de medo.

Bond deu de ombros, procurando aparentar uma indiferença que não sentia!. Sussurrou: — Oh, espero que vamos ver o Dr. No. Não se preocupe demais, Honey. Esses homens não passam de pequenos bandidos. Com ele, as coisas serão diferentes. Quando estivermos diante dele, não diga nada, falarei por nos dois. — Ele apertou o seu ombro e disse: — Gosto da maneira por que você penteia o seu cabelo, e fico contente porque você não o apara muito curto.

Um pouco da tenção desapareceu do rosto dela. — Como é que você pode pensar em coisas como essa? — Deu um leve sorriso para ele, e acrescentou: — Mas estou contente por você gostar de meu penteado. Lavo os meus cabelos com óleo de coco uma vez por semana.

À lembrança de sua outra vida, seus olhos ficaram brilhantes. Ela baixou a cabeça para as mãos algemadas, a fim de esconder as lágrimas. Sussurrou quase para si mesma: — Tentarei ser brava. Tudo estará bem, desde que você esteja lá.

Bond aconchegou-se a ela. Levantou suas mãos algemadas até a altura dos olhos e examinou as algemas. Eram do tipo usado pela polícia norte-americana. Contraiu sua mão esquerda, a mais fina das duas, e tentou fazê-la deslizar pelo anel de aço. Mesmo o suor de sua pele de nada adiantou. Era inútil.

Os dois homens sentavam-se em seus bancos de ferro, indiferentes, e com as costas voltadas para eles. Sabiam que dominavam inteiramente a situação. Não havia possibilidade de que Bond oferecesse qualquer incômodo. Não poderia levantar-se ou dar o necessário impulso aos seus punhos para causar qualquer mal às cabeças de seus adversários, utilizando as algemas. Se conseguisse abrir a porta e pular para a água, o que lograria com isso? Imediatamente eles sentiriam a brisa fresca, nas costas, e parariam a máquina para queimá-lo na água ou içá-lo novamente. Bond aborrecia-se em pensar que os homens pouco se preocupavam com ele, pois sabiam tê-lo completamente em seu poder. Também não gostou da idéia de que aqueles homens eram bastante inteligentes para saber que ele não representava nenhuma ameaça. Indivíduos mais estúpidos teriam ficado em cima deles, de revólver em punho, tê-los-iam surrado, a ele e à jovem, barbaramente, e talvez os tivessem deixado inconscientes. Aqueles dois conheciam o ofício. Eram profissionais, ou tinham sido treinados para o serem.

Os dois homens não falaram. Não houve nenhum comentário sobre o quão hábil eles tinham sido, ou quanto ao seu cansaço ou destino. Apenas dirigiam a máquina serenamente, ultimando com eficiência a sua tarefa.

Bond continuava sem a mínima idéia do que seria aquilo. Sob a tinta negra e dourada, assim como sob o resto daquela fantasia, a máquina parecia uma espécie de trator, como ele nunca vira. Não tinha conseguido descobrir nomes de marcas comerciais, nos pneumáticos, pois estivera muito escuro, mas certamente que deveriam ser de borracha sólida ou porosa. Atrás havia um pequena roda para dar estabilidade ao conjunto. Uma espécie de barbatana de ferro fora ainda acrescentada e pintada também de preto e ouro, a fim de ajudar a dar a aparência de dragão. Os altos pára-lamas tinham sofrido um prolongamento, na forma de curtas asas voltadas para trás. Uma comprida cabeça de dragão, feita em metal, fora fixada ao radiador e os faróis receberam pontos centrais negros, para parecerem olhos. Era tudo, sem falar da cabina que fora recoberta com uma cúpula blindada e dotada de um lança-chamas. Era, como pensara Bond, um trator preparado para assustar e queimar — embora não pudesse atinar porque estava dotado de um lança-chamas e não de uma metralhadora. Era, evidentemente, a única espécie de veículo que poderia percorrer a ilha. Suas gigantescas rodas podiam avançar sobre os mangues, pântanos e ainda atravessar o lago raso. Galgaria também os agrestes planaltos de coral e, desde que andasse à noite, o calor experimentado na cabina seria pelo menos tolerável.

Bond ficara impressionado. Impressionado pelo toque de profissionalismo. O Dr. No era sem dúvida um homem que se preocupava intensamente com as coisas. Em pouco iria encontrá-lo. E em breve estaria diante do segredo do Dr. No. Então, o que aconteceria? Bond sorriu amargamente. Sim, não o deixariam sair dali com o seu conhecimento. Certamente seria morto, a menos que pudesse fugir ou conseguir a sua liberdade por meios persuasivos. E o que aconteceria à jovem? Poderia ele provar sua inocência e conseguir com que ela fosse poupada? Possivelmente, mas nunca mais ela teria permissão para deixar a ilha. Ali teria de ficar para o resto da vida, como amante ou mulher de um dos homens, ou do próprio Dr. No, se ela o impressionasse.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um trecho do percurso mais difícil, como se podia sentir pela trepidação. Tinham atravessado o lago e estavam no caminho que levava para o alto da montanha, junto às cabanas. A cabina vibrava e a máquina começou a galgar o terreno. Dentro de cinco minutos estariam lá.

O ajudante do motorista olhou por sobre o ombro para Bond e a jovem. Bond sorriu confiantemente para ele dizendo: Você receberá uma medalha por isso.

Os olhos amarelos e marrons olharam impassivelmente dentro dos dele, enquanto os lábios arroxeados e oleosos se fenderam num sorriso no qual havia um ódio repousado: Feche a boca, se... Depois, deu-lhe as costas.

A jovem tocou-o com o cotovelo e sussurrou: — Por que eles são tão rudes? Por que nos odeiam tanto?

Bond esboçou um sorriso e disse: — Acho que é porque lhes causamos medo. Talvez ainda estejam com medo, e isto porque não parecemos ter medo deles. Devemos mantê-los assim.

A jovem aconchegou-se a ele e disse: — Tentarei.

Agora a subida estava-se tornando mais íngreme. Uma luz azul-acinzentada atravessava as frestas da armadura. A madrugada se aproximava. Fora, em breve estaria começando mais um dia de calor abrasador, de execrável vento, carregado com o cheiro de gás dos pântanos. Bond pensou em Quarrel, o bravo gigante que não mais veria aquele dia, e com o qual eles deveriam agora estar caminhando através dos pauis de mangues. Quarrel tinha pressentido a morte, mas apesar disso tinha acompanhado Bond sem qualquer objeção. Sua fé em Bond tinha sido maior do que o seu medo. E Bond tinha-lhe faltado. Seria ele ainda o causador da morte da jovem?

O motorista esticou o braço em direção ao painel e na parte dianteira do veículo fez-se ouvir o breve zunido de uma sirena de polícia, que foi desaparecendo num gemido fúnebre. Mais um minuto e o veículo parava, continuando o motor em regime neutro. O homem apertou um interruptor e tirou um microfone de um gancho, a seu lado. Falou por aquele microfone e Bond pôde ouvir a sua voz aumentada, do lado de fora, por um altofalante. — Tudo bem. Apanhamos o inglês e a garota. O outro homem morreu. Isso é tudo. Abram. — Bond ouviu que uma porta se deslocava para o lado, sobre rolamentos. O motorista embreou e eles avançaram lentamente para a frente, parando alguns metros adiante. O motorista desligou o motor. Ouviu-se o ruído metálico da tranca e a porta foi aberta pelo lado de fora. Uma lufada de ar fresco e uma luz mais brilhante penetraram na cabina. Várias mãos agarraram Bond e arrastaram-no para trás, até um chão de cimento. Bond agora estava de pé e sentia o cano de um revólver encostado ao seu flanco. Uma voz disse: — Fique onde está. Nada de espertezas. — Bond olhou para o homem. Era mais um chinês negro, do mesmo tipo que os outros. Os olhos amarelos examinaram-no com curiosidade. Bond virou-se com indiferença. Outro homem estava cutucando a jovem com a arma. Bond disse asperamente: — Deixe a garota em paz! Em seguida, caminhou e pôs-se ao lado da jovem. Os dois homens pareceram surpresos. Deixaram-se ficar de pé, apontando as armas com hesitação.

Bond olhou à volta. Estavam numa das cabanas pré-fabricadas que ele vira do rio. Era ao mesmo tempo uma garagem e uma oficina. O “dragão” tinha sido colocado sobre um fosso de vistoria, no chão de concreto. Um motor de popa desmontado estava sobre uma das bancadas. Longos tubos de luz fluorescente estavam afixados ao teto e o ambiente estava impregnado do cheiro de óleo e fumaça de exaustor. O motorista e o seu companheiro examinavam a máquina. Em seguida deram alguns passos pelo galpão, como se andassem sem propósito.

Um dos guardas anunciou: — Enviei a mensagem. A ordem é que eles sejam levados. Foi tudo bem?

O ajudante de motorista, que parecia o homem mais responsável, ali presente, disse: — Sem dúvida. Alguns disparos. Os faróis foram partidos. Talvez haja alguns furos nos pneumáticos. Ponha os rapazes em ação — uma vistoria completa. Conduzirei esses dois e tirarei um cochilo. — E, voltando-se para Bond: — Bem, vamos andando — e indicou o caminho que saía do longo galpão.

Bond disse: — Vá andando você; e cuidado com os modos. Diga àqueles macacos que tirem as armas de cima de nós. Podem disparar por engano. Parecem bastante idiotas.

O homem se aproximou, e os outros os acompanharam logo atrás. O ódio brilhava em seus olhos. O chefe levantou o punho cerrado, tão grande quanto um pequeno malho e chegou-o à altura do nariz de Bond. Procurava controlar-se com esforço, e disse: — Ouça, senhor. Às vezes, nós, os rapazes, temos permissão para participar da festa final. Estou rezando para que essa seja uma dessas vezes. Certa ocasião fizemos com que a coisa durasse toda uma semana. E se eu o pego...

Riu e os seus olhos brilharam com crueldade. Olhou para o lado de Bond, fixando a garota. Seus olhos pareciam transformados em bocas que agitavam os lábios. Enfiou as mãos nos bolsos laterais das calças. A ponta de sua língua mostrava-se muito vermelha, entre os lábios arroxeados. Voltando-se para os companheiros disse: — Que tal, rapazes?

Os três homens estavam olhando também para a jovem. Fizeram um sinal de assentimento, como crianças diante de uma árvore de Natal.

Bond desejou atirar-se como um louco sobre eles, golpeando as suas caras com os punhos algemados e aceitando a sua vingança sangrenta. Não fosse pela jovem, bem que o teria feito. Mas tudo o que tinha conseguido com suas corajosas palavras fora amedrontá-la. Disse apenas: — Muito bem, muito bem. Vocês são quatro e nós somos dois, ainda por cima com as mãos atadas. Vamos, não queremos atingi-los. Apenas não nos empurrem muito de um lado para outro. O Dr. No poderia não ficar satisfeito.

Àquele nome, os rostos dos homens se modificaram. Três pares de olhos passaram apàticamente de Bond para o chefe. Por um segundo, este olhou com desconfiança para Bond, intrigado, tentando descobrir se Bond teria alguma influência junto ao Dr. No. Sua boca abriu-se para dizer algo, mas logo pareceu pensar melhor, e apenas disse de maneira incerta: — Bem, bem, estávamos simplesmente brincando. — Voltou-se para os homens, em busca de confirmação: — Não é?

— Sem dúvida, sem dúvida! — foi a resposta dada por um coro áspero, e os homens desviaram o olhar.

O chefe disse com mau humor: — Por aqui, senhor. — E ele mesmo pôs-se a caminho, percorrendo o comprido galpão.

Bond segurou o pulso da jovem e seguiu o chefe. Estava impressionado com a reação causada naqueles homens pelo nome do Dr. No. Aquilo era alguma coisa a lembrar se eles tivessem que se haver novamente com aquela turma.

O homem chegou a uma porta de madeira situada na extremidade do galpão. Ao lado havia um botão de campainha que ele pressionou duas vezes e esperou. Ouviu-se um estalido e a porta se abriu, mostrando dez metros de uma passagem rochosa, mas atapetada e que ia dar, na outra extremidade, em outra porta mais elegante e pintada de creme.

O homem ficou de lado. Siga em frente, senhor — disse; — bata na porta e será atendido pela recepcionista. — Não havia nenhuma ironia em sua voz e seus olhos se mostravam impassíveis.

Bond conduziu Honey pela passagem. Ouviu que a porta se fechava às suas costas. Deteve-se por um momento e fitou-a, perguntando-lhe: — E agora?

Ela riu, trêmula, mas respondeu: — Ê bom sentir-se tapete sob os pés.

Bond apertou o seu pulso. Andou até a porta pintada de creme e bateu.

A porta abriu-se e Bond entrou com a jovem ao lado. Quando se deteve instantaneamente, não chegou a perceber o encontrão que lhe dava a jovem, pois continuou estarrecido.


XIII - GAIOLA DE OURO


Era a espécie de sala de recepção que as maiores corporações norte-americanas possuem no andar em que se situa o escritório do presidente, em seus arranha-céus de Nova Iorque. Suas proporções eram agradáveis, com cerca de vinte pés quadrados. O chão era todo recoberto pelo mais espesso tapete Wilton cor-de-vinho. O teto e as paredes estavam pintados numa suave tonalidade cinza pombo. Viam-se ainda reproduções litográficas de esboços de balé de Degas penduradas em séries, nas paredes, e a iluminação era feita com altos e modernos jogos de abajures de seda verde-escuro, imitando a forma de elegantes barricas.

À direita de Bond estavam uma larga mesa de mogno, com o tampo recoberto com couro verde, outras peças que se harmonizavam perfeitamente com a mesa, e um caro sistema de intercomunicações. Duas cadeiras altas, de antiquado, aguardavam os visitantes. Do outro lado da sala via-se uma mesa do tipo refeitório, sobre a qual estavam várias revistas com capas em cores vivas e mais duas cadeiras. Tanto na mesa de escritório, como na outra, viam-se vasos de hibiscos. O ar era fresco e impregnado de leve fragrância.

Duas mulheres estavam naquela sala. Por trás da mesa de trabalho, empunhando uma caneta que descansava sobre um formulário impresso, estava sentada uma jovem chinesa, de aspecto eficiente, com óculos de armação de chifre, sob uma franja de cabelos negros cortados curtos. Em seus olhos e em sua boca havia o sorriso padrão de boas-vindas que qualquer recepcionista exibe — a um tempo claro, obsequioso e inquisitivo.

Ainda com a mão na maçaneta da porta pela qual eles tinham passado, e esperando que os recém-chegados se adiantassem mais, a fim de que ela a pudesse fechar, estava uma mulher mais velha, com aspecto de matrona, e que deveria ter cerca de quarenta e cinco anos. Era fácil ver-se que também tinha sangue chinês. Sua aparência, saudável, de farto busto, era viva e quase excessivamente graciosa. O seu “pince-nez” de lentes cortadas em quadrado brilhava com o desejo da recepcionista de os pôr à vontade.

Ambas as mulheres vestiam roupas imaculadamente alvas, com meias brancas e sapatos de camurça branca como costumam apresentar-se as auxiliares empregadas nos mais luxuosos salões de beleza norte-americanos. Havia um que de suave e pálido em suas peles, como se elas raramente saíssem para o ar-livre.

Bond observou o ambiente, enquanto a mulher junto à porta lhe dizia frases convencionais de boas-vindas, como se eles tivessem sido colhidos por uma tempestade o chegado com atraso a uma festa.

— Oh, coitados! Nós não sabíamos quando vocês iriam chegar. A todo momento nos diziam que vocês já estavam a caminho... primeiro à hora do chá, ontem, depois na hora do jantar, e apenas há uma hora fomos informadas de que vocês chegariam à hora do desjejum. Devem estar com fome. Venham aqui e ajudem a irmã Rosa a preencher o formulário; depois eu os prepararei para a cama. Devem estar muito cansados.

Ia dizendo aquilo com voz doce e cacarejante, ao mesmo tempo que fechava a porta e os levava para junto da mesa e os fazia sentar nas cadeiras. Depois disse: — Bem, eu sou a irmã Lírio, e esta é a irmã Rosa. Ela irá fazer-lhes apenas algumas perguntas. Agora, aceitam um cigarro? — e pegou uma caixa de couro trabalhado que estava em cima da mesa. Abriu-a e pô-la diante deles. A caixa tinha três divisões, e a chinesinha explicou apontando com um dedo: “Esses são americanos, esses são ingleses e esses turcos.” Ela apanhou um luxuoso isqueiro de mesa e esperou.

Bond estendeu as mãos algemadas para tirar um cigarro turco.

A irmã Lírio deu um gritinho de espanto: — Oh, mas francamente. — Parecia sinceramente embaraçada. — Irmã Rosa, dê-me a chave, depressa. Já disse por várias vezes que os pacientes não devem ser trazidos dessa maneira. — Havia impaciência e aborrecimento em sua voz. — Francamente, aquela gente lá de fora! Já era tempo que eles fossem chamados à ordem.

A irmã Rosa estava tão embaraçada quanto a irmã Lírio. Rapidamente remexeu dentro de uma gaveta e entregou uma chave à irmã Lírio, que com muitas desculpas e cheia de dedos abriu os dois pares de algemas e, afastando-se para trás da mesa, deixou aquelas duas pulseiras de aço caírem dentro da cesta de papéis como se fossem ataduras sujas.

— Obrigado, — disse Bond, que não sabia como enfrentar aquela situação, a não ser procurando desempenhar um papel qualquer na comédia que se estava representando. Ele estendeu o braço, apanhou um cigarro e acendeu-o. Lançou um olhar para Honeyehile Rider, que parecia estonteada e nervosamente apertava com as mãos os braços de sua cadeira. Bond dirigiu-lhe um sorriso de conforto.

— Agora, por favor; — disse a irmã Rosa e inclinou-se sobre um comprido formulário impresso em papel caro. — Prometo ser o mais rápida que puder. O seu nome, sr... sr...

— Bryce, John Bryce.

Ela escreveu a resposta com grande concentração. — Endereço permanente?

— Aos cuidados do Jardim Zoológico Real, Regents Park, Londres, Inglaterra.

— Profissão?

— Ornitologista.

— Oh, meu Deus!, poderia o senhor soletrar isso? Bond atendeu-a.

— Muito obrigada. Agora, vejamos, objeto da viagem?

— Aves — respondeu Bond. — Sou também representante da Sociedade Audubon de Nova Iorque. Eles arrendaram parte desta ilha.

— Oh, sem dúvida. — Bond observou que a pena escrevia exatamente o que ele dizia. Depois da última palavra ela pôs um claro ponto de interrogação entre parênteses.

— E — a irmã Rosa sorriu polidamente em direção a Honeyehile — a sua esposa? Ela também está interessada em pássaros?

— Sim, sem dúvida.

— O seu primeiro nome?

— Honeyehile.

A irmã Rosa estava encantada. — Que nome lindo! — Ela voltou a escrever apressadamente. — E agora os parentes mais próximos de ambos, e estará tudo acabado.

Bond deu o verdadeiro nome de M como o parente mais próximo de ambos. Apresentou-o como “tio” e indicou o seu endereço como sendo “Diretor-Gerente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres.”

A irmã Rosa acabou de escrever e disse: — Pronto, está tudo feito. Muito obrigada, sr. Bryce, e espero que ambos apreciem a permanência aqui.

— Muito obrigado. Estou certo de que apreciaremos. — Bond levantou-se e Honeyehile fez o mesmo, ainda com expressão vazia.

A irmã Lírio disse: — Agora, venham comigo, queridos.

— Ela caminhou até uma porta na parede distante e deteve-se com a mão na maçaneta talhada em vidro. — Oh, meu Deus, — disse —, não é que agora me esqueci do número de seus quartos? É o apartamento creme, não é, irmã?

— Isso mesmo. Catorze e quinze.

— Obrigada, querida. E agora — ela abriu a porta — se vocês quiserem me seguir... Receio que seja uma caminhada um pouco longa. — Fechou a porta, por trás deles, e pôs-se à frente, indicando o caminho. — O Doutor tem falado várias vezes em instalar uma dessas escadas rolantes, ou algo de parecido, mas sabem como são os homens ocupados: — Ela riu alegremente. — Ele tem tantas outras coisas em que pensar!

— Sim, acredito, — disse Bond polidamente.

Bond tomou a mão da jovem e seguiram ambos a maternal e agitada chinesa através de cem metros de um alto corredor, do mesmo estilo da sala de recepção, mas que era iluminado a freqüentes intervalos por caros tubos luminosos fixados às paredes.

Bond respondia com polidos monossílabos aos comentários ocasionais que a irmã Lírio lhe lançava por sobre os ombros. Toda a sua mente se concentrava nas extraordinárias circunstâncias de sua recepção. Tinha certeza de que aquelas duas mulheres tinham sido sinceras. Nenhum só olhar ou palavra conseguira registrar que estivesse fora de propósito. Evidentemente aquilo era alguma espécie de fachada, mas de qualquer forma uma fachada sólida, meticulosamente apoiada pelo cenário e pelo elenco. A ausência de ressonância, na sala, e agora no corredor, estava a indicar que eles tinham deixado o galpão pré-fabricado para se internarem no flanco da montanha e agora estavam atravessando a sua base. Segundo o seu palpite estavam mesmo andando em direção oeste — em direção à penedia na qual terminava a ilha. Não havia umidade nas paredes e o ar parecia fresco e puro, com uma brisa a afagá-los. Muito dinheiro e uma bela realização de engenharia tinham sido os responsáveis por aquilo. A palidez das duas mulheres estava a sugerir que passavam a maior parte do tempo internadas no âmago da montanha. Do que a irmã dissera, parecia que elas faziam parte de um grupo de funcionários internos que nada tinham a ver com o destacamento de choque do exterior, e que talvez não soubessem a espécie de homens que eles eram.

Aquilo era grotesco, concluiu Bond ao se aproximar de uma porta, na extremidade do corredor, perigosamente grotesco, mas em nada adiantava pensar nisso no momento. Ele apenas podia seguir o papel que lhe tinha sido destinado. Pelo menos, aquilo era melhor do que os bastidores, na arena exterior da ilha.

Junto à porta, a irmã Lírio fez soar uma campainha. Já eram esperados e a porta abriu-se imediatamente. Uma encantadora jovem chinesa, de quimono lilás e branco, ficou a sorrir e a curvar-se, como se deve esperar que o façam as jovens chinesas. E, mais uma vez só havia calor e um sentimento de boas-vindas naquele rosto pálido como uma for. A irmã Lírio exclamou: — Aqui estão eles, finalmente, May! São o senhor e a senhora John Bryce. E sei que ambos devem estar exaustos, por isso devemos levá-los imediatamente aos seus aposentos, para que possam repousar e dormir. — Voltando-se para Bond: — Esta é May, muito boazinha. Ela tratará de ambos. Qualquer coisa que queiram é só tocar a campainha que May atenderá. É uma espécie de favorita de todos os nossos hóspedes.

Hóspedes!, pensou Bond. Essa é a segunda vez que ela usa a palavra. Sorriu polidamente para a jovem, e disse;

— Muito prazer; sim, certamente que gostaríamos de ir para os nossos aposentos.

May envolveu-os num cálido sorriso, e disse em voz baixa e atraente: — Espero que ambos se sintam bem, sr. Bryce. Tomei a liberdade de mandar vir uma refeição assim que soube que os senhores iam chegar. Vamos...? — Corredores saiam para a esquerda e a direita de portas duplas de elevadores, instalados na parede oposta. A jovem adiantou-se, caminhando na frente, para a direita, logo seguida de Bond e Honeyehile, que tinham atrás a irmã Lírio.

Ao longo do corredor, dos dois lados, viam-se portas numeradas. A decoração era feita no mais pálido cor-de-rosa, com um tapete cinza-pombo. Os números nas portas eram superiores a dez. O corredor terminava abruptamente, com duas portas, uma em frente a outra, com a numeração catorze e quinze. A irmã May abriu a porta catorze e o casal a seguiu, entrando na peça.

Era um lindo quarto de casal, em moderno estilo Mia-mi, com paredes verde-escuro, chão encerado de mogno escuro, com um ou outro espesso tapete branco e bem desenhado mobiliário de bambu com um tecido “chintz” de grandes rosas vermelhas sobre fundo branco. Havia uma porta de comunicação para um quarto de vestir masculino e outra que dava para um banheiro moderno e extremamente luxuoso, com uma banheira de descida e um bidê.

Era como se tivessem sido introduzidos num apartamento do mais moderno hotel da Flórida, com exceção de dois detalhes que não passaram despercebidos a Bond. Não havia janelas e nenhuma maçaneta interior nas portas.

May olhou com expressão de expectativa, de um para o outro.

Bond voltou-se para Honeyehile e sorriu-lhe: — Parece muito confortável, não acha, querida?

A jovem brincava com a barra da saia e fez um sinal de assentimento sem olhar para Bond.

Ouviu-se uma tímida batida na porta e outra jovem, tão linda quanto May, entrou carregando uma bandeja que se equilibrava sobre as palmas das mãos. A jovem descansou a bandeja sobre a mesa do centro e puxou duas cadeiras. Retirou a toalha de linho imaculadamente limpa e saiu. Sentiu-se um delicioso cheiro de fiambre e café.

