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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O SATANICO DR. NO
O SATANICO DR. NO

 

                                                                                                                                              

 

 

 

 

 

IX - POR UM TRIZ


Dez minutos mais tarde a baía estava vazia e imaculada. Pequenas ondas encrespavam-se preguiçosamente através do espelho das águas, no interior dos recifes e morriam exaustas na areia escura onde as conchas lilás brilhavam como unhas pintadas. O monte de conchas tinha desaparecido e não havia mais vestígios de pegadas. Quarrel cortara galhos de mangues e caminhava de costas procurando apagar as pegadas com aqueles galhos. Onde tinha varrido, a areia apresentava uma limpidez diferente mas não tão diferente a ponto de ser notada de fora do recife. A canoa da jovem tinha sido arrastada para dentro do mar, entre as rochas, e ali ficou coberta com algas e gravetos.

Quarrel tinha voltado ao promontório. Bond e a jovem estavam juntos, sob tufos de folhas, onde Bond dormira, e olhavam silenciosamente para o contorno do promontório, à volta do qual surgira a embarcação.

A lancha estava talvez a uns quinhentos metros de distância. A julgar pelo lento ritmo do motor, Bond concluiu que cada acidente da costa estava sendo cuidadosamente inspecionado para descobrir indícios da presença de estranhos. De qualquer forma, aquilo parecia uma possante embarcação. Talvez uma grande lancha de cabina. Que tripulação teria? Quem estaria no comando? O Dr. No? Improvável. Ele certamente não se daria àquele trabalho de polícia.

Do lado do ocidente apareceu um bando de corvos marinhos, voando baixo sobre o mar, além dos recifes. Bond observou-os. Eram o primeiro indício para ele encontrado daquela colônia de aves, na outra extremidade da ilha. Aquele bando, segundo Pleydell-Smith, seriam batedores à procura do brilho prateado das enchovas, próximas à superfície. Enquanto observava, as aves começaram a dar mergulhos rasos, ferindo o mar superficialmente e levantando respingos de água. Quase que de uma só vez, apareceu outra coluna de aves, vinda do ocidente, e logo outra, e mais outra, fundindo-se todas numa espessa e escura nuvem. Durante minutos, elas sombrearam o céu, e depois atiraram-se à água, cobrindo vários alqueires, piando e lutando, e mergulhando as cabeças no mar, fazendo uma rica colheita naquele sólido campo de anchovas, como piranhas que se banqueteassem num cavalo afogado.

Bond sentiu um suave toque da jovem, que fez um movimento com a cabeça, dizendo:

— As galinhas do chinês estão comendo milho.

Bond observou-lhe o rosto belo e feliz. Ela parecia bastante despreocupada com a chegada daqueles homens. Para ela aquilo era apenas o jogo de esconde-esconde que já tinha praticado antes.

A vibração metálica dos motores diesel estava-se tornando mais forte. A lancha deveria estar justamente por trás do promontório. Bond deu mais uma olhada à volta da tranqüila baía, e depois fixou os olhos através da folhagem e do mato, para os lados dos recifes.

A ponta de uma proa branca apareceu, seguida de uns dez metros de tombadilho, e logo o parabrisas de vidro, uma cabina baixa e uma antena de rádio, e o vulto de um homem à volta do leme. Finalmente, o comprido e achatado fosso da popa, e uma flâmula vermelha pendente, Seria uma lancha-torpedeira convertida, um excedente de guerra do governo britânico?

Os olhos de Bond fixaram-se nos dois homens que estavam em pé na popa. Eram negros de pele pálida, envergando roupas caqui de marinheiro, com largos cinturões e chapéus de palha com longas palas. Estavam um ao lado do outro, equilibrando-se sob a lenta elevação da massa líquida. Um deles segurava um alto-falante e o outro manejava uma metralhadora instalada num tripé. Bond teve a impressão de que era uma metralhadora “Spandau”.

O homem com o alto-falante deixou que este caísse, e ele ficou oscilando numa tira, que lhe dava volta ao pescoço. Apanhou um binóculo e começou a vasculhar metro a metro da praia. Indistintos comentários chegavam aos ouvidos de Bond, por entre o ruído dos motores.

Bond percebeu que os olhos do binóculo começavam pelo promontório e depois percorriam a areia. As lentes detiveram-se entre as rochas e continuaram o seu passeio. Depois, voltaram. O murmúrio do comentário elevou-se ganhando animação. O homem passou o binóculo para o metralhador, que observou rapidamente, devolvendo-o logo ao dono. O observador gritou alguma coisa para o timoneiro. A lancha começou a se aproximar da praia. Agora estavam justamente diante dos recifes, em frente a Bond e à jovem. O observador ergueu novamente o binóculo, apontando-o para as rochas onde se encontrava escondida a canoa da jovem. Novamente a fala excitada chegou aos ouvidos de Bond, por sobre as águas. Mais uma vez o binóculo foi passado ao metralhador, que levou algum tempo observando. Dessa vez, ele fez um sinal de assentimento com a cabeça.

Bond pensou: agora vamos ter coisa; esses homens conhecem o ofício. Em seguida, viu que o metralhador se ocupava em carregar a arma. O duplo estalido metálico chegou aos seus ouvidos, por entre o matraquear do motor.

O observador ergueu o alto-falante e ligou-o. O eco produzido pelo amplificador chegou até Bond, conduzido pela superfície da água. A voz do homem ribombou pela baía:

— Alô, pessoal! Saiam daí e não serão feridos. Era uma voz educada, com sotaque americano.

— Agora, pessoal — trovejou a voz — depressa! Nós vimos quando vocês desembarcaram. Já descobrimos o bote sob os paus. Não somos tolos e não estamos brincando. Saiam daí com os braços levantados e não lhes acontecerá nada!

Não se ouviu nenhuma resposta. Apenas as ondas quebravam docemente na praia. Bond podia ouvir a respiração da jovem. Os guinchos agudos dos corvos marinhos chegavam-lhes de uma milha de distância, sobre o mar. O cano de escapamento dos motores diesel produzia um ruído desigual e gorgulhante, quando o intumescimento do mar cobria o orifício de descarga.

Silenciosamente Bond tocou o braço da jovem e disse-lhe:

— Fique mais perto. Alvo menor.

Ele sentiu o calor da jovem mais próximo de seu corpo, e o rosto de Honey raspou pelo seu braço. Bond sussurrou:

— Enterre-se na areia. Encolha-se. Cada polegada a menos ajudará.

Ele começou a se encolher cuidadosamente na depressão que tinham escavado para se abrigarem, e sentiu que ela fazia o mesmo.

O homem estava erguendo o seu alto-falante. A voz ribombou novamente.

— Muito bem, pessoal! Vocês irão ver que isso aqui não é para brincadeira. — Depois, levantou o polegar. O metralhador experimentou a arma fazendo alguns disparos para a copa dos mangues situados por trás da praia. Bond ouviu o rápido matraquear, tão seu conhecido, e do qual se despedira pela última vez diante das linhas alemãs, nas Ardenas. As balas produziam o velho som de pombos assustados, assobiando sobre sua cabeça. Depois fez-se silêncio.

À distância, Bond via a nuvem negra de corvos marinhos elevar-se, começando a fazer os seus amplos círculos. Seus olhos voltaram para a embarcação. O metralhador estava apalpando o cano da metralhadora, para ver se já estava aquecido. Os dois homens trocaram algumas palavras. O observador apanhou novamente o porta-voz.

— Está bem, pessoal. Vocês foram avisados.

Bond viu o cano da “Spandau” levantar-se e abaixar-se. O homem estava querendo começar com a canoa, entre as rochas. Bond sussurrou para a jovem: — Muito bem, Honey. Agüente firme. Mantenha-se abaixada. Não vai durar muito.

Ele sentiu que a mão da jovem apertava o seu braço, e pensou: “Coitada; ela está metida nisso por minha causa.” Ele inclinou-se para a direita a fim de cobrir a cabeça de Honey e afundou o rosto na areia.

Dessa vez o matraquear foi terrível. Balas ricocheteavam no flanco do promontório. Fragmentos de pedra saltavam para todos os lados, sobre a praia. Outras balas ricocheteavam e iam perder-se dentro da mata. Simultaneamente com todo aquele barulho ouvia-se o martelar contínuo da metralhadora.

Houve uma pausa. Nova carga, pensou Bond. Agora será para nós. Pôde sentir a jovem agarrando-se a ele. Seu corpo tremia todo, encostado ao seu flanco. Bond apanhou uma arma e apertou-a de encontro ao corpo. O matraquear da metralhadora recomeçou. As balas vinham zunindo, da linha de maré, em direção a eles. Ouviu-se uma sucessão de rápidas batidas. O tufo, acima deles, estava sendo reduzido a pedaços. “Zuip Zuip Zuip”. Era como se um chicote de aço estivesse retalhando os arbustos. Pedaços de lenha caíam sobre eles, cobrindo-os lentamente. Bond respirou um ar mais fresco, o que significava que eles agora estavam ao ar-livre. Estariam eles escondidos pelas folhas o pelos destroços? As balas continuaram deslocando-se ao longo da linha da costa. Em menos de um minuto a metralhadora parou.

O silêncio tornou a reinar. A jovem lamuriou-se docemente. Bond fê-la calar-se e apertou-a mais forte.

O alto-falante apregoou:

— Está bem, pessoal. Se vocês ainda têm ouvidos, saibam que voltaremos logo para recolher-lhes os pedaços. Vamos trazer os cães. Até à vista, por enquanto.

O ritmo do motor se acelerou, e através das folhas Bond pôde ver a popa da lancha afundar-se mais na água, enquanto a embarcação rumava rapidamente para oeste. Dentro de minutos já não se ouvia mais nada.

Bond ergueu a cabeça cautelosamente. A baía estava serena, e tudo como antes, exceto o cheiro de cordite e as rochas quebradas.

Bond fez a jovem levantar-se. Havia marcas de lágrimas em seu rosto. Ela olhou-o aterrada, e disse:

— Isso foi terrível. Por que eles o fizeram? Podíamos ter sido mortos.

Bond pensou naquela jovem que sempre abrira caminho, na vida, por si mesma, mas apenas contra a natureza. Conhecia o mundo dos animais, dos insetos e dos peixes, e tirava todo o partido desse conhecimento. Mas aquele era um pequeno mundo, limitado pelo sol, pela lua e pelas estações. Ela não conhecia o grande mundo das salas cheias de fumo, dos corredores de negócios, dos corredores e antecâmaras governamentais, dos cautelosos encontros em bancos de praças — numa palavra: ela nada conhecia da luta pelo poder e pelo dinheiro, travada por homens poderosos.

Bond disse:

— É isso mesmo, Honey, eles não passam de uma quadrilha de bandidos assustados conosco. Podemos enfrentá-los.

Bond colocou o braço à volta de seus ombros e continuou:

— E você esteve maravilhosa, brava como ninguém. Agora, vamos ao encontro de Quarrel para traçar os nossos planos. De qualquer forma, já é tempo de comermos alguma coisa. O que é que você costuma comer nessas expedições?

Deram meia-volta e seguiram pela praia em direção ao promontório. Depois de um minuto, ela disse com voz bem controlada:

— Oh, há uma porção de coisas por aí que se podem comer. Ouriços do mar principalmente, mas também bananas silvestres e outras coisas. Eu como e durmo durante dois dias, antes de vir aqui. Não preciso de nada.

Bond apertou-a mais fortemente, mas deixou cair o braço, assim que Quarrel apareceu ao longe. Quarrel vinha saltando sobre as rochas, e, em determinado momento, parou, olhando para baixo. Bond e Honey se aproximaram dele. A canoa da jovem estava cortada ao meio pelas balas. Honey deixou escapar um grito, olhando desesperadamente para Bond:

— A minha canoa! Como poderei voltar?

— Não se preocupe, senhorita, — disse Quarrel, que sentia a perda de uma canoa mais do que Bond. Imaginou ainda que aquela embarcação representasse quase todo o capital da jovem. — O capitão lhe dará outra. E a senhorita voltará conosco. Temos um magnífico bote, entre os mangues, e ele não foi destruído. Já estive lá espiando.

Quarrel olhou para Bond. Agora, o seu rosto denotava preocupação.

— Mas, capitão, o senhor está vendo o que eu disse dessa gente. Eles são duros e não estão brincando. Esses cães que eles vão trazer são policiais — Pinschers, como eles os chamam. Bastardos. Meus amigos disseram-me que são uma matilha de vinte ou mais. É melhor resolvermos logo.

— Está bem, Quarrel. Mas antes de mais nada precisamos comer alguma coisa. — o diabo que me carregue se eu vou ser aterrorizado e expulso da ilha antes de dar uma olhada nisso. Levaremos Honey conosco. — E, voltando-se para a jovem:

— Está bem, Honey? Nada lhe acontecerá. Depois voltaremos juntos.

A jovem olhou-o em dúvida:

— Acho que não há alternativa. Quero dizer. Gostaria de ir com vocês, se não atrapalhasse. Francamente, não quero comer nada. Mas você me levará de volta, assim que puder? Não quero ver mais aquela gente. Durante quanto tempo vocês vão ficar olhando para essas aves?

Bond respondeu evasivamente:

— Pouco tempo. Eu terei apenas que ver o que lhes aconteceu e porquê. Depois, partiremos.

Olhou para o relógio e anunciou:

— Agora são doze horas. Você nos esperará aqui. Tome um banho ou faça o que quiser. Não ande por aí deixando pegadas. Vamos, Quarrel, é melhor escondermos aquele bote.

Só à uma hora eles estavam prontos. Bond e Quarrel encheram a canoa com pedras e areia, até que ela desapareceu sob a água, entre os mangues. Depois, apagaram as suas pegadas. As balas tinham deixado tantos gravetos na orla da praia, que eles podiam caminhar pisando em folhas e ramos quebrados. Comeram parte de suas rações — os homens com avidez, mas Honey com relutância — e depois, passando sobre as rochas, foram ter à lagoa, próxima da costa. Em seguida foram vadeando aquelas águas, em direção à foz do rio, trezentos metros praia abaixo.

Fazia muito calor. Um vento áspero e quente começou a soprar do nordeste. Quarrel informou que aquele vento soprava diariamente, durante todo o ano, e era vital para a guaneira, pois secava o guano. O revérbero do mar e das brilhantes folhas verdes dos mangues cegava-os. Bond deu-se por feliz, já que tivera o cuidado de acostumar sua pele ao sol.

Na foz do rio encontraram um banco de areia e um extenso pântano, profundo e de águas estagnadas. Os dois homens podiam molhar-se ou tirar as roupas. Bond disse à jovem:

— Honey, não podemos ter cerimônia, nesta situação. Vamos ficar apenas com as camisas por causa do sol. Fique apenas com o que for sensato e caminhe atrás de nós.

Sem esperar pela resposta da jovem, os dois homens tiraram as calças. Quarrel enrolou-as e guardou-as na sacola, juntamente com as provisões e o revólver de Bond. Depois começaram a vadear a lagoa, com Quarrel na frente, logo seguido de Bond, e, finalmente a jovem. A água chegou até a cintura de Bond. Um grande peixe prateado deu um salto perto deles e depois caiu ruidosamente na água. Viram-se pequeninas setas riscarem a superfície, quando peixes menores se afastaram precipitadamente.

A lagoa convergia para uma estreita garganta, por sobre a qual as copas dos mangues se tocavam. Durante algum tempo eles vadearam através de um túnel fresco, e depois o rio se alargou num canal profundo, de águas morosas, que serpeava para a frente, entre as gigantescas raízes de sustentação dos mangues. O fundo era lamacento, e a cada passo os pés se enterravam algumas polegadas no lodo. Pequenos peixes ou camarões se encolhiam ou fugiam de baixo de seus pés, e de quando em quando eles tinham que parar para se desembaraçar das sanguessugas, antes que elas se agarrassem firmemente. A não ser isso, aquela caminhada era fácil, sob o frescor das arvores, e, pelo menos para Bond, era uma bênção estar ao abrigo do sol.

Em breve, à medida que se iam afastando do mar, começaram a sentir um cheiro de ovo podre, o cheiro de hidrogênio sulfurado do gás dos pântanos. Os mosquitos começaram a assaltá-los e pareciam gostar do corpo de Bond. Quarrel disse-lhe que mergulhasse na água do rio, pois os mosquitos gostavam de carne salgada. Bond tirou a camisa e fez o que Quarrel lhe aconselhara. Depois disso sentiu-se melhor e o seu olfato chegou mesmo a se acostumar com aquele repugnante cheiro, a não ser quando os pés de Quarrel desfaziam algum bolsão de gás, no fundo da lama, e uma gigantesca bolha atravessava a água para arrebentar na superfície sob as suas narinas.

Os mangues começaram a se tornar mais escassos e mais esparsos, enquanto o rio se ia alargando aos poucos. Ao mesmo tempo, a água tornava-se mais rasa e o fundo mais firme. Logo chegaram a uma volta e saíram para céu aberto, Honey disse:

— É melhor tomarmos cuidado, agora. Eles poderão ver-nos com muita facilidade. Isso vai assim durante uma milha. Depois o rio torna a se estreitar até o lago. E depois se poderá ver a restinga onde os tratadores das aves viviam.

O grupo deteve-se à sombra do túnel de mangues e olhou para fora. O rio serpeava perigosamente, afastando-se deles, em direção ao centro da ilha. As suas barrancas, bordadas de bambus de pequeno porte e de vegetação rala, dar-lhes-íam cobertura reduzida. Partindo de sua margem ocidental, o terreno elevava-se aos poucos, e logo abruptamente até o monte, situado a três quilômetros de distância, que era a guaneira. Na base daquela montanha, viam-se várias cabanas esparsas. Um ziguezague prateado galgava o flanco da colina, até as tendas — trilhos “Decauville”, pensou Bond, destinados a levarem o guano para o moinho e separa-dor. O cume do monte era branco, como se estivesse coberto de neve. De sua parte mais elevada desprendia-se como que uma bandeira de dó de guano. Bond podia ver os pontos negros que eram os corvos marinhos, sobre o fundo branco. Aquelas aves estavam levantando vôo e pousando como abelhas numa colmeia.

Bond deixou-se ficar de pé e contemplou o brilho distante daquela montanha de excrementos de aves. Então aquilo era o reino do Dr. No! Bond pensou que jamais vira um cenário tão escondido e distante, em toda a sua vida.

Examinou o terreno entre o rio e a montanha. Parecia ser principalmente formado com aquela matéria cinzenta de corais mortos. Não havia dúvida de que uma estrada ou trilha corria da falda da montanha até ao lago central e aos pântanos. Bond notou ainda que toda a vegetação se curvava para oeste, e imaginou viver durante todo um ano com aquele vento escaldante castigando a ilha, sem falar do cheiro do guano e do gás dos pântanos. Nenhuma colônia penal poderia encontrar pior localização do que aquela.

Bond olhou para leste, onde os mangues, na área dos charcos, pareciam oferecer mais hospitalidade. Os três puseram-se a caminhar sobre um sólido tapete verde de vegetação. Sobre suas cabeças, aves revoluteavam agitadas, para depois se, acalmarem, e logo tornarem a agitar-se. Seus pios eram carregados pelo vento crestante.

A voz de Quarrel interrompeu os pensamentos de Bond:

— Eles vêm vindo, capitão!

Bond seguiu o olhar de Quarrel. Um grande caminhão descia celeremente das tendas, com uma nuvem de pó levantando-se das rodas. Bond acompanhou-o durante dez minutos, até que o veículo desapareceu entre os mangues, na margem do rio. Bond pôs-se a escutar e ouviu latidos de cães, que eram trazidos pelo vento.

Quarrel comentou:

— Eles vão descer pelo rio, capitão. Sabem que não nos podemos mover, a não ser rio acima, se não estivermos mortos. Certamente que descerão pelo rio, até a praia, e farão um reconhecimento dos destroços. Depois, com toda a certeza, a lancha virá com um pequeno bote e recolherá os homens e os cães. Pelo menos, isso é o que eu faria no lugar deles.

Honey disse: — Isso é, de fato, o que eles fazem quando me procuram. É isso mesmo. Basta que cortemos um pedaço de bambu, e, quando eles estiverem perto, mergulhemos na água, procurando respirar através do bambu, até que eles se afastem.

Bond sorriu para Quarrel, e disse: — Suponhamos que você corte os bambus, enquanto eu procuro um bom esconderijo entre os mangues.

Quarrel aquiesceu hesitante e começou a subir contra a corrente, em direção ao bambuzal, enquanto Bond se encaminhava para o túnel formado pelos mangues.

Bond evitara olhar para a jovem, mas esta disse-lhe com impaciência:

— Não precisa ter tanto cuidado em não olhar para mim. Não adianta se preocupar com tais coisas, numa hora dessas. Você mesmo o disse, ainda há pouco.

Bond virou-se e olhou para a jovem. Sua camisa esfrangalhada descia até a linha d’água. Podia-se ainda ter um vislumbre de pálidas coxas, serpeando sob a superfície. O lindo rosto sorriu para ele. No meio daqueles mangues, o seu nariz quebrado parecia harmonizar-se com o ambiente, pela sua animalidade.

Bond fitou-a descansadamente e ela compreendeu. Depois, ele deu-lhe as costas e desceu pela correnteza, seguido por ela. Logo encontrou o que procurava, isto é, uma fenda naquela parede formada pelas raízes dos mangues. Bond recomendou: — Não quebre nenhum galho. — Depois, baixou a cabeça e meteu-se por aquela brecha. O canal avançava numa distância de dez metros. A lama sob seus pés tornou-se mais mole e espessa. Chegou a uma sólida e intransponível parede de raízes. Aquela água escura fluía vagarosamente através de uma ampla e tranqüila lagoa. Bond deteve-se. A jovem se aproximou dele.

— Isto é mesmo uma brincadeira de esconde-esconde — disse ela, trêmula.

— É verdade — aquiesceu Bond distraidamente, enquanto pensava em seu revólver. Com efeito, ele preocupava-se em saber com que eficiência a arma operaria depois de um banho no rio — quantos cães e homens ele poderia eliminar, se fossem descobertos. Sentiu um estremecimento de inquietação. Tinha sido uma falta de sorte ter encontrado aquela jovem. Em combate, queira-se ou não, uma mulher representa sempre um coração a mais. O inimigo tem dois alvos enquanto apenas oferece um.

Bond lembrou-se de sua sede. Apanhou na concha da mão um pouco de água e bebeu-a. Aquela água era salobra e tinha gosto de terra. Mas servia. Bond bebeu um pouco mais. A jovem agitou a mão e deteve-o, dizendo:

— Não beba demais. Lave a boca e cuspa. Você pode apanhar febre.

Quarrel assobiou de algum ponto situado na corrente principal. Bond respondeu e foi em direção ao amigo. Depois, voltaram juntos, internando-se no canal. Quarrel borrifou as raízes de mangues com água, nos pontos em que os seus corpos talvez as tivessem raspado. “Para tirar o nosso cheiro”, explicou, laconicamente. Em seguida mostrou o seu feixe de bambus e começou a cortá-los e prepará-los. Enquanto isso, Bond se ocupava com seu revólver e a munição. Os três ficaram imóveis, no meio daquele pântano, de modo a não levantarem mais lama.

A luz do sol filtrava-se através do espesso teto de folhas, os camarões agitavam-se sob os pés daqueles três fugitivos. Gradativamente foi-se avolumando uma insuportável tensão, naquele silêncio escaldante e angustioso.

Foi quase um alívio ouvir-se o ladrar dos cães.


X - O RASTRO DO DRAGÃO


O grupo de investigação descia rapidamente pelo rio. Os dois homens, de calções de banho e altas botas impermeáveis, tinham que correr para acompanhar os cães.

Eram grandes negros chineses, que traziam coldres sustentados ao ombro por meio de talabartes cruzados diante dos peitos suados. De quando em quando trocavam gritos que em geral não passavam de imprecações. À frente deles a matilha de cães Dobermann nadava e debatia-se n’água, latindo excitadamente. Tinham farejado uma pista e procuravam segui-la nervosamente, com as orelhas eretas sobre as cabeças afladas.

— Talvez um maldito crocodilo, — gritou o chefe elevando a voz sobre a algazarra. Empunhava um chicote que de vez em quando fazia estalar no campo de caça.

Os outros homens se encaminhavam para ele. O chefe gritou excitadamente: “Aposto que é o gringo inglês! Tenho certeza de que ele está entre os mangues. Cuidado para que o gringo não nos faça cair numa emboscada.” O homem tirou o revólver do coldre e colocou-o sob o sovaco, sem tirar a mão da coronha.

O grupo agora estava deixando a parte do rio, sob céu aberto, e entrando no túnel formado pelos mangues. O primeiro homem tinha um apito, que se projetava de seu largo rosto como um toco de charuto. Fez soar um agudo silvo. Quando os cães avançaram, ele se deixou ficar com o seu chicote junto do chefe. Os animais continuavam farejando, lamuriando-se porque a corrente os obrigava a desobedecer às ordens recebidas. Os dois homens sacaram os revólveres e vadearam lentamente o rio, na mesma direção da corrente, por entre os caules tortuosos dos mangues.

O homem que ia na frente chegou ao estreito canal que Bond tinha encontrado, agarrou um dos cães pela co-leira e lançou-o ao canal. O animal resfolegou ansiosamente e debateu-se para a frente. Os olhos do homem percorreram as raízes dos mangues, de ambos os lados do canal, para ver se apresentavam algum arranhão.

O cão e o homem chegaram ao pequeno lago situado na extremidade do canal. O homem olhou à sua volta, com ar animado. Tornou a agarrar o cão pela coleira e puxou-o para trás. O animal relutava em abandonar o lugar. Então, o homem feriu a água com o chicote.

O segundo homem estivera esperando à entrada do canal. O primeiro saiu daquele pequeno remanso e sacudiu a cabeça, descendo a corrente, com os cães, que agora se mostravam menos excitados, nadando à frente.

Lentamente, a algazarra da perseguição foi diminuindo e desapareceu.

Por mais cinco minutos nada se mexeu na laguna dos mangues; depois, num dos cantos, entre as raízes, apareceu lentamente para fora d’água um fino periscópio de bambu. O rosto de Bond emergiu logo em seguida, com os cabelos molhados colados à testa, como a cara de um cadáver que boiasse. Em sua mão direita, sob a água, o revólver estava pronto. Bond procurou escutar cuidadosamente. O silêncio era completo, não havia o mínimo ruído. Ou haveria? O que seria aquele suave barulho, como se algo deslizasse entre a água, na corrente principal? Viria alguém, muito serenamente, seguindo na esteira daquela caçada? Bond procurou apalpar à sua volta e tocou delicadamente nos dois corpos que estavam cada um em um de seus flancos, entre as raízes, na orla da laguna. Quando os dois rostos aforaram à superfície, ele colocou o seu dedo indicador sobre os lábios, mas já era tarde. Quarrel tinha tossido e cuspido. Bond fez uma careta e fez um sinal na direção da principal corrente. Todos procuravam escutar. O ruído recomeçou. Alguém estava-se dirigindo para o canal lateral. Os tubos de bambu voltaram para as três bocas e as cabeças tornaram a submergir. Debaixo da água Bond descansou a cabeça na lama, apertou as narinas e os lábios à volta do tubo. Sabia que a laguna já fora examinada uma vez, pois sentira a agitação causada na água pelo cão, que passara nadando! Da primeira vez não tinham sido achados, mas conseguiriam escapar desta? Agora haveria menos possibilidades de que a lama revolta se escoasse para fora da laguna. Se esse batedor visse a mancha mais escura, na água, atiraria ou usaria um punhal? Que armas traria? Bond resolveu não correr riscos. Ao primeiro rumor de movimento, ao seu lado, ele se poria de pé e daria logo ao gatilho, esperando pelo melhor.

Assim ficou ele, submerso, com todos os sentidos atentos. Como era desagradável aquele respirar controlado e insuportáveis as ligeiras mordidelas dos camarões! Por sorte nenhum deles tinha qualquer ferida no corpo, pois do contrário os malditos animalzinhos ter-se-iam atirado contra elas. De qualquer forma, aquela fora uma brilhante idéia da jovem. Sem ela os cães já os teriam alcançado, onde quer que eles se tivessem escondido.

Inesperadamente, Bond encolheu-se. Uma bota de borracha tinha pisado em seu queixo e escorregado. O homem pensaria tratar-se de um galho de árvore? Bond não podia correr aquele risco. Com um só impulso pôs-se de pé, atirando para longe o pedaço de bambu.

Bond teve uma rápida impressão de um gigantesco corpo de pé, quase em cima de si, e duma coronha de rife, em rápido movimento. Levantou o braço esquerdo para proteger a cabeça e recebeu um violento golpe no braço. Ao mesmo tempo, o seu braço direito se esticou para a frente, e, quando o cano tocou no lado direito do peito, sob o mamilo, ele acionou o gatilho.

O coice da arma, quase encostada ao corpo do homem, por pouco não quebrou o pulso de Bond, mas o homem desabou para trás como uma árvore decepada que cai n’água. Antes que o corpo afundasse, Bond ainda pôde perceber-lhe uma grande fenda no flanco. A cabeça, uma cabeça negróide de chinês, veio à superfície, com os olhos revirados para cima e a água a sair de sua boca escancarada e silenciosa. Em seguida a cabeça submergiu novamente e nada mais se pôde ver senão uma lama espumosa e uma mancha vermelha que gradualmente se ia ampliando e lentamente era atraída pela corrente.

Bond se endireitou e voltou-se para o lado. Quarrel e a jovem estavam atrás, em pé, com a água a escorrer-lhes dos corpos. Quarrel tinha um sorriso que ia de orelha a orelha, mas a garota mordia as articulações dos dedos, enquanto seus olhos se escancaravam horrorizados diante da água avermelhada.

Bond disse laconicamente: “Desculpe-me, Honey. Tinha que ser feito. Ele estava bem sobre nós. Venha, vamos indo.” Agarrou-a de qualquer maneira, pelo braço, e arrastou-a para fora da principal corrente, apenas detendo-se quando chegaram a rio aberto, na boca do túnel de mangues.

O cenário estava novamente vazio. Bond olhou para o relógio, e verificou que parara às três horas. Olhou para o sol, já bastante deslocado para o ocidente e concluiu que deveriam ser quatro horas. Quanto ainda teriam que caminhar? Bond inesperadamente sentiu-se cansado. Agora teria de enfrentar a situação. Ainda que o disparo não tivesse sido ouvido — e certamente que ele fora abafado pelo próprio corpo da vítima e pelas árvores — a falta do homem seria sentida quando os outros se reunissem, — se a suposição de Quarrel fosse correta, na embocadura do rio, de onde seriam recolhidos pela lancha. Voltariam eles, subindo o rio, a fim de procurarem o desaparecido? Talvez não. Já estaria muito escuro quando eles tivessem a certeza de que o homem estava realmente desaparecido. O mais certo seria mandarem um grupo de homens pela manhã. Os cães facilmente dariam com o corpo. E o que aconteceria?

A garota puxou-o pela manga e disse com irritação: — Já é tempo de você me dizer o que significa tudo isto! Por que estão todos procurando se matar mutuamente? E quem é você? Não acredito em toda essa história de aves. Ninguém carrega revólveres contra aves.

Bond baixou o olhar, fitando aqueles olhos bem separados e irados. — Desculpe-me, Honey. Receio tê-la arrastado para uma boa encrenca. Eu lhe contarei tudo quando voltarmos à noite para o acampamento. Foi apenas má sorte que você se envolvesse comigo, desta maneira. Tenho uma guerrinha com essa gente. Eles parecem querer matar-me. Agora estou apenas interessado em que todos nós saiamos desta ilha sem que ninguém fique ferido. Já tenho muito do que queria, para da próxima vez voltar pela porta da frente.

— O que você quer dizer? Você é alguma espécie de policial? Está querendo meter esse chinês na cadeia?

— Mais ou menos, — disse Bond, rindo para ela. — Pelo menos você está do lado dos anjos. Agora, diga-me uma coisa. Quanto falta ainda para chegar ao acampamento dos guardas?

— Oh, cerca de uma hora.

— É um lugar bom para nele esconder-se? Eles poderiam achar-nos com facilidade?

— Eles teriam que atravessar o lago ou subir o rio. Tudo estará muito bem se eles não puserem o dragão em nosso encalço. Ele pode muito bem atravessar a água, pois já o vi fazê-lo.

— Bem — disse Bond diplomaticamente — esperemos que ele esteja com a cauda machucada, ou tenha outra coisa qualquer.

A jovem vociferou: — Muito bem, sr. Sabe-Tudo. — E acrescentou irritada: — Espere e verá.

Quarrel deixou o túnel de mangues, agitando ruidosamente a água, tendo na mão o rife do chinês abatido, e dizendo à guisa de quem pede desculpas:

— Não há mal em termos outra arma, chefe. Parece que vamos precisar dela.

Bond apanhou aquela arma. Era uma carabina “Remington”, do exército norte-americano, calibre 300. Não havia dúvida de que aquela gente contava com equipamento apropriado. Bond devolveu a arma a Quarrel, depois de examiná-la.

Quarrel como que fez eco aos seus pensamentos: — Isso é gente astuta, capitão. Aquele homem veio esquadrinhando suavemente, atrás dos outros, a fim de nos surpreender quando deixássemos o esconderijo, depois da passagem dos cães. Esse tal de doutor com certeza é um sujeito muito esperto.

Bond disse pensativamente: — É, ele deve ser um homem incomum. — Depois espantou os pensamentos: — Agora, vamos tocando para a frente. Honey diz que ainda precisamos de uma hora para chegarmos ao acampamento. É melhor irmos pela margem esquerda, de modo a ficarmos ao abrigo da colina. Pelo que já pudemos ver, eles têm lunetas assestadas sobre o rio.

Bond entregou a sua arma a Quarrel, que a guardou na mochila molhada. Puseram-se novamente em marcha, com Quarrel à frente, e Bond e a jovem andando juntos, atrás.

Aproveitavam algumas sombras das árvores e bambus da margem ocidental, mas deviam agora suportar toda a intensidade de um vento crestante. Borrifaram braços e corpos com água, a fim de refrescar as queimaduras. Os olhos de Bond estavam injetados por aquele insuportável revérbero e o seu braço doía intoleràvelmente no ponto em que fora atingido pela coronha. E ele não teria à sua espera o seu jantar de pão embebido, queijo e fiambre. Quanto tempo poderiam dormir? Não dormira muito na véspera, e parece que não iria ter melhor ração de sono. E a garota? Ela nada dormira. Ele e Quarrel teriam que se revezar, em quartos de vigilância. E logo chegaria o dia seguinte, quando procurariam ganhar novamente os mangues e vencer lentamente a distância que os separava de sua canoa, através da extremidade oriental da ilha. As coisas correriam daquela forma, segundo era de esperar. Então, tratariam de se fazerem ao mar na noite seguinte. Bond pensou em como haveria de abrir caminho por entre sólidos mangues, na distância de oito quilômetros. Que perspectiva! Continuou se arrastando para a frente, pensando nas “férias ao sol dos trópicos” de M. Muito gostaria que M tivesse que partilhar com ele aquelas “férias”.

O rio foi-se estreitando até que se reduziu a uma simples corrente entre as moitas de bambu. Depois se ampliava num estuário baixo e pantanoso, além do qual as cinco milhas quadradas de lago raso davam vazão para o outro lado da ilha, perdendo-se num agitado espelho líquido azul-cinza. Mais para além estava a brilhante pista aérea e o reflexo da luz solar sobre um único hangar. A jovem disse-lhe que se mantivesse na direção leste, e eles foram lentamente avançando, protegidos pela orla da mata.

Inesperadamente, Quarrel deteve-se, com o rosto esticado como o focinho de um cão para o terreno pantanoso à sua frente. Dois profundos sulcos tinham sido escavados na lama, com um sulco mais raso no centro. Eram a trilha de algo que tinha descido da colina e atravessado o pântano em direção ao lago.

A jovem disse com indiferença: — Por aqui já passou o dragão.

Quarrel arregalou os olhos para ela.

Bond caminhou lentamente pela trilha. As marcas exteriores eram bastante lisas, trazendo a marca de uma linha curva. Poderiam ter sido causadas por rodas, mas eram enormes, pelo menos com sessenta centímetros de largura. A trilha central tinha a mesma forma, mas com apenas três polegadas de largura, ou seja a largura de um pneumático de automóvel. As trilhas não apresentavam nenhum indício de pegadas e eram completamente frescas. Estendiam-se em linha reta, e os arbustos por elas atravessados tinham sido derrubados e esmagados no chão, como se um tanque de guerra tivesse passado por ali. Bond não podia imaginar que espécie de veículo seria aquele. A jovem tocou-o com o cotovelo e murmurou: — Eu lhe tinha dito. Ele apenas pôde responder pensativamente: — Bom, Honey, se não é o dragão, é algo que nunca vi antes.

Mais adiante, ela puxou-o ansiosamente pela manga. “Veja”, sussurrou, e apontou para a frente, indicando um grande cerrado de árvores, ao lado do qual passavam as trilhas. O cerrado estava sem folhas, enegrecido. Ao centro viam-se os restos dos ninhos de pássaros carbonizados. — Ele respirou sobre as árvores, — disse a garota nervosamente.

Bond aproximou-se das árvores e examinou-as. — Certamente que o fez — admitiu. Por que aquele cerrado, em especial, tinha sido queimado? Era muito estranho aquilo.

As trilhas desciam em direção ao lago e desapareciam na água. Bond teria gostado de segui-las, mas não poderia abandonar a cobertura das árvores. Assim, continuaram a marcha, cada um entregue aos próprios pensamentos.

Lentamente o dia começou a morrer, por trás da colina, e por fim a garota apontou para a frente, através dos arbustos; Bond pôde ver uma comprida restinga internando-se no lago. Estava coberta por densas moitas de arbustos e podiam-se ver, a cem metros da praia, os restos de uma cabana incendiada. Aquele parecia um lugar razoavelmente atraente para se passar a noite, e era bem protegido dos dois lados, pela água.

O vento tinha declinado e a água se apresentava suave e convidativa. Que prazer não seria tirarem as suas imundas camisas para um banho no lago e, depois de horas de patinhação através da lama e do lodo do pântano, poderem descansar naquela areia dura e seca!

O sol brilhou com reflexos amarelecidos e desapareceu por trás da montanha. Ainda era dia na extremidade oriental da ilha, mas a sombra negra do monte avançava vagarosamente sobre o lago e acabaria por expulsar completamente os últimos vestígios do sol. Os sapos começaram a coaxar mais barulhentamente que em Jamaica, até que a noite ficou cheia daquele áspero ruído. Do outro lado do lago um grande sapo macho começou a soar o seu tambor. Aquele estranho som era algo entre um tom-tom e um rosnado de macaco. Enviava mensagens que subitamente se interrompiam e logo silenciaram. Com certeza encontrara o que procurava.

Chegaram à garganta da restinga e seguiram por um estreito caminho, até a clareira que encerrava os escombros da cabana de sapé. As grandes e misteriosas trilhas saíam da água, de ambos os lados, atravessavam a clareira e os cerrados próximos. Muitos dos arbustos estavam queimados ou crestados. Podiam-se ver os restos de um fogão feito de pedaços de coral, e algumas panelas e latas vazias. Examinaram os destroços, e Quarrel desenterrou um par de latas intactas de costeletas de porco e ervilhas marca “Heinz”. A jovem encontrou ainda um saco de dormir muito amarrotado, enquanto Bond achou uma pequena bolsa de couro com cinco notas de um dólar, três libras de Jamaica e algumas moedas de prata. Os dois homens certamente tinham abandonado aquele lugar a toda pressa.

Prosseguiram mais para diante, até uma pequena clareira arenosa. Através dos arbustos podiam ver luzes cintilando sobre a água e provenientes da montanha, talvez a mais de três quilômetros de distância. A leste nada mais havia senão. os suaves reflexos escuros da água sob o céu sombrio.

Bond comentou: — Enquanto não acendermos nada, estaremos bem aqui. A primeira coisa a fazer é tomarmos um bom banho, Honey. Você pode ficar com o resto da restinga, que nós ficaremos com a sua garganta. Dentro de meia hora espero vê-la para o jantar.

A garota riu: — Você virá a rigor?

— Sem dúvida — respondeu Bond — e de calças.

Quarrel observou: — Capitão, enquanto ainda há um pouco de luz, vou abrir essas latas e preparar as coisas para a noite. — Remexeu dentro da mochila. — Aqui estão as suas calças e o seu revólver. O pão talvez não esteja muito bom, mas está apenas molhado. Pode-se comê-lo bem, e amanhã estará seco. O melhor talvez fosse comermos das latas esta noite, guardando o queijo e as costeletas. As latas são pesadas e amanhã teremos que andar muito.

Bond respondeu: — Muito bem, Quarrel. Deixarei o cardápio aos seus cuidados.

Em seguida, apanhou o revólver e as calças úmidas e desceu para a água rasa. A água estava acariciante, mas desagradavelmente quente. Bond escavou punhados de areia, com as mãos, e esfregou o corpo com ela, utilizando-a como sabonete. Depois deixou-se ficar gostosamente em meio àquele silêncio e àquela solidão.

As estrelas começaram a brilhar palidamente, as estrelas que os tinham trazido à ilha na noite passada; as estrelas que os tirariam dali no dia seguinte. Que viagem! Mas pelo menos já tinha dado os seus resultados. Agora tinha provas bastantes, e testemunhas, para ir ter com o governador e conseguir dele um inquérito completo acerca das atividades do Dr. No. Ninguém lança mão de metralhadoras contra pessoas, mesmo contra intrusos. E, da mesma forma, o que seria aquilo do Dr. No, que invadira a propriedade da Sociedade Audubon, aquilo que chegara a destruir essa propriedade e provavelmente matara um de seus empregados? Isto também teria que ser investigado. E o que haveria ele de encontrar quando voltasse pela porta da frente, talvez a bordo de um destróier, e com um destacamento de fuzileiros navais? Qual seria a resposta para o mistério do Dr. No? O que estaria ele escondendo? Por que aquele segredo era tão importante, que seria capaz de matar repetidas vezes, para preservá-lo? E quem era esse Dr. No?

Bond ouviu o barulho de alguém espojando-se na água. Pensou na garota. E quem, afinal, era Honeychile Ri-der? Aquilo pelo menos, pensou ele ao sair da água, era algo que deveria esclarecer antes do amanhecer.

Bond enfiou as suas pegajosas calças, sentou-se na areia e desmontou o revólver. Fê-lo pelo tato, utilizando-se de sua camisa para secar cada peça e cada cartucho. Depois, tornou a montar a arma e pressionou o gatilho, fazendo com que o tambor vazio desse uma volta completa. O som era satisfatório. Seriam precisos alguns dias para que o revólver começasse a enferrujar. Carregou-o e meteu-o no coldre, para dentro do cós da calça. Depois, levantou-se e voltou para a clareira.

A sombra de Honey chegou até ele, e a sua voz se fez ouvir: — Venha; estamos morrendo de fome. Apanhei uma das panelas, limpei-a e pusemos as ervilhas nela. Temos pão também. E eu não sinto escrúpulos de comer a sua ração, porque você me fez trabalhar muito mais do que se eu estivesse sozinha. Agora, estique a mão.

Bond achou graça no tom autoritário que havia em sua voz. Ele apenas podia perceber a sua silhueta, no escuro. Sua cabeça parecia mais aflada. Ele se perguntou como seriam os seus cabelos quando secos e penteados. Como seria ela quando estivesse vestindo roupas limpas naquele lindo corpo dourado? Podia vê-la entrando numa sala ou atravessando um vestíbulo em Beau Desert. Ela seria uma linda e encantadora Patinha Feia. Por que nunca procurara endireitar o nariz? Seria uma operação fácil. Depois disso, ela seria a jovem mais bela de Jamaica.

O seu ombro tocou nele. Bond esticou o braço e descansou a mão aberta no colo da jovem. Então Bond sentiu que ela estava enchendo a sua mão com ervilhas.

Subitamente, Bond aspirou o seu cheiro cálido de animal. Foi uma explosão sensual tão aguda que o seu corpo se uniu ao dela, e, por um momento, os seus olhos se fecharam.

Ela deixou escapar um riso curto, no qual havia timidez, satisfação e ternura. E disse, maternalmente: “Lá”, — e empurrou a mão de Bond.

 

CONTINUA

IX - POR UM TRIZ


Dez minutos mais tarde a baía estava vazia e imaculada. Pequenas ondas encrespavam-se preguiçosamente através do espelho das águas, no interior dos recifes e morriam exaustas na areia escura onde as conchas lilás brilhavam como unhas pintadas. O monte de conchas tinha desaparecido e não havia mais vestígios de pegadas. Quarrel cortara galhos de mangues e caminhava de costas procurando apagar as pegadas com aqueles galhos. Onde tinha varrido, a areia apresentava uma limpidez diferente mas não tão diferente a ponto de ser notada de fora do recife. A canoa da jovem tinha sido arrastada para dentro do mar, entre as rochas, e ali ficou coberta com algas e gravetos.

Quarrel tinha voltado ao promontório. Bond e a jovem estavam juntos, sob tufos de folhas, onde Bond dormira, e olhavam silenciosamente para o contorno do promontório, à volta do qual surgira a embarcação.

A lancha estava talvez a uns quinhentos metros de distância. A julgar pelo lento ritmo do motor, Bond concluiu que cada acidente da costa estava sendo cuidadosamente inspecionado para descobrir indícios da presença de estranhos. De qualquer forma, aquilo parecia uma possante embarcação. Talvez uma grande lancha de cabina. Que tripulação teria? Quem estaria no comando? O Dr. No? Improvável. Ele certamente não se daria àquele trabalho de polícia.

Do lado do ocidente apareceu um bando de corvos marinhos, voando baixo sobre o mar, além dos recifes. Bond observou-os. Eram o primeiro indício para ele encontrado daquela colônia de aves, na outra extremidade da ilha. Aquele bando, segundo Pleydell-Smith, seriam batedores à procura do brilho prateado das enchovas, próximas à superfície. Enquanto observava, as aves começaram a dar mergulhos rasos, ferindo o mar superficialmente e levantando respingos de água. Quase que de uma só vez, apareceu outra coluna de aves, vinda do ocidente, e logo outra, e mais outra, fundindo-se todas numa espessa e escura nuvem. Durante minutos, elas sombrearam o céu, e depois atiraram-se à água, cobrindo vários alqueires, piando e lutando, e mergulhando as cabeças no mar, fazendo uma rica colheita naquele sólido campo de anchovas, como piranhas que se banqueteassem num cavalo afogado.

Bond sentiu um suave toque da jovem, que fez um movimento com a cabeça, dizendo:

— As galinhas do chinês estão comendo milho.

Bond observou-lhe o rosto belo e feliz. Ela parecia bastante despreocupada com a chegada daqueles homens. Para ela aquilo era apenas o jogo de esconde-esconde que já tinha praticado antes.

A vibração metálica dos motores diesel estava-se tornando mais forte. A lancha deveria estar justamente por trás do promontório. Bond deu mais uma olhada à volta da tranqüila baía, e depois fixou os olhos através da folhagem e do mato, para os lados dos recifes.

A ponta de uma proa branca apareceu, seguida de uns dez metros de tombadilho, e logo o parabrisas de vidro, uma cabina baixa e uma antena de rádio, e o vulto de um homem à volta do leme. Finalmente, o comprido e achatado fosso da popa, e uma flâmula vermelha pendente, Seria uma lancha-torpedeira convertida, um excedente de guerra do governo britânico?

Os olhos de Bond fixaram-se nos dois homens que estavam em pé na popa. Eram negros de pele pálida, envergando roupas caqui de marinheiro, com largos cinturões e chapéus de palha com longas palas. Estavam um ao lado do outro, equilibrando-se sob a lenta elevação da massa líquida. Um deles segurava um alto-falante e o outro manejava uma metralhadora instalada num tripé. Bond teve a impressão de que era uma metralhadora “Spandau”.

O homem com o alto-falante deixou que este caísse, e ele ficou oscilando numa tira, que lhe dava volta ao pescoço. Apanhou um binóculo e começou a vasculhar metro a metro da praia. Indistintos comentários chegavam aos ouvidos de Bond, por entre o ruído dos motores.

Bond percebeu que os olhos do binóculo começavam pelo promontório e depois percorriam a areia. As lentes detiveram-se entre as rochas e continuaram o seu passeio. Depois, voltaram. O murmúrio do comentário elevou-se ganhando animação. O homem passou o binóculo para o metralhador, que observou rapidamente, devolvendo-o logo ao dono. O observador gritou alguma coisa para o timoneiro. A lancha começou a se aproximar da praia. Agora estavam justamente diante dos recifes, em frente a Bond e à jovem. O observador ergueu novamente o binóculo, apontando-o para as rochas onde se encontrava escondida a canoa da jovem. Novamente a fala excitada chegou aos ouvidos de Bond, por sobre as águas. Mais uma vez o binóculo foi passado ao metralhador, que levou algum tempo observando. Dessa vez, ele fez um sinal de assentimento com a cabeça.

Bond pensou: agora vamos ter coisa; esses homens conhecem o ofício. Em seguida, viu que o metralhador se ocupava em carregar a arma. O duplo estalido metálico chegou aos seus ouvidos, por entre o matraquear do motor.

O observador ergueu o alto-falante e ligou-o. O eco produzido pelo amplificador chegou até Bond, conduzido pela superfície da água. A voz do homem ribombou pela baía:

— Alô, pessoal! Saiam daí e não serão feridos. Era uma voz educada, com sotaque americano.

— Agora, pessoal — trovejou a voz — depressa! Nós vimos quando vocês desembarcaram. Já descobrimos o bote sob os paus. Não somos tolos e não estamos brincando. Saiam daí com os braços levantados e não lhes acontecerá nada!

Não se ouviu nenhuma resposta. Apenas as ondas quebravam docemente na praia. Bond podia ouvir a respiração da jovem. Os guinchos agudos dos corvos marinhos chegavam-lhes de uma milha de distância, sobre o mar. O cano de escapamento dos motores diesel produzia um ruído desigual e gorgulhante, quando o intumescimento do mar cobria o orifício de descarga.

Silenciosamente Bond tocou o braço da jovem e disse-lhe:

— Fique mais perto. Alvo menor.

Ele sentiu o calor da jovem mais próximo de seu corpo, e o rosto de Honey raspou pelo seu braço. Bond sussurrou:

— Enterre-se na areia. Encolha-se. Cada polegada a menos ajudará.

Ele começou a se encolher cuidadosamente na depressão que tinham escavado para se abrigarem, e sentiu que ela fazia o mesmo.

O homem estava erguendo o seu alto-falante. A voz ribombou novamente.

— Muito bem, pessoal! Vocês irão ver que isso aqui não é para brincadeira. — Depois, levantou o polegar. O metralhador experimentou a arma fazendo alguns disparos para a copa dos mangues situados por trás da praia. Bond ouviu o rápido matraquear, tão seu conhecido, e do qual se despedira pela última vez diante das linhas alemãs, nas Ardenas. As balas produziam o velho som de pombos assustados, assobiando sobre sua cabeça. Depois fez-se silêncio.

À distância, Bond via a nuvem negra de corvos marinhos elevar-se, começando a fazer os seus amplos círculos. Seus olhos voltaram para a embarcação. O metralhador estava apalpando o cano da metralhadora, para ver se já estava aquecido. Os dois homens trocaram algumas palavras. O observador apanhou novamente o porta-voz.

— Está bem, pessoal. Vocês foram avisados.

Bond viu o cano da “Spandau” levantar-se e abaixar-se. O homem estava querendo começar com a canoa, entre as rochas. Bond sussurrou para a jovem: — Muito bem, Honey. Agüente firme. Mantenha-se abaixada. Não vai durar muito.

Ele sentiu que a mão da jovem apertava o seu braço, e pensou: “Coitada; ela está metida nisso por minha causa.” Ele inclinou-se para a direita a fim de cobrir a cabeça de Honey e afundou o rosto na areia.

Dessa vez o matraquear foi terrível. Balas ricocheteavam no flanco do promontório. Fragmentos de pedra saltavam para todos os lados, sobre a praia. Outras balas ricocheteavam e iam perder-se dentro da mata. Simultaneamente com todo aquele barulho ouvia-se o martelar contínuo da metralhadora.

Houve uma pausa. Nova carga, pensou Bond. Agora será para nós. Pôde sentir a jovem agarrando-se a ele. Seu corpo tremia todo, encostado ao seu flanco. Bond apanhou uma arma e apertou-a de encontro ao corpo. O matraquear da metralhadora recomeçou. As balas vinham zunindo, da linha de maré, em direção a eles. Ouviu-se uma sucessão de rápidas batidas. O tufo, acima deles, estava sendo reduzido a pedaços. “Zuip Zuip Zuip”. Era como se um chicote de aço estivesse retalhando os arbustos. Pedaços de lenha caíam sobre eles, cobrindo-os lentamente. Bond respirou um ar mais fresco, o que significava que eles agora estavam ao ar-livre. Estariam eles escondidos pelas folhas o pelos destroços? As balas continuaram deslocando-se ao longo da linha da costa. Em menos de um minuto a metralhadora parou.

O silêncio tornou a reinar. A jovem lamuriou-se docemente. Bond fê-la calar-se e apertou-a mais forte.

O alto-falante apregoou:

— Está bem, pessoal. Se vocês ainda têm ouvidos, saibam que voltaremos logo para recolher-lhes os pedaços. Vamos trazer os cães. Até à vista, por enquanto.

O ritmo do motor se acelerou, e através das folhas Bond pôde ver a popa da lancha afundar-se mais na água, enquanto a embarcação rumava rapidamente para oeste. Dentro de minutos já não se ouvia mais nada.

Bond ergueu a cabeça cautelosamente. A baía estava serena, e tudo como antes, exceto o cheiro de cordite e as rochas quebradas.

Bond fez a jovem levantar-se. Havia marcas de lágrimas em seu rosto. Ela olhou-o aterrada, e disse:

— Isso foi terrível. Por que eles o fizeram? Podíamos ter sido mortos.

Bond pensou naquela jovem que sempre abrira caminho, na vida, por si mesma, mas apenas contra a natureza. Conhecia o mundo dos animais, dos insetos e dos peixes, e tirava todo o partido desse conhecimento. Mas aquele era um pequeno mundo, limitado pelo sol, pela lua e pelas estações. Ela não conhecia o grande mundo das salas cheias de fumo, dos corredores de negócios, dos corredores e antecâmaras governamentais, dos cautelosos encontros em bancos de praças — numa palavra: ela nada conhecia da luta pelo poder e pelo dinheiro, travada por homens poderosos.

Bond disse:

— É isso mesmo, Honey, eles não passam de uma quadrilha de bandidos assustados conosco. Podemos enfrentá-los.

Bond colocou o braço à volta de seus ombros e continuou:

— E você esteve maravilhosa, brava como ninguém. Agora, vamos ao encontro de Quarrel para traçar os nossos planos. De qualquer forma, já é tempo de comermos alguma coisa. O que é que você costuma comer nessas expedições?

Deram meia-volta e seguiram pela praia em direção ao promontório. Depois de um minuto, ela disse com voz bem controlada:

— Oh, há uma porção de coisas por aí que se podem comer. Ouriços do mar principalmente, mas também bananas silvestres e outras coisas. Eu como e durmo durante dois dias, antes de vir aqui. Não preciso de nada.

Bond apertou-a mais fortemente, mas deixou cair o braço, assim que Quarrel apareceu ao longe. Quarrel vinha saltando sobre as rochas, e, em determinado momento, parou, olhando para baixo. Bond e Honey se aproximaram dele. A canoa da jovem estava cortada ao meio pelas balas. Honey deixou escapar um grito, olhando desesperadamente para Bond:

— A minha canoa! Como poderei voltar?

— Não se preocupe, senhorita, — disse Quarrel, que sentia a perda de uma canoa mais do que Bond. Imaginou ainda que aquela embarcação representasse quase todo o capital da jovem. — O capitão lhe dará outra. E a senhorita voltará conosco. Temos um magnífico bote, entre os mangues, e ele não foi destruído. Já estive lá espiando.

Quarrel olhou para Bond. Agora, o seu rosto denotava preocupação.

— Mas, capitão, o senhor está vendo o que eu disse dessa gente. Eles são duros e não estão brincando. Esses cães que eles vão trazer são policiais — Pinschers, como eles os chamam. Bastardos. Meus amigos disseram-me que são uma matilha de vinte ou mais. É melhor resolvermos logo.

— Está bem, Quarrel. Mas antes de mais nada precisamos comer alguma coisa. — o diabo que me carregue se eu vou ser aterrorizado e expulso da ilha antes de dar uma olhada nisso. Levaremos Honey conosco. — E, voltando-se para a jovem:

— Está bem, Honey? Nada lhe acontecerá. Depois voltaremos juntos.

A jovem olhou-o em dúvida:

— Acho que não há alternativa. Quero dizer. Gostaria de ir com vocês, se não atrapalhasse. Francamente, não quero comer nada. Mas você me levará de volta, assim que puder? Não quero ver mais aquela gente. Durante quanto tempo vocês vão ficar olhando para essas aves?

Bond respondeu evasivamente:

— Pouco tempo. Eu terei apenas que ver o que lhes aconteceu e porquê. Depois, partiremos.

Olhou para o relógio e anunciou:

— Agora são doze horas. Você nos esperará aqui. Tome um banho ou faça o que quiser. Não ande por aí deixando pegadas. Vamos, Quarrel, é melhor escondermos aquele bote.

Só à uma hora eles estavam prontos. Bond e Quarrel encheram a canoa com pedras e areia, até que ela desapareceu sob a água, entre os mangues. Depois, apagaram as suas pegadas. As balas tinham deixado tantos gravetos na orla da praia, que eles podiam caminhar pisando em folhas e ramos quebrados. Comeram parte de suas rações — os homens com avidez, mas Honey com relutância — e depois, passando sobre as rochas, foram ter à lagoa, próxima da costa. Em seguida foram vadeando aquelas águas, em direção à foz do rio, trezentos metros praia abaixo.

Fazia muito calor. Um vento áspero e quente começou a soprar do nordeste. Quarrel informou que aquele vento soprava diariamente, durante todo o ano, e era vital para a guaneira, pois secava o guano. O revérbero do mar e das brilhantes folhas verdes dos mangues cegava-os. Bond deu-se por feliz, já que tivera o cuidado de acostumar sua pele ao sol.

Na foz do rio encontraram um banco de areia e um extenso pântano, profundo e de águas estagnadas. Os dois homens podiam molhar-se ou tirar as roupas. Bond disse à jovem:

— Honey, não podemos ter cerimônia, nesta situação. Vamos ficar apenas com as camisas por causa do sol. Fique apenas com o que for sensato e caminhe atrás de nós.

Sem esperar pela resposta da jovem, os dois homens tiraram as calças. Quarrel enrolou-as e guardou-as na sacola, juntamente com as provisões e o revólver de Bond. Depois começaram a vadear a lagoa, com Quarrel na frente, logo seguido de Bond, e, finalmente a jovem. A água chegou até a cintura de Bond. Um grande peixe prateado deu um salto perto deles e depois caiu ruidosamente na água. Viram-se pequeninas setas riscarem a superfície, quando peixes menores se afastaram precipitadamente.

A lagoa convergia para uma estreita garganta, por sobre a qual as copas dos mangues se tocavam. Durante algum tempo eles vadearam através de um túnel fresco, e depois o rio se alargou num canal profundo, de águas morosas, que serpeava para a frente, entre as gigantescas raízes de sustentação dos mangues. O fundo era lamacento, e a cada passo os pés se enterravam algumas polegadas no lodo. Pequenos peixes ou camarões se encolhiam ou fugiam de baixo de seus pés, e de quando em quando eles tinham que parar para se desembaraçar das sanguessugas, antes que elas se agarrassem firmemente. A não ser isso, aquela caminhada era fácil, sob o frescor das arvores, e, pelo menos para Bond, era uma bênção estar ao abrigo do sol.

Em breve, à medida que se iam afastando do mar, começaram a sentir um cheiro de ovo podre, o cheiro de hidrogênio sulfurado do gás dos pântanos. Os mosquitos começaram a assaltá-los e pareciam gostar do corpo de Bond. Quarrel disse-lhe que mergulhasse na água do rio, pois os mosquitos gostavam de carne salgada. Bond tirou a camisa e fez o que Quarrel lhe aconselhara. Depois disso sentiu-se melhor e o seu olfato chegou mesmo a se acostumar com aquele repugnante cheiro, a não ser quando os pés de Quarrel desfaziam algum bolsão de gás, no fundo da lama, e uma gigantesca bolha atravessava a água para arrebentar na superfície sob as suas narinas.

Os mangues começaram a se tornar mais escassos e mais esparsos, enquanto o rio se ia alargando aos poucos. Ao mesmo tempo, a água tornava-se mais rasa e o fundo mais firme. Logo chegaram a uma volta e saíram para céu aberto, Honey disse:

— É melhor tomarmos cuidado, agora. Eles poderão ver-nos com muita facilidade. Isso vai assim durante uma milha. Depois o rio torna a se estreitar até o lago. E depois se poderá ver a restinga onde os tratadores das aves viviam.

O grupo deteve-se à sombra do túnel de mangues e olhou para fora. O rio serpeava perigosamente, afastando-se deles, em direção ao centro da ilha. As suas barrancas, bordadas de bambus de pequeno porte e de vegetação rala, dar-lhes-íam cobertura reduzida. Partindo de sua margem ocidental, o terreno elevava-se aos poucos, e logo abruptamente até o monte, situado a três quilômetros de distância, que era a guaneira. Na base daquela montanha, viam-se várias cabanas esparsas. Um ziguezague prateado galgava o flanco da colina, até as tendas — trilhos “Decauville”, pensou Bond, destinados a levarem o guano para o moinho e separa-dor. O cume do monte era branco, como se estivesse coberto de neve. De sua parte mais elevada desprendia-se como que uma bandeira de dó de guano. Bond podia ver os pontos negros que eram os corvos marinhos, sobre o fundo branco. Aquelas aves estavam levantando vôo e pousando como abelhas numa colmeia.

Bond deixou-se ficar de pé e contemplou o brilho distante daquela montanha de excrementos de aves. Então aquilo era o reino do Dr. No! Bond pensou que jamais vira um cenário tão escondido e distante, em toda a sua vida.

Examinou o terreno entre o rio e a montanha. Parecia ser principalmente formado com aquela matéria cinzenta de corais mortos. Não havia dúvida de que uma estrada ou trilha corria da falda da montanha até ao lago central e aos pântanos. Bond notou ainda que toda a vegetação se curvava para oeste, e imaginou viver durante todo um ano com aquele vento escaldante castigando a ilha, sem falar do cheiro do guano e do gás dos pântanos. Nenhuma colônia penal poderia encontrar pior localização do que aquela.

Bond olhou para leste, onde os mangues, na área dos charcos, pareciam oferecer mais hospitalidade. Os três puseram-se a caminhar sobre um sólido tapete verde de vegetação. Sobre suas cabeças, aves revoluteavam agitadas, para depois se, acalmarem, e logo tornarem a agitar-se. Seus pios eram carregados pelo vento crestante.

A voz de Quarrel interrompeu os pensamentos de Bond:

— Eles vêm vindo, capitão!

Bond seguiu o olhar de Quarrel. Um grande caminhão descia celeremente das tendas, com uma nuvem de pó levantando-se das rodas. Bond acompanhou-o durante dez minutos, até que o veículo desapareceu entre os mangues, na margem do rio. Bond pôs-se a escutar e ouviu latidos de cães, que eram trazidos pelo vento.

Quarrel comentou:

— Eles vão descer pelo rio, capitão. Sabem que não nos podemos mover, a não ser rio acima, se não estivermos mortos. Certamente que descerão pelo rio, até a praia, e farão um reconhecimento dos destroços. Depois, com toda a certeza, a lancha virá com um pequeno bote e recolherá os homens e os cães. Pelo menos, isso é o que eu faria no lugar deles.

Honey disse: — Isso é, de fato, o que eles fazem quando me procuram. É isso mesmo. Basta que cortemos um pedaço de bambu, e, quando eles estiverem perto, mergulhemos na água, procurando respirar através do bambu, até que eles se afastem.

Bond sorriu para Quarrel, e disse: — Suponhamos que você corte os bambus, enquanto eu procuro um bom esconderijo entre os mangues.

Quarrel aquiesceu hesitante e começou a subir contra a corrente, em direção ao bambuzal, enquanto Bond se encaminhava para o túnel formado pelos mangues.

Bond evitara olhar para a jovem, mas esta disse-lhe com impaciência:

— Não precisa ter tanto cuidado em não olhar para mim. Não adianta se preocupar com tais coisas, numa hora dessas. Você mesmo o disse, ainda há pouco.

Bond virou-se e olhou para a jovem. Sua camisa esfrangalhada descia até a linha d’água. Podia-se ainda ter um vislumbre de pálidas coxas, serpeando sob a superfície. O lindo rosto sorriu para ele. No meio daqueles mangues, o seu nariz quebrado parecia harmonizar-se com o ambiente, pela sua animalidade.

Bond fitou-a descansadamente e ela compreendeu. Depois, ele deu-lhe as costas e desceu pela correnteza, seguido por ela. Logo encontrou o que procurava, isto é, uma fenda naquela parede formada pelas raízes dos mangues. Bond recomendou: — Não quebre nenhum galho. — Depois, baixou a cabeça e meteu-se por aquela brecha. O canal avançava numa distância de dez metros. A lama sob seus pés tornou-se mais mole e espessa. Chegou a uma sólida e intransponível parede de raízes. Aquela água escura fluía vagarosamente através de uma ampla e tranqüila lagoa. Bond deteve-se. A jovem se aproximou dele.

— Isto é mesmo uma brincadeira de esconde-esconde — disse ela, trêmula.

— É verdade — aquiesceu Bond distraidamente, enquanto pensava em seu revólver. Com efeito, ele preocupava-se em saber com que eficiência a arma operaria depois de um banho no rio — quantos cães e homens ele poderia eliminar, se fossem descobertos. Sentiu um estremecimento de inquietação. Tinha sido uma falta de sorte ter encontrado aquela jovem. Em combate, queira-se ou não, uma mulher representa sempre um coração a mais. O inimigo tem dois alvos enquanto apenas oferece um.

Bond lembrou-se de sua sede. Apanhou na concha da mão um pouco de água e bebeu-a. Aquela água era salobra e tinha gosto de terra. Mas servia. Bond bebeu um pouco mais. A jovem agitou a mão e deteve-o, dizendo:

— Não beba demais. Lave a boca e cuspa. Você pode apanhar febre.

Quarrel assobiou de algum ponto situado na corrente principal. Bond respondeu e foi em direção ao amigo. Depois, voltaram juntos, internando-se no canal. Quarrel borrifou as raízes de mangues com água, nos pontos em que os seus corpos talvez as tivessem raspado. “Para tirar o nosso cheiro”, explicou, laconicamente. Em seguida mostrou o seu feixe de bambus e começou a cortá-los e prepará-los. Enquanto isso, Bond se ocupava com seu revólver e a munição. Os três ficaram imóveis, no meio daquele pântano, de modo a não levantarem mais lama.

A luz do sol filtrava-se através do espesso teto de folhas, os camarões agitavam-se sob os pés daqueles três fugitivos. Gradativamente foi-se avolumando uma insuportável tensão, naquele silêncio escaldante e angustioso.

Foi quase um alívio ouvir-se o ladrar dos cães.


X - O RASTRO DO DRAGÃO


O grupo de investigação descia rapidamente pelo rio. Os dois homens, de calções de banho e altas botas impermeáveis, tinham que correr para acompanhar os cães.

Eram grandes negros chineses, que traziam coldres sustentados ao ombro por meio de talabartes cruzados diante dos peitos suados. De quando em quando trocavam gritos que em geral não passavam de imprecações. À frente deles a matilha de cães Dobermann nadava e debatia-se n’água, latindo excitadamente. Tinham farejado uma pista e procuravam segui-la nervosamente, com as orelhas eretas sobre as cabeças afladas.

— Talvez um maldito crocodilo, — gritou o chefe elevando a voz sobre a algazarra. Empunhava um chicote que de vez em quando fazia estalar no campo de caça.

Os outros homens se encaminhavam para ele. O chefe gritou excitadamente: “Aposto que é o gringo inglês! Tenho certeza de que ele está entre os mangues. Cuidado para que o gringo não nos faça cair numa emboscada.” O homem tirou o revólver do coldre e colocou-o sob o sovaco, sem tirar a mão da coronha.

O grupo agora estava deixando a parte do rio, sob céu aberto, e entrando no túnel formado pelos mangues. O primeiro homem tinha um apito, que se projetava de seu largo rosto como um toco de charuto. Fez soar um agudo silvo. Quando os cães avançaram, ele se deixou ficar com o seu chicote junto do chefe. Os animais continuavam farejando, lamuriando-se porque a corrente os obrigava a desobedecer às ordens recebidas. Os dois homens sacaram os revólveres e vadearam lentamente o rio, na mesma direção da corrente, por entre os caules tortuosos dos mangues.

O homem que ia na frente chegou ao estreito canal que Bond tinha encontrado, agarrou um dos cães pela co-leira e lançou-o ao canal. O animal resfolegou ansiosamente e debateu-se para a frente. Os olhos do homem percorreram as raízes dos mangues, de ambos os lados do canal, para ver se apresentavam algum arranhão.

O cão e o homem chegaram ao pequeno lago situado na extremidade do canal. O homem olhou à sua volta, com ar animado. Tornou a agarrar o cão pela coleira e puxou-o para trás. O animal relutava em abandonar o lugar. Então, o homem feriu a água com o chicote.

O segundo homem estivera esperando à entrada do canal. O primeiro saiu daquele pequeno remanso e sacudiu a cabeça, descendo a corrente, com os cães, que agora se mostravam menos excitados, nadando à frente.

Lentamente, a algazarra da perseguição foi diminuindo e desapareceu.

Por mais cinco minutos nada se mexeu na laguna dos mangues; depois, num dos cantos, entre as raízes, apareceu lentamente para fora d’água um fino periscópio de bambu. O rosto de Bond emergiu logo em seguida, com os cabelos molhados colados à testa, como a cara de um cadáver que boiasse. Em sua mão direita, sob a água, o revólver estava pronto. Bond procurou escutar cuidadosamente. O silêncio era completo, não havia o mínimo ruído. Ou haveria? O que seria aquele suave barulho, como se algo deslizasse entre a água, na corrente principal? Viria alguém, muito serenamente, seguindo na esteira daquela caçada? Bond procurou apalpar à sua volta e tocou delicadamente nos dois corpos que estavam cada um em um de seus flancos, entre as raízes, na orla da laguna. Quando os dois rostos aforaram à superfície, ele colocou o seu dedo indicador sobre os lábios, mas já era tarde. Quarrel tinha tossido e cuspido. Bond fez uma careta e fez um sinal na direção da principal corrente. Todos procuravam escutar. O ruído recomeçou. Alguém estava-se dirigindo para o canal lateral. Os tubos de bambu voltaram para as três bocas e as cabeças tornaram a submergir. Debaixo da água Bond descansou a cabeça na lama, apertou as narinas e os lábios à volta do tubo. Sabia que a laguna já fora examinada uma vez, pois sentira a agitação causada na água pelo cão, que passara nadando! Da primeira vez não tinham sido achados, mas conseguiriam escapar desta? Agora haveria menos possibilidades de que a lama revolta se escoasse para fora da laguna. Se esse batedor visse a mancha mais escura, na água, atiraria ou usaria um punhal? Que armas traria? Bond resolveu não correr riscos. Ao primeiro rumor de movimento, ao seu lado, ele se poria de pé e daria logo ao gatilho, esperando pelo melhor.

Assim ficou ele, submerso, com todos os sentidos atentos. Como era desagradável aquele respirar controlado e insuportáveis as ligeiras mordidelas dos camarões! Por sorte nenhum deles tinha qualquer ferida no corpo, pois do contrário os malditos animalzinhos ter-se-iam atirado contra elas. De qualquer forma, aquela fora uma brilhante idéia da jovem. Sem ela os cães já os teriam alcançado, onde quer que eles se tivessem escondido.

Inesperadamente, Bond encolheu-se. Uma bota de borracha tinha pisado em seu queixo e escorregado. O homem pensaria tratar-se de um galho de árvore? Bond não podia correr aquele risco. Com um só impulso pôs-se de pé, atirando para longe o pedaço de bambu.

Bond teve uma rápida impressão de um gigantesco corpo de pé, quase em cima de si, e duma coronha de rife, em rápido movimento. Levantou o braço esquerdo para proteger a cabeça e recebeu um violento golpe no braço. Ao mesmo tempo, o seu braço direito se esticou para a frente, e, quando o cano tocou no lado direito do peito, sob o mamilo, ele acionou o gatilho.

O coice da arma, quase encostada ao corpo do homem, por pouco não quebrou o pulso de Bond, mas o homem desabou para trás como uma árvore decepada que cai n’água. Antes que o corpo afundasse, Bond ainda pôde perceber-lhe uma grande fenda no flanco. A cabeça, uma cabeça negróide de chinês, veio à superfície, com os olhos revirados para cima e a água a sair de sua boca escancarada e silenciosa. Em seguida a cabeça submergiu novamente e nada mais se pôde ver senão uma lama espumosa e uma mancha vermelha que gradualmente se ia ampliando e lentamente era atraída pela corrente.

Bond se endireitou e voltou-se para o lado. Quarrel e a jovem estavam atrás, em pé, com a água a escorrer-lhes dos corpos. Quarrel tinha um sorriso que ia de orelha a orelha, mas a garota mordia as articulações dos dedos, enquanto seus olhos se escancaravam horrorizados diante da água avermelhada.

Bond disse laconicamente: “Desculpe-me, Honey. Tinha que ser feito. Ele estava bem sobre nós. Venha, vamos indo.” Agarrou-a de qualquer maneira, pelo braço, e arrastou-a para fora da principal corrente, apenas detendo-se quando chegaram a rio aberto, na boca do túnel de mangues.

O cenário estava novamente vazio. Bond olhou para o relógio, e verificou que parara às três horas. Olhou para o sol, já bastante deslocado para o ocidente e concluiu que deveriam ser quatro horas. Quanto ainda teriam que caminhar? Bond inesperadamente sentiu-se cansado. Agora teria de enfrentar a situação. Ainda que o disparo não tivesse sido ouvido — e certamente que ele fora abafado pelo próprio corpo da vítima e pelas árvores — a falta do homem seria sentida quando os outros se reunissem, — se a suposição de Quarrel fosse correta, na embocadura do rio, de onde seriam recolhidos pela lancha. Voltariam eles, subindo o rio, a fim de procurarem o desaparecido? Talvez não. Já estaria muito escuro quando eles tivessem a certeza de que o homem estava realmente desaparecido. O mais certo seria mandarem um grupo de homens pela manhã. Os cães facilmente dariam com o corpo. E o que aconteceria?

A garota puxou-o pela manga e disse com irritação: — Já é tempo de você me dizer o que significa tudo isto! Por que estão todos procurando se matar mutuamente? E quem é você? Não acredito em toda essa história de aves. Ninguém carrega revólveres contra aves.

Bond baixou o olhar, fitando aqueles olhos bem separados e irados. — Desculpe-me, Honey. Receio tê-la arrastado para uma boa encrenca. Eu lhe contarei tudo quando voltarmos à noite para o acampamento. Foi apenas má sorte que você se envolvesse comigo, desta maneira. Tenho uma guerrinha com essa gente. Eles parecem querer matar-me. Agora estou apenas interessado em que todos nós saiamos desta ilha sem que ninguém fique ferido. Já tenho muito do que queria, para da próxima vez voltar pela porta da frente.

— O que você quer dizer? Você é alguma espécie de policial? Está querendo meter esse chinês na cadeia?

— Mais ou menos, — disse Bond, rindo para ela. — Pelo menos você está do lado dos anjos. Agora, diga-me uma coisa. Quanto falta ainda para chegar ao acampamento dos guardas?

— Oh, cerca de uma hora.

— É um lugar bom para nele esconder-se? Eles poderiam achar-nos com facilidade?

— Eles teriam que atravessar o lago ou subir o rio. Tudo estará muito bem se eles não puserem o dragão em nosso encalço. Ele pode muito bem atravessar a água, pois já o vi fazê-lo.

— Bem — disse Bond diplomaticamente — esperemos que ele esteja com a cauda machucada, ou tenha outra coisa qualquer.

A jovem vociferou: — Muito bem, sr. Sabe-Tudo. — E acrescentou irritada: — Espere e verá.

Quarrel deixou o túnel de mangues, agitando ruidosamente a água, tendo na mão o rife do chinês abatido, e dizendo à guisa de quem pede desculpas:

— Não há mal em termos outra arma, chefe. Parece que vamos precisar dela.

Bond apanhou aquela arma. Era uma carabina “Remington”, do exército norte-americano, calibre 300. Não havia dúvida de que aquela gente contava com equipamento apropriado. Bond devolveu a arma a Quarrel, depois de examiná-la.

Quarrel como que fez eco aos seus pensamentos: — Isso é gente astuta, capitão. Aquele homem veio esquadrinhando suavemente, atrás dos outros, a fim de nos surpreender quando deixássemos o esconderijo, depois da passagem dos cães. Esse tal de doutor com certeza é um sujeito muito esperto.

Bond disse pensativamente: — É, ele deve ser um homem incomum. — Depois espantou os pensamentos: — Agora, vamos tocando para a frente. Honey diz que ainda precisamos de uma hora para chegarmos ao acampamento. É melhor irmos pela margem esquerda, de modo a ficarmos ao abrigo da colina. Pelo que já pudemos ver, eles têm lunetas assestadas sobre o rio.

Bond entregou a sua arma a Quarrel, que a guardou na mochila molhada. Puseram-se novamente em marcha, com Quarrel à frente, e Bond e a jovem andando juntos, atrás.

Aproveitavam algumas sombras das árvores e bambus da margem ocidental, mas deviam agora suportar toda a intensidade de um vento crestante. Borrifaram braços e corpos com água, a fim de refrescar as queimaduras. Os olhos de Bond estavam injetados por aquele insuportável revérbero e o seu braço doía intoleràvelmente no ponto em que fora atingido pela coronha. E ele não teria à sua espera o seu jantar de pão embebido, queijo e fiambre. Quanto tempo poderiam dormir? Não dormira muito na véspera, e parece que não iria ter melhor ração de sono. E a garota? Ela nada dormira. Ele e Quarrel teriam que se revezar, em quartos de vigilância. E logo chegaria o dia seguinte, quando procurariam ganhar novamente os mangues e vencer lentamente a distância que os separava de sua canoa, através da extremidade oriental da ilha. As coisas correriam daquela forma, segundo era de esperar. Então, tratariam de se fazerem ao mar na noite seguinte. Bond pensou em como haveria de abrir caminho por entre sólidos mangues, na distância de oito quilômetros. Que perspectiva! Continuou se arrastando para a frente, pensando nas “férias ao sol dos trópicos” de M. Muito gostaria que M tivesse que partilhar com ele aquelas “férias”.

O rio foi-se estreitando até que se reduziu a uma simples corrente entre as moitas de bambu. Depois se ampliava num estuário baixo e pantanoso, além do qual as cinco milhas quadradas de lago raso davam vazão para o outro lado da ilha, perdendo-se num agitado espelho líquido azul-cinza. Mais para além estava a brilhante pista aérea e o reflexo da luz solar sobre um único hangar. A jovem disse-lhe que se mantivesse na direção leste, e eles foram lentamente avançando, protegidos pela orla da mata.

Inesperadamente, Quarrel deteve-se, com o rosto esticado como o focinho de um cão para o terreno pantanoso à sua frente. Dois profundos sulcos tinham sido escavados na lama, com um sulco mais raso no centro. Eram a trilha de algo que tinha descido da colina e atravessado o pântano em direção ao lago.

A jovem disse com indiferença: — Por aqui já passou o dragão.

Quarrel arregalou os olhos para ela.

Bond caminhou lentamente pela trilha. As marcas exteriores eram bastante lisas, trazendo a marca de uma linha curva. Poderiam ter sido causadas por rodas, mas eram enormes, pelo menos com sessenta centímetros de largura. A trilha central tinha a mesma forma, mas com apenas três polegadas de largura, ou seja a largura de um pneumático de automóvel. As trilhas não apresentavam nenhum indício de pegadas e eram completamente frescas. Estendiam-se em linha reta, e os arbustos por elas atravessados tinham sido derrubados e esmagados no chão, como se um tanque de guerra tivesse passado por ali. Bond não podia imaginar que espécie de veículo seria aquele. A jovem tocou-o com o cotovelo e murmurou: — Eu lhe tinha dito. Ele apenas pôde responder pensativamente: — Bom, Honey, se não é o dragão, é algo que nunca vi antes.

Mais adiante, ela puxou-o ansiosamente pela manga. “Veja”, sussurrou, e apontou para a frente, indicando um grande cerrado de árvores, ao lado do qual passavam as trilhas. O cerrado estava sem folhas, enegrecido. Ao centro viam-se os restos dos ninhos de pássaros carbonizados. — Ele respirou sobre as árvores, — disse a garota nervosamente.

Bond aproximou-se das árvores e examinou-as. — Certamente que o fez — admitiu. Por que aquele cerrado, em especial, tinha sido queimado? Era muito estranho aquilo.

As trilhas desciam em direção ao lago e desapareciam na água. Bond teria gostado de segui-las, mas não poderia abandonar a cobertura das árvores. Assim, continuaram a marcha, cada um entregue aos próprios pensamentos.

Lentamente o dia começou a morrer, por trás da colina, e por fim a garota apontou para a frente, através dos arbustos; Bond pôde ver uma comprida restinga internando-se no lago. Estava coberta por densas moitas de arbustos e podiam-se ver, a cem metros da praia, os restos de uma cabana incendiada. Aquele parecia um lugar razoavelmente atraente para se passar a noite, e era bem protegido dos dois lados, pela água.

O vento tinha declinado e a água se apresentava suave e convidativa. Que prazer não seria tirarem as suas imundas camisas para um banho no lago e, depois de horas de patinhação através da lama e do lodo do pântano, poderem descansar naquela areia dura e seca!

O sol brilhou com reflexos amarelecidos e desapareceu por trás da montanha. Ainda era dia na extremidade oriental da ilha, mas a sombra negra do monte avançava vagarosamente sobre o lago e acabaria por expulsar completamente os últimos vestígios do sol. Os sapos começaram a coaxar mais barulhentamente que em Jamaica, até que a noite ficou cheia daquele áspero ruído. Do outro lado do lago um grande sapo macho começou a soar o seu tambor. Aquele estranho som era algo entre um tom-tom e um rosnado de macaco. Enviava mensagens que subitamente se interrompiam e logo silenciaram. Com certeza encontrara o que procurava.

Chegaram à garganta da restinga e seguiram por um estreito caminho, até a clareira que encerrava os escombros da cabana de sapé. As grandes e misteriosas trilhas saíam da água, de ambos os lados, atravessavam a clareira e os cerrados próximos. Muitos dos arbustos estavam queimados ou crestados. Podiam-se ver os restos de um fogão feito de pedaços de coral, e algumas panelas e latas vazias. Examinaram os destroços, e Quarrel desenterrou um par de latas intactas de costeletas de porco e ervilhas marca “Heinz”. A jovem encontrou ainda um saco de dormir muito amarrotado, enquanto Bond achou uma pequena bolsa de couro com cinco notas de um dólar, três libras de Jamaica e algumas moedas de prata. Os dois homens certamente tinham abandonado aquele lugar a toda pressa.

Prosseguiram mais para diante, até uma pequena clareira arenosa. Através dos arbustos podiam ver luzes cintilando sobre a água e provenientes da montanha, talvez a mais de três quilômetros de distância. A leste nada mais havia senão. os suaves reflexos escuros da água sob o céu sombrio.

Bond comentou: — Enquanto não acendermos nada, estaremos bem aqui. A primeira coisa a fazer é tomarmos um bom banho, Honey. Você pode ficar com o resto da restinga, que nós ficaremos com a sua garganta. Dentro de meia hora espero vê-la para o jantar.

A garota riu: — Você virá a rigor?

— Sem dúvida — respondeu Bond — e de calças.

Quarrel observou: — Capitão, enquanto ainda há um pouco de luz, vou abrir essas latas e preparar as coisas para a noite. — Remexeu dentro da mochila. — Aqui estão as suas calças e o seu revólver. O pão talvez não esteja muito bom, mas está apenas molhado. Pode-se comê-lo bem, e amanhã estará seco. O melhor talvez fosse comermos das latas esta noite, guardando o queijo e as costeletas. As latas são pesadas e amanhã teremos que andar muito.

Bond respondeu: — Muito bem, Quarrel. Deixarei o cardápio aos seus cuidados.

Em seguida, apanhou o revólver e as calças úmidas e desceu para a água rasa. A água estava acariciante, mas desagradavelmente quente. Bond escavou punhados de areia, com as mãos, e esfregou o corpo com ela, utilizando-a como sabonete. Depois deixou-se ficar gostosamente em meio àquele silêncio e àquela solidão.

As estrelas começaram a brilhar palidamente, as estrelas que os tinham trazido à ilha na noite passada; as estrelas que os tirariam dali no dia seguinte. Que viagem! Mas pelo menos já tinha dado os seus resultados. Agora tinha provas bastantes, e testemunhas, para ir ter com o governador e conseguir dele um inquérito completo acerca das atividades do Dr. No. Ninguém lança mão de metralhadoras contra pessoas, mesmo contra intrusos. E, da mesma forma, o que seria aquilo do Dr. No, que invadira a propriedade da Sociedade Audubon, aquilo que chegara a destruir essa propriedade e provavelmente matara um de seus empregados? Isto também teria que ser investigado. E o que haveria ele de encontrar quando voltasse pela porta da frente, talvez a bordo de um destróier, e com um destacamento de fuzileiros navais? Qual seria a resposta para o mistério do Dr. No? O que estaria ele escondendo? Por que aquele segredo era tão importante, que seria capaz de matar repetidas vezes, para preservá-lo? E quem era esse Dr. No?

Bond ouviu o barulho de alguém espojando-se na água. Pensou na garota. E quem, afinal, era Honeychile Ri-der? Aquilo pelo menos, pensou ele ao sair da água, era algo que deveria esclarecer antes do amanhecer.

Bond enfiou as suas pegajosas calças, sentou-se na areia e desmontou o revólver. Fê-lo pelo tato, utilizando-se de sua camisa para secar cada peça e cada cartucho. Depois, tornou a montar a arma e pressionou o gatilho, fazendo com que o tambor vazio desse uma volta completa. O som era satisfatório. Seriam precisos alguns dias para que o revólver começasse a enferrujar. Carregou-o e meteu-o no coldre, para dentro do cós da calça. Depois, levantou-se e voltou para a clareira.

A sombra de Honey chegou até ele, e a sua voz se fez ouvir: — Venha; estamos morrendo de fome. Apanhei uma das panelas, limpei-a e pusemos as ervilhas nela. Temos pão também. E eu não sinto escrúpulos de comer a sua ração, porque você me fez trabalhar muito mais do que se eu estivesse sozinha. Agora, estique a mão.

Bond achou graça no tom autoritário que havia em sua voz. Ele apenas podia perceber a sua silhueta, no escuro. Sua cabeça parecia mais aflada. Ele se perguntou como seriam os seus cabelos quando secos e penteados. Como seria ela quando estivesse vestindo roupas limpas naquele lindo corpo dourado? Podia vê-la entrando numa sala ou atravessando um vestíbulo em Beau Desert. Ela seria uma linda e encantadora Patinha Feia. Por que nunca procurara endireitar o nariz? Seria uma operação fácil. Depois disso, ela seria a jovem mais bela de Jamaica.

O seu ombro tocou nele. Bond esticou o braço e descansou a mão aberta no colo da jovem. Então Bond sentiu que ela estava enchendo a sua mão com ervilhas.

Subitamente, Bond aspirou o seu cheiro cálido de animal. Foi uma explosão sensual tão aguda que o seu corpo se uniu ao dela, e, por um momento, os seus olhos se fecharam.

Ela deixou escapar um riso curto, no qual havia timidez, satisfação e ternura. E disse, maternalmente: “Lá”, — e empurrou a mão de Bond.

 

CONTINUA

IX - POR UM TRIZ


Dez minutos mais tarde a baía estava vazia e imaculada. Pequenas ondas encrespavam-se preguiçosamente através do espelho das águas, no interior dos recifes e morriam exaustas na areia escura onde as conchas lilás brilhavam como unhas pintadas. O monte de conchas tinha desaparecido e não havia mais vestígios de pegadas. Quarrel cortara galhos de mangues e caminhava de costas procurando apagar as pegadas com aqueles galhos. Onde tinha varrido, a areia apresentava uma limpidez diferente mas não tão diferente a ponto de ser notada de fora do recife. A canoa da jovem tinha sido arrastada para dentro do mar, entre as rochas, e ali ficou coberta com algas e gravetos.

Quarrel tinha voltado ao promontório. Bond e a jovem estavam juntos, sob tufos de folhas, onde Bond dormira, e olhavam silenciosamente para o contorno do promontório, à volta do qual surgira a embarcação.

A lancha estava talvez a uns quinhentos metros de distância. A julgar pelo lento ritmo do motor, Bond concluiu que cada acidente da costa estava sendo cuidadosamente inspecionado para descobrir indícios da presença de estranhos. De qualquer forma, aquilo parecia uma possante embarcação. Talvez uma grande lancha de cabina. Que tripulação teria? Quem estaria no comando? O Dr. No? Improvável. Ele certamente não se daria àquele trabalho de polícia.

Do lado do ocidente apareceu um bando de corvos marinhos, voando baixo sobre o mar, além dos recifes. Bond observou-os. Eram o primeiro indício para ele encontrado daquela colônia de aves, na outra extremidade da ilha. Aquele bando, segundo Pleydell-Smith, seriam batedores à procura do brilho prateado das enchovas, próximas à superfície. Enquanto observava, as aves começaram a dar mergulhos rasos, ferindo o mar superficialmente e levantando respingos de água. Quase que de uma só vez, apareceu outra coluna de aves, vinda do ocidente, e logo outra, e mais outra, fundindo-se todas numa espessa e escura nuvem. Durante minutos, elas sombrearam o céu, e depois atiraram-se à água, cobrindo vários alqueires, piando e lutando, e mergulhando as cabeças no mar, fazendo uma rica colheita naquele sólido campo de anchovas, como piranhas que se banqueteassem num cavalo afogado.

Bond sentiu um suave toque da jovem, que fez um movimento com a cabeça, dizendo:

— As galinhas do chinês estão comendo milho.

Bond observou-lhe o rosto belo e feliz. Ela parecia bastante despreocupada com a chegada daqueles homens. Para ela aquilo era apenas o jogo de esconde-esconde que já tinha praticado antes.

A vibração metálica dos motores diesel estava-se tornando mais forte. A lancha deveria estar justamente por trás do promontório. Bond deu mais uma olhada à volta da tranqüila baía, e depois fixou os olhos através da folhagem e do mato, para os lados dos recifes.

A ponta de uma proa branca apareceu, seguida de uns dez metros de tombadilho, e logo o parabrisas de vidro, uma cabina baixa e uma antena de rádio, e o vulto de um homem à volta do leme. Finalmente, o comprido e achatado fosso da popa, e uma flâmula vermelha pendente, Seria uma lancha-torpedeira convertida, um excedente de guerra do governo britânico?

Os olhos de Bond fixaram-se nos dois homens que estavam em pé na popa. Eram negros de pele pálida, envergando roupas caqui de marinheiro, com largos cinturões e chapéus de palha com longas palas. Estavam um ao lado do outro, equilibrando-se sob a lenta elevação da massa líquida. Um deles segurava um alto-falante e o outro manejava uma metralhadora instalada num tripé. Bond teve a impressão de que era uma metralhadora “Spandau”.

O homem com o alto-falante deixou que este caísse, e ele ficou oscilando numa tira, que lhe dava volta ao pescoço. Apanhou um binóculo e começou a vasculhar metro a metro da praia. Indistintos comentários chegavam aos ouvidos de Bond, por entre o ruído dos motores.

Bond percebeu que os olhos do binóculo começavam pelo promontório e depois percorriam a areia. As lentes detiveram-se entre as rochas e continuaram o seu passeio. Depois, voltaram. O murmúrio do comentário elevou-se ganhando animação. O homem passou o binóculo para o metralhador, que observou rapidamente, devolvendo-o logo ao dono. O observador gritou alguma coisa para o timoneiro. A lancha começou a se aproximar da praia. Agora estavam justamente diante dos recifes, em frente a Bond e à jovem. O observador ergueu novamente o binóculo, apontando-o para as rochas onde se encontrava escondida a canoa da jovem. Novamente a fala excitada chegou aos ouvidos de Bond, por sobre as águas. Mais uma vez o binóculo foi passado ao metralhador, que levou algum tempo observando. Dessa vez, ele fez um sinal de assentimento com a cabeça.

Bond pensou: agora vamos ter coisa; esses homens conhecem o ofício. Em seguida, viu que o metralhador se ocupava em carregar a arma. O duplo estalido metálico chegou aos seus ouvidos, por entre o matraquear do motor.

O observador ergueu o alto-falante e ligou-o. O eco produzido pelo amplificador chegou até Bond, conduzido pela superfície da água. A voz do homem ribombou pela baía:

— Alô, pessoal! Saiam daí e não serão feridos. Era uma voz educada, com sotaque americano.

— Agora, pessoal — trovejou a voz — depressa! Nós vimos quando vocês desembarcaram. Já descobrimos o bote sob os paus. Não somos tolos e não estamos brincando. Saiam daí com os braços levantados e não lhes acontecerá nada!

Não se ouviu nenhuma resposta. Apenas as ondas quebravam docemente na praia. Bond podia ouvir a respiração da jovem. Os guinchos agudos dos corvos marinhos chegavam-lhes de uma milha de distância, sobre o mar. O cano de escapamento dos motores diesel produzia um ruído desigual e gorgulhante, quando o intumescimento do mar cobria o orifício de descarga.

Silenciosamente Bond tocou o braço da jovem e disse-lhe:

— Fique mais perto. Alvo menor.

Ele sentiu o calor da jovem mais próximo de seu corpo, e o rosto de Honey raspou pelo seu braço. Bond sussurrou:

— Enterre-se na areia. Encolha-se. Cada polegada a menos ajudará.

Ele começou a se encolher cuidadosamente na depressão que tinham escavado para se abrigarem, e sentiu que ela fazia o mesmo.

O homem estava erguendo o seu alto-falante. A voz ribombou novamente.

— Muito bem, pessoal! Vocês irão ver que isso aqui não é para brincadeira. — Depois, levantou o polegar. O metralhador experimentou a arma fazendo alguns disparos para a copa dos mangues situados por trás da praia. Bond ouviu o rápido matraquear, tão seu conhecido, e do qual se despedira pela última vez diante das linhas alemãs, nas Ardenas. As balas produziam o velho som de pombos assustados, assobiando sobre sua cabeça. Depois fez-se silêncio.

À distância, Bond via a nuvem negra de corvos marinhos elevar-se, começando a fazer os seus amplos círculos. Seus olhos voltaram para a embarcação. O metralhador estava apalpando o cano da metralhadora, para ver se já estava aquecido. Os dois homens trocaram algumas palavras. O observador apanhou novamente o porta-voz.

— Está bem, pessoal. Vocês foram avisados.

Bond viu o cano da “Spandau” levantar-se e abaixar-se. O homem estava querendo começar com a canoa, entre as rochas. Bond sussurrou para a jovem: — Muito bem, Honey. Agüente firme. Mantenha-se abaixada. Não vai durar muito.

Ele sentiu que a mão da jovem apertava o seu braço, e pensou: “Coitada; ela está metida nisso por minha causa.” Ele inclinou-se para a direita a fim de cobrir a cabeça de Honey e afundou o rosto na areia.

Dessa vez o matraquear foi terrível. Balas ricocheteavam no flanco do promontório. Fragmentos de pedra saltavam para todos os lados, sobre a praia. Outras balas ricocheteavam e iam perder-se dentro da mata. Simultaneamente com todo aquele barulho ouvia-se o martelar contínuo da metralhadora.

Houve uma pausa. Nova carga, pensou Bond. Agora será para nós. Pôde sentir a jovem agarrando-se a ele. Seu corpo tremia todo, encostado ao seu flanco. Bond apanhou uma arma e apertou-a de encontro ao corpo. O matraquear da metralhadora recomeçou. As balas vinham zunindo, da linha de maré, em direção a eles. Ouviu-se uma sucessão de rápidas batidas. O tufo, acima deles, estava sendo reduzido a pedaços. “Zuip Zuip Zuip”. Era como se um chicote de aço estivesse retalhando os arbustos. Pedaços de lenha caíam sobre eles, cobrindo-os lentamente. Bond respirou um ar mais fresco, o que significava que eles agora estavam ao ar-livre. Estariam eles escondidos pelas folhas o pelos destroços? As balas continuaram deslocando-se ao longo da linha da costa. Em menos de um minuto a metralhadora parou.

O silêncio tornou a reinar. A jovem lamuriou-se docemente. Bond fê-la calar-se e apertou-a mais forte.

O alto-falante apregoou:

— Está bem, pessoal. Se vocês ainda têm ouvidos, saibam que voltaremos logo para recolher-lhes os pedaços. Vamos trazer os cães. Até à vista, por enquanto.

O ritmo do motor se acelerou, e através das folhas Bond pôde ver a popa da lancha afundar-se mais na água, enquanto a embarcação rumava rapidamente para oeste. Dentro de minutos já não se ouvia mais nada.

Bond ergueu a cabeça cautelosamente. A baía estava serena, e tudo como antes, exceto o cheiro de cordite e as rochas quebradas.

Bond fez a jovem levantar-se. Havia marcas de lágrimas em seu rosto. Ela olhou-o aterrada, e disse:

— Isso foi terrível. Por que eles o fizeram? Podíamos ter sido mortos.

Bond pensou naquela jovem que sempre abrira caminho, na vida, por si mesma, mas apenas contra a natureza. Conhecia o mundo dos animais, dos insetos e dos peixes, e tirava todo o partido desse conhecimento. Mas aquele era um pequeno mundo, limitado pelo sol, pela lua e pelas estações. Ela não conhecia o grande mundo das salas cheias de fumo, dos corredores de negócios, dos corredores e antecâmaras governamentais, dos cautelosos encontros em bancos de praças — numa palavra: ela nada conhecia da luta pelo poder e pelo dinheiro, travada por homens poderosos.

Bond disse:

— É isso mesmo, Honey, eles não passam de uma quadrilha de bandidos assustados conosco. Podemos enfrentá-los.

Bond colocou o braço à volta de seus ombros e continuou:

— E você esteve maravilhosa, brava como ninguém. Agora, vamos ao encontro de Quarrel para traçar os nossos planos. De qualquer forma, já é tempo de comermos alguma coisa. O que é que você costuma comer nessas expedições?

Deram meia-volta e seguiram pela praia em direção ao promontório. Depois de um minuto, ela disse com voz bem controlada:

— Oh, há uma porção de coisas por aí que se podem comer. Ouriços do mar principalmente, mas também bananas silvestres e outras coisas. Eu como e durmo durante dois dias, antes de vir aqui. Não preciso de nada.

Bond apertou-a mais fortemente, mas deixou cair o braço, assim que Quarrel apareceu ao longe. Quarrel vinha saltando sobre as rochas, e, em determinado momento, parou, olhando para baixo. Bond e Honey se aproximaram dele. A canoa da jovem estava cortada ao meio pelas balas. Honey deixou escapar um grito, olhando desesperadamente para Bond:

— A minha canoa! Como poderei voltar?

— Não se preocupe, senhorita, — disse Quarrel, que sentia a perda de uma canoa mais do que Bond. Imaginou ainda que aquela embarcação representasse quase todo o capital da jovem. — O capitão lhe dará outra. E a senhorita voltará conosco. Temos um magnífico bote, entre os mangues, e ele não foi destruído. Já estive lá espiando.

Quarrel olhou para Bond. Agora, o seu rosto denotava preocupação.

— Mas, capitão, o senhor está vendo o que eu disse dessa gente. Eles são duros e não estão brincando. Esses cães que eles vão trazer são policiais — Pinschers, como eles os chamam. Bastardos. Meus amigos disseram-me que são uma matilha de vinte ou mais. É melhor resolvermos logo.

— Está bem, Quarrel. Mas antes de mais nada precisamos comer alguma coisa. — o diabo que me carregue se eu vou ser aterrorizado e expulso da ilha antes de dar uma olhada nisso. Levaremos Honey conosco. — E, voltando-se para a jovem:

— Está bem, Honey? Nada lhe acontecerá. Depois voltaremos juntos.

A jovem olhou-o em dúvida:

— Acho que não há alternativa. Quero dizer. Gostaria de ir com vocês, se não atrapalhasse. Francamente, não quero comer nada. Mas você me levará de volta, assim que puder? Não quero ver mais aquela gente. Durante quanto tempo vocês vão ficar olhando para essas aves?

Bond respondeu evasivamente:

— Pouco tempo. Eu terei apenas que ver o que lhes aconteceu e porquê. Depois, partiremos.

Olhou para o relógio e anunciou:

— Agora são doze horas. Você nos esperará aqui. Tome um banho ou faça o que quiser. Não ande por aí deixando pegadas. Vamos, Quarrel, é melhor escondermos aquele bote.

Só à uma hora eles estavam prontos. Bond e Quarrel encheram a canoa com pedras e areia, até que ela desapareceu sob a água, entre os mangues. Depois, apagaram as suas pegadas. As balas tinham deixado tantos gravetos na orla da praia, que eles podiam caminhar pisando em folhas e ramos quebrados. Comeram parte de suas rações — os homens com avidez, mas Honey com relutância — e depois, passando sobre as rochas, foram ter à lagoa, próxima da costa. Em seguida foram vadeando aquelas águas, em direção à foz do rio, trezentos metros praia abaixo.

Fazia muito calor. Um vento áspero e quente começou a soprar do nordeste. Quarrel informou que aquele vento soprava diariamente, durante todo o ano, e era vital para a guaneira, pois secava o guano. O revérbero do mar e das brilhantes folhas verdes dos mangues cegava-os. Bond deu-se por feliz, já que tivera o cuidado de acostumar sua pele ao sol.

Na foz do rio encontraram um banco de areia e um extenso pântano, profundo e de águas estagnadas. Os dois homens podiam molhar-se ou tirar as roupas. Bond disse à jovem:

— Honey, não podemos ter cerimônia, nesta situação. Vamos ficar apenas com as camisas por causa do sol. Fique apenas com o que for sensato e caminhe atrás de nós.

Sem esperar pela resposta da jovem, os dois homens tiraram as calças. Quarrel enrolou-as e guardou-as na sacola, juntamente com as provisões e o revólver de Bond. Depois começaram a vadear a lagoa, com Quarrel na frente, logo seguido de Bond, e, finalmente a jovem. A água chegou até a cintura de Bond. Um grande peixe prateado deu um salto perto deles e depois caiu ruidosamente na água. Viram-se pequeninas setas riscarem a superfície, quando peixes menores se afastaram precipitadamente.

A lagoa convergia para uma estreita garganta, por sobre a qual as copas dos mangues se tocavam. Durante algum tempo eles vadearam através de um túnel fresco, e depois o rio se alargou num canal profundo, de águas morosas, que serpeava para a frente, entre as gigantescas raízes de sustentação dos mangues. O fundo era lamacento, e a cada passo os pés se enterravam algumas polegadas no lodo. Pequenos peixes ou camarões se encolhiam ou fugiam de baixo de seus pés, e de quando em quando eles tinham que parar para se desembaraçar das sanguessugas, antes que elas se agarrassem firmemente. A não ser isso, aquela caminhada era fácil, sob o frescor das arvores, e, pelo menos para Bond, era uma bênção estar ao abrigo do sol.

Em breve, à medida que se iam afastando do mar, começaram a sentir um cheiro de ovo podre, o cheiro de hidrogênio sulfurado do gás dos pântanos. Os mosquitos começaram a assaltá-los e pareciam gostar do corpo de Bond. Quarrel disse-lhe que mergulhasse na água do rio, pois os mosquitos gostavam de carne salgada. Bond tirou a camisa e fez o que Quarrel lhe aconselhara. Depois disso sentiu-se melhor e o seu olfato chegou mesmo a se acostumar com aquele repugnante cheiro, a não ser quando os pés de Quarrel desfaziam algum bolsão de gás, no fundo da lama, e uma gigantesca bolha atravessava a água para arrebentar na superfície sob as suas narinas.

Os mangues começaram a se tornar mais escassos e mais esparsos, enquanto o rio se ia alargando aos poucos. Ao mesmo tempo, a água tornava-se mais rasa e o fundo mais firme. Logo chegaram a uma volta e saíram para céu aberto, Honey disse:

— É melhor tomarmos cuidado, agora. Eles poderão ver-nos com muita facilidade. Isso vai assim durante uma milha. Depois o rio torna a se estreitar até o lago. E depois se poderá ver a restinga onde os tratadores das aves viviam.

O grupo deteve-se à sombra do túnel de mangues e olhou para fora. O rio serpeava perigosamente, afastando-se deles, em direção ao centro da ilha. As suas barrancas, bordadas de bambus de pequeno porte e de vegetação rala, dar-lhes-íam cobertura reduzida. Partindo de sua margem ocidental, o terreno elevava-se aos poucos, e logo abruptamente até o monte, situado a três quilômetros de distância, que era a guaneira. Na base daquela montanha, viam-se várias cabanas esparsas. Um ziguezague prateado galgava o flanco da colina, até as tendas — trilhos “Decauville”, pensou Bond, destinados a levarem o guano para o moinho e separa-dor. O cume do monte era branco, como se estivesse coberto de neve. De sua parte mais elevada desprendia-se como que uma bandeira de dó de guano. Bond podia ver os pontos negros que eram os corvos marinhos, sobre o fundo branco. Aquelas aves estavam levantando vôo e pousando como abelhas numa colmeia.

Bond deixou-se ficar de pé e contemplou o brilho distante daquela montanha de excrementos de aves. Então aquilo era o reino do Dr. No! Bond pensou que jamais vira um cenário tão escondido e distante, em toda a sua vida.

Examinou o terreno entre o rio e a montanha. Parecia ser principalmente formado com aquela matéria cinzenta de corais mortos. Não havia dúvida de que uma estrada ou trilha corria da falda da montanha até ao lago central e aos pântanos. Bond notou ainda que toda a vegetação se curvava para oeste, e imaginou viver durante todo um ano com aquele vento escaldante castigando a ilha, sem falar do cheiro do guano e do gás dos pântanos. Nenhuma colônia penal poderia encontrar pior localização do que aquela.

Bond olhou para leste, onde os mangues, na área dos charcos, pareciam oferecer mais hospitalidade. Os três puseram-se a caminhar sobre um sólido tapete verde de vegetação. Sobre suas cabeças, aves revoluteavam agitadas, para depois se, acalmarem, e logo tornarem a agitar-se. Seus pios eram carregados pelo vento crestante.

A voz de Quarrel interrompeu os pensamentos de Bond:

— Eles vêm vindo, capitão!

Bond seguiu o olhar de Quarrel. Um grande caminhão descia celeremente das tendas, com uma nuvem de pó levantando-se das rodas. Bond acompanhou-o durante dez minutos, até que o veículo desapareceu entre os mangues, na margem do rio. Bond pôs-se a escutar e ouviu latidos de cães, que eram trazidos pelo vento.

Quarrel comentou:

— Eles vão descer pelo rio, capitão. Sabem que não nos podemos mover, a não ser rio acima, se não estivermos mortos. Certamente que descerão pelo rio, até a praia, e farão um reconhecimento dos destroços. Depois, com toda a certeza, a lancha virá com um pequeno bote e recolherá os homens e os cães. Pelo menos, isso é o que eu faria no lugar deles.

Honey disse: — Isso é, de fato, o que eles fazem quando me procuram. É isso mesmo. Basta que cortemos um pedaço de bambu, e, quando eles estiverem perto, mergulhemos na água, procurando respirar através do bambu, até que eles se afastem.

Bond sorriu para Quarrel, e disse: — Suponhamos que você corte os bambus, enquanto eu procuro um bom esconderijo entre os mangues.