May e a irmã Lírio também se encaminharam para a porta. A mulher mais idosa se deteve por um instante e disse:

— E agora nós os deixaremos em paz. Se desejarem alguma coisa, basta tocar a campainha. Os interruptores estão ao lado da cama. Ah, outra coisa, poderão encontrar roupa limpa nos aparadores. Receio que sejam apenas de estilo chinês,

— acrescentou, como a desculpar-se —, mas espero que os tamanhos satisfaçam. A rouparia só recebeu as medidas ontem à noite. O Dr. deu ordens severas para que os senhores não fossem perturbados. Ficará encantado se puderem reunir-se a ele, esta noite, para o jantar. Deseja, entretanto, que tenham todo o resto do dia à vontade, a fim de que melhor se ambientem, compreendem? — Fez uma pausa e olhou para um e para outro, com um sorriso indagador. — Posso dizer que os senhores...?

— Sim, por favor, — disse Bond. — Pode dizer ao D., que teremos muito prazer em jantar com ele.

— Oh, sei que ficará contente. — Com uma derradeira mesura, as duas chinesas se retiraram e fecharam a porta.

Bond voltou-se para Honeyehile, que parecia embaraçada e ainda evitava os seus olhos. Ocorreu então a Bond que talvez jamais tivesse ela tido um tratamento tão cortês ou visto tanto luxo em sua vida. Para ela, tudo aquilo devia ser muito mais estranho e aterrador do que o que tinham passado ao lado de fora. Ela continuou na mesma posição, brincando com a barra da saia. Podiam-se notar vestígios de suor seco, sal e poeira em seu rosto. Suas pernas nuas estavam sujas e Bond observou que os dedos de seus pés se moviam, suavemente, ao pisarem nervosamente o maravilhoso e espesso tapete.

Bond riu. Riu com gosto ao pensamento de que os temores da jovem tivessem sido abafados pelas preocupações de etiqueta e comportamento, e riu-se também da figura que ambos faziam — ela em farrapos e ele com a suja camisa azul, as calças pretas e os sapatos de lona enlameados.

Aproximou-se dela e segurou-lhe mãos. Estavam frias. Disse: — Honey, somos um par de espantalhos, mas há apenas um problema básico. Devemos tomar o nosso desjejum primeiro, enquanto está quente, ou tiraremos antes esses farrapos e tomaremos um banho, tomando a nossa refeição fria? Não se preocupe com mais nada. Estamos aqui nessa maravilhosa casinha e isto é tudo o que importa. O que faremos, então?

Ela sorriu hesitante. Seus olhos azuis fixavam-se no rosto dele, na ânsia de obter segurança. Depois disse: — Você não está preocupado com o que nos possa acontecer? — Fez um sinal para o quarto e acrescentou: — Não acha que tudo isso pode ser uma armadilha?

— Se se trata de uma armadilha, já caímos nela. Agora nada mais podemos fazer senão comer a isca. A única questão que subsiste é a de saber se a comeremos quente ou fria. — Apertou-lhe as mãos e continuou: — Seriamente, Honey. Deixe as preocupações comigo. Pense apenas onde estávamos apenas há uma hora. Isso aqui não é melhor? Agora, decidamos a única coisa realmente importante. Banho ou desjejum?

Ela respondeu com relutância: — Bem, se você acha... Quero dizer — preferiria antes lavar-me. — Mas logo acrescentou: — Você terá que ajudar-me. — E sacudiu a cabeça em direção ao banheiro, dizendo: Não sei como mexer numa coisa dessas. Como é que se faz?

Bond respondeu com toda seriedade: — É muito fácil. Vou preparar tudo para você. Enquanto você estivar tomando o seu banho tomarei o meu desjejum. Ao mesmo tempo tratarei de fazer com que o seu não esfrie.

Bond aproximou-se de um dos armários embutidos e abriu a porta. No interior havia uma meia dúzia de quimonos, alguns de seda e outros de linho. Apanhou um de linho, ao acaso. Depois, voltando-se para ela, disse: — Tire suas roupas e meta-se nisso aqui, enquanto preparo o seu banho. Mais tarde você escolherá as coisas que preferir, para a cama e para o jantar.

Ela respondeu com gratidão: — Oh, sim, James. Se você apenas me mostrasse... — E logo começou a desabotoar a saia.

Bond pensou em tomá-la nos braços e beijá-la, mas, ao invés disso, disse abruptamente: — ótimo, Honey — e, adiantando-se para o banheiro, abriu as torneiras.

Havia de tudo naquele banheiro: essência para banhos Floris Lime, para homens, e pastilhas de Guarlain para o banho de senhoras. Esfarelou uma pastilha na água e imediatamente o banheiro perfumou-se como uma loja de orquídeas. O sabonete era o Sapoceti de Guarlain “Fleurs des Alpes”. Num pequeno armário de remédios, atrás de um espelho, em cima da pia, podiam-se encontrar tubos de pasta, escovas de dente e palitos “Steradent”, água “Rose” para lavagem bucal, aspirina e leite de magnésia. Havia também um aparelho de barbear elétrico, loção “Lentheric” para barba, e duas escovas de náilon para cabelos e pentes. Tudo era novo e ainda não tinha sido tocado.

Bond olhou para o seu rosto sujo e sem barbear, no espelho, e riu sardonicamente para os próprios olhos, cinzentos, de pária queimado pelo sol. O revestimento da pílula certamente que era do melhor açúcar. Seria inteligente esperar que o remédio, no interior daquela pílula, fosse dos mais amargos.

Tocou a água, com a mão, a fim de sentir a temperatura. Talvez estivesse muito quente para quem jamais tinha tomado antes um banho quente. Deixou então que corresse um pouco mais de água fria. Ao inclinar-se, sentiu que dois braços lhe eram passados em torno do pescoço. Endireitou-se. Aquele corpo dourado resplandecia no banheiro todo revestido de ladrilhos brancos. Ela beijou-o impetuosamente nos lábios. Ele passou-lhe os braços à volta da cintura e esmagou-a de encontro a seu corpo, com o coração aos pulos. Ela disse sem fôlego, ao seu ouvido: — Achei estranhas as roupas chinesas, mas de qualquer maneira você disse à mulher que nós éramos casados.

Uma das mãos de Bond estava pousada sobre o seu seio esquerdo, cujo mamilo estava completamente endurecido pela paixão. O ventre da jovem se comprimia contra o seu. Por que não? Por que não? Não seja tolo! Este é um momento louco para isso. Vocês dois estão diante de um perigo mortal. Você deve continuar frio como gelo, para ter alguma possibilidade de se livrar dessa enrascada. Mais tarde! Mais tarde! Não seja fraco.

Bond retirou a mão do seio dela e espalmou-a à volta de seu pescoço. Esfregou o rosto de encontro ao dela e depois aproximou a boca da boca da jovem e deu-lhe um prolongado beijo.

Afastou-se depois e manteve-a à distância de um braço. Por um momento ambos se olharam, com os olhos brilhando de desejo. Ela respirava ofegantemente, com os lábios entreabertos, de modo que ele podia ver-lhe o brilho dos dentes. Ele disse com a voz trêmula: — Honey, entre no banho antes que eu lhe dê uma surra.

Ela sorriu e sem nada dizer entrou na banheira e deitou-se em todo seu comprimento. Do fundo da banheira ergueu os olhos para ele. Os cabelos louros, em seu corpo, brilhavam como moedas de ouro. Ela disse provocadoramente: — Você tem que me esfregar. Não sei como devo fazer, e você terá que mostrar-me.

Bond respondeu desesperadamente: — Cale a boca, Honey, e deixe de namoros. Apanhe a esponja, o sabonete e comece logo a se esfregar. Que diabo! Isso não é o momento de se fazer amor. Vou tomar o meu desjejum. — Esticou a mão para a porta e segurou na maçaneta. Ela disse docemente: — James! — Ele olhou para trás e viu que ela lhe fazia uma careta, com a língua de fora. Retribuiu com uma careta selvagem e bateu a porta com força.

Em seguida, Bond dirigiu-se para o quarto de vestir e deixou-se ficar durante algum tempo, de pé, no centro da peça, esperando que as batidas de seu coração se acalmassem. Esfregou as mãos no rosto e sacudiu a cabeça, procurando esquecê-la.

Para clarear a mente, percorreu ainda cuidadosamente as duas peças, procurando saídas, possíveis armas, microfones, qualquer coisa enfim que lhe aumentasse o conhecimento da situação em que se achava. Nada disso, entretanto, pôde encontrar. Na parede havia um relógio elétrico que marcava oito e meia e uma série de botões de campainhas, ao lado da cama de casal. Esses botões traziam a indicação de “Sala de serviço”, “cabeleireiro”, “manicure”, “empregada”. Não havia telefone. Bem no alto, a um canto de ambas as peças, viam-se as grades de um pequeno ventilador. Cada uma dessas grades era de dois pés quadrados. Tudo inútil. As portas pareciam ser feitas de algum metal leve, pintadas para combinarem com as paredes. Bond jogou todo o peso de seu corpo contra uma delas, mas ela não cedeu um só milímetro. Bond esfregou o ombro. Aquele lugar era uma verdadeira prisão. Não adiantava discutir a situação. A armadilha tinha-se fechado hermèticamente sobre eles. Agora, a única coisa que restava aos ratos era tirarem o melhor proveito possível da isca de queijo.

Bond sentou-se à mesa do desjejum, sobre a qual estava uma grande jarra com suco de abacaxi, metida num pequeno balde de prata cheio de cubos de gelo. Serviu-se rapidamente e levantou a tampa de uma travessa. Ali estavam ovos mexidos sobre torradas, quatro fatias de toucinho defumado, um rim grelhado e o que parecia quatro salsichas inglesas de carne de porco. Havia também duas torradas quentes, pãezinhos conservados quentes dentro de guardanapos, geléia de laranja e morango e mel. O café estava quase fervendo numa grande garrafa térmica, e o creme exalava um odor fresco e agradável.

Do banheiro vinham as notas da canção “Marion” que a jovem estava cantarolando. Bond resolveu não dar ouvidos à cantoria e concentrou-se nos ovos.

Dez minutos depois, Bond ouviu que a porta do banheiro se abria. Descansou uma torrada que tinha numa das mãos e cobriu os olhos com a outra. Ela riu e disse: — Ele é um covarde. Tem medo de uma simples jovem. — Em seguida Bond ouviu-a a remexer nos armários. Ela continuava falando, em parte consigo mesma: — Não sei porque ele está assustado. Naturalmente que se eu lutasse com ele facilmente o dominaria. Talvez esteja com medo disso. Talvez não seja realmente muito forte, embora seus braços e peito pareçam bastante rijos. Contudo, ainda não vi o resto. Talvez seja fraco. Sim, deve ser isso. Essa é a razão pela qual não ousa despir-se na minha frente. Hum, agora vamos ver, será que ele gostaria de mim com essas roupas? — Ela elevou a voz: — Querido James, você gostaria de me ver de branco, com pássaros azul-pálido esvoaçando sobre o meu corpo?

— Sim, bolas! Agora acabe com essa conversa e venha comer. Estou começando a sentir sono.

Ela soltou uma exclamação: — Oh, se você quer dizer que já está na hora de irmos para a cama, naturalmente que me apressarei.

Ouviu-se uma agitação de passos apressados e Bond logo a via sentar-se diante de si. Ele deixou cair as mãos e ela sorriu-lhe. Estava linda. Seu cabelo estava escovado e penteado de um dos lados caindo sobre o rosto, e do outro com as madeixas puxadas para trás da orelha. Sua pele brilhava de frescura e os grandes olhos azuis resplandeciam de felicidade. Agora Bond estava gostando daquele nariz quebrado. Tinha-se tornado parte de seus pensamentos relativamente a ela, e subitamente lhe ocorreu perguntar-se por que estaria ele triste quando ela era tão imaculadamente bela quanto tantas outras lindas jovens. Sentou-se circunspectamente, com as mãos no colo, e a metade dos seios aparecendo na abertura do quimono.

Bond disse severamente: — Agora, ouça, Honey. Você está maravilhosa, mas esta não é a maneira de usar-se um quimono. Feche-o no corpo, prenda-o bem e deixe de tentar parecer uma prostituta. Isso simplesmente não são bons modos à mesa.

— Oh, você não passa de um boneco idiota. — E ajeitou o quimono, fechando-o um pouco, em uma ou duas polegadas. — Por que você não gosta de brincar? Gostaria de brincar de estar casada.

— Não à hora do desjejum — respondeu Bond com firmeza. — Vamos, coma logo. Está delicioso. De qualquer maneira estou muito sujo, e agora vou fazer a barba e tomar um banho. — Levantou-se, deu volta à mesa e beijou-lhe o alto da cabeça. — E quanto a essa história de brincar, como você diz, gostaria mais de brincar com você do que com qualquer outra pessoa do mundo. Mas não agora. — Sem esperar pela resposta, dirigiu-se ao banheiro e fechou a porta.

Bond barbeou-se e tomou um banho de chuveiro. Sentia-se desesperadamente sonolento. O sono chegava-lhe, de modo que de quando em quando tinha que interromper o que fazia e inclinar a cabeça, repousando-a entre os joelhos. Quando começou a escovar os dentes, o seu estado era tal que mal podia fazê-lo. Estava começando a reconhecer os sintomas. Tinha sido narcotizado. A coisa teria sido posta no suco de abacaxi ou no café? Este era um detalhe sem importância. Aliás, nada tinha importância. Tudo o que queria fazer era estender-se naquele chão de ladrilhos e fechar os olhos. Assim mesmo, dirigiu-se cambaleante para a porta, esquecendo-se de que estava nu. Isso também pouca importância tinha. A jovem já tinha terminado a refeição e agora estava na cama. Continuou trôpego, até ela, segurando-se nos móveis. O quimono tinha sido abandonado no chão e ela dormia pesadamente, completamente nua, sob um simples lençol.

Bond olhou para o travesseiro, ao lado da jovem. Não! Procurou o interruptor e apagou as luzes. Agora teve que se arrastar pelo chão até chegar ao seu quarto. Chegou até junto de sua cama e atirou-se nela. Com grande esforço conseguiu ainda esticar o braço, tocar o interruptor e tentar apagar a lâmpada do criado-mudo. Mas não o conseguiu: sua mão deslizou, atirou o abajur ao chão e a lâmpada espatifou-se. Com um derradeiro esforço, Bond virou-se ainda no leito e adormeceu profundamente.

Os números luminosos do relógio elétrico, no quarto de casal, anunciavam nove e meia.

Às dez horas, a porta do quarto abriu-se suavemente. Um vulto muito alto e magro destacava-se na luz do corredor. Era um homem. Talvez tivesse dois metros de altura. Permaneceu no limiar da porta, com os braços cruzados, ouvindo. Dando-se por satisfeito, caminhou vagarosamente pelo quarto e aproximou-se da cama. Conhecia perfeitamente o caminho. Curvou-se sobre o leito e ouviu a serena respiração da jovem. Depois de um momento, tocou em seu próprio peito e acionou um interruptor. Imediatamente um amplo feixe de luz difusa projetou-se na cama. O farolete estava preso ao corpo do homem por meio de um cinto que o fixava à altura do esterno.

Inclinou-se novamente para a frente, de modo que a luz clareou o rosto da jovem.

O intruso examinou aquele rosto durante alguns minutos. Uma de suas mãos avançou, apanhou a orla do lençol, à altura do queixo da jovem, e puxou-o lentamente até os pés da cama. Mas a mão que puxara aquele lençol não era u’a mão. Era um par de pinças de aço muito bem articuladas na extremidade de uma espécie de talo metálico que desaparecia dentro de uma manga de seda negra. Era u’a mão mecânica.

O homem contemplou durante longo tempo aquele corpo nu, deslocando o seu peito de um lado para outro, de modo que todo o leito fosse submetido ao feixe luminoso. Depois, a garra saiu novamente de sob aquela manga e delicadamente levantou a ponta do lençol, puxando-o dos pés da cama até recobrir todo o corpo da jovem. O homem demorou-se ainda por um momento a contemplar o rosto adormecido, depois apagou o farolete e atravessou silenciosamente o quarto em direção à porta aberta, além da qual estava Bond dormindo.

O homem demorou-se mais tempo ao lado do leito de Bond. Perscrutou cada linha, cada sombra do rosto moreno e quase cruel que jazia quase sem vida, sobre o travesseiro. Observou a circulação à altura do pescoço e contou-lhe as batidas; depois, quando puxou o lençol para baixo, fez o mesmo na área do coração. Estudou a curva dos músculos, nos braços de Bond e nas coxas, e considerou pensativo a força oculta no ventre musculoso de Bond. Chegou até mesmo a curvar-se sobre a mão direita de Bond, estudando-lhe cuidadosamente as linhas da vida e do destino.

Por fim, com grande cuidado, a pinça de aço puxou novamente o lençol, desta vez para cobrir o corpo de Bond até o pescoço. Por mais um minuto o elevado vulto permaneceu ao lado do homem adormecido, depois se retirou rapidamente, ganhando o corredor, enquanto a porta se fechava com um estalido metálico e seco.


CONTINUA

XI - VIDA NO CANAVIAL


Seriam cerca de oito horas, pensou Bond. A não ser o coaxar dos sapos, tudo estava mergulhado em silêncio. No canto mais distante da clareira, ele podia vislumbrar o vulto de Quarrel.

Podia-se ouvir o tinir metálico, enquanto ele se ocupava em desmontar e secar a sua “Remington”.

Por entre as árvores podiam-se ver também as luzes distantes, vindas do depósito de guano, riscar caminhos luminosos e festivos sobre a superfície escura do lago. O desagradável vento desaparecera e o abominável cenário estava mergulhado em trevas. Estava bastante fresco. As roupas de Bond tinham secado no corpo. A comida tinha aquecido o seu estômago. Ele experimentou uma agradável sensação de conforto, sonolência e paz. O dia seguinte ainda estava muito longe e não apresentava problemas, a não ser uma boa dose de exercício físico. A vida, subitamente, pareceu-lhe fácil e boa.

A jovem estava a seu lado, metida no saco de dormir. Estava deitada de costas, com a cabeça descansando nas mãos, e olhando para o teto de estrelas. Ele apenas conseguia divisar os pálidos contornos de seu rosto. De repente, ela disse: James, você prometeu dizer-me o que significava tudo isso. Vamos. Eu não dormirei enquanto você não o disser.

Bond riu. — Eu direi se você também disser. Também quero saber o que você pretende.

— Pois não, não tenho segredos: mas você deve falar primeiro.

— Está certo. — Bond puxou os joelhos até a altura do queixo e passou os braços à volta deles. — Eu sou uma espécie de policial. Eles me enviam de Londres quando há alguma coisa de estranho acontecendo em alguma parte do mundo e que não interessa a ninguém. Bem, não faz muito tempo, um dos funcionários do Governador, em Kingston, um homem chamado Strangways, aliás meu amigo, desapareceu. Sua secretária, que era uma linda jovem, também desapareceu sem deixar vestígios. Muitos pensaram que eles tivessem fugido juntos, mas eu não acreditei nisso. Eu...”

Bond contou tudo com simplicidade, falando em homens bons e maus, como numa história de aventuras lida em algum livro. Depois terminou: Como você vê, Honey, temos de voltar a Jamaica, amanhã à noite, todos nós, na canoa, e então o Governador nos dará ouvidos e enviará um destacamento de soldados para apanhar este chinês. Espero que isso terá como conseqüência levá-lo à prisão. Ele com certeza também sabe disso, e essa é a razão pela qual procura aniquilar-nos. Essa é a história. Agora é a sua vez.

A jovem disse: Você parece viver uma vida muita excitante. Sua mulher não deve gostar que você fique fora tanto tempo. Ela não tem medo de que você se fira?

— Não sou casado. A única que se preocupa com a possibilidade de que eu me fira é a minha companhia de seguros.

Ela continuou sondando: Mas suponho que você tenha namoradas.

— Não permanentes.

— Oh!

Fez-se uma pausa. Quarrel se aproximou e disse: “Capitão, farei o primeiro quarto, se for melhor. Estarei na extremidade da restinga e virei chamá-lo à meia-noite. Então talvez o senhor possa ir até as cinco horas, quando nós nos poremos em marcha. Precisamos estar fora daqui antes que clareie o dia.

— Está bem — respondeu Bond. — Acorde-me se você vir alguma coisa. O revólver está em ordem?

— Perfeito — respondeu Quarrel com evidente mostra de contentamento. Depois, dirigindo-se à jovem disse com leve tom de insinuação: — Durma bem, senhorita. Em seguida, desapareceu silenciosamente nas sombras.

— Gosto de Quarrel — disse a jovem. E, após uma pausa: — Você quer realmente saber alguma coisa a meu respeito? A história não é tão excitante quanto a sua.

— É claro que quero. E não omita nada.

— Não há nada a omitir. Você poderia escrever toda a história de minha vida nas costas de um cartão postal. Para começar, nunca saí de Jamaica. Vivi toda a minha vida num lugar chamado Beau Desert, na costa setentrional, nas proximidades do Porto Morgan.

Bond riu. — É estranho: posso dizer o mesmo; pelo menos por enquanto. Não notei você pela região. Você vive em cima de uma árvore?

— Ah, imagino que você tenha ficado na casa da praia. Eu nunca chego até ali. Vivo na Casa Grande.

— Mas nada ficou dela. É uma ruína no meio dos canaviais.

— Eu vivo na adega. Tenho vivido ali desde a idade de cinco anos. Depois a casa se incendiou e meus pais morreram. Nada me lembro deles, por isso você não precisa manifestar pesar. A princípio vivi ali com a minha ama negra, mas depois ela morreu, quando eu tinha apenas quinze anos. Nos últimos cinco anos tenho vivido ali sozinha.

— Nossa Senhora! — Bond estava boquiaberto. — Mas não havia ninguém para tomar conta de você? Os seus pais não deixaram nenhum dinheiro?

— Nem um tostão. — Não havia o mínimo traço de amargura na voz da jovem — talvez orgulho, se houvesse alguma coisa. — Você sabe, os Riders eram uma das mais antigas famílias de Jamaica. O primeiro Rider recebera de Cromwell as terras de Beau Desert, por ter sido um dos que assinaram o veredicto de morte contra o rei Carlos. Ele construiu a Casa Grande e minha família viveu ora nela ora fora dela, desde aquela época. Mas depois veio a decadência do açúcar e eu acho que a propriedade foi pessimamente administrada, e, ao tempo em que meu pai tomou conta da herança, havia somente dívidas — hipotecas e outros ônus. Assim, quando meu pai e minha mãe morreram a propriedade foi vendida. Eu pouco me importei, pois era muito jovem. Minha ama deve ter sido maravilhosa. Quiseram que alguém me adotasse, mas a minha babá reuniu os pedaços de mobília que não tinham sido queimados e com eles nós nos instalamos da melhor forma no meio daquelas ruínas. Depois de algum tempo ninguém mais veio interferir conosco. Ela cosia um pouco e lavava para algumas freguesas da aldeia, ao mesmo tempo que plantava bananas e outras coisas, sem falar do grande pé de fruta-pão que havia diante da casa. Comíamos o que era a ração habitual do povo de Jamaica. E havia os pés de cana-de-açúcar à nossa volta. Ela fizera também uma rede para apanhar peixes, a qual nós recolhíamos todos os dias. Tudo corria bem e nós tínhamos o suficiente para comer. Ela ensinou-me a ler e escrever, como pôde. Tínhamos uma pilha de velhos livros que escapara ao incêndio, inclusive uma enciclopédia. Comecei com o A quando tinha apenas oito anos, e cheguei até o meio do T. — Ela disse um tanto na defensiva: — Aposto que sei mais do que você sobre muitas coisas.

— Estou certo de que sim. — Bond estava perdido na visão daquela jovem de cabelos de linho errando pelas ruínas de uma grande construção, com uma obstinada negra a vigiá-la e a chamá-la para receber as lições que deveriam ter sido um mistério para ela mesma. — Sua ama deve ter sido uma criatura extraordinária.

— Ela era um amor. — Era uma afirmação peremptória. — Pensei que fosse morrer quando ela faleceu. As coisas não foram tão fáceis para mim depois disso. Antes eu levava uma vida de criança, mas subitamente tive que crescer e fazer tudo por mim mesma. E os homens tentaram apanhar-me e atingir-me. Diziam que queriam fazer amor comigo. — Fez uma pausa e acrescentou: — Eu era bonita naquela época. Bond disse muito sério:

— Você é uma das jovens mais belas que já vi.

— Com este nariz? Não seja tolo.

— Você não compreende. — Bond tentou encontrar palavras nas quais ela pudesse crer. — É claro que qualquer pessoa pode ver que o seu nariz está quebrado; mas desde esta manhã dificilmente eu pude notá-lo. Quando se olha para uma pessoa, olha-se para os seus olhos ou para a sua boca. Nesses dois pontos se encontram a expressão. Um nariz quebrado não tem maior significação do que uma orelha torta. Narizes e orelhas são peças do mobiliário facial. Algumas são mais bonitas do que outras, mas não são tão importantes quanto o resto. Se você tivesse um nariz bonito, tão bonito como o resto, você seria a jovem mais bela de Jamaica.

— Você é sincero? — Sua voz era ansiosa. — Você acha que eu poderia ser bela? Sei que muita coisa em mim está bem, mas quando olho no espelho só vejo o meu nariz quebrado. Estou certa de que o mesmo ocorre com outras pessoas que são, que são — bem — mais ou menos aleijadas.

Bond disse com impaciência: — Você não é aleijada! Não diga tolices. E aliás você pode endireitá-lo mediante uma simples operação. Basta que você vá aos Estados Unidos e a coisa levará apenas uma semana.

Ela disse com irritação: — Como é que você quer que eu faça isso? Tenho cerca de quinze libras debaixo de uma pedra, na minha adega. Tenho ainda três saias, três blusas, uma faca e uma panela de peixe. Conheço muito bem essas operações. O médico de Porto Maria já pediu informações para mim. Ele é um homem muito bom e escreveu para os Estados Unidos. Pois para que a operação seja bem feita, eu teria que gastar cerca de quinhentas libras, sem falar da passagem para Nova York, a conta do hospital e tudo o mais.

Sua voz tornou-se desesperançada: — Como é que você espera que eu possa ter todo esse dinheiro?

Bond já decidira sobre o que teria de ser feito, mas no momento apenas disse ternamente: — Bem, espero que se possam encontrar meios; mas, de qualquer maneira, prossiga com a sua história. Ela é muito excitante — muito mais interessante do que a minha. Você tinha chegado ao ponto em que a sua ama morreu. O que aconteceu depois?

A jovem recomeçou com relutância.

— Bem, a culpa é sua por ter interrompido. E você não deve falar de coisas que não compreende. Suponho que as pessoas lhe digam que você é simpático. Você deve também ter todas as namoradas que desejar. Bem, isso não aconteceria se você fosse vesgo ou tivesse um lábio leporino. — Na verdade, ele pôde ouvir o sorriso em sua voz: — Acho que quando voltarmos eu irei ter com o feiticeiro para que lhe faça uma mandinga e lhe dê alguma coisa assim. — E ela acrescentou tristemente: — Dessa forma, nós seremos mais parecidos.

Bond estendeu o braço e sua mão tocou nela: — Eu tenho outros planos. Mas continuemos, quero ouvir o resto da sua história.

— Bem, — disse a jovem com um suspiro. — Eu terei que me atrasar um pouco. Como você sabe, toda a propriedade é representada pela cana-de-açúcar e pela velha casa que está situada no meio da plantação. Bem, umas duas vezes por ano eles cortam a cana e mandam-na para o moinho. E quando eles o fazem, todos os animais e insetos que vivem nos canaviais entram em pânico e a maioria deles têm as suas tocas destruídas e são mortos. Na época da safra, alguns deles começaram a vir para as ruínas da casa, onde se escondiam. No princípio, minha babá ficava aterrorizada, pois lá vinham os mangustos, as cobras e os escorpiões, mas eu preparei dois quartos da adega para recebê-los. Não me assustei com eles, e eles nunca me fizeram mal. Pareciam compreender que eu estava cuidando deles. E devem ter contado aquilo aos seus amigos, ou alguma coisa parecida, pois depois de algum tempo era perfeitamente natural que todos viessem acantonar-se em seus dois quartos, onde ficavam até que os canaviais começassem novamente a crescer, quando então iam saindo e voltando para os campos. Dei-lhes toda a comida que podíamos pôr de lado, quando eles ficavam conosco, e todos se portavam muito bem, a não ser por algum odor e às vezes uma ou outra luta entre si. Mas eram muito mansos comigo. Naturalmente os cortadores de cana perceberam tudo e viam-me andando pelo lugar com cobras à volta do meu pescoço, e assim por diante, a ponto de ficarem aterrorizados comigo e me considerarem uma feiticeira. Por causa disso, eles nos deixaram completamente isoladas. Ela fez uma pausa, e depois recomeçou:

— Foi assim que aprendi tanta coisa sobre animais e insetos. Eu costumava ainda passar muito tempo no mar, aprendendo coisas sobre os animais marinhos, assim como sobre os pássaros. Se se chega a saber o que todas essas criaturas gostam de comer e do que têm medo, pode-se muito bem fazer amizade com elas. — Levantou os olhos para Bond e disse: Você não sabe o que perde ignorando todas essas coisas.

— Receio que perca muito — respondeu Bond com sinceridade. — Suponho que eles sejam muito melhores e mais interessantes que os homens.

Sobre isso nada sei — respondeu a jovem pensativa-mente. — Não conheço muitas pessoas. A maioria das que conheci foram detestáveis, mas acho que deve haver criaturas interessantes também. — Fez uma pausa, e prosseguiu: — Nunca pensei realmente que chegasse a gostar de alguma pessoa como gosto dos animais. Com exceção da babá, naturalmente. Até que... — Ela se interrompeu com um sorriso de timidez. — Bem, de qualquer forma, nós vivemos muito felizes juntas, até que eu fiz quinze anos, quando então a babá morreu e as coisas se tornaram muito difíceis. Havia um homem chamado Mander. Um homem horroroso. Era o capataz branco que servia aos proprietários da plantação. Ele vivia me procurando. Queria que eu fosse viver com ele, em sua casa de Porto Maria.

Eu o odiava, e costumava esconder-me sempre que ouvia o seu cavalo aproximando-se do canavial. Certa noite ele veio a pé e eu não o ouvi. Estava bêbado. Entrou na adega e lutou comigo porque não queria fazer o que ele desejava. Você sabe, as coisas que fazem as pessoas quando estão apaixonadas.

— Sim, já sei.

— Tentei matá-lo com a minha faca, mas ele era muito forte e deu-me um soco tão forte no rosto que me quebrou o nariz. Deixou-me inconsciente e acho que fez alguma coisa comigo. Sei que ele fez mesmo. No dia seguinte eu quis me matar quando vi o meu rosto e verifiquei o que ele me havia feito. Pensei que iria ter um filho. Teria sem dúvida me matado se tivesse tido um filho daquele homem. Em todo caso, não tive, e tudo continuou assim. Fui ao médico e ele fez o que pôde com o meu nariz e não me cobrou nada. Quanto ao resto, eu nada lhe contei, pois estava muito envergonhada. O homem não voltou mais. Eu esperei e nada fiz até a próxima colheita de cana-de-açúcar. Tinha um plano. Estava esperando que as aranhas viúvas-negras viessem procurar abrigo. Um belo dia elas chegaram. Apanhei a maior das fêmeas e á deixei numa caixa sem nada para comer. As fêmeas são terríveis. Então esperei que fizesse uma noite escura, sem luar. Na primeira noite dessas, apanhei a caixa com a aranha e caminhei até chegar à casa do homem. Estava muito escuro e eu me sentia aterrorizada com a possibilidade de encontrar algum assaltante pela estrada, mas não houve nada. Esperei em seu jardim, oculta entre os arbustos, até que ele se recolheu à cama. Então subi por uma árvore e ganhei a sacada; aguardei até que ele começasse a roncar e depois entrei pela janela. Ele estava nu, estendido na cama, sob o mosquiteiro. Levantei uma aba do filó, abri a caixa e sacudi-lhe a aranha sobre o ventre. Depois saí e voltei para casa.

— Deus do céu! — exclamou Bond reverentemente. — O que aconteceu com o homem?

Ela respondeu com satisfação: — Levou uma semana para morrer. Deve ter-lhe doído terrivelmente. Você sabe, a mordida dessa aranha é pavorosa. Os feiticeiros dizem que não há nada que se lhe compare. — Ela fez uma pausa, e como Bond não fizesse nenhum comentário, acrescentou: — Você não acha que eu fiz mal, não é?

— Bem, não faça disso um hábito — respondeu Bond suavemente. — Mas não posso culpá-la, diante do que ele tinha feito. E, depois, o que aconteceu?

— Bem, depois me estabeleci novamente — sua voz era firme. — Tive que me concentrar na tarefa de obter alimento suficiente, e naturalmente. — Acrescentou persuasivamente: — Eu tinha de fato um nariz muito bonito, antes. Você acha que os médicos podem torná-lo igualzinho ao que era antes?

— Eles poderão fazê-lo de qualquer forma que você quiser — disse Bond em tom definitivo. — Como é que você ganhou dinheiro?

— Foi graças à enciclopédia. Li nela que há pessoas que gostam de colecionar conchas marinhas e que as conchas raras podiam ser vendidas. Falei com o mestre-escola local, sem contar-lhe naturalmente o meu segredo, e ele descobriu para mim que havia uma revista norte-americana chamada “Nautilus”, dedicada aos colecionadores de conchas. Eu tinha apenas o dinheiro suficiente para tomar uma assinatura daquela revista e comecei a procurar as conchas que as pessoas pediam em seus anúncios. Escrevi a um comerciante de Miami e ele começou a comprar as minhas conchas. Foi emocionante. Naturalmente que cometi alguns erros, no princípio. Pensei, por exemplo, que as pessoas gostariam das conchas mais bonitas, mas esse não era o caso. Freqüentemente elas preferiam as conchas mais feias. Depois, quando achava conchas raras, punha-me a limpá-las e poli-las a fim de torná-las mais bonitas, mas isso também foi um erro. Os colecionadores querem as conchas exatamente como saem do mar, com o animal em seu interior também. Então consegui algum formol com o médico e o punha entre as conchas vivas, para que elas não tivessem mau cheiro, e depois mandava-as para o tal comerciante de Miami. Só aprendi bem o negócio de um ano para cá e já consegui quinze libras. Consegui esse resultado agora que sei como é que eles querem as conchas e se tivesse sorte, poderia fazer pelo menos cinqüenta libras por ano. Então, em dez anos poderia ir aos Estados Unidos e operar-me. Mas, continuou ela com intenso contentamento, tive uma notável maré de sorte. Fui a Crab Key pelo Natal, onde já tinha estado antes. Mas dessa vez eu encontrei essas conchas purpúreas. Não parecem grande coisa, mas eu enviei uma ou duas para Miami e o comerciante escreveu-me para dizer que compraria tantas dessas conchas quantas eu pudesse encontrar, e ao preço de até cinco dólares pelas perfeitas. Disse-me ainda que eu deveria manter segredo sobre o lugar de onde as tirava, pois de outra forma o “mercado seria estragado”, como disse ele, e os preços cairiam. É como se se tivesse uma mina de ouro particular. Agora serei capaz de juntar o dinheiro em cinco anos. Esse foi o motivo pelo qual tive grandes suspeitas de você, quando o encontrei na praia. Pensei que você tivesse vindo para roubar as minhas conchas.

— Você me deu um susto, pois pensei que você fosse a garota do Dr. No.

— Muito obrigada.

— Mas depois que você tiver feito a operação, o que irá fazer? Você não pode continuar vivendo numa adega durante toda a vida.

— Pensei em me tornar uma prostituta. — Ela o disse como se tivesse dito “enfermeira” ou “secretária”.

— Oh, o que é que você quer dizer com isso? — Talvez ela já tivesse ouvido aquela expressão sem compreendê-la bem.

— Uma dessas jovens que possuem um bonito apartamento e lindas roupas. Você sabe o que quero dizer — acrescentou ela com impaciência. — Os homens telefonam, marcam encontro, chegam, fazem amor e pagam. Elas ganham cem dólares de cada vez, em Nova Iorque, onde pensei começar. Naturalmente — admitiu — terei de fazer por menos, no começo, até que aprenda a trabalhar bem. Quanto é que vocês pagam pelas que não têm experiência?

Bond riu. — Francamente, não me lembro. Há muito tempo que não me encontro com essas mulheres.

Ela suspirou. — Sim, suponho que você possa ter tantas mulheres quantas queira, por nada. Suponho que apenas os homens feios paguem, mas isso é inevitável. Qualquer espécie de trabalho nas grandes cidades deve ser horrível. Pelo menos pode-se ganhar muito mais como prostituta. Depois, poderia voltar para Jamaica e comprar Beau Desert. Seria bastante rica para encontrar um marido bonito e ter alguns filhos. Agora que encontrei essas conchas, penso que poderia estar de volta a Jamaica quando tivesse trinta anos. Não seria formidável?

— Gosto da última parte do plano, mas não tenho muita confiança na primeira. De qualquer forma, como é que você veio a saber dessa história de prostitutas? Encontrou isso na letra P, na enciclopédia?

— Claro que não; não seja tolo. Há uns dois anos houve em Nova Iorque um escândalo sobre elas, envolvendo também um “play-boy” chamado Jelke. Ele tinha toda uma cadeia de prostitutas, e eu li muito sobre o caso no “Gleaner”. O jornal deu inclusive os preços que elas cobravam e tudo o mais. De qualquer forma, há milhares dessas jovens em Kingston, embora não sejam tão boas. Recebem apenas cinco xelins e não têm um lugar apropriado para fazer amor, a não ser no mato. Minha babá chegou a falar-me delas. Disse-me que eu não deveria imitá-las, pois do contrário seria muito infeliz. É claro que seria, recebendo apenas cinco xelins. Mas por cem dólares!...

Bond observou: — Você não conseguiria guardar todo esse dinheiro. Precisaria ter uma espécie de gerente para arranjar os homens, e teria ainda de dar gorjetas à polícia, para deixá-la em paz. Por fim, poderia ir facilmente parar na cadeia se tudo não corresse bem. Na verdade, com tudo o que você sabe sobre animais, bem poderia ter um ótimo emprego, cuidando deles, em algum jardim zoológico norte-americano. E o que me diz do Instituto de Jamaica? Tenho certeza de que você gostaria mais de trabalhar ali. E poderia também facilmente encontrar um bom marido. De qualquer forma, você não deve mais pensar em ser prostituta. Você tem um belo corpo e deve guardá-lo para o homem que amar.

— Isso é o que dizem as pessoas nos livros — disse ela com ar de dúvida. — A dificuldade está em que não há nenhum homem para ser amado em Beau Desert. — Depois acrescentou timidamente: — Você é o único inglês com quem jamais falei. Gostei de você desde o princípio, e não me importo de dizer-lhe essas coisas agora. Penso que há muitas pessoas das quais chegaria a gostar se saísse daqui.

— É claro que há. Centenas. E você é uma garota formidável; o que pensei assim que a vi.

— Assim que viu as minhas nádegas, você quer dizer. — Sua voz estava-se tornando sonolenta, mas cheia de prazer.

Bond riu. — Bem, eram nádegas maravilhosas. E o outro lado também era maravilhoso. — O corpo de Bond começou a se agitar com a lembrança de como a vira pela primeira vez. Depois de um instante, disse com mau humor: — Agora vamos, Honey. Está na hora de dormir. Haverá muito tempo para conversarmos quando voltarmos a Jamaica.

— Haverá? — perguntou ela desconsoladamente. — Você promete?

— Prometo.

Ele a viu agitar-se dentro do saco de dormir. Olhou para baixo e apenas pôde divisar o seu pálido perfil voltado para ele. Ela deixou escapar o profundo suspiro de uma criança, antes de adormecer.

Reinava silêncio na clareira e o tempo estava esfriando. Bond descansou a cabeça sobre os joelhos unidos. Sabia que era inútil procurar dormir, pois sua mente estava cheia dos acontecimentos do dia e dessa extraordinária mulher Tarzan que aparecera em sua vida. Era como se algum animal muito bonito se lhe tivesse dedicado. E não largaria os cordéis enquanto não tivesse resolvido os problemas dela. Estava sentindo isso. Naturalmente que não haveria grandes dificuldades para a maioria de seus problemas. Quanto à operação, seria fácil arranjá-la, e até mesmo encontrar-lhe um emprego, com o auxílio de amigos, e um lar. Tinha dinheiro e haveria de comprar-lhe roupas, mandaria ajeitar os seus cabelos e a lançaria no grande mundo. Seria divertido. Mas quanto ao resto? Quanto ao desejo físico que sentia por ela? Não se podia fazer amor com uma criança. Mas, seria ela uma criança? Não haveria nada de infantil relativamente ao seu corpo ou à sua personalidade. Era perfeitamente adulta e bem inteligente, a seu modo, e muito mais capaz de tomar conta de si mesma do que qualquer outra jovem de vinte anos que Bond conhecera.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um puxão em sua manga. A vozinha disse: — Por que você não vai dormir? Não está sentindo frio?

— Não; estou bem.

— Aqui no saco de dormir está bom e quente. Você quer vir para cá? Tem bastante lugar.

— Não, obrigado, Honey. Estou bem.

Houve uma pausa, e depois ela disse num sussurro: — Se você está pensando... Quero dizer — você não precisa fazer amor comigo... Eu poderia dormir de costas para o seu peito.

— Honey, querida, vá dormir. Seria maravilhoso dormir assim com você, mas não esta noite. De qualquer maneira, em breve terei de render Quarrel.

— Muito bem, — disse ela com voz mal humorada. — Talvez quando voltarmos a Jamaica.

— Talvez.

— Prometa. Não dormirei enquanto você não prometer.

Bond disse desesperadamente: — Naturalmente que prometo. Agora, vá dormir, Honeychile.

A sua voz se fez ouvir outra vez, triunfante: — Agora você tem uma dívida comigo. Você prometeu. Boa-noite, querido James.

— Boa noite, querida Honey.


XII - A COISA


O aperto no braço de Bond era ansioso. Ele de um salto pôs-se de pé.

Quarrel sussurrou tensamente: — Alguma coisa está-se aproximando pela água, capitão! Com certeza é o dragão!

A jovem levantou-se e perguntou nervosamente: — Que aconteceu?

Bond apenas disse: — Fique aí, Honey! Não se mexa. Eu voltarei.

Internou-se pelos arbustos do lado oposto da montanha e correu pela restinga, com Quarrel ao lado.

Chegaram até a extremidade da restinga, a vinte metros da clareira, e pararam sob o abrigo dos últimos arbustos, que Bond apartou com as mãos para ter um melhor campo de visão.

O que seria aquilo? A meia milha de distância, atravessando o lago, vinha algo informe, com dois olhos brilhantes cor de laranja, e pupilas negras. Entre estes, onde deveria estar a boca, tremulava um metro de chama azul. A luminosidade cinzenta das estrelas deixava ver uma espécie de cabeça abaulada entre duas pequenas asas semelhantes às de um morcego. Aquela coisa estranha deixava escapar um ronco surdo e baixo, que abafava um outro ruído, uma espécie de vibração rítmica. Aquela massa avançava na direção deles, à velocidade de uns dezesseis quilômetros por hora, deixando atrás de si uma esteira de espuma.

Quarrel sussurrou:

— Nossa, capitão! Que coisa é aquela?

Bond continuou de pé e respondeu laconicamente: — Não sei exatamente. Uma espécie de trator arranjado para meter medo. Está trabalhando com um motor diesel, e por isso você pode deixar os dragões de lado. Agora, vejamos... — Bond falava como se para si mesmo. — Não adianta fugir. Aquilo se move mais depressa do que nós e sabemos que pode esmagar árvores e atravessar pântanos. Temos que lhe dar combate aqui mesmo. Quais serão os seus pontos fracos? Os motoristas. Com certeza, dispõem de proteção. Em todo caso, não sabemos muito sobre esse ponto. Quarrel, você começará a disparar contra aquela cúpula quando estiverem a uns duzentos metros de nós. Faça a pontaria cuidadosamente e continue atirando. Visarei os faróis quando estiverem a cinqüenta metros. Não se está movendo sobre lagartas. Deve ter alguma espécie de rodas gigantescas, provavelmente de avião. Visarei as rodas também. Fique aí. Ficarei dez metros para baixo. Naturalmente vão reagir e nós temos que manter as balas longe da garota. Está combinado? — Bond esticou o braço e apertou o enorme ombro de Quarrel. — E não se preocupe demais. Esqueça-se de dragões. Trata-se apenas de alguma trapaça do Dr. No. Mataremos os motoristas, tomaremos conta do veículo e ganharemos com ele a costa. Isso economizará as nossas solas. Está bem?

Quarrel deu uma breve risada. — Está bem, capitão. Desde que o senhor assim o diz. Mas que Nosso Senhor saiba também que aquilo não é dragão!

Bond desceu pela restinga e se internou pelos arbustos, até que encontrou um ponto de onde podia ter um bom campo de tiro. Disse suavemente: — Honey!

— Sim, James — e a voz dela deixou transparecer alívio.

— Faça um buraco na areia como fizemos na praia. Faça-o por trás de raízes grossas e fique lá deitada. Talvez haja um tiroteio. Não tenha medo de dragões. Isto é apenas um veículo pintado, dirigido por alguns dos homens do Dr. No. Não se assuste. Estou aqui perto.

— Muito bem, James. Tenha cuidado! — A voz agora deixava transparecer um vivo temor.

Bond curvou-se, apoiando um joelho no chão, sobre as folhas e a areia, e olhou para fora.

Agora o veículo achava-se a uns trezentos metros de distância, e os seus faróis amarelos estavam iluminando a areia. Chamas azuis continuavam saindo da boca daquele engenho. Saíam de uma espécie de longo focinho, no qual se pintaram mandíbulas entreabertas, para darem ao todo a aparência de dragão. Um lança-chamas! Aquilo explicava as árvores queimadas e a história do administrador. A coloração azul da chama seria dada por alguma espécie de queimador, disposto adiante do lança-chamas.

Bond teve que admitir que aquela visão era algo de terrível, à medida que o veículo avançava pelo lago raso. Evidentemente fora calculado para infundir terror. Ele mesmo ter-se-ia assustado, não fora a vibração rítmica do motor diesel. Mas até que ponto aquilo seria vulnerável para homens que não fossem dominados pelo pânico?

A resposta ele a teve quase imediatamente. Ouviu-se o estampido da “Remington” de Quarrel. Uma centelha saiu da cabina encimada pela cúpula e logo se ouviu um ruído metálico. Quarrel disparou mais um tiro e, logo em seguida, uma rajada. As balas chocaram-se inutilmente de encontro à cabina. Não houve mesmo uma simples redução de velocidade. O monstro continuava avançando para o ponto de onde tinham partido os disparos. Bond descansou o cano de seu “Smith & Wesson” no braço, e fez cuidadosa pontaria. O profundo ruído surdo de sua arma fez-se ouvir por sobre o matraquear da “Remington” de Quarrel. Um dos faróis fora atingido e despedaçara-se. Bond disparou mais quatro tiros contra o outro e atingiu-o com o quinto e último disparo de seu revólver. O fantástico aparelho parecia continuar não dando importância, e foi avançando para o lugar de onde tinham partido os disparos do “Smith & Wesson”. Bond tornou a carregar a arma e começou a atirar contra os pneumáticos, sob as asas negro e ouro. A distância agora era de apenas trinta metros e podia jurar que já atingira mais de uma vez a roda mais próxima, sem nenhum resultado. Seria borracha sólida? O primeiro estremecimento de medo percorreu a pele de Bond.

Carregou mais uma vez. Seria aquela coisa maldita vulnerável pela retaguarda? Deveria correr para o lago e tentar uma abordagem? Avançou um passo, através dos arbustos, mas logo ficou imóvel, incapaz de prosseguir.

Subitamente, daquele focinho ameaçador, uma língua de fogo azulada tinha sido lançada na direção do esconderijo de Quarrel. À direita de Bond, no mato, surgira apenas uma chama laranja e vermelha, simultaneamente com um estranho urro, que imediatamente silenciou. Satisfeita, aquela língua de fogo se recolhera à sua boca. Agora aquilo fizera um movimento de rotação sobre o seu eixo e parará completamente. O buraco azulado da boca apontava diretamente para Bond.

Bond deixou-se ficar, esperando pelo horroroso fim. Olhou através das mandíbulas da morte e viu o brilhante f-lamento vermelho do queimador, bem no fundo do comprido tubo. Pensou no corpo de Quarrel — mas não havia tempo para pensar em Quarrel — e imaginou-o completamente carbonizado. Dentro em pouco ele também se incendiaria como uma tocha. Um único berro seria arrancado dele e os seus membros se encolheriam na pose de dançarino dos corpos queimados. Depois viria a vez de Honey. Meu Deus, para o quê ele os havia arrastado! Por que fora tão insano a ponto de enfrentar aquele homem com todo o seu arsenal? Por que não aceitara a advertência que lhe fora feita pelo longo dedo que o alcançara já em Jamaica? Bond trincou os dentes. Vamos, canalhas. Depressa.

Ouviu-se a sonoridade de um alto-falante, que anunciava metàlicamente: “Saia daí, inglês. E a boneca também. Depressa ou será frito no inferno, como o seu amigo”. Para dar mais força àquela ordem, uma língua de fogo foi lançada em sua direção. Bond deu um passo atrás para recuar daquele intenso calor. Sentiu o corpo da garota de encontro às suas costas. Ela disse historicamente: — Tive que vir, tive que vir.

Bond disse: — Está bem, Honey. Fique atrás de mim.

Ele tinha-se decidido. Não havia alternativa. Mesmo que a morte viesse mais tarde, não poderia ser pior do que aquela morte diante do lança-chamas. Bond apanhou a mão da jovem e puxou-a consigo para fora, saindo para a areia.

A voz se fez ouvir novamente: — Pare aí, camarada. E deixe cair o lança-ervilhas. Nada de truques, senão os caranguejos terão um bom almoço.