Quarrel aquiesceu hesitante e começou a subir contra a corrente, em direção ao bambuzal, enquanto Bond se encaminhava para o túnel formado pelos mangues.

Bond evitara olhar para a jovem, mas esta disse-lhe com impaciência:

— Não precisa ter tanto cuidado em não olhar para mim. Não adianta se preocupar com tais coisas, numa hora dessas. Você mesmo o disse, ainda há pouco.

Bond virou-se e olhou para a jovem. Sua camisa esfrangalhada descia até a linha d’água. Podia-se ainda ter um vislumbre de pálidas coxas, serpeando sob a superfície. O lindo rosto sorriu para ele. No meio daqueles mangues, o seu nariz quebrado parecia harmonizar-se com o ambiente, pela sua animalidade.

Bond fitou-a descansadamente e ela compreendeu. Depois, ele deu-lhe as costas e desceu pela correnteza, seguido por ela. Logo encontrou o que procurava, isto é, uma fenda naquela parede formada pelas raízes dos mangues. Bond recomendou: — Não quebre nenhum galho. — Depois, baixou a cabeça e meteu-se por aquela brecha. O canal avançava numa distância de dez metros. A lama sob seus pés tornou-se mais mole e espessa. Chegou a uma sólida e intransponível parede de raízes. Aquela água escura fluía vagarosamente através de uma ampla e tranqüila lagoa. Bond deteve-se. A jovem se aproximou dele.

— Isto é mesmo uma brincadeira de esconde-esconde — disse ela, trêmula.

— É verdade — aquiesceu Bond distraidamente, enquanto pensava em seu revólver. Com efeito, ele preocupava-se em saber com que eficiência a arma operaria depois de um banho no rio — quantos cães e homens ele poderia eliminar, se fossem descobertos. Sentiu um estremecimento de inquietação. Tinha sido uma falta de sorte ter encontrado aquela jovem. Em combate, queira-se ou não, uma mulher representa sempre um coração a mais. O inimigo tem dois alvos enquanto apenas oferece um.

Bond lembrou-se de sua sede. Apanhou na concha da mão um pouco de água e bebeu-a. Aquela água era salobra e tinha gosto de terra. Mas servia. Bond bebeu um pouco mais. A jovem agitou a mão e deteve-o, dizendo:

— Não beba demais. Lave a boca e cuspa. Você pode apanhar febre.

Quarrel assobiou de algum ponto situado na corrente principal. Bond respondeu e foi em direção ao amigo. Depois, voltaram juntos, internando-se no canal. Quarrel borrifou as raízes de mangues com água, nos pontos em que os seus corpos talvez as tivessem raspado. “Para tirar o nosso cheiro”, explicou, laconicamente. Em seguida mostrou o seu feixe de bambus e começou a cortá-los e prepará-los. Enquanto isso, Bond se ocupava com seu revólver e a munição. Os três ficaram imóveis, no meio daquele pântano, de modo a não levantarem mais lama.

A luz do sol filtrava-se através do espesso teto de folhas, os camarões agitavam-se sob os pés daqueles três fugitivos. Gradativamente foi-se avolumando uma insuportável tensão, naquele silêncio escaldante e angustioso.

Foi quase um alívio ouvir-se o ladrar dos cães.


X - O RASTRO DO DRAGÃO


O grupo de investigação descia rapidamente pelo rio. Os dois homens, de calções de banho e altas botas impermeáveis, tinham que correr para acompanhar os cães.

Eram grandes negros chineses, que traziam coldres sustentados ao ombro por meio de talabartes cruzados diante dos peitos suados. De quando em quando trocavam gritos que em geral não passavam de imprecações. À frente deles a matilha de cães Dobermann nadava e debatia-se n’água, latindo excitadamente. Tinham farejado uma pista e procuravam segui-la nervosamente, com as orelhas eretas sobre as cabeças afladas.

— Talvez um maldito crocodilo, — gritou o chefe elevando a voz sobre a algazarra. Empunhava um chicote que de vez em quando fazia estalar no campo de caça.

Os outros homens se encaminhavam para ele. O chefe gritou excitadamente: “Aposto que é o gringo inglês! Tenho certeza de que ele está entre os mangues. Cuidado para que o gringo não nos faça cair numa emboscada.” O homem tirou o revólver do coldre e colocou-o sob o sovaco, sem tirar a mão da coronha.

O grupo agora estava deixando a parte do rio, sob céu aberto, e entrando no túnel formado pelos mangues. O primeiro homem tinha um apito, que se projetava de seu largo rosto como um toco de charuto. Fez soar um agudo silvo. Quando os cães avançaram, ele se deixou ficar com o seu chicote junto do chefe. Os animais continuavam farejando, lamuriando-se porque a corrente os obrigava a desobedecer às ordens recebidas. Os dois homens sacaram os revólveres e vadearam lentamente o rio, na mesma direção da corrente, por entre os caules tortuosos dos mangues.

O homem que ia na frente chegou ao estreito canal que Bond tinha encontrado, agarrou um dos cães pela co-leira e lançou-o ao canal. O animal resfolegou ansiosamente e debateu-se para a frente. Os olhos do homem percorreram as raízes dos mangues, de ambos os lados do canal, para ver se apresentavam algum arranhão.

O cão e o homem chegaram ao pequeno lago situado na extremidade do canal. O homem olhou à sua volta, com ar animado. Tornou a agarrar o cão pela coleira e puxou-o para trás. O animal relutava em abandonar o lugar. Então, o homem feriu a água com o chicote.

O segundo homem estivera esperando à entrada do canal. O primeiro saiu daquele pequeno remanso e sacudiu a cabeça, descendo a corrente, com os cães, que agora se mostravam menos excitados, nadando à frente.

Lentamente, a algazarra da perseguição foi diminuindo e desapareceu.

Por mais cinco minutos nada se mexeu na laguna dos mangues; depois, num dos cantos, entre as raízes, apareceu lentamente para fora d’água um fino periscópio de bambu. O rosto de Bond emergiu logo em seguida, com os cabelos molhados colados à testa, como a cara de um cadáver que boiasse. Em sua mão direita, sob a água, o revólver estava pronto. Bond procurou escutar cuidadosamente. O silêncio era completo, não havia o mínimo ruído. Ou haveria? O que seria aquele suave barulho, como se algo deslizasse entre a água, na corrente principal? Viria alguém, muito serenamente, seguindo na esteira daquela caçada? Bond procurou apalpar à sua volta e tocou delicadamente nos dois corpos que estavam cada um em um de seus flancos, entre as raízes, na orla da laguna. Quando os dois rostos aforaram à superfície, ele colocou o seu dedo indicador sobre os lábios, mas já era tarde. Quarrel tinha tossido e cuspido. Bond fez uma careta e fez um sinal na direção da principal corrente. Todos procuravam escutar. O ruído recomeçou. Alguém estava-se dirigindo para o canal lateral. Os tubos de bambu voltaram para as três bocas e as cabeças tornaram a submergir. Debaixo da água Bond descansou a cabeça na lama, apertou as narinas e os lábios à volta do tubo. Sabia que a laguna já fora examinada uma vez, pois sentira a agitação causada na água pelo cão, que passara nadando! Da primeira vez não tinham sido achados, mas conseguiriam escapar desta? Agora haveria menos possibilidades de que a lama revolta se escoasse para fora da laguna. Se esse batedor visse a mancha mais escura, na água, atiraria ou usaria um punhal? Que armas traria? Bond resolveu não correr riscos. Ao primeiro rumor de movimento, ao seu lado, ele se poria de pé e daria logo ao gatilho, esperando pelo melhor.

Assim ficou ele, submerso, com todos os sentidos atentos. Como era desagradável aquele respirar controlado e insuportáveis as ligeiras mordidelas dos camarões! Por sorte nenhum deles tinha qualquer ferida no corpo, pois do contrário os malditos animalzinhos ter-se-iam atirado contra elas. De qualquer forma, aquela fora uma brilhante idéia da jovem. Sem ela os cães já os teriam alcançado, onde quer que eles se tivessem escondido.

Inesperadamente, Bond encolheu-se. Uma bota de borracha tinha pisado em seu queixo e escorregado. O homem pensaria tratar-se de um galho de árvore? Bond não podia correr aquele risco. Com um só impulso pôs-se de pé, atirando para longe o pedaço de bambu.

Bond teve uma rápida impressão de um gigantesco corpo de pé, quase em cima de si, e duma coronha de rife, em rápido movimento. Levantou o braço esquerdo para proteger a cabeça e recebeu um violento golpe no braço. Ao mesmo tempo, o seu braço direito se esticou para a frente, e, quando o cano tocou no lado direito do peito, sob o mamilo, ele acionou o gatilho.

O coice da arma, quase encostada ao corpo do homem, por pouco não quebrou o pulso de Bond, mas o homem desabou para trás como uma árvore decepada que cai n’água. Antes que o corpo afundasse, Bond ainda pôde perceber-lhe uma grande fenda no flanco. A cabeça, uma cabeça negróide de chinês, veio à superfície, com os olhos revirados para cima e a água a sair de sua boca escancarada e silenciosa. Em seguida a cabeça submergiu novamente e nada mais se pôde ver senão uma lama espumosa e uma mancha vermelha que gradualmente se ia ampliando e lentamente era atraída pela corrente.

Bond se endireitou e voltou-se para o lado. Quarrel e a jovem estavam atrás, em pé, com a água a escorrer-lhes dos corpos. Quarrel tinha um sorriso que ia de orelha a orelha, mas a garota mordia as articulações dos dedos, enquanto seus olhos se escancaravam horrorizados diante da água avermelhada.

Bond disse laconicamente: “Desculpe-me, Honey. Tinha que ser feito. Ele estava bem sobre nós. Venha, vamos indo.” Agarrou-a de qualquer maneira, pelo braço, e arrastou-a para fora da principal corrente, apenas detendo-se quando chegaram a rio aberto, na boca do túnel de mangues.

O cenário estava novamente vazio. Bond olhou para o relógio, e verificou que parara às três horas. Olhou para o sol, já bastante deslocado para o ocidente e concluiu que deveriam ser quatro horas. Quanto ainda teriam que caminhar? Bond inesperadamente sentiu-se cansado. Agora teria de enfrentar a situação. Ainda que o disparo não tivesse sido ouvido — e certamente que ele fora abafado pelo próprio corpo da vítima e pelas árvores — a falta do homem seria sentida quando os outros se reunissem, — se a suposição de Quarrel fosse correta, na embocadura do rio, de onde seriam recolhidos pela lancha. Voltariam eles, subindo o rio, a fim de procurarem o desaparecido? Talvez não. Já estaria muito escuro quando eles tivessem a certeza de que o homem estava realmente desaparecido. O mais certo seria mandarem um grupo de homens pela manhã. Os cães facilmente dariam com o corpo. E o que aconteceria?

A garota puxou-o pela manga e disse com irritação: — Já é tempo de você me dizer o que significa tudo isto! Por que estão todos procurando se matar mutuamente? E quem é você? Não acredito em toda essa história de aves. Ninguém carrega revólveres contra aves.

Bond baixou o olhar, fitando aqueles olhos bem separados e irados. — Desculpe-me, Honey. Receio tê-la arrastado para uma boa encrenca. Eu lhe contarei tudo quando voltarmos à noite para o acampamento. Foi apenas má sorte que você se envolvesse comigo, desta maneira. Tenho uma guerrinha com essa gente. Eles parecem querer matar-me. Agora estou apenas interessado em que todos nós saiamos desta ilha sem que ninguém fique ferido. Já tenho muito do que queria, para da próxima vez voltar pela porta da frente.

— O que você quer dizer? Você é alguma espécie de policial? Está querendo meter esse chinês na cadeia?

— Mais ou menos, — disse Bond, rindo para ela. — Pelo menos você está do lado dos anjos. Agora, diga-me uma coisa. Quanto falta ainda para chegar ao acampamento dos guardas?

— Oh, cerca de uma hora.

— É um lugar bom para nele esconder-se? Eles poderiam achar-nos com facilidade?

— Eles teriam que atravessar o lago ou subir o rio. Tudo estará muito bem se eles não puserem o dragão em nosso encalço. Ele pode muito bem atravessar a água, pois já o vi fazê-lo.

— Bem — disse Bond diplomaticamente — esperemos que ele esteja com a cauda machucada, ou tenha outra coisa qualquer.

A jovem vociferou: — Muito bem, sr. Sabe-Tudo. — E acrescentou irritada: — Espere e verá.

Quarrel deixou o túnel de mangues, agitando ruidosamente a água, tendo na mão o rife do chinês abatido, e dizendo à guisa de quem pede desculpas:

— Não há mal em termos outra arma, chefe. Parece que vamos precisar dela.

Bond apanhou aquela arma. Era uma carabina “Remington”, do exército norte-americano, calibre 300. Não havia dúvida de que aquela gente contava com equipamento apropriado. Bond devolveu a arma a Quarrel, depois de examiná-la.

Quarrel como que fez eco aos seus pensamentos: — Isso é gente astuta, capitão. Aquele homem veio esquadrinhando suavemente, atrás dos outros, a fim de nos surpreender quando deixássemos o esconderijo, depois da passagem dos cães. Esse tal de doutor com certeza é um sujeito muito esperto.

Bond disse pensativamente: — É, ele deve ser um homem incomum. — Depois espantou os pensamentos: — Agora, vamos tocando para a frente. Honey diz que ainda precisamos de uma hora para chegarmos ao acampamento. É melhor irmos pela margem esquerda, de modo a ficarmos ao abrigo da colina. Pelo que já pudemos ver, eles têm lunetas assestadas sobre o rio.

Bond entregou a sua arma a Quarrel, que a guardou na mochila molhada. Puseram-se novamente em marcha, com Quarrel à frente, e Bond e a jovem andando juntos, atrás.

Aproveitavam algumas sombras das árvores e bambus da margem ocidental, mas deviam agora suportar toda a intensidade de um vento crestante. Borrifaram braços e corpos com água, a fim de refrescar as queimaduras. Os olhos de Bond estavam injetados por aquele insuportável revérbero e o seu braço doía intoleràvelmente no ponto em que fora atingido pela coronha. E ele não teria à sua espera o seu jantar de pão embebido, queijo e fiambre. Quanto tempo poderiam dormir? Não dormira muito na véspera, e parece que não iria ter melhor ração de sono. E a garota? Ela nada dormira. Ele e Quarrel teriam que se revezar, em quartos de vigilância. E logo chegaria o dia seguinte, quando procurariam ganhar novamente os mangues e vencer lentamente a distância que os separava de sua canoa, através da extremidade oriental da ilha. As coisas correriam daquela forma, segundo era de esperar. Então, tratariam de se fazerem ao mar na noite seguinte. Bond pensou em como haveria de abrir caminho por entre sólidos mangues, na distância de oito quilômetros. Que perspectiva! Continuou se arrastando para a frente, pensando nas “férias ao sol dos trópicos” de M. Muito gostaria que M tivesse que partilhar com ele aquelas “férias”.

O rio foi-se estreitando até que se reduziu a uma simples corrente entre as moitas de bambu. Depois se ampliava num estuário baixo e pantanoso, além do qual as cinco milhas quadradas de lago raso davam vazão para o outro lado da ilha, perdendo-se num agitado espelho líquido azul-cinza. Mais para além estava a brilhante pista aérea e o reflexo da luz solar sobre um único hangar. A jovem disse-lhe que se mantivesse na direção leste, e eles foram lentamente avançando, protegidos pela orla da mata.

Inesperadamente, Quarrel deteve-se, com o rosto esticado como o focinho de um cão para o terreno pantanoso à sua frente. Dois profundos sulcos tinham sido escavados na lama, com um sulco mais raso no centro. Eram a trilha de algo que tinha descido da colina e atravessado o pântano em direção ao lago.

A jovem disse com indiferença: — Por aqui já passou o dragão.

Quarrel arregalou os olhos para ela.

Bond caminhou lentamente pela trilha. As marcas exteriores eram bastante lisas, trazendo a marca de uma linha curva. Poderiam ter sido causadas por rodas, mas eram enormes, pelo menos com sessenta centímetros de largura. A trilha central tinha a mesma forma, mas com apenas três polegadas de largura, ou seja a largura de um pneumático de automóvel. As trilhas não apresentavam nenhum indício de pegadas e eram completamente frescas. Estendiam-se em linha reta, e os arbustos por elas atravessados tinham sido derrubados e esmagados no chão, como se um tanque de guerra tivesse passado por ali. Bond não podia imaginar que espécie de veículo seria aquele. A jovem tocou-o com o cotovelo e murmurou: — Eu lhe tinha dito. Ele apenas pôde responder pensativamente: — Bom, Honey, se não é o dragão, é algo que nunca vi antes.

Mais adiante, ela puxou-o ansiosamente pela manga. “Veja”, sussurrou, e apontou para a frente, indicando um grande cerrado de árvores, ao lado do qual passavam as trilhas. O cerrado estava sem folhas, enegrecido. Ao centro viam-se os restos dos ninhos de pássaros carbonizados. — Ele respirou sobre as árvores, — disse a garota nervosamente.

Bond aproximou-se das árvores e examinou-as. — Certamente que o fez — admitiu. Por que aquele cerrado, em especial, tinha sido queimado? Era muito estranho aquilo.

As trilhas desciam em direção ao lago e desapareciam na água. Bond teria gostado de segui-las, mas não poderia abandonar a cobertura das árvores. Assim, continuaram a marcha, cada um entregue aos próprios pensamentos.

Lentamente o dia começou a morrer, por trás da colina, e por fim a garota apontou para a frente, através dos arbustos; Bond pôde ver uma comprida restinga internando-se no lago. Estava coberta por densas moitas de arbustos e podiam-se ver, a cem metros da praia, os restos de uma cabana incendiada. Aquele parecia um lugar razoavelmente atraente para se passar a noite, e era bem protegido dos dois lados, pela água.

O vento tinha declinado e a água se apresentava suave e convidativa. Que prazer não seria tirarem as suas imundas camisas para um banho no lago e, depois de horas de patinhação através da lama e do lodo do pântano, poderem descansar naquela areia dura e seca!

O sol brilhou com reflexos amarelecidos e desapareceu por trás da montanha. Ainda era dia na extremidade oriental da ilha, mas a sombra negra do monte avançava vagarosamente sobre o lago e acabaria por expulsar completamente os últimos vestígios do sol. Os sapos começaram a coaxar mais barulhentamente que em Jamaica, até que a noite ficou cheia daquele áspero ruído. Do outro lado do lago um grande sapo macho começou a soar o seu tambor. Aquele estranho som era algo entre um tom-tom e um rosnado de macaco. Enviava mensagens que subitamente se interrompiam e logo silenciaram. Com certeza encontrara o que procurava.

Chegaram à garganta da restinga e seguiram por um estreito caminho, até a clareira que encerrava os escombros da cabana de sapé. As grandes e misteriosas trilhas saíam da água, de ambos os lados, atravessavam a clareira e os cerrados próximos. Muitos dos arbustos estavam queimados ou crestados. Podiam-se ver os restos de um fogão feito de pedaços de coral, e algumas panelas e latas vazias. Examinaram os destroços, e Quarrel desenterrou um par de latas intactas de costeletas de porco e ervilhas marca “Heinz”. A jovem encontrou ainda um saco de dormir muito amarrotado, enquanto Bond achou uma pequena bolsa de couro com cinco notas de um dólar, três libras de Jamaica e algumas moedas de prata. Os dois homens certamente tinham abandonado aquele lugar a toda pressa.

Prosseguiram mais para diante, até uma pequena clareira arenosa. Através dos arbustos podiam ver luzes cintilando sobre a água e provenientes da montanha, talvez a mais de três quilômetros de distância. A leste nada mais havia senão. os suaves reflexos escuros da água sob o céu sombrio.

Bond comentou: — Enquanto não acendermos nada, estaremos bem aqui. A primeira coisa a fazer é tomarmos um bom banho, Honey. Você pode ficar com o resto da restinga, que nós ficaremos com a sua garganta. Dentro de meia hora espero vê-la para o jantar.

A garota riu: — Você virá a rigor?

— Sem dúvida — respondeu Bond — e de calças.

Quarrel observou: — Capitão, enquanto ainda há um pouco de luz, vou abrir essas latas e preparar as coisas para a noite. — Remexeu dentro da mochila. — Aqui estão as suas calças e o seu revólver. O pão talvez não esteja muito bom, mas está apenas molhado. Pode-se comê-lo bem, e amanhã estará seco. O melhor talvez fosse comermos das latas esta noite, guardando o queijo e as costeletas. As latas são pesadas e amanhã teremos que andar muito.

Bond respondeu: — Muito bem, Quarrel. Deixarei o cardápio aos seus cuidados.

Em seguida, apanhou o revólver e as calças úmidas e desceu para a água rasa. A água estava acariciante, mas desagradavelmente quente. Bond escavou punhados de areia, com as mãos, e esfregou o corpo com ela, utilizando-a como sabonete. Depois deixou-se ficar gostosamente em meio àquele silêncio e àquela solidão.

As estrelas começaram a brilhar palidamente, as estrelas que os tinham trazido à ilha na noite passada; as estrelas que os tirariam dali no dia seguinte. Que viagem! Mas pelo menos já tinha dado os seus resultados. Agora tinha provas bastantes, e testemunhas, para ir ter com o governador e conseguir dele um inquérito completo acerca das atividades do Dr. No. Ninguém lança mão de metralhadoras contra pessoas, mesmo contra intrusos. E, da mesma forma, o que seria aquilo do Dr. No, que invadira a propriedade da Sociedade Audubon, aquilo que chegara a destruir essa propriedade e provavelmente matara um de seus empregados? Isto também teria que ser investigado. E o que haveria ele de encontrar quando voltasse pela porta da frente, talvez a bordo de um destróier, e com um destacamento de fuzileiros navais? Qual seria a resposta para o mistério do Dr. No? O que estaria ele escondendo? Por que aquele segredo era tão importante, que seria capaz de matar repetidas vezes, para preservá-lo? E quem era esse Dr. No?

Bond ouviu o barulho de alguém espojando-se na água. Pensou na garota. E quem, afinal, era Honeychile Ri-der? Aquilo pelo menos, pensou ele ao sair da água, era algo que deveria esclarecer antes do amanhecer.

Bond enfiou as suas pegajosas calças, sentou-se na areia e desmontou o revólver. Fê-lo pelo tato, utilizando-se de sua camisa para secar cada peça e cada cartucho. Depois, tornou a montar a arma e pressionou o gatilho, fazendo com que o tambor vazio desse uma volta completa. O som era satisfatório. Seriam precisos alguns dias para que o revólver começasse a enferrujar. Carregou-o e meteu-o no coldre, para dentro do cós da calça. Depois, levantou-se e voltou para a clareira.

A sombra de Honey chegou até ele, e a sua voz se fez ouvir: — Venha; estamos morrendo de fome. Apanhei uma das panelas, limpei-a e pusemos as ervilhas nela. Temos pão também. E eu não sinto escrúpulos de comer a sua ração, porque você me fez trabalhar muito mais do que se eu estivesse sozinha. Agora, estique a mão.

Bond achou graça no tom autoritário que havia em sua voz. Ele apenas podia perceber a sua silhueta, no escuro. Sua cabeça parecia mais aflada. Ele se perguntou como seriam os seus cabelos quando secos e penteados. Como seria ela quando estivesse vestindo roupas limpas naquele lindo corpo dourado? Podia vê-la entrando numa sala ou atravessando um vestíbulo em Beau Desert. Ela seria uma linda e encantadora Patinha Feia. Por que nunca procurara endireitar o nariz? Seria uma operação fácil. Depois disso, ela seria a jovem mais bela de Jamaica.

O seu ombro tocou nele. Bond esticou o braço e descansou a mão aberta no colo da jovem. Então Bond sentiu que ela estava enchendo a sua mão com ervilhas.

Subitamente, Bond aspirou o seu cheiro cálido de animal. Foi uma explosão sensual tão aguda que o seu corpo se uniu ao dela, e, por um momento, os seus olhos se fecharam.

Ela deixou escapar um riso curto, no qual havia timidez, satisfação e ternura. E disse, maternalmente: “Lá”, — e empurrou a mão de Bond.

 

CONTINUA

IX - POR UM TRIZ


Dez minutos mais tarde a baía estava vazia e imaculada. Pequenas ondas encrespavam-se preguiçosamente através do espelho das águas, no interior dos recifes e morriam exaustas na areia escura onde as conchas lilás brilhavam como unhas pintadas. O monte de conchas tinha desaparecido e não havia mais vestígios de pegadas. Quarrel cortara galhos de mangues e caminhava de costas procurando apagar as pegadas com aqueles galhos. Onde tinha varrido, a areia apresentava uma limpidez diferente mas não tão diferente a ponto de ser notada de fora do recife. A canoa da jovem tinha sido arrastada para dentro do mar, entre as rochas, e ali ficou coberta com algas e gravetos.

Quarrel tinha voltado ao promontório. Bond e a jovem estavam juntos, sob tufos de folhas, onde Bond dormira, e olhavam silenciosamente para o contorno do promontório, à volta do qual surgira a embarcação.

A lancha estava talvez a uns quinhentos metros de distância. A julgar pelo lento ritmo do motor, Bond concluiu que cada acidente da costa estava sendo cuidadosamente inspecionado para descobrir indícios da presença de estranhos. De qualquer forma, aquilo parecia uma possante embarcação. Talvez uma grande lancha de cabina. Que tripulação teria? Quem estaria no comando? O Dr. No? Improvável. Ele certamente não se daria àquele trabalho de polícia.

Do lado do ocidente apareceu um bando de corvos marinhos, voando baixo sobre o mar, além dos recifes. Bond observou-os. Eram o primeiro indício para ele encontrado daquela colônia de aves, na outra extremidade da ilha. Aquele bando, segundo Pleydell-Smith, seriam batedores à procura do brilho prateado das enchovas, próximas à superfície. Enquanto observava, as aves começaram a dar mergulhos rasos, ferindo o mar superficialmente e levantando respingos de água. Quase que de uma só vez, apareceu outra coluna de aves, vinda do ocidente, e logo outra, e mais outra, fundindo-se todas numa espessa e escura nuvem. Durante minutos, elas sombrearam o céu, e depois atiraram-se à água, cobrindo vários alqueires, piando e lutando, e mergulhando as cabeças no mar, fazendo uma rica colheita naquele sólido campo de anchovas, como piranhas que se banqueteassem num cavalo afogado.

Bond sentiu um suave toque da jovem, que fez um movimento com a cabeça, dizendo:

— As galinhas do chinês estão comendo milho.

Bond observou-lhe o rosto belo e feliz. Ela parecia bastante despreocupada com a chegada daqueles homens. Para ela aquilo era apenas o jogo de esconde-esconde que já tinha praticado antes.

A vibração metálica dos motores diesel estava-se tornando mais forte. A lancha deveria estar justamente por trás do promontório. Bond deu mais uma olhada à volta da tranqüila baía, e depois fixou os olhos através da folhagem e do mato, para os lados dos recifes.

A ponta de uma proa branca apareceu, seguida de uns dez metros de tombadilho, e logo o parabrisas de vidro, uma cabina baixa e uma antena de rádio, e o vulto de um homem à volta do leme. Finalmente, o comprido e achatado fosso da popa, e uma flâmula vermelha pendente, Seria uma lancha-torpedeira convertida, um excedente de guerra do governo britânico?

Os olhos de Bond fixaram-se nos dois homens que estavam em pé na popa. Eram negros de pele pálida, envergando roupas caqui de marinheiro, com largos cinturões e chapéus de palha com longas palas. Estavam um ao lado do outro, equilibrando-se sob a lenta elevação da massa líquida. Um deles segurava um alto-falante e o outro manejava uma metralhadora instalada num tripé. Bond teve a impressão de que era uma metralhadora “Spandau”.

O homem com o alto-falante deixou que este caísse, e ele ficou oscilando numa tira, que lhe dava volta ao pescoço. Apanhou um binóculo e começou a vasculhar metro a metro da praia. Indistintos comentários chegavam aos ouvidos de Bond, por entre o ruído dos motores.

Bond percebeu que os olhos do binóculo começavam pelo promontório e depois percorriam a areia. As lentes detiveram-se entre as rochas e continuaram o seu passeio. Depois, voltaram. O murmúrio do comentário elevou-se ganhando animação. O homem passou o binóculo para o metralhador, que observou rapidamente, devolvendo-o logo ao dono. O observador gritou alguma coisa para o timoneiro. A lancha começou a se aproximar da praia. Agora estavam justamente diante dos recifes, em frente a Bond e à jovem. O observador ergueu novamente o binóculo, apontando-o para as rochas onde se encontrava escondida a canoa da jovem. Novamente a fala excitada chegou aos ouvidos de Bond, por sobre as águas. Mais uma vez o binóculo foi passado ao metralhador, que levou algum tempo observando. Dessa vez, ele fez um sinal de assentimento com a cabeça.

Bond pensou: agora vamos ter coisa; esses homens conhecem o ofício. Em seguida, viu que o metralhador se ocupava em carregar a arma. O duplo estalido metálico chegou aos seus ouvidos, por entre o matraquear do motor.

O observador ergueu o alto-falante e ligou-o. O eco produzido pelo amplificador chegou até Bond, conduzido pela superfície da água. A voz do homem ribombou pela baía:

— Alô, pessoal! Saiam daí e não serão feridos. Era uma voz educada, com sotaque americano.

— Agora, pessoal — trovejou a voz — depressa! Nós vimos quando vocês desembarcaram. Já descobrimos o bote sob os paus. Não somos tolos e não estamos brincando. Saiam daí com os braços levantados e não lhes acontecerá nada!

Não se ouviu nenhuma resposta. Apenas as ondas quebravam docemente na praia. Bond podia ouvir a respiração da jovem. Os guinchos agudos dos corvos marinhos chegavam-lhes de uma milha de distância, sobre o mar. O cano de escapamento dos motores diesel produzia um ruído desigual e gorgulhante, quando o intumescimento do mar cobria o orifício de descarga.

Silenciosamente Bond tocou o braço da jovem e disse-lhe:

— Fique mais perto. Alvo menor.

Ele sentiu o calor da jovem mais próximo de seu corpo, e o rosto de Honey raspou pelo seu braço. Bond sussurrou:

— Enterre-se na areia. Encolha-se. Cada polegada a menos ajudará.

Ele começou a se encolher cuidadosamente na depressão que tinham escavado para se abrigarem, e sentiu que ela fazia o mesmo.

O homem estava erguendo o seu alto-falante. A voz ribombou novamente.

— Muito bem, pessoal! Vocês irão ver que isso aqui não é para brincadeira. — Depois, levantou o polegar. O metralhador experimentou a arma fazendo alguns disparos para a copa dos mangues situados por trás da praia. Bond ouviu o rápido matraquear, tão seu conhecido, e do qual se despedira pela última vez diante das linhas alemãs, nas Ardenas. As balas produziam o velho som de pombos assustados, assobiando sobre sua cabeça. Depois fez-se silêncio.

À distância, Bond via a nuvem negra de corvos marinhos elevar-se, começando a fazer os seus amplos círculos. Seus olhos voltaram para a embarcação. O metralhador estava apalpando o cano da metralhadora, para ver se já estava aquecido. Os dois homens trocaram algumas palavras. O observador apanhou novamente o porta-voz.

— Está bem, pessoal. Vocês foram avisados.

Bond viu o cano da “Spandau” levantar-se e abaixar-se. O homem estava querendo começar com a canoa, entre as rochas. Bond sussurrou para a jovem: — Muito bem, Honey. Agüente firme. Mantenha-se abaixada. Não vai durar muito.

Ele sentiu que a mão da jovem apertava o seu braço, e pensou: “Coitada; ela está metida nisso por minha causa.” Ele inclinou-se para a direita a fim de cobrir a cabeça de Honey e afundou o rosto na areia.

Dessa vez o matraquear foi terrível. Balas ricocheteavam no flanco do promontório. Fragmentos de pedra saltavam para todos os lados, sobre a praia. Outras balas ricocheteavam e iam perder-se dentro da mata. Simultaneamente com todo aquele barulho ouvia-se o martelar contínuo da metralhadora.

Houve uma pausa. Nova carga, pensou Bond. Agora será para nós. Pôde sentir a jovem agarrando-se a ele. Seu corpo tremia todo, encostado ao seu flanco. Bond apanhou uma arma e apertou-a de encontro ao corpo. O matraquear da metralhadora recomeçou. As balas vinham zunindo, da linha de maré, em direção a eles. Ouviu-se uma sucessão de rápidas batidas. O tufo, acima deles, estava sendo reduzido a pedaços. “Zuip Zuip Zuip”. Era como se um chicote de aço estivesse retalhando os arbustos. Pedaços de lenha caíam sobre eles, cobrindo-os lentamente. Bond respirou um ar mais fresco, o que significava que eles agora estavam ao ar-livre. Estariam eles escondidos pelas folhas o pelos destroços? As balas continuaram deslocando-se ao longo da linha da costa. Em menos de um minuto a metralhadora parou.

O silêncio tornou a reinar. A jovem lamuriou-se docemente. Bond fê-la calar-se e apertou-a mais forte.

O alto-falante apregoou:

— Está bem, pessoal. Se vocês ainda têm ouvidos, saibam que voltaremos logo para recolher-lhes os pedaços. Vamos trazer os cães. Até à vista, por enquanto.

O ritmo do motor se acelerou, e através das folhas Bond pôde ver a popa da lancha afundar-se mais na água, enquanto a embarcação rumava rapidamente para oeste. Dentro de minutos já não se ouvia mais nada.

Bond ergueu a cabeça cautelosamente. A baía estava serena, e tudo como antes, exceto o cheiro de cordite e as rochas quebradas.

Bond fez a jovem levantar-se. Havia marcas de lágrimas em seu rosto. Ela olhou-o aterrada, e disse:

— Isso foi terrível. Por que eles o fizeram? Podíamos ter sido mortos.

Bond pensou naquela jovem que sempre abrira caminho, na vida, por si mesma, mas apenas contra a natureza. Conhecia o mundo dos animais, dos insetos e dos peixes, e tirava todo o partido desse conhecimento. Mas aquele era um pequeno mundo, limitado pelo sol, pela lua e pelas estações. Ela não conhecia o grande mundo das salas cheias de fumo, dos corredores de negócios, dos corredores e antecâmaras governamentais, dos cautelosos encontros em bancos de praças — numa palavra: ela nada conhecia da luta pelo poder e pelo dinheiro, travada por homens poderosos.

Bond disse:

— É isso mesmo, Honey, eles não passam de uma quadrilha de bandidos assustados conosco. Podemos enfrentá-los.

Bond colocou o braço à volta de seus ombros e continuou:

— E você esteve maravilhosa, brava como ninguém. Agora, vamos ao encontro de Quarrel para traçar os nossos planos. De qualquer forma, já é tempo de comermos alguma coisa. O que é que você costuma comer nessas expedições?

Deram meia-volta e seguiram pela praia em direção ao promontório. Depois de um minuto, ela disse com voz bem controlada:

— Oh, há uma porção de coisas por aí que se podem comer. Ouriços do mar principalmente, mas também bananas silvestres e outras coisas. Eu como e durmo durante dois dias, antes de vir aqui. Não preciso de nada.

Bond apertou-a mais fortemente, mas deixou cair o braço, assim que Quarrel apareceu ao longe. Quarrel vinha saltando sobre as rochas, e, em determinado momento, parou, olhando para baixo. Bond e Honey se aproximaram dele. A canoa da jovem estava cortada ao meio pelas balas. Honey deixou escapar um grito, olhando desesperadamente para Bond:

— A minha canoa! Como poderei voltar?

— Não se preocupe, senhorita, — disse Quarrel, que sentia a perda de uma canoa mais do que Bond. Imaginou ainda que aquela embarcação representasse quase todo o capital da jovem. — O capitão lhe dará outra. E a senhorita voltará conosco. Temos um magnífico bote, entre os mangues, e ele não foi destruído. Já estive lá espiando.

Quarrel olhou para Bond. Agora, o seu rosto denotava preocupação.

— Mas, capitão, o senhor está vendo o que eu disse dessa gente. Eles são duros e não estão brincando. Esses cães que eles vão trazer são policiais — Pinschers, como eles os chamam. Bastardos. Meus amigos disseram-me que são uma matilha de vinte ou mais. É melhor resolvermos logo.

— Está bem, Quarrel. Mas antes de mais nada precisamos comer alguma coisa. — o diabo que me carregue se eu vou ser aterrorizado e expulso da ilha antes de dar uma olhada nisso. Levaremos Honey conosco. — E, voltando-se para a jovem:

— Está bem, Honey? Nada lhe acontecerá. Depois voltaremos juntos.

A jovem olhou-o em dúvida:

— Acho que não há alternativa. Quero dizer. Gostaria de ir com vocês, se não atrapalhasse. Francamente, não quero comer nada. Mas você me levará de volta, assim que puder? Não quero ver mais aquela gente. Durante quanto tempo vocês vão ficar olhando para essas aves?

Bond respondeu evasivamente:

— Pouco tempo. Eu terei apenas que ver o que lhes aconteceu e porquê. Depois, partiremos.

Olhou para o relógio e anunciou:

— Agora são doze horas. Você nos esperará aqui. Tome um banho ou faça o que quiser. Não ande por aí deixando pegadas. Vamos, Quarrel, é melhor escondermos aquele bote.

Só à uma hora eles estavam prontos. Bond e Quarrel encheram a canoa com pedras e areia, até que ela desapareceu sob a água, entre os mangues. Depois, apagaram as suas pegadas. As balas tinham deixado tantos gravetos na orla da praia, que eles podiam caminhar pisando em folhas e ramos quebrados. Comeram parte de suas rações — os homens com avidez, mas Honey com relutância — e depois, passando sobre as rochas, foram ter à lagoa, próxima da costa. Em seguida foram vadeando aquelas águas, em direção à foz do rio, trezentos metros praia abaixo.

Fazia muito calor. Um vento áspero e quente começou a soprar do nordeste. Quarrel informou que aquele vento soprava diariamente, durante todo o ano, e era vital para a guaneira, pois secava o guano. O revérbero do mar e das brilhantes folhas verdes dos mangues cegava-os. Bond deu-se por feliz, já que tivera o cuidado de acostumar sua pele ao sol.

Na foz do rio encontraram um banco de areia e um extenso pântano, profundo e de águas estagnadas. Os dois homens podiam molhar-se ou tirar as roupas. Bond disse à jovem:

— Honey, não podemos ter cerimônia, nesta situação. Vamos ficar apenas com as camisas por causa do sol. Fique apenas com o que for sensato e caminhe atrás de nós.

Sem esperar pela resposta da jovem, os dois homens tiraram as calças. Quarrel enrolou-as e guardou-as na sacola, juntamente com as provisões e o revólver de Bond. Depois começaram a vadear a lagoa, com Quarrel na frente, logo seguido de Bond, e, finalmente a jovem. A água chegou até a cintura de Bond. Um grande peixe prateado deu um salto perto deles e depois caiu ruidosamente na água. Viram-se pequeninas setas riscarem a superfície, quando peixes menores se afastaram precipitadamente.

A lagoa convergia para uma estreita garganta, por sobre a qual as copas dos mangues se tocavam. Durante algum tempo eles vadearam através de um túnel fresco, e depois o rio se alargou num canal profundo, de águas morosas, que serpeava para a frente, entre as gigantescas raízes de sustentação dos mangues. O fundo era lamacento, e a cada passo os pés se enterravam algumas polegadas no lodo. Pequenos peixes ou camarões se encolhiam ou fugiam de baixo de seus pés, e de quando em quando eles tinham que parar para se desembaraçar das sanguessugas, antes que elas se agarrassem firmemente. A não ser isso, aquela caminhada era fácil, sob o frescor das arvores, e, pelo menos para Bond, era uma bênção estar ao abrigo do sol.

Em breve, à medida que se iam afastando do mar, começaram a sentir um cheiro de ovo podre, o cheiro de hidrogênio sulfurado do gás dos pântanos. Os mosquitos começaram a assaltá-los e pareciam gostar do corpo de Bond. Quarrel disse-lhe que mergulhasse na água do rio, pois os mosquitos gostavam de carne salgada. Bond tirou a camisa e fez o que Quarrel lhe aconselhara. Depois disso sentiu-se melhor e o seu olfato chegou mesmo a se acostumar com aquele repugnante cheiro, a não ser quando os pés de Quarrel desfaziam algum bolsão de gás, no fundo da lama, e uma gigantesca bolha atravessava a água para arrebentar na superfície sob as suas narinas.

Os mangues começaram a se tornar mais escassos e mais esparsos, enquanto o rio se ia alargando aos poucos. Ao mesmo tempo, a água tornava-se mais rasa e o fundo mais firme. Logo chegaram a uma volta e saíram para céu aberto, Honey disse:

— É melhor tomarmos cuidado, agora. Eles poderão ver-nos com muita facilidade. Isso vai assim durante uma milha. Depois o rio torna a se estreitar até o lago. E depois se poderá ver a restinga onde os tratadores das aves viviam.

O grupo deteve-se à sombra do túnel de mangues e olhou para fora. O rio serpeava perigosamente, afastando-se deles, em direção ao centro da ilha. As suas barrancas, bordadas de bambus de pequeno porte e de vegetação rala, dar-lhes-íam cobertura reduzida. Partindo de sua margem ocidental, o terreno elevava-se aos poucos, e logo abruptamente até o monte, situado a três quilômetros de distância, que era a guaneira. Na base daquela montanha, viam-se várias cabanas esparsas. Um ziguezague prateado galgava o flanco da colina, até as tendas — trilhos “Decauville”, pensou Bond, destinados a levarem o guano para o moinho e separa-dor. O cume do monte era branco, como se estivesse coberto de neve. De sua parte mais elevada desprendia-se como que uma bandeira de dó de guano. Bond podia ver os pontos negros que eram os corvos marinhos, sobre o fundo branco. Aquelas aves estavam levantando vôo e pousando como abelhas numa colmeia.

Bond deixou-se ficar de pé e contemplou o brilho distante daquela montanha de excrementos de aves. Então aquilo era o reino do Dr. No! Bond pensou que jamais vira um cenário tão escondido e distante, em toda a sua vida.

Examinou o terreno entre o rio e a montanha. Parecia ser principalmente formado com aquela matéria cinzenta de corais mortos. Não havia dúvida de que uma estrada ou trilha corria da falda da montanha até ao lago central e aos pântanos. Bond notou ainda que toda a vegetação se curvava para oeste, e imaginou viver durante todo um ano com aquele vento escaldante castigando a ilha, sem falar do cheiro do guano e do gás dos pântanos. Nenhuma colônia penal poderia encontrar pior localização do que aquela.

Bond olhou para leste, onde os mangues, na área dos charcos, pareciam oferecer mais hospitalidade. Os três puseram-se a caminhar sobre um sólido tapete verde de vegetação. Sobre suas cabeças, aves revoluteavam agitadas, para depois se, acalmarem, e logo tornarem a agitar-se. Seus pios eram carregados pelo vento crestante.

A voz de Quarrel interrompeu os pensamentos de Bond:

— Eles vêm vindo, capitão!

Bond seguiu o olhar de Quarrel. Um grande caminhão descia celeremente das tendas, com uma nuvem de pó levantando-se das rodas. Bond acompanhou-o durante dez minutos, até que o veículo desapareceu entre os mangues, na margem do rio. Bond pôs-se a escutar e ouviu latidos de cães, que eram trazidos pelo vento.

Quarrel comentou:

— Eles vão descer pelo rio, capitão. Sabem que não nos podemos mover, a não ser rio acima, se não estivermos mortos. Certamente que descerão pelo rio, até a praia, e farão um reconhecimento dos destroços. Depois, com toda a certeza, a lancha virá com um pequeno bote e recolherá os homens e os cães. Pelo menos, isso é o que eu faria no lugar deles.

Honey disse: — Isso é, de fato, o que eles fazem quando me procuram. É isso mesmo. Basta que cortemos um pedaço de bambu, e, quando eles estiverem perto, mergulhemos na água, procurando respirar através do bambu, até que eles se afastem.

Bond sorriu para Quarrel, e disse: — Suponhamos que você corte os bambus, enquanto eu procuro um bom esconderijo entre os mangues.

Quarrel aquiesceu hesitante e começou a subir contra a corrente, em direção ao bambuzal, enquanto Bond se encaminhava para o túnel formado pelos mangues.

Bond evitara olhar para a jovem, mas esta disse-lhe com impaciência:

— Não precisa ter tanto cuidado em não olhar para mim. Não adianta se preocupar com tais coisas, numa hora dessas. Você mesmo o disse, ainda há pouco.

Bond virou-se e olhou para a jovem. Sua camisa esfrangalhada descia até a linha d’água. Podia-se ainda ter um vislumbre de pálidas coxas, serpeando sob a superfície. O lindo rosto sorriu para ele. No meio daqueles mangues, o seu nariz quebrado parecia harmonizar-se com o ambiente, pela sua animalidade.

Bond fitou-a descansadamente e ela compreendeu. Depois, ele deu-lhe as costas e desceu pela correnteza, seguido por ela. Logo encontrou o que procurava, isto é, uma fenda naquela parede formada pelas raízes dos mangues. Bond recomendou: — Não quebre nenhum galho. — Depois, baixou a cabeça e meteu-se por aquela brecha. O canal avançava numa distância de dez metros. A lama sob seus pés tornou-se mais mole e espessa. Chegou a uma sólida e intransponível parede de raízes. Aquela água escura fluía vagarosamente através de uma ampla e tranqüila lagoa. Bond deteve-se. A jovem se aproximou dele.

— Isto é mesmo uma brincadeira de esconde-esconde — disse ela, trêmula.

— É verdade — aquiesceu Bond distraidamente, enquanto pensava em seu revólver. Com efeito, ele preocupava-se em saber com que eficiência a arma operaria depois de um banho no rio — quantos cães e homens ele poderia eliminar, se fossem descobertos. Sentiu um estremecimento de inquietação. Tinha sido uma falta de sorte ter encontrado aquela jovem. Em combate, queira-se ou não, uma mulher representa sempre um coração a mais. O inimigo tem dois alvos enquanto apenas oferece um.

Bond lembrou-se de sua sede. Apanhou na concha da mão um pouco de água e bebeu-a. Aquela água era salobra e tinha gosto de terra. Mas servia. Bond bebeu um pouco mais. A jovem agitou a mão e deteve-o, dizendo:

— Não beba demais. Lave a boca e cuspa. Você pode apanhar febre.

Quarrel assobiou de algum ponto situado na corrente principal. Bond respondeu e foi em direção ao amigo. Depois, voltaram juntos, internando-se no canal. Quarrel borrifou as raízes de mangues com água, nos pontos em que os seus corpos talvez as tivessem raspado. “Para tirar o nosso cheiro”, explicou, laconicamente. Em seguida mostrou o seu feixe de bambus e começou a cortá-los e prepará-los. Enquanto isso, Bond se ocupava com seu revólver e a munição. Os três ficaram imóveis, no meio daquele pântano, de modo a não levantarem mais lama.

A luz do sol filtrava-se através do espesso teto de folhas, os camarões agitavam-se sob os pés daqueles três fugitivos. Gradativamente foi-se avolumando uma insuportável tensão, naquele silêncio escaldante e angustioso.

Foi quase um alívio ouvir-se o ladrar dos cães.


X - O RASTRO DO DRAGÃO


O grupo de investigação descia rapidamente pelo rio. Os dois homens, de calções de banho e altas botas impermeáveis, tinham que correr para acompanhar os cães.

Eram grandes negros chineses, que traziam coldres sustentados ao ombro por meio de talabartes cruzados diante dos peitos suados. De quando em quando trocavam gritos que em geral não passavam de imprecações. À frente deles a matilha de cães Dobermann nadava e debatia-se n’água, latindo excitadamente. Tinham farejado uma pista e procuravam segui-la nervosamente, com as orelhas eretas sobre as cabeças afladas.

— Talvez um maldito crocodilo, — gritou o chefe elevando a voz sobre a algazarra. Empunhava um chicote que de vez em quando fazia estalar no campo de caça.

Os outros homens se encaminhavam para ele. O chefe gritou excitadamente: “Aposto que é o gringo inglês! Tenho certeza de que ele está entre os mangues. Cuidado para que o gringo não nos faça cair numa emboscada.” O homem tirou o revólver do coldre e colocou-o sob o sovaco, sem tirar a mão da coronha.

O grupo agora estava deixando a parte do rio, sob céu aberto, e entrando no túnel formado pelos mangues. O primeiro homem tinha um apito, que se projetava de seu largo rosto como um toco de charuto. Fez soar um agudo silvo. Quando os cães avançaram, ele se deixou ficar com o seu chicote junto do chefe. Os animais continuavam farejando, lamuriando-se porque a corrente os obrigava a desobedecer às ordens recebidas. Os dois homens sacaram os revólveres e vadearam lentamente o rio, na mesma direção da corrente, por entre os caules tortuosos dos mangues.

O homem que ia na frente chegou ao estreito canal que Bond tinha encontrado, agarrou um dos cães pela co-leira e lançou-o ao canal. O animal resfolegou ansiosamente e debateu-se para a frente. Os olhos do homem percorreram as raízes dos mangues, de ambos os lados do canal, para ver se apresentavam algum arranhão.

O cão e o homem chegaram ao pequeno lago situado na extremidade do canal. O homem olhou à sua volta, com ar animado. Tornou a agarrar o cão pela coleira e puxou-o para trás. O animal relutava em abandonar o lugar. Então, o homem feriu a água com o chicote.

O segundo homem estivera esperando à entrada do canal. O primeiro saiu daquele pequeno remanso e sacudiu a cabeça, descendo a corrente, com os cães, que agora se mostravam menos excitados, nadando à frente.

Lentamente, a algazarra da perseguição foi diminuindo e desapareceu.

Por mais cinco minutos nada se mexeu na laguna dos mangues; depois, num dos cantos, entre as raízes, apareceu lentamente para fora d’água um fino periscópio de bambu. O rosto de Bond emergiu logo em seguida, com os cabelos molhados colados à testa, como a cara de um cadáver que boiasse. Em sua mão direita, sob a água, o revólver estava pronto. Bond procurou escutar cuidadosamente. O silêncio era completo, não havia o mínimo ruído. Ou haveria? O que seria aquele suave barulho, como se algo deslizasse entre a água, na corrente principal? Viria alguém, muito serenamente, seguindo na esteira daquela caçada? Bond procurou apalpar à sua volta e tocou delicadamente nos dois corpos que estavam cada um em um de seus flancos, entre as raízes, na orla da laguna. Quando os dois rostos aforaram à superfície, ele colocou o seu dedo indicador sobre os lábios, mas já era tarde. Quarrel tinha tossido e cuspido. Bond fez uma careta e fez um sinal na direção da principal corrente. Todos procuravam escutar. O ruído recomeçou. Alguém estava-se dirigindo para o canal lateral. Os tubos de bambu voltaram para as três bocas e as cabeças tornaram a submergir. Debaixo da água Bond descansou a cabeça na lama, apertou as narinas e os lábios à volta do tubo. Sabia que a laguna já fora examinada uma vez, pois sentira a agitação causada na água pelo cão, que passara nadando! Da primeira vez não tinham sido achados, mas conseguiriam escapar desta? Agora haveria menos possibilidades de que a lama revolta se escoasse para fora da laguna. Se esse batedor visse a mancha mais escura, na água, atiraria ou usaria um punhal? Que armas traria? Bond resolveu não correr riscos. Ao primeiro rumor de movimento, ao seu lado, ele se poria de pé e daria logo ao gatilho, esperando pelo melhor.

Assim ficou ele, submerso, com todos os sentidos atentos. Como era desagradável aquele respirar controlado e insuportáveis as ligeiras mordidelas dos camarões! Por sorte nenhum deles tinha qualquer ferida no corpo, pois do contrário os malditos animalzinhos ter-se-iam atirado contra elas. De qualquer forma, aquela fora uma brilhante idéia da jovem. Sem ela os cães já os teriam alcançado, onde quer que eles se tivessem escondido.

Inesperadamente, Bond encolheu-se. Uma bota de borracha tinha pisado em seu queixo e escorregado. O homem pensaria tratar-se de um galho de árvore? Bond não podia correr aquele risco. Com um só impulso pôs-se de pé, atirando para longe o pedaço de bambu.

Bond teve uma rápida impressão de um gigantesco corpo de pé, quase em cima de si, e duma coronha de rife, em rápido movimento. Levantou o braço esquerdo para proteger a cabeça e recebeu um violento golpe no braço. Ao mesmo tempo, o seu braço direito se esticou para a frente, e, quando o cano tocou no lado direito do peito, sob o mamilo, ele acionou o gatilho.

O coice da arma, quase encostada ao corpo do homem, por pouco não quebrou o pulso de Bond, mas o homem desabou para trás como uma árvore decepada que cai n’água. Antes que o corpo afundasse, Bond ainda pôde perceber-lhe uma grande fenda no flanco. A cabeça, uma cabeça negróide de chinês, veio à superfície, com os olhos revirados para cima e a água a sair de sua boca escancarada e silenciosa. Em seguida a cabeça submergiu novamente e nada mais se pôde ver senão uma lama espumosa e uma mancha vermelha que gradualmente se ia ampliando e lentamente era atraída pela corrente.

Bond se endireitou e voltou-se para o lado. Quarrel e a jovem estavam atrás, em pé, com a água a escorrer-lhes dos corpos. Quarrel tinha um sorriso que ia de orelha a orelha, mas a garota mordia as articulações dos dedos, enquanto seus olhos se escancaravam horrorizados diante da água avermelhada.

Bond disse laconicamente: “Desculpe-me, Honey. Tinha que ser feito. Ele estava bem sobre nós. Venha, vamos indo.” Agarrou-a de qualquer maneira, pelo braço, e arrastou-a para fora da principal corrente, apenas detendo-se quando chegaram a rio aberto, na boca do túnel de mangues.

O cenário estava novamente vazio. Bond olhou para o relógio, e verificou que parara às três horas. Olhou para o sol, já bastante deslocado para o ocidente e concluiu que deveriam ser quatro horas. Quanto ainda teriam que caminhar? Bond inesperadamente sentiu-se cansado. Agora teria de enfrentar a situação. Ainda que o disparo não tivesse sido ouvido — e certamente que ele fora abafado pelo próprio corpo da vítima e pelas árvores — a falta do homem seria sentida quando os outros se reunissem, — se a suposição de Quarrel fosse correta, na embocadura do rio, de onde seriam recolhidos pela lancha. Voltariam eles, subindo o rio, a fim de procurarem o desaparecido? Talvez não. Já estaria muito escuro quando eles tivessem a certeza de que o homem estava realmente desaparecido. O mais certo seria mandarem um grupo de homens pela manhã. Os cães facilmente dariam com o corpo. E o que aconteceria?

A garota puxou-o pela manga e disse com irritação: — Já é tempo de você me dizer o que significa tudo isto! Por que estão todos procurando se matar mutuamente? E quem é você? Não acredito em toda essa história de aves. Ninguém carrega revólveres contra aves.

Bond baixou o olhar, fitando aqueles olhos bem separados e irados. — Desculpe-me, Honey. Receio tê-la arrastado para uma boa encrenca. Eu lhe contarei tudo quando voltarmos à noite para o acampamento. Foi apenas má sorte que você se envolvesse comigo, desta maneira. Tenho uma guerrinha com essa gente. Eles parecem querer matar-me. Agora estou apenas interessado em que todos nós saiamos desta ilha sem que ninguém fique ferido. Já tenho muito do que queria, para da próxima vez voltar pela porta da frente.

— O que você quer dizer? Você é alguma espécie de policial? Está querendo meter esse chinês na cadeia?

— Mais ou menos, — disse Bond, rindo para ela. — Pelo menos você está do lado dos anjos. Agora, diga-me uma coisa. Quanto falta ainda para chegar ao acampamento dos guardas?

— Oh, cerca de uma hora.

— É um lugar bom para nele esconder-se? Eles poderiam achar-nos com facilidade?

— Eles teriam que atravessar o lago ou subir o rio. Tudo estará muito bem se eles não puserem o dragão em nosso encalço. Ele pode muito bem atravessar a água, pois já o vi fazê-lo.

— Bem — disse Bond diplomaticamente — esperemos que ele esteja com a cauda machucada, ou tenha outra coisa qualquer.

A jovem vociferou: — Muito bem, sr. Sabe-Tudo. — E acrescentou irritada: — Espere e verá.

Quarrel deixou o túnel de mangues, agitando ruidosamente a água, tendo na mão o rife do chinês abatido, e dizendo à guisa de quem pede desculpas:

— Não há mal em termos outra arma, chefe. Parece que vamos precisar dela.

Bond apanhou aquela arma. Era uma carabina “Remington”, do exército norte-americano, calibre 300. Não havia dúvida de que aquela gente contava com equipamento apropriado. Bond devolveu a arma a Quarrel, depois de examiná-la.

Quarrel como que fez eco aos seus pensamentos: — Isso é gente astuta, capitão. Aquele homem veio esquadrinhando suavemente, atrás dos outros, a fim de nos surpreender quando deixássemos o esconderijo, depois da passagem dos cães. Esse tal de doutor com certeza é um sujeito muito esperto.

Bond disse pensativamente: — É, ele deve ser um homem incomum. — Depois espantou os pensamentos: — Agora, vamos tocando para a frente. Honey diz que ainda precisamos de uma hora para chegarmos ao acampamento. É melhor irmos pela margem esquerda, de modo a ficarmos ao abrigo da colina. Pelo que já pudemos ver, eles têm lunetas assestadas sobre o rio.

Bond entregou a sua arma a Quarrel, que a guardou na mochila molhada. Puseram-se novamente em marcha, com Quarrel à frente, e Bond e a jovem andando juntos, atrás.

Aproveitavam algumas sombras das árvores e bambus da margem ocidental, mas deviam agora suportar toda a intensidade de um vento crestante. Borrifaram braços e corpos com água, a fim de refrescar as queimaduras. Os olhos de Bond estavam injetados por aquele insuportável revérbero e o seu braço doía intoleràvelmente no ponto em que fora atingido pela coronha. E ele não teria à sua espera o seu jantar de pão embebido, queijo e fiambre. Quanto tempo poderiam dormir? Não dormira muito na véspera, e parece que não iria ter melhor ração de sono. E a garota? Ela nada dormira. Ele e Quarrel teriam que se revezar, em quartos de vigilância. E logo chegaria o dia seguinte, quando procurariam ganhar novamente os mangues e vencer lentamente a distância que os separava de sua canoa, através da extremidade oriental da ilha. As coisas correriam daquela forma, segundo era de esperar. Então, tratariam de se fazerem ao mar na noite seguinte. Bond pensou em como haveria de abrir caminho por entre sólidos mangues, na distância de oito quilômetros. Que perspectiva! Continuou se arrastando para a frente, pensando nas “férias ao sol dos trópicos” de M. Muito gostaria que M tivesse que partilhar com ele aquelas “férias”.

O rio foi-se estreitando até que se reduziu a uma simples corrente entre as moitas de bambu. Depois se ampliava num estuário baixo e pantanoso, além do qual as cinco milhas quadradas de lago raso davam vazão para o outro lado da ilha, perdendo-se num agitado espelho líquido azul-cinza. Mais para além estava a brilhante pista aérea e o reflexo da luz solar sobre um único hangar. A jovem disse-lhe que se mantivesse na direção leste, e eles foram lentamente avançando, protegidos pela orla da mata.

Inesperadamente, Quarrel deteve-se, com o rosto esticado como o focinho de um cão para o terreno pantanoso à sua frente. Dois profundos sulcos tinham sido escavados na lama, com um sulco mais raso no centro. Eram a trilha de algo que tinha descido da colina e atravessado o pântano em direção ao lago.

A jovem disse com indiferença: — Por aqui já passou o dragão.

Quarrel arregalou os olhos para ela.

Bond caminhou lentamente pela trilha. As marcas exteriores eram bastante lisas, trazendo a marca de uma linha curva. Poderiam ter sido causadas por rodas, mas eram enormes, pelo menos com sessenta centímetros de largura. A trilha central tinha a mesma forma, mas com apenas três polegadas de largura, ou seja a largura de um pneumático de automóvel. As trilhas não apresentavam nenhum indício de pegadas e eram completamente frescas. Estendiam-se em linha reta, e os arbustos por elas atravessados tinham sido derrubados e esmagados no chão, como se um tanque de guerra tivesse passado por ali. Bond não podia imaginar que espécie de veículo seria aquele. A jovem tocou-o com o cotovelo e murmurou: — Eu lhe tinha dito. Ele apenas pôde responder pensativamente: — Bom, Honey, se não é o dragão, é algo que nunca vi antes.

Mais adiante, ela puxou-o ansiosamente pela manga. “Veja”, sussurrou, e apontou para a frente, indicando um grande cerrado de árvores, ao lado do qual passavam as trilhas. O cerrado estava sem folhas, enegrecido. Ao centro viam-se os restos dos ninhos de pássaros carbonizados. — Ele respirou sobre as árvores, — disse a garota nervosamente.

Bond aproximou-se das árvores e examinou-as. — Certamente que o fez — admitiu. Por que aquele cerrado, em especial, tinha sido queimado? Era muito estranho aquilo.

As trilhas desciam em direção ao lago e desapareciam na água. Bond teria gostado de segui-las, mas não poderia abandonar a cobertura das árvores. Assim, continuaram a marcha, cada um entregue aos próprios pensamentos.

Lentamente o dia começou a morrer, por trás da colina, e por fim a garota apontou para a frente, através dos arbustos; Bond pôde ver uma comprida restinga internando-se no lago. Estava coberta por densas moitas de arbustos e podiam-se ver, a cem metros da praia, os restos de uma cabana incendiada. Aquele parecia um lugar razoavelmente atraente para se passar a noite, e era bem protegido dos dois lados, pela água.

O vento tinha declinado e a água se apresentava suave e convidativa. Que prazer não seria tirarem as suas imundas camisas para um banho no lago e, depois de horas de patinhação através da lama e do lodo do pântano, poderem descansar naquela areia dura e seca!

O sol brilhou com reflexos amarelecidos e desapareceu por trás da montanha. Ainda era dia na extremidade oriental da ilha, mas a sombra negra do monte avançava vagarosamente sobre o lago e acabaria por expulsar completamente os últimos vestígios do sol. Os sapos começaram a coaxar mais barulhentamente que em Jamaica, até que a noite ficou cheia daquele áspero ruído. Do outro lado do lago um grande sapo macho começou a soar o seu tambor. Aquele estranho som era algo entre um tom-tom e um rosnado de macaco. Enviava mensagens que subitamente se interrompiam e logo silenciaram. Com certeza encontrara o que procurava.

Chegaram à garganta da restinga e seguiram por um estreito caminho, até a clareira que encerrava os escombros da cabana de sapé. As grandes e misteriosas trilhas saíam da água, de ambos os lados, atravessavam a clareira e os cerrados próximos. Muitos dos arbustos estavam queimados ou crestados. Podiam-se ver os restos de um fogão feito de pedaços de coral, e algumas panelas e latas vazias. Examinaram os destroços, e Quarrel desenterrou um par de latas intactas de costeletas de porco e ervilhas marca “Heinz”. A jovem encontrou ainda um saco de dormir muito amarrotado, enquanto Bond achou uma pequena bolsa de couro com cinco notas de um dólar, três libras de Jamaica e algumas moedas de prata. Os dois homens certamente tinham abandonado aquele lugar a toda pressa.

Prosseguiram mais para diante, até uma pequena clareira arenosa. Através dos arbustos podiam ver luzes cintilando sobre a água e provenientes da montanha, talvez a mais de três quilômetros de distância. A leste nada mais havia senão. os suaves reflexos escuros da água sob o céu sombrio.

Bond comentou: — Enquanto não acendermos nada, estaremos bem aqui. A primeira coisa a fazer é tomarmos um bom banho, Honey. Você pode ficar com o resto da restinga, que nós ficaremos com a sua garganta. Dentro de meia hora espero vê-la para o jantar.

A garota riu: — Você virá a rigor?

— Sem dúvida — respondeu Bond — e de calças.

Quarrel observou: — Capitão, enquanto ainda há um pouco de luz, vou abrir essas latas e preparar as coisas para a noite. — Remexeu dentro da mochila. — Aqui estão as suas calças e o seu revólver. O pão talvez não esteja muito bom, mas está apenas molhado. Pode-se comê-lo bem, e amanhã estará seco. O melhor talvez fosse comermos das latas esta noite, guardando o queijo e as costeletas. As latas são pesadas e amanhã teremos que andar muito.

Bond respondeu: — Muito bem, Quarrel. Deixarei o cardápio aos seus cuidados.

Em seguida, apanhou o revólver e as calças úmidas e desceu para a água rasa. A água estava acariciante, mas desagradavelmente quente. Bond escavou punhados de areia, com as mãos, e esfregou o corpo com ela, utilizando-a como sabonete. Depois deixou-se ficar gostosamente em meio àquele silêncio e àquela solidão.

As estrelas começaram a brilhar palidamente, as estrelas que os tinham trazido à ilha na noite passada; as estrelas que os tirariam dali no dia seguinte. Que viagem! Mas pelo menos já tinha dado os seus resultados. Agora tinha provas bastantes, e testemunhas, para ir ter com o governador e conseguir dele um inquérito completo acerca das atividades do Dr. No. Ninguém lança mão de metralhadoras contra pessoas, mesmo contra intrusos. E, da mesma forma, o que seria aquilo do Dr. No, que invadira a propriedade da Sociedade Audubon, aquilo que chegara a destruir essa propriedade e provavelmente matara um de seus empregados? Isto também teria que ser investigado. E o que haveria ele de encontrar quando voltasse pela porta da frente, talvez a bordo de um destróier, e com um destacamento de fuzileiros navais? Qual seria a resposta para o mistério do Dr. No? O que estaria ele escondendo? Por que aquele segredo era tão importante, que seria capaz de matar repetidas vezes, para preservá-lo? E quem era esse Dr. No?

Bond ouviu o barulho de alguém espojando-se na água. Pensou na garota. E quem, afinal, era Honeychile Ri-der? Aquilo pelo menos, pensou ele ao sair da água, era algo que deveria esclarecer antes do amanhecer.

Bond enfiou as suas pegajosas calças, sentou-se na areia e desmontou o revólver. Fê-lo pelo tato, utilizando-se de sua camisa para secar cada peça e cada cartucho. Depois, tornou a montar a arma e pressionou o gatilho, fazendo com que o tambor vazio desse uma volta completa. O som era satisfatório. Seriam precisos alguns dias para que o revólver começasse a enferrujar. Carregou-o e meteu-o no coldre, para dentro do cós da calça. Depois, levantou-se e voltou para a clareira.

A sombra de Honey chegou até ele, e a sua voz se fez ouvir: — Venha; estamos morrendo de fome. Apanhei uma das panelas, limpei-a e pusemos as ervilhas nela. Temos pão também. E eu não sinto escrúpulos de comer a sua ração, porque você me fez trabalhar muito mais do que se eu estivesse sozinha. Agora, estique a mão.

Bond achou graça no tom autoritário que havia em sua voz. Ele apenas podia perceber a sua silhueta, no escuro. Sua cabeça parecia mais aflada. Ele se perguntou como seriam os seus cabelos quando secos e penteados. Como seria ela quando estivesse vestindo roupas limpas naquele lindo corpo dourado? Podia vê-la entrando numa sala ou atravessando um vestíbulo em Beau Desert. Ela seria uma linda e encantadora Patinha Feia. Por que nunca procurara endireitar o nariz? Seria uma operação fácil. Depois disso, ela seria a jovem mais bela de Jamaica.

O seu ombro tocou nele. Bond esticou o braço e descansou a mão aberta no colo da jovem. Então Bond sentiu que ela estava enchendo a sua mão com ervilhas.

Subitamente, Bond aspirou o seu cheiro cálido de animal. Foi uma explosão sensual tão aguda que o seu corpo se uniu ao dela, e, por um momento, os seus olhos se fecharam.

Ela deixou escapar um riso curto, no qual havia timidez, satisfação e ternura. E disse, maternalmente: “Lá”, — e empurrou a mão de Bond.

 

CONTINUA

IX - POR UM TRIZ


Dez minutos mais tarde a baía estava vazia e imaculada. Pequenas ondas encrespavam-se preguiçosamente através do espelho das águas, no interior dos recifes e morriam exaustas na areia escura onde as conchas lilás brilhavam como unhas pintadas. O monte de conchas tinha desaparecido e não havia mais vestígios de pegadas. Quarrel cortara galhos de mangues e caminhava de costas procurando apagar as pegadas com aqueles galhos. Onde tinha varrido, a areia apresentava uma limpidez diferente mas não tão diferente a ponto de ser notada de fora do recife. A canoa da jovem tinha sido arrastada para dentro do mar, entre as rochas, e ali ficou coberta com algas e gravetos.

Quarrel tinha voltado ao promontório. Bond e a jovem estavam juntos, sob tufos de folhas, onde Bond dormira, e olhavam silenciosamente para o contorno do promontório, à volta do qual surgira a embarcação.

A lancha estava talvez a uns quinhentos metros de distância. A julgar pelo lento ritmo do motor, Bond concluiu que cada acidente da costa estava sendo cuidadosamente inspecionado para descobrir indícios da presença de estranhos. De qualquer forma, aquilo parecia uma possante embarcação. Talvez uma grande lancha de cabina. Que tripulação teria? Quem estaria no comando? O Dr. No? Improvável. Ele certamente não se daria àquele trabalho de polícia.

Do lado do ocidente apareceu um bando de corvos marinhos, voando baixo sobre o mar, além dos recifes. Bond observou-os. Eram o primeiro indício para ele encontrado daquela colônia de aves, na outra extremidade da ilha. Aquele bando, segundo Pleydell-Smith, seriam batedores à procura do brilho prateado das enchovas, próximas à superfície. Enquanto observava, as aves começaram a dar mergulhos rasos, ferindo o mar superficialmente e levantando respingos de água. Quase que de uma só vez, apareceu outra coluna de aves, vinda do ocidente, e logo outra, e mais outra, fundindo-se todas numa espessa e escura nuvem. Durante minutos, elas sombrearam o céu, e depois atiraram-se à água, cobrindo vários alqueires, piando e lutando, e mergulhando as cabeças no mar, fazendo uma rica colheita naquele sólido campo de anchovas, como piranhas que se banqueteassem num cavalo afogado.

Bond sentiu um suave toque da jovem, que fez um movimento com a cabeça, dizendo:

— As galinhas do chinês estão comendo milho.

Bond observou-lhe o rosto belo e feliz. Ela parecia bastante despreocupada com a chegada daqueles homens. Para ela aquilo era apenas o jogo de esconde-esconde que já tinha praticado antes.

A vibração metálica dos motores diesel estava-se tornando mais forte. A lancha deveria estar justamente por trás do promontório. Bond deu mais uma olhada à volta da tranqüila baía, e depois fixou os olhos através da folhagem e do mato, para os lados dos recifes.

A ponta de uma proa branca apareceu, seguida de uns dez metros de tombadilho, e logo o parabrisas de vidro, uma cabina baixa e uma antena de rádio, e o vulto de um homem à volta do leme. Finalmente, o comprido e achatado fosso da popa, e uma flâmula vermelha pendente, Seria uma lancha-torpedeira convertida, um excedente de guerra do governo britânico?

Os olhos de Bond fixaram-se nos dois homens que estavam em pé na popa. Eram negros de pele pálida, envergando roupas caqui de marinheiro, com largos cinturões e chapéus de palha com longas palas. Estavam um ao lado do outro, equilibrando-se sob a lenta elevação da massa líquida. Um deles segurava um alto-falante e o outro manejava uma metralhadora instalada num tripé. Bond teve a impressão de que era uma metralhadora “Spandau”.

O homem com o alto-falante deixou que este caísse, e ele ficou oscilando numa tira, que lhe dava volta ao pescoço. Apanhou um binóculo e começou a vasculhar metro a metro da praia. Indistintos comentários chegavam aos ouvidos de Bond, por entre o ruído dos motores.

Bond percebeu que os olhos do binóculo começavam pelo promontório e depois percorriam a areia. As lentes detiveram-se entre as rochas e continuaram o seu passeio. Depois, voltaram. O murmúrio do comentário elevou-se ganhando animação. O homem passou o binóculo para o metralhador, que observou rapidamente, devolvendo-o logo ao dono. O observador gritou alguma coisa para o timoneiro. A lancha começou a se aproximar da praia. Agora estavam justamente diante dos recifes, em frente a Bond e à jovem. O observador ergueu novamente o binóculo, apontando-o para as rochas onde se encontrava escondida a canoa da jovem. Novamente a fala excitada chegou aos ouvidos de Bond, por sobre as águas. Mais uma vez o binóculo foi passado ao metralhador, que levou algum tempo observando. Dessa vez, ele fez um sinal de assentimento com a cabeça.

Bond pensou: agora vamos ter coisa; esses homens conhecem o ofício. Em seguida, viu que o metralhador se ocupava em carregar a arma. O duplo estalido metálico chegou aos seus ouvidos, por entre o matraquear do motor.

O observador ergueu o alto-falante e ligou-o. O eco produzido pelo amplificador chegou até Bond, conduzido pela superfície da água. A voz do homem ribombou pela baía:

— Alô, pessoal! Saiam daí e não serão feridos. Era uma voz educada, com sotaque americano.

— Agora, pessoal — trovejou a voz — depressa! Nós vimos quando vocês desembarcaram. Já descobrimos o bote sob os paus. Não somos tolos e não estamos brincando. Saiam daí com os braços levantados e não lhes acontecerá nada!

Não se ouviu nenhuma resposta. Apenas as ondas quebravam docemente na praia. Bond podia ouvir a respiração da jovem. Os guinchos agudos dos corvos marinhos chegavam-lhes de uma milha de distância, sobre o mar. O cano de escapamento dos motores diesel produzia um ruído desigual e gorgulhante, quando o intumescimento do mar cobria o orifício de descarga.

Silenciosamente Bond tocou o braço da jovem e disse-lhe:

— Fique mais perto. Alvo menor.

Ele sentiu o calor da jovem mais próximo de seu corpo, e o rosto de Honey raspou pelo seu braço. Bond sussurrou:

— Enterre-se na areia. Encolha-se. Cada polegada a menos ajudará.

Ele começou a se encolher cuidadosamente na depressão que tinham escavado para se abrigarem, e sentiu que ela fazia o mesmo.

O homem estava erguendo o seu alto-falante. A voz ribombou novamente.

— Muito bem, pessoal! Vocês irão ver que isso aqui não é para brincadeira. — Depois, levantou o polegar. O metralhador experimentou a arma fazendo alguns disparos para a copa dos mangues situados por trás da praia. Bond ouviu o rápido matraquear, tão seu conhecido, e do qual se despedira pela última vez diante das linhas alemãs, nas Ardenas. As balas produziam o velho som de pombos assustados, assobiando sobre sua cabeça. Depois fez-se silêncio.

À distância, Bond via a nuvem negra de corvos marinhos elevar-se, começando a fazer os seus amplos círculos. Seus olhos voltaram para a embarcação. O metralhador estava apalpando o cano da metralhadora, para ver se já estava aquecido. Os dois homens trocaram algumas palavras. O observador apanhou novamente o porta-voz.

— Está bem, pessoal. Vocês foram avisados.

Bond viu o cano da “Spandau” levantar-se e abaixar-se. O homem estava querendo começar com a canoa, entre as rochas. Bond sussurrou para a jovem: — Muito bem, Honey. Agüente firme. Mantenha-se abaixada. Não vai durar muito.

Ele sentiu que a mão da jovem apertava o seu braço, e pensou: “Coitada; ela está metida nisso por minha causa.” Ele inclinou-se para a direita a fim de cobrir a cabeça de Honey e afundou o rosto na areia.

Dessa vez o matraquear foi terrível. Balas ricocheteavam no flanco do promontório. Fragmentos de pedra saltavam para todos os lados, sobre a praia. Outras balas ricocheteavam e iam perder-se dentro da mata. Simultaneamente com todo aquele barulho ouvia-se o martelar contínuo da metralhadora.

Houve uma pausa. Nova carga, pensou Bond. Agora será para nós. Pôde sentir a jovem agarrando-se a ele. Seu corpo tremia todo, encostado ao seu flanco. Bond apanhou uma arma e apertou-a de encontro ao corpo. O matraquear da metralhadora recomeçou. As balas vinham zunindo, da linha de maré, em direção a eles. Ouviu-se uma sucessão de rápidas batidas. O tufo, acima deles, estava sendo reduzido a pedaços. “Zuip Zuip Zuip”. Era como se um chicote de aço estivesse retalhando os arbustos. Pedaços de lenha caíam sobre eles, cobrindo-os lentamente. Bond respirou um ar mais fresco, o que significava que eles agora estavam ao ar-livre. Estariam eles escondidos pelas folhas o pelos destroços? As balas continuaram deslocando-se ao longo da linha da costa. Em menos de um minuto a metralhadora parou.

O silêncio tornou a reinar. A jovem lamuriou-se docemente. Bond fê-la calar-se e apertou-a mais forte.

O alto-falante apregoou:

— Está bem, pessoal. Se vocês ainda têm ouvidos, saibam que voltaremos logo para recolher-lhes os pedaços. Vamos trazer os cães. Até à vista, por enquanto.

O ritmo do motor se acelerou, e através das folhas Bond pôde ver a popa da lancha afundar-se mais na água, enquanto a embarcação rumava rapidamente para oeste. Dentro de minutos já não se ouvia mais nada.

Bond ergueu a cabeça cautelosamente. A baía estava serena, e tudo como antes, exceto o cheiro de cordite e as rochas quebradas.

Bond fez a jovem levantar-se. Havia marcas de lágrimas em seu rosto. Ela olhou-o aterrada, e disse:

— Isso foi terrível. Por que eles o fizeram? Podíamos ter sido mortos.

Bond pensou naquela jovem que sempre abrira caminho, na vida, por si mesma, mas apenas contra a natureza. Conhecia o mundo dos animais, dos insetos e dos peixes, e tirava todo o partido desse conhecimento. Mas aquele era um pequeno mundo, limitado pelo sol, pela lua e pelas estações. Ela não conhecia o grande mundo das salas cheias de fumo, dos corredores de negócios, dos corredores e antecâmaras governamentais, dos cautelosos encontros em bancos de praças — numa palavra: ela nada conhecia da luta pelo poder e pelo dinheiro, travada por homens poderosos.

Bond disse:

— É isso mesmo, Honey, eles não passam de uma quadrilha de bandidos assustados conosco. Podemos enfrentá-los.

Bond colocou o braço à volta de seus ombros e continuou:

— E você esteve maravilhosa, brava como ninguém. Agora, vamos ao encontro de Quarrel para traçar os nossos planos. De qualquer forma, já é tempo de comermos alguma coisa. O que é que você costuma comer nessas expedições?

Deram meia-volta e seguiram pela praia em direção ao promontório. Depois de um minuto, ela disse com voz bem controlada:

— Oh, há uma porção de coisas por aí que se podem comer. Ouriços do mar principalmente, mas também bananas silvestres e outras coisas. Eu como e durmo durante dois dias, antes de vir aqui. Não preciso de nada.

Bond apertou-a mais fortemente, mas deixou cair o braço, assim que Quarrel apareceu ao longe. Quarrel vinha saltando sobre as rochas, e, em determinado momento, parou, olhando para baixo. Bond e Honey se aproximaram dele. A canoa da jovem estava cortada ao meio pelas balas. Honey deixou escapar um grito, olhando desesperadamente para Bond:

— A minha canoa! Como poderei voltar?

— Não se preocupe, senhorita, — disse Quarrel, que sentia a perda de uma canoa mais do que Bond. Imaginou ainda que aquela embarcação representasse quase todo o capital da jovem. — O capitão lhe dará outra. E a senhorita voltará conosco. Temos um magnífico bote, entre os mangues, e ele não foi destruído. Já estive lá espiando.

Quarrel olhou para Bond. Agora, o seu rosto denotava preocupação.

— Mas, capitão, o senhor está vendo o que eu disse dessa gente. Eles são duros e não estão brincando. Esses cães que eles vão trazer são policiais — Pinschers, como eles os chamam. Bastardos. Meus amigos disseram-me que são uma matilha de vinte ou mais. É melhor resolvermos logo.

— Está bem, Quarrel. Mas antes de mais nada precisamos comer alguma coisa. — o diabo que me carregue se eu vou ser aterrorizado e expulso da ilha antes de dar uma olhada nisso. Levaremos Honey conosco. — E, voltando-se para a jovem:

— Está bem, Honey? Nada lhe acontecerá. Depois voltaremos juntos.

A jovem olhou-o em dúvida:

— Acho que não há alternativa. Quero dizer. Gostaria de ir com vocês, se não atrapalhasse. Francamente, não quero comer nada. Mas você me levará de volta, assim que puder? Não quero ver mais aquela gente. Durante quanto tempo vocês vão ficar olhando para essas aves?

Bond respondeu evasivamente:

— Pouco tempo. Eu terei apenas que ver o que lhes aconteceu e porquê. Depois, partiremos.

Olhou para o relógio e anunciou:

— Agora são doze horas. Você nos esperará aqui. Tome um banho ou faça o que quiser. Não ande por aí deixando pegadas. Vamos, Quarrel, é melhor escondermos aquele bote.

Só à uma hora eles estavam prontos. Bond e Quarrel encheram a canoa com pedras e areia, até que ela desapareceu sob a água, entre os mangues. Depois, apagaram as suas pegadas. As balas tinham deixado tantos gravetos na orla da praia, que eles podiam caminhar pisando em folhas e ramos quebrados. Comeram parte de suas rações — os homens com avidez, mas Honey com relutância — e depois, passando sobre as rochas, foram ter à lagoa, próxima da costa. Em seguida foram vadeando aquelas águas, em direção à foz do rio, trezentos metros praia abaixo.

Fazia muito calor. Um vento áspero e quente começou a soprar do nordeste. Quarrel informou que aquele vento soprava diariamente, durante todo o ano, e era vital para a guaneira, pois secava o guano. O revérbero do mar e das brilhantes folhas verdes dos mangues cegava-os. Bond deu-se por feliz, já que tivera o cuidado de acostumar sua pele ao sol.

Na foz do rio encontraram um banco de areia e um extenso pântano, profundo e de águas estagnadas. Os dois homens podiam molhar-se ou tirar as roupas. Bond disse à jovem:

— Honey, não podemos ter cerimônia, nesta situação. Vamos ficar apenas com as camisas por causa do sol. Fique apenas com o que for sensato e caminhe atrás de nós.

Sem esperar pela resposta da jovem, os dois homens tiraram as calças. Quarrel enrolou-as e guardou-as na sacola, juntamente com as provisões e o revólver de Bond. Depois começaram a vadear a lagoa, com Quarrel na frente, logo seguido de Bond, e, finalmente a jovem. A água chegou até a cintura de Bond. Um grande peixe prateado deu um salto perto deles e depois caiu ruidosamente na água. Viram-se pequeninas setas riscarem a superfície, quando peixes menores se afastaram precipitadamente.

A lagoa convergia para uma estreita garganta, por sobre a qual as copas dos mangues se tocavam. Durante algum tempo eles vadearam através de um túnel fresco, e depois o rio se alargou num canal profundo, de águas morosas, que serpeava para a frente, entre as gigantescas raízes de sustentação dos mangues. O fundo era lamacento, e a cada passo os pés se enterravam algumas polegadas no lodo. Pequenos peixes ou camarões se encolhiam ou fugiam de baixo de seus pés, e de quando em quando eles tinham que parar para se desembaraçar das sanguessugas, antes que elas se agarrassem firmemente. A não ser isso, aquela caminhada era fácil, sob o frescor das arvores, e, pelo menos para Bond, era uma bênção estar ao abrigo do sol.

Em breve, à medida que se iam afastando do mar, começaram a sentir um cheiro de ovo podre, o cheiro de hidrogênio sulfurado do gás dos pântanos. Os mosquitos começaram a assaltá-los e pareciam gostar do corpo de Bond. Quarrel disse-lhe que mergulhasse na água do rio, pois os mosquitos gostavam de carne salgada. Bond tirou a camisa e fez o que Quarrel lhe aconselhara. Depois disso sentiu-se melhor e o seu olfato chegou mesmo a se acostumar com aquele repugnante cheiro, a não ser quando os pés de Quarrel desfaziam algum bolsão de gás, no fundo da lama, e uma gigantesca bolha atravessava a água para arrebentar na superfície sob as suas narinas.

Os mangues começaram a se tornar mais escassos e mais esparsos, enquanto o rio se ia alargando aos poucos. Ao mesmo tempo, a água tornava-se mais rasa e o fundo mais firme. Logo chegaram a uma volta e saíram para céu aberto, Honey disse:

— É melhor tomarmos cuidado, agora. Eles poderão ver-nos com muita facilidade. Isso vai assim durante uma milha. Depois o rio torna a se estreitar até o lago. E depois se poderá ver a restinga onde os tratadores das aves viviam.

O grupo deteve-se à sombra do túnel de mangues e olhou para fora. O rio serpeava perigosamente, afastando-se deles, em direção ao centro da ilha. As suas barrancas, bordadas de bambus de pequeno porte e de vegetação rala, dar-lhes-íam cobertura reduzida. Partindo de sua margem ocidental, o terreno elevava-se aos poucos, e logo abruptamente até o monte, situado a três quilômetros de distância, que era a guaneira. Na base daquela montanha, viam-se várias cabanas esparsas. Um ziguezague prateado galgava o flanco da colina, até as tendas — trilhos “Decauville”, pensou Bond, destinados a levarem o guano para o moinho e separa-dor. O cume do monte era branco, como se estivesse coberto de neve. De sua parte mais elevada desprendia-se como que uma bandeira de dó de guano. Bond podia ver os pontos negros que eram os corvos marinhos, sobre o fundo branco. Aquelas aves estavam levantando vôo e pousando como abelhas numa colmeia.

Bond deixou-se ficar de pé e contemplou o brilho distante daquela montanha de excrementos de aves. Então aquilo era o reino do Dr. No! Bond pensou que jamais vira um cenário tão escondido e distante, em toda a sua vida.

Examinou o terreno entre o rio e a montanha. Parecia ser principalmente formado com aquela matéria cinzenta de corais mortos. Não havia dúvida de que uma estrada ou trilha corria da falda da montanha até ao lago central e aos pântanos. Bond notou ainda que toda a vegetação se curvava para oeste, e imaginou viver durante todo um ano com aquele vento escaldante castigando a ilha, sem falar do cheiro do guano e do gás dos pântanos. Nenhuma colônia penal poderia encontrar pior localização do que aquela.

Bond olhou para leste, onde os mangues, na área dos charcos, pareciam oferecer mais hospitalidade. Os três puseram-se a caminhar sobre um sólido tapete verde de vegetação. Sobre suas cabeças, aves revoluteavam agitadas, para depois se, acalmarem, e logo tornarem a agitar-se. Seus pios eram carregados pelo vento crestante.

A voz de Quarrel interrompeu os pensamentos de Bond:

— Eles vêm vindo, capitão!

Bond seguiu o olhar de Quarrel. Um grande caminhão descia celeremente das tendas, com uma nuvem de pó levantando-se das rodas. Bond acompanhou-o durante dez minutos, até que o veículo desapareceu entre os mangues, na margem do rio. Bond pôs-se a escutar e ouviu latidos de cães, que eram trazidos pelo vento.

Quarrel comentou:

— Eles vão descer pelo rio, capitão. Sabem que não nos podemos mover, a não ser rio acima, se não estivermos mortos. Certamente que descerão pelo rio, até a praia, e farão um reconhecimento dos destroços. Depois, com toda a certeza, a lancha virá com um pequeno bote e recolherá os homens e os cães. Pelo menos, isso é o que eu faria no lugar deles.

Honey disse: — Isso é, de fato, o que eles fazem quando me procuram. É isso mesmo. Basta que cortemos um pedaço de bambu, e, quando eles estiverem perto, mergulhemos na água, procurando respirar através do bambu, até que eles se afastem.

Bond sorriu para Quarrel, e disse: — Suponhamos que você corte os bambus, enquanto eu procuro um bom esconderijo entre os mangues.

Quarrel aquiesceu hesitante e começou a subir contra a corrente, em direção ao bambuzal, enquanto Bond se encaminhava para o túnel formado pelos mangues.

Bond evitara olhar para a jovem, mas esta disse-lhe com impaciência:

— Não precisa ter tanto cuidado em não olhar para mim. Não adianta se preocupar com tais coisas, numa hora dessas. Você mesmo o disse, ainda há pouco.

Bond virou-se e olhou para a jovem. Sua camisa esfrangalhada descia até a linha d’água. Podia-se ainda ter um vislumbre de pálidas coxas, serpeando sob a superfície. O lindo rosto sorriu para ele. No meio daqueles mangues, o seu nariz quebrado parecia harmonizar-se com o ambiente, pela sua animalidade.

Bond fitou-a descansadamente e ela compreendeu. Depois, ele deu-lhe as costas e desceu pela correnteza, seguido por ela. Logo encontrou o que procurava, isto é, uma fenda naquela parede formada pelas raízes dos mangues. Bond recomendou: — Não quebre nenhum galho. — Depois, baixou a cabeça e meteu-se por aquela brecha. O canal avançava numa distância de dez metros. A lama sob seus pés tornou-se mais mole e espessa. Chegou a uma sólida e intransponível parede de raízes. Aquela água escura fluía vagarosamente através de uma ampla e tranqüila lagoa. Bond deteve-se. A jovem se aproximou dele.

— Isto é mesmo uma brincadeira de esconde-esconde — disse ela, trêmula.

— É verdade — aquiesceu Bond distraidamente, enquanto pensava em seu revólver. Com efeito, ele preocupava-se em saber com que eficiência a arma operaria depois de um banho no rio — quantos cães e homens ele poderia eliminar, se fossem descobertos. Sentiu um estremecimento de inquietação. Tinha sido uma falta de sorte ter encontrado aquela jovem. Em combate, queira-se ou não, uma mulher representa sempre um coração a mais. O inimigo tem dois alvos enquanto apenas oferece um.

Bond lembrou-se de sua sede. Apanhou na concha da mão um pouco de água e bebeu-a. Aquela água era salobra e tinha gosto de terra. Mas servia. Bond bebeu um pouco mais. A jovem agitou a mão e deteve-o, dizendo:

— Não beba demais. Lave a boca e cuspa. Você pode apanhar febre.

Quarrel assobiou de algum ponto situado na corrente principal. Bond respondeu e foi em direção ao amigo. Depois, voltaram juntos, internando-se no canal. Quarrel borrifou as raízes de mangues com água, nos pontos em que os seus corpos talvez as tivessem raspado. “Para tirar o nosso cheiro”, explicou, laconicamente. Em seguida mostrou o seu feixe de bambus e começou a cortá-los e prepará-los. Enquanto isso, Bond se ocupava com seu revólver e a munição. Os três ficaram imóveis, no meio daquele pântano, de modo a não levantarem mais lama.

A luz do sol filtrava-se através do espesso teto de folhas, os camarões agitavam-se sob os pés daqueles três fugitivos. Gradativamente foi-se avolumando uma insuportável tensão, naquele silêncio escaldante e angustioso.

Foi quase um alívio ouvir-se o ladrar dos cães.


X - O RASTRO DO DRAGÃO


O grupo de investigação descia rapidamente pelo rio. Os dois homens, de calções de banho e altas botas impermeáveis, tinham que correr para acompanhar os cães.

Eram grandes negros chineses, que traziam coldres sustentados ao ombro por meio de talabartes cruzados diante dos peitos suados. De quando em quando trocavam gritos que em geral não passavam de imprecações. À frente deles a matilha de cães Dobermann nadava e debatia-se n’água, latindo excitadamente. Tinham farejado uma pista e procuravam segui-la nervosamente, com as orelhas eretas sobre as cabeças afladas.

— Talvez um maldito crocodilo, — gritou o chefe elevando a voz sobre a algazarra. Empunhava um chicote que de vez em quando fazia estalar no campo de caça.

Os outros homens se encaminhavam para ele. O chefe gritou excitadamente: “Aposto que é o gringo inglês! Tenho certeza de que ele está entre os mangues. Cuidado para que o gringo não nos faça cair numa emboscada.” O homem tirou o revólver do coldre e colocou-o sob o sovaco, sem tirar a mão da coronha.

O grupo agora estava deixando a parte do rio, sob céu aberto, e entrando no túnel formado pelos mangues. O primeiro homem tinha um apito, que se projetava de seu largo rosto como um toco de charuto. Fez soar um agudo silvo. Quando os cães avançaram, ele se deixou ficar com o seu chicote junto do chefe. Os animais continuavam farejando, lamuriando-se porque a corrente os obrigava a desobedecer às ordens recebidas. Os dois homens sacaram os revólveres e vadearam lentamente o rio, na mesma direção da corrente, por entre os caules tortuosos dos mangues.

O homem que ia na frente chegou ao estreito canal que Bond tinha encontrado, agarrou um dos cães pela co-leira e lançou-o ao canal. O animal resfolegou ansiosamente e debateu-se para a frente. Os olhos do homem percorreram as raízes dos mangues, de ambos os lados do canal, para ver se apresentavam algum arranhão.

O cão e o homem chegaram ao pequeno lago situado na extremidade do canal. O homem olhou à sua volta, com ar animado. Tornou a agarrar o cão pela coleira e puxou-o para trás. O animal relutava em abandonar o lugar. Então, o homem feriu a água com o chicote.

O segundo homem estivera esperando à entrada do canal. O primeiro saiu daquele pequeno remanso e sacudiu a cabeça, descendo a corrente, com os cães, que agora se mostravam menos excitados, nadando à frente.

Lentamente, a algazarra da perseguição foi diminuindo e desapareceu.

Por mais cinco minutos nada se mexeu na laguna dos mangues; depois, num dos cantos, entre as raízes, apareceu lentamente para fora d’água um fino periscópio de bambu. O rosto de Bond emergiu logo em seguida, com os cabelos molhados colados à testa, como a cara de um cadáver que boiasse. Em sua mão direita, sob a água, o revólver estava pronto. Bond procurou escutar cuidadosamente. O silêncio era completo, não havia o mínimo ruído. Ou haveria? O que seria aquele suave barulho, como se algo deslizasse entre a água, na corrente principal? Viria alguém, muito serenamente, seguindo na esteira daquela caçada? Bond procurou apalpar à sua volta e tocou delicadamente nos dois corpos que estavam cada um em um de seus flancos, entre as raízes, na orla da laguna. Quando os dois rostos aforaram à superfície, ele colocou o seu dedo indicador sobre os lábios, mas já era tarde. Quarrel tinha tossido e cuspido. Bond fez uma careta e fez um sinal na direção da principal corrente. Todos procuravam escutar. O ruído recomeçou. Alguém estava-se dirigindo para o canal lateral. Os tubos de bambu voltaram para as três bocas e as cabeças tornaram a submergir. Debaixo da água Bond descansou a cabeça na lama, apertou as narinas e os lábios à volta do tubo. Sabia que a laguna já fora examinada uma vez, pois sentira a agitação causada na água pelo cão, que passara nadando! Da primeira vez não tinham sido achados, mas conseguiriam escapar desta? Agora haveria menos possibilidades de que a lama revolta se escoasse para fora da laguna. Se esse batedor visse a mancha mais escura, na água, atiraria ou usaria um punhal? Que armas traria? Bond resolveu não correr riscos. Ao primeiro rumor de movimento, ao seu lado, ele se poria de pé e daria logo ao gatilho, esperando pelo melhor.

Assim ficou ele, submerso, com todos os sentidos atentos. Como era desagradável aquele respirar controlado e insuportáveis as ligeiras mordidelas dos camarões! Por sorte nenhum deles tinha qualquer ferida no corpo, pois do contrário os malditos animalzinhos ter-se-iam atirado contra elas. De qualquer forma, aquela fora uma brilhante idéia da jovem. Sem ela os cães já os teriam alcançado, onde quer que eles se tivessem escondido.

Inesperadamente, Bond encolheu-se. Uma bota de borracha tinha pisado em seu queixo e escorregado. O homem pensaria tratar-se de um galho de árvore? Bond não podia correr aquele risco. Com um só impulso pôs-se de pé, atirando para longe o pedaço de bambu.

Bond teve uma rápida impressão de um gigantesco corpo de pé, quase em cima de si, e duma coronha de rife, em rápido movimento. Levantou o braço esquerdo para proteger a cabeça e recebeu um violento golpe no braço. Ao mesmo tempo, o seu braço direito se esticou para a frente, e, quando o cano tocou no lado direito do peito, sob o mamilo, ele acionou o gatilho.

O coice da arma, quase encostada ao corpo do homem, por pouco não quebrou o pulso de Bond, mas o homem desabou para trás como uma árvore decepada que cai n’água. Antes que o corpo afundasse, Bond ainda pôde perceber-lhe uma grande fenda no flanco. A cabeça, uma cabeça negróide de chinês, veio à superfície, com os olhos revirados para cima e a água a sair de sua boca escancarada e silenciosa. Em seguida a cabeça submergiu novamente e nada mais se pôde ver senão uma lama espumosa e uma mancha vermelha que gradualmente se ia ampliando e lentamente era atraída pela corrente.

Bond se endireitou e voltou-se para o lado. Quarrel e a jovem estavam atrás, em pé, com a água a escorrer-lhes dos corpos. Quarrel tinha um sorriso que ia de orelha a orelha, mas a garota mordia as articulações dos dedos, enquanto seus olhos se escancaravam horrorizados diante da água avermelhada.

Bond disse laconicamente: “Desculpe-me, Honey. Tinha que ser feito. Ele estava bem sobre nós. Venha, vamos indo.” Agarrou-a de qualquer maneira, pelo braço, e arrastou-a para fora da principal corrente, apenas detendo-se quando chegaram a rio aberto, na boca do túnel de mangues.

O cenário estava novamente vazio. Bond olhou para o relógio, e verificou que parara às três horas. Olhou para o sol, já bastante deslocado para o ocidente e concluiu que deveriam ser quatro horas. Quanto ainda teriam que caminhar? Bond inesperadamente sentiu-se cansado. Agora teria de enfrentar a situação. Ainda que o disparo não tivesse sido ouvido — e certamente que ele fora abafado pelo próprio corpo da vítima e pelas árvores — a falta do homem seria sentida quando os outros se reunissem, — se a suposição de Quarrel fosse correta, na embocadura do rio, de onde seriam recolhidos pela lancha. Voltariam eles, subindo o rio, a fim de procurarem o desaparecido? Talvez não. Já estaria muito escuro quando eles tivessem a certeza de que o homem estava realmente desaparecido. O mais certo seria mandarem um grupo de homens pela manhã. Os cães facilmente dariam com o corpo. E o que aconteceria?

A garota puxou-o pela manga e disse com irritação: — Já é tempo de você me dizer o que significa tudo isto! Por que estão todos procurando se matar mutuamente? E quem é você? Não acredito em toda essa história de aves. Ninguém carrega revólveres contra aves.

Bond baixou o olhar, fitando aqueles olhos bem separados e irados. — Desculpe-me, Honey. Receio tê-la arrastado para uma boa encrenca. Eu lhe contarei tudo quando voltarmos à noite para o acampamento. Foi apenas má sorte que você se envolvesse comigo, desta maneira. Tenho uma guerrinha com essa gente. Eles parecem querer matar-me. Agora estou apenas interessado em que todos nós saiamos desta ilha sem que ninguém fique ferido. Já tenho muito do que queria, para da próxima vez voltar pela porta da frente.

— O que você quer dizer? Você é alguma espécie de policial? Está querendo meter esse chinês na cadeia?

— Mais ou menos, — disse Bond, rindo para ela. — Pelo menos você está do lado dos anjos. Agora, diga-me uma coisa. Quanto falta ainda para chegar ao acampamento dos guardas?

— Oh, cerca de uma hora.

— É um lugar bom para nele esconder-se? Eles poderiam achar-nos com facilidade?

— Eles teriam que atravessar o lago ou subir o rio. Tudo estará muito bem se eles não puserem o dragão em nosso encalço. Ele pode muito bem atravessar a água, pois já o vi fazê-lo.

— Bem — disse Bond diplomaticamente — esperemos que ele esteja com a cauda machucada, ou tenha outra coisa qualquer.

A jovem vociferou: — Muito bem, sr. Sabe-Tudo. — E acrescentou irritada: — Espere e verá.

Quarrel deixou o túnel de mangues, agitando ruidosamente a água, tendo na mão o rife do chinês abatido, e dizendo à guisa de quem pede desculpas:

— Não há mal em termos outra arma, chefe. Parece que vamos precisar dela.

Bond apanhou aquela arma. Era uma carabina “Remington”, do exército norte-americano, calibre 300. Não havia dúvida de que aquela gente contava com equipamento apropriado. Bond devolveu a arma a Quarrel, depois de examiná-la.

Quarrel como que fez eco aos seus pensamentos: — Isso é gente astuta, capitão. Aquele homem veio esquadrinhando suavemente, atrás dos outros, a fim de nos surpreender quando deixássemos o esconderijo, depois da passagem dos cães. Esse tal de doutor com certeza é um sujeito muito esperto.

Bond disse pensativamente: — É, ele deve ser um homem incomum. — Depois espantou os pensamentos: — Agora, vamos tocando para a frente. Honey diz que ainda precisamos de uma hora para chegarmos ao acampamento. É melhor irmos pela margem esquerda, de modo a ficarmos ao abrigo da colina. Pelo que já pudemos ver, eles têm lunetas assestadas sobre o rio.

Bond entregou a sua arma a Quarrel, que a guardou na mochila molhada. Puseram-se novamente em marcha, com Quarrel à frente, e Bond e a jovem andando juntos, atrás.

Aproveitavam algumas sombras das árvores e bambus da margem ocidental, mas deviam agora suportar toda a intensidade de um vento crestante. Borrifaram braços e corpos com água, a fim de refrescar as queimaduras. Os olhos de Bond estavam injetados por aquele insuportável revérbero e o seu braço doía intoleràvelmente no ponto em que fora atingido pela coronha. E ele não teria à sua espera o seu jantar de pão embebido, queijo e fiambre. Quanto tempo poderiam dormir? Não dormira muito na véspera, e parece que não iria ter melhor ração de sono. E a garota? Ela nada dormira. Ele e Quarrel teriam que se revezar, em quartos de vigilância. E logo chegaria o dia seguinte, quando procurariam ganhar novamente os mangues e vencer lentamente a distância que os separava de sua canoa, através da extremidade oriental da ilha. As coisas correriam daquela forma, segundo era de esperar. Então, tratariam de se fazerem ao mar na noite seguinte. Bond pensou em como haveria de abrir caminho por entre sólidos mangues, na distância de oito quilômetros. Que perspectiva! Continuou se arrastando para a frente, pensando nas “férias ao sol dos trópicos” de M. Muito gostaria que M tivesse que partilhar com ele aquelas “férias”.

O rio foi-se estreitando até que se reduziu a uma simples corrente entre as moitas de bambu. Depois se ampliava num estuário baixo e pantanoso, além do qual as cinco milhas quadradas de lago raso davam vazão para o outro lado da ilha, perdendo-se num agitado espelho líquido azul-cinza. Mais para além estava a brilhante pista aérea e o reflexo da luz solar sobre um único hangar. A jovem disse-lhe que se mantivesse na direção leste, e eles foram lentamente avançando, protegidos pela orla da mata.

Inesperadamente, Quarrel deteve-se, com o rosto esticado como o focinho de um cão para o terreno pantanoso à sua frente. Dois profundos sulcos tinham sido escavados na lama, com um sulco mais raso no centro. Eram a trilha de algo que tinha descido da colina e atravessado o pântano em direção ao lago.

A jovem disse com indiferença: — Por aqui já passou o dragão.

Quarrel arregalou os olhos para ela.

Bond caminhou lentamente pela trilha. As marcas exteriores eram bastante lisas, trazendo a marca de uma linha curva. Poderiam ter sido causadas por rodas, mas eram enormes, pelo menos com sessenta centímetros de largura. A trilha central tinha a mesma forma, mas com apenas três polegadas de largura, ou seja a largura de um pneumático de automóvel. As trilhas não apresentavam nenhum indício de pegadas e eram completamente frescas. Estendiam-se em linha reta, e os arbustos por elas atravessados tinham sido derrubados e esmagados no chão, como se um tanque de guerra tivesse passado por ali. Bond não podia imaginar que espécie de veículo seria aquele. A jovem tocou-o com o cotovelo e murmurou: — Eu lhe tinha dito. Ele apenas pôde responder pensativamente: — Bom, Honey, se não é o dragão, é algo que nunca vi antes.

Mais adiante, ela puxou-o ansiosamente pela manga. “Veja”, sussurrou, e apontou para a frente, indicando um grande cerrado de árvores, ao lado do qual passavam as trilhas. O cerrado estava sem folhas, enegrecido. Ao centro viam-se os restos dos ninhos de pássaros carbonizados. — Ele respirou sobre as árvores, — disse a garota nervosamente.

Bond aproximou-se das árvores e examinou-as. — Certamente que o fez — admitiu. Por que aquele cerrado, em especial, tinha sido queimado? Era muito estranho aquilo.

As trilhas desciam em direção ao lago e desapareciam na água. Bond teria gostado de segui-las, mas não poderia abandonar a cobertura das árvores. Assim, continuaram a marcha, cada um entregue aos próprios pensamentos.

Lentamente o dia começou a morrer, por trás da colina, e por fim a garota apontou para a frente, através dos arbustos; Bond pôde ver uma comprida restinga internando-se no lago. Estava coberta por densas moitas de arbustos e podiam-se ver, a cem metros da praia, os restos de uma cabana incendiada. Aquele parecia um lugar razoavelmente atraente para se passar a noite, e era bem protegido dos dois lados, pela água.

O vento tinha declinado e a água se apresentava suave e convidativa. Que prazer não seria tirarem as suas imundas camisas para um banho no lago e, depois de horas de patinhação através da lama e do lodo do pântano, poderem descansar naquela areia dura e seca!

O sol brilhou com reflexos amarelecidos e desapareceu por trás da montanha. Ainda era dia na extremidade oriental da ilha, mas a sombra negra do monte avançava vagarosamente sobre o lago e acabaria por expulsar completamente os últimos vestígios do sol. Os sapos começaram a coaxar mais barulhentamente que em Jamaica, até que a noite ficou cheia daquele áspero ruído. Do outro lado do lago um grande sapo macho começou a soar o seu tambor. Aquele estranho som era algo entre um tom-tom e um rosnado de macaco. Enviava mensagens que subitamente se interrompiam e logo silenciaram. Com certeza encontrara o que procurava.

Chegaram à garganta da restinga e seguiram por um estreito caminho, até a clareira que encerrava os escombros da cabana de sapé. As grandes e misteriosas trilhas saíam da água, de ambos os lados, atravessavam a clareira e os cerrados próximos. Muitos dos arbustos estavam queimados ou crestados. Podiam-se ver os restos de um fogão feito de pedaços de coral, e algumas panelas e latas vazias. Examinaram os destroços, e Quarrel desenterrou um par de latas intactas de costeletas de porco e ervilhas marca “Heinz”. A jovem encontrou ainda um saco de dormir muito amarrotado, enquanto Bond achou uma pequena bolsa de couro com cinco notas de um dólar, três libras de Jamaica e algumas moedas de prata. Os dois homens certamente tinham abandonado aquele lugar a toda pressa.

Prosseguiram mais para diante, até uma pequena clareira arenosa. Através dos arbustos podiam ver luzes cintilando sobre a água e provenientes da montanha, talvez a mais de três quilômetros de distância. A leste nada mais havia senão. os suaves reflexos escuros da água sob o céu sombrio.

Bond comentou: — Enquanto não acendermos nada, estaremos bem aqui. A primeira coisa a fazer é tomarmos um bom banho, Honey. Você pode ficar com o resto da restinga, que nós ficaremos com a sua garganta. Dentro de meia hora espero vê-la para o jantar.

A garota riu: — Você virá a rigor?

— Sem dúvida — respondeu Bond — e de calças.