Bond deixou cair a sua arma. Lá se fora o “Smith & Wesson”. O “Beretta” não teria tido melhor sorte: A jovem lastimou-se, e Bond apertou a sua mão. — Agüente, Honey, — disse ele. — Nós nos livraremos disso.

Bond troçou de si mesmo por causa daquela mentira. Ouviu-se o ruído de uma porta de ferro que se abria. Por trás da cúpula, um homem saltou para a água e caminhou até eles, com um revólver na mão. Ao mesmo tempo ia-se mantendo fora da linha de fogo do lança-chamas. A trêmula chama azul iluminou o seu rosto. Era um chinês negro, de enorme estatura, vestindo apenas calças. Alguma coisa balançava em sua mão esquerda, e quando ele se aproximou mais, Bond pôde ver que eram algemas.

O homem deteve-se a alguns metros de distância e disse:

— Levantem os braços. Punhos juntos e caminhem em minha direção. Você primeiro, inglês. Devagar ou receberá mais um umbigo.

Bond obedeceu e quando estava a um passo do homem, este prendeu o revólver entre os dentes, e esticou os braços e atou os seus pulsos com as algemas. Bond examinou aquele rosto iluminado pelas chamas azuis. Era uma cara brutal, com olhos estrábicos. O agente do Dr. No fitou-o com desprezo. — Bastardo imbecil! — disse.

Bond deu as costas ao homem e começou a se afastar. Ia ver o corpo de Quarrel. Tinha que lhe dizer adeus. Ouviu-se o ruído de um disparo e uma bala jogou-lhe areia nos pés. Bond parou, e voltando-se lentamente disse:

— Não fique nervoso. Vou dar uma espiada no homem que você acabou de assassinar. Voltarei.

O homem abaixou o revólver e riu grosseiramente: — Muito bem. Divirta-se. Desculpe se não temos uma coroa. Volte logo, se não daremos uma amostra à boneca. Dois minutos.

Bond caminhou em direção ao cerrado de arbustos fumegantes. Ali chegando, olhou para baixo. Seus olhos e boca se contraíram. Sim, tinha sido bem como ele imaginara. Pior, mesmo. Disse docemente: — Perdoe-me, Quarrel. — Com o pé soltou um pouco de areia, que colheu com as mãos algemadas e verteu-a sobre os restos dos olhos de Quarrel. Depois caminhou lentamente, de volta, e ficou ao lado da jovem.

O homem empurrou-os para a frente com o revólver. Deram a volta por trás da máquina, onde havia uma pequena porta quadrada. Uma voz do interior disse: — Entrem e sentem-se no chão. Não toquem em nada ou ficarão com os dedos partidos.

Com dificuldade, arrastaram-se para dentro daquela caixa de ferro, que cheirava a óleo e suor. Havia lugar apenas para que ambos se sentassem com as pernas encolhidas, de joelhos para cima. O homem que empunhava o revólver e que vinha atrás deles saltou por último para dentro do carro e fechou a porta. Ligou uma lâmpada e sentou-se num assento de ferro, ao lado do chofer. — Muito bem, Sam, vamos andando. Você pode apagar o fogo. Há luz bastante para dirigir — disse.

Na painel de controle podia-se ver uma fileira de mostradores. O motorista esticou a mão e deslocou para baixo um par de interruptores. Engrenou o motor e olhou através de uma estreita fresta, cortada na parede de ferro, diante dele. Bond sentiu que o veículo dava uma volta. Ouviu-se um movimento mais rápido do motor, e o veículo avançou.

O ombro da jovem apertou-se de encontro ao de Bond.

— Para onde estão eles nos levando? — O seu sussurro traía um estremecimento.

Bond voltou a cabeça e olhou para ela. Era a primeira vez que podia ver os seus cabelos depois de secos. Estavam desfeitos pelo sono, mas não eram mais mechas de rabichos empastados. Caíam densamente até os ombros, onde terminavam em anéis voltados para dentro. Eram do mais pálido louro acinzentado e despediam reflexos quase prateados sob a luz elétrica. Ela olhou para o alto, para ele. A pele, à volta dos olhos e nos cantos da boca, mostrava-se lívida de medo.

Bond deu de ombros, procurando aparentar uma indiferença que não sentia!. Sussurrou: — Oh, espero que vamos ver o Dr. No. Não se preocupe demais, Honey. Esses homens não passam de pequenos bandidos. Com ele, as coisas serão diferentes. Quando estivermos diante dele, não diga nada, falarei por nos dois. — Ele apertou o seu ombro e disse: — Gosto da maneira por que você penteia o seu cabelo, e fico contente porque você não o apara muito curto.

Um pouco da tenção desapareceu do rosto dela. — Como é que você pode pensar em coisas como essa? — Deu um leve sorriso para ele, e acrescentou: — Mas estou contente por você gostar de meu penteado. Lavo os meus cabelos com óleo de coco uma vez por semana.

À lembrança de sua outra vida, seus olhos ficaram brilhantes. Ela baixou a cabeça para as mãos algemadas, a fim de esconder as lágrimas. Sussurrou quase para si mesma: — Tentarei ser brava. Tudo estará bem, desde que você esteja lá.

Bond aconchegou-se a ela. Levantou suas mãos algemadas até a altura dos olhos e examinou as algemas. Eram do tipo usado pela polícia norte-americana. Contraiu sua mão esquerda, a mais fina das duas, e tentou fazê-la deslizar pelo anel de aço. Mesmo o suor de sua pele de nada adiantou. Era inútil.

Os dois homens sentavam-se em seus bancos de ferro, indiferentes, e com as costas voltadas para eles. Sabiam que dominavam inteiramente a situação. Não havia possibilidade de que Bond oferecesse qualquer incômodo. Não poderia levantar-se ou dar o necessário impulso aos seus punhos para causar qualquer mal às cabeças de seus adversários, utilizando as algemas. Se conseguisse abrir a porta e pular para a água, o que lograria com isso? Imediatamente eles sentiriam a brisa fresca, nas costas, e parariam a máquina para queimá-lo na água ou içá-lo novamente. Bond aborrecia-se em pensar que os homens pouco se preocupavam com ele, pois sabiam tê-lo completamente em seu poder. Também não gostou da idéia de que aqueles homens eram bastante inteligentes para saber que ele não representava nenhuma ameaça. Indivíduos mais estúpidos teriam ficado em cima deles, de revólver em punho, tê-los-iam surrado, a ele e à jovem, barbaramente, e talvez os tivessem deixado inconscientes. Aqueles dois conheciam o ofício. Eram profissionais, ou tinham sido treinados para o serem.

Os dois homens não falaram. Não houve nenhum comentário sobre o quão hábil eles tinham sido, ou quanto ao seu cansaço ou destino. Apenas dirigiam a máquina serenamente, ultimando com eficiência a sua tarefa.

Bond continuava sem a mínima idéia do que seria aquilo. Sob a tinta negra e dourada, assim como sob o resto daquela fantasia, a máquina parecia uma espécie de trator, como ele nunca vira. Não tinha conseguido descobrir nomes de marcas comerciais, nos pneumáticos, pois estivera muito escuro, mas certamente que deveriam ser de borracha sólida ou porosa. Atrás havia um pequena roda para dar estabilidade ao conjunto. Uma espécie de barbatana de ferro fora ainda acrescentada e pintada também de preto e ouro, a fim de ajudar a dar a aparência de dragão. Os altos pára-lamas tinham sofrido um prolongamento, na forma de curtas asas voltadas para trás. Uma comprida cabeça de dragão, feita em metal, fora fixada ao radiador e os faróis receberam pontos centrais negros, para parecerem olhos. Era tudo, sem falar da cabina que fora recoberta com uma cúpula blindada e dotada de um lança-chamas. Era, como pensara Bond, um trator preparado para assustar e queimar — embora não pudesse atinar porque estava dotado de um lança-chamas e não de uma metralhadora. Era, evidentemente, a única espécie de veículo que poderia percorrer a ilha. Suas gigantescas rodas podiam avançar sobre os mangues, pântanos e ainda atravessar o lago raso. Galgaria também os agrestes planaltos de coral e, desde que andasse à noite, o calor experimentado na cabina seria pelo menos tolerável.

Bond ficara impressionado. Impressionado pelo toque de profissionalismo. O Dr. No era sem dúvida um homem que se preocupava intensamente com as coisas. Em pouco iria encontrá-lo. E em breve estaria diante do segredo do Dr. No. Então, o que aconteceria? Bond sorriu amargamente. Sim, não o deixariam sair dali com o seu conhecimento. Certamente seria morto, a menos que pudesse fugir ou conseguir a sua liberdade por meios persuasivos. E o que aconteceria à jovem? Poderia ele provar sua inocência e conseguir com que ela fosse poupada? Possivelmente, mas nunca mais ela teria permissão para deixar a ilha. Ali teria de ficar para o resto da vida, como amante ou mulher de um dos homens, ou do próprio Dr. No, se ela o impressionasse.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um trecho do percurso mais difícil, como se podia sentir pela trepidação. Tinham atravessado o lago e estavam no caminho que levava para o alto da montanha, junto às cabanas. A cabina vibrava e a máquina começou a galgar o terreno. Dentro de cinco minutos estariam lá.

O ajudante do motorista olhou por sobre o ombro para Bond e a jovem. Bond sorriu confiantemente para ele dizendo: Você receberá uma medalha por isso.

Os olhos amarelos e marrons olharam impassivelmente dentro dos dele, enquanto os lábios arroxeados e oleosos se fenderam num sorriso no qual havia um ódio repousado: Feche a boca, se... Depois, deu-lhe as costas.

A jovem tocou-o com o cotovelo e sussurrou: — Por que eles são tão rudes? Por que nos odeiam tanto?

Bond esboçou um sorriso e disse: — Acho que é porque lhes causamos medo. Talvez ainda estejam com medo, e isto porque não parecemos ter medo deles. Devemos mantê-los assim.

A jovem aconchegou-se a ele e disse: — Tentarei.

Agora a subida estava-se tornando mais íngreme. Uma luz azul-acinzentada atravessava as frestas da armadura. A madrugada se aproximava. Fora, em breve estaria começando mais um dia de calor abrasador, de execrável vento, carregado com o cheiro de gás dos pântanos. Bond pensou em Quarrel, o bravo gigante que não mais veria aquele dia, e com o qual eles deveriam agora estar caminhando através dos pauis de mangues. Quarrel tinha pressentido a morte, mas apesar disso tinha acompanhado Bond sem qualquer objeção. Sua fé em Bond tinha sido maior do que o seu medo. E Bond tinha-lhe faltado. Seria ele ainda o causador da morte da jovem?

O motorista esticou o braço em direção ao painel e na parte dianteira do veículo fez-se ouvir o breve zunido de uma sirena de polícia, que foi desaparecendo num gemido fúnebre. Mais um minuto e o veículo parava, continuando o motor em regime neutro. O homem apertou um interruptor e tirou um microfone de um gancho, a seu lado. Falou por aquele microfone e Bond pôde ouvir a sua voz aumentada, do lado de fora, por um altofalante. — Tudo bem. Apanhamos o inglês e a garota. O outro homem morreu. Isso é tudo. Abram. — Bond ouviu que uma porta se deslocava para o lado, sobre rolamentos. O motorista embreou e eles avançaram lentamente para a frente, parando alguns metros adiante. O motorista desligou o motor. Ouviu-se o ruído metálico da tranca e a porta foi aberta pelo lado de fora. Uma lufada de ar fresco e uma luz mais brilhante penetraram na cabina. Várias mãos agarraram Bond e arrastaram-no para trás, até um chão de cimento. Bond agora estava de pé e sentia o cano de um revólver encostado ao seu flanco. Uma voz disse: — Fique onde está. Nada de espertezas. — Bond olhou para o homem. Era mais um chinês negro, do mesmo tipo que os outros. Os olhos amarelos examinaram-no com curiosidade. Bond virou-se com indiferença. Outro homem estava cutucando a jovem com a arma. Bond disse asperamente: — Deixe a garota em paz! Em seguida, caminhou e pôs-se ao lado da jovem. Os dois homens pareceram surpresos. Deixaram-se ficar de pé, apontando as armas com hesitação.

Bond olhou à volta. Estavam numa das cabanas pré-fabricadas que ele vira do rio. Era ao mesmo tempo uma garagem e uma oficina. O “dragão” tinha sido colocado sobre um fosso de vistoria, no chão de concreto. Um motor de popa desmontado estava sobre uma das bancadas. Longos tubos de luz fluorescente estavam afixados ao teto e o ambiente estava impregnado do cheiro de óleo e fumaça de exaustor. O motorista e o seu companheiro examinavam a máquina. Em seguida deram alguns passos pelo galpão, como se andassem sem propósito.

Um dos guardas anunciou: — Enviei a mensagem. A ordem é que eles sejam levados. Foi tudo bem?

O ajudante de motorista, que parecia o homem mais responsável, ali presente, disse: — Sem dúvida. Alguns disparos. Os faróis foram partidos. Talvez haja alguns furos nos pneumáticos. Ponha os rapazes em ação — uma vistoria completa. Conduzirei esses dois e tirarei um cochilo. — E, voltando-se para Bond: — Bem, vamos andando — e indicou o caminho que saía do longo galpão.

Bond disse: — Vá andando você; e cuidado com os modos. Diga àqueles macacos que tirem as armas de cima de nós. Podem disparar por engano. Parecem bastante idiotas.

O homem se aproximou, e os outros os acompanharam logo atrás. O ódio brilhava em seus olhos. O chefe levantou o punho cerrado, tão grande quanto um pequeno malho e chegou-o à altura do nariz de Bond. Procurava controlar-se com esforço, e disse: — Ouça, senhor. Às vezes, nós, os rapazes, temos permissão para participar da festa final. Estou rezando para que essa seja uma dessas vezes. Certa ocasião fizemos com que a coisa durasse toda uma semana. E se eu o pego...

Riu e os seus olhos brilharam com crueldade. Olhou para o lado de Bond, fixando a garota. Seus olhos pareciam transformados em bocas que agitavam os lábios. Enfiou as mãos nos bolsos laterais das calças. A ponta de sua língua mostrava-se muito vermelha, entre os lábios arroxeados. Voltando-se para os companheiros disse: — Que tal, rapazes?

Os três homens estavam olhando também para a jovem. Fizeram um sinal de assentimento, como crianças diante de uma árvore de Natal.

Bond desejou atirar-se como um louco sobre eles, golpeando as suas caras com os punhos algemados e aceitando a sua vingança sangrenta. Não fosse pela jovem, bem que o teria feito. Mas tudo o que tinha conseguido com suas corajosas palavras fora amedrontá-la. Disse apenas: — Muito bem, muito bem. Vocês são quatro e nós somos dois, ainda por cima com as mãos atadas. Vamos, não queremos atingi-los. Apenas não nos empurrem muito de um lado para outro. O Dr. No poderia não ficar satisfeito.

Àquele nome, os rostos dos homens se modificaram. Três pares de olhos passaram apàticamente de Bond para o chefe. Por um segundo, este olhou com desconfiança para Bond, intrigado, tentando descobrir se Bond teria alguma influência junto ao Dr. No. Sua boca abriu-se para dizer algo, mas logo pareceu pensar melhor, e apenas disse de maneira incerta: — Bem, bem, estávamos simplesmente brincando. — Voltou-se para os homens, em busca de confirmação: — Não é?

— Sem dúvida, sem dúvida! — foi a resposta dada por um coro áspero, e os homens desviaram o olhar.

O chefe disse com mau humor: — Por aqui, senhor. — E ele mesmo pôs-se a caminho, percorrendo o comprido galpão.

Bond segurou o pulso da jovem e seguiu o chefe. Estava impressionado com a reação causada naqueles homens pelo nome do Dr. No. Aquilo era alguma coisa a lembrar se eles tivessem que se haver novamente com aquela turma.

O homem chegou a uma porta de madeira situada na extremidade do galpão. Ao lado havia um botão de campainha que ele pressionou duas vezes e esperou. Ouviu-se um estalido e a porta se abriu, mostrando dez metros de uma passagem rochosa, mas atapetada e que ia dar, na outra extremidade, em outra porta mais elegante e pintada de creme.

O homem ficou de lado. Siga em frente, senhor — disse; — bata na porta e será atendido pela recepcionista. — Não havia nenhuma ironia em sua voz e seus olhos se mostravam impassíveis.

Bond conduziu Honey pela passagem. Ouviu que a porta se fechava às suas costas. Deteve-se por um momento e fitou-a, perguntando-lhe: — E agora?

Ela riu, trêmula, mas respondeu: — Ê bom sentir-se tapete sob os pés.

Bond apertou o seu pulso. Andou até a porta pintada de creme e bateu.

A porta abriu-se e Bond entrou com a jovem ao lado. Quando se deteve instantaneamente, não chegou a perceber o encontrão que lhe dava a jovem, pois continuou estarrecido.


XIII - GAIOLA DE OURO


Era a espécie de sala de recepção que as maiores corporações norte-americanas possuem no andar em que se situa o escritório do presidente, em seus arranha-céus de Nova Iorque. Suas proporções eram agradáveis, com cerca de vinte pés quadrados. O chão era todo recoberto pelo mais espesso tapete Wilton cor-de-vinho. O teto e as paredes estavam pintados numa suave tonalidade cinza pombo. Viam-se ainda reproduções litográficas de esboços de balé de Degas penduradas em séries, nas paredes, e a iluminação era feita com altos e modernos jogos de abajures de seda verde-escuro, imitando a forma de elegantes barricas.

À direita de Bond estavam uma larga mesa de mogno, com o tampo recoberto com couro verde, outras peças que se harmonizavam perfeitamente com a mesa, e um caro sistema de intercomunicações. Duas cadeiras altas, de antiquado, aguardavam os visitantes. Do outro lado da sala via-se uma mesa do tipo refeitório, sobre a qual estavam várias revistas com capas em cores vivas e mais duas cadeiras. Tanto na mesa de escritório, como na outra, viam-se vasos de hibiscos. O ar era fresco e impregnado de leve fragrância.

Duas mulheres estavam naquela sala. Por trás da mesa de trabalho, empunhando uma caneta que descansava sobre um formulário impresso, estava sentada uma jovem chinesa, de aspecto eficiente, com óculos de armação de chifre, sob uma franja de cabelos negros cortados curtos. Em seus olhos e em sua boca havia o sorriso padrão de boas-vindas que qualquer recepcionista exibe — a um tempo claro, obsequioso e inquisitivo.

Ainda com a mão na maçaneta da porta pela qual eles tinham passado, e esperando que os recém-chegados se adiantassem mais, a fim de que ela a pudesse fechar, estava uma mulher mais velha, com aspecto de matrona, e que deveria ter cerca de quarenta e cinco anos. Era fácil ver-se que também tinha sangue chinês. Sua aparência, saudável, de farto busto, era viva e quase excessivamente graciosa. O seu “pince-nez” de lentes cortadas em quadrado brilhava com o desejo da recepcionista de os pôr à vontade.

Ambas as mulheres vestiam roupas imaculadamente alvas, com meias brancas e sapatos de camurça branca como costumam apresentar-se as auxiliares empregadas nos mais luxuosos salões de beleza norte-americanos. Havia um que de suave e pálido em suas peles, como se elas raramente saíssem para o ar-livre.

Bond observou o ambiente, enquanto a mulher junto à porta lhe dizia frases convencionais de boas-vindas, como se eles tivessem sido colhidos por uma tempestade o chegado com atraso a uma festa.

— Oh, coitados! Nós não sabíamos quando vocês iriam chegar. A todo momento nos diziam que vocês já estavam a caminho... primeiro à hora do chá, ontem, depois na hora do jantar, e apenas há uma hora fomos informadas de que vocês chegariam à hora do desjejum. Devem estar com fome. Venham aqui e ajudem a irmã Rosa a preencher o formulário; depois eu os prepararei para a cama. Devem estar muito cansados.

Ia dizendo aquilo com voz doce e cacarejante, ao mesmo tempo que fechava a porta e os levava para junto da mesa e os fazia sentar nas cadeiras. Depois disse: — Bem, eu sou a irmã Lírio, e esta é a irmã Rosa. Ela irá fazer-lhes apenas algumas perguntas. Agora, aceitam um cigarro? — e pegou uma caixa de couro trabalhado que estava em cima da mesa. Abriu-a e pô-la diante deles. A caixa tinha três divisões, e a chinesinha explicou apontando com um dedo: “Esses são americanos, esses são ingleses e esses turcos.” Ela apanhou um luxuoso isqueiro de mesa e esperou.

Bond estendeu as mãos algemadas para tirar um cigarro turco.

A irmã Lírio deu um gritinho de espanto: — Oh, mas francamente. — Parecia sinceramente embaraçada. — Irmã Rosa, dê-me a chave, depressa. Já disse por várias vezes que os pacientes não devem ser trazidos dessa maneira. — Havia impaciência e aborrecimento em sua voz. — Francamente, aquela gente lá de fora! Já era tempo que eles fossem chamados à ordem.

A irmã Rosa estava tão embaraçada quanto a irmã Lírio. Rapidamente remexeu dentro de uma gaveta e entregou uma chave à irmã Lírio, que com muitas desculpas e cheia de dedos abriu os dois pares de algemas e, afastando-se para trás da mesa, deixou aquelas duas pulseiras de aço caírem dentro da cesta de papéis como se fossem ataduras sujas.

— Obrigado, — disse Bond, que não sabia como enfrentar aquela situação, a não ser procurando desempenhar um papel qualquer na comédia que se estava representando. Ele estendeu o braço, apanhou um cigarro e acendeu-o. Lançou um olhar para Honeyehile Rider, que parecia estonteada e nervosamente apertava com as mãos os braços de sua cadeira. Bond dirigiu-lhe um sorriso de conforto.

— Agora, por favor; — disse a irmã Rosa e inclinou-se sobre um comprido formulário impresso em papel caro. — Prometo ser o mais rápida que puder. O seu nome, sr... sr...

— Bryce, John Bryce.

Ela escreveu a resposta com grande concentração. — Endereço permanente?

— Aos cuidados do Jardim Zoológico Real, Regents Park, Londres, Inglaterra.

— Profissão?

— Ornitologista.

— Oh, meu Deus!, poderia o senhor soletrar isso? Bond atendeu-a.

— Muito obrigada. Agora, vejamos, objeto da viagem?

— Aves — respondeu Bond. — Sou também representante da Sociedade Audubon de Nova Iorque. Eles arrendaram parte desta ilha.

— Oh, sem dúvida. — Bond observou que a pena escrevia exatamente o que ele dizia. Depois da última palavra ela pôs um claro ponto de interrogação entre parênteses.

— E — a irmã Rosa sorriu polidamente em direção a Honeyehile — a sua esposa? Ela também está interessada em pássaros?

— Sim, sem dúvida.

— O seu primeiro nome?

— Honeyehile.

A irmã Rosa estava encantada. — Que nome lindo! — Ela voltou a escrever apressadamente. — E agora os parentes mais próximos de ambos, e estará tudo acabado.

Bond deu o verdadeiro nome de M como o parente mais próximo de ambos. Apresentou-o como “tio” e indicou o seu endereço como sendo “Diretor-Gerente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres.”

A irmã Rosa acabou de escrever e disse: — Pronto, está tudo feito. Muito obrigada, sr. Bryce, e espero que ambos apreciem a permanência aqui.

— Muito obrigado. Estou certo de que apreciaremos. — Bond levantou-se e Honeyehile fez o mesmo, ainda com expressão vazia.

A irmã Lírio disse: — Agora, venham comigo, queridos.

— Ela caminhou até uma porta na parede distante e deteve-se com a mão na maçaneta talhada em vidro. — Oh, meu Deus, — disse —, não é que agora me esqueci do número de seus quartos? É o apartamento creme, não é, irmã?

— Isso mesmo. Catorze e quinze.

— Obrigada, querida. E agora — ela abriu a porta — se vocês quiserem me seguir... Receio que seja uma caminhada um pouco longa. — Fechou a porta, por trás deles, e pôs-se à frente, indicando o caminho. — O Doutor tem falado várias vezes em instalar uma dessas escadas rolantes, ou algo de parecido, mas sabem como são os homens ocupados: — Ela riu alegremente. — Ele tem tantas outras coisas em que pensar!

— Sim, acredito, — disse Bond polidamente.

Bond tomou a mão da jovem e seguiram ambos a maternal e agitada chinesa através de cem metros de um alto corredor, do mesmo estilo da sala de recepção, mas que era iluminado a freqüentes intervalos por caros tubos luminosos fixados às paredes.

Bond respondia com polidos monossílabos aos comentários ocasionais que a irmã Lírio lhe lançava por sobre os ombros. Toda a sua mente se concentrava nas extraordinárias circunstâncias de sua recepção. Tinha certeza de que aquelas duas mulheres tinham sido sinceras. Nenhum só olhar ou palavra conseguira registrar que estivesse fora de propósito. Evidentemente aquilo era alguma espécie de fachada, mas de qualquer forma uma fachada sólida, meticulosamente apoiada pelo cenário e pelo elenco. A ausência de ressonância, na sala, e agora no corredor, estava a indicar que eles tinham deixado o galpão pré-fabricado para se internarem no flanco da montanha e agora estavam atravessando a sua base. Segundo o seu palpite estavam mesmo andando em direção oeste — em direção à penedia na qual terminava a ilha. Não havia umidade nas paredes e o ar parecia fresco e puro, com uma brisa a afagá-los. Muito dinheiro e uma bela realização de engenharia tinham sido os responsáveis por aquilo. A palidez das duas mulheres estava a sugerir que passavam a maior parte do tempo internadas no âmago da montanha. Do que a irmã dissera, parecia que elas faziam parte de um grupo de funcionários internos que nada tinham a ver com o destacamento de choque do exterior, e que talvez não soubessem a espécie de homens que eles eram.