Quarrel observou: — Capitão, enquanto ainda há um pouco de luz, vou abrir essas latas e preparar as coisas para a noite. — Remexeu dentro da mochila. — Aqui estão as suas calças e o seu revólver. O pão talvez não esteja muito bom, mas está apenas molhado. Pode-se comê-lo bem, e amanhã estará seco. O melhor talvez fosse comermos das latas esta noite, guardando o queijo e as costeletas. As latas são pesadas e amanhã teremos que andar muito.

Bond respondeu: — Muito bem, Quarrel. Deixarei o cardápio aos seus cuidados.

Em seguida, apanhou o revólver e as calças úmidas e desceu para a água rasa. A água estava acariciante, mas desagradavelmente quente. Bond escavou punhados de areia, com as mãos, e esfregou o corpo com ela, utilizando-a como sabonete. Depois deixou-se ficar gostosamente em meio àquele silêncio e àquela solidão.

As estrelas começaram a brilhar palidamente, as estrelas que os tinham trazido à ilha na noite passada; as estrelas que os tirariam dali no dia seguinte. Que viagem! Mas pelo menos já tinha dado os seus resultados. Agora tinha provas bastantes, e testemunhas, para ir ter com o governador e conseguir dele um inquérito completo acerca das atividades do Dr. No. Ninguém lança mão de metralhadoras contra pessoas, mesmo contra intrusos. E, da mesma forma, o que seria aquilo do Dr. No, que invadira a propriedade da Sociedade Audubon, aquilo que chegara a destruir essa propriedade e provavelmente matara um de seus empregados? Isto também teria que ser investigado. E o que haveria ele de encontrar quando voltasse pela porta da frente, talvez a bordo de um destróier, e com um destacamento de fuzileiros navais? Qual seria a resposta para o mistério do Dr. No? O que estaria ele escondendo? Por que aquele segredo era tão importante, que seria capaz de matar repetidas vezes, para preservá-lo? E quem era esse Dr. No?

Bond ouviu o barulho de alguém espojando-se na água. Pensou na garota. E quem, afinal, era Honeychile Ri-der? Aquilo pelo menos, pensou ele ao sair da água, era algo que deveria esclarecer antes do amanhecer.

Bond enfiou as suas pegajosas calças, sentou-se na areia e desmontou o revólver. Fê-lo pelo tato, utilizando-se de sua camisa para secar cada peça e cada cartucho. Depois, tornou a montar a arma e pressionou o gatilho, fazendo com que o tambor vazio desse uma volta completa. O som era satisfatório. Seriam precisos alguns dias para que o revólver começasse a enferrujar. Carregou-o e meteu-o no coldre, para dentro do cós da calça. Depois, levantou-se e voltou para a clareira.

A sombra de Honey chegou até ele, e a sua voz se fez ouvir: — Venha; estamos morrendo de fome. Apanhei uma das panelas, limpei-a e pusemos as ervilhas nela. Temos pão também. E eu não sinto escrúpulos de comer a sua ração, porque você me fez trabalhar muito mais do que se eu estivesse sozinha. Agora, estique a mão.

Bond achou graça no tom autoritário que havia em sua voz. Ele apenas podia perceber a sua silhueta, no escuro. Sua cabeça parecia mais aflada. Ele se perguntou como seriam os seus cabelos quando secos e penteados. Como seria ela quando estivesse vestindo roupas limpas naquele lindo corpo dourado? Podia vê-la entrando numa sala ou atravessando um vestíbulo em Beau Desert. Ela seria uma linda e encantadora Patinha Feia. Por que nunca procurara endireitar o nariz? Seria uma operação fácil. Depois disso, ela seria a jovem mais bela de Jamaica.

O seu ombro tocou nele. Bond esticou o braço e descansou a mão aberta no colo da jovem. Então Bond sentiu que ela estava enchendo a sua mão com ervilhas.

Subitamente, Bond aspirou o seu cheiro cálido de animal. Foi uma explosão sensual tão aguda que o seu corpo se uniu ao dela, e, por um momento, os seus olhos se fecharam.

Ela deixou escapar um riso curto, no qual havia timidez, satisfação e ternura. E disse, maternalmente: “Lá”, — e empurrou a mão de Bond.

 

CONTINUA

IX - POR UM TRIZ


Dez minutos mais tarde a baía estava vazia e imaculada. Pequenas ondas encrespavam-se preguiçosamente através do espelho das águas, no interior dos recifes e morriam exaustas na areia escura onde as conchas lilás brilhavam como unhas pintadas. O monte de conchas tinha desaparecido e não havia mais vestígios de pegadas. Quarrel cortara galhos de mangues e caminhava de costas procurando apagar as pegadas com aqueles galhos. Onde tinha varrido, a areia apresentava uma limpidez diferente mas não tão diferente a ponto de ser notada de fora do recife. A canoa da jovem tinha sido arrastada para dentro do mar, entre as rochas, e ali ficou coberta com algas e gravetos.

Quarrel tinha voltado ao promontório. Bond e a jovem estavam juntos, sob tufos de folhas, onde Bond dormira, e olhavam silenciosamente para o contorno do promontório, à volta do qual surgira a embarcação.

A lancha estava talvez a uns quinhentos metros de distância. A julgar pelo lento ritmo do motor, Bond concluiu que cada acidente da costa estava sendo cuidadosamente inspecionado para descobrir indícios da presença de estranhos. De qualquer forma, aquilo parecia uma possante embarcação. Talvez uma grande lancha de cabina. Que tripulação teria? Quem estaria no comando? O Dr. No? Improvável. Ele certamente não se daria àquele trabalho de polícia.

Do lado do ocidente apareceu um bando de corvos marinhos, voando baixo sobre o mar, além dos recifes. Bond observou-os. Eram o primeiro indício para ele encontrado daquela colônia de aves, na outra extremidade da ilha. Aquele bando, segundo Pleydell-Smith, seriam batedores à procura do brilho prateado das enchovas, próximas à superfície. Enquanto observava, as aves começaram a dar mergulhos rasos, ferindo o mar superficialmente e levantando respingos de água. Quase que de uma só vez, apareceu outra coluna de aves, vinda do ocidente, e logo outra, e mais outra, fundindo-se todas numa espessa e escura nuvem. Durante minutos, elas sombrearam o céu, e depois atiraram-se à água, cobrindo vários alqueires, piando e lutando, e mergulhando as cabeças no mar, fazendo uma rica colheita naquele sólido campo de anchovas, como piranhas que se banqueteassem num cavalo afogado.

Bond sentiu um suave toque da jovem, que fez um movimento com a cabeça, dizendo:

— As galinhas do chinês estão comendo milho.

Bond observou-lhe o rosto belo e feliz. Ela parecia bastante despreocupada com a chegada daqueles homens. Para ela aquilo era apenas o jogo de esconde-esconde que já tinha praticado antes.

A vibração metálica dos motores diesel estava-se tornando mais forte. A lancha deveria estar justamente por trás do promontório. Bond deu mais uma olhada à volta da tranqüila baía, e depois fixou os olhos através da folhagem e do mato, para os lados dos recifes.

A ponta de uma proa branca apareceu, seguida de uns dez metros de tombadilho, e logo o parabrisas de vidro, uma cabina baixa e uma antena de rádio, e o vulto de um homem à volta do leme. Finalmente, o comprido e achatado fosso da popa, e uma flâmula vermelha pendente, Seria uma lancha-torpedeira convertida, um excedente de guerra do governo britânico?

Os olhos de Bond fixaram-se nos dois homens que estavam em pé na popa. Eram negros de pele pálida, envergando roupas caqui de marinheiro, com largos cinturões e chapéus de palha com longas palas. Estavam um ao lado do outro, equilibrando-se sob a lenta elevação da massa líquida. Um deles segurava um alto-falante e o outro manejava uma metralhadora instalada num tripé. Bond teve a impressão de que era uma metralhadora “Spandau”.

O homem com o alto-falante deixou que este caísse, e ele ficou oscilando numa tira, que lhe dava volta ao pescoço. Apanhou um binóculo e começou a vasculhar metro a metro da praia. Indistintos comentários chegavam aos ouvidos de Bond, por entre o ruído dos motores.

Bond percebeu que os olhos do binóculo começavam pelo promontório e depois percorriam a areia. As lentes detiveram-se entre as rochas e continuaram o seu passeio. Depois, voltaram. O murmúrio do comentário elevou-se ganhando animação. O homem passou o binóculo para o metralhador, que observou rapidamente, devolvendo-o logo ao dono. O observador gritou alguma coisa para o timoneiro. A lancha começou a se aproximar da praia. Agora estavam justamente diante dos recifes, em frente a Bond e à jovem. O observador ergueu novamente o binóculo, apontando-o para as rochas onde se encontrava escondida a canoa da jovem. Novamente a fala excitada chegou aos ouvidos de Bond, por sobre as águas. Mais uma vez o binóculo foi passado ao metralhador, que levou algum tempo observando. Dessa vez, ele fez um sinal de assentimento com a cabeça.

Bond pensou: agora vamos ter coisa; esses homens conhecem o ofício. Em seguida, viu que o metralhador se ocupava em carregar a arma. O duplo estalido metálico chegou aos seus ouvidos, por entre o matraquear do motor.

O observador ergueu o alto-falante e ligou-o. O eco produzido pelo amplificador chegou até Bond, conduzido pela superfície da água. A voz do homem ribombou pela baía:

— Alô, pessoal! Saiam daí e não serão feridos. Era uma voz educada, com sotaque americano.

— Agora, pessoal — trovejou a voz — depressa! Nós vimos quando vocês desembarcaram. Já descobrimos o bote sob os paus. Não somos tolos e não estamos brincando. Saiam daí com os braços levantados e não lhes acontecerá nada!

Não se ouviu nenhuma resposta. Apenas as ondas quebravam docemente na praia. Bond podia ouvir a respiração da jovem. Os guinchos agudos dos corvos marinhos chegavam-lhes de uma milha de distância, sobre o mar. O cano de escapamento dos motores diesel produzia um ruído desigual e gorgulhante, quando o intumescimento do mar cobria o orifício de descarga.

Silenciosamente Bond tocou o braço da jovem e disse-lhe:

— Fique mais perto. Alvo menor.

Ele sentiu o calor da jovem mais próximo de seu corpo, e o rosto de Honey raspou pelo seu braço. Bond sussurrou:

— Enterre-se na areia. Encolha-se. Cada polegada a menos ajudará.

Ele começou a se encolher cuidadosamente na depressão que tinham escavado para se abrigarem, e sentiu que ela fazia o mesmo.

O homem estava erguendo o seu alto-falante. A voz ribombou novamente.

— Muito bem, pessoal! Vocês irão ver que isso aqui não é para brincadeira. — Depois, levantou o polegar. O metralhador experimentou a arma fazendo alguns disparos para a copa dos mangues situados por trás da praia. Bond ouviu o rápido matraquear, tão seu conhecido, e do qual se despedira pela última vez diante das linhas alemãs, nas Ardenas. As balas produziam o velho som de pombos assustados, assobiando sobre sua cabeça. Depois fez-se silêncio.

À distância, Bond via a nuvem negra de corvos marinhos elevar-se, começando a fazer os seus amplos círculos. Seus olhos voltaram para a embarcação. O metralhador estava apalpando o cano da metralhadora, para ver se já estava aquecido. Os dois homens trocaram algumas palavras. O observador apanhou novamente o porta-voz.

— Está bem, pessoal. Vocês foram avisados.

Bond viu o cano da “Spandau” levantar-se e abaixar-se. O homem estava querendo começar com a canoa, entre as rochas. Bond sussurrou para a jovem: — Muito bem, Honey. Agüente firme. Mantenha-se abaixada. Não vai durar muito.

Ele sentiu que a mão da jovem apertava o seu braço, e pensou: “Coitada; ela está metida nisso por minha causa.” Ele inclinou-se para a direita a fim de cobrir a cabeça de Honey e afundou o rosto na areia.

Dessa vez o matraquear foi terrível. Balas ricocheteavam no flanco do promontório. Fragmentos de pedra saltavam para todos os lados, sobre a praia. Outras balas ricocheteavam e iam perder-se dentro da mata. Simultaneamente com todo aquele barulho ouvia-se o martelar contínuo da metralhadora.

Houve uma pausa. Nova carga, pensou Bond. Agora será para nós. Pôde sentir a jovem agarrando-se a ele. Seu corpo tremia todo, encostado ao seu flanco. Bond apanhou uma arma e apertou-a de encontro ao corpo. O matraquear da metralhadora recomeçou. As balas vinham zunindo, da linha de maré, em direção a eles. Ouviu-se uma sucessão de rápidas batidas. O tufo, acima deles, estava sendo reduzido a pedaços. “Zuip Zuip Zuip”. Era como se um chicote de aço estivesse retalhando os arbustos. Pedaços de lenha caíam sobre eles, cobrindo-os lentamente. Bond respirou um ar mais fresco, o que significava que eles agora estavam ao ar-livre. Estariam eles escondidos pelas folhas o pelos destroços? As balas continuaram deslocando-se ao longo da linha da costa. Em menos de um minuto a metralhadora parou.

O silêncio tornou a reinar. A jovem lamuriou-se docemente. Bond fê-la calar-se e apertou-a mais forte.

O alto-falante apregoou:

— Está bem, pessoal. Se vocês ainda têm ouvidos, saibam que voltaremos logo para recolher-lhes os pedaços. Vamos trazer os cães. Até à vista, por enquanto.

O ritmo do motor se acelerou, e através das folhas Bond pôde ver a popa da lancha afundar-se mais na água, enquanto a embarcação rumava rapidamente para oeste. Dentro de minutos já não se ouvia mais nada.

Bond ergueu a cabeça cautelosamente. A baía estava serena, e tudo como antes, exceto o cheiro de cordite e as rochas quebradas.

Bond fez a jovem levantar-se. Havia marcas de lágrimas em seu rosto. Ela olhou-o aterrada, e disse:

— Isso foi terrível. Por que eles o fizeram? Podíamos ter sido mortos.

Bond pensou naquela jovem que sempre abrira caminho, na vida, por si mesma, mas apenas contra a natureza. Conhecia o mundo dos animais, dos insetos e dos peixes, e tirava todo o partido desse conhecimento. Mas aquele era um pequeno mundo, limitado pelo sol, pela lua e pelas estações. Ela não conhecia o grande mundo das salas cheias de fumo, dos corredores de negócios, dos corredores e antecâmaras governamentais, dos cautelosos encontros em bancos de praças — numa palavra: ela nada conhecia da luta pelo poder e pelo dinheiro, travada por homens poderosos.

Bond disse:

— É isso mesmo, Honey, eles não passam de uma quadrilha de bandidos assustados conosco. Podemos enfrentá-los.

Bond colocou o braço à volta de seus ombros e continuou:

— E você esteve maravilhosa, brava como ninguém. Agora, vamos ao encontro de Quarrel para traçar os nossos planos. De qualquer forma, já é tempo de comermos alguma coisa. O que é que você costuma comer nessas expedições?

Deram meia-volta e seguiram pela praia em direção ao promontório. Depois de um minuto, ela disse com voz bem controlada:

— Oh, há uma porção de coisas por aí que se podem comer. Ouriços do mar principalmente, mas também bananas silvestres e outras coisas. Eu como e durmo durante dois dias, antes de vir aqui. Não preciso de nada.

Bond apertou-a mais fortemente, mas deixou cair o braço, assim que Quarrel apareceu ao longe. Quarrel vinha saltando sobre as rochas, e, em determinado momento, parou, olhando para baixo. Bond e Honey se aproximaram dele. A canoa da jovem estava cortada ao meio pelas balas. Honey deixou escapar um grito, olhando desesperadamente para Bond:

— A minha canoa! Como poderei voltar?

— Não se preocupe, senhorita, — disse Quarrel, que sentia a perda de uma canoa mais do que Bond. Imaginou ainda que aquela embarcação representasse quase todo o capital da jovem. — O capitão lhe dará outra. E a senhorita voltará conosco. Temos um magnífico bote, entre os mangues, e ele não foi destruído. Já estive lá espiando.

Quarrel olhou para Bond. Agora, o seu rosto denotava preocupação.

— Mas, capitão, o senhor está vendo o que eu disse dessa gente. Eles são duros e não estão brincando. Esses cães que eles vão trazer são policiais — Pinschers, como eles os chamam. Bastardos. Meus amigos disseram-me que são uma matilha de vinte ou mais. É melhor resolvermos logo.

— Está bem, Quarrel. Mas antes de mais nada precisamos comer alguma coisa. — o diabo que me carregue se eu vou ser aterrorizado e expulso da ilha antes de dar uma olhada nisso. Levaremos Honey conosco. — E, voltando-se para a jovem:

— Está bem, Honey? Nada lhe acontecerá. Depois voltaremos juntos.

A jovem olhou-o em dúvida:

— Acho que não há alternativa. Quero dizer. Gostaria de ir com vocês, se não atrapalhasse. Francamente, não quero comer nada. Mas você me levará de volta, assim que puder? Não quero ver mais aquela gente. Durante quanto tempo vocês vão ficar olhando para essas aves?

Bond respondeu evasivamente:

— Pouco tempo. Eu terei apenas que ver o que lhes aconteceu e porquê. Depois, partiremos.

Olhou para o relógio e anunciou:

— Agora são doze horas. Você nos esperará aqui. Tome um banho ou faça o que quiser. Não ande por aí deixando pegadas. Vamos, Quarrel, é melhor escondermos aquele bote.

Só à uma hora eles estavam prontos. Bond e Quarrel encheram a canoa com pedras e areia, até que ela desapareceu sob a água, entre os mangues. Depois, apagaram as suas pegadas. As balas tinham deixado tantos gravetos na orla da praia, que eles podiam caminhar pisando em folhas e ramos quebrados. Comeram parte de suas rações — os homens com avidez, mas Honey com relutância — e depois, passando sobre as rochas, foram ter à lagoa, próxima da costa. Em seguida foram vadeando aquelas águas, em direção à foz do rio, trezentos metros praia abaixo.

Fazia muito calor. Um vento áspero e quente começou a soprar do nordeste. Quarrel informou que aquele vento soprava diariamente, durante todo o ano, e era vital para a guaneira, pois secava o guano. O revérbero do mar e das brilhantes folhas verdes dos mangues cegava-os. Bond deu-se por feliz, já que tivera o cuidado de acostumar sua pele ao sol.

Na foz do rio encontraram um banco de areia e um extenso pântano, profundo e de águas estagnadas. Os dois homens podiam molhar-se ou tirar as roupas. Bond disse à jovem:

— Honey, não podemos ter cerimônia, nesta situação. Vamos ficar apenas com as camisas por causa do sol. Fique apenas com o que for sensato e caminhe atrás de nós.

Sem esperar pela resposta da jovem, os dois homens tiraram as calças. Quarrel enrolou-as e guardou-as na sacola, juntamente com as provisões e o revólver de Bond. Depois começaram a vadear a lagoa, com Quarrel na frente, logo seguido de Bond, e, finalmente a jovem. A água chegou até a cintura de Bond. Um grande peixe prateado deu um salto perto deles e depois caiu ruidosamente na água. Viram-se pequeninas setas riscarem a superfície, quando peixes menores se afastaram precipitadamente.

A lagoa convergia para uma estreita garganta, por sobre a qual as copas dos mangues se tocavam. Durante algum tempo eles vadearam através de um túnel fresco, e depois o rio se alargou num canal profundo, de águas morosas, que serpeava para a frente, entre as gigantescas raízes de sustentação dos mangues. O fundo era lamacento, e a cada passo os pés se enterravam algumas polegadas no lodo. Pequenos peixes ou camarões se encolhiam ou fugiam de baixo de seus pés, e de quando em quando eles tinham que parar para se desembaraçar das sanguessugas, antes que elas se agarrassem firmemente. A não ser isso, aquela caminhada era fácil, sob o frescor das arvores, e, pelo menos para Bond, era uma bênção estar ao abrigo do sol.

Em breve, à medida que se iam afastando do mar, começaram a sentir um cheiro de ovo podre, o cheiro de hidrogênio sulfurado do gás dos pântanos. Os mosquitos começaram a assaltá-los e pareciam gostar do corpo de Bond. Quarrel disse-lhe que mergulhasse na água do rio, pois os mosquitos gostavam de carne salgada. Bond tirou a camisa e fez o que Quarrel lhe aconselhara. Depois disso sentiu-se melhor e o seu olfato chegou mesmo a se acostumar com aquele repugnante cheiro, a não ser quando os pés de Quarrel desfaziam algum bolsão de gás, no fundo da lama, e uma gigantesca bolha atravessava a água para arrebentar na superfície sob as suas narinas.

Os mangues começaram a se tornar mais escassos e mais esparsos, enquanto o rio se ia alargando aos poucos. Ao mesmo tempo, a água tornava-se mais rasa e o fundo mais firme. Logo chegaram a uma volta e saíram para céu aberto, Honey disse:

— É melhor tomarmos cuidado, agora. Eles poderão ver-nos com muita facilidade. Isso vai assim durante uma milha. Depois o rio torna a se estreitar até o lago. E depois se poderá ver a restinga onde os tratadores das aves viviam.

O grupo deteve-se à sombra do túnel de mangues e olhou para fora. O rio serpeava perigosamente, afastando-se deles, em direção ao centro da ilha. As suas barrancas, bordadas de bambus de pequeno porte e de vegetação rala, dar-lhes-íam cobertura reduzida. Partindo de sua margem ocidental, o terreno elevava-se aos poucos, e logo abruptamente até o monte, situado a três quilômetros de distância, que era a guaneira. Na base daquela montanha, viam-se várias cabanas esparsas. Um ziguezague prateado galgava o flanco da colina, até as tendas — trilhos “Decauville”, pensou Bond, destinados a levarem o guano para o moinho e separa-dor. O cume do monte era branco, como se estivesse coberto de neve. De sua parte mais elevada desprendia-se como que uma bandeira de dó de guano. Bond podia ver os pontos negros que eram os corvos marinhos, sobre o fundo branco. Aquelas aves estavam levantando vôo e pousando como abelhas numa colmeia.

Bond deixou-se ficar de pé e contemplou o brilho distante daquela montanha de excrementos de aves. Então aquilo era o reino do Dr. No! Bond pensou que jamais vira um cenário tão escondido e distante, em toda a sua vida.

Examinou o terreno entre o rio e a montanha. Parecia ser principalmente formado com aquela matéria cinzenta de corais mortos. Não havia dúvida de que uma estrada ou trilha corria da falda da montanha até ao lago central e aos pântanos. Bond notou ainda que toda a vegetação se curvava para oeste, e imaginou viver durante todo um ano com aquele vento escaldante castigando a ilha, sem falar do cheiro do guano e do gás dos pântanos. Nenhuma colônia penal poderia encontrar pior localização do que aquela.

Bond olhou para leste, onde os mangues, na área dos charcos, pareciam oferecer mais hospitalidade. Os três puseram-se a caminhar sobre um sólido tapete verde de vegetação. Sobre suas cabeças, aves revoluteavam agitadas, para depois se, acalmarem, e logo tornarem a agitar-se. Seus pios eram carregados pelo vento crestante.

A voz de Quarrel interrompeu os pensamentos de Bond:

— Eles vêm vindo, capitão!

Bond seguiu o olhar de Quarrel. Um grande caminhão descia celeremente das tendas, com uma nuvem de pó levantando-se das rodas. Bond acompanhou-o durante dez minutos, até que o veículo desapareceu entre os mangues, na margem do rio. Bond pôs-se a escutar e ouviu latidos de cães, que eram trazidos pelo vento.

Quarrel comentou:

— Eles vão descer pelo rio, capitão. Sabem que não nos podemos mover, a não ser rio acima, se não estivermos mortos. Certamente que descerão pelo rio, até a praia, e farão um reconhecimento dos destroços. Depois, com toda a certeza, a lancha virá com um pequeno bote e recolherá os homens e os cães. Pelo menos, isso é o que eu faria no lugar deles.

Honey disse: — Isso é, de fato, o que eles fazem quando me procuram. É isso mesmo. Basta que cortemos um pedaço de bambu, e, quando eles estiverem perto, mergulhemos na água, procurando respirar através do bambu, até que eles se afastem.

Bond sorriu para Quarrel, e disse: — Suponhamos que você corte os bambus, enquanto eu procuro um bom esconderijo entre os mangues.

Quarrel aquiesceu hesitante e começou a subir contra a corrente, em direção ao bambuzal, enquanto Bond se encaminhava para o túnel formado pelos mangues.

Bond evitara olhar para a jovem, mas esta disse-lhe com impaciência:

— Não precisa ter tanto cuidado em não olhar para mim. Não adianta se preocupar com tais coisas, numa hora dessas. Você mesmo o disse, ainda há pouco.

Bond virou-se e olhou para a jovem. Sua camisa esfrangalhada descia até a linha d’água. Podia-se ainda ter um vislumbre de pálidas coxas, serpeando sob a superfície. O lindo rosto sorriu para ele. No meio daqueles mangues, o seu nariz quebrado parecia harmonizar-se com o ambiente, pela sua animalidade.

Bond fitou-a descansadamente e ela compreendeu. Depois, ele deu-lhe as costas e desceu pela correnteza, seguido por ela. Logo encontrou o que procurava, isto é, uma fenda naquela parede formada pelas raízes dos mangues. Bond recomendou: — Não quebre nenhum galho. — Depois, baixou a cabeça e meteu-se por aquela brecha. O canal avançava numa distância de dez metros. A lama sob seus pés tornou-se mais mole e espessa. Chegou a uma sólida e intransponível parede de raízes. Aquela água escura fluía vagarosamente através de uma ampla e tranqüila lagoa. Bond deteve-se. A jovem se aproximou dele.

— Isto é mesmo uma brincadeira de esconde-esconde — disse ela, trêmula.

— É verdade — aquiesceu Bond distraidamente, enquanto pensava em seu revólver. Com efeito, ele preocupava-se em saber com que eficiência a arma operaria depois de um banho no rio — quantos cães e homens ele poderia eliminar, se fossem descobertos. Sentiu um estremecimento de inquietação. Tinha sido uma falta de sorte ter encontrado aquela jovem. Em combate, queira-se ou não, uma mulher representa sempre um coração a mais. O inimigo tem dois alvos enquanto apenas oferece um.

Bond lembrou-se de sua sede. Apanhou na concha da mão um pouco de água e bebeu-a. Aquela água era salobra e tinha gosto de terra. Mas servia. Bond bebeu um pouco mais. A jovem agitou a mão e deteve-o, dizendo:

— Não beba demais. Lave a boca e cuspa. Você pode apanhar febre.

Quarrel assobiou de algum ponto situado na corrente principal. Bond respondeu e foi em direção ao amigo. Depois, voltaram juntos, internando-se no canal. Quarrel borrifou as raízes de mangues com água, nos pontos em que os seus corpos talvez as tivessem raspado. “Para tirar o nosso cheiro”, explicou, laconicamente. Em seguida mostrou o seu feixe de bambus e começou a cortá-los e prepará-los. Enquanto isso, Bond se ocupava com seu revólver e a munição. Os três ficaram imóveis, no meio daquele pântano, de modo a não levantarem mais lama.

A luz do sol filtrava-se através do espesso teto de folhas, os camarões agitavam-se sob os pés daqueles três fugitivos. Gradativamente foi-se avolumando uma insuportável tensão, naquele silêncio escaldante e angustioso.

Foi quase um alívio ouvir-se o ladrar dos cães.


X - O RASTRO DO DRAGÃO


O grupo de investigação descia rapidamente pelo rio. Os dois homens, de calções de banho e altas botas impermeáveis, tinham que correr para acompanhar os cães.

Eram grandes negros chineses, que traziam coldres sustentados ao ombro por meio de talabartes cruzados diante dos peitos suados. De quando em quando trocavam gritos que em geral não passavam de imprecações. À frente deles a matilha de cães Dobermann nadava e debatia-se n’água, latindo excitadamente. Tinham farejado uma pista e procuravam segui-la nervosamente, com as orelhas eretas sobre as cabeças afladas.

— Talvez um maldito crocodilo, — gritou o chefe elevando a voz sobre a algazarra. Empunhava um chicote que de vez em quando fazia estalar no campo de caça.

Os outros homens se encaminhavam para ele. O chefe gritou excitadamente: “Aposto que é o gringo inglês! Tenho certeza de que ele está entre os mangues. Cuidado para que o gringo não nos faça cair numa emboscada.” O homem tirou o revólver do coldre e colocou-o sob o sovaco, sem tirar a mão da coronha.

O grupo agora estava deixando a parte do rio, sob céu aberto, e entrando no túnel formado pelos mangues. O primeiro homem tinha um apito, que se projetava de seu largo rosto como um toco de charuto. Fez soar um agudo silvo. Quando os cães avançaram, ele se deixou ficar com o seu chicote junto do chefe. Os animais continuavam farejando, lamuriando-se porque a corrente os obrigava a desobedecer às ordens recebidas. Os dois homens sacaram os revólveres e vadearam lentamente o rio, na mesma direção da corrente, por entre os caules tortuosos dos mangues.

O homem que ia na frente chegou ao estreito canal que Bond tinha encontrado, agarrou um dos cães pela co-leira e lançou-o ao canal. O animal resfolegou ansiosamente e debateu-se para a frente. Os olhos do homem percorreram as raízes dos mangues, de ambos os lados do canal, para ver se apresentavam algum arranhão.

O cão e o homem chegaram ao pequeno lago situado na extremidade do canal. O homem olhou à sua volta, com ar animado. Tornou a agarrar o cão pela coleira e puxou-o para trás. O animal relutava em abandonar o lugar. Então, o homem feriu a água com o chicote.

O segundo homem estivera esperando à entrada do canal. O primeiro saiu daquele pequeno remanso e sacudiu a cabeça, descendo a corrente, com os cães, que agora se mostravam menos excitados, nadando à frente.

Lentamente, a algazarra da perseguição foi diminuindo e desapareceu.

Por mais cinco minutos nada se mexeu na laguna dos mangues; depois, num dos cantos, entre as raízes, apareceu lentamente para fora d’água um fino periscópio de bambu. O rosto de Bond emergiu logo em seguida, com os cabelos molhados colados à testa, como a cara de um cadáver que boiasse. Em sua mão direita, sob a água, o revólver estava pronto. Bond procurou escutar cuidadosamente. O silêncio era completo, não havia o mínimo ruído. Ou haveria? O que seria aquele suave barulho, como se algo deslizasse entre a água, na corrente principal? Viria alguém, muito serenamente, seguindo na esteira daquela caçada? Bond procurou apalpar à sua volta e tocou delicadamente nos dois corpos que estavam cada um em um de seus flancos, entre as raízes, na orla da laguna. Quando os dois rostos aforaram à superfície, ele colocou o seu dedo indicador sobre os lábios, mas já era tarde. Quarrel tinha tossido e cuspido. Bond fez uma careta e fez um sinal na direção da principal corrente. Todos procuravam escutar. O ruído recomeçou. Alguém estava-se dirigindo para o canal lateral. Os tubos de bambu voltaram para as três bocas e as cabeças tornaram a submergir. Debaixo da água Bond descansou a cabeça na lama, apertou as narinas e os lábios à volta do tubo. Sabia que a laguna já fora examinada uma vez, pois sentira a agitação causada na água pelo cão, que passara nadando! Da primeira vez não tinham sido achados, mas conseguiriam escapar desta? Agora haveria menos possibilidades de que a lama revolta se escoasse para fora da laguna. Se esse batedor visse a mancha mais escura, na água, atiraria ou usaria um punhal? Que armas traria? Bond resolveu não correr riscos. Ao primeiro rumor de movimento, ao seu lado, ele se poria de pé e daria logo ao gatilho, esperando pelo melhor.

Assim ficou ele, submerso, com todos os sentidos atentos. Como era desagradável aquele respirar controlado e insuportáveis as ligeiras mordidelas dos camarões! Por sorte nenhum deles tinha qualquer ferida no corpo, pois do contrário os malditos animalzinhos ter-se-iam atirado contra elas. De qualquer forma, aquela fora uma brilhante idéia da jovem. Sem ela os cães já os teriam alcançado, onde quer que eles se tivessem escondido.

Inesperadamente, Bond encolheu-se. Uma bota de borracha tinha pisado em seu queixo e escorregado. O homem pensaria tratar-se de um galho de árvore? Bond não podia correr aquele risco. Com um só impulso pôs-se de pé, atirando para longe o pedaço de bambu.

Bond teve uma rápida impressão de um gigantesco corpo de pé, quase em cima de si, e duma coronha de rife, em rápido movimento. Levantou o braço esquerdo para proteger a cabeça e recebeu um violento golpe no braço. Ao mesmo tempo, o seu braço direito se esticou para a frente, e, quando o cano tocou no lado direito do peito, sob o mamilo, ele acionou o gatilho.

O coice da arma, quase encostada ao corpo do homem, por pouco não quebrou o pulso de Bond, mas o homem desabou para trás como uma árvore decepada que cai n’água. Antes que o corpo afundasse, Bond ainda pôde perceber-lhe uma grande fenda no flanco. A cabeça, uma cabeça negróide de chinês, veio à superfície, com os olhos revirados para cima e a água a sair de sua boca escancarada e silenciosa. Em seguida a cabeça submergiu novamente e nada mais se pôde ver senão uma lama espumosa e uma mancha vermelha que gradualmente se ia ampliando e lentamente era atraída pela corrente.

Bond se endireitou e voltou-se para o lado. Quarrel e a jovem estavam atrás, em pé, com a água a escorrer-lhes dos corpos. Quarrel tinha um sorriso que ia de orelha a orelha, mas a garota mordia as articulações dos dedos, enquanto seus olhos se escancaravam horrorizados diante da água avermelhada.

Bond disse laconicamente: “Desculpe-me, Honey. Tinha que ser feito. Ele estava bem sobre nós. Venha, vamos indo.” Agarrou-a de qualquer maneira, pelo braço, e arrastou-a para fora da principal corrente, apenas detendo-se quando chegaram a rio aberto, na boca do túnel de mangues.

O cenário estava novamente vazio. Bond olhou para o relógio, e verificou que parara às três horas. Olhou para o sol, já bastante deslocado para o ocidente e concluiu que deveriam ser quatro horas. Quanto ainda teriam que caminhar? Bond inesperadamente sentiu-se cansado. Agora teria de enfrentar a situação. Ainda que o disparo não tivesse sido ouvido — e certamente que ele fora abafado pelo próprio corpo da vítima e pelas árvores — a falta do homem seria sentida quando os outros se reunissem, — se a suposição de Quarrel fosse correta, na embocadura do rio, de onde seriam recolhidos pela lancha. Voltariam eles, subindo o rio, a fim de procurarem o desaparecido? Talvez não. Já estaria muito escuro quando eles tivessem a certeza de que o homem estava realmente desaparecido. O mais certo seria mandarem um grupo de homens pela manhã. Os cães facilmente dariam com o corpo. E o que aconteceria?

A garota puxou-o pela manga e disse com irritação: — Já é tempo de você me dizer o que significa tudo isto! Por que estão todos procurando se matar mutuamente? E quem é você? Não acredito em toda essa história de aves. Ninguém carrega revólveres contra aves.

Bond baixou o olhar, fitando aqueles olhos bem separados e irados. — Desculpe-me, Honey. Receio tê-la arrastado para uma boa encrenca. Eu lhe contarei tudo quando voltarmos à noite para o acampamento. Foi apenas má sorte que você se envolvesse comigo, desta maneira. Tenho uma guerrinha com essa gente. Eles parecem querer matar-me. Agora estou apenas interessado em que todos nós saiamos desta ilha sem que ninguém fique ferido. Já tenho muito do que queria, para da próxima vez voltar pela porta da frente.

— O que você quer dizer? Você é alguma espécie de policial? Está querendo meter esse chinês na cadeia?

— Mais ou menos, — disse Bond, rindo para ela. — Pelo menos você está do lado dos anjos. Agora, diga-me uma coisa. Quanto falta ainda para chegar ao acampamento dos guardas?

— Oh, cerca de uma hora.

— É um lugar bom para nele esconder-se? Eles poderiam achar-nos com facilidade?

— Eles teriam que atravessar o lago ou subir o rio. Tudo estará muito bem se eles não puserem o dragão em nosso encalço. Ele pode muito bem atravessar a água, pois já o vi fazê-lo.

— Bem — disse Bond diplomaticamente — esperemos que ele esteja com a cauda machucada, ou tenha outra coisa qualquer.

A jovem vociferou: — Muito bem, sr. Sabe-Tudo. — E acrescentou irritada: — Espere e verá.

Quarrel deixou o túnel de mangues, agitando ruidosamente a água, tendo na mão o rife do chinês abatido, e dizendo à guisa de quem pede desculpas:

— Não há mal em termos outra arma, chefe. Parece que vamos precisar dela.

Bond apanhou aquela arma. Era uma carabina “Remington”, do exército norte-americano, calibre 300. Não havia dúvida de que aquela gente contava com equipamento apropriado. Bond devolveu a arma a Quarrel, depois de examiná-la.

Quarrel como que fez eco aos seus pensamentos: — Isso é gente astuta, capitão. Aquele homem veio esquadrinhando suavemente, atrás dos outros, a fim de nos surpreender quando deixássemos o esconderijo, depois da passagem dos cães. Esse tal de doutor com certeza é um sujeito muito esperto.

Bond disse pensativamente: — É, ele deve ser um homem incomum. — Depois espantou os pensamentos: — Agora, vamos tocando para a frente. Honey diz que ainda precisamos de uma hora para chegarmos ao acampamento. É melhor irmos pela margem esquerda, de modo a ficarmos ao abrigo da colina. Pelo que já pudemos ver, eles têm lunetas assestadas sobre o rio.

Bond entregou a sua arma a Quarrel, que a guardou na mochila molhada. Puseram-se novamente em marcha, com Quarrel à frente, e Bond e a jovem andando juntos, atrás.

Aproveitavam algumas sombras das árvores e bambus da margem ocidental, mas deviam agora suportar toda a intensidade de um vento crestante. Borrifaram braços e corpos com água, a fim de refrescar as queimaduras. Os olhos de Bond estavam injetados por aquele insuportável revérbero e o seu braço doía intoleràvelmente no ponto em que fora atingido pela coronha. E ele não teria à sua espera o seu jantar de pão embebido, queijo e fiambre. Quanto tempo poderiam dormir? Não dormira muito na véspera, e parece que não iria ter melhor ração de sono. E a garota? Ela nada dormira. Ele e Quarrel teriam que se revezar, em quartos de vigilância. E logo chegaria o dia seguinte, quando procurariam ganhar novamente os mangues e vencer lentamente a distância que os separava de sua canoa, através da extremidade oriental da ilha. As coisas correriam daquela forma, segundo era de esperar. Então, tratariam de se fazerem ao mar na noite seguinte. Bond pensou em como haveria de abrir caminho por entre sólidos mangues, na distância de oito quilômetros. Que perspectiva! Continuou se arrastando para a frente, pensando nas “férias ao sol dos trópicos” de M. Muito gostaria que M tivesse que partilhar com ele aquelas “férias”.

O rio foi-se estreitando até que se reduziu a uma simples corrente entre as moitas de bambu. Depois se ampliava num estuário baixo e pantanoso, além do qual as cinco milhas quadradas de lago raso davam vazão para o outro lado da ilha, perdendo-se num agitado espelho líquido azul-cinza. Mais para além estava a brilhante pista aérea e o reflexo da luz solar sobre um único hangar. A jovem disse-lhe que se mantivesse na direção leste, e eles foram lentamente avançando, protegidos pela orla da mata.

Inesperadamente, Quarrel deteve-se, com o rosto esticado como o focinho de um cão para o terreno pantanoso à sua frente. Dois profundos sulcos tinham sido escavados na lama, com um sulco mais raso no centro. Eram a trilha de algo que tinha descido da colina e atravessado o pântano em direção ao lago.

A jovem disse com indiferença: — Por aqui já passou o dragão.

Quarrel arregalou os olhos para ela.

Bond caminhou lentamente pela trilha. As marcas exteriores eram bastante lisas, trazendo a marca de uma linha curva. Poderiam ter sido causadas por rodas, mas eram enormes, pelo menos com sessenta centímetros de largura. A trilha central tinha a mesma forma, mas com apenas três polegadas de largura, ou seja a largura de um pneumático de automóvel. As trilhas não apresentavam nenhum indício de pegadas e eram completamente frescas. Estendiam-se em linha reta, e os arbustos por elas atravessados tinham sido derrubados e esmagados no chão, como se um tanque de guerra tivesse passado por ali. Bond não podia imaginar que espécie de veículo seria aquele. A jovem tocou-o com o cotovelo e murmurou: — Eu lhe tinha dito. Ele apenas pôde responder pensativamente: — Bom, Honey, se não é o dragão, é algo que nunca vi antes.

Mais adiante, ela puxou-o ansiosamente pela manga. “Veja”, sussurrou, e apontou para a frente, indicando um grande cerrado de árvores, ao lado do qual passavam as trilhas. O cerrado estava sem folhas, enegrecido. Ao centro viam-se os restos dos ninhos de pássaros carbonizados. — Ele respirou sobre as árvores, — disse a garota nervosamente.

Bond aproximou-se das árvores e examinou-as. — Certamente que o fez — admitiu. Por que aquele cerrado, em especial, tinha sido queimado? Era muito estranho aquilo.

As trilhas desciam em direção ao lago e desapareciam na água. Bond teria gostado de segui-las, mas não poderia abandonar a cobertura das árvores. Assim, continuaram a marcha, cada um entregue aos próprios pensamentos.

Lentamente o dia começou a morrer, por trás da colina, e por fim a garota apontou para a frente, através dos arbustos; Bond pôde ver uma comprida restinga internando-se no lago. Estava coberta por densas moitas de arbustos e podiam-se ver, a cem metros da praia, os restos de uma cabana incendiada. Aquele parecia um lugar razoavelmente atraente para se passar a noite, e era bem protegido dos dois lados, pela água.

O vento tinha declinado e a água se apresentava suave e convidativa. Que prazer não seria tirarem as suas imundas camisas para um banho no lago e, depois de horas de patinhação através da lama e do lodo do pântano, poderem descansar naquela areia dura e seca!

O sol brilhou com reflexos amarelecidos e desapareceu por trás da montanha. Ainda era dia na extremidade oriental da ilha, mas a sombra negra do monte avançava vagarosamente sobre o lago e acabaria por expulsar completamente os últimos vestígios do sol. Os sapos começaram a coaxar mais barulhentamente que em Jamaica, até que a noite ficou cheia daquele áspero ruído. Do outro lado do lago um grande sapo macho começou a soar o seu tambor. Aquele estranho som era algo entre um tom-tom e um rosnado de macaco. Enviava mensagens que subitamente se interrompiam e logo silenciaram. Com certeza encontrara o que procurava.

Chegaram à garganta da restinga e seguiram por um estreito caminho, até a clareira que encerrava os escombros da cabana de sapé. As grandes e misteriosas trilhas saíam da água, de ambos os lados, atravessavam a clareira e os cerrados próximos. Muitos dos arbustos estavam queimados ou crestados. Podiam-se ver os restos de um fogão feito de pedaços de coral, e algumas panelas e latas vazias. Examinaram os destroços, e Quarrel desenterrou um par de latas intactas de costeletas de porco e ervilhas marca “Heinz”. A jovem encontrou ainda um saco de dormir muito amarrotado, enquanto Bond achou uma pequena bolsa de couro com cinco notas de um dólar, três libras de Jamaica e algumas moedas de prata. Os dois homens certamente tinham abandonado aquele lugar a toda pressa.

Prosseguiram mais para diante, até uma pequena clareira arenosa. Através dos arbustos podiam ver luzes cintilando sobre a água e provenientes da montanha, talvez a mais de três quilômetros de distância. A leste nada mais havia senão. os suaves reflexos escuros da água sob o céu sombrio.

Bond comentou: — Enquanto não acendermos nada, estaremos bem aqui. A primeira coisa a fazer é tomarmos um bom banho, Honey. Você pode ficar com o resto da restinga, que nós ficaremos com a sua garganta. Dentro de meia hora espero vê-la para o jantar.

A garota riu: — Você virá a rigor?

— Sem dúvida — respondeu Bond — e de calças.

Quarrel observou: — Capitão, enquanto ainda há um pouco de luz, vou abrir essas latas e preparar as coisas para a noite. — Remexeu dentro da mochila. — Aqui estão as suas calças e o seu revólver. O pão talvez não esteja muito bom, mas está apenas molhado. Pode-se comê-lo bem, e amanhã estará seco. O melhor talvez fosse comermos das latas esta noite, guardando o queijo e as costeletas. As latas são pesadas e amanhã teremos que andar muito.

Bond respondeu: — Muito bem, Quarrel. Deixarei o cardápio aos seus cuidados.

Em seguida, apanhou o revólver e as calças úmidas e desceu para a água rasa. A água estava acariciante, mas desagradavelmente quente. Bond escavou punhados de areia, com as mãos, e esfregou o corpo com ela, utilizando-a como sabonete. Depois deixou-se ficar gostosamente em meio àquele silêncio e àquela solidão.

As estrelas começaram a brilhar palidamente, as estrelas que os tinham trazido à ilha na noite passada; as estrelas que os tirariam dali no dia seguinte. Que viagem! Mas pelo menos já tinha dado os seus resultados. Agora tinha provas bastantes, e testemunhas, para ir ter com o governador e conseguir dele um inquérito completo acerca das atividades do Dr. No. Ninguém lança mão de metralhadoras contra pessoas, mesmo contra intrusos. E, da mesma forma, o que seria aquilo do Dr. No, que invadira a propriedade da Sociedade Audubon, aquilo que chegara a destruir essa propriedade e provavelmente matara um de seus empregados? Isto também teria que ser investigado. E o que haveria ele de encontrar quando voltasse pela porta da frente, talvez a bordo de um destróier, e com um destacamento de fuzileiros navais? Qual seria a resposta para o mistério do Dr. No? O que estaria ele escondendo? Por que aquele segredo era tão importante, que seria capaz de matar repetidas vezes, para preservá-lo? E quem era esse Dr. No?

Bond ouviu o barulho de alguém espojando-se na água. Pensou na garota. E quem, afinal, era Honeychile Ri-der? Aquilo pelo menos, pensou ele ao sair da água, era algo que deveria esclarecer antes do amanhecer.

Bond enfiou as suas pegajosas calças, sentou-se na areia e desmontou o revólver. Fê-lo pelo tato, utilizando-se de sua camisa para secar cada peça e cada cartucho. Depois, tornou a montar a arma e pressionou o gatilho, fazendo com que o tambor vazio desse uma volta completa. O som era satisfatório. Seriam precisos alguns dias para que o revólver começasse a enferrujar. Carregou-o e meteu-o no coldre, para dentro do cós da calça. Depois, levantou-se e voltou para a clareira.

A sombra de Honey chegou até ele, e a sua voz se fez ouvir: — Venha; estamos morrendo de fome. Apanhei uma das panelas, limpei-a e pusemos as ervilhas nela. Temos pão também. E eu não sinto escrúpulos de comer a sua ração, porque você me fez trabalhar muito mais do que se eu estivesse sozinha. Agora, estique a mão.

Bond achou graça no tom autoritário que havia em sua voz. Ele apenas podia perceber a sua silhueta, no escuro. Sua cabeça parecia mais aflada. Ele se perguntou como seriam os seus cabelos quando secos e penteados. Como seria ela quando estivesse vestindo roupas limpas naquele lindo corpo dourado? Podia vê-la entrando numa sala ou atravessando um vestíbulo em Beau Desert. Ela seria uma linda e encantadora Patinha Feia. Por que nunca procurara endireitar o nariz? Seria uma operação fácil. Depois disso, ela seria a jovem mais bela de Jamaica.

O seu ombro tocou nele. Bond esticou o braço e descansou a mão aberta no colo da jovem. Então Bond sentiu que ela estava enchendo a sua mão com ervilhas.

Subitamente, Bond aspirou o seu cheiro cálido de animal. Foi uma explosão sensual tão aguda que o seu corpo se uniu ao dela, e, por um momento, os seus olhos se fecharam.

Ela deixou escapar um riso curto, no qual havia timidez, satisfação e ternura. E disse, maternalmente: “Lá”, — e empurrou a mão de Bond.

 

CONTINUA

IX - POR UM TRIZ


Dez minutos mais tarde a baía estava vazia e imaculada. Pequenas ondas encrespavam-se preguiçosamente através do espelho das águas, no interior dos recifes e morriam exaustas na areia escura onde as conchas lilás brilhavam como unhas pintadas. O monte de conchas tinha desaparecido e não havia mais vestígios de pegadas. Quarrel cortara galhos de mangues e caminhava de costas procurando apagar as pegadas com aqueles galhos. Onde tinha varrido, a areia apresentava uma limpidez diferente mas não tão diferente a ponto de ser notada de fora do recife. A canoa da jovem tinha sido arrastada para dentro do mar, entre as rochas, e ali ficou coberta com algas e gravetos.

Quarrel tinha voltado ao promontório. Bond e a jovem estavam juntos, sob tufos de folhas, onde Bond dormira, e olhavam silenciosamente para o contorno do promontório, à volta do qual surgira a embarcação.

A lancha estava talvez a uns quinhentos metros de distância. A julgar pelo lento ritmo do motor, Bond concluiu que cada acidente da costa estava sendo cuidadosamente inspecionado para descobrir indícios da presença de estranhos. De qualquer forma, aquilo parecia uma possante embarcação. Talvez uma grande lancha de cabina. Que tripulação teria? Quem estaria no comando? O Dr. No? Improvável. Ele certamente não se daria àquele trabalho de polícia.

Do lado do ocidente apareceu um bando de corvos marinhos, voando baixo sobre o mar, além dos recifes. Bond observou-os. Eram o primeiro indício para ele encontrado daquela colônia de aves, na outra extremidade da ilha. Aquele bando, segundo Pleydell-Smith, seriam batedores à procura do brilho prateado das enchovas, próximas à superfície. Enquanto observava, as aves começaram a dar mergulhos rasos, ferindo o mar superficialmente e levantando respingos de água. Quase que de uma só vez, apareceu outra coluna de aves, vinda do ocidente, e logo outra, e mais outra, fundindo-se todas numa espessa e escura nuvem. Durante minutos, elas sombrearam o céu, e depois atiraram-se à água, cobrindo vários alqueires, piando e lutando, e mergulhando as cabeças no mar, fazendo uma rica colheita naquele sólido campo de anchovas, como piranhas que se banqueteassem num cavalo afogado.

Bond sentiu um suave toque da jovem, que fez um movimento com a cabeça, dizendo:

— As galinhas do chinês estão comendo milho.

Bond observou-lhe o rosto belo e feliz. Ela parecia bastante despreocupada com a chegada daqueles homens. Para ela aquilo era apenas o jogo de esconde-esconde que já tinha praticado antes.

A vibração metálica dos motores diesel estava-se tornando mais forte. A lancha deveria estar justamente por trás do promontório. Bond deu mais uma olhada à volta da tranqüila baía, e depois fixou os olhos através da folhagem e do mato, para os lados dos recifes.

A ponta de uma proa branca apareceu, seguida de uns dez metros de tombadilho, e logo o parabrisas de vidro, uma cabina baixa e uma antena de rádio, e o vulto de um homem à volta do leme. Finalmente, o comprido e achatado fosso da popa, e uma flâmula vermelha pendente, Seria uma lancha-torpedeira convertida, um excedente de guerra do governo britânico?

Os olhos de Bond fixaram-se nos dois homens que estavam em pé na popa. Eram negros de pele pálida, envergando roupas caqui de marinheiro, com largos cinturões e chapéus de palha com longas palas. Estavam um ao lado do outro, equilibrando-se sob a lenta elevação da massa líquida. Um deles segurava um alto-falante e o outro manejava uma metralhadora instalada num tripé. Bond teve a impressão de que era uma metralhadora “Spandau”.

O homem com o alto-falante deixou que este caísse, e ele ficou oscilando numa tira, que lhe dava volta ao pescoço. Apanhou um binóculo e começou a vasculhar metro a metro da praia. Indistintos comentários chegavam aos ouvidos de Bond, por entre o ruído dos motores.

Bond percebeu que os olhos do binóculo começavam pelo promontório e depois percorriam a areia. As lentes detiveram-se entre as rochas e continuaram o seu passeio. Depois, voltaram. O murmúrio do comentário elevou-se ganhando animação. O homem passou o binóculo para o metralhador, que observou rapidamente, devolvendo-o logo ao dono. O observador gritou alguma coisa para o timoneiro. A lancha começou a se aproximar da praia. Agora estavam justamente diante dos recifes, em frente a Bond e à jovem. O observador ergueu novamente o binóculo, apontando-o para as rochas onde se encontrava escondida a canoa da jovem. Novamente a fala excitada chegou aos ouvidos de Bond, por sobre as águas. Mais uma vez o binóculo foi passado ao metralhador, que levou algum tempo observando. Dessa vez, ele fez um sinal de assentimento com a cabeça.

Bond pensou: agora vamos ter coisa; esses homens conhecem o ofício. Em seguida, viu que o metralhador se ocupava em carregar a arma. O duplo estalido metálico chegou aos seus ouvidos, por entre o matraquear do motor.

O observador ergueu o alto-falante e ligou-o. O eco produzido pelo amplificador chegou até Bond, conduzido pela superfície da água. A voz do homem ribombou pela baía:

— Alô, pessoal! Saiam daí e não serão feridos. Era uma voz educada, com sotaque americano.

— Agora, pessoal — trovejou a voz — depressa! Nós vimos quando vocês desembarcaram. Já descobrimos o bote sob os paus. Não somos tolos e não estamos brincando. Saiam daí com os braços levantados e não lhes acontecerá nada!

Não se ouviu nenhuma resposta. Apenas as ondas quebravam docemente na praia. Bond podia ouvir a respiração da jovem. Os guinchos agudos dos corvos marinhos chegavam-lhes de uma milha de distância, sobre o mar. O cano de escapamento dos motores diesel produzia um ruído desigual e gorgulhante, quando o intumescimento do mar cobria o orifício de descarga.

Silenciosamente Bond tocou o braço da jovem e disse-lhe:

— Fique mais perto. Alvo menor.

Ele sentiu o calor da jovem mais próximo de seu corpo, e o rosto de Honey raspou pelo seu braço. Bond sussurrou:

— Enterre-se na areia. Encolha-se. Cada polegada a menos ajudará.

Ele começou a se encolher cuidadosamente na depressão que tinham escavado para se abrigarem, e sentiu que ela fazia o mesmo.

O homem estava erguendo o seu alto-falante. A voz ribombou novamente.

— Muito bem, pessoal! Vocês irão ver que isso aqui não é para brincadeira. — Depois, levantou o polegar. O metralhador experimentou a arma fazendo alguns disparos para a copa dos mangues situados por trás da praia. Bond ouviu o rápido matraquear, tão seu conhecido, e do qual se despedira pela última vez diante das linhas alemãs, nas Ardenas. As balas produziam o velho som de pombos assustados, assobiando sobre sua cabeça. Depois fez-se silêncio.

À distância, Bond via a nuvem negra de corvos marinhos elevar-se, começando a fazer os seus amplos círculos. Seus olhos voltaram para a embarcação. O metralhador estava apalpando o cano da metralhadora, para ver se já estava aquecido. Os dois homens trocaram algumas palavras. O observador apanhou novamente o porta-voz.

— Está bem, pessoal. Vocês foram avisados.

Bond viu o cano da “Spandau” levantar-se e abaixar-se. O homem estava querendo começar com a canoa, entre as rochas. Bond sussurrou para a jovem: — Muito bem, Honey. Agüente firme. Mantenha-se abaixada. Não vai durar muito.

Ele sentiu que a mão da jovem apertava o seu braço, e pensou: “Coitada; ela está metida nisso por minha causa.” Ele inclinou-se para a direita a fim de cobrir a cabeça de Honey e afundou o rosto na areia.

Dessa vez o matraquear foi terrível. Balas ricocheteavam no flanco do promontório. Fragmentos de pedra saltavam para todos os lados, sobre a praia. Outras balas ricocheteavam e iam perder-se dentro da mata. Simultaneamente com todo aquele barulho ouvia-se o martelar contínuo da metralhadora.

Houve uma pausa. Nova carga, pensou Bond. Agora será para nós. Pôde sentir a jovem agarrando-se a ele. Seu corpo tremia todo, encostado ao seu flanco. Bond apanhou uma arma e apertou-a de encontro ao corpo. O matraquear da metralhadora recomeçou. As balas vinham zunindo, da linha de maré, em direção a eles. Ouviu-se uma sucessão de rápidas batidas. O tufo, acima deles, estava sendo reduzido a pedaços. “Zuip Zuip Zuip”. Era como se um chicote de aço estivesse retalhando os arbustos. Pedaços de lenha caíam sobre eles, cobrindo-os lentamente. Bond respirou um ar mais fresco, o que significava que eles agora estavam ao ar-livre. Estariam eles escondidos pelas folhas o pelos destroços? As balas continuaram deslocando-se ao longo da linha da costa. Em menos de um minuto a metralhadora parou.

O silêncio tornou a reinar. A jovem lamuriou-se docemente. Bond fê-la calar-se e apertou-a mais forte.

O alto-falante apregoou:

— Está bem, pessoal. Se vocês ainda têm ouvidos, saibam que voltaremos logo para recolher-lhes os pedaços. Vamos trazer os cães. Até à vista, por enquanto.

O ritmo do motor se acelerou, e através das folhas Bond pôde ver a popa da lancha afundar-se mais na água, enquanto a embarcação rumava rapidamente para oeste. Dentro de minutos já não se ouvia mais nada.

Bond ergueu a cabeça cautelosamente. A baía estava serena, e tudo como antes, exceto o cheiro de cordite e as rochas quebradas.

Bond fez a jovem levantar-se. Havia marcas de lágrimas em seu rosto. Ela olhou-o aterrada, e disse:

— Isso foi terrível. Por que eles o fizeram? Podíamos ter sido mortos.

Bond pensou naquela jovem que sempre abrira caminho, na vida, por si mesma, mas apenas contra a natureza. Conhecia o mundo dos animais, dos insetos e dos peixes, e tirava todo o partido desse conhecimento. Mas aquele era um pequeno mundo, limitado pelo sol, pela lua e pelas estações. Ela não conhecia o grande mundo das salas cheias de fumo, dos corredores de negócios, dos corredores e antecâmaras governamentais, dos cautelosos encontros em bancos de praças — numa palavra: ela nada conhecia da luta pelo poder e pelo dinheiro, travada por homens poderosos.

Bond disse:

— É isso mesmo, Honey, eles não passam de uma quadrilha de bandidos assustados conosco. Podemos enfrentá-los.

Bond colocou o braço à volta de seus ombros e continuou:

— E você esteve maravilhosa, brava como ninguém. Agora, vamos ao encontro de Quarrel para traçar os nossos planos. De qualquer forma, já é tempo de comermos alguma coisa. O que é que você costuma comer nessas expedições?

Deram meia-volta e seguiram pela praia em direção ao promontório. Depois de um minuto, ela disse com voz bem controlada:

— Oh, há uma porção de coisas por aí que se podem comer. Ouriços do mar principalmente, mas também bananas silvestres e outras coisas. Eu como e durmo durante dois dias, antes de vir aqui. Não preciso de nada.

Bond apertou-a mais fortemente, mas deixou cair o braço, assim que Quarrel apareceu ao longe. Quarrel vinha saltando sobre as rochas, e, em determinado momento, parou, olhando para baixo. Bond e Honey se aproximaram dele. A canoa da jovem estava cortada ao meio pelas balas. Honey deixou escapar um grito, olhando desesperadamente para Bond:

— A minha canoa! Como poderei voltar?

— Não se preocupe, senhorita, — disse Quarrel, que sentia a perda de uma canoa mais do que Bond. Imaginou ainda que aquela embarcação representasse quase todo o capital da jovem. — O capitão lhe dará outra. E a senhorita voltará conosco. Temos um magnífico bote, entre os mangues, e ele não foi destruído. Já estive lá espiando.

Quarrel olhou para Bond. Agora, o seu rosto denotava preocupação.

— Mas, capitão, o senhor está vendo o que eu disse dessa gente. Eles são duros e não estão brincando. Esses cães que eles vão trazer são policiais — Pinschers, como eles os chamam. Bastardos. Meus amigos disseram-me que são uma matilha de vinte ou mais. É melhor resolvermos logo.

— Está bem, Quarrel. Mas antes de mais nada precisamos comer alguma coisa. — o diabo que me carregue se eu vou ser aterrorizado e expulso da ilha antes de dar uma olhada nisso. Levaremos Honey conosco. — E, voltando-se para a jovem:

— Está bem, Honey? Nada lhe acontecerá. Depois voltaremos juntos.

A jovem olhou-o em dúvida:

— Acho que não há alternativa. Quero dizer. Gostaria de ir com vocês, se não atrapalhasse. Francamente, não quero comer nada. Mas você me levará de volta, assim que puder? Não quero ver mais aquela gente. Durante quanto tempo vocês vão ficar olhando para essas aves?

Bond respondeu evasivamente:

— Pouco tempo. Eu terei apenas que ver o que lhes aconteceu e porquê. Depois, partiremos.

Olhou para o relógio e anunciou:

— Agora são doze horas. Você nos esperará aqui. Tome um banho ou faça o que quiser. Não ande por aí deixando pegadas. Vamos, Quarrel, é melhor escondermos aquele bote.

Só à uma hora eles estavam prontos. Bond e Quarrel encheram a canoa com pedras e areia, até que ela desapareceu sob a água, entre os mangues. Depois, apagaram as suas pegadas. As balas tinham deixado tantos gravetos na orla da praia, que eles podiam caminhar pisando em folhas e ramos quebrados. Comeram parte de suas rações — os homens com avidez, mas Honey com relutância — e depois, passando sobre as rochas, foram ter à lagoa, próxima da costa. Em seguida foram vadeando aquelas águas, em direção à foz do rio, trezentos metros praia abaixo.

Fazia muito calor. Um vento áspero e quente começou a soprar do nordeste. Quarrel informou que aquele vento soprava diariamente, durante todo o ano, e era vital para a guaneira, pois secava o guano. O revérbero do mar e das brilhantes folhas verdes dos mangues cegava-os. Bond deu-se por feliz, já que tivera o cuidado de acostumar sua pele ao sol.

Na foz do rio encontraram um banco de areia e um extenso pântano, profundo e de águas estagnadas. Os dois homens podiam molhar-se ou tirar as roupas. Bond disse à jovem:

— Honey, não podemos ter cerimônia, nesta situação. Vamos ficar apenas com as camisas por causa do sol. Fique apenas com o que for sensato e caminhe atrás de nós.

Sem esperar pela resposta da jovem, os dois homens tiraram as calças. Quarrel enrolou-as e guardou-as na sacola, juntamente com as provisões e o revólver de Bond. Depois começaram a vadear a lagoa, com Quarrel na frente, logo seguido de Bond, e, finalmente a jovem. A água chegou até a cintura de Bond. Um grande peixe prateado deu um salto perto deles e depois caiu ruidosamente na água. Viram-se pequeninas setas riscarem a superfície, quando peixes menores se afastaram precipitadamente.

A lagoa convergia para uma estreita garganta, por sobre a qual as copas dos mangues se tocavam. Durante algum tempo eles vadearam através de um túnel fresco, e depois o rio se alargou num canal profundo, de águas morosas, que serpeava para a frente, entre as gigantescas raízes de sustentação dos mangues. O fundo era lamacento, e a cada passo os pés se enterravam algumas polegadas no lodo. Pequenos peixes ou camarões se encolhiam ou fugiam de baixo de seus pés, e de quando em quando eles tinham que parar para se desembaraçar das sanguessugas, antes que elas se agarrassem firmemente. A não ser isso, aquela caminhada era fácil, sob o frescor das arvores, e, pelo menos para Bond, era uma bênção estar ao abrigo do sol.

Em breve, à medida que se iam afastando do mar, começaram a sentir um cheiro de ovo podre, o cheiro de hidrogênio sulfurado do gás dos pântanos. Os mosquitos começaram a assaltá-los e pareciam gostar do corpo de Bond. Quarrel disse-lhe que mergulhasse na água do rio, pois os mosquitos gostavam de carne salgada. Bond tirou a camisa e fez o que Quarrel lhe aconselhara. Depois disso sentiu-se melhor e o seu olfato chegou mesmo a se acostumar com aquele repugnante cheiro, a não ser quando os pés de Quarrel desfaziam algum bolsão de gás, no fundo da lama, e uma gigantesca bolha atravessava a água para arrebentar na superfície sob as suas narinas.

Os mangues começaram a se tornar mais escassos e mais esparsos, enquanto o rio se ia alargando aos poucos. Ao mesmo tempo, a água tornava-se mais rasa e o fundo mais firme. Logo chegaram a uma volta e saíram para céu aberto, Honey disse:

— É melhor tomarmos cuidado, agora. Eles poderão ver-nos com muita facilidade. Isso vai assim durante uma milha. Depois o rio torna a se estreitar até o lago. E depois se poderá ver a restinga onde os tratadores das aves viviam.

O grupo deteve-se à sombra do túnel de mangues e olhou para fora. O rio serpeava perigosamente, afastando-se deles, em direção ao centro da ilha. As suas barrancas, bordadas de bambus de pequeno porte e de vegetação rala, dar-lhes-íam cobertura reduzida. Partindo de sua margem ocidental, o terreno elevava-se aos poucos, e logo abruptamente até o monte, situado a três quilômetros de distância, que era a guaneira. Na base daquela montanha, viam-se várias cabanas esparsas. Um ziguezague prateado galgava o flanco da colina, até as tendas — trilhos “Decauville”, pensou Bond, destinados a levarem o guano para o moinho e separa-dor. O cume do monte era branco, como se estivesse coberto de neve. De sua parte mais elevada desprendia-se como que uma bandeira de dó de guano. Bond podia ver os pontos negros que eram os corvos marinhos, sobre o fundo branco. Aquelas aves estavam levantando vôo e pousando como abelhas numa colmeia.

Bond deixou-se ficar de pé e contemplou o brilho distante daquela montanha de excrementos de aves. Então aquilo era o reino do Dr. No! Bond pensou que jamais vira um cenário tão escondido e distante, em toda a sua vida.

Examinou o terreno entre o rio e a montanha. Parecia ser principalmente formado com aquela matéria cinzenta de corais mortos. Não havia dúvida de que uma estrada ou trilha corria da falda da montanha até ao lago central e aos pântanos. Bond notou ainda que toda a vegetação se curvava para oeste, e imaginou viver durante todo um ano com aquele vento escaldante castigando a ilha, sem falar do cheiro do guano e do gás dos pântanos. Nenhuma colônia penal poderia encontrar pior localização do que aquela.

Bond olhou para leste, onde os mangues, na área dos charcos, pareciam oferecer mais hospitalidade. Os três puseram-se a caminhar sobre um sólido tapete verde de vegetação. Sobre suas cabeças, aves revoluteavam agitadas, para depois se, acalmarem, e logo tornarem a agitar-se. Seus pios eram carregados pelo vento crestante.

A voz de Quarrel interrompeu os pensamentos de Bond:

— Eles vêm vindo, capitão!

Bond seguiu o olhar de Quarrel. Um grande caminhão descia celeremente das tendas, com uma nuvem de pó levantando-se das rodas. Bond acompanhou-o durante dez minutos, até que o veículo desapareceu entre os mangues, na margem do rio. Bond pôs-se a escutar e ouviu latidos de cães, que eram trazidos pelo vento.

Quarrel comentou:

— Eles vão descer pelo rio, capitão. Sabem que não nos podemos mover, a não ser rio acima, se não estivermos mortos. Certamente que descerão pelo rio, até a praia, e farão um reconhecimento dos destroços. Depois, com toda a certeza, a lancha virá com um pequeno bote e recolherá os homens e os cães. Pelo menos, isso é o que eu faria no lugar deles.

Honey disse: — Isso é, de fato, o que eles fazem quando me procuram. É isso mesmo. Basta que cortemos um pedaço de bambu, e, quando eles estiverem perto, mergulhemos na água, procurando respirar através do bambu, até que eles se afastem.

Bond sorriu para Quarrel, e disse: — Suponhamos que você corte os bambus, enquanto eu procuro um bom esconderijo entre os mangues.

Quarrel aquiesceu hesitante e começou a subir contra a corrente, em direção ao bambuzal, enquanto Bond se encaminhava para o túnel formado pelos mangues.

Bond evitara olhar para a jovem, mas esta disse-lhe com impaciência:

— Não precisa ter tanto cuidado em não olhar para mim. Não adianta se preocupar com tais coisas, numa hora dessas. Você mesmo o disse, ainda há pouco.

Bond virou-se e olhou para a jovem. Sua camisa esfrangalhada descia até a linha d’água. Podia-se ainda ter um vislumbre de pálidas coxas, serpeando sob a superfície. O lindo rosto sorriu para ele. No meio daqueles mangues, o seu nariz quebrado parecia harmonizar-se com o ambiente, pela sua animalidade.

Bond fitou-a descansadamente e ela compreendeu. Depois, ele deu-lhe as costas e desceu pela correnteza, seguido por ela. Logo encontrou o que procurava, isto é, uma fenda naquela parede formada pelas raízes dos mangues. Bond recomendou: — Não quebre nenhum galho. — Depois, baixou a cabeça e meteu-se por aquela brecha. O canal avançava numa distância de dez metros. A lama sob seus pés tornou-se mais mole e espessa. Chegou a uma sólida e intransponível parede de raízes. Aquela água escura fluía vagarosamente através de uma ampla e tranqüila lagoa. Bond deteve-se. A jovem se aproximou dele.

— Isto é mesmo uma brincadeira de esconde-esconde — disse ela, trêmula.

— É verdade — aquiesceu Bond distraidamente, enquanto pensava em seu revólver. Com efeito, ele preocupava-se em saber com que eficiência a arma operaria depois de um banho no rio — quantos cães e homens ele poderia eliminar, se fossem descobertos. Sentiu um estremecimento de inquietação. Tinha sido uma falta de sorte ter encontrado aquela jovem. Em combate, queira-se ou não, uma mulher representa sempre um coração a mais. O inimigo tem dois alvos enquanto apenas oferece um.

Bond lembrou-se de sua sede. Apanhou na concha da mão um pouco de água e bebeu-a. Aquela água era salobra e tinha gosto de terra. Mas servia. Bond bebeu um pouco mais. A jovem agitou a mão e deteve-o, dizendo:

— Não beba demais. Lave a boca e cuspa. Você pode apanhar febre.

Quarrel assobiou de algum ponto situado na corrente principal. Bond respondeu e foi em direção ao amigo. Depois, voltaram juntos, internando-se no canal. Quarrel borrifou as raízes de mangues com água, nos pontos em que os seus corpos talvez as tivessem raspado. “Para tirar o nosso cheiro”, explicou, laconicamente. Em seguida mostrou o seu feixe de bambus e começou a cortá-los e prepará-los. Enquanto isso, Bond se ocupava com seu revólver e a munição. Os três ficaram imóveis, no meio daquele pântano, de modo a não levantarem mais lama.

A luz do sol filtrava-se através do espesso teto de folhas, os camarões agitavam-se sob os pés daqueles três fugitivos. Gradativamente foi-se avolumando uma insuportável tensão, naquele silêncio escaldante e angustioso.

Foi quase um alívio ouvir-se o ladrar dos cães.


X - O RASTRO DO DRAGÃO


O grupo de investigação descia rapidamente pelo rio. Os dois homens, de calções de banho e altas botas impermeáveis, tinham que correr para acompanhar os cães.

Eram grandes negros chineses, que traziam coldres sustentados ao ombro por meio de talabartes cruzados diante dos peitos suados. De quando em quando trocavam gritos que em geral não passavam de imprecações. À frente deles a matilha de cães Dobermann nadava e debatia-se n’água, latindo excitadamente. Tinham farejado uma pista e procuravam segui-la nervosamente, com as orelhas eretas sobre as cabeças afladas.

— Talvez um maldito crocodilo, — gritou o chefe elevando a voz sobre a algazarra. Empunhava um chicote que de vez em quando fazia estalar no campo de caça.

Os outros homens se encaminhavam para ele. O chefe gritou excitadamente: “Aposto que é o gringo inglês! Tenho certeza de que ele está entre os mangues. Cuidado para que o gringo não nos faça cair numa emboscada.” O homem tirou o revólver do coldre e colocou-o sob o sovaco, sem tirar a mão da coronha.

O grupo agora estava deixando a parte do rio, sob céu aberto, e entrando no túnel formado pelos mangues. O primeiro homem tinha um apito, que se projetava de seu largo rosto como um toco de charuto. Fez soar um agudo silvo. Quando os cães avançaram, ele se deixou ficar com o seu chicote junto do chefe. Os animais continuavam farejando, lamuriando-se porque a corrente os obrigava a desobedecer às ordens recebidas. Os dois homens sacaram os revólveres e vadearam lentamente o rio, na mesma direção da corrente, por entre os caules tortuosos dos mangues.

O homem que ia na frente chegou ao estreito canal que Bond tinha encontrado, agarrou um dos cães pela co-leira e lançou-o ao canal. O animal resfolegou ansiosamente e debateu-se para a frente. Os olhos do homem percorreram as raízes dos mangues, de ambos os lados do canal, para ver se apresentavam algum arranhão.

O cão e o homem chegaram ao pequeno lago situado na extremidade do canal. O homem olhou à sua volta, com ar animado. Tornou a agarrar o cão pela coleira e puxou-o para trás. O animal relutava em abandonar o lugar. Então, o homem feriu a água com o chicote.

O segundo homem estivera esperando à entrada do canal. O primeiro saiu daquele pequeno remanso e sacudiu a cabeça, descendo a corrente, com os cães, que agora se mostravam menos excitados, nadando à frente.

Lentamente, a algazarra da perseguição foi diminuindo e desapareceu.

Por mais cinco minutos nada se mexeu na laguna dos mangues; depois, num dos cantos, entre as raízes, apareceu lentamente para fora d’água um fino periscópio de bambu. O rosto de Bond emergiu logo em seguida, com os cabelos molhados colados à testa, como a cara de um cadáver que boiasse. Em sua mão direita, sob a água, o revólver estava pronto. Bond procurou escutar cuidadosamente. O silêncio era completo, não havia o mínimo ruído. Ou haveria? O que seria aquele suave barulho, como se algo deslizasse entre a água, na corrente principal? Viria alguém, muito serenamente, seguindo na esteira daquela caçada? Bond procurou apalpar à sua volta e tocou delicadamente nos dois corpos que estavam cada um em um de seus flancos, entre as raízes, na orla da laguna. Quando os dois rostos aforaram à superfície, ele colocou o seu dedo indicador sobre os lábios, mas já era tarde. Quarrel tinha tossido e cuspido. Bond fez uma careta e fez um sinal na direção da principal corrente. Todos procuravam escutar. O ruído recomeçou. Alguém estava-se dirigindo para o canal lateral. Os tubos de bambu voltaram para as três bocas e as cabeças tornaram a submergir. Debaixo da água Bond descansou a cabeça na lama, apertou as narinas e os lábios à volta do tubo. Sabia que a laguna já fora examinada uma vez, pois sentira a agitação causada na água pelo cão, que passara nadando! Da primeira vez não tinham sido achados, mas conseguiriam escapar desta? Agora haveria menos possibilidades de que a lama revolta se escoasse para fora da laguna. Se esse batedor visse a mancha mais escura, na água, atiraria ou usaria um punhal? Que armas traria? Bond resolveu não correr riscos. Ao primeiro rumor de movimento, ao seu lado, ele se poria de pé e daria logo ao gatilho, esperando pelo melhor.

Assim ficou ele, submerso, com todos os sentidos atentos. Como era desagradável aquele respirar controlado e insuportáveis as ligeiras mordidelas dos camarões! Por sorte nenhum deles tinha qualquer ferida no corpo, pois do contrário os malditos animalzinhos ter-se-iam atirado contra elas. De qualquer forma, aquela fora uma brilhante idéia da jovem. Sem ela os cães já os teriam alcançado, onde quer que eles se tivessem escondido.

Inesperadamente, Bond encolheu-se. Uma bota de borracha tinha pisado em seu queixo e escorregado. O homem pensaria tratar-se de um galho de árvore? Bond não podia correr aquele risco. Com um só impulso pôs-se de pé, atirando para longe o pedaço de bambu.

Bond teve uma rápida impressão de um gigantesco corpo de pé, quase em cima de si, e duma coronha de rife, em rápido movimento. Levantou o braço esquerdo para proteger a cabeça e recebeu um violento golpe no braço. Ao mesmo tempo, o seu braço direito se esticou para a frente, e, quando o cano tocou no lado direito do peito, sob o mamilo, ele acionou o gatilho.

O coice da arma, quase encostada ao corpo do homem, por pouco não quebrou o pulso de Bond, mas o homem desabou para trás como uma árvore decepada que cai n’água. Antes que o corpo afundasse, Bond ainda pôde perceber-lhe uma grande fenda no flanco. A cabeça, uma cabeça negróide de chinês, veio à superfície, com os olhos revirados para cima e a água a sair de sua boca escancarada e silenciosa. Em seguida a cabeça submergiu novamente e nada mais se pôde ver senão uma lama espumosa e uma mancha vermelha que gradualmente se ia ampliando e lentamente era atraída pela corrente.

Bond se endireitou e voltou-se para o lado. Quarrel e a jovem estavam atrás, em pé, com a água a escorrer-lhes dos corpos. Quarrel tinha um sorriso que ia de orelha a orelha, mas a garota mordia as articulações dos dedos, enquanto seus olhos se escancaravam horrorizados diante da água avermelhada.

Bond disse laconicamente: “Desculpe-me, Honey. Tinha que ser feito. Ele estava bem sobre nós. Venha, vamos indo.” Agarrou-a de qualquer maneira, pelo braço, e arrastou-a para fora da principal corrente, apenas detendo-se quando chegaram a rio aberto, na boca do túnel de mangues.

O cenário estava novamente vazio. Bond olhou para o relógio, e verificou que parara às três horas. Olhou para o sol, já bastante deslocado para o ocidente e concluiu que deveriam ser quatro horas. Quanto ainda teriam que caminhar? Bond inesperadamente sentiu-se cansado. Agora teria de enfrentar a situação. Ainda que o disparo não tivesse sido ouvido — e certamente que ele fora abafado pelo próprio corpo da vítima e pelas árvores — a falta do homem seria sentida quando os outros se reunissem, — se a suposição de Quarrel fosse correta, na embocadura do rio, de onde seriam recolhidos pela lancha. Voltariam eles, subindo o rio, a fim de procurarem o desaparecido? Talvez não. Já estaria muito escuro quando eles tivessem a certeza de que o homem estava realmente desaparecido. O mais certo seria mandarem um grupo de homens pela manhã. Os cães facilmente dariam com o corpo. E o que aconteceria?

A garota puxou-o pela manga e disse com irritação: — Já é tempo de você me dizer o que significa tudo isto! Por que estão todos procurando se matar mutuamente? E quem é você? Não acredito em toda essa história de aves. Ninguém carrega revólveres contra aves.

Bond baixou o olhar, fitando aqueles olhos bem separados e irados. — Desculpe-me, Honey. Receio tê-la arrastado para uma boa encrenca. Eu lhe contarei tudo quando voltarmos à noite para o acampamento. Foi apenas má sorte que você se envolvesse comigo, desta maneira. Tenho uma guerrinha com essa gente. Eles parecem querer matar-me. Agora estou apenas interessado em que todos nós saiamos desta ilha sem que ninguém fique ferido. Já tenho muito do que queria, para da próxima vez voltar pela porta da frente.

— O que você quer dizer? Você é alguma espécie de policial? Está querendo meter esse chinês na cadeia?

— Mais ou menos, — disse Bond, rindo para ela. — Pelo menos você está do lado dos anjos. Agora, diga-me uma coisa. Quanto falta ainda para chegar ao acampamento dos guardas?

— Oh, cerca de uma hora.

— É um lugar bom para nele esconder-se? Eles poderiam achar-nos com facilidade?

— Eles teriam que atravessar o lago ou subir o rio. Tudo estará muito bem se eles não puserem o dragão em nosso encalço. Ele pode muito bem atravessar a água, pois já o vi fazê-lo.

— Bem — disse Bond diplomaticamente — esperemos que ele esteja com a cauda machucada, ou tenha outra coisa qualquer.

A jovem vociferou: — Muito bem, sr. Sabe-Tudo. — E acrescentou irritada: — Espere e verá.

Quarrel deixou o túnel de mangues, agitando ruidosamente a água, tendo na mão o rife do chinês abatido, e dizendo à guisa de quem pede desculpas:

— Não há mal em termos outra arma, chefe. Parece que vamos precisar dela.

Bond apanhou aquela arma. Era uma carabina “Remington”, do exército norte-americano, calibre 300. Não havia dúvida de que aquela gente contava com equipamento apropriado. Bond devolveu a arma a Quarrel, depois de examiná-la.

Quarrel como que fez eco aos seus pensamentos: — Isso é gente astuta, capitão. Aquele homem veio esquadrinhando suavemente, atrás dos outros, a fim de nos surpreender quando deixássemos o esconderijo, depois da passagem dos cães. Esse tal de doutor com certeza é um sujeito muito esperto.

Bond disse pensativamente: — É, ele deve ser um homem incomum. — Depois espantou os pensamentos: — Agora, vamos tocando para a frente. Honey diz que ainda precisamos de uma hora para chegarmos ao acampamento. É melhor irmos pela margem esquerda, de modo a ficarmos ao abrigo da colina. Pelo que já pudemos ver, eles têm lunetas assestadas sobre o rio.

Bond entregou a sua arma a Quarrel, que a guardou na mochila molhada. Puseram-se novamente em marcha, com Quarrel à frente, e Bond e a jovem andando juntos, atrás.

Aproveitavam algumas sombras das árvores e bambus da margem ocidental, mas deviam agora suportar toda a intensidade de um vento crestante. Borrifaram braços e corpos com água, a fim de refrescar as queimaduras. Os olhos de Bond estavam injetados por aquele insuportável revérbero e o seu braço doía intoleràvelmente no ponto em que fora atingido pela coronha. E ele não teria à sua espera o seu jantar de pão embebido, queijo e fiambre. Quanto tempo poderiam dormir? Não dormira muito na véspera, e parece que não iria ter melhor ração de sono. E a garota? Ela nada dormira. Ele e Quarrel teriam que se revezar, em quartos de vigilância. E logo chegaria o dia seguinte, quando procurariam ganhar novamente os mangues e vencer lentamente a distância que os separava de sua canoa, através da extremidade oriental da ilha. As coisas correriam daquela forma, segundo era de esperar. Então, tratariam de se fazerem ao mar na noite seguinte. Bond pensou em como haveria de abrir caminho por entre sólidos mangues, na distância de oito quilômetros. Que perspectiva! Continuou se arrastando para a frente, pensando nas “férias ao sol dos trópicos” de M. Muito gostaria que M tivesse que partilhar com ele aquelas “férias”.

O rio foi-se estreitando até que se reduziu a uma simples corrente entre as moitas de bambu. Depois se ampliava num estuário baixo e pantanoso, além do qual as cinco milhas quadradas de lago raso davam vazão para o outro lado da ilha, perdendo-se num agitado espelho líquido azul-cinza. Mais para além estava a brilhante pista aérea e o reflexo da luz solar sobre um único hangar. A jovem disse-lhe que se mantivesse na direção leste, e eles foram lentamente avançando, protegidos pela orla da mata.

Inesperadamente, Quarrel deteve-se, com o rosto esticado como o focinho de um cão para o terreno pantanoso à sua frente. Dois profundos sulcos tinham sido escavados na lama, com um sulco mais raso no centro. Eram a trilha de algo que tinha descido da colina e atravessado o pântano em direção ao lago.

A jovem disse com indiferença: — Por aqui já passou o dragão.

Quarrel arregalou os olhos para ela.

Bond caminhou lentamente pela trilha. As marcas exteriores eram bastante lisas, trazendo a marca de uma linha curva. Poderiam ter sido causadas por rodas, mas eram enormes, pelo menos com sessenta centímetros de largura. A trilha central tinha a mesma forma, mas com apenas três polegadas de largura, ou seja a largura de um pneumático de automóvel. As trilhas não apresentavam nenhum indício de pegadas e eram completamente frescas. Estendiam-se em linha reta, e os arbustos por elas atravessados tinham sido derrubados e esmagados no chão, como se um tanque de guerra tivesse passado por ali. Bond não podia imaginar que espécie de veículo seria aquele. A jovem tocou-o com o cotovelo e murmurou: — Eu lhe tinha dito. Ele apenas pôde responder pensativamente: — Bom, Honey, se não é o dragão, é algo que nunca vi antes.

Mais adiante, ela puxou-o ansiosamente pela manga. “Veja”, sussurrou, e apontou para a frente, indicando um grande cerrado de árvores, ao lado do qual passavam as trilhas. O cerrado estava sem folhas, enegrecido. Ao centro viam-se os restos dos ninhos de pássaros carbonizados. — Ele respirou sobre as árvores, — disse a garota nervosamente.

Bond aproximou-se das árvores e examinou-as. — Certamente que o fez — admitiu. Por que aquele cerrado, em especial, tinha sido queimado? Era muito estranho aquilo.

As trilhas desciam em direção ao lago e desapareciam na água. Bond teria gostado de segui-las, mas não poderia abandonar a cobertura das árvores. Assim, continuaram a marcha, cada um entregue aos próprios pensamentos.

Lentamente o dia começou a morrer, por trás da colina, e por fim a garota apontou para a frente, através dos arbustos; Bond pôde ver uma comprida restinga internando-se no lago. Estava coberta por densas moitas de arbustos e podiam-se ver, a cem metros da praia, os restos de uma cabana incendiada. Aquele parecia um lugar razoavelmente atraente para se passar a noite, e era bem protegido dos dois lados, pela água.

O vento tinha declinado e a água se apresentava suave e convidativa. Que prazer não seria tirarem as suas imundas camisas para um banho no lago e, depois de horas de patinhação através da lama e do lodo do pântano, poderem descansar naquela areia dura e seca!

O sol brilhou com reflexos amarelecidos e desapareceu por trás da montanha. Ainda era dia na extremidade oriental da ilha, mas a sombra negra do monte avançava vagarosamente sobre o lago e acabaria por expulsar completamente os últimos vestígios do sol. Os sapos começaram a coaxar mais barulhentamente que em Jamaica, até que a noite ficou cheia daquele áspero ruído. Do outro lado do lago um grande sapo macho começou a soar o seu tambor. Aquele estranho som era algo entre um tom-tom e um rosnado de macaco. Enviava mensagens que subitamente se interrompiam e logo silenciaram. Com certeza encontrara o que procurava.

Chegaram à garganta da restinga e seguiram por um estreito caminho, até a clareira que encerrava os escombros da cabana de sapé. As grandes e misteriosas trilhas saíam da água, de ambos os lados, atravessavam a clareira e os cerrados próximos. Muitos dos arbustos estavam queimados ou crestados. Podiam-se ver os restos de um fogão feito de pedaços de coral, e algumas panelas e latas vazias. Examinaram os destroços, e Quarrel desenterrou um par de latas intactas de costeletas de porco e ervilhas marca “Heinz”. A jovem encontrou ainda um saco de dormir muito amarrotado, enquanto Bond achou uma pequena bolsa de couro com cinco notas de um dólar, três libras de Jamaica e algumas moedas de prata. Os dois homens certamente tinham abandonado aquele lugar a toda pressa.

Prosseguiram mais para diante, até uma pequena clareira arenosa. Através dos arbustos podiam ver luzes cintilando sobre a água e provenientes da montanha, talvez a mais de três quilômetros de distância. A leste nada mais havia senão. os suaves reflexos escuros da água sob o céu sombrio.

Bond comentou: — Enquanto não acendermos nada, estaremos bem aqui. A primeira coisa a fazer é tomarmos um bom banho, Honey. Você pode ficar com o resto da restinga, que nós ficaremos com a sua garganta. Dentro de meia hora espero vê-la para o jantar.

A garota riu: — Você virá a rigor?

— Sem dúvida — respondeu Bond — e de calças.

Quarrel observou: — Capitão, enquanto ainda há um pouco de luz, vou abrir essas latas e preparar as coisas para a noite. — Remexeu dentro da mochila. — Aqui estão as suas calças e o seu revólver. O pão talvez não esteja muito bom, mas está apenas molhado. Pode-se comê-lo bem, e amanhã estará seco. O melhor talvez fosse comermos das latas esta noite, guardando o queijo e as costeletas. As latas são pesadas e amanhã teremos que andar muito.

Bond respondeu: — Muito bem, Quarrel. Deixarei o cardápio aos seus cuidados.

Em seguida, apanhou o revólver e as calças úmidas e desceu para a água rasa. A água estava acariciante, mas desagradavelmente quente. Bond escavou punhados de areia, com as mãos, e esfregou o corpo com ela, utilizando-a como sabonete. Depois deixou-se ficar gostosamente em meio àquele silêncio e àquela solidão.

As estrelas começaram a brilhar palidamente, as estrelas que os tinham trazido à ilha na noite passada; as estrelas que os tirariam dali no dia seguinte. Que viagem! Mas pelo menos já tinha dado os seus resultados. Agora tinha provas bastantes, e testemunhas, para ir ter com o governador e conseguir dele um inquérito completo acerca das atividades do Dr. No. Ninguém lança mão de metralhadoras contra pessoas, mesmo contra intrusos. E, da mesma forma, o que seria aquilo do Dr. No, que invadira a propriedade da Sociedade Audubon, aquilo que chegara a destruir essa propriedade e provavelmente matara um de seus empregados? Isto também teria que ser investigado. E o que haveria ele de encontrar quando voltasse pela porta da frente, talvez a bordo de um destróier, e com um destacamento de fuzileiros navais? Qual seria a resposta para o mistério do Dr. No? O que estaria ele escondendo? Por que aquele segredo era tão importante, que seria capaz de matar repetidas vezes, para preservá-lo? E quem era esse Dr. No?

Bond ouviu o barulho de alguém espojando-se na água. Pensou na garota. E quem, afinal, era Honeychile Ri-der? Aquilo pelo menos, pensou ele ao sair da água, era algo que deveria esclarecer antes do amanhecer.

Bond enfiou as suas pegajosas calças, sentou-se na areia e desmontou o revólver. Fê-lo pelo tato, utilizando-se de sua camisa para secar cada peça e cada cartucho. Depois, tornou a montar a arma e pressionou o gatilho, fazendo com que o tambor vazio desse uma volta completa. O som era satisfatório. Seriam precisos alguns dias para que o revólver começasse a enferrujar. Carregou-o e meteu-o no coldre, para dentro do cós da calça. Depois, levantou-se e voltou para a clareira.

A sombra de Honey chegou até ele, e a sua voz se fez ouvir: — Venha; estamos morrendo de fome. Apanhei uma das panelas, limpei-a e pusemos as ervilhas nela. Temos pão também. E eu não sinto escrúpulos de comer a sua ração, porque você me fez trabalhar muito mais do que se eu estivesse sozinha. Agora, estique a mão.

Bond achou graça no tom autoritário que havia em sua voz. Ele apenas podia perceber a sua silhueta, no escuro. Sua cabeça parecia mais aflada. Ele se perguntou como seriam os seus cabelos quando secos e penteados. Como seria ela quando estivesse vestindo roupas limpas naquele lindo corpo dourado? Podia vê-la entrando numa sala ou atravessando um vestíbulo em Beau Desert. Ela seria uma linda e encantadora Patinha Feia. Por que nunca procurara endireitar o nariz? Seria uma operação fácil. Depois disso, ela seria a jovem mais bela de Jamaica.

O seu ombro tocou nele. Bond esticou o braço e descansou a mão aberta no colo da jovem. Então Bond sentiu que ela estava enchendo a sua mão com ervilhas.

Subitamente, Bond aspirou o seu cheiro cálido de animal. Foi uma explosão sensual tão aguda que o seu corpo se uniu ao dela, e, por um momento, os seus olhos se fecharam.

Ela deixou escapar um riso curto, no qual havia timidez, satisfação e ternura. E disse, maternalmente: “Lá”, — e empurrou a mão de Bond.

 

CONTINUA

IX - POR UM TRIZ


Dez minutos mais tarde a baía estava vazia e imaculada. Pequenas ondas encrespavam-se preguiçosamente através do espelho das águas, no interior dos recifes e morriam exaustas na areia escura onde as conchas lilás brilhavam como unhas pintadas. O monte de conchas tinha desaparecido e não havia mais vestígios de pegadas. Quarrel cortara galhos de mangues e caminhava de costas procurando apagar as pegadas com aqueles galhos. Onde tinha varrido, a areia apresentava uma limpidez diferente mas não tão diferente a ponto de ser notada de fora do recife. A canoa da jovem tinha sido arrastada para dentro do mar, entre as rochas, e ali ficou coberta com algas e gravetos.

Quarrel tinha voltado ao promontório. Bond e a jovem estavam juntos, sob tufos de folhas, onde Bond dormira, e olhavam silenciosamente para o contorno do promontório, à volta do qual surgira a embarcação.

A lancha estava talvez a uns quinhentos metros de distância. A julgar pelo lento ritmo do motor, Bond concluiu que cada acidente da costa estava sendo cuidadosamente inspecionado para descobrir indícios da presença de estranhos. De qualquer forma, aquilo parecia uma possante embarcação. Talvez uma grande lancha de cabina. Que tripulação teria? Quem estaria no comando? O Dr. No? Improvável. Ele certamente não se daria àquele trabalho de polícia.

Do lado do ocidente apareceu um bando de corvos marinhos, voando baixo sobre o mar, além dos recifes. Bond observou-os. Eram o primeiro indício para ele encontrado daquela colônia de aves, na outra extremidade da ilha. Aquele bando, segundo Pleydell-Smith, seriam batedores à procura do brilho prateado das enchovas, próximas à superfície. Enquanto observava, as aves começaram a dar mergulhos rasos, ferindo o mar superficialmente e levantando respingos de água. Quase que de uma só vez, apareceu outra coluna de aves, vinda do ocidente, e logo outra, e mais outra, fundindo-se todas numa espessa e escura nuvem. Durante minutos, elas sombrearam o céu, e depois atiraram-se à água, cobrindo vários alqueires, piando e lutando, e mergulhando as cabeças no mar, fazendo uma rica colheita naquele sólido campo de anchovas, como piranhas que se banqueteassem num cavalo afogado.

Bond sentiu um suave toque da jovem, que fez um movimento com a cabeça, dizendo:

— As galinhas do chinês estão comendo milho.

Bond observou-lhe o rosto belo e feliz. Ela parecia bastante despreocupada com a chegada daqueles homens. Para ela aquilo era apenas o jogo de esconde-esconde que já tinha praticado antes.

A vibração metálica dos motores diesel estava-se tornando mais forte. A lancha deveria estar justamente por trás do promontório. Bond deu mais uma olhada à volta da tranqüila baía, e depois fixou os olhos através da folhagem e do mato, para os lados dos recifes.

A ponta de uma proa branca apareceu, seguida de uns dez metros de tombadilho, e logo o parabrisas de vidro, uma cabina baixa e uma antena de rádio, e o vulto de um homem à volta do leme. Finalmente, o comprido e achatado fosso da popa, e uma flâmula vermelha pendente, Seria uma lancha-torpedeira convertida, um excedente de guerra do governo britânico?

Os olhos de Bond fixaram-se nos dois homens que estavam em pé na popa. Eram negros de pele pálida, envergando roupas caqui de marinheiro, com largos cinturões e chapéus de palha com longas palas. Estavam um ao lado do outro, equilibrando-se sob a lenta elevação da massa líquida. Um deles segurava um alto-falante e o outro manejava uma metralhadora instalada num tripé. Bond teve a impressão de que era uma metralhadora “Spandau”.

O homem com o alto-falante deixou que este caísse, e ele ficou oscilando numa tira, que lhe dava volta ao pescoço. Apanhou um binóculo e começou a vasculhar metro a metro da praia. Indistintos comentários chegavam aos ouvidos de Bond, por entre o ruído dos motores.

Bond percebeu que os olhos do binóculo começavam pelo promontório e depois percorriam a areia. As lentes detiveram-se entre as rochas e continuaram o seu passeio. Depois, voltaram. O murmúrio do comentário elevou-se ganhando animação. O homem passou o binóculo para o metralhador, que observou rapidamente, devolvendo-o logo ao dono. O observador gritou alguma coisa para o timoneiro. A lancha começou a se aproximar da praia. Agora estavam justamente diante dos recifes, em frente a Bond e à jovem. O observador ergueu novamente o binóculo, apontando-o para as rochas onde se encontrava escondida a canoa da jovem. Novamente a fala excitada chegou aos ouvidos de Bond, por sobre as águas. Mais uma vez o binóculo foi passado ao metralhador, que levou algum tempo observando. Dessa vez, ele fez um sinal de assentimento com a cabeça.

Bond pensou: agora vamos ter coisa; esses homens conhecem o ofício. Em seguida, viu que o metralhador se ocupava em carregar a arma. O duplo estalido metálico chegou aos seus ouvidos, por entre o matraquear do motor.

O observador ergueu o alto-falante e ligou-o. O eco produzido pelo amplificador chegou até Bond, conduzido pela superfície da água. A voz do homem ribombou pela baía:

— Alô, pessoal! Saiam daí e não serão feridos. Era uma voz educada, com sotaque americano.

— Agora, pessoal — trovejou a voz — depressa! Nós vimos quando vocês desembarcaram. Já descobrimos o bote sob os paus. Não somos tolos e não estamos brincando. Saiam daí com os braços levantados e não lhes acontecerá nada!

Não se ouviu nenhuma resposta. Apenas as ondas quebravam docemente na praia. Bond podia ouvir a respiração da jovem. Os guinchos agudos dos corvos marinhos chegavam-lhes de uma milha de distância, sobre o mar. O cano de escapamento dos motores diesel produzia um ruído desigual e gorgulhante, quando o intumescimento do mar cobria o orifício de descarga.

Silenciosamente Bond tocou o braço da jovem e disse-lhe:

— Fique mais perto. Alvo menor.

Ele sentiu o calor da jovem mais próximo de seu corpo, e o rosto de Honey raspou pelo seu braço. Bond sussurrou:

— Enterre-se na areia. Encolha-se. Cada polegada a menos ajudará.

Ele começou a se encolher cuidadosamente na depressão que tinham escavado para se abrigarem, e sentiu que ela fazia o mesmo.

O homem estava erguendo o seu alto-falante. A voz ribombou novamente.

— Muito bem, pessoal! Vocês irão ver que isso aqui não é para brincadeira. — Depois, levantou o polegar. O metralhador experimentou a arma fazendo alguns disparos para a copa dos mangues situados por trás da praia. Bond ouviu o rápido matraquear, tão seu conhecido, e do qual se despedira pela última vez diante das linhas alemãs, nas Ardenas. As balas produziam o velho som de pombos assustados, assobiando sobre sua cabeça. Depois fez-se silêncio.

À distância, Bond via a nuvem negra de corvos marinhos elevar-se, começando a fazer os seus amplos círculos. Seus olhos voltaram para a embarcação. O metralhador estava apalpando o cano da metralhadora, para ver se já estava aquecido. Os dois homens trocaram algumas palavras. O observador apanhou novamente o porta-voz.

— Está bem, pessoal. Vocês foram avisados.

Bond viu o cano da “Spandau” levantar-se e abaixar-se. O homem estava querendo começar com a canoa, entre as rochas. Bond sussurrou para a jovem: — Muito bem, Honey. Agüente firme. Mantenha-se abaixada. Não vai durar muito.

Ele sentiu que a mão da jovem apertava o seu braço, e pensou: “Coitada; ela está metida nisso por minha causa.” Ele inclinou-se para a direita a fim de cobrir a cabeça de Honey e afundou o rosto na areia.

Dessa vez o matraquear foi terrível. Balas ricocheteavam no flanco do promontório. Fragmentos de pedra saltavam para todos os lados, sobre a praia. Outras balas ricocheteavam e iam perder-se dentro da mata. Simultaneamente com todo aquele barulho ouvia-se o martelar contínuo da metralhadora.

Houve uma pausa. Nova carga, pensou Bond. Agora será para nós. Pôde sentir a jovem agarrando-se a ele. Seu corpo tremia todo, encostado ao seu flanco. Bond apanhou uma arma e apertou-a de encontro ao corpo. O matraquear da metralhadora recomeçou. As balas vinham zunindo, da linha de maré, em direção a eles. Ouviu-se uma sucessão de rápidas batidas. O tufo, acima deles, estava sendo reduzido a pedaços. “Zuip Zuip Zuip”. Era como se um chicote de aço estivesse retalhando os arbustos. Pedaços de lenha caíam sobre eles, cobrindo-os lentamente. Bond respirou um ar mais fresco, o que significava que eles agora estavam ao ar-livre. Estariam eles escondidos pelas folhas o pelos destroços? As balas continuaram deslocando-se ao longo da linha da costa. Em menos de um minuto a metralhadora parou.

O silêncio tornou a reinar. A jovem lamuriou-se docemente. Bond fê-la calar-se e apertou-a mais forte.

O alto-falante apregoou:

— Está bem, pessoal. Se vocês ainda têm ouvidos, saibam que voltaremos logo para recolher-lhes os pedaços. Vamos trazer os cães. Até à vista, por enquanto.

O ritmo do motor se acelerou, e através das folhas Bond pôde ver a popa da lancha afundar-se mais na água, enquanto a embarcação rumava rapidamente para oeste. Dentro de minutos já não se ouvia mais nada.

Bond ergueu a cabeça cautelosamente. A baía estava serena, e tudo como antes, exceto o cheiro de cordite e as rochas quebradas.

Bond fez a jovem levantar-se. Havia marcas de lágrimas em seu rosto. Ela olhou-o aterrada, e disse:

— Isso foi terrível. Por que eles o fizeram? Podíamos ter sido mortos.

Bond pensou naquela jovem que sempre abrira caminho, na vida, por si mesma, mas apenas contra a natureza. Conhecia o mundo dos animais, dos insetos e dos peixes, e tirava todo o partido desse conhecimento. Mas aquele era um pequeno mundo, limitado pelo sol, pela lua e pelas estações. Ela não conhecia o grande mundo das salas cheias de fumo, dos corredores de negócios, dos corredores e antecâmaras governamentais, dos cautelosos encontros em bancos de praças — numa palavra: ela nada conhecia da luta pelo poder e pelo dinheiro, travada por homens poderosos.

Bond disse:

— É isso mesmo, Honey, eles não passam de uma quadrilha de bandidos assustados conosco. Podemos enfrentá-los.

Bond colocou o braço à volta de seus ombros e continuou:

— E você esteve maravilhosa, brava como ninguém. Agora, vamos ao encontro de Quarrel para traçar os nossos planos. De qualquer forma, já é tempo de comermos alguma coisa. O que é que você costuma comer nessas expedições?

Deram meia-volta e seguiram pela praia em direção ao promontório. Depois de um minuto, ela disse com voz bem controlada:

— Oh, há uma porção de coisas por aí que se podem comer. Ouriços do mar principalmente, mas também bananas silvestres e outras coisas. Eu como e durmo durante dois dias, antes de vir aqui. Não preciso de nada.

Bond apertou-a mais fortemente, mas deixou cair o braço, assim que Quarrel apareceu ao longe. Quarrel vinha saltando sobre as rochas, e, em determinado momento, parou, olhando para baixo. Bond e Honey se aproximaram dele. A canoa da jovem estava cortada ao meio pelas balas. Honey deixou escapar um grito, olhando desesperadamente para Bond:

— A minha canoa! Como poderei voltar?

— Não se preocupe, senhorita, — disse Quarrel, que sentia a perda de uma canoa mais do que Bond. Imaginou ainda que aquela embarcação representasse quase todo o capital da jovem. — O capitão lhe dará outra. E a senhorita voltará conosco. Temos um magnífico bote, entre os mangues, e ele não foi destruído. Já estive lá espiando.

Quarrel olhou para Bond. Agora, o seu rosto denotava preocupação.

— Mas, capitão, o senhor está vendo o que eu disse dessa gente. Eles são duros e não estão brincando. Esses cães que eles vão trazer são policiais — Pinschers, como eles os chamam. Bastardos. Meus amigos disseram-me que são uma matilha de vinte ou mais. É melhor resolvermos logo.

— Está bem, Quarrel. Mas antes de mais nada precisamos comer alguma coisa. — o diabo que me carregue se eu vou ser aterrorizado e expulso da ilha antes de dar uma olhada nisso. Levaremos Honey conosco. — E, voltando-se para a jovem:

— Está bem, Honey? Nada lhe acontecerá. Depois voltaremos juntos.

A jovem olhou-o em dúvida:

— Acho que não há alternativa. Quero dizer. Gostaria de ir com vocês, se não atrapalhasse. Francamente, não quero comer nada. Mas você me levará de volta, assim que puder? Não quero ver mais aquela gente. Durante quanto tempo vocês vão ficar olhando para essas aves?

Bond respondeu evasivamente:

— Pouco tempo. Eu terei apenas que ver o que lhes aconteceu e porquê. Depois, partiremos.

Olhou para o relógio e anunciou:

— Agora são doze horas. Você nos esperará aqui. Tome um banho ou faça o que quiser. Não ande por aí deixando pegadas. Vamos, Quarrel, é melhor escondermos aquele bote.

Só à uma hora eles estavam prontos. Bond e Quarrel encheram a canoa com pedras e areia, até que ela desapareceu sob a água, entre os mangues. Depois, apagaram as suas pegadas. As balas tinham deixado tantos gravetos na orla da praia, que eles podiam caminhar pisando em folhas e ramos quebrados. Comeram parte de suas rações — os homens com avidez, mas Honey com relutância — e depois, passando sobre as rochas, foram ter à lagoa, próxima da costa. Em seguida foram vadeando aquelas águas, em direção à foz do rio, trezentos metros praia abaixo.

Fazia muito calor. Um vento áspero e quente começou a soprar do nordeste. Quarrel informou que aquele vento soprava diariamente, durante todo o ano, e era vital para a guaneira, pois secava o guano. O revérbero do mar e das brilhantes folhas verdes dos mangues cegava-os. Bond deu-se por feliz, já que tivera o cuidado de acostumar sua pele ao sol.

Na foz do rio encontraram um banco de areia e um extenso pântano, profundo e de águas estagnadas. Os dois homens podiam molhar-se ou tirar as roupas. Bond disse à jovem:

— Honey, não podemos ter cerimônia, nesta situação. Vamos ficar apenas com as camisas por causa do sol. Fique apenas com o que for sensato e caminhe atrás de nós.

Sem esperar pela resposta da jovem, os dois homens tiraram as calças. Quarrel enrolou-as e guardou-as na sacola, juntamente com as provisões e o revólver de Bond. Depois começaram a vadear a lagoa, com Quarrel na frente, logo seguido de Bond, e, finalmente a jovem. A água chegou até a cintura de Bond. Um grande peixe prateado deu um salto perto deles e depois caiu ruidosamente na água. Viram-se pequeninas setas riscarem a superfície, quando peixes menores se afastaram precipitadamente.

A lagoa convergia para uma estreita garganta, por sobre a qual as copas dos mangues se tocavam. Durante algum tempo eles vadearam através de um túnel fresco, e depois o rio se alargou num canal profundo, de águas morosas, que serpeava para a frente, entre as gigantescas raízes de sustentação dos mangues. O fundo era lamacento, e a cada passo os pés se enterravam algumas polegadas no lodo. Pequenos peixes ou camarões se encolhiam ou fugiam de baixo de seus pés, e de quando em quando eles tinham que parar para se desembaraçar das sanguessugas, antes que elas se agarrassem firmemente. A não ser isso, aquela caminhada era fácil, sob o frescor das arvores, e, pelo menos para Bond, era uma bênção estar ao abrigo do sol.

Em breve, à medida que se iam afastando do mar, começaram a sentir um cheiro de ovo podre, o cheiro de hidrogênio sulfurado do gás dos pântanos. Os mosquitos começaram a assaltá-los e pareciam gostar do corpo de Bond. Quarrel disse-lhe que mergulhasse na água do rio, pois os mosquitos gostavam de carne salgada. Bond tirou a camisa e fez o que Quarrel lhe aconselhara. Depois disso sentiu-se melhor e o seu olfato chegou mesmo a se acostumar com aquele repugnante cheiro, a não ser quando os pés de Quarrel desfaziam algum bolsão de gás, no fundo da lama, e uma gigantesca bolha atravessava a água para arrebentar na superfície sob as suas narinas.