Aquilo era grotesco, concluiu Bond ao se aproximar de uma porta, na extremidade do corredor, perigosamente grotesco, mas em nada adiantava pensar nisso no momento. Ele apenas podia seguir o papel que lhe tinha sido destinado. Pelo menos, aquilo era melhor do que os bastidores, na arena exterior da ilha.

Junto à porta, a irmã Lírio fez soar uma campainha. Já eram esperados e a porta abriu-se imediatamente. Uma encantadora jovem chinesa, de quimono lilás e branco, ficou a sorrir e a curvar-se, como se deve esperar que o façam as jovens chinesas. E, mais uma vez só havia calor e um sentimento de boas-vindas naquele rosto pálido como uma for. A irmã Lírio exclamou: — Aqui estão eles, finalmente, May! São o senhor e a senhora John Bryce. E sei que ambos devem estar exaustos, por isso devemos levá-los imediatamente aos seus aposentos, para que possam repousar e dormir. — Voltando-se para Bond: — Esta é May, muito boazinha. Ela tratará de ambos. Qualquer coisa que queiram é só tocar a campainha que May atenderá. É uma espécie de favorita de todos os nossos hóspedes.

Hóspedes!, pensou Bond. Essa é a segunda vez que ela usa a palavra. Sorriu polidamente para a jovem, e disse;

— Muito prazer; sim, certamente que gostaríamos de ir para os nossos aposentos.

May envolveu-os num cálido sorriso, e disse em voz baixa e atraente: — Espero que ambos se sintam bem, sr. Bryce. Tomei a liberdade de mandar vir uma refeição assim que soube que os senhores iam chegar. Vamos...? — Corredores saiam para a esquerda e a direita de portas duplas de elevadores, instalados na parede oposta. A jovem adiantou-se, caminhando na frente, para a direita, logo seguida de Bond e Honeyehile, que tinham atrás a irmã Lírio.

Ao longo do corredor, dos dois lados, viam-se portas numeradas. A decoração era feita no mais pálido cor-de-rosa, com um tapete cinza-pombo. Os números nas portas eram superiores a dez. O corredor terminava abruptamente, com duas portas, uma em frente a outra, com a numeração catorze e quinze. A irmã May abriu a porta catorze e o casal a seguiu, entrando na peça.

Era um lindo quarto de casal, em moderno estilo Mia-mi, com paredes verde-escuro, chão encerado de mogno escuro, com um ou outro espesso tapete branco e bem desenhado mobiliário de bambu com um tecido “chintz” de grandes rosas vermelhas sobre fundo branco. Havia uma porta de comunicação para um quarto de vestir masculino e outra que dava para um banheiro moderno e extremamente luxuoso, com uma banheira de descida e um bidê.

Era como se tivessem sido introduzidos num apartamento do mais moderno hotel da Flórida, com exceção de dois detalhes que não passaram despercebidos a Bond. Não havia janelas e nenhuma maçaneta interior nas portas.

May olhou com expressão de expectativa, de um para o outro.

Bond voltou-se para Honeyehile e sorriu-lhe: — Parece muito confortável, não acha, querida?

A jovem brincava com a barra da saia e fez um sinal de assentimento sem olhar para Bond.

Ouviu-se uma tímida batida na porta e outra jovem, tão linda quanto May, entrou carregando uma bandeja que se equilibrava sobre as palmas das mãos. A jovem descansou a bandeja sobre a mesa do centro e puxou duas cadeiras. Retirou a toalha de linho imaculadamente limpa e saiu. Sentiu-se um delicioso cheiro de fiambre e café.

May e a irmã Lírio também se encaminharam para a porta. A mulher mais idosa se deteve por um instante e disse:

— E agora nós os deixaremos em paz. Se desejarem alguma coisa, basta tocar a campainha. Os interruptores estão ao lado da cama. Ah, outra coisa, poderão encontrar roupa limpa nos aparadores. Receio que sejam apenas de estilo chinês,

— acrescentou, como a desculpar-se —, mas espero que os tamanhos satisfaçam. A rouparia só recebeu as medidas ontem à noite. O Dr. deu ordens severas para que os senhores não fossem perturbados. Ficará encantado se puderem reunir-se a ele, esta noite, para o jantar. Deseja, entretanto, que tenham todo o resto do dia à vontade, a fim de que melhor se ambientem, compreendem? — Fez uma pausa e olhou para um e para outro, com um sorriso indagador. — Posso dizer que os senhores...?

— Sim, por favor, — disse Bond. — Pode dizer ao D., que teremos muito prazer em jantar com ele.

— Oh, sei que ficará contente. — Com uma derradeira mesura, as duas chinesas se retiraram e fecharam a porta.

Bond voltou-se para Honeyehile, que parecia embaraçada e ainda evitava os seus olhos. Ocorreu então a Bond que talvez jamais tivesse ela tido um tratamento tão cortês ou visto tanto luxo em sua vida. Para ela, tudo aquilo devia ser muito mais estranho e aterrador do que o que tinham passado ao lado de fora. Ela continuou na mesma posição, brincando com a barra da saia. Podiam-se notar vestígios de suor seco, sal e poeira em seu rosto. Suas pernas nuas estavam sujas e Bond observou que os dedos de seus pés se moviam, suavemente, ao pisarem nervosamente o maravilhoso e espesso tapete.

Bond riu. Riu com gosto ao pensamento de que os temores da jovem tivessem sido abafados pelas preocupações de etiqueta e comportamento, e riu-se também da figura que ambos faziam — ela em farrapos e ele com a suja camisa azul, as calças pretas e os sapatos de lona enlameados.

Aproximou-se dela e segurou-lhe mãos. Estavam frias. Disse: — Honey, somos um par de espantalhos, mas há apenas um problema básico. Devemos tomar o nosso desjejum primeiro, enquanto está quente, ou tiraremos antes esses farrapos e tomaremos um banho, tomando a nossa refeição fria? Não se preocupe com mais nada. Estamos aqui nessa maravilhosa casinha e isto é tudo o que importa. O que faremos, então?

Ela sorriu hesitante. Seus olhos azuis fixavam-se no rosto dele, na ânsia de obter segurança. Depois disse: — Você não está preocupado com o que nos possa acontecer? — Fez um sinal para o quarto e acrescentou: — Não acha que tudo isso pode ser uma armadilha?

— Se se trata de uma armadilha, já caímos nela. Agora nada mais podemos fazer senão comer a isca. A única questão que subsiste é a de saber se a comeremos quente ou fria. — Apertou-lhe as mãos e continuou: — Seriamente, Honey. Deixe as preocupações comigo. Pense apenas onde estávamos apenas há uma hora. Isso aqui não é melhor? Agora, decidamos a única coisa realmente importante. Banho ou desjejum?

Ela respondeu com relutância: — Bem, se você acha... Quero dizer — preferiria antes lavar-me. — Mas logo acrescentou: — Você terá que ajudar-me. — E sacudiu a cabeça em direção ao banheiro, dizendo: Não sei como mexer numa coisa dessas. Como é que se faz?

Bond respondeu com toda seriedade: — É muito fácil. Vou preparar tudo para você. Enquanto você estivar tomando o seu banho tomarei o meu desjejum. Ao mesmo tempo tratarei de fazer com que o seu não esfrie.

Bond aproximou-se de um dos armários embutidos e abriu a porta. No interior havia uma meia dúzia de quimonos, alguns de seda e outros de linho. Apanhou um de linho, ao acaso. Depois, voltando-se para ela, disse: — Tire suas roupas e meta-se nisso aqui, enquanto preparo o seu banho. Mais tarde você escolherá as coisas que preferir, para a cama e para o jantar.

Ela respondeu com gratidão: — Oh, sim, James. Se você apenas me mostrasse... — E logo começou a desabotoar a saia.

Bond pensou em tomá-la nos braços e beijá-la, mas, ao invés disso, disse abruptamente: — ótimo, Honey — e, adiantando-se para o banheiro, abriu as torneiras.

Havia de tudo naquele banheiro: essência para banhos Floris Lime, para homens, e pastilhas de Guarlain para o banho de senhoras. Esfarelou uma pastilha na água e imediatamente o banheiro perfumou-se como uma loja de orquídeas. O sabonete era o Sapoceti de Guarlain “Fleurs des Alpes”. Num pequeno armário de remédios, atrás de um espelho, em cima da pia, podiam-se encontrar tubos de pasta, escovas de dente e palitos “Steradent”, água “Rose” para lavagem bucal, aspirina e leite de magnésia. Havia também um aparelho de barbear elétrico, loção “Lentheric” para barba, e duas escovas de náilon para cabelos e pentes. Tudo era novo e ainda não tinha sido tocado.

Bond olhou para o seu rosto sujo e sem barbear, no espelho, e riu sardonicamente para os próprios olhos, cinzentos, de pária queimado pelo sol. O revestimento da pílula certamente que era do melhor açúcar. Seria inteligente esperar que o remédio, no interior daquela pílula, fosse dos mais amargos.

Tocou a água, com a mão, a fim de sentir a temperatura. Talvez estivesse muito quente para quem jamais tinha tomado antes um banho quente. Deixou então que corresse um pouco mais de água fria. Ao inclinar-se, sentiu que dois braços lhe eram passados em torno do pescoço. Endireitou-se. Aquele corpo dourado resplandecia no banheiro todo revestido de ladrilhos brancos. Ela beijou-o impetuosamente nos lábios. Ele passou-lhe os braços à volta da cintura e esmagou-a de encontro a seu corpo, com o coração aos pulos. Ela disse sem fôlego, ao seu ouvido: — Achei estranhas as roupas chinesas, mas de qualquer maneira você disse à mulher que nós éramos casados.

Uma das mãos de Bond estava pousada sobre o seu seio esquerdo, cujo mamilo estava completamente endurecido pela paixão. O ventre da jovem se comprimia contra o seu. Por que não? Por que não? Não seja tolo! Este é um momento louco para isso. Vocês dois estão diante de um perigo mortal. Você deve continuar frio como gelo, para ter alguma possibilidade de se livrar dessa enrascada. Mais tarde! Mais tarde! Não seja fraco.

Bond retirou a mão do seio dela e espalmou-a à volta de seu pescoço. Esfregou o rosto de encontro ao dela e depois aproximou a boca da boca da jovem e deu-lhe um prolongado beijo.

Afastou-se depois e manteve-a à distância de um braço. Por um momento ambos se olharam, com os olhos brilhando de desejo. Ela respirava ofegantemente, com os lábios entreabertos, de modo que ele podia ver-lhe o brilho dos dentes. Ele disse com a voz trêmula: — Honey, entre no banho antes que eu lhe dê uma surra.

Ela sorriu e sem nada dizer entrou na banheira e deitou-se em todo seu comprimento. Do fundo da banheira ergueu os olhos para ele. Os cabelos louros, em seu corpo, brilhavam como moedas de ouro. Ela disse provocadoramente: — Você tem que me esfregar. Não sei como devo fazer, e você terá que mostrar-me.

Bond respondeu desesperadamente: — Cale a boca, Honey, e deixe de namoros. Apanhe a esponja, o sabonete e comece logo a se esfregar. Que diabo! Isso não é o momento de se fazer amor. Vou tomar o meu desjejum. — Esticou a mão para a porta e segurou na maçaneta. Ela disse docemente: — James! — Ele olhou para trás e viu que ela lhe fazia uma careta, com a língua de fora. Retribuiu com uma careta selvagem e bateu a porta com força.

Em seguida, Bond dirigiu-se para o quarto de vestir e deixou-se ficar durante algum tempo, de pé, no centro da peça, esperando que as batidas de seu coração se acalmassem. Esfregou as mãos no rosto e sacudiu a cabeça, procurando esquecê-la.

Para clarear a mente, percorreu ainda cuidadosamente as duas peças, procurando saídas, possíveis armas, microfones, qualquer coisa enfim que lhe aumentasse o conhecimento da situação em que se achava. Nada disso, entretanto, pôde encontrar. Na parede havia um relógio elétrico que marcava oito e meia e uma série de botões de campainhas, ao lado da cama de casal. Esses botões traziam a indicação de “Sala de serviço”, “cabeleireiro”, “manicure”, “empregada”. Não havia telefone. Bem no alto, a um canto de ambas as peças, viam-se as grades de um pequeno ventilador. Cada uma dessas grades era de dois pés quadrados. Tudo inútil. As portas pareciam ser feitas de algum metal leve, pintadas para combinarem com as paredes. Bond jogou todo o peso de seu corpo contra uma delas, mas ela não cedeu um só milímetro. Bond esfregou o ombro. Aquele lugar era uma verdadeira prisão. Não adiantava discutir a situação. A armadilha tinha-se fechado hermèticamente sobre eles. Agora, a única coisa que restava aos ratos era tirarem o melhor proveito possível da isca de queijo.

Bond sentou-se à mesa do desjejum, sobre a qual estava uma grande jarra com suco de abacaxi, metida num pequeno balde de prata cheio de cubos de gelo. Serviu-se rapidamente e levantou a tampa de uma travessa. Ali estavam ovos mexidos sobre torradas, quatro fatias de toucinho defumado, um rim grelhado e o que parecia quatro salsichas inglesas de carne de porco. Havia também duas torradas quentes, pãezinhos conservados quentes dentro de guardanapos, geléia de laranja e morango e mel. O café estava quase fervendo numa grande garrafa térmica, e o creme exalava um odor fresco e agradável.

Do banheiro vinham as notas da canção “Marion” que a jovem estava cantarolando. Bond resolveu não dar ouvidos à cantoria e concentrou-se nos ovos.

Dez minutos depois, Bond ouviu que a porta do banheiro se abria. Descansou uma torrada que tinha numa das mãos e cobriu os olhos com a outra. Ela riu e disse: — Ele é um covarde. Tem medo de uma simples jovem. — Em seguida Bond ouviu-a a remexer nos armários. Ela continuava falando, em parte consigo mesma: — Não sei porque ele está assustado. Naturalmente que se eu lutasse com ele facilmente o dominaria. Talvez esteja com medo disso. Talvez não seja realmente muito forte, embora seus braços e peito pareçam bastante rijos. Contudo, ainda não vi o resto. Talvez seja fraco. Sim, deve ser isso. Essa é a razão pela qual não ousa despir-se na minha frente. Hum, agora vamos ver, será que ele gostaria de mim com essas roupas? — Ela elevou a voz: — Querido James, você gostaria de me ver de branco, com pássaros azul-pálido esvoaçando sobre o meu corpo?

— Sim, bolas! Agora acabe com essa conversa e venha comer. Estou começando a sentir sono.

Ela soltou uma exclamação: — Oh, se você quer dizer que já está na hora de irmos para a cama, naturalmente que me apressarei.

Ouviu-se uma agitação de passos apressados e Bond logo a via sentar-se diante de si. Ele deixou cair as mãos e ela sorriu-lhe. Estava linda. Seu cabelo estava escovado e penteado de um dos lados caindo sobre o rosto, e do outro com as madeixas puxadas para trás da orelha. Sua pele brilhava de frescura e os grandes olhos azuis resplandeciam de felicidade. Agora Bond estava gostando daquele nariz quebrado. Tinha-se tornado parte de seus pensamentos relativamente a ela, e subitamente lhe ocorreu perguntar-se por que estaria ele triste quando ela era tão imaculadamente bela quanto tantas outras lindas jovens. Sentou-se circunspectamente, com as mãos no colo, e a metade dos seios aparecendo na abertura do quimono.

Bond disse severamente: — Agora, ouça, Honey. Você está maravilhosa, mas esta não é a maneira de usar-se um quimono. Feche-o no corpo, prenda-o bem e deixe de tentar parecer uma prostituta. Isso simplesmente não são bons modos à mesa.

— Oh, você não passa de um boneco idiota. — E ajeitou o quimono, fechando-o um pouco, em uma ou duas polegadas. — Por que você não gosta de brincar? Gostaria de brincar de estar casada.

— Não à hora do desjejum — respondeu Bond com firmeza. — Vamos, coma logo. Está delicioso. De qualquer maneira estou muito sujo, e agora vou fazer a barba e tomar um banho. — Levantou-se, deu volta à mesa e beijou-lhe o alto da cabeça. — E quanto a essa história de brincar, como você diz, gostaria mais de brincar com você do que com qualquer outra pessoa do mundo. Mas não agora. — Sem esperar pela resposta, dirigiu-se ao banheiro e fechou a porta.

Bond barbeou-se e tomou um banho de chuveiro. Sentia-se desesperadamente sonolento. O sono chegava-lhe, de modo que de quando em quando tinha que interromper o que fazia e inclinar a cabeça, repousando-a entre os joelhos. Quando começou a escovar os dentes, o seu estado era tal que mal podia fazê-lo. Estava começando a reconhecer os sintomas. Tinha sido narcotizado. A coisa teria sido posta no suco de abacaxi ou no café? Este era um detalhe sem importância. Aliás, nada tinha importância. Tudo o que queria fazer era estender-se naquele chão de ladrilhos e fechar os olhos. Assim mesmo, dirigiu-se cambaleante para a porta, esquecendo-se de que estava nu. Isso também pouca importância tinha. A jovem já tinha terminado a refeição e agora estava na cama. Continuou trôpego, até ela, segurando-se nos móveis. O quimono tinha sido abandonado no chão e ela dormia pesadamente, completamente nua, sob um simples lençol.

Bond olhou para o travesseiro, ao lado da jovem. Não! Procurou o interruptor e apagou as luzes. Agora teve que se arrastar pelo chão até chegar ao seu quarto. Chegou até junto de sua cama e atirou-se nela. Com grande esforço conseguiu ainda esticar o braço, tocar o interruptor e tentar apagar a lâmpada do criado-mudo. Mas não o conseguiu: sua mão deslizou, atirou o abajur ao chão e a lâmpada espatifou-se. Com um derradeiro esforço, Bond virou-se ainda no leito e adormeceu profundamente.

Os números luminosos do relógio elétrico, no quarto de casal, anunciavam nove e meia.

Às dez horas, a porta do quarto abriu-se suavemente. Um vulto muito alto e magro destacava-se na luz do corredor. Era um homem. Talvez tivesse dois metros de altura. Permaneceu no limiar da porta, com os braços cruzados, ouvindo. Dando-se por satisfeito, caminhou vagarosamente pelo quarto e aproximou-se da cama. Conhecia perfeitamente o caminho. Curvou-se sobre o leito e ouviu a serena respiração da jovem. Depois de um momento, tocou em seu próprio peito e acionou um interruptor. Imediatamente um amplo feixe de luz difusa projetou-se na cama. O farolete estava preso ao corpo do homem por meio de um cinto que o fixava à altura do esterno.

Inclinou-se novamente para a frente, de modo que a luz clareou o rosto da jovem.

O intruso examinou aquele rosto durante alguns minutos. Uma de suas mãos avançou, apanhou a orla do lençol, à altura do queixo da jovem, e puxou-o lentamente até os pés da cama. Mas a mão que puxara aquele lençol não era u’a mão. Era um par de pinças de aço muito bem articuladas na extremidade de uma espécie de talo metálico que desaparecia dentro de uma manga de seda negra. Era u’a mão mecânica.

O homem contemplou durante longo tempo aquele corpo nu, deslocando o seu peito de um lado para outro, de modo que todo o leito fosse submetido ao feixe luminoso. Depois, a garra saiu novamente de sob aquela manga e delicadamente levantou a ponta do lençol, puxando-o dos pés da cama até recobrir todo o corpo da jovem. O homem demorou-se ainda por um momento a contemplar o rosto adormecido, depois apagou o farolete e atravessou silenciosamente o quarto em direção à porta aberta, além da qual estava Bond dormindo.

O homem demorou-se mais tempo ao lado do leito de Bond. Perscrutou cada linha, cada sombra do rosto moreno e quase cruel que jazia quase sem vida, sobre o travesseiro. Observou a circulação à altura do pescoço e contou-lhe as batidas; depois, quando puxou o lençol para baixo, fez o mesmo na área do coração. Estudou a curva dos músculos, nos braços de Bond e nas coxas, e considerou pensativo a força oculta no ventre musculoso de Bond. Chegou até mesmo a curvar-se sobre a mão direita de Bond, estudando-lhe cuidadosamente as linhas da vida e do destino.

Por fim, com grande cuidado, a pinça de aço puxou novamente o lençol, desta vez para cobrir o corpo de Bond até o pescoço. Por mais um minuto o elevado vulto permaneceu ao lado do homem adormecido, depois se retirou rapidamente, ganhando o corredor, enquanto a porta se fechava com um estalido metálico e seco.


CONTINUA

XI - VIDA NO CANAVIAL


Seriam cerca de oito horas, pensou Bond. A não ser o coaxar dos sapos, tudo estava mergulhado em silêncio. No canto mais distante da clareira, ele podia vislumbrar o vulto de Quarrel.

Podia-se ouvir o tinir metálico, enquanto ele se ocupava em desmontar e secar a sua “Remington”.

Por entre as árvores podiam-se ver também as luzes distantes, vindas do depósito de guano, riscar caminhos luminosos e festivos sobre a superfície escura do lago. O desagradável vento desaparecera e o abominável cenário estava mergulhado em trevas. Estava bastante fresco. As roupas de Bond tinham secado no corpo. A comida tinha aquecido o seu estômago. Ele experimentou uma agradável sensação de conforto, sonolência e paz. O dia seguinte ainda estava muito longe e não apresentava problemas, a não ser uma boa dose de exercício físico. A vida, subitamente, pareceu-lhe fácil e boa.

A jovem estava a seu lado, metida no saco de dormir. Estava deitada de costas, com a cabeça descansando nas mãos, e olhando para o teto de estrelas. Ele apenas conseguia divisar os pálidos contornos de seu rosto. De repente, ela disse: James, você prometeu dizer-me o que significava tudo isso. Vamos. Eu não dormirei enquanto você não o disser.

Bond riu. — Eu direi se você também disser. Também quero saber o que você pretende.

— Pois não, não tenho segredos: mas você deve falar primeiro.

— Está certo. — Bond puxou os joelhos até a altura do queixo e passou os braços à volta deles. — Eu sou uma espécie de policial. Eles me enviam de Londres quando há alguma coisa de estranho acontecendo em alguma parte do mundo e que não interessa a ninguém. Bem, não faz muito tempo, um dos funcionários do Governador, em Kingston, um homem chamado Strangways, aliás meu amigo, desapareceu. Sua secretária, que era uma linda jovem, também desapareceu sem deixar vestígios. Muitos pensaram que eles tivessem fugido juntos, mas eu não acreditei nisso. Eu...”

Bond contou tudo com simplicidade, falando em homens bons e maus, como numa história de aventuras lida em algum livro. Depois terminou: Como você vê, Honey, temos de voltar a Jamaica, amanhã à noite, todos nós, na canoa, e então o Governador nos dará ouvidos e enviará um destacamento de soldados para apanhar este chinês. Espero que isso terá como conseqüência levá-lo à prisão. Ele com certeza também sabe disso, e essa é a razão pela qual procura aniquilar-nos. Essa é a história. Agora é a sua vez.

A jovem disse: Você parece viver uma vida muita excitante. Sua mulher não deve gostar que você fique fora tanto tempo. Ela não tem medo de que você se fira?

— Não sou casado. A única que se preocupa com a possibilidade de que eu me fira é a minha companhia de seguros.

Ela continuou sondando: Mas suponho que você tenha namoradas.

— Não permanentes.

— Oh!

Fez-se uma pausa. Quarrel se aproximou e disse: “Capitão, farei o primeiro quarto, se for melhor. Estarei na extremidade da restinga e virei chamá-lo à meia-noite. Então talvez o senhor possa ir até as cinco horas, quando nós nos poremos em marcha. Precisamos estar fora daqui antes que clareie o dia.

— Está bem — respondeu Bond. — Acorde-me se você vir alguma coisa. O revólver está em ordem?

— Perfeito — respondeu Quarrel com evidente mostra de contentamento. Depois, dirigindo-se à jovem disse com leve tom de insinuação: — Durma bem, senhorita. Em seguida, desapareceu silenciosamente nas sombras.

— Gosto de Quarrel — disse a jovem. E, após uma pausa: — Você quer realmente saber alguma coisa a meu respeito? A história não é tão excitante quanto a sua.

— É claro que quero. E não omita nada.

— Não há nada a omitir. Você poderia escrever toda a história de minha vida nas costas de um cartão postal. Para começar, nunca saí de Jamaica. Vivi toda a minha vida num lugar chamado Beau Desert, na costa setentrional, nas proximidades do Porto Morgan.

Bond riu. — É estranho: posso dizer o mesmo; pelo menos por enquanto. Não notei você pela região. Você vive em cima de uma árvore?