Os mangues começaram a se tornar mais escassos e mais esparsos, enquanto o rio se ia alargando aos poucos. Ao mesmo tempo, a água tornava-se mais rasa e o fundo mais firme. Logo chegaram a uma volta e saíram para céu aberto, Honey disse:

— É melhor tomarmos cuidado, agora. Eles poderão ver-nos com muita facilidade. Isso vai assim durante uma milha. Depois o rio torna a se estreitar até o lago. E depois se poderá ver a restinga onde os tratadores das aves viviam.

O grupo deteve-se à sombra do túnel de mangues e olhou para fora. O rio serpeava perigosamente, afastando-se deles, em direção ao centro da ilha. As suas barrancas, bordadas de bambus de pequeno porte e de vegetação rala, dar-lhes-íam cobertura reduzida. Partindo de sua margem ocidental, o terreno elevava-se aos poucos, e logo abruptamente até o monte, situado a três quilômetros de distância, que era a guaneira. Na base daquela montanha, viam-se várias cabanas esparsas. Um ziguezague prateado galgava o flanco da colina, até as tendas — trilhos “Decauville”, pensou Bond, destinados a levarem o guano para o moinho e separa-dor. O cume do monte era branco, como se estivesse coberto de neve. De sua parte mais elevada desprendia-se como que uma bandeira de dó de guano. Bond podia ver os pontos negros que eram os corvos marinhos, sobre o fundo branco. Aquelas aves estavam levantando vôo e pousando como abelhas numa colmeia.

Bond deixou-se ficar de pé e contemplou o brilho distante daquela montanha de excrementos de aves. Então aquilo era o reino do Dr. No! Bond pensou que jamais vira um cenário tão escondido e distante, em toda a sua vida.

Examinou o terreno entre o rio e a montanha. Parecia ser principalmente formado com aquela matéria cinzenta de corais mortos. Não havia dúvida de que uma estrada ou trilha corria da falda da montanha até ao lago central e aos pântanos. Bond notou ainda que toda a vegetação se curvava para oeste, e imaginou viver durante todo um ano com aquele vento escaldante castigando a ilha, sem falar do cheiro do guano e do gás dos pântanos. Nenhuma colônia penal poderia encontrar pior localização do que aquela.

Bond olhou para leste, onde os mangues, na área dos charcos, pareciam oferecer mais hospitalidade. Os três puseram-se a caminhar sobre um sólido tapete verde de vegetação. Sobre suas cabeças, aves revoluteavam agitadas, para depois se, acalmarem, e logo tornarem a agitar-se. Seus pios eram carregados pelo vento crestante.

A voz de Quarrel interrompeu os pensamentos de Bond:

— Eles vêm vindo, capitão!

Bond seguiu o olhar de Quarrel. Um grande caminhão descia celeremente das tendas, com uma nuvem de pó levantando-se das rodas. Bond acompanhou-o durante dez minutos, até que o veículo desapareceu entre os mangues, na margem do rio. Bond pôs-se a escutar e ouviu latidos de cães, que eram trazidos pelo vento.

Quarrel comentou:

— Eles vão descer pelo rio, capitão. Sabem que não nos podemos mover, a não ser rio acima, se não estivermos mortos. Certamente que descerão pelo rio, até a praia, e farão um reconhecimento dos destroços. Depois, com toda a certeza, a lancha virá com um pequeno bote e recolherá os homens e os cães. Pelo menos, isso é o que eu faria no lugar deles.

Honey disse: — Isso é, de fato, o que eles fazem quando me procuram. É isso mesmo. Basta que cortemos um pedaço de bambu, e, quando eles estiverem perto, mergulhemos na água, procurando respirar através do bambu, até que eles se afastem.

Bond sorriu para Quarrel, e disse: — Suponhamos que você corte os bambus, enquanto eu procuro um bom esconderijo entre os mangues.

Quarrel aquiesceu hesitante e começou a subir contra a corrente, em direção ao bambuzal, enquanto Bond se encaminhava para o túnel formado pelos mangues.

Bond evitara olhar para a jovem, mas esta disse-lhe com impaciência:

— Não precisa ter tanto cuidado em não olhar para mim. Não adianta se preocupar com tais coisas, numa hora dessas. Você mesmo o disse, ainda há pouco.

Bond virou-se e olhou para a jovem. Sua camisa esfrangalhada descia até a linha d’água. Podia-se ainda ter um vislumbre de pálidas coxas, serpeando sob a superfície. O lindo rosto sorriu para ele. No meio daqueles mangues, o seu nariz quebrado parecia harmonizar-se com o ambiente, pela sua animalidade.

Bond fitou-a descansadamente e ela compreendeu. Depois, ele deu-lhe as costas e desceu pela correnteza, seguido por ela. Logo encontrou o que procurava, isto é, uma fenda naquela parede formada pelas raízes dos mangues. Bond recomendou: — Não quebre nenhum galho. — Depois, baixou a cabeça e meteu-se por aquela brecha. O canal avançava numa distância de dez metros. A lama sob seus pés tornou-se mais mole e espessa. Chegou a uma sólida e intransponível parede de raízes. Aquela água escura fluía vagarosamente através de uma ampla e tranqüila lagoa. Bond deteve-se. A jovem se aproximou dele.

— Isto é mesmo uma brincadeira de esconde-esconde — disse ela, trêmula.

— É verdade — aquiesceu Bond distraidamente, enquanto pensava em seu revólver. Com efeito, ele preocupava-se em saber com que eficiência a arma operaria depois de um banho no rio — quantos cães e homens ele poderia eliminar, se fossem descobertos. Sentiu um estremecimento de inquietação. Tinha sido uma falta de sorte ter encontrado aquela jovem. Em combate, queira-se ou não, uma mulher representa sempre um coração a mais. O inimigo tem dois alvos enquanto apenas oferece um.

Bond lembrou-se de sua sede. Apanhou na concha da mão um pouco de água e bebeu-a. Aquela água era salobra e tinha gosto de terra. Mas servia. Bond bebeu um pouco mais. A jovem agitou a mão e deteve-o, dizendo:

— Não beba demais. Lave a boca e cuspa. Você pode apanhar febre.

Quarrel assobiou de algum ponto situado na corrente principal. Bond respondeu e foi em direção ao amigo. Depois, voltaram juntos, internando-se no canal. Quarrel borrifou as raízes de mangues com água, nos pontos em que os seus corpos talvez as tivessem raspado. “Para tirar o nosso cheiro”, explicou, laconicamente. Em seguida mostrou o seu feixe de bambus e começou a cortá-los e prepará-los. Enquanto isso, Bond se ocupava com seu revólver e a munição. Os três ficaram imóveis, no meio daquele pântano, de modo a não levantarem mais lama.

A luz do sol filtrava-se através do espesso teto de folhas, os camarões agitavam-se sob os pés daqueles três fugitivos. Gradativamente foi-se avolumando uma insuportável tensão, naquele silêncio escaldante e angustioso.

Foi quase um alívio ouvir-se o ladrar dos cães.


X - O RASTRO DO DRAGÃO


O grupo de investigação descia rapidamente pelo rio. Os dois homens, de calções de banho e altas botas impermeáveis, tinham que correr para acompanhar os cães.

Eram grandes negros chineses, que traziam coldres sustentados ao ombro por meio de talabartes cruzados diante dos peitos suados. De quando em quando trocavam gritos que em geral não passavam de imprecações. À frente deles a matilha de cães Dobermann nadava e debatia-se n’água, latindo excitadamente. Tinham farejado uma pista e procuravam segui-la nervosamente, com as orelhas eretas sobre as cabeças afladas.

— Talvez um maldito crocodilo, — gritou o chefe elevando a voz sobre a algazarra. Empunhava um chicote que de vez em quando fazia estalar no campo de caça.

Os outros homens se encaminhavam para ele. O chefe gritou excitadamente: “Aposto que é o gringo inglês! Tenho certeza de que ele está entre os mangues. Cuidado para que o gringo não nos faça cair numa emboscada.” O homem tirou o revólver do coldre e colocou-o sob o sovaco, sem tirar a mão da coronha.

O grupo agora estava deixando a parte do rio, sob céu aberto, e entrando no túnel formado pelos mangues. O primeiro homem tinha um apito, que se projetava de seu largo rosto como um toco de charuto. Fez soar um agudo silvo. Quando os cães avançaram, ele se deixou ficar com o seu chicote junto do chefe. Os animais continuavam farejando, lamuriando-se porque a corrente os obrigava a desobedecer às ordens recebidas. Os dois homens sacaram os revólveres e vadearam lentamente o rio, na mesma direção da corrente, por entre os caules tortuosos dos mangues.

O homem que ia na frente chegou ao estreito canal que Bond tinha encontrado, agarrou um dos cães pela co-leira e lançou-o ao canal. O animal resfolegou ansiosamente e debateu-se para a frente. Os olhos do homem percorreram as raízes dos mangues, de ambos os lados do canal, para ver se apresentavam algum arranhão.

O cão e o homem chegaram ao pequeno lago situado na extremidade do canal. O homem olhou à sua volta, com ar animado. Tornou a agarrar o cão pela coleira e puxou-o para trás. O animal relutava em abandonar o lugar. Então, o homem feriu a água com o chicote.

O segundo homem estivera esperando à entrada do canal. O primeiro saiu daquele pequeno remanso e sacudiu a cabeça, descendo a corrente, com os cães, que agora se mostravam menos excitados, nadando à frente.

Lentamente, a algazarra da perseguição foi diminuindo e desapareceu.

Por mais cinco minutos nada se mexeu na laguna dos mangues; depois, num dos cantos, entre as raízes, apareceu lentamente para fora d’água um fino periscópio de bambu. O rosto de Bond emergiu logo em seguida, com os cabelos molhados colados à testa, como a cara de um cadáver que boiasse. Em sua mão direita, sob a água, o revólver estava pronto. Bond procurou escutar cuidadosamente. O silêncio era completo, não havia o mínimo ruído. Ou haveria? O que seria aquele suave barulho, como se algo deslizasse entre a água, na corrente principal? Viria alguém, muito serenamente, seguindo na esteira daquela caçada? Bond procurou apalpar à sua volta e tocou delicadamente nos dois corpos que estavam cada um em um de seus flancos, entre as raízes, na orla da laguna. Quando os dois rostos aforaram à superfície, ele colocou o seu dedo indicador sobre os lábios, mas já era tarde. Quarrel tinha tossido e cuspido. Bond fez uma careta e fez um sinal na direção da principal corrente. Todos procuravam escutar. O ruído recomeçou. Alguém estava-se dirigindo para o canal lateral. Os tubos de bambu voltaram para as três bocas e as cabeças tornaram a submergir. Debaixo da água Bond descansou a cabeça na lama, apertou as narinas e os lábios à volta do tubo. Sabia que a laguna já fora examinada uma vez, pois sentira a agitação causada na água pelo cão, que passara nadando! Da primeira vez não tinham sido achados, mas conseguiriam escapar desta? Agora haveria menos possibilidades de que a lama revolta se escoasse para fora da laguna. Se esse batedor visse a mancha mais escura, na água, atiraria ou usaria um punhal? Que armas traria? Bond resolveu não correr riscos. Ao primeiro rumor de movimento, ao seu lado, ele se poria de pé e daria logo ao gatilho, esperando pelo melhor.

Assim ficou ele, submerso, com todos os sentidos atentos. Como era desagradável aquele respirar controlado e insuportáveis as ligeiras mordidelas dos camarões! Por sorte nenhum deles tinha qualquer ferida no corpo, pois do contrário os malditos animalzinhos ter-se-iam atirado contra elas. De qualquer forma, aquela fora uma brilhante idéia da jovem. Sem ela os cães já os teriam alcançado, onde quer que eles se tivessem escondido.

Inesperadamente, Bond encolheu-se. Uma bota de borracha tinha pisado em seu queixo e escorregado. O homem pensaria tratar-se de um galho de árvore? Bond não podia correr aquele risco. Com um só impulso pôs-se de pé, atirando para longe o pedaço de bambu.

Bond teve uma rápida impressão de um gigantesco corpo de pé, quase em cima de si, e duma coronha de rife, em rápido movimento. Levantou o braço esquerdo para proteger a cabeça e recebeu um violento golpe no braço. Ao mesmo tempo, o seu braço direito se esticou para a frente, e, quando o cano tocou no lado direito do peito, sob o mamilo, ele acionou o gatilho.

O coice da arma, quase encostada ao corpo do homem, por pouco não quebrou o pulso de Bond, mas o homem desabou para trás como uma árvore decepada que cai n’água. Antes que o corpo afundasse, Bond ainda pôde perceber-lhe uma grande fenda no flanco. A cabeça, uma cabeça negróide de chinês, veio à superfície, com os olhos revirados para cima e a água a sair de sua boca escancarada e silenciosa. Em seguida a cabeça submergiu novamente e nada mais se pôde ver senão uma lama espumosa e uma mancha vermelha que gradualmente se ia ampliando e lentamente era atraída pela corrente.

Bond se endireitou e voltou-se para o lado. Quarrel e a jovem estavam atrás, em pé, com a água a escorrer-lhes dos corpos. Quarrel tinha um sorriso que ia de orelha a orelha, mas a garota mordia as articulações dos dedos, enquanto seus olhos se escancaravam horrorizados diante da água avermelhada.

Bond disse laconicamente: “Desculpe-me, Honey. Tinha que ser feito. Ele estava bem sobre nós. Venha, vamos indo.” Agarrou-a de qualquer maneira, pelo braço, e arrastou-a para fora da principal corrente, apenas detendo-se quando chegaram a rio aberto, na boca do túnel de mangues.

O cenário estava novamente vazio. Bond olhou para o relógio, e verificou que parara às três horas. Olhou para o sol, já bastante deslocado para o ocidente e concluiu que deveriam ser quatro horas. Quanto ainda teriam que caminhar? Bond inesperadamente sentiu-se cansado. Agora teria de enfrentar a situação. Ainda que o disparo não tivesse sido ouvido — e certamente que ele fora abafado pelo próprio corpo da vítima e pelas árvores — a falta do homem seria sentida quando os outros se reunissem, — se a suposição de Quarrel fosse correta, na embocadura do rio, de onde seriam recolhidos pela lancha. Voltariam eles, subindo o rio, a fim de procurarem o desaparecido? Talvez não. Já estaria muito escuro quando eles tivessem a certeza de que o homem estava realmente desaparecido. O mais certo seria mandarem um grupo de homens pela manhã. Os cães facilmente dariam com o corpo. E o que aconteceria?

A garota puxou-o pela manga e disse com irritação: — Já é tempo de você me dizer o que significa tudo isto! Por que estão todos procurando se matar mutuamente? E quem é você? Não acredito em toda essa história de aves. Ninguém carrega revólveres contra aves.

Bond baixou o olhar, fitando aqueles olhos bem separados e irados. — Desculpe-me, Honey. Receio tê-la arrastado para uma boa encrenca. Eu lhe contarei tudo quando voltarmos à noite para o acampamento. Foi apenas má sorte que você se envolvesse comigo, desta maneira. Tenho uma guerrinha com essa gente. Eles parecem querer matar-me. Agora estou apenas interessado em que todos nós saiamos desta ilha sem que ninguém fique ferido. Já tenho muito do que queria, para da próxima vez voltar pela porta da frente.

— O que você quer dizer? Você é alguma espécie de policial? Está querendo meter esse chinês na cadeia?

— Mais ou menos, — disse Bond, rindo para ela. — Pelo menos você está do lado dos anjos. Agora, diga-me uma coisa. Quanto falta ainda para chegar ao acampamento dos guardas?

— Oh, cerca de uma hora.

— É um lugar bom para nele esconder-se? Eles poderiam achar-nos com facilidade?

— Eles teriam que atravessar o lago ou subir o rio. Tudo estará muito bem se eles não puserem o dragão em nosso encalço. Ele pode muito bem atravessar a água, pois já o vi fazê-lo.

— Bem — disse Bond diplomaticamente — esperemos que ele esteja com a cauda machucada, ou tenha outra coisa qualquer.

A jovem vociferou: — Muito bem, sr. Sabe-Tudo. — E acrescentou irritada: — Espere e verá.

Quarrel deixou o túnel de mangues, agitando ruidosamente a água, tendo na mão o rife do chinês abatido, e dizendo à guisa de quem pede desculpas:

— Não há mal em termos outra arma, chefe. Parece que vamos precisar dela.

Bond apanhou aquela arma. Era uma carabina “Remington”, do exército norte-americano, calibre 300. Não havia dúvida de que aquela gente contava com equipamento apropriado. Bond devolveu a arma a Quarrel, depois de examiná-la.

Quarrel como que fez eco aos seus pensamentos: — Isso é gente astuta, capitão. Aquele homem veio esquadrinhando suavemente, atrás dos outros, a fim de nos surpreender quando deixássemos o esconderijo, depois da passagem dos cães. Esse tal de doutor com certeza é um sujeito muito esperto.

Bond disse pensativamente: — É, ele deve ser um homem incomum. — Depois espantou os pensamentos: — Agora, vamos tocando para a frente. Honey diz que ainda precisamos de uma hora para chegarmos ao acampamento. É melhor irmos pela margem esquerda, de modo a ficarmos ao abrigo da colina. Pelo que já pudemos ver, eles têm lunetas assestadas sobre o rio.

Bond entregou a sua arma a Quarrel, que a guardou na mochila molhada. Puseram-se novamente em marcha, com Quarrel à frente, e Bond e a jovem andando juntos, atrás.

Aproveitavam algumas sombras das árvores e bambus da margem ocidental, mas deviam agora suportar toda a intensidade de um vento crestante. Borrifaram braços e corpos com água, a fim de refrescar as queimaduras. Os olhos de Bond estavam injetados por aquele insuportável revérbero e o seu braço doía intoleràvelmente no ponto em que fora atingido pela coronha. E ele não teria à sua espera o seu jantar de pão embebido, queijo e fiambre. Quanto tempo poderiam dormir? Não dormira muito na véspera, e parece que não iria ter melhor ração de sono. E a garota? Ela nada dormira. Ele e Quarrel teriam que se revezar, em quartos de vigilância. E logo chegaria o dia seguinte, quando procurariam ganhar novamente os mangues e vencer lentamente a distância que os separava de sua canoa, através da extremidade oriental da ilha. As coisas correriam daquela forma, segundo era de esperar. Então, tratariam de se fazerem ao mar na noite seguinte. Bond pensou em como haveria de abrir caminho por entre sólidos mangues, na distância de oito quilômetros. Que perspectiva! Continuou se arrastando para a frente, pensando nas “férias ao sol dos trópicos” de M. Muito gostaria que M tivesse que partilhar com ele aquelas “férias”.

O rio foi-se estreitando até que se reduziu a uma simples corrente entre as moitas de bambu. Depois se ampliava num estuário baixo e pantanoso, além do qual as cinco milhas quadradas de lago raso davam vazão para o outro lado da ilha, perdendo-se num agitado espelho líquido azul-cinza. Mais para além estava a brilhante pista aérea e o reflexo da luz solar sobre um único hangar. A jovem disse-lhe que se mantivesse na direção leste, e eles foram lentamente avançando, protegidos pela orla da mata.

Inesperadamente, Quarrel deteve-se, com o rosto esticado como o focinho de um cão para o terreno pantanoso à sua frente. Dois profundos sulcos tinham sido escavados na lama, com um sulco mais raso no centro. Eram a trilha de algo que tinha descido da colina e atravessado o pântano em direção ao lago.

A jovem disse com indiferença: — Por aqui já passou o dragão.

Quarrel arregalou os olhos para ela.

Bond caminhou lentamente pela trilha. As marcas exteriores eram bastante lisas, trazendo a marca de uma linha curva. Poderiam ter sido causadas por rodas, mas eram enormes, pelo menos com sessenta centímetros de largura. A trilha central tinha a mesma forma, mas com apenas três polegadas de largura, ou seja a largura de um pneumático de automóvel. As trilhas não apresentavam nenhum indício de pegadas e eram completamente frescas. Estendiam-se em linha reta, e os arbustos por elas atravessados tinham sido derrubados e esmagados no chão, como se um tanque de guerra tivesse passado por ali. Bond não podia imaginar que espécie de veículo seria aquele. A jovem tocou-o com o cotovelo e murmurou: — Eu lhe tinha dito. Ele apenas pôde responder pensativamente: — Bom, Honey, se não é o dragão, é algo que nunca vi antes.

Mais adiante, ela puxou-o ansiosamente pela manga. “Veja”, sussurrou, e apontou para a frente, indicando um grande cerrado de árvores, ao lado do qual passavam as trilhas. O cerrado estava sem folhas, enegrecido. Ao centro viam-se os restos dos ninhos de pássaros carbonizados. — Ele respirou sobre as árvores, — disse a garota nervosamente.

Bond aproximou-se das árvores e examinou-as. — Certamente que o fez — admitiu. Por que aquele cerrado, em especial, tinha sido queimado? Era muito estranho aquilo.

As trilhas desciam em direção ao lago e desapareciam na água. Bond teria gostado de segui-las, mas não poderia abandonar a cobertura das árvores. Assim, continuaram a marcha, cada um entregue aos próprios pensamentos.

Lentamente o dia começou a morrer, por trás da colina, e por fim a garota apontou para a frente, através dos arbustos; Bond pôde ver uma comprida restinga internando-se no lago. Estava coberta por densas moitas de arbustos e podiam-se ver, a cem metros da praia, os restos de uma cabana incendiada. Aquele parecia um lugar razoavelmente atraente para se passar a noite, e era bem protegido dos dois lados, pela água.

O vento tinha declinado e a água se apresentava suave e convidativa. Que prazer não seria tirarem as suas imundas camisas para um banho no lago e, depois de horas de patinhação através da lama e do lodo do pântano, poderem descansar naquela areia dura e seca!

O sol brilhou com reflexos amarelecidos e desapareceu por trás da montanha. Ainda era dia na extremidade oriental da ilha, mas a sombra negra do monte avançava vagarosamente sobre o lago e acabaria por expulsar completamente os últimos vestígios do sol. Os sapos começaram a coaxar mais barulhentamente que em Jamaica, até que a noite ficou cheia daquele áspero ruído. Do outro lado do lago um grande sapo macho começou a soar o seu tambor. Aquele estranho som era algo entre um tom-tom e um rosnado de macaco. Enviava mensagens que subitamente se interrompiam e logo silenciaram. Com certeza encontrara o que procurava.

Chegaram à garganta da restinga e seguiram por um estreito caminho, até a clareira que encerrava os escombros da cabana de sapé. As grandes e misteriosas trilhas saíam da água, de ambos os lados, atravessavam a clareira e os cerrados próximos. Muitos dos arbustos estavam queimados ou crestados. Podiam-se ver os restos de um fogão feito de pedaços de coral, e algumas panelas e latas vazias. Examinaram os destroços, e Quarrel desenterrou um par de latas intactas de costeletas de porco e ervilhas marca “Heinz”. A jovem encontrou ainda um saco de dormir muito amarrotado, enquanto Bond achou uma pequena bolsa de couro com cinco notas de um dólar, três libras de Jamaica e algumas moedas de prata. Os dois homens certamente tinham abandonado aquele lugar a toda pressa.

Prosseguiram mais para diante, até uma pequena clareira arenosa. Através dos arbustos podiam ver luzes cintilando sobre a água e provenientes da montanha, talvez a mais de três quilômetros de distância. A leste nada mais havia senão. os suaves reflexos escuros da água sob o céu sombrio.

Bond comentou: — Enquanto não acendermos nada, estaremos bem aqui. A primeira coisa a fazer é tomarmos um bom banho, Honey. Você pode ficar com o resto da restinga, que nós ficaremos com a sua garganta. Dentro de meia hora espero vê-la para o jantar.

A garota riu: — Você virá a rigor?

— Sem dúvida — respondeu Bond — e de calças.

Quarrel observou: — Capitão, enquanto ainda há um pouco de luz, vou abrir essas latas e preparar as coisas para a noite. — Remexeu dentro da mochila. — Aqui estão as suas calças e o seu revólver. O pão talvez não esteja muito bom, mas está apenas molhado. Pode-se comê-lo bem, e amanhã estará seco. O melhor talvez fosse comermos das latas esta noite, guardando o queijo e as costeletas. As latas são pesadas e amanhã teremos que andar muito.

Bond respondeu: — Muito bem, Quarrel. Deixarei o cardápio aos seus cuidados.

Em seguida, apanhou o revólver e as calças úmidas e desceu para a água rasa. A água estava acariciante, mas desagradavelmente quente. Bond escavou punhados de areia, com as mãos, e esfregou o corpo com ela, utilizando-a como sabonete. Depois deixou-se ficar gostosamente em meio àquele silêncio e àquela solidão.

As estrelas começaram a brilhar palidamente, as estrelas que os tinham trazido à ilha na noite passada; as estrelas que os tirariam dali no dia seguinte. Que viagem! Mas pelo menos já tinha dado os seus resultados. Agora tinha provas bastantes, e testemunhas, para ir ter com o governador e conseguir dele um inquérito completo acerca das atividades do Dr. No. Ninguém lança mão de metralhadoras contra pessoas, mesmo contra intrusos. E, da mesma forma, o que seria aquilo do Dr. No, que invadira a propriedade da Sociedade Audubon, aquilo que chegara a destruir essa propriedade e provavelmente matara um de seus empregados? Isto também teria que ser investigado. E o que haveria ele de encontrar quando voltasse pela porta da frente, talvez a bordo de um destróier, e com um destacamento de fuzileiros navais? Qual seria a resposta para o mistério do Dr. No? O que estaria ele escondendo? Por que aquele segredo era tão importante, que seria capaz de matar repetidas vezes, para preservá-lo? E quem era esse Dr. No?

Bond ouviu o barulho de alguém espojando-se na água. Pensou na garota. E quem, afinal, era Honeychile Ri-der? Aquilo pelo menos, pensou ele ao sair da água, era algo que deveria esclarecer antes do amanhecer.

Bond enfiou as suas pegajosas calças, sentou-se na areia e desmontou o revólver. Fê-lo pelo tato, utilizando-se de sua camisa para secar cada peça e cada cartucho. Depois, tornou a montar a arma e pressionou o gatilho, fazendo com que o tambor vazio desse uma volta completa. O som era satisfatório. Seriam precisos alguns dias para que o revólver começasse a enferrujar. Carregou-o e meteu-o no coldre, para dentro do cós da calça. Depois, levantou-se e voltou para a clareira.

A sombra de Honey chegou até ele, e a sua voz se fez ouvir: — Venha; estamos morrendo de fome. Apanhei uma das panelas, limpei-a e pusemos as ervilhas nela. Temos pão também. E eu não sinto escrúpulos de comer a sua ração, porque você me fez trabalhar muito mais do que se eu estivesse sozinha. Agora, estique a mão.

Bond achou graça no tom autoritário que havia em sua voz. Ele apenas podia perceber a sua silhueta, no escuro. Sua cabeça parecia mais aflada. Ele se perguntou como seriam os seus cabelos quando secos e penteados. Como seria ela quando estivesse vestindo roupas limpas naquele lindo corpo dourado? Podia vê-la entrando numa sala ou atravessando um vestíbulo em Beau Desert. Ela seria uma linda e encantadora Patinha Feia. Por que nunca procurara endireitar o nariz? Seria uma operação fácil. Depois disso, ela seria a jovem mais bela de Jamaica.

O seu ombro tocou nele. Bond esticou o braço e descansou a mão aberta no colo da jovem. Então Bond sentiu que ela estava enchendo a sua mão com ervilhas.

Subitamente, Bond aspirou o seu cheiro cálido de animal. Foi uma explosão sensual tão aguda que o seu corpo se uniu ao dela, e, por um momento, os seus olhos se fecharam.

Ela deixou escapar um riso curto, no qual havia timidez, satisfação e ternura. E disse, maternalmente: “Lá”, — e empurrou a mão de Bond.

 

CONTINUA

IX - POR UM TRIZ


Dez minutos mais tarde a baía estava vazia e imaculada. Pequenas ondas encrespavam-se preguiçosamente através do espelho das águas, no interior dos recifes e morriam exaustas na areia escura onde as conchas lilás brilhavam como unhas pintadas. O monte de conchas tinha desaparecido e não havia mais vestígios de pegadas. Quarrel cortara galhos de mangues e caminhava de costas procurando apagar as pegadas com aqueles galhos. Onde tinha varrido, a areia apresentava uma limpidez diferente mas não tão diferente a ponto de ser notada de fora do recife. A canoa da jovem tinha sido arrastada para dentro do mar, entre as rochas, e ali ficou coberta com algas e gravetos.

Quarrel tinha voltado ao promontório. Bond e a jovem estavam juntos, sob tufos de folhas, onde Bond dormira, e olhavam silenciosamente para o contorno do promontório, à volta do qual surgira a embarcação.

A lancha estava talvez a uns quinhentos metros de distância. A julgar pelo lento ritmo do motor, Bond concluiu que cada acidente da costa estava sendo cuidadosamente inspecionado para descobrir indícios da presença de estranhos. De qualquer forma, aquilo parecia uma possante embarcação. Talvez uma grande lancha de cabina. Que tripulação teria? Quem estaria no comando? O Dr. No? Improvável. Ele certamente não se daria àquele trabalho de polícia.

Do lado do ocidente apareceu um bando de corvos marinhos, voando baixo sobre o mar, além dos recifes. Bond observou-os. Eram o primeiro indício para ele encontrado daquela colônia de aves, na outra extremidade da ilha. Aquele bando, segundo Pleydell-Smith, seriam batedores à procura do brilho prateado das enchovas, próximas à superfície. Enquanto observava, as aves começaram a dar mergulhos rasos, ferindo o mar superficialmente e levantando respingos de água. Quase que de uma só vez, apareceu outra coluna de aves, vinda do ocidente, e logo outra, e mais outra, fundindo-se todas numa espessa e escura nuvem. Durante minutos, elas sombrearam o céu, e depois atiraram-se à água, cobrindo vários alqueires, piando e lutando, e mergulhando as cabeças no mar, fazendo uma rica colheita naquele sólido campo de anchovas, como piranhas que se banqueteassem num cavalo afogado.

Bond sentiu um suave toque da jovem, que fez um movimento com a cabeça, dizendo:

— As galinhas do chinês estão comendo milho.

Bond observou-lhe o rosto belo e feliz. Ela parecia bastante despreocupada com a chegada daqueles homens. Para ela aquilo era apenas o jogo de esconde-esconde que já tinha praticado antes.

A vibração metálica dos motores diesel estava-se tornando mais forte. A lancha deveria estar justamente por trás do promontório. Bond deu mais uma olhada à volta da tranqüila baía, e depois fixou os olhos através da folhagem e do mato, para os lados dos recifes.

A ponta de uma proa branca apareceu, seguida de uns dez metros de tombadilho, e logo o parabrisas de vidro, uma cabina baixa e uma antena de rádio, e o vulto de um homem à volta do leme. Finalmente, o comprido e achatado fosso da popa, e uma flâmula vermelha pendente, Seria uma lancha-torpedeira convertida, um excedente de guerra do governo britânico?

Os olhos de Bond fixaram-se nos dois homens que estavam em pé na popa. Eram negros de pele pálida, envergando roupas caqui de marinheiro, com largos cinturões e chapéus de palha com longas palas. Estavam um ao lado do outro, equilibrando-se sob a lenta elevação da massa líquida. Um deles segurava um alto-falante e o outro manejava uma metralhadora instalada num tripé. Bond teve a impressão de que era uma metralhadora “Spandau”.

O homem com o alto-falante deixou que este caísse, e ele ficou oscilando numa tira, que lhe dava volta ao pescoço. Apanhou um binóculo e começou a vasculhar metro a metro da praia. Indistintos comentários chegavam aos ouvidos de Bond, por entre o ruído dos motores.

Bond percebeu que os olhos do binóculo começavam pelo promontório e depois percorriam a areia. As lentes detiveram-se entre as rochas e continuaram o seu passeio. Depois, voltaram. O murmúrio do comentário elevou-se ganhando animação. O homem passou o binóculo para o metralhador, que observou rapidamente, devolvendo-o logo ao dono. O observador gritou alguma coisa para o timoneiro. A lancha começou a se aproximar da praia. Agora estavam justamente diante dos recifes, em frente a Bond e à jovem. O observador ergueu novamente o binóculo, apontando-o para as rochas onde se encontrava escondida a canoa da jovem. Novamente a fala excitada chegou aos ouvidos de Bond, por sobre as águas. Mais uma vez o binóculo foi passado ao metralhador, que levou algum tempo observando. Dessa vez, ele fez um sinal de assentimento com a cabeça.

Bond pensou: agora vamos ter coisa; esses homens conhecem o ofício. Em seguida, viu que o metralhador se ocupava em carregar a arma. O duplo estalido metálico chegou aos seus ouvidos, por entre o matraquear do motor.

O observador ergueu o alto-falante e ligou-o. O eco produzido pelo amplificador chegou até Bond, conduzido pela superfície da água. A voz do homem ribombou pela baía:

— Alô, pessoal! Saiam daí e não serão feridos. Era uma voz educada, com sotaque americano.

— Agora, pessoal — trovejou a voz — depressa! Nós vimos quando vocês desembarcaram. Já descobrimos o bote sob os paus. Não somos tolos e não estamos brincando. Saiam daí com os braços levantados e não lhes acontecerá nada!

Não se ouviu nenhuma resposta. Apenas as ondas quebravam docemente na praia. Bond podia ouvir a respiração da jovem. Os guinchos agudos dos corvos marinhos chegavam-lhes de uma milha de distância, sobre o mar. O cano de escapamento dos motores diesel produzia um ruído desigual e gorgulhante, quando o intumescimento do mar cobria o orifício de descarga.

Silenciosamente Bond tocou o braço da jovem e disse-lhe:

— Fique mais perto. Alvo menor.

Ele sentiu o calor da jovem mais próximo de seu corpo, e o rosto de Honey raspou pelo seu braço. Bond sussurrou:

— Enterre-se na areia. Encolha-se. Cada polegada a menos ajudará.

Ele começou a se encolher cuidadosamente na depressão que tinham escavado para se abrigarem, e sentiu que ela fazia o mesmo.

O homem estava erguendo o seu alto-falante. A voz ribombou novamente.

— Muito bem, pessoal! Vocês irão ver que isso aqui não é para brincadeira. — Depois, levantou o polegar. O metralhador experimentou a arma fazendo alguns disparos para a copa dos mangues situados por trás da praia. Bond ouviu o rápido matraquear, tão seu conhecido, e do qual se despedira pela última vez diante das linhas alemãs, nas Ardenas. As balas produziam o velho som de pombos assustados, assobiando sobre sua cabeça. Depois fez-se silêncio.

À distância, Bond via a nuvem negra de corvos marinhos elevar-se, começando a fazer os seus amplos círculos. Seus olhos voltaram para a embarcação. O metralhador estava apalpando o cano da metralhadora, para ver se já estava aquecido. Os dois homens trocaram algumas palavras. O observador apanhou novamente o porta-voz.

— Está bem, pessoal. Vocês foram avisados.

Bond viu o cano da “Spandau” levantar-se e abaixar-se. O homem estava querendo começar com a canoa, entre as rochas. Bond sussurrou para a jovem: — Muito bem, Honey. Agüente firme. Mantenha-se abaixada. Não vai durar muito.

Ele sentiu que a mão da jovem apertava o seu braço, e pensou: “Coitada; ela está metida nisso por minha causa.” Ele inclinou-se para a direita a fim de cobrir a cabeça de Honey e afundou o rosto na areia.

Dessa vez o matraquear foi terrível. Balas ricocheteavam no flanco do promontório. Fragmentos de pedra saltavam para todos os lados, sobre a praia. Outras balas ricocheteavam e iam perder-se dentro da mata. Simultaneamente com todo aquele barulho ouvia-se o martelar contínuo da metralhadora.

Houve uma pausa. Nova carga, pensou Bond. Agora será para nós. Pôde sentir a jovem agarrando-se a ele. Seu corpo tremia todo, encostado ao seu flanco. Bond apanhou uma arma e apertou-a de encontro ao corpo. O matraquear da metralhadora recomeçou. As balas vinham zunindo, da linha de maré, em direção a eles. Ouviu-se uma sucessão de rápidas batidas. O tufo, acima deles, estava sendo reduzido a pedaços. “Zuip Zuip Zuip”. Era como se um chicote de aço estivesse retalhando os arbustos. Pedaços de lenha caíam sobre eles, cobrindo-os lentamente. Bond respirou um ar mais fresco, o que significava que eles agora estavam ao ar-livre. Estariam eles escondidos pelas folhas o pelos destroços? As balas continuaram deslocando-se ao longo da linha da costa. Em menos de um minuto a metralhadora parou.

O silêncio tornou a reinar. A jovem lamuriou-se docemente. Bond fê-la calar-se e apertou-a mais forte.

O alto-falante apregoou:

— Está bem, pessoal. Se vocês ainda têm ouvidos, saibam que voltaremos logo para recolher-lhes os pedaços. Vamos trazer os cães. Até à vista, por enquanto.

O ritmo do motor se acelerou, e através das folhas Bond pôde ver a popa da lancha afundar-se mais na água, enquanto a embarcação rumava rapidamente para oeste. Dentro de minutos já não se ouvia mais nada.

Bond ergueu a cabeça cautelosamente. A baía estava serena, e tudo como antes, exceto o cheiro de cordite e as rochas quebradas.

Bond fez a jovem levantar-se. Havia marcas de lágrimas em seu rosto. Ela olhou-o aterrada, e disse:

— Isso foi terrível. Por que eles o fizeram? Podíamos ter sido mortos.

Bond pensou naquela jovem que sempre abrira caminho, na vida, por si mesma, mas apenas contra a natureza. Conhecia o mundo dos animais, dos insetos e dos peixes, e tirava todo o partido desse conhecimento. Mas aquele era um pequeno mundo, limitado pelo sol, pela lua e pelas estações. Ela não conhecia o grande mundo das salas cheias de fumo, dos corredores de negócios, dos corredores e antecâmaras governamentais, dos cautelosos encontros em bancos de praças — numa palavra: ela nada conhecia da luta pelo poder e pelo dinheiro, travada por homens poderosos.

Bond disse:

— É isso mesmo, Honey, eles não passam de uma quadrilha de bandidos assustados conosco. Podemos enfrentá-los.

Bond colocou o braço à volta de seus ombros e continuou:

— E você esteve maravilhosa, brava como ninguém. Agora, vamos ao encontro de Quarrel para traçar os nossos planos. De qualquer forma, já é tempo de comermos alguma coisa. O que é que você costuma comer nessas expedições?

Deram meia-volta e seguiram pela praia em direção ao promontório. Depois de um minuto, ela disse com voz bem controlada:

— Oh, há uma porção de coisas por aí que se podem comer. Ouriços do mar principalmente, mas também bananas silvestres e outras coisas. Eu como e durmo durante dois dias, antes de vir aqui. Não preciso de nada.

Bond apertou-a mais fortemente, mas deixou cair o braço, assim que Quarrel apareceu ao longe. Quarrel vinha saltando sobre as rochas, e, em determinado momento, parou, olhando para baixo. Bond e Honey se aproximaram dele. A canoa da jovem estava cortada ao meio pelas balas. Honey deixou escapar um grito, olhando desesperadamente para Bond:

— A minha canoa! Como poderei voltar?

— Não se preocupe, senhorita, — disse Quarrel, que sentia a perda de uma canoa mais do que Bond. Imaginou ainda que aquela embarcação representasse quase todo o capital da jovem. — O capitão lhe dará outra. E a senhorita voltará conosco. Temos um magnífico bote, entre os mangues, e ele não foi destruído. Já estive lá espiando.

Quarrel olhou para Bond. Agora, o seu rosto denotava preocupação.

— Mas, capitão, o senhor está vendo o que eu disse dessa gente. Eles são duros e não estão brincando. Esses cães que eles vão trazer são policiais — Pinschers, como eles os chamam. Bastardos. Meus amigos disseram-me que são uma matilha de vinte ou mais. É melhor resolvermos logo.

— Está bem, Quarrel. Mas antes de mais nada precisamos comer alguma coisa. — o diabo que me carregue se eu vou ser aterrorizado e expulso da ilha antes de dar uma olhada nisso. Levaremos Honey conosco. — E, voltando-se para a jovem:

— Está bem, Honey? Nada lhe acontecerá. Depois voltaremos juntos.

A jovem olhou-o em dúvida:

— Acho que não há alternativa. Quero dizer. Gostaria de ir com vocês, se não atrapalhasse. Francamente, não quero comer nada. Mas você me levará de volta, assim que puder? Não quero ver mais aquela gente. Durante quanto tempo vocês vão ficar olhando para essas aves?

Bond respondeu evasivamente:

— Pouco tempo. Eu terei apenas que ver o que lhes aconteceu e porquê. Depois, partiremos.

Olhou para o relógio e anunciou:

— Agora são doze horas. Você nos esperará aqui. Tome um banho ou faça o que quiser. Não ande por aí deixando pegadas. Vamos, Quarrel, é melhor escondermos aquele bote.

Só à uma hora eles estavam prontos. Bond e Quarrel encheram a canoa com pedras e areia, até que ela desapareceu sob a água, entre os mangues. Depois, apagaram as suas pegadas. As balas tinham deixado tantos gravetos na orla da praia, que eles podiam caminhar pisando em folhas e ramos quebrados. Comeram parte de suas rações — os homens com avidez, mas Honey com relutância — e depois, passando sobre as rochas, foram ter à lagoa, próxima da costa. Em seguida foram vadeando aquelas águas, em direção à foz do rio, trezentos metros praia abaixo.

Fazia muito calor. Um vento áspero e quente começou a soprar do nordeste. Quarrel informou que aquele vento soprava diariamente, durante todo o ano, e era vital para a guaneira, pois secava o guano. O revérbero do mar e das brilhantes folhas verdes dos mangues cegava-os. Bond deu-se por feliz, já que tivera o cuidado de acostumar sua pele ao sol.

Na foz do rio encontraram um banco de areia e um extenso pântano, profundo e de águas estagnadas. Os dois homens podiam molhar-se ou tirar as roupas. Bond disse à jovem:

— Honey, não podemos ter cerimônia, nesta situação. Vamos ficar apenas com as camisas por causa do sol. Fique apenas com o que for sensato e caminhe atrás de nós.

Sem esperar pela resposta da jovem, os dois homens tiraram as calças. Quarrel enrolou-as e guardou-as na sacola, juntamente com as provisões e o revólver de Bond. Depois começaram a vadear a lagoa, com Quarrel na frente, logo seguido de Bond, e, finalmente a jovem. A água chegou até a cintura de Bond. Um grande peixe prateado deu um salto perto deles e depois caiu ruidosamente na água. Viram-se pequeninas setas riscarem a superfície, quando peixes menores se afastaram precipitadamente.

A lagoa convergia para uma estreita garganta, por sobre a qual as copas dos mangues se tocavam. Durante algum tempo eles vadearam através de um túnel fresco, e depois o rio se alargou num canal profundo, de águas morosas, que serpeava para a frente, entre as gigantescas raízes de sustentação dos mangues. O fundo era lamacento, e a cada passo os pés se enterravam algumas polegadas no lodo. Pequenos peixes ou camarões se encolhiam ou fugiam de baixo de seus pés, e de quando em quando eles tinham que parar para se desembaraçar das sanguessugas, antes que elas se agarrassem firmemente. A não ser isso, aquela caminhada era fácil, sob o frescor das arvores, e, pelo menos para Bond, era uma bênção estar ao abrigo do sol.

Em breve, à medida que se iam afastando do mar, começaram a sentir um cheiro de ovo podre, o cheiro de hidrogênio sulfurado do gás dos pântanos. Os mosquitos começaram a assaltá-los e pareciam gostar do corpo de Bond. Quarrel disse-lhe que mergulhasse na água do rio, pois os mosquitos gostavam de carne salgada. Bond tirou a camisa e fez o que Quarrel lhe aconselhara. Depois disso sentiu-se melhor e o seu olfato chegou mesmo a se acostumar com aquele repugnante cheiro, a não ser quando os pés de Quarrel desfaziam algum bolsão de gás, no fundo da lama, e uma gigantesca bolha atravessava a água para arrebentar na superfície sob as suas narinas.

Os mangues começaram a se tornar mais escassos e mais esparsos, enquanto o rio se ia alargando aos poucos. Ao mesmo tempo, a água tornava-se mais rasa e o fundo mais firme. Logo chegaram a uma volta e saíram para céu aberto, Honey disse:

— É melhor tomarmos cuidado, agora. Eles poderão ver-nos com muita facilidade. Isso vai assim durante uma milha. Depois o rio torna a se estreitar até o lago. E depois se poderá ver a restinga onde os tratadores das aves viviam.

O grupo deteve-se à sombra do túnel de mangues e olhou para fora. O rio serpeava perigosamente, afastando-se deles, em direção ao centro da ilha. As suas barrancas, bordadas de bambus de pequeno porte e de vegetação rala, dar-lhes-íam cobertura reduzida. Partindo de sua margem ocidental, o terreno elevava-se aos poucos, e logo abruptamente até o monte, situado a três quilômetros de distância, que era a guaneira. Na base daquela montanha, viam-se várias cabanas esparsas. Um ziguezague prateado galgava o flanco da colina, até as tendas — trilhos “Decauville”, pensou Bond, destinados a levarem o guano para o moinho e separa-dor. O cume do monte era branco, como se estivesse coberto de neve. De sua parte mais elevada desprendia-se como que uma bandeira de dó de guano. Bond podia ver os pontos negros que eram os corvos marinhos, sobre o fundo branco. Aquelas aves estavam levantando vôo e pousando como abelhas numa colmeia.

Bond deixou-se ficar de pé e contemplou o brilho distante daquela montanha de excrementos de aves. Então aquilo era o reino do Dr. No! Bond pensou que jamais vira um cenário tão escondido e distante, em toda a sua vida.

Examinou o terreno entre o rio e a montanha. Parecia ser principalmente formado com aquela matéria cinzenta de corais mortos. Não havia dúvida de que uma estrada ou trilha corria da falda da montanha até ao lago central e aos pântanos. Bond notou ainda que toda a vegetação se curvava para oeste, e imaginou viver durante todo um ano com aquele vento escaldante castigando a ilha, sem falar do cheiro do guano e do gás dos pântanos. Nenhuma colônia penal poderia encontrar pior localização do que aquela.

Bond olhou para leste, onde os mangues, na área dos charcos, pareciam oferecer mais hospitalidade. Os três puseram-se a caminhar sobre um sólido tapete verde de vegetação. Sobre suas cabeças, aves revoluteavam agitadas, para depois se, acalmarem, e logo tornarem a agitar-se. Seus pios eram carregados pelo vento crestante.

A voz de Quarrel interrompeu os pensamentos de Bond:

— Eles vêm vindo, capitão!

Bond seguiu o olhar de Quarrel. Um grande caminhão descia celeremente das tendas, com uma nuvem de pó levantando-se das rodas. Bond acompanhou-o durante dez minutos, até que o veículo desapareceu entre os mangues, na margem do rio. Bond pôs-se a escutar e ouviu latidos de cães, que eram trazidos pelo vento.

Quarrel comentou:

— Eles vão descer pelo rio, capitão. Sabem que não nos podemos mover, a não ser rio acima, se não estivermos mortos. Certamente que descerão pelo rio, até a praia, e farão um reconhecimento dos destroços. Depois, com toda a certeza, a lancha virá com um pequeno bote e recolherá os homens e os cães. Pelo menos, isso é o que eu faria no lugar deles.

Honey disse: — Isso é, de fato, o que eles fazem quando me procuram. É isso mesmo. Basta que cortemos um pedaço de bambu, e, quando eles estiverem perto, mergulhemos na água, procurando respirar através do bambu, até que eles se afastem.

Bond sorriu para Quarrel, e disse: — Suponhamos que você corte os bambus, enquanto eu procuro um bom esconderijo entre os mangues.

Quarrel aquiesceu hesitante e começou a subir contra a corrente, em direção ao bambuzal, enquanto Bond se encaminhava para o túnel formado pelos mangues.

Bond evitara olhar para a jovem, mas esta disse-lhe com impaciência:

— Não precisa ter tanto cuidado em não olhar para mim. Não adianta se preocupar com tais coisas, numa hora dessas. Você mesmo o disse, ainda há pouco.

Bond virou-se e olhou para a jovem. Sua camisa esfrangalhada descia até a linha d’água. Podia-se ainda ter um vislumbre de pálidas coxas, serpeando sob a superfície. O lindo rosto sorriu para ele. No meio daqueles mangues, o seu nariz quebrado parecia harmonizar-se com o ambiente, pela sua animalidade.

Bond fitou-a descansadamente e ela compreendeu. Depois, ele deu-lhe as costas e desceu pela correnteza, seguido por ela. Logo encontrou o que procurava, isto é, uma fenda naquela parede formada pelas raízes dos mangues. Bond recomendou: — Não quebre nenhum galho. — Depois, baixou a cabeça e meteu-se por aquela brecha. O canal avançava numa distância de dez metros. A lama sob seus pés tornou-se mais mole e espessa. Chegou a uma sólida e intransponível parede de raízes. Aquela água escura fluía vagarosamente através de uma ampla e tranqüila lagoa. Bond deteve-se. A jovem se aproximou dele.

— Isto é mesmo uma brincadeira de esconde-esconde — disse ela, trêmula.

— É verdade — aquiesceu Bond distraidamente, enquanto pensava em seu revólver. Com efeito, ele preocupava-se em saber com que eficiência a arma operaria depois de um banho no rio — quantos cães e homens ele poderia eliminar, se fossem descobertos. Sentiu um estremecimento de inquietação. Tinha sido uma falta de sorte ter encontrado aquela jovem. Em combate, queira-se ou não, uma mulher representa sempre um coração a mais. O inimigo tem dois alvos enquanto apenas oferece um.

Bond lembrou-se de sua sede. Apanhou na concha da mão um pouco de água e bebeu-a. Aquela água era salobra e tinha gosto de terra. Mas servia. Bond bebeu um pouco mais. A jovem agitou a mão e deteve-o, dizendo:

— Não beba demais. Lave a boca e cuspa. Você pode apanhar febre.

Quarrel assobiou de algum ponto situado na corrente principal. Bond respondeu e foi em direção ao amigo. Depois, voltaram juntos, internando-se no canal. Quarrel borrifou as raízes de mangues com água, nos pontos em que os seus corpos talvez as tivessem raspado. “Para tirar o nosso cheiro”, explicou, laconicamente. Em seguida mostrou o seu feixe de bambus e começou a cortá-los e prepará-los. Enquanto isso, Bond se ocupava com seu revólver e a munição. Os três ficaram imóveis, no meio daquele pântano, de modo a não levantarem mais lama.

A luz do sol filtrava-se através do espesso teto de folhas, os camarões agitavam-se sob os pés daqueles três fugitivos. Gradativamente foi-se avolumando uma insuportável tensão, naquele silêncio escaldante e angustioso.

Foi quase um alívio ouvir-se o ladrar dos cães.


X - O RASTRO DO DRAGÃO


O grupo de investigação descia rapidamente pelo rio. Os dois homens, de calções de banho e altas botas impermeáveis, tinham que correr para acompanhar os cães.

Eram grandes negros chineses, que traziam coldres sustentados ao ombro por meio de talabartes cruzados diante dos peitos suados. De quando em quando trocavam gritos que em geral não passavam de imprecações. À frente deles a matilha de cães Dobermann nadava e debatia-se n’água, latindo excitadamente. Tinham farejado uma pista e procuravam segui-la nervosamente, com as orelhas eretas sobre as cabeças afladas.

— Talvez um maldito crocodilo, — gritou o chefe elevando a voz sobre a algazarra. Empunhava um chicote que de vez em quando fazia estalar no campo de caça.

Os outros homens se encaminhavam para ele. O chefe gritou excitadamente: “Aposto que é o gringo inglês! Tenho certeza de que ele está entre os mangues. Cuidado para que o gringo não nos faça cair numa emboscada.” O homem tirou o revólver do coldre e colocou-o sob o sovaco, sem tirar a mão da coronha.

O grupo agora estava deixando a parte do rio, sob céu aberto, e entrando no túnel formado pelos mangues. O primeiro homem tinha um apito, que se projetava de seu largo rosto como um toco de charuto. Fez soar um agudo silvo. Quando os cães avançaram, ele se deixou ficar com o seu chicote junto do chefe. Os animais continuavam farejando, lamuriando-se porque a corrente os obrigava a desobedecer às ordens recebidas. Os dois homens sacaram os revólveres e vadearam lentamente o rio, na mesma direção da corrente, por entre os caules tortuosos dos mangues.

O homem que ia na frente chegou ao estreito canal que Bond tinha encontrado, agarrou um dos cães pela co-leira e lançou-o ao canal. O animal resfolegou ansiosamente e debateu-se para a frente. Os olhos do homem percorreram as raízes dos mangues, de ambos os lados do canal, para ver se apresentavam algum arranhão.

O cão e o homem chegaram ao pequeno lago situado na extremidade do canal. O homem olhou à sua volta, com ar animado. Tornou a agarrar o cão pela coleira e puxou-o para trás. O animal relutava em abandonar o lugar. Então, o homem feriu a água com o chicote.

O segundo homem estivera esperando à entrada do canal. O primeiro saiu daquele pequeno remanso e sacudiu a cabeça, descendo a corrente, com os cães, que agora se mostravam menos excitados, nadando à frente.

Lentamente, a algazarra da perseguição foi diminuindo e desapareceu.