— Ah, imagino que você tenha ficado na casa da praia. Eu nunca chego até ali. Vivo na Casa Grande.

— Mas nada ficou dela. É uma ruína no meio dos canaviais.

— Eu vivo na adega. Tenho vivido ali desde a idade de cinco anos. Depois a casa se incendiou e meus pais morreram. Nada me lembro deles, por isso você não precisa manifestar pesar. A princípio vivi ali com a minha ama negra, mas depois ela morreu, quando eu tinha apenas quinze anos. Nos últimos cinco anos tenho vivido ali sozinha.

— Nossa Senhora! — Bond estava boquiaberto. — Mas não havia ninguém para tomar conta de você? Os seus pais não deixaram nenhum dinheiro?

— Nem um tostão. — Não havia o mínimo traço de amargura na voz da jovem — talvez orgulho, se houvesse alguma coisa. — Você sabe, os Riders eram uma das mais antigas famílias de Jamaica. O primeiro Rider recebera de Cromwell as terras de Beau Desert, por ter sido um dos que assinaram o veredicto de morte contra o rei Carlos. Ele construiu a Casa Grande e minha família viveu ora nela ora fora dela, desde aquela época. Mas depois veio a decadência do açúcar e eu acho que a propriedade foi pessimamente administrada, e, ao tempo em que meu pai tomou conta da herança, havia somente dívidas — hipotecas e outros ônus. Assim, quando meu pai e minha mãe morreram a propriedade foi vendida. Eu pouco me importei, pois era muito jovem. Minha ama deve ter sido maravilhosa. Quiseram que alguém me adotasse, mas a minha babá reuniu os pedaços de mobília que não tinham sido queimados e com eles nós nos instalamos da melhor forma no meio daquelas ruínas. Depois de algum tempo ninguém mais veio interferir conosco. Ela cosia um pouco e lavava para algumas freguesas da aldeia, ao mesmo tempo que plantava bananas e outras coisas, sem falar do grande pé de fruta-pão que havia diante da casa. Comíamos o que era a ração habitual do povo de Jamaica. E havia os pés de cana-de-açúcar à nossa volta. Ela fizera também uma rede para apanhar peixes, a qual nós recolhíamos todos os dias. Tudo corria bem e nós tínhamos o suficiente para comer. Ela ensinou-me a ler e escrever, como pôde. Tínhamos uma pilha de velhos livros que escapara ao incêndio, inclusive uma enciclopédia. Comecei com o A quando tinha apenas oito anos, e cheguei até o meio do T. — Ela disse um tanto na defensiva: — Aposto que sei mais do que você sobre muitas coisas.

— Estou certo de que sim. — Bond estava perdido na visão daquela jovem de cabelos de linho errando pelas ruínas de uma grande construção, com uma obstinada negra a vigiá-la e a chamá-la para receber as lições que deveriam ter sido um mistério para ela mesma. — Sua ama deve ter sido uma criatura extraordinária.

— Ela era um amor. — Era uma afirmação peremptória. — Pensei que fosse morrer quando ela faleceu. As coisas não foram tão fáceis para mim depois disso. Antes eu levava uma vida de criança, mas subitamente tive que crescer e fazer tudo por mim mesma. E os homens tentaram apanhar-me e atingir-me. Diziam que queriam fazer amor comigo. — Fez uma pausa e acrescentou: — Eu era bonita naquela época. Bond disse muito sério:

— Você é uma das jovens mais belas que já vi.

— Com este nariz? Não seja tolo.

— Você não compreende. — Bond tentou encontrar palavras nas quais ela pudesse crer. — É claro que qualquer pessoa pode ver que o seu nariz está quebrado; mas desde esta manhã dificilmente eu pude notá-lo. Quando se olha para uma pessoa, olha-se para os seus olhos ou para a sua boca. Nesses dois pontos se encontram a expressão. Um nariz quebrado não tem maior significação do que uma orelha torta. Narizes e orelhas são peças do mobiliário facial. Algumas são mais bonitas do que outras, mas não são tão importantes quanto o resto. Se você tivesse um nariz bonito, tão bonito como o resto, você seria a jovem mais bela de Jamaica.

— Você é sincero? — Sua voz era ansiosa. — Você acha que eu poderia ser bela? Sei que muita coisa em mim está bem, mas quando olho no espelho só vejo o meu nariz quebrado. Estou certa de que o mesmo ocorre com outras pessoas que são, que são — bem — mais ou menos aleijadas.

Bond disse com impaciência: — Você não é aleijada! Não diga tolices. E aliás você pode endireitá-lo mediante uma simples operação. Basta que você vá aos Estados Unidos e a coisa levará apenas uma semana.

Ela disse com irritação: — Como é que você quer que eu faça isso? Tenho cerca de quinze libras debaixo de uma pedra, na minha adega. Tenho ainda três saias, três blusas, uma faca e uma panela de peixe. Conheço muito bem essas operações. O médico de Porto Maria já pediu informações para mim. Ele é um homem muito bom e escreveu para os Estados Unidos. Pois para que a operação seja bem feita, eu teria que gastar cerca de quinhentas libras, sem falar da passagem para Nova York, a conta do hospital e tudo o mais.

Sua voz tornou-se desesperançada: — Como é que você espera que eu possa ter todo esse dinheiro?

Bond já decidira sobre o que teria de ser feito, mas no momento apenas disse ternamente: — Bem, espero que se possam encontrar meios; mas, de qualquer maneira, prossiga com a sua história. Ela é muito excitante — muito mais interessante do que a minha. Você tinha chegado ao ponto em que a sua ama morreu. O que aconteceu depois?

A jovem recomeçou com relutância.

— Bem, a culpa é sua por ter interrompido. E você não deve falar de coisas que não compreende. Suponho que as pessoas lhe digam que você é simpático. Você deve também ter todas as namoradas que desejar. Bem, isso não aconteceria se você fosse vesgo ou tivesse um lábio leporino. — Na verdade, ele pôde ouvir o sorriso em sua voz: — Acho que quando voltarmos eu irei ter com o feiticeiro para que lhe faça uma mandinga e lhe dê alguma coisa assim. — E ela acrescentou tristemente: — Dessa forma, nós seremos mais parecidos.

Bond estendeu o braço e sua mão tocou nela: — Eu tenho outros planos. Mas continuemos, quero ouvir o resto da sua história.

— Bem, — disse a jovem com um suspiro. — Eu terei que me atrasar um pouco. Como você sabe, toda a propriedade é representada pela cana-de-açúcar e pela velha casa que está situada no meio da plantação. Bem, umas duas vezes por ano eles cortam a cana e mandam-na para o moinho. E quando eles o fazem, todos os animais e insetos que vivem nos canaviais entram em pânico e a maioria deles têm as suas tocas destruídas e são mortos. Na época da safra, alguns deles começaram a vir para as ruínas da casa, onde se escondiam. No princípio, minha babá ficava aterrorizada, pois lá vinham os mangustos, as cobras e os escorpiões, mas eu preparei dois quartos da adega para recebê-los. Não me assustei com eles, e eles nunca me fizeram mal. Pareciam compreender que eu estava cuidando deles. E devem ter contado aquilo aos seus amigos, ou alguma coisa parecida, pois depois de algum tempo era perfeitamente natural que todos viessem acantonar-se em seus dois quartos, onde ficavam até que os canaviais começassem novamente a crescer, quando então iam saindo e voltando para os campos. Dei-lhes toda a comida que podíamos pôr de lado, quando eles ficavam conosco, e todos se portavam muito bem, a não ser por algum odor e às vezes uma ou outra luta entre si. Mas eram muito mansos comigo. Naturalmente os cortadores de cana perceberam tudo e viam-me andando pelo lugar com cobras à volta do meu pescoço, e assim por diante, a ponto de ficarem aterrorizados comigo e me considerarem uma feiticeira. Por causa disso, eles nos deixaram completamente isoladas. Ela fez uma pausa, e depois recomeçou:

— Foi assim que aprendi tanta coisa sobre animais e insetos. Eu costumava ainda passar muito tempo no mar, aprendendo coisas sobre os animais marinhos, assim como sobre os pássaros. Se se chega a saber o que todas essas criaturas gostam de comer e do que têm medo, pode-se muito bem fazer amizade com elas. — Levantou os olhos para Bond e disse: Você não sabe o que perde ignorando todas essas coisas.

— Receio que perca muito — respondeu Bond com sinceridade. — Suponho que eles sejam muito melhores e mais interessantes que os homens.

Sobre isso nada sei — respondeu a jovem pensativa-mente. — Não conheço muitas pessoas. A maioria das que conheci foram detestáveis, mas acho que deve haver criaturas interessantes também. — Fez uma pausa, e prosseguiu: — Nunca pensei realmente que chegasse a gostar de alguma pessoa como gosto dos animais. Com exceção da babá, naturalmente. Até que... — Ela se interrompeu com um sorriso de timidez. — Bem, de qualquer forma, nós vivemos muito felizes juntas, até que eu fiz quinze anos, quando então a babá morreu e as coisas se tornaram muito difíceis. Havia um homem chamado Mander. Um homem horroroso. Era o capataz branco que servia aos proprietários da plantação. Ele vivia me procurando. Queria que eu fosse viver com ele, em sua casa de Porto Maria.

Eu o odiava, e costumava esconder-me sempre que ouvia o seu cavalo aproximando-se do canavial. Certa noite ele veio a pé e eu não o ouvi. Estava bêbado. Entrou na adega e lutou comigo porque não queria fazer o que ele desejava. Você sabe, as coisas que fazem as pessoas quando estão apaixonadas.

— Sim, já sei.

— Tentei matá-lo com a minha faca, mas ele era muito forte e deu-me um soco tão forte no rosto que me quebrou o nariz. Deixou-me inconsciente e acho que fez alguma coisa comigo. Sei que ele fez mesmo. No dia seguinte eu quis me matar quando vi o meu rosto e verifiquei o que ele me havia feito. Pensei que iria ter um filho. Teria sem dúvida me matado se tivesse tido um filho daquele homem. Em todo caso, não tive, e tudo continuou assim. Fui ao médico e ele fez o que pôde com o meu nariz e não me cobrou nada. Quanto ao resto, eu nada lhe contei, pois estava muito envergonhada. O homem não voltou mais. Eu esperei e nada fiz até a próxima colheita de cana-de-açúcar. Tinha um plano. Estava esperando que as aranhas viúvas-negras viessem procurar abrigo. Um belo dia elas chegaram. Apanhei a maior das fêmeas e á deixei numa caixa sem nada para comer. As fêmeas são terríveis. Então esperei que fizesse uma noite escura, sem luar. Na primeira noite dessas, apanhei a caixa com a aranha e caminhei até chegar à casa do homem. Estava muito escuro e eu me sentia aterrorizada com a possibilidade de encontrar algum assaltante pela estrada, mas não houve nada. Esperei em seu jardim, oculta entre os arbustos, até que ele se recolheu à cama. Então subi por uma árvore e ganhei a sacada; aguardei até que ele começasse a roncar e depois entrei pela janela. Ele estava nu, estendido na cama, sob o mosquiteiro. Levantei uma aba do filó, abri a caixa e sacudi-lhe a aranha sobre o ventre. Depois saí e voltei para casa.

— Deus do céu! — exclamou Bond reverentemente. — O que aconteceu com o homem?

Ela respondeu com satisfação: — Levou uma semana para morrer. Deve ter-lhe doído terrivelmente. Você sabe, a mordida dessa aranha é pavorosa. Os feiticeiros dizem que não há nada que se lhe compare. — Ela fez uma pausa, e como Bond não fizesse nenhum comentário, acrescentou: — Você não acha que eu fiz mal, não é?

— Bem, não faça disso um hábito — respondeu Bond suavemente. — Mas não posso culpá-la, diante do que ele tinha feito. E, depois, o que aconteceu?

— Bem, depois me estabeleci novamente — sua voz era firme. — Tive que me concentrar na tarefa de obter alimento suficiente, e naturalmente. — Acrescentou persuasivamente: — Eu tinha de fato um nariz muito bonito, antes. Você acha que os médicos podem torná-lo igualzinho ao que era antes?

— Eles poderão fazê-lo de qualquer forma que você quiser — disse Bond em tom definitivo. — Como é que você ganhou dinheiro?

— Foi graças à enciclopédia. Li nela que há pessoas que gostam de colecionar conchas marinhas e que as conchas raras podiam ser vendidas. Falei com o mestre-escola local, sem contar-lhe naturalmente o meu segredo, e ele descobriu para mim que havia uma revista norte-americana chamada “Nautilus”, dedicada aos colecionadores de conchas. Eu tinha apenas o dinheiro suficiente para tomar uma assinatura daquela revista e comecei a procurar as conchas que as pessoas pediam em seus anúncios. Escrevi a um comerciante de Miami e ele começou a comprar as minhas conchas. Foi emocionante. Naturalmente que cometi alguns erros, no princípio. Pensei, por exemplo, que as pessoas gostariam das conchas mais bonitas, mas esse não era o caso. Freqüentemente elas preferiam as conchas mais feias. Depois, quando achava conchas raras, punha-me a limpá-las e poli-las a fim de torná-las mais bonitas, mas isso também foi um erro. Os colecionadores querem as conchas exatamente como saem do mar, com o animal em seu interior também. Então consegui algum formol com o médico e o punha entre as conchas vivas, para que elas não tivessem mau cheiro, e depois mandava-as para o tal comerciante de Miami. Só aprendi bem o negócio de um ano para cá e já consegui quinze libras. Consegui esse resultado agora que sei como é que eles querem as conchas e se tivesse sorte, poderia fazer pelo menos cinqüenta libras por ano. Então, em dez anos poderia ir aos Estados Unidos e operar-me. Mas, continuou ela com intenso contentamento, tive uma notável maré de sorte. Fui a Crab Key pelo Natal, onde já tinha estado antes. Mas dessa vez eu encontrei essas conchas purpúreas. Não parecem grande coisa, mas eu enviei uma ou duas para Miami e o comerciante escreveu-me para dizer que compraria tantas dessas conchas quantas eu pudesse encontrar, e ao preço de até cinco dólares pelas perfeitas. Disse-me ainda que eu deveria manter segredo sobre o lugar de onde as tirava, pois de outra forma o “mercado seria estragado”, como disse ele, e os preços cairiam. É como se se tivesse uma mina de ouro particular. Agora serei capaz de juntar o dinheiro em cinco anos. Esse foi o motivo pelo qual tive grandes suspeitas de você, quando o encontrei na praia. Pensei que você tivesse vindo para roubar as minhas conchas.

— Você me deu um susto, pois pensei que você fosse a garota do Dr. No.

— Muito obrigada.

— Mas depois que você tiver feito a operação, o que irá fazer? Você não pode continuar vivendo numa adega durante toda a vida.

— Pensei em me tornar uma prostituta. — Ela o disse como se tivesse dito “enfermeira” ou “secretária”.

— Oh, o que é que você quer dizer com isso? — Talvez ela já tivesse ouvido aquela expressão sem compreendê-la bem.

— Uma dessas jovens que possuem um bonito apartamento e lindas roupas. Você sabe o que quero dizer — acrescentou ela com impaciência. — Os homens telefonam, marcam encontro, chegam, fazem amor e pagam. Elas ganham cem dólares de cada vez, em Nova Iorque, onde pensei começar. Naturalmente — admitiu — terei de fazer por menos, no começo, até que aprenda a trabalhar bem. Quanto é que vocês pagam pelas que não têm experiência?

Bond riu. — Francamente, não me lembro. Há muito tempo que não me encontro com essas mulheres.

Ela suspirou. — Sim, suponho que você possa ter tantas mulheres quantas queira, por nada. Suponho que apenas os homens feios paguem, mas isso é inevitável. Qualquer espécie de trabalho nas grandes cidades deve ser horrível. Pelo menos pode-se ganhar muito mais como prostituta. Depois, poderia voltar para Jamaica e comprar Beau Desert. Seria bastante rica para encontrar um marido bonito e ter alguns filhos. Agora que encontrei essas conchas, penso que poderia estar de volta a Jamaica quando tivesse trinta anos. Não seria formidável?

— Gosto da última parte do plano, mas não tenho muita confiança na primeira. De qualquer forma, como é que você veio a saber dessa história de prostitutas? Encontrou isso na letra P, na enciclopédia?

— Claro que não; não seja tolo. Há uns dois anos houve em Nova Iorque um escândalo sobre elas, envolvendo também um “play-boy” chamado Jelke. Ele tinha toda uma cadeia de prostitutas, e eu li muito sobre o caso no “Gleaner”. O jornal deu inclusive os preços que elas cobravam e tudo o mais. De qualquer forma, há milhares dessas jovens em Kingston, embora não sejam tão boas. Recebem apenas cinco xelins e não têm um lugar apropriado para fazer amor, a não ser no mato. Minha babá chegou a falar-me delas. Disse-me que eu não deveria imitá-las, pois do contrário seria muito infeliz. É claro que seria, recebendo apenas cinco xelins. Mas por cem dólares!...

Bond observou: — Você não conseguiria guardar todo esse dinheiro. Precisaria ter uma espécie de gerente para arranjar os homens, e teria ainda de dar gorjetas à polícia, para deixá-la em paz. Por fim, poderia ir facilmente parar na cadeia se tudo não corresse bem. Na verdade, com tudo o que você sabe sobre animais, bem poderia ter um ótimo emprego, cuidando deles, em algum jardim zoológico norte-americano. E o que me diz do Instituto de Jamaica? Tenho certeza de que você gostaria mais de trabalhar ali. E poderia também facilmente encontrar um bom marido. De qualquer forma, você não deve mais pensar em ser prostituta. Você tem um belo corpo e deve guardá-lo para o homem que amar.

— Isso é o que dizem as pessoas nos livros — disse ela com ar de dúvida. — A dificuldade está em que não há nenhum homem para ser amado em Beau Desert. — Depois acrescentou timidamente: — Você é o único inglês com quem jamais falei. Gostei de você desde o princípio, e não me importo de dizer-lhe essas coisas agora. Penso que há muitas pessoas das quais chegaria a gostar se saísse daqui.

— É claro que há. Centenas. E você é uma garota formidável; o que pensei assim que a vi.

— Assim que viu as minhas nádegas, você quer dizer. — Sua voz estava-se tornando sonolenta, mas cheia de prazer.

Bond riu. — Bem, eram nádegas maravilhosas. E o outro lado também era maravilhoso. — O corpo de Bond começou a se agitar com a lembrança de como a vira pela primeira vez. Depois de um instante, disse com mau humor: — Agora vamos, Honey. Está na hora de dormir. Haverá muito tempo para conversarmos quando voltarmos a Jamaica.

— Haverá? — perguntou ela desconsoladamente. — Você promete?

— Prometo.

Ele a viu agitar-se dentro do saco de dormir. Olhou para baixo e apenas pôde divisar o seu pálido perfil voltado para ele. Ela deixou escapar o profundo suspiro de uma criança, antes de adormecer.

Reinava silêncio na clareira e o tempo estava esfriando. Bond descansou a cabeça sobre os joelhos unidos. Sabia que era inútil procurar dormir, pois sua mente estava cheia dos acontecimentos do dia e dessa extraordinária mulher Tarzan que aparecera em sua vida. Era como se algum animal muito bonito se lhe tivesse dedicado. E não largaria os cordéis enquanto não tivesse resolvido os problemas dela. Estava sentindo isso. Naturalmente que não haveria grandes dificuldades para a maioria de seus problemas. Quanto à operação, seria fácil arranjá-la, e até mesmo encontrar-lhe um emprego, com o auxílio de amigos, e um lar. Tinha dinheiro e haveria de comprar-lhe roupas, mandaria ajeitar os seus cabelos e a lançaria no grande mundo. Seria divertido. Mas quanto ao resto? Quanto ao desejo físico que sentia por ela? Não se podia fazer amor com uma criança. Mas, seria ela uma criança? Não haveria nada de infantil relativamente ao seu corpo ou à sua personalidade. Era perfeitamente adulta e bem inteligente, a seu modo, e muito mais capaz de tomar conta de si mesma do que qualquer outra jovem de vinte anos que Bond conhecera.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um puxão em sua manga. A vozinha disse: — Por que você não vai dormir? Não está sentindo frio?

— Não; estou bem.

— Aqui no saco de dormir está bom e quente. Você quer vir para cá? Tem bastante lugar.

— Não, obrigado, Honey. Estou bem.

Houve uma pausa, e depois ela disse num sussurro: — Se você está pensando... Quero dizer — você não precisa fazer amor comigo... Eu poderia dormir de costas para o seu peito.

— Honey, querida, vá dormir. Seria maravilhoso dormir assim com você, mas não esta noite. De qualquer maneira, em breve terei de render Quarrel.

— Muito bem, — disse ela com voz mal humorada. — Talvez quando voltarmos a Jamaica.

— Talvez.

— Prometa. Não dormirei enquanto você não prometer.

Bond disse desesperadamente: — Naturalmente que prometo. Agora, vá dormir, Honeychile.

A sua voz se fez ouvir outra vez, triunfante: — Agora você tem uma dívida comigo. Você prometeu. Boa-noite, querido James.

— Boa noite, querida Honey.


XII - A COISA


O aperto no braço de Bond era ansioso. Ele de um salto pôs-se de pé.

Quarrel sussurrou tensamente: — Alguma coisa está-se aproximando pela água, capitão! Com certeza é o dragão!

A jovem levantou-se e perguntou nervosamente: — Que aconteceu?

Bond apenas disse: — Fique aí, Honey! Não se mexa. Eu voltarei.

Internou-se pelos arbustos do lado oposto da montanha e correu pela restinga, com Quarrel ao lado.

Chegaram até a extremidade da restinga, a vinte metros da clareira, e pararam sob o abrigo dos últimos arbustos, que Bond apartou com as mãos para ter um melhor campo de visão.

O que seria aquilo? A meia milha de distância, atravessando o lago, vinha algo informe, com dois olhos brilhantes cor de laranja, e pupilas negras. Entre estes, onde deveria estar a boca, tremulava um metro de chama azul. A luminosidade cinzenta das estrelas deixava ver uma espécie de cabeça abaulada entre duas pequenas asas semelhantes às de um morcego. Aquela coisa estranha deixava escapar um ronco surdo e baixo, que abafava um outro ruído, uma espécie de vibração rítmica. Aquela massa avançava na direção deles, à velocidade de uns dezesseis quilômetros por hora, deixando atrás de si uma esteira de espuma.

Quarrel sussurrou:

— Nossa, capitão! Que coisa é aquela?

Bond continuou de pé e respondeu laconicamente: — Não sei exatamente. Uma espécie de trator arranjado para meter medo. Está trabalhando com um motor diesel, e por isso você pode deixar os dragões de lado. Agora, vejamos... — Bond falava como se para si mesmo. — Não adianta fugir. Aquilo se move mais depressa do que nós e sabemos que pode esmagar árvores e atravessar pântanos. Temos que lhe dar combate aqui mesmo. Quais serão os seus pontos fracos? Os motoristas. Com certeza, dispõem de proteção. Em todo caso, não sabemos muito sobre esse ponto. Quarrel, você começará a disparar contra aquela cúpula quando estiverem a uns duzentos metros de nós. Faça a pontaria cuidadosamente e continue atirando. Visarei os faróis quando estiverem a cinqüenta metros. Não se está movendo sobre lagartas. Deve ter alguma espécie de rodas gigantescas, provavelmente de avião. Visarei as rodas também. Fique aí. Ficarei dez metros para baixo. Naturalmente vão reagir e nós temos que manter as balas longe da garota. Está combinado? — Bond esticou o braço e apertou o enorme ombro de Quarrel. — E não se preocupe demais. Esqueça-se de dragões. Trata-se apenas de alguma trapaça do Dr. No. Mataremos os motoristas, tomaremos conta do veículo e ganharemos com ele a costa. Isso economizará as nossas solas. Está bem?

Quarrel deu uma breve risada. — Está bem, capitão. Desde que o senhor assim o diz. Mas que Nosso Senhor saiba também que aquilo não é dragão!

Bond desceu pela restinga e se internou pelos arbustos, até que encontrou um ponto de onde podia ter um bom campo de tiro. Disse suavemente: — Honey!

— Sim, James — e a voz dela deixou transparecer alívio.

— Faça um buraco na areia como fizemos na praia. Faça-o por trás de raízes grossas e fique lá deitada. Talvez haja um tiroteio. Não tenha medo de dragões. Isto é apenas um veículo pintado, dirigido por alguns dos homens do Dr. No. Não se assuste. Estou aqui perto.

— Muito bem, James. Tenha cuidado! — A voz agora deixava transparecer um vivo temor.

Bond curvou-se, apoiando um joelho no chão, sobre as folhas e a areia, e olhou para fora.

Agora o veículo achava-se a uns trezentos metros de distância, e os seus faróis amarelos estavam iluminando a areia. Chamas azuis continuavam saindo da boca daquele engenho. Saíam de uma espécie de longo focinho, no qual se pintaram mandíbulas entreabertas, para darem ao todo a aparência de dragão. Um lança-chamas! Aquilo explicava as árvores queimadas e a história do administrador. A coloração azul da chama seria dada por alguma espécie de queimador, disposto adiante do lança-chamas.

Bond teve que admitir que aquela visão era algo de terrível, à medida que o veículo avançava pelo lago raso. Evidentemente fora calculado para infundir terror. Ele mesmo ter-se-ia assustado, não fora a vibração rítmica do motor diesel. Mas até que ponto aquilo seria vulnerável para homens que não fossem dominados pelo pânico?

A resposta ele a teve quase imediatamente. Ouviu-se o estampido da “Remington” de Quarrel. Uma centelha saiu da cabina encimada pela cúpula e logo se ouviu um ruído metálico. Quarrel disparou mais um tiro e, logo em seguida, uma rajada. As balas chocaram-se inutilmente de encontro à cabina. Não houve mesmo uma simples redução de velocidade. O monstro continuava avançando para o ponto de onde tinham partido os disparos. Bond descansou o cano de seu “Smith & Wesson” no braço, e fez cuidadosa pontaria. O profundo ruído surdo de sua arma fez-se ouvir por sobre o matraquear da “Remington” de Quarrel. Um dos faróis fora atingido e despedaçara-se. Bond disparou mais quatro tiros contra o outro e atingiu-o com o quinto e último disparo de seu revólver. O fantástico aparelho parecia continuar não dando importância, e foi avançando para o lugar de onde tinham partido os disparos do “Smith & Wesson”. Bond tornou a carregar a arma e começou a atirar contra os pneumáticos, sob as asas negro e ouro. A distância agora era de apenas trinta metros e podia jurar que já atingira mais de uma vez a roda mais próxima, sem nenhum resultado. Seria borracha sólida? O primeiro estremecimento de medo percorreu a pele de Bond.

Carregou mais uma vez. Seria aquela coisa maldita vulnerável pela retaguarda? Deveria correr para o lago e tentar uma abordagem? Avançou um passo, através dos arbustos, mas logo ficou imóvel, incapaz de prosseguir.

Subitamente, daquele focinho ameaçador, uma língua de fogo azulada tinha sido lançada na direção do esconderijo de Quarrel. À direita de Bond, no mato, surgira apenas uma chama laranja e vermelha, simultaneamente com um estranho urro, que imediatamente silenciou. Satisfeita, aquela língua de fogo se recolhera à sua boca. Agora aquilo fizera um movimento de rotação sobre o seu eixo e parará completamente. O buraco azulado da boca apontava diretamente para Bond.

Bond deixou-se ficar, esperando pelo horroroso fim. Olhou através das mandíbulas da morte e viu o brilhante f-lamento vermelho do queimador, bem no fundo do comprido tubo. Pensou no corpo de Quarrel — mas não havia tempo para pensar em Quarrel — e imaginou-o completamente carbonizado. Dentro em pouco ele também se incendiaria como uma tocha. Um único berro seria arrancado dele e os seus membros se encolheriam na pose de dançarino dos corpos queimados. Depois viria a vez de Honey. Meu Deus, para o quê ele os havia arrastado! Por que fora tão insano a ponto de enfrentar aquele homem com todo o seu arsenal? Por que não aceitara a advertência que lhe fora feita pelo longo dedo que o alcançara já em Jamaica? Bond trincou os dentes. Vamos, canalhas. Depressa.

Ouviu-se a sonoridade de um alto-falante, que anunciava metàlicamente: “Saia daí, inglês. E a boneca também. Depressa ou será frito no inferno, como o seu amigo”. Para dar mais força àquela ordem, uma língua de fogo foi lançada em sua direção. Bond deu um passo atrás para recuar daquele intenso calor. Sentiu o corpo da garota de encontro às suas costas. Ela disse historicamente: — Tive que vir, tive que vir.

Bond disse: — Está bem, Honey. Fique atrás de mim.

Ele tinha-se decidido. Não havia alternativa. Mesmo que a morte viesse mais tarde, não poderia ser pior do que aquela morte diante do lança-chamas. Bond apanhou a mão da jovem e puxou-a consigo para fora, saindo para a areia.

A voz se fez ouvir novamente: — Pare aí, camarada. E deixe cair o lança-ervilhas. Nada de truques, senão os caranguejos terão um bom almoço.

Bond deixou cair a sua arma. Lá se fora o “Smith & Wesson”. O “Beretta” não teria tido melhor sorte: A jovem lastimou-se, e Bond apertou a sua mão. — Agüente, Honey, — disse ele. — Nós nos livraremos disso.

Bond troçou de si mesmo por causa daquela mentira. Ouviu-se o ruído de uma porta de ferro que se abria. Por trás da cúpula, um homem saltou para a água e caminhou até eles, com um revólver na mão. Ao mesmo tempo ia-se mantendo fora da linha de fogo do lança-chamas. A trêmula chama azul iluminou o seu rosto. Era um chinês negro, de enorme estatura, vestindo apenas calças. Alguma coisa balançava em sua mão esquerda, e quando ele se aproximou mais, Bond pôde ver que eram algemas.

O homem deteve-se a alguns metros de distância e disse:

— Levantem os braços. Punhos juntos e caminhem em minha direção. Você primeiro, inglês. Devagar ou receberá mais um umbigo.

Bond obedeceu e quando estava a um passo do homem, este prendeu o revólver entre os dentes, e esticou os braços e atou os seus pulsos com as algemas. Bond examinou aquele rosto iluminado pelas chamas azuis. Era uma cara brutal, com olhos estrábicos. O agente do Dr. No fitou-o com desprezo. — Bastardo imbecil! — disse.

Bond deu as costas ao homem e começou a se afastar. Ia ver o corpo de Quarrel. Tinha que lhe dizer adeus. Ouviu-se o ruído de um disparo e uma bala jogou-lhe areia nos pés. Bond parou, e voltando-se lentamente disse:

— Não fique nervoso. Vou dar uma espiada no homem que você acabou de assassinar. Voltarei.

O homem abaixou o revólver e riu grosseiramente: — Muito bem. Divirta-se. Desculpe se não temos uma coroa. Volte logo, se não daremos uma amostra à boneca. Dois minutos.

Bond caminhou em direção ao cerrado de arbustos fumegantes. Ali chegando, olhou para baixo. Seus olhos e boca se contraíram. Sim, tinha sido bem como ele imaginara. Pior, mesmo. Disse docemente: — Perdoe-me, Quarrel. — Com o pé soltou um pouco de areia, que colheu com as mãos algemadas e verteu-a sobre os restos dos olhos de Quarrel. Depois caminhou lentamente, de volta, e ficou ao lado da jovem.

O homem empurrou-os para a frente com o revólver. Deram a volta por trás da máquina, onde havia uma pequena porta quadrada. Uma voz do interior disse: — Entrem e sentem-se no chão. Não toquem em nada ou ficarão com os dedos partidos.

Com dificuldade, arrastaram-se para dentro daquela caixa de ferro, que cheirava a óleo e suor. Havia lugar apenas para que ambos se sentassem com as pernas encolhidas, de joelhos para cima. O homem que empunhava o revólver e que vinha atrás deles saltou por último para dentro do carro e fechou a porta. Ligou uma lâmpada e sentou-se num assento de ferro, ao lado do chofer. — Muito bem, Sam, vamos andando. Você pode apagar o fogo. Há luz bastante para dirigir — disse.

Na painel de controle podia-se ver uma fileira de mostradores. O motorista esticou a mão e deslocou para baixo um par de interruptores. Engrenou o motor e olhou através de uma estreita fresta, cortada na parede de ferro, diante dele. Bond sentiu que o veículo dava uma volta. Ouviu-se um movimento mais rápido do motor, e o veículo avançou.

O ombro da jovem apertou-se de encontro ao de Bond.

— Para onde estão eles nos levando? — O seu sussurro traía um estremecimento.

Bond voltou a cabeça e olhou para ela. Era a primeira vez que podia ver os seus cabelos depois de secos. Estavam desfeitos pelo sono, mas não eram mais mechas de rabichos empastados. Caíam densamente até os ombros, onde terminavam em anéis voltados para dentro. Eram do mais pálido louro acinzentado e despediam reflexos quase prateados sob a luz elétrica. Ela olhou para o alto, para ele. A pele, à volta dos olhos e nos cantos da boca, mostrava-se lívida de medo.

Bond deu de ombros, procurando aparentar uma indiferença que não sentia!. Sussurrou: — Oh, espero que vamos ver o Dr. No. Não se preocupe demais, Honey. Esses homens não passam de pequenos bandidos. Com ele, as coisas serão diferentes. Quando estivermos diante dele, não diga nada, falarei por nos dois. — Ele apertou o seu ombro e disse: — Gosto da maneira por que você penteia o seu cabelo, e fico contente porque você não o apara muito curto.

Um pouco da tenção desapareceu do rosto dela. — Como é que você pode pensar em coisas como essa? — Deu um leve sorriso para ele, e acrescentou: — Mas estou contente por você gostar de meu penteado. Lavo os meus cabelos com óleo de coco uma vez por semana.

À lembrança de sua outra vida, seus olhos ficaram brilhantes. Ela baixou a cabeça para as mãos algemadas, a fim de esconder as lágrimas. Sussurrou quase para si mesma: — Tentarei ser brava. Tudo estará bem, desde que você esteja lá.

Bond aconchegou-se a ela. Levantou suas mãos algemadas até a altura dos olhos e examinou as algemas. Eram do tipo usado pela polícia norte-americana. Contraiu sua mão esquerda, a mais fina das duas, e tentou fazê-la deslizar pelo anel de aço. Mesmo o suor de sua pele de nada adiantou. Era inútil.

Os dois homens sentavam-se em seus bancos de ferro, indiferentes, e com as costas voltadas para eles. Sabiam que dominavam inteiramente a situação. Não havia possibilidade de que Bond oferecesse qualquer incômodo. Não poderia levantar-se ou dar o necessário impulso aos seus punhos para causar qualquer mal às cabeças de seus adversários, utilizando as algemas. Se conseguisse abrir a porta e pular para a água, o que lograria com isso? Imediatamente eles sentiriam a brisa fresca, nas costas, e parariam a máquina para queimá-lo na água ou içá-lo novamente. Bond aborrecia-se em pensar que os homens pouco se preocupavam com ele, pois sabiam tê-lo completamente em seu poder. Também não gostou da idéia de que aqueles homens eram bastante inteligentes para saber que ele não representava nenhuma ameaça. Indivíduos mais estúpidos teriam ficado em cima deles, de revólver em punho, tê-los-iam surrado, a ele e à jovem, barbaramente, e talvez os tivessem deixado inconscientes. Aqueles dois conheciam o ofício. Eram profissionais, ou tinham sido treinados para o serem.

Os dois homens não falaram. Não houve nenhum comentário sobre o quão hábil eles tinham sido, ou quanto ao seu cansaço ou destino. Apenas dirigiam a máquina serenamente, ultimando com eficiência a sua tarefa.

Bond continuava sem a mínima idéia do que seria aquilo. Sob a tinta negra e dourada, assim como sob o resto daquela fantasia, a máquina parecia uma espécie de trator, como ele nunca vira. Não tinha conseguido descobrir nomes de marcas comerciais, nos pneumáticos, pois estivera muito escuro, mas certamente que deveriam ser de borracha sólida ou porosa. Atrás havia um pequena roda para dar estabilidade ao conjunto. Uma espécie de barbatana de ferro fora ainda acrescentada e pintada também de preto e ouro, a fim de ajudar a dar a aparência de dragão. Os altos pára-lamas tinham sofrido um prolongamento, na forma de curtas asas voltadas para trás. Uma comprida cabeça de dragão, feita em metal, fora fixada ao radiador e os faróis receberam pontos centrais negros, para parecerem olhos. Era tudo, sem falar da cabina que fora recoberta com uma cúpula blindada e dotada de um lança-chamas. Era, como pensara Bond, um trator preparado para assustar e queimar — embora não pudesse atinar porque estava dotado de um lança-chamas e não de uma metralhadora. Era, evidentemente, a única espécie de veículo que poderia percorrer a ilha. Suas gigantescas rodas podiam avançar sobre os mangues, pântanos e ainda atravessar o lago raso. Galgaria também os agrestes planaltos de coral e, desde que andasse à noite, o calor experimentado na cabina seria pelo menos tolerável.

Bond ficara impressionado. Impressionado pelo toque de profissionalismo. O Dr. No era sem dúvida um homem que se preocupava intensamente com as coisas. Em pouco iria encontrá-lo. E em breve estaria diante do segredo do Dr. No. Então, o que aconteceria? Bond sorriu amargamente. Sim, não o deixariam sair dali com o seu conhecimento. Certamente seria morto, a menos que pudesse fugir ou conseguir a sua liberdade por meios persuasivos. E o que aconteceria à jovem? Poderia ele provar sua inocência e conseguir com que ela fosse poupada? Possivelmente, mas nunca mais ela teria permissão para deixar a ilha. Ali teria de ficar para o resto da vida, como amante ou mulher de um dos homens, ou do próprio Dr. No, se ela o impressionasse.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um trecho do percurso mais difícil, como se podia sentir pela trepidação. Tinham atravessado o lago e estavam no caminho que levava para o alto da montanha, junto às cabanas. A cabina vibrava e a máquina começou a galgar o terreno. Dentro de cinco minutos estariam lá.

O ajudante do motorista olhou por sobre o ombro para Bond e a jovem. Bond sorriu confiantemente para ele dizendo: Você receberá uma medalha por isso.

Os olhos amarelos e marrons olharam impassivelmente dentro dos dele, enquanto os lábios arroxeados e oleosos se fenderam num sorriso no qual havia um ódio repousado: Feche a boca, se... Depois, deu-lhe as costas.

A jovem tocou-o com o cotovelo e sussurrou: — Por que eles são tão rudes? Por que nos odeiam tanto?

Bond esboçou um sorriso e disse: — Acho que é porque lhes causamos medo. Talvez ainda estejam com medo, e isto porque não parecemos ter medo deles. Devemos mantê-los assim.

A jovem aconchegou-se a ele e disse: — Tentarei.

Agora a subida estava-se tornando mais íngreme. Uma luz azul-acinzentada atravessava as frestas da armadura. A madrugada se aproximava. Fora, em breve estaria começando mais um dia de calor abrasador, de execrável vento, carregado com o cheiro de gás dos pântanos. Bond pensou em Quarrel, o bravo gigante que não mais veria aquele dia, e com o qual eles deveriam agora estar caminhando através dos pauis de mangues. Quarrel tinha pressentido a morte, mas apesar disso tinha acompanhado Bond sem qualquer objeção. Sua fé em Bond tinha sido maior do que o seu medo. E Bond tinha-lhe faltado. Seria ele ainda o causador da morte da jovem?

O motorista esticou o braço em direção ao painel e na parte dianteira do veículo fez-se ouvir o breve zunido de uma sirena de polícia, que foi desaparecendo num gemido fúnebre. Mais um minuto e o veículo parava, continuando o motor em regime neutro. O homem apertou um interruptor e tirou um microfone de um gancho, a seu lado. Falou por aquele microfone e Bond pôde ouvir a sua voz aumentada, do lado de fora, por um altofalante. — Tudo bem. Apanhamos o inglês e a garota. O outro homem morreu. Isso é tudo. Abram. — Bond ouviu que uma porta se deslocava para o lado, sobre rolamentos. O motorista embreou e eles avançaram lentamente para a frente, parando alguns metros adiante. O motorista desligou o motor. Ouviu-se o ruído metálico da tranca e a porta foi aberta pelo lado de fora. Uma lufada de ar fresco e uma luz mais brilhante penetraram na cabina. Várias mãos agarraram Bond e arrastaram-no para trás, até um chão de cimento. Bond agora estava de pé e sentia o cano de um revólver encostado ao seu flanco. Uma voz disse: — Fique onde está. Nada de espertezas. — Bond olhou para o homem. Era mais um chinês negro, do mesmo tipo que os outros. Os olhos amarelos examinaram-no com curiosidade. Bond virou-se com indiferença. Outro homem estava cutucando a jovem com a arma. Bond disse asperamente: — Deixe a garota em paz! Em seguida, caminhou e pôs-se ao lado da jovem. Os dois homens pareceram surpresos. Deixaram-se ficar de pé, apontando as armas com hesitação.

Bond olhou à volta. Estavam numa das cabanas pré-fabricadas que ele vira do rio. Era ao mesmo tempo uma garagem e uma oficina. O “dragão” tinha sido colocado sobre um fosso de vistoria, no chão de concreto. Um motor de popa desmontado estava sobre uma das bancadas. Longos tubos de luz fluorescente estavam afixados ao teto e o ambiente estava impregnado do cheiro de óleo e fumaça de exaustor. O motorista e o seu companheiro examinavam a máquina. Em seguida deram alguns passos pelo galpão, como se andassem sem propósito.

Um dos guardas anunciou: — Enviei a mensagem. A ordem é que eles sejam levados. Foi tudo bem?

O ajudante de motorista, que parecia o homem mais responsável, ali presente, disse: — Sem dúvida. Alguns disparos. Os faróis foram partidos. Talvez haja alguns furos nos pneumáticos. Ponha os rapazes em ação — uma vistoria completa. Conduzirei esses dois e tirarei um cochilo. — E, voltando-se para Bond: — Bem, vamos andando — e indicou o caminho que saía do longo galpão.

Bond disse: — Vá andando você; e cuidado com os modos. Diga àqueles macacos que tirem as armas de cima de nós. Podem disparar por engano. Parecem bastante idiotas.

O homem se aproximou, e os outros os acompanharam logo atrás. O ódio brilhava em seus olhos. O chefe levantou o punho cerrado, tão grande quanto um pequeno malho e chegou-o à altura do nariz de Bond. Procurava controlar-se com esforço, e disse: — Ouça, senhor. Às vezes, nós, os rapazes, temos permissão para participar da festa final. Estou rezando para que essa seja uma dessas vezes. Certa ocasião fizemos com que a coisa durasse toda uma semana. E se eu o pego...

Riu e os seus olhos brilharam com crueldade. Olhou para o lado de Bond, fixando a garota. Seus olhos pareciam transformados em bocas que agitavam os lábios. Enfiou as mãos nos bolsos laterais das calças. A ponta de sua língua mostrava-se muito vermelha, entre os lábios arroxeados. Voltando-se para os companheiros disse: — Que tal, rapazes?

Os três homens estavam olhando também para a jovem. Fizeram um sinal de assentimento, como crianças diante de uma árvore de Natal.

Bond desejou atirar-se como um louco sobre eles, golpeando as suas caras com os punhos algemados e aceitando a sua vingança sangrenta. Não fosse pela jovem, bem que o teria feito. Mas tudo o que tinha conseguido com suas corajosas palavras fora amedrontá-la. Disse apenas: — Muito bem, muito bem. Vocês são quatro e nós somos dois, ainda por cima com as mãos atadas. Vamos, não queremos atingi-los. Apenas não nos empurrem muito de um lado para outro. O Dr. No poderia não ficar satisfeito.

Àquele nome, os rostos dos homens se modificaram. Três pares de olhos passaram apàticamente de Bond para o chefe. Por um segundo, este olhou com desconfiança para Bond, intrigado, tentando descobrir se Bond teria alguma influência junto ao Dr. No. Sua boca abriu-se para dizer algo, mas logo pareceu pensar melhor, e apenas disse de maneira incerta: — Bem, bem, estávamos simplesmente brincando. — Voltou-se para os homens, em busca de confirmação: — Não é?

— Sem dúvida, sem dúvida! — foi a resposta dada por um coro áspero, e os homens desviaram o olhar.

O chefe disse com mau humor: — Por aqui, senhor. — E ele mesmo pôs-se a caminho, percorrendo o comprido galpão.

Bond segurou o pulso da jovem e seguiu o chefe. Estava impressionado com a reação causada naqueles homens pelo nome do Dr. No. Aquilo era alguma coisa a lembrar se eles tivessem que se haver novamente com aquela turma.

O homem chegou a uma porta de madeira situada na extremidade do galpão. Ao lado havia um botão de campainha que ele pressionou duas vezes e esperou. Ouviu-se um estalido e a porta se abriu, mostrando dez metros de uma passagem rochosa, mas atapetada e que ia dar, na outra extremidade, em outra porta mais elegante e pintada de creme.

O homem ficou de lado. Siga em frente, senhor — disse; — bata na porta e será atendido pela recepcionista. — Não havia nenhuma ironia em sua voz e seus olhos se mostravam impassíveis.

Bond conduziu Honey pela passagem. Ouviu que a porta se fechava às suas costas. Deteve-se por um momento e fitou-a, perguntando-lhe: — E agora?

Ela riu, trêmula, mas respondeu: — Ê bom sentir-se tapete sob os pés.

Bond apertou o seu pulso. Andou até a porta pintada de creme e bateu.

A porta abriu-se e Bond entrou com a jovem ao lado. Quando se deteve instantaneamente, não chegou a perceber o encontrão que lhe dava a jovem, pois continuou estarrecido.


XIII - GAIOLA DE OURO


Era a espécie de sala de recepção que as maiores corporações norte-americanas possuem no andar em que se situa o escritório do presidente, em seus arranha-céus de Nova Iorque. Suas proporções eram agradáveis, com cerca de vinte pés quadrados. O chão era todo recoberto pelo mais espesso tapete Wilton cor-de-vinho. O teto e as paredes estavam pintados numa suave tonalidade cinza pombo. Viam-se ainda reproduções litográficas de esboços de balé de Degas penduradas em séries, nas paredes, e a iluminação era feita com altos e modernos jogos de abajures de seda verde-escuro, imitando a forma de elegantes barricas.

À direita de Bond estavam uma larga mesa de mogno, com o tampo recoberto com couro verde, outras peças que se harmonizavam perfeitamente com a mesa, e um caro sistema de intercomunicações. Duas cadeiras altas, de antiquado, aguardavam os visitantes. Do outro lado da sala via-se uma mesa do tipo refeitório, sobre a qual estavam várias revistas com capas em cores vivas e mais duas cadeiras. Tanto na mesa de escritório, como na outra, viam-se vasos de hibiscos. O ar era fresco e impregnado de leve fragrância.

Duas mulheres estavam naquela sala. Por trás da mesa de trabalho, empunhando uma caneta que descansava sobre um formulário impresso, estava sentada uma jovem chinesa, de aspecto eficiente, com óculos de armação de chifre, sob uma franja de cabelos negros cortados curtos. Em seus olhos e em sua boca havia o sorriso padrão de boas-vindas que qualquer recepcionista exibe — a um tempo claro, obsequioso e inquisitivo.

Ainda com a mão na maçaneta da porta pela qual eles tinham passado, e esperando que os recém-chegados se adiantassem mais, a fim de que ela a pudesse fechar, estava uma mulher mais velha, com aspecto de matrona, e que deveria ter cerca de quarenta e cinco anos. Era fácil ver-se que também tinha sangue chinês. Sua aparência, saudável, de farto busto, era viva e quase excessivamente graciosa. O seu “pince-nez” de lentes cortadas em quadrado brilhava com o desejo da recepcionista de os pôr à vontade.

Ambas as mulheres vestiam roupas imaculadamente alvas, com meias brancas e sapatos de camurça branca como costumam apresentar-se as auxiliares empregadas nos mais luxuosos salões de beleza norte-americanos. Havia um que de suave e pálido em suas peles, como se elas raramente saíssem para o ar-livre.

Bond observou o ambiente, enquanto a mulher junto à porta lhe dizia frases convencionais de boas-vindas, como se eles tivessem sido colhidos por uma tempestade o chegado com atraso a uma festa.

— Oh, coitados! Nós não sabíamos quando vocês iriam chegar. A todo momento nos diziam que vocês já estavam a caminho... primeiro à hora do chá, ontem, depois na hora do jantar, e apenas há uma hora fomos informadas de que vocês chegariam à hora do desjejum. Devem estar com fome. Venham aqui e ajudem a irmã Rosa a preencher o formulário; depois eu os prepararei para a cama. Devem estar muito cansados.

Ia dizendo aquilo com voz doce e cacarejante, ao mesmo tempo que fechava a porta e os levava para junto da mesa e os fazia sentar nas cadeiras. Depois disse: — Bem, eu sou a irmã Lírio, e esta é a irmã Rosa. Ela irá fazer-lhes apenas algumas perguntas. Agora, aceitam um cigarro? — e pegou uma caixa de couro trabalhado que estava em cima da mesa. Abriu-a e pô-la diante deles. A caixa tinha três divisões, e a chinesinha explicou apontando com um dedo: “Esses são americanos, esses são ingleses e esses turcos.” Ela apanhou um luxuoso isqueiro de mesa e esperou.

Bond estendeu as mãos algemadas para tirar um cigarro turco.

A irmã Lírio deu um gritinho de espanto: — Oh, mas francamente. — Parecia sinceramente embaraçada. — Irmã Rosa, dê-me a chave, depressa. Já disse por várias vezes que os pacientes não devem ser trazidos dessa maneira. — Havia impaciência e aborrecimento em sua voz. — Francamente, aquela gente lá de fora! Já era tempo que eles fossem chamados à ordem.

A irmã Rosa estava tão embaraçada quanto a irmã Lírio. Rapidamente remexeu dentro de uma gaveta e entregou uma chave à irmã Lírio, que com muitas desculpas e cheia de dedos abriu os dois pares de algemas e, afastando-se para trás da mesa, deixou aquelas duas pulseiras de aço caírem dentro da cesta de papéis como se fossem ataduras sujas.

— Obrigado, — disse Bond, que não sabia como enfrentar aquela situação, a não ser procurando desempenhar um papel qualquer na comédia que se estava representando. Ele estendeu o braço, apanhou um cigarro e acendeu-o. Lançou um olhar para Honeyehile Rider, que parecia estonteada e nervosamente apertava com as mãos os braços de sua cadeira. Bond dirigiu-lhe um sorriso de conforto.

— Agora, por favor; — disse a irmã Rosa e inclinou-se sobre um comprido formulário impresso em papel caro. — Prometo ser o mais rápida que puder. O seu nome, sr... sr...

— Bryce, John Bryce.

Ela escreveu a resposta com grande concentração. — Endereço permanente?

— Aos cuidados do Jardim Zoológico Real, Regents Park, Londres, Inglaterra.

— Profissão?

— Ornitologista.

— Oh, meu Deus!, poderia o senhor soletrar isso? Bond atendeu-a.

— Muito obrigada. Agora, vejamos, objeto da viagem?

— Aves — respondeu Bond. — Sou também representante da Sociedade Audubon de Nova Iorque. Eles arrendaram parte desta ilha.

— Oh, sem dúvida. — Bond observou que a pena escrevia exatamente o que ele dizia. Depois da última palavra ela pôs um claro ponto de interrogação entre parênteses.

— E — a irmã Rosa sorriu polidamente em direção a Honeyehile — a sua esposa? Ela também está interessada em pássaros?

— Sim, sem dúvida.

— O seu primeiro nome?

— Honeyehile.

A irmã Rosa estava encantada. — Que nome lindo! — Ela voltou a escrever apressadamente. — E agora os parentes mais próximos de ambos, e estará tudo acabado.

Bond deu o verdadeiro nome de M como o parente mais próximo de ambos. Apresentou-o como “tio” e indicou o seu endereço como sendo “Diretor-Gerente, Exportadora Universal, Regents Park, Londres.”

A irmã Rosa acabou de escrever e disse: — Pronto, está tudo feito. Muito obrigada, sr. Bryce, e espero que ambos apreciem a permanência aqui.

— Muito obrigado. Estou certo de que apreciaremos. — Bond levantou-se e Honeyehile fez o mesmo, ainda com expressão vazia.

A irmã Lírio disse: — Agora, venham comigo, queridos.

— Ela caminhou até uma porta na parede distante e deteve-se com a mão na maçaneta talhada em vidro. — Oh, meu Deus, — disse —, não é que agora me esqueci do número de seus quartos? É o apartamento creme, não é, irmã?

— Isso mesmo. Catorze e quinze.

— Obrigada, querida. E agora — ela abriu a porta — se vocês quiserem me seguir... Receio que seja uma caminhada um pouco longa. — Fechou a porta, por trás deles, e pôs-se à frente, indicando o caminho. — O Doutor tem falado várias vezes em instalar uma dessas escadas rolantes, ou algo de parecido, mas sabem como são os homens ocupados: — Ela riu alegremente. — Ele tem tantas outras coisas em que pensar!

— Sim, acredito, — disse Bond polidamente.

Bond tomou a mão da jovem e seguiram ambos a maternal e agitada chinesa através de cem metros de um alto corredor, do mesmo estilo da sala de recepção, mas que era iluminado a freqüentes intervalos por caros tubos luminosos fixados às paredes.

Bond respondia com polidos monossílabos aos comentários ocasionais que a irmã Lírio lhe lançava por sobre os ombros. Toda a sua mente se concentrava nas extraordinárias circunstâncias de sua recepção. Tinha certeza de que aquelas duas mulheres tinham sido sinceras. Nenhum só olhar ou palavra conseguira registrar que estivesse fora de propósito. Evidentemente aquilo era alguma espécie de fachada, mas de qualquer forma uma fachada sólida, meticulosamente apoiada pelo cenário e pelo elenco. A ausência de ressonância, na sala, e agora no corredor, estava a indicar que eles tinham deixado o galpão pré-fabricado para se internarem no flanco da montanha e agora estavam atravessando a sua base. Segundo o seu palpite estavam mesmo andando em direção oeste — em direção à penedia na qual terminava a ilha. Não havia umidade nas paredes e o ar parecia fresco e puro, com uma brisa a afagá-los. Muito dinheiro e uma bela realização de engenharia tinham sido os responsáveis por aquilo. A palidez das duas mulheres estava a sugerir que passavam a maior parte do tempo internadas no âmago da montanha. Do que a irmã dissera, parecia que elas faziam parte de um grupo de funcionários internos que nada tinham a ver com o destacamento de choque do exterior, e que talvez não soubessem a espécie de homens que eles eram.

Aquilo era grotesco, concluiu Bond ao se aproximar de uma porta, na extremidade do corredor, perigosamente grotesco, mas em nada adiantava pensar nisso no momento. Ele apenas podia seguir o papel que lhe tinha sido destinado. Pelo menos, aquilo era melhor do que os bastidores, na arena exterior da ilha.

Junto à porta, a irmã Lírio fez soar uma campainha. Já eram esperados e a porta abriu-se imediatamente. Uma encantadora jovem chinesa, de quimono lilás e branco, ficou a sorrir e a curvar-se, como se deve esperar que o façam as jovens chinesas. E, mais uma vez só havia calor e um sentimento de boas-vindas naquele rosto pálido como uma for. A irmã Lírio exclamou: — Aqui estão eles, finalmente, May! São o senhor e a senhora John Bryce. E sei que ambos devem estar exaustos, por isso devemos levá-los imediatamente aos seus aposentos, para que possam repousar e dormir. — Voltando-se para Bond: — Esta é May, muito boazinha. Ela tratará de ambos. Qualquer coisa que queiram é só tocar a campainha que May atenderá. É uma espécie de favorita de todos os nossos hóspedes.

Hóspedes!, pensou Bond. Essa é a segunda vez que ela usa a palavra. Sorriu polidamente para a jovem, e disse;

— Muito prazer; sim, certamente que gostaríamos de ir para os nossos aposentos.

May envolveu-os num cálido sorriso, e disse em voz baixa e atraente: — Espero que ambos se sintam bem, sr. Bryce. Tomei a liberdade de mandar vir uma refeição assim que soube que os senhores iam chegar. Vamos...? — Corredores saiam para a esquerda e a direita de portas duplas de elevadores, instalados na parede oposta. A jovem adiantou-se, caminhando na frente, para a direita, logo seguida de Bond e Honeyehile, que tinham atrás a irmã Lírio.

Ao longo do corredor, dos dois lados, viam-se portas numeradas. A decoração era feita no mais pálido cor-de-rosa, com um tapete cinza-pombo. Os números nas portas eram superiores a dez. O corredor terminava abruptamente, com duas portas, uma em frente a outra, com a numeração catorze e quinze. A irmã May abriu a porta catorze e o casal a seguiu, entrando na peça.

Era um lindo quarto de casal, em moderno estilo Mia-mi, com paredes verde-escuro, chão encerado de mogno escuro, com um ou outro espesso tapete branco e bem desenhado mobiliário de bambu com um tecido “chintz” de grandes rosas vermelhas sobre fundo branco. Havia uma porta de comunicação para um quarto de vestir masculino e outra que dava para um banheiro moderno e extremamente luxuoso, com uma banheira de descida e um bidê.

Era como se tivessem sido introduzidos num apartamento do mais moderno hotel da Flórida, com exceção de dois detalhes que não passaram despercebidos a Bond. Não havia janelas e nenhuma maçaneta interior nas portas.

May olhou com expressão de expectativa, de um para o outro.

Bond voltou-se para Honeyehile e sorriu-lhe: — Parece muito confortável, não acha, querida?

A jovem brincava com a barra da saia e fez um sinal de assentimento sem olhar para Bond.

Ouviu-se uma tímida batida na porta e outra jovem, tão linda quanto May, entrou carregando uma bandeja que se equilibrava sobre as palmas das mãos. A jovem descansou a bandeja sobre a mesa do centro e puxou duas cadeiras. Retirou a toalha de linho imaculadamente limpa e saiu. Sentiu-se um delicioso cheiro de fiambre e café.

May e a irmã Lírio também se encaminharam para a porta. A mulher mais idosa se deteve por um instante e disse:

— E agora nós os deixaremos em paz. Se desejarem alguma coisa, basta tocar a campainha. Os interruptores estão ao lado da cama. Ah, outra coisa, poderão encontrar roupa limpa nos aparadores. Receio que sejam apenas de estilo chinês,

— acrescentou, como a desculpar-se —, mas espero que os tamanhos satisfaçam. A rouparia só recebeu as medidas ontem à noite. O Dr. deu ordens severas para que os senhores não fossem perturbados. Ficará encantado se puderem reunir-se a ele, esta noite, para o jantar. Deseja, entretanto, que tenham todo o resto do dia à vontade, a fim de que melhor se ambientem, compreendem? — Fez uma pausa e olhou para um e para outro, com um sorriso indagador. — Posso dizer que os senhores...?

— Sim, por favor, — disse Bond. — Pode dizer ao D., que teremos muito prazer em jantar com ele.

— Oh, sei que ficará contente. — Com uma derradeira mesura, as duas chinesas se retiraram e fecharam a porta.

Bond voltou-se para Honeyehile, que parecia embaraçada e ainda evitava os seus olhos. Ocorreu então a Bond que talvez jamais tivesse ela tido um tratamento tão cortês ou visto tanto luxo em sua vida. Para ela, tudo aquilo devia ser muito mais estranho e aterrador do que o que tinham passado ao lado de fora. Ela continuou na mesma posição, brincando com a barra da saia. Podiam-se notar vestígios de suor seco, sal e poeira em seu rosto. Suas pernas nuas estavam sujas e Bond observou que os dedos de seus pés se moviam, suavemente, ao pisarem nervosamente o maravilhoso e espesso tapete.

Bond riu. Riu com gosto ao pensamento de que os temores da jovem tivessem sido abafados pelas preocupações de etiqueta e comportamento, e riu-se também da figura que ambos faziam — ela em farrapos e ele com a suja camisa azul, as calças pretas e os sapatos de lona enlameados.

Aproximou-se dela e segurou-lhe mãos. Estavam frias. Disse: — Honey, somos um par de espantalhos, mas há apenas um problema básico. Devemos tomar o nosso desjejum primeiro, enquanto está quente, ou tiraremos antes esses farrapos e tomaremos um banho, tomando a nossa refeição fria? Não se preocupe com mais nada. Estamos aqui nessa maravilhosa casinha e isto é tudo o que importa. O que faremos, então?

Ela sorriu hesitante. Seus olhos azuis fixavam-se no rosto dele, na ânsia de obter segurança. Depois disse: — Você não está preocupado com o que nos possa acontecer? — Fez um sinal para o quarto e acrescentou: — Não acha que tudo isso pode ser uma armadilha?

— Se se trata de uma armadilha, já caímos nela. Agora nada mais podemos fazer senão comer a isca. A única questão que subsiste é a de saber se a comeremos quente ou fria. — Apertou-lhe as mãos e continuou: — Seriamente, Honey. Deixe as preocupações comigo. Pense apenas onde estávamos apenas há uma hora. Isso aqui não é melhor? Agora, decidamos a única coisa realmente importante. Banho ou desjejum?

Ela respondeu com relutância: — Bem, se você acha... Quero dizer — preferiria antes lavar-me. — Mas logo acrescentou: — Você terá que ajudar-me. — E sacudiu a cabeça em direção ao banheiro, dizendo: Não sei como mexer numa coisa dessas. Como é que se faz?

Bond respondeu com toda seriedade: — É muito fácil. Vou preparar tudo para você. Enquanto você estivar tomando o seu banho tomarei o meu desjejum. Ao mesmo tempo tratarei de fazer com que o seu não esfrie.

Bond aproximou-se de um dos armários embutidos e abriu a porta. No interior havia uma meia dúzia de quimonos, alguns de seda e outros de linho. Apanhou um de linho, ao acaso. Depois, voltando-se para ela, disse: — Tire suas roupas e meta-se nisso aqui, enquanto preparo o seu banho. Mais tarde você escolherá as coisas que preferir, para a cama e para o jantar.

Ela respondeu com gratidão: — Oh, sim, James. Se você apenas me mostrasse... — E logo começou a desabotoar a saia.

Bond pensou em tomá-la nos braços e beijá-la, mas, ao invés disso, disse abruptamente: — ótimo, Honey — e, adiantando-se para o banheiro, abriu as torneiras.

Havia de tudo naquele banheiro: essência para banhos Floris Lime, para homens, e pastilhas de Guarlain para o banho de senhoras. Esfarelou uma pastilha na água e imediatamente o banheiro perfumou-se como uma loja de orquídeas. O sabonete era o Sapoceti de Guarlain “Fleurs des Alpes”. Num pequeno armário de remédios, atrás de um espelho, em cima da pia, podiam-se encontrar tubos de pasta, escovas de dente e palitos “Steradent”, água “Rose” para lavagem bucal, aspirina e leite de magnésia. Havia também um aparelho de barbear elétrico, loção “Lentheric” para barba, e duas escovas de náilon para cabelos e pentes. Tudo era novo e ainda não tinha sido tocado.

Bond olhou para o seu rosto sujo e sem barbear, no espelho, e riu sardonicamente para os próprios olhos, cinzentos, de pária queimado pelo sol. O revestimento da pílula certamente que era do melhor açúcar. Seria inteligente esperar que o remédio, no interior daquela pílula, fosse dos mais amargos.

Tocou a água, com a mão, a fim de sentir a temperatura. Talvez estivesse muito quente para quem jamais tinha tomado antes um banho quente. Deixou então que corresse um pouco mais de água fria. Ao inclinar-se, sentiu que dois braços lhe eram passados em torno do pescoço. Endireitou-se. Aquele corpo dourado resplandecia no banheiro todo revestido de ladrilhos brancos. Ela beijou-o impetuosamente nos lábios. Ele passou-lhe os braços à volta da cintura e esmagou-a de encontro a seu corpo, com o coração aos pulos. Ela disse sem fôlego, ao seu ouvido: — Achei estranhas as roupas chinesas, mas de qualquer maneira você disse à mulher que nós éramos casados.

Uma das mãos de Bond estava pousada sobre o seu seio esquerdo, cujo mamilo estava completamente endurecido pela paixão. O ventre da jovem se comprimia contra o seu. Por que não? Por que não? Não seja tolo! Este é um momento louco para isso. Vocês dois estão diante de um perigo mortal. Você deve continuar frio como gelo, para ter alguma possibilidade de se livrar dessa enrascada. Mais tarde! Mais tarde! Não seja fraco.

Bond retirou a mão do seio dela e espalmou-a à volta de seu pescoço. Esfregou o rosto de encontro ao dela e depois aproximou a boca da boca da jovem e deu-lhe um prolongado beijo.

Afastou-se depois e manteve-a à distância de um braço. Por um momento ambos se olharam, com os olhos brilhando de desejo. Ela respirava ofegantemente, com os lábios entreabertos, de modo que ele podia ver-lhe o brilho dos dentes. Ele disse com a voz trêmula: — Honey, entre no banho antes que eu lhe dê uma surra.

Ela sorriu e sem nada dizer entrou na banheira e deitou-se em todo seu comprimento. Do fundo da banheira ergueu os olhos para ele. Os cabelos louros, em seu corpo, brilhavam como moedas de ouro. Ela disse provocadoramente: — Você tem que me esfregar. Não sei como devo fazer, e você terá que mostrar-me.

Bond respondeu desesperadamente: — Cale a boca, Honey, e deixe de namoros. Apanhe a esponja, o sabonete e comece logo a se esfregar. Que diabo! Isso não é o momento de se fazer amor. Vou tomar o meu desjejum. — Esticou a mão para a porta e segurou na maçaneta. Ela disse docemente: — James! — Ele olhou para trás e viu que ela lhe fazia uma careta, com a língua de fora. Retribuiu com uma careta selvagem e bateu a porta com força.

Em seguida, Bond dirigiu-se para o quarto de vestir e deixou-se ficar durante algum tempo, de pé, no centro da peça, esperando que as batidas de seu coração se acalmassem. Esfregou as mãos no rosto e sacudiu a cabeça, procurando esquecê-la.

Para clarear a mente, percorreu ainda cuidadosamente as duas peças, procurando saídas, possíveis armas, microfones, qualquer coisa enfim que lhe aumentasse o conhecimento da situação em que se achava. Nada disso, entretanto, pôde encontrar. Na parede havia um relógio elétrico que marcava oito e meia e uma série de botões de campainhas, ao lado da cama de casal. Esses botões traziam a indicação de “Sala de serviço”, “cabeleireiro”, “manicure”, “empregada”. Não havia telefone. Bem no alto, a um canto de ambas as peças, viam-se as grades de um pequeno ventilador. Cada uma dessas grades era de dois pés quadrados. Tudo inútil. As portas pareciam ser feitas de algum metal leve, pintadas para combinarem com as paredes. Bond jogou todo o peso de seu corpo contra uma delas, mas ela não cedeu um só milímetro. Bond esfregou o ombro. Aquele lugar era uma verdadeira prisão. Não adiantava discutir a situação. A armadilha tinha-se fechado hermèticamente sobre eles. Agora, a única coisa que restava aos ratos era tirarem o melhor proveito possível da isca de queijo.

Bond sentou-se à mesa do desjejum, sobre a qual estava uma grande jarra com suco de abacaxi, metida num pequeno balde de prata cheio de cubos de gelo. Serviu-se rapidamente e levantou a tampa de uma travessa. Ali estavam ovos mexidos sobre torradas, quatro fatias de toucinho defumado, um rim grelhado e o que parecia quatro salsichas inglesas de carne de porco. Havia também duas torradas quentes, pãezinhos conservados quentes dentro de guardanapos, geléia de laranja e morango e mel. O café estava quase fervendo numa grande garrafa térmica, e o creme exalava um odor fresco e agradável.

Do banheiro vinham as notas da canção “Marion” que a jovem estava cantarolando. Bond resolveu não dar ouvidos à cantoria e concentrou-se nos ovos.

Dez minutos depois, Bond ouviu que a porta do banheiro se abria. Descansou uma torrada que tinha numa das mãos e cobriu os olhos com a outra. Ela riu e disse: — Ele é um covarde. Tem medo de uma simples jovem. — Em seguida Bond ouviu-a a remexer nos armários. Ela continuava falando, em parte consigo mesma: — Não sei porque ele está assustado. Naturalmente que se eu lutasse com ele facilmente o dominaria. Talvez esteja com medo disso. Talvez não seja realmente muito forte, embora seus braços e peito pareçam bastante rijos. Contudo, ainda não vi o resto. Talvez seja fraco. Sim, deve ser isso. Essa é a razão pela qual não ousa despir-se na minha frente. Hum, agora vamos ver, será que ele gostaria de mim com essas roupas? — Ela elevou a voz: — Querido James, você gostaria de me ver de branco, com pássaros azul-pálido esvoaçando sobre o meu corpo?

— Sim, bolas! Agora acabe com essa conversa e venha comer. Estou começando a sentir sono.

Ela soltou uma exclamação: — Oh, se você quer dizer que já está na hora de irmos para a cama, naturalmente que me apressarei.

Ouviu-se uma agitação de passos apressados e Bond logo a via sentar-se diante de si. Ele deixou cair as mãos e ela sorriu-lhe. Estava linda. Seu cabelo estava escovado e penteado de um dos lados caindo sobre o rosto, e do outro com as madeixas puxadas para trás da orelha. Sua pele brilhava de frescura e os grandes olhos azuis resplandeciam de felicidade. Agora Bond estava gostando daquele nariz quebrado. Tinha-se tornado parte de seus pensamentos relativamente a ela, e subitamente lhe ocorreu perguntar-se por que estaria ele triste quando ela era tão imaculadamente bela quanto tantas outras lindas jovens. Sentou-se circunspectamente, com as mãos no colo, e a metade dos seios aparecendo na abertura do quimono.

Bond disse severamente: — Agora, ouça, Honey. Você está maravilhosa, mas esta não é a maneira de usar-se um quimono. Feche-o no corpo, prenda-o bem e deixe de tentar parecer uma prostituta. Isso simplesmente não são bons modos à mesa.

— Oh, você não passa de um boneco idiota. — E ajeitou o quimono, fechando-o um pouco, em uma ou duas polegadas. — Por que você não gosta de brincar? Gostaria de brincar de estar casada.

— Não à hora do desjejum — respondeu Bond com firmeza. — Vamos, coma logo. Está delicioso. De qualquer maneira estou muito sujo, e agora vou fazer a barba e tomar um banho. — Levantou-se, deu volta à mesa e beijou-lhe o alto da cabeça. — E quanto a essa história de brincar, como você diz, gostaria mais de brincar com você do que com qualquer outra pessoa do mundo. Mas não agora. — Sem esperar pela resposta, dirigiu-se ao banheiro e fechou a porta.

Bond barbeou-se e tomou um banho de chuveiro. Sentia-se desesperadamente sonolento. O sono chegava-lhe, de modo que de quando em quando tinha que interromper o que fazia e inclinar a cabeça, repousando-a entre os joelhos. Quando começou a escovar os dentes, o seu estado era tal que mal podia fazê-lo. Estava começando a reconhecer os sintomas. Tinha sido narcotizado. A coisa teria sido posta no suco de abacaxi ou no café? Este era um detalhe sem importância. Aliás, nada tinha importância. Tudo o que queria fazer era estender-se naquele chão de ladrilhos e fechar os olhos. Assim mesmo, dirigiu-se cambaleante para a porta, esquecendo-se de que estava nu. Isso também pouca importância tinha. A jovem já tinha terminado a refeição e agora estava na cama. Continuou trôpego, até ela, segurando-se nos móveis. O quimono tinha sido abandonado no chão e ela dormia pesadamente, completamente nua, sob um simples lençol.

Bond olhou para o travesseiro, ao lado da jovem. Não! Procurou o interruptor e apagou as luzes. Agora teve que se arrastar pelo chão até chegar ao seu quarto. Chegou até junto de sua cama e atirou-se nela. Com grande esforço conseguiu ainda esticar o braço, tocar o interruptor e tentar apagar a lâmpada do criado-mudo. Mas não o conseguiu: sua mão deslizou, atirou o abajur ao chão e a lâmpada espatifou-se. Com um derradeiro esforço, Bond virou-se ainda no leito e adormeceu profundamente.

Os números luminosos do relógio elétrico, no quarto de casal, anunciavam nove e meia.

Às dez horas, a porta do quarto abriu-se suavemente. Um vulto muito alto e magro destacava-se na luz do corredor. Era um homem. Talvez tivesse dois metros de altura. Permaneceu no limiar da porta, com os braços cruzados, ouvindo. Dando-se por satisfeito, caminhou vagarosamente pelo quarto e aproximou-se da cama. Conhecia perfeitamente o caminho. Curvou-se sobre o leito e ouviu a serena respiração da jovem. Depois de um momento, tocou em seu próprio peito e acionou um interruptor. Imediatamente um amplo feixe de luz difusa projetou-se na cama. O farolete estava preso ao corpo do homem por meio de um cinto que o fixava à altura do esterno.

Inclinou-se novamente para a frente, de modo que a luz clareou o rosto da jovem.

O intruso examinou aquele rosto durante alguns minutos. Uma de suas mãos avançou, apanhou a orla do lençol, à altura do queixo da jovem, e puxou-o lentamente até os pés da cama. Mas a mão que puxara aquele lençol não era u’a mão. Era um par de pinças de aço muito bem articuladas na extremidade de uma espécie de talo metálico que desaparecia dentro de uma manga de seda negra. Era u’a mão mecânica.

O homem contemplou durante longo tempo aquele corpo nu, deslocando o seu peito de um lado para outro, de modo que todo o leito fosse submetido ao feixe luminoso. Depois, a garra saiu novamente de sob aquela manga e delicadamente levantou a ponta do lençol, puxando-o dos pés da cama até recobrir todo o corpo da jovem. O homem demorou-se ainda por um momento a contemplar o rosto adormecido, depois apagou o farolete e atravessou silenciosamente o quarto em direção à porta aberta, além da qual estava Bond dormindo.

O homem demorou-se mais tempo ao lado do leito de Bond. Perscrutou cada linha, cada sombra do rosto moreno e quase cruel que jazia quase sem vida, sobre o travesseiro. Observou a circulação à altura do pescoço e contou-lhe as batidas; depois, quando puxou o lençol para baixo, fez o mesmo na área do coração. Estudou a curva dos músculos, nos braços de Bond e nas coxas, e considerou pensativo a força oculta no ventre musculoso de Bond. Chegou até mesmo a curvar-se sobre a mão direita de Bond, estudando-lhe cuidadosamente as linhas da vida e do destino.

Por fim, com grande cuidado, a pinça de aço puxou novamente o lençol, desta vez para cobrir o corpo de Bond até o pescoço. Por mais um minuto o elevado vulto permaneceu ao lado do homem adormecido, depois se retirou rapidamente, ganhando o corredor, enquanto a porta se fechava com um estalido metálico e seco.

 

 


                                      CONTINUA