Por mais cinco minutos nada se mexeu na laguna dos mangues; depois, num dos cantos, entre as raízes, apareceu lentamente para fora d’água um fino periscópio de bambu. O rosto de Bond emergiu logo em seguida, com os cabelos molhados colados à testa, como a cara de um cadáver que boiasse. Em sua mão direita, sob a água, o revólver estava pronto. Bond procurou escutar cuidadosamente. O silêncio era completo, não havia o mínimo ruído. Ou haveria? O que seria aquele suave barulho, como se algo deslizasse entre a água, na corrente principal? Viria alguém, muito serenamente, seguindo na esteira daquela caçada? Bond procurou apalpar à sua volta e tocou delicadamente nos dois corpos que estavam cada um em um de seus flancos, entre as raízes, na orla da laguna. Quando os dois rostos aforaram à superfície, ele colocou o seu dedo indicador sobre os lábios, mas já era tarde. Quarrel tinha tossido e cuspido. Bond fez uma careta e fez um sinal na direção da principal corrente. Todos procuravam escutar. O ruído recomeçou. Alguém estava-se dirigindo para o canal lateral. Os tubos de bambu voltaram para as três bocas e as cabeças tornaram a submergir. Debaixo da água Bond descansou a cabeça na lama, apertou as narinas e os lábios à volta do tubo. Sabia que a laguna já fora examinada uma vez, pois sentira a agitação causada na água pelo cão, que passara nadando! Da primeira vez não tinham sido achados, mas conseguiriam escapar desta? Agora haveria menos possibilidades de que a lama revolta se escoasse para fora da laguna. Se esse batedor visse a mancha mais escura, na água, atiraria ou usaria um punhal? Que armas traria? Bond resolveu não correr riscos. Ao primeiro rumor de movimento, ao seu lado, ele se poria de pé e daria logo ao gatilho, esperando pelo melhor.

Assim ficou ele, submerso, com todos os sentidos atentos. Como era desagradável aquele respirar controlado e insuportáveis as ligeiras mordidelas dos camarões! Por sorte nenhum deles tinha qualquer ferida no corpo, pois do contrário os malditos animalzinhos ter-se-iam atirado contra elas. De qualquer forma, aquela fora uma brilhante idéia da jovem. Sem ela os cães já os teriam alcançado, onde quer que eles se tivessem escondido.

Inesperadamente, Bond encolheu-se. Uma bota de borracha tinha pisado em seu queixo e escorregado. O homem pensaria tratar-se de um galho de árvore? Bond não podia correr aquele risco. Com um só impulso pôs-se de pé, atirando para longe o pedaço de bambu.

Bond teve uma rápida impressão de um gigantesco corpo de pé, quase em cima de si, e duma coronha de rife, em rápido movimento. Levantou o braço esquerdo para proteger a cabeça e recebeu um violento golpe no braço. Ao mesmo tempo, o seu braço direito se esticou para a frente, e, quando o cano tocou no lado direito do peito, sob o mamilo, ele acionou o gatilho.

O coice da arma, quase encostada ao corpo do homem, por pouco não quebrou o pulso de Bond, mas o homem desabou para trás como uma árvore decepada que cai n’água. Antes que o corpo afundasse, Bond ainda pôde perceber-lhe uma grande fenda no flanco. A cabeça, uma cabeça negróide de chinês, veio à superfície, com os olhos revirados para cima e a água a sair de sua boca escancarada e silenciosa. Em seguida a cabeça submergiu novamente e nada mais se pôde ver senão uma lama espumosa e uma mancha vermelha que gradualmente se ia ampliando e lentamente era atraída pela corrente.

Bond se endireitou e voltou-se para o lado. Quarrel e a jovem estavam atrás, em pé, com a água a escorrer-lhes dos corpos. Quarrel tinha um sorriso que ia de orelha a orelha, mas a garota mordia as articulações dos dedos, enquanto seus olhos se escancaravam horrorizados diante da água avermelhada.

Bond disse laconicamente: “Desculpe-me, Honey. Tinha que ser feito. Ele estava bem sobre nós. Venha, vamos indo.” Agarrou-a de qualquer maneira, pelo braço, e arrastou-a para fora da principal corrente, apenas detendo-se quando chegaram a rio aberto, na boca do túnel de mangues.

O cenário estava novamente vazio. Bond olhou para o relógio, e verificou que parara às três horas. Olhou para o sol, já bastante deslocado para o ocidente e concluiu que deveriam ser quatro horas. Quanto ainda teriam que caminhar? Bond inesperadamente sentiu-se cansado. Agora teria de enfrentar a situação. Ainda que o disparo não tivesse sido ouvido — e certamente que ele fora abafado pelo próprio corpo da vítima e pelas árvores — a falta do homem seria sentida quando os outros se reunissem, — se a suposição de Quarrel fosse correta, na embocadura do rio, de onde seriam recolhidos pela lancha. Voltariam eles, subindo o rio, a fim de procurarem o desaparecido? Talvez não. Já estaria muito escuro quando eles tivessem a certeza de que o homem estava realmente desaparecido. O mais certo seria mandarem um grupo de homens pela manhã. Os cães facilmente dariam com o corpo. E o que aconteceria?

A garota puxou-o pela manga e disse com irritação: — Já é tempo de você me dizer o que significa tudo isto! Por que estão todos procurando se matar mutuamente? E quem é você? Não acredito em toda essa história de aves. Ninguém carrega revólveres contra aves.

Bond baixou o olhar, fitando aqueles olhos bem separados e irados. — Desculpe-me, Honey. Receio tê-la arrastado para uma boa encrenca. Eu lhe contarei tudo quando voltarmos à noite para o acampamento. Foi apenas má sorte que você se envolvesse comigo, desta maneira. Tenho uma guerrinha com essa gente. Eles parecem querer matar-me. Agora estou apenas interessado em que todos nós saiamos desta ilha sem que ninguém fique ferido. Já tenho muito do que queria, para da próxima vez voltar pela porta da frente.

— O que você quer dizer? Você é alguma espécie de policial? Está querendo meter esse chinês na cadeia?

— Mais ou menos, — disse Bond, rindo para ela. — Pelo menos você está do lado dos anjos. Agora, diga-me uma coisa. Quanto falta ainda para chegar ao acampamento dos guardas?

— Oh, cerca de uma hora.

— É um lugar bom para nele esconder-se? Eles poderiam achar-nos com facilidade?

— Eles teriam que atravessar o lago ou subir o rio. Tudo estará muito bem se eles não puserem o dragão em nosso encalço. Ele pode muito bem atravessar a água, pois já o vi fazê-lo.

— Bem — disse Bond diplomaticamente — esperemos que ele esteja com a cauda machucada, ou tenha outra coisa qualquer.

A jovem vociferou: — Muito bem, sr. Sabe-Tudo. — E acrescentou irritada: — Espere e verá.

Quarrel deixou o túnel de mangues, agitando ruidosamente a água, tendo na mão o rife do chinês abatido, e dizendo à guisa de quem pede desculpas:

— Não há mal em termos outra arma, chefe. Parece que vamos precisar dela.

Bond apanhou aquela arma. Era uma carabina “Remington”, do exército norte-americano, calibre 300. Não havia dúvida de que aquela gente contava com equipamento apropriado. Bond devolveu a arma a Quarrel, depois de examiná-la.

Quarrel como que fez eco aos seus pensamentos: — Isso é gente astuta, capitão. Aquele homem veio esquadrinhando suavemente, atrás dos outros, a fim de nos surpreender quando deixássemos o esconderijo, depois da passagem dos cães. Esse tal de doutor com certeza é um sujeito muito esperto.

Bond disse pensativamente: — É, ele deve ser um homem incomum. — Depois espantou os pensamentos: — Agora, vamos tocando para a frente. Honey diz que ainda precisamos de uma hora para chegarmos ao acampamento. É melhor irmos pela margem esquerda, de modo a ficarmos ao abrigo da colina. Pelo que já pudemos ver, eles têm lunetas assestadas sobre o rio.

Bond entregou a sua arma a Quarrel, que a guardou na mochila molhada. Puseram-se novamente em marcha, com Quarrel à frente, e Bond e a jovem andando juntos, atrás.

Aproveitavam algumas sombras das árvores e bambus da margem ocidental, mas deviam agora suportar toda a intensidade de um vento crestante. Borrifaram braços e corpos com água, a fim de refrescar as queimaduras. Os olhos de Bond estavam injetados por aquele insuportável revérbero e o seu braço doía intoleràvelmente no ponto em que fora atingido pela coronha. E ele não teria à sua espera o seu jantar de pão embebido, queijo e fiambre. Quanto tempo poderiam dormir? Não dormira muito na véspera, e parece que não iria ter melhor ração de sono. E a garota? Ela nada dormira. Ele e Quarrel teriam que se revezar, em quartos de vigilância. E logo chegaria o dia seguinte, quando procurariam ganhar novamente os mangues e vencer lentamente a distância que os separava de sua canoa, através da extremidade oriental da ilha. As coisas correriam daquela forma, segundo era de esperar. Então, tratariam de se fazerem ao mar na noite seguinte. Bond pensou em como haveria de abrir caminho por entre sólidos mangues, na distância de oito quilômetros. Que perspectiva! Continuou se arrastando para a frente, pensando nas “férias ao sol dos trópicos” de M. Muito gostaria que M tivesse que partilhar com ele aquelas “férias”.

O rio foi-se estreitando até que se reduziu a uma simples corrente entre as moitas de bambu. Depois se ampliava num estuário baixo e pantanoso, além do qual as cinco milhas quadradas de lago raso davam vazão para o outro lado da ilha, perdendo-se num agitado espelho líquido azul-cinza. Mais para além estava a brilhante pista aérea e o reflexo da luz solar sobre um único hangar. A jovem disse-lhe que se mantivesse na direção leste, e eles foram lentamente avançando, protegidos pela orla da mata.

Inesperadamente, Quarrel deteve-se, com o rosto esticado como o focinho de um cão para o terreno pantanoso à sua frente. Dois profundos sulcos tinham sido escavados na lama, com um sulco mais raso no centro. Eram a trilha de algo que tinha descido da colina e atravessado o pântano em direção ao lago.

A jovem disse com indiferença: — Por aqui já passou o dragão.

Quarrel arregalou os olhos para ela.

Bond caminhou lentamente pela trilha. As marcas exteriores eram bastante lisas, trazendo a marca de uma linha curva. Poderiam ter sido causadas por rodas, mas eram enormes, pelo menos com sessenta centímetros de largura. A trilha central tinha a mesma forma, mas com apenas três polegadas de largura, ou seja a largura de um pneumático de automóvel. As trilhas não apresentavam nenhum indício de pegadas e eram completamente frescas. Estendiam-se em linha reta, e os arbustos por elas atravessados tinham sido derrubados e esmagados no chão, como se um tanque de guerra tivesse passado por ali. Bond não podia imaginar que espécie de veículo seria aquele. A jovem tocou-o com o cotovelo e murmurou: — Eu lhe tinha dito. Ele apenas pôde responder pensativamente: — Bom, Honey, se não é o dragão, é algo que nunca vi antes.

Mais adiante, ela puxou-o ansiosamente pela manga. “Veja”, sussurrou, e apontou para a frente, indicando um grande cerrado de árvores, ao lado do qual passavam as trilhas. O cerrado estava sem folhas, enegrecido. Ao centro viam-se os restos dos ninhos de pássaros carbonizados. — Ele respirou sobre as árvores, — disse a garota nervosamente.

Bond aproximou-se das árvores e examinou-as. — Certamente que o fez — admitiu. Por que aquele cerrado, em especial, tinha sido queimado? Era muito estranho aquilo.

As trilhas desciam em direção ao lago e desapareciam na água. Bond teria gostado de segui-las, mas não poderia abandonar a cobertura das árvores. Assim, continuaram a marcha, cada um entregue aos próprios pensamentos.

Lentamente o dia começou a morrer, por trás da colina, e por fim a garota apontou para a frente, através dos arbustos; Bond pôde ver uma comprida restinga internando-se no lago. Estava coberta por densas moitas de arbustos e podiam-se ver, a cem metros da praia, os restos de uma cabana incendiada. Aquele parecia um lugar razoavelmente atraente para se passar a noite, e era bem protegido dos dois lados, pela água.

O vento tinha declinado e a água se apresentava suave e convidativa. Que prazer não seria tirarem as suas imundas camisas para um banho no lago e, depois de horas de patinhação através da lama e do lodo do pântano, poderem descansar naquela areia dura e seca!

O sol brilhou com reflexos amarelecidos e desapareceu por trás da montanha. Ainda era dia na extremidade oriental da ilha, mas a sombra negra do monte avançava vagarosamente sobre o lago e acabaria por expulsar completamente os últimos vestígios do sol. Os sapos começaram a coaxar mais barulhentamente que em Jamaica, até que a noite ficou cheia daquele áspero ruído. Do outro lado do lago um grande sapo macho começou a soar o seu tambor. Aquele estranho som era algo entre um tom-tom e um rosnado de macaco. Enviava mensagens que subitamente se interrompiam e logo silenciaram. Com certeza encontrara o que procurava.

Chegaram à garganta da restinga e seguiram por um estreito caminho, até a clareira que encerrava os escombros da cabana de sapé. As grandes e misteriosas trilhas saíam da água, de ambos os lados, atravessavam a clareira e os cerrados próximos. Muitos dos arbustos estavam queimados ou crestados. Podiam-se ver os restos de um fogão feito de pedaços de coral, e algumas panelas e latas vazias. Examinaram os destroços, e Quarrel desenterrou um par de latas intactas de costeletas de porco e ervilhas marca “Heinz”. A jovem encontrou ainda um saco de dormir muito amarrotado, enquanto Bond achou uma pequena bolsa de couro com cinco notas de um dólar, três libras de Jamaica e algumas moedas de prata. Os dois homens certamente tinham abandonado aquele lugar a toda pressa.

Prosseguiram mais para diante, até uma pequena clareira arenosa. Através dos arbustos podiam ver luzes cintilando sobre a água e provenientes da montanha, talvez a mais de três quilômetros de distância. A leste nada mais havia senão. os suaves reflexos escuros da água sob o céu sombrio.

Bond comentou: — Enquanto não acendermos nada, estaremos bem aqui. A primeira coisa a fazer é tomarmos um bom banho, Honey. Você pode ficar com o resto da restinga, que nós ficaremos com a sua garganta. Dentro de meia hora espero vê-la para o jantar.

A garota riu: — Você virá a rigor?

— Sem dúvida — respondeu Bond — e de calças.

Quarrel observou: — Capitão, enquanto ainda há um pouco de luz, vou abrir essas latas e preparar as coisas para a noite. — Remexeu dentro da mochila. — Aqui estão as suas calças e o seu revólver. O pão talvez não esteja muito bom, mas está apenas molhado. Pode-se comê-lo bem, e amanhã estará seco. O melhor talvez fosse comermos das latas esta noite, guardando o queijo e as costeletas. As latas são pesadas e amanhã teremos que andar muito.

Bond respondeu: — Muito bem, Quarrel. Deixarei o cardápio aos seus cuidados.

Em seguida, apanhou o revólver e as calças úmidas e desceu para a água rasa. A água estava acariciante, mas desagradavelmente quente. Bond escavou punhados de areia, com as mãos, e esfregou o corpo com ela, utilizando-a como sabonete. Depois deixou-se ficar gostosamente em meio àquele silêncio e àquela solidão.

As estrelas começaram a brilhar palidamente, as estrelas que os tinham trazido à ilha na noite passada; as estrelas que os tirariam dali no dia seguinte. Que viagem! Mas pelo menos já tinha dado os seus resultados. Agora tinha provas bastantes, e testemunhas, para ir ter com o governador e conseguir dele um inquérito completo acerca das atividades do Dr. No. Ninguém lança mão de metralhadoras contra pessoas, mesmo contra intrusos. E, da mesma forma, o que seria aquilo do Dr. No, que invadira a propriedade da Sociedade Audubon, aquilo que chegara a destruir essa propriedade e provavelmente matara um de seus empregados? Isto também teria que ser investigado. E o que haveria ele de encontrar quando voltasse pela porta da frente, talvez a bordo de um destróier, e com um destacamento de fuzileiros navais? Qual seria a resposta para o mistério do Dr. No? O que estaria ele escondendo? Por que aquele segredo era tão importante, que seria capaz de matar repetidas vezes, para preservá-lo? E quem era esse Dr. No?

Bond ouviu o barulho de alguém espojando-se na água. Pensou na garota. E quem, afinal, era Honeychile Ri-der? Aquilo pelo menos, pensou ele ao sair da água, era algo que deveria esclarecer antes do amanhecer.

Bond enfiou as suas pegajosas calças, sentou-se na areia e desmontou o revólver. Fê-lo pelo tato, utilizando-se de sua camisa para secar cada peça e cada cartucho. Depois, tornou a montar a arma e pressionou o gatilho, fazendo com que o tambor vazio desse uma volta completa. O som era satisfatório. Seriam precisos alguns dias para que o revólver começasse a enferrujar. Carregou-o e meteu-o no coldre, para dentro do cós da calça. Depois, levantou-se e voltou para a clareira.

A sombra de Honey chegou até ele, e a sua voz se fez ouvir: — Venha; estamos morrendo de fome. Apanhei uma das panelas, limpei-a e pusemos as ervilhas nela. Temos pão também. E eu não sinto escrúpulos de comer a sua ração, porque você me fez trabalhar muito mais do que se eu estivesse sozinha. Agora, estique a mão.

Bond achou graça no tom autoritário que havia em sua voz. Ele apenas podia perceber a sua silhueta, no escuro. Sua cabeça parecia mais aflada. Ele se perguntou como seriam os seus cabelos quando secos e penteados. Como seria ela quando estivesse vestindo roupas limpas naquele lindo corpo dourado? Podia vê-la entrando numa sala ou atravessando um vestíbulo em Beau Desert. Ela seria uma linda e encantadora Patinha Feia. Por que nunca procurara endireitar o nariz? Seria uma operação fácil. Depois disso, ela seria a jovem mais bela de Jamaica.

O seu ombro tocou nele. Bond esticou o braço e descansou a mão aberta no colo da jovem. Então Bond sentiu que ela estava enchendo a sua mão com ervilhas.

Subitamente, Bond aspirou o seu cheiro cálido de animal. Foi uma explosão sensual tão aguda que o seu corpo se uniu ao dela, e, por um momento, os seus olhos se fecharam.

Ela deixou escapar um riso curto, no qual havia timidez, satisfação e ternura. E disse, maternalmente: “Lá”, — e empurrou a mão de Bond.

 

CONTINUA

IX - POR UM TRIZ


Dez minutos mais tarde a baía estava vazia e imaculada. Pequenas ondas encrespavam-se preguiçosamente através do espelho das águas, no interior dos recifes e morriam exaustas na areia escura onde as conchas lilás brilhavam como unhas pintadas. O monte de conchas tinha desaparecido e não havia mais vestígios de pegadas. Quarrel cortara galhos de mangues e caminhava de costas procurando apagar as pegadas com aqueles galhos. Onde tinha varrido, a areia apresentava uma limpidez diferente mas não tão diferente a ponto de ser notada de fora do recife. A canoa da jovem tinha sido arrastada para dentro do mar, entre as rochas, e ali ficou coberta com algas e gravetos.

Quarrel tinha voltado ao promontório. Bond e a jovem estavam juntos, sob tufos de folhas, onde Bond dormira, e olhavam silenciosamente para o contorno do promontório, à volta do qual surgira a embarcação.

A lancha estava talvez a uns quinhentos metros de distância. A julgar pelo lento ritmo do motor, Bond concluiu que cada acidente da costa estava sendo cuidadosamente inspecionado para descobrir indícios da presença de estranhos. De qualquer forma, aquilo parecia uma possante embarcação. Talvez uma grande lancha de cabina. Que tripulação teria? Quem estaria no comando? O Dr. No? Improvável. Ele certamente não se daria àquele trabalho de polícia.

Do lado do ocidente apareceu um bando de corvos marinhos, voando baixo sobre o mar, além dos recifes. Bond observou-os. Eram o primeiro indício para ele encontrado daquela colônia de aves, na outra extremidade da ilha. Aquele bando, segundo Pleydell-Smith, seriam batedores à procura do brilho prateado das enchovas, próximas à superfície. Enquanto observava, as aves começaram a dar mergulhos rasos, ferindo o mar superficialmente e levantando respingos de água. Quase que de uma só vez, apareceu outra coluna de aves, vinda do ocidente, e logo outra, e mais outra, fundindo-se todas numa espessa e escura nuvem. Durante minutos, elas sombrearam o céu, e depois atiraram-se à água, cobrindo vários alqueires, piando e lutando, e mergulhando as cabeças no mar, fazendo uma rica colheita naquele sólido campo de anchovas, como piranhas que se banqueteassem num cavalo afogado.

Bond sentiu um suave toque da jovem, que fez um movimento com a cabeça, dizendo:

— As galinhas do chinês estão comendo milho.

Bond observou-lhe o rosto belo e feliz. Ela parecia bastante despreocupada com a chegada daqueles homens. Para ela aquilo era apenas o jogo de esconde-esconde que já tinha praticado antes.

A vibração metálica dos motores diesel estava-se tornando mais forte. A lancha deveria estar justamente por trás do promontório. Bond deu mais uma olhada à volta da tranqüila baía, e depois fixou os olhos através da folhagem e do mato, para os lados dos recifes.

A ponta de uma proa branca apareceu, seguida de uns dez metros de tombadilho, e logo o parabrisas de vidro, uma cabina baixa e uma antena de rádio, e o vulto de um homem à volta do leme. Finalmente, o comprido e achatado fosso da popa, e uma flâmula vermelha pendente, Seria uma lancha-torpedeira convertida, um excedente de guerra do governo britânico?

Os olhos de Bond fixaram-se nos dois homens que estavam em pé na popa. Eram negros de pele pálida, envergando roupas caqui de marinheiro, com largos cinturões e chapéus de palha com longas palas. Estavam um ao lado do outro, equilibrando-se sob a lenta elevação da massa líquida. Um deles segurava um alto-falante e o outro manejava uma metralhadora instalada num tripé. Bond teve a impressão de que era uma metralhadora “Spandau”.

O homem com o alto-falante deixou que este caísse, e ele ficou oscilando numa tira, que lhe dava volta ao pescoço. Apanhou um binóculo e começou a vasculhar metro a metro da praia. Indistintos comentários chegavam aos ouvidos de Bond, por entre o ruído dos motores.

Bond percebeu que os olhos do binóculo começavam pelo promontório e depois percorriam a areia. As lentes detiveram-se entre as rochas e continuaram o seu passeio. Depois, voltaram. O murmúrio do comentário elevou-se ganhando animação. O homem passou o binóculo para o metralhador, que observou rapidamente, devolvendo-o logo ao dono. O observador gritou alguma coisa para o timoneiro. A lancha começou a se aproximar da praia. Agora estavam justamente diante dos recifes, em frente a Bond e à jovem. O observador ergueu novamente o binóculo, apontando-o para as rochas onde se encontrava escondida a canoa da jovem. Novamente a fala excitada chegou aos ouvidos de Bond, por sobre as águas. Mais uma vez o binóculo foi passado ao metralhador, que levou algum tempo observando. Dessa vez, ele fez um sinal de assentimento com a cabeça.

Bond pensou: agora vamos ter coisa; esses homens conhecem o ofício. Em seguida, viu que o metralhador se ocupava em carregar a arma. O duplo estalido metálico chegou aos seus ouvidos, por entre o matraquear do motor.

O observador ergueu o alto-falante e ligou-o. O eco produzido pelo amplificador chegou até Bond, conduzido pela superfície da água. A voz do homem ribombou pela baía:

— Alô, pessoal! Saiam daí e não serão feridos. Era uma voz educada, com sotaque americano.

— Agora, pessoal — trovejou a voz — depressa! Nós vimos quando vocês desembarcaram. Já descobrimos o bote sob os paus. Não somos tolos e não estamos brincando. Saiam daí com os braços levantados e não lhes acontecerá nada!

Não se ouviu nenhuma resposta. Apenas as ondas quebravam docemente na praia. Bond podia ouvir a respiração da jovem. Os guinchos agudos dos corvos marinhos chegavam-lhes de uma milha de distância, sobre o mar. O cano de escapamento dos motores diesel produzia um ruído desigual e gorgulhante, quando o intumescimento do mar cobria o orifício de descarga.

Silenciosamente Bond tocou o braço da jovem e disse-lhe:

— Fique mais perto. Alvo menor.

Ele sentiu o calor da jovem mais próximo de seu corpo, e o rosto de Honey raspou pelo seu braço. Bond sussurrou:

— Enterre-se na areia. Encolha-se. Cada polegada a menos ajudará.

Ele começou a se encolher cuidadosamente na depressão que tinham escavado para se abrigarem, e sentiu que ela fazia o mesmo.

O homem estava erguendo o seu alto-falante. A voz ribombou novamente.

— Muito bem, pessoal! Vocês irão ver que isso aqui não é para brincadeira. — Depois, levantou o polegar. O metralhador experimentou a arma fazendo alguns disparos para a copa dos mangues situados por trás da praia. Bond ouviu o rápido matraquear, tão seu conhecido, e do qual se despedira pela última vez diante das linhas alemãs, nas Ardenas. As balas produziam o velho som de pombos assustados, assobiando sobre sua cabeça. Depois fez-se silêncio.

À distância, Bond via a nuvem negra de corvos marinhos elevar-se, começando a fazer os seus amplos círculos. Seus olhos voltaram para a embarcação. O metralhador estava apalpando o cano da metralhadora, para ver se já estava aquecido. Os dois homens trocaram algumas palavras. O observador apanhou novamente o porta-voz.

— Está bem, pessoal. Vocês foram avisados.

Bond viu o cano da “Spandau” levantar-se e abaixar-se. O homem estava querendo começar com a canoa, entre as rochas. Bond sussurrou para a jovem: — Muito bem, Honey. Agüente firme. Mantenha-se abaixada. Não vai durar muito.

Ele sentiu que a mão da jovem apertava o seu braço, e pensou: “Coitada; ela está metida nisso por minha causa.” Ele inclinou-se para a direita a fim de cobrir a cabeça de Honey e afundou o rosto na areia.

Dessa vez o matraquear foi terrível. Balas ricocheteavam no flanco do promontório. Fragmentos de pedra saltavam para todos os lados, sobre a praia. Outras balas ricocheteavam e iam perder-se dentro da mata. Simultaneamente com todo aquele barulho ouvia-se o martelar contínuo da metralhadora.

Houve uma pausa. Nova carga, pensou Bond. Agora será para nós. Pôde sentir a jovem agarrando-se a ele. Seu corpo tremia todo, encostado ao seu flanco. Bond apanhou uma arma e apertou-a de encontro ao corpo. O matraquear da metralhadora recomeçou. As balas vinham zunindo, da linha de maré, em direção a eles. Ouviu-se uma sucessão de rápidas batidas. O tufo, acima deles, estava sendo reduzido a pedaços. “Zuip Zuip Zuip”. Era como se um chicote de aço estivesse retalhando os arbustos. Pedaços de lenha caíam sobre eles, cobrindo-os lentamente. Bond respirou um ar mais fresco, o que significava que eles agora estavam ao ar-livre. Estariam eles escondidos pelas folhas o pelos destroços? As balas continuaram deslocando-se ao longo da linha da costa. Em menos de um minuto a metralhadora parou.

O silêncio tornou a reinar. A jovem lamuriou-se docemente. Bond fê-la calar-se e apertou-a mais forte.

O alto-falante apregoou:

— Está bem, pessoal. Se vocês ainda têm ouvidos, saibam que voltaremos logo para recolher-lhes os pedaços. Vamos trazer os cães. Até à vista, por enquanto.

O ritmo do motor se acelerou, e através das folhas Bond pôde ver a popa da lancha afundar-se mais na água, enquanto a embarcação rumava rapidamente para oeste. Dentro de minutos já não se ouvia mais nada.

Bond ergueu a cabeça cautelosamente. A baía estava serena, e tudo como antes, exceto o cheiro de cordite e as rochas quebradas.

Bond fez a jovem levantar-se. Havia marcas de lágrimas em seu rosto. Ela olhou-o aterrada, e disse:

— Isso foi terrível. Por que eles o fizeram? Podíamos ter sido mortos.

Bond pensou naquela jovem que sempre abrira caminho, na vida, por si mesma, mas apenas contra a natureza. Conhecia o mundo dos animais, dos insetos e dos peixes, e tirava todo o partido desse conhecimento. Mas aquele era um pequeno mundo, limitado pelo sol, pela lua e pelas estações. Ela não conhecia o grande mundo das salas cheias de fumo, dos corredores de negócios, dos corredores e antecâmaras governamentais, dos cautelosos encontros em bancos de praças — numa palavra: ela nada conhecia da luta pelo poder e pelo dinheiro, travada por homens poderosos.

Bond disse:

— É isso mesmo, Honey, eles não passam de uma quadrilha de bandidos assustados conosco. Podemos enfrentá-los.

Bond colocou o braço à volta de seus ombros e continuou:

— E você esteve maravilhosa, brava como ninguém. Agora, vamos ao encontro de Quarrel para traçar os nossos planos. De qualquer forma, já é tempo de comermos alguma coisa. O que é que você costuma comer nessas expedições?

Deram meia-volta e seguiram pela praia em direção ao promontório. Depois de um minuto, ela disse com voz bem controlada:

— Oh, há uma porção de coisas por aí que se podem comer. Ouriços do mar principalmente, mas também bananas silvestres e outras coisas. Eu como e durmo durante dois dias, antes de vir aqui. Não preciso de nada.

Bond apertou-a mais fortemente, mas deixou cair o braço, assim que Quarrel apareceu ao longe. Quarrel vinha saltando sobre as rochas, e, em determinado momento, parou, olhando para baixo. Bond e Honey se aproximaram dele. A canoa da jovem estava cortada ao meio pelas balas. Honey deixou escapar um grito, olhando desesperadamente para Bond:

— A minha canoa! Como poderei voltar?

— Não se preocupe, senhorita, — disse Quarrel, que sentia a perda de uma canoa mais do que Bond. Imaginou ainda que aquela embarcação representasse quase todo o capital da jovem. — O capitão lhe dará outra. E a senhorita voltará conosco. Temos um magnífico bote, entre os mangues, e ele não foi destruído. Já estive lá espiando.

Quarrel olhou para Bond. Agora, o seu rosto denotava preocupação.

— Mas, capitão, o senhor está vendo o que eu disse dessa gente. Eles são duros e não estão brincando. Esses cães que eles vão trazer são policiais — Pinschers, como eles os chamam. Bastardos. Meus amigos disseram-me que são uma matilha de vinte ou mais. É melhor resolvermos logo.

— Está bem, Quarrel. Mas antes de mais nada precisamos comer alguma coisa. — o diabo que me carregue se eu vou ser aterrorizado e expulso da ilha antes de dar uma olhada nisso. Levaremos Honey conosco. — E, voltando-se para a jovem:

— Está bem, Honey? Nada lhe acontecerá. Depois voltaremos juntos.

A jovem olhou-o em dúvida:

— Acho que não há alternativa. Quero dizer. Gostaria de ir com vocês, se não atrapalhasse. Francamente, não quero comer nada. Mas você me levará de volta, assim que puder? Não quero ver mais aquela gente. Durante quanto tempo vocês vão ficar olhando para essas aves?

Bond respondeu evasivamente:

— Pouco tempo. Eu terei apenas que ver o que lhes aconteceu e porquê. Depois, partiremos.

Olhou para o relógio e anunciou:

— Agora são doze horas. Você nos esperará aqui. Tome um banho ou faça o que quiser. Não ande por aí deixando pegadas. Vamos, Quarrel, é melhor escondermos aquele bote.

Só à uma hora eles estavam prontos. Bond e Quarrel encheram a canoa com pedras e areia, até que ela desapareceu sob a água, entre os mangues. Depois, apagaram as suas pegadas. As balas tinham deixado tantos gravetos na orla da praia, que eles podiam caminhar pisando em folhas e ramos quebrados. Comeram parte de suas rações — os homens com avidez, mas Honey com relutância — e depois, passando sobre as rochas, foram ter à lagoa, próxima da costa. Em seguida foram vadeando aquelas águas, em direção à foz do rio, trezentos metros praia abaixo.

Fazia muito calor. Um vento áspero e quente começou a soprar do nordeste. Quarrel informou que aquele vento soprava diariamente, durante todo o ano, e era vital para a guaneira, pois secava o guano. O revérbero do mar e das brilhantes folhas verdes dos mangues cegava-os. Bond deu-se por feliz, já que tivera o cuidado de acostumar sua pele ao sol.

Na foz do rio encontraram um banco de areia e um extenso pântano, profundo e de águas estagnadas. Os dois homens podiam molhar-se ou tirar as roupas. Bond disse à jovem:

— Honey, não podemos ter cerimônia, nesta situação. Vamos ficar apenas com as camisas por causa do sol. Fique apenas com o que for sensato e caminhe atrás de nós.

Sem esperar pela resposta da jovem, os dois homens tiraram as calças. Quarrel enrolou-as e guardou-as na sacola, juntamente com as provisões e o revólver de Bond. Depois começaram a vadear a lagoa, com Quarrel na frente, logo seguido de Bond, e, finalmente a jovem. A água chegou até a cintura de Bond. Um grande peixe prateado deu um salto perto deles e depois caiu ruidosamente na água. Viram-se pequeninas setas riscarem a superfície, quando peixes menores se afastaram precipitadamente.

A lagoa convergia para uma estreita garganta, por sobre a qual as copas dos mangues se tocavam. Durante algum tempo eles vadearam através de um túnel fresco, e depois o rio se alargou num canal profundo, de águas morosas, que serpeava para a frente, entre as gigantescas raízes de sustentação dos mangues. O fundo era lamacento, e a cada passo os pés se enterravam algumas polegadas no lodo. Pequenos peixes ou camarões se encolhiam ou fugiam de baixo de seus pés, e de quando em quando eles tinham que parar para se desembaraçar das sanguessugas, antes que elas se agarrassem firmemente. A não ser isso, aquela caminhada era fácil, sob o frescor das arvores, e, pelo menos para Bond, era uma bênção estar ao abrigo do sol.

Em breve, à medida que se iam afastando do mar, começaram a sentir um cheiro de ovo podre, o cheiro de hidrogênio sulfurado do gás dos pântanos. Os mosquitos começaram a assaltá-los e pareciam gostar do corpo de Bond. Quarrel disse-lhe que mergulhasse na água do rio, pois os mosquitos gostavam de carne salgada. Bond tirou a camisa e fez o que Quarrel lhe aconselhara. Depois disso sentiu-se melhor e o seu olfato chegou mesmo a se acostumar com aquele repugnante cheiro, a não ser quando os pés de Quarrel desfaziam algum bolsão de gás, no fundo da lama, e uma gigantesca bolha atravessava a água para arrebentar na superfície sob as suas narinas.

Os mangues começaram a se tornar mais escassos e mais esparsos, enquanto o rio se ia alargando aos poucos. Ao mesmo tempo, a água tornava-se mais rasa e o fundo mais firme. Logo chegaram a uma volta e saíram para céu aberto, Honey disse:

— É melhor tomarmos cuidado, agora. Eles poderão ver-nos com muita facilidade. Isso vai assim durante uma milha. Depois o rio torna a se estreitar até o lago. E depois se poderá ver a restinga onde os tratadores das aves viviam.

O grupo deteve-se à sombra do túnel de mangues e olhou para fora. O rio serpeava perigosamente, afastando-se deles, em direção ao centro da ilha. As suas barrancas, bordadas de bambus de pequeno porte e de vegetação rala, dar-lhes-íam cobertura reduzida. Partindo de sua margem ocidental, o terreno elevava-se aos poucos, e logo abruptamente até o monte, situado a três quilômetros de distância, que era a guaneira. Na base daquela montanha, viam-se várias cabanas esparsas. Um ziguezague prateado galgava o flanco da colina, até as tendas — trilhos “Decauville”, pensou Bond, destinados a levarem o guano para o moinho e separa-dor. O cume do monte era branco, como se estivesse coberto de neve. De sua parte mais elevada desprendia-se como que uma bandeira de dó de guano. Bond podia ver os pontos negros que eram os corvos marinhos, sobre o fundo branco. Aquelas aves estavam levantando vôo e pousando como abelhas numa colmeia.

Bond deixou-se ficar de pé e contemplou o brilho distante daquela montanha de excrementos de aves. Então aquilo era o reino do Dr. No! Bond pensou que jamais vira um cenário tão escondido e distante, em toda a sua vida.

Examinou o terreno entre o rio e a montanha. Parecia ser principalmente formado com aquela matéria cinzenta de corais mortos. Não havia dúvida de que uma estrada ou trilha corria da falda da montanha até ao lago central e aos pântanos. Bond notou ainda que toda a vegetação se curvava para oeste, e imaginou viver durante todo um ano com aquele vento escaldante castigando a ilha, sem falar do cheiro do guano e do gás dos pântanos. Nenhuma colônia penal poderia encontrar pior localização do que aquela.

Bond olhou para leste, onde os mangues, na área dos charcos, pareciam oferecer mais hospitalidade. Os três puseram-se a caminhar sobre um sólido tapete verde de vegetação. Sobre suas cabeças, aves revoluteavam agitadas, para depois se, acalmarem, e logo tornarem a agitar-se. Seus pios eram carregados pelo vento crestante.

A voz de Quarrel interrompeu os pensamentos de Bond:

— Eles vêm vindo, capitão!

Bond seguiu o olhar de Quarrel. Um grande caminhão descia celeremente das tendas, com uma nuvem de pó levantando-se das rodas. Bond acompanhou-o durante dez minutos, até que o veículo desapareceu entre os mangues, na margem do rio. Bond pôs-se a escutar e ouviu latidos de cães, que eram trazidos pelo vento.

Quarrel comentou:

— Eles vão descer pelo rio, capitão. Sabem que não nos podemos mover, a não ser rio acima, se não estivermos mortos. Certamente que descerão pelo rio, até a praia, e farão um reconhecimento dos destroços. Depois, com toda a certeza, a lancha virá com um pequeno bote e recolherá os homens e os cães. Pelo menos, isso é o que eu faria no lugar deles.

Honey disse: — Isso é, de fato, o que eles fazem quando me procuram. É isso mesmo. Basta que cortemos um pedaço de bambu, e, quando eles estiverem perto, mergulhemos na água, procurando respirar através do bambu, até que eles se afastem.

Bond sorriu para Quarrel, e disse: — Suponhamos que você corte os bambus, enquanto eu procuro um bom esconderijo entre os mangues.

Quarrel aquiesceu hesitante e começou a subir contra a corrente, em direção ao bambuzal, enquanto Bond se encaminhava para o túnel formado pelos mangues.

Bond evitara olhar para a jovem, mas esta disse-lhe com impaciência:

— Não precisa ter tanto cuidado em não olhar para mim. Não adianta se preocupar com tais coisas, numa hora dessas. Você mesmo o disse, ainda há pouco.

Bond virou-se e olhou para a jovem. Sua camisa esfrangalhada descia até a linha d’água. Podia-se ainda ter um vislumbre de pálidas coxas, serpeando sob a superfície. O lindo rosto sorriu para ele. No meio daqueles mangues, o seu nariz quebrado parecia harmonizar-se com o ambiente, pela sua animalidade.

Bond fitou-a descansadamente e ela compreendeu. Depois, ele deu-lhe as costas e desceu pela correnteza, seguido por ela. Logo encontrou o que procurava, isto é, uma fenda naquela parede formada pelas raízes dos mangues. Bond recomendou: — Não quebre nenhum galho. — Depois, baixou a cabeça e meteu-se por aquela brecha. O canal avançava numa distância de dez metros. A lama sob seus pés tornou-se mais mole e espessa. Chegou a uma sólida e intransponível parede de raízes. Aquela água escura fluía vagarosamente através de uma ampla e tranqüila lagoa. Bond deteve-se. A jovem se aproximou dele.

— Isto é mesmo uma brincadeira de esconde-esconde — disse ela, trêmula.

— É verdade — aquiesceu Bond distraidamente, enquanto pensava em seu revólver. Com efeito, ele preocupava-se em saber com que eficiência a arma operaria depois de um banho no rio — quantos cães e homens ele poderia eliminar, se fossem descobertos. Sentiu um estremecimento de inquietação. Tinha sido uma falta de sorte ter encontrado aquela jovem. Em combate, queira-se ou não, uma mulher representa sempre um coração a mais. O inimigo tem dois alvos enquanto apenas oferece um.

Bond lembrou-se de sua sede. Apanhou na concha da mão um pouco de água e bebeu-a. Aquela água era salobra e tinha gosto de terra. Mas servia. Bond bebeu um pouco mais. A jovem agitou a mão e deteve-o, dizendo:

— Não beba demais. Lave a boca e cuspa. Você pode apanhar febre.

Quarrel assobiou de algum ponto situado na corrente principal. Bond respondeu e foi em direção ao amigo. Depois, voltaram juntos, internando-se no canal. Quarrel borrifou as raízes de mangues com água, nos pontos em que os seus corpos talvez as tivessem raspado. “Para tirar o nosso cheiro”, explicou, laconicamente. Em seguida mostrou o seu feixe de bambus e começou a cortá-los e prepará-los. Enquanto isso, Bond se ocupava com seu revólver e a munição. Os três ficaram imóveis, no meio daquele pântano, de modo a não levantarem mais lama.

A luz do sol filtrava-se através do espesso teto de folhas, os camarões agitavam-se sob os pés daqueles três fugitivos. Gradativamente foi-se avolumando uma insuportável tensão, naquele silêncio escaldante e angustioso.

Foi quase um alívio ouvir-se o ladrar dos cães.


X - O RASTRO DO DRAGÃO


O grupo de investigação descia rapidamente pelo rio. Os dois homens, de calções de banho e altas botas impermeáveis, tinham que correr para acompanhar os cães.

Eram grandes negros chineses, que traziam coldres sustentados ao ombro por meio de talabartes cruzados diante dos peitos suados. De quando em quando trocavam gritos que em geral não passavam de imprecações. À frente deles a matilha de cães Dobermann nadava e debatia-se n’água, latindo excitadamente. Tinham farejado uma pista e procuravam segui-la nervosamente, com as orelhas eretas sobre as cabeças afladas.

— Talvez um maldito crocodilo, — gritou o chefe elevando a voz sobre a algazarra. Empunhava um chicote que de vez em quando fazia estalar no campo de caça.

Os outros homens se encaminhavam para ele. O chefe gritou excitadamente: “Aposto que é o gringo inglês! Tenho certeza de que ele está entre os mangues. Cuidado para que o gringo não nos faça cair numa emboscada.” O homem tirou o revólver do coldre e colocou-o sob o sovaco, sem tirar a mão da coronha.

O grupo agora estava deixando a parte do rio, sob céu aberto, e entrando no túnel formado pelos mangues. O primeiro homem tinha um apito, que se projetava de seu largo rosto como um toco de charuto. Fez soar um agudo silvo. Quando os cães avançaram, ele se deixou ficar com o seu chicote junto do chefe. Os animais continuavam farejando, lamuriando-se porque a corrente os obrigava a desobedecer às ordens recebidas. Os dois homens sacaram os revólveres e vadearam lentamente o rio, na mesma direção da corrente, por entre os caules tortuosos dos mangues.

O homem que ia na frente chegou ao estreito canal que Bond tinha encontrado, agarrou um dos cães pela co-leira e lançou-o ao canal. O animal resfolegou ansiosamente e debateu-se para a frente. Os olhos do homem percorreram as raízes dos mangues, de ambos os lados do canal, para ver se apresentavam algum arranhão.

O cão e o homem chegaram ao pequeno lago situado na extremidade do canal. O homem olhou à sua volta, com ar animado. Tornou a agarrar o cão pela coleira e puxou-o para trás. O animal relutava em abandonar o lugar. Então, o homem feriu a água com o chicote.

O segundo homem estivera esperando à entrada do canal. O primeiro saiu daquele pequeno remanso e sacudiu a cabeça, descendo a corrente, com os cães, que agora se mostravam menos excitados, nadando à frente.

Lentamente, a algazarra da perseguição foi diminuindo e desapareceu.

Por mais cinco minutos nada se mexeu na laguna dos mangues; depois, num dos cantos, entre as raízes, apareceu lentamente para fora d’água um fino periscópio de bambu. O rosto de Bond emergiu logo em seguida, com os cabelos molhados colados à testa, como a cara de um cadáver que boiasse. Em sua mão direita, sob a água, o revólver estava pronto. Bond procurou escutar cuidadosamente. O silêncio era completo, não havia o mínimo ruído. Ou haveria? O que seria aquele suave barulho, como se algo deslizasse entre a água, na corrente principal? Viria alguém, muito serenamente, seguindo na esteira daquela caçada? Bond procurou apalpar à sua volta e tocou delicadamente nos dois corpos que estavam cada um em um de seus flancos, entre as raízes, na orla da laguna. Quando os dois rostos aforaram à superfície, ele colocou o seu dedo indicador sobre os lábios, mas já era tarde. Quarrel tinha tossido e cuspido. Bond fez uma careta e fez um sinal na direção da principal corrente. Todos procuravam escutar. O ruído recomeçou. Alguém estava-se dirigindo para o canal lateral. Os tubos de bambu voltaram para as três bocas e as cabeças tornaram a submergir. Debaixo da água Bond descansou a cabeça na lama, apertou as narinas e os lábios à volta do tubo. Sabia que a laguna já fora examinada uma vez, pois sentira a agitação causada na água pelo cão, que passara nadando! Da primeira vez não tinham sido achados, mas conseguiriam escapar desta? Agora haveria menos possibilidades de que a lama revolta se escoasse para fora da laguna. Se esse batedor visse a mancha mais escura, na água, atiraria ou usaria um punhal? Que armas traria? Bond resolveu não correr riscos. Ao primeiro rumor de movimento, ao seu lado, ele se poria de pé e daria logo ao gatilho, esperando pelo melhor.

Assim ficou ele, submerso, com todos os sentidos atentos. Como era desagradável aquele respirar controlado e insuportáveis as ligeiras mordidelas dos camarões! Por sorte nenhum deles tinha qualquer ferida no corpo, pois do contrário os malditos animalzinhos ter-se-iam atirado contra elas. De qualquer forma, aquela fora uma brilhante idéia da jovem. Sem ela os cães já os teriam alcançado, onde quer que eles se tivessem escondido.

Inesperadamente, Bond encolheu-se. Uma bota de borracha tinha pisado em seu queixo e escorregado. O homem pensaria tratar-se de um galho de árvore? Bond não podia correr aquele risco. Com um só impulso pôs-se de pé, atirando para longe o pedaço de bambu.

Bond teve uma rápida impressão de um gigantesco corpo de pé, quase em cima de si, e duma coronha de rife, em rápido movimento. Levantou o braço esquerdo para proteger a cabeça e recebeu um violento golpe no braço. Ao mesmo tempo, o seu braço direito se esticou para a frente, e, quando o cano tocou no lado direito do peito, sob o mamilo, ele acionou o gatilho.

O coice da arma, quase encostada ao corpo do homem, por pouco não quebrou o pulso de Bond, mas o homem desabou para trás como uma árvore decepada que cai n’água. Antes que o corpo afundasse, Bond ainda pôde perceber-lhe uma grande fenda no flanco. A cabeça, uma cabeça negróide de chinês, veio à superfície, com os olhos revirados para cima e a água a sair de sua boca escancarada e silenciosa. Em seguida a cabeça submergiu novamente e nada mais se pôde ver senão uma lama espumosa e uma mancha vermelha que gradualmente se ia ampliando e lentamente era atraída pela corrente.

Bond se endireitou e voltou-se para o lado. Quarrel e a jovem estavam atrás, em pé, com a água a escorrer-lhes dos corpos. Quarrel tinha um sorriso que ia de orelha a orelha, mas a garota mordia as articulações dos dedos, enquanto seus olhos se escancaravam horrorizados diante da água avermelhada.

Bond disse laconicamente: “Desculpe-me, Honey. Tinha que ser feito. Ele estava bem sobre nós. Venha, vamos indo.” Agarrou-a de qualquer maneira, pelo braço, e arrastou-a para fora da principal corrente, apenas detendo-se quando chegaram a rio aberto, na boca do túnel de mangues.

O cenário estava novamente vazio. Bond olhou para o relógio, e verificou que parara às três horas. Olhou para o sol, já bastante deslocado para o ocidente e concluiu que deveriam ser quatro horas. Quanto ainda teriam que caminhar? Bond inesperadamente sentiu-se cansado. Agora teria de enfrentar a situação. Ainda que o disparo não tivesse sido ouvido — e certamente que ele fora abafado pelo próprio corpo da vítima e pelas árvores — a falta do homem seria sentida quando os outros se reunissem, — se a suposição de Quarrel fosse correta, na embocadura do rio, de onde seriam recolhidos pela lancha. Voltariam eles, subindo o rio, a fim de procurarem o desaparecido? Talvez não. Já estaria muito escuro quando eles tivessem a certeza de que o homem estava realmente desaparecido. O mais certo seria mandarem um grupo de homens pela manhã. Os cães facilmente dariam com o corpo. E o que aconteceria?

A garota puxou-o pela manga e disse com irritação: — Já é tempo de você me dizer o que significa tudo isto! Por que estão todos procurando se matar mutuamente? E quem é você? Não acredito em toda essa história de aves. Ninguém carrega revólveres contra aves.

Bond baixou o olhar, fitando aqueles olhos bem separados e irados. — Desculpe-me, Honey. Receio tê-la arrastado para uma boa encrenca. Eu lhe contarei tudo quando voltarmos à noite para o acampamento. Foi apenas má sorte que você se envolvesse comigo, desta maneira. Tenho uma guerrinha com essa gente. Eles parecem querer matar-me. Agora estou apenas interessado em que todos nós saiamos desta ilha sem que ninguém fique ferido. Já tenho muito do que queria, para da próxima vez voltar pela porta da frente.

— O que você quer dizer? Você é alguma espécie de policial? Está querendo meter esse chinês na cadeia?

— Mais ou menos, — disse Bond, rindo para ela. — Pelo menos você está do lado dos anjos. Agora, diga-me uma coisa. Quanto falta ainda para chegar ao acampamento dos guardas?

— Oh, cerca de uma hora.

— É um lugar bom para nele esconder-se? Eles poderiam achar-nos com facilidade?

— Eles teriam que atravessar o lago ou subir o rio. Tudo estará muito bem se eles não puserem o dragão em nosso encalço. Ele pode muito bem atravessar a água, pois já o vi fazê-lo.

— Bem — disse Bond diplomaticamente — esperemos que ele esteja com a cauda machucada, ou tenha outra coisa qualquer.

A jovem vociferou: — Muito bem, sr. Sabe-Tudo. — E acrescentou irritada: — Espere e verá.

Quarrel deixou o túnel de mangues, agitando ruidosamente a água, tendo na mão o rife do chinês abatido, e dizendo à guisa de quem pede desculpas:

— Não há mal em termos outra arma, chefe. Parece que vamos precisar dela.

Bond apanhou aquela arma. Era uma carabina “Remington”, do exército norte-americano, calibre 300. Não havia dúvida de que aquela gente contava com equipamento apropriado. Bond devolveu a arma a Quarrel, depois de examiná-la.

Quarrel como que fez eco aos seus pensamentos: — Isso é gente astuta, capitão. Aquele homem veio esquadrinhando suavemente, atrás dos outros, a fim de nos surpreender quando deixássemos o esconderijo, depois da passagem dos cães. Esse tal de doutor com certeza é um sujeito muito esperto.

Bond disse pensativamente: — É, ele deve ser um homem incomum. — Depois espantou os pensamentos: — Agora, vamos tocando para a frente. Honey diz que ainda precisamos de uma hora para chegarmos ao acampamento. É melhor irmos pela margem esquerda, de modo a ficarmos ao abrigo da colina. Pelo que já pudemos ver, eles têm lunetas assestadas sobre o rio.

Bond entregou a sua arma a Quarrel, que a guardou na mochila molhada. Puseram-se novamente em marcha, com Quarrel à frente, e Bond e a jovem andando juntos, atrás.

Aproveitavam algumas sombras das árvores e bambus da margem ocidental, mas deviam agora suportar toda a intensidade de um vento crestante. Borrifaram braços e corpos com água, a fim de refrescar as queimaduras. Os olhos de Bond estavam injetados por aquele insuportável revérbero e o seu braço doía intoleràvelmente no ponto em que fora atingido pela coronha. E ele não teria à sua espera o seu jantar de pão embebido, queijo e fiambre. Quanto tempo poderiam dormir? Não dormira muito na véspera, e parece que não iria ter melhor ração de sono. E a garota? Ela nada dormira. Ele e Quarrel teriam que se revezar, em quartos de vigilância. E logo chegaria o dia seguinte, quando procurariam ganhar novamente os mangues e vencer lentamente a distância que os separava de sua canoa, através da extremidade oriental da ilha. As coisas correriam daquela forma, segundo era de esperar. Então, tratariam de se fazerem ao mar na noite seguinte. Bond pensou em como haveria de abrir caminho por entre sólidos mangues, na distância de oito quilômetros. Que perspectiva! Continuou se arrastando para a frente, pensando nas “férias ao sol dos trópicos” de M. Muito gostaria que M tivesse que partilhar com ele aquelas “férias”.

O rio foi-se estreitando até que se reduziu a uma simples corrente entre as moitas de bambu. Depois se ampliava num estuário baixo e pantanoso, além do qual as cinco milhas quadradas de lago raso davam vazão para o outro lado da ilha, perdendo-se num agitado espelho líquido azul-cinza. Mais para além estava a brilhante pista aérea e o reflexo da luz solar sobre um único hangar. A jovem disse-lhe que se mantivesse na direção leste, e eles foram lentamente avançando, protegidos pela orla da mata.

Inesperadamente, Quarrel deteve-se, com o rosto esticado como o focinho de um cão para o terreno pantanoso à sua frente. Dois profundos sulcos tinham sido escavados na lama, com um sulco mais raso no centro. Eram a trilha de algo que tinha descido da colina e atravessado o pântano em direção ao lago.

A jovem disse com indiferença: — Por aqui já passou o dragão.

Quarrel arregalou os olhos para ela.

Bond caminhou lentamente pela trilha. As marcas exteriores eram bastante lisas, trazendo a marca de uma linha curva. Poderiam ter sido causadas por rodas, mas eram enormes, pelo menos com sessenta centímetros de largura. A trilha central tinha a mesma forma, mas com apenas três polegadas de largura, ou seja a largura de um pneumático de automóvel. As trilhas não apresentavam nenhum indício de pegadas e eram completamente frescas. Estendiam-se em linha reta, e os arbustos por elas atravessados tinham sido derrubados e esmagados no chão, como se um tanque de guerra tivesse passado por ali. Bond não podia imaginar que espécie de veículo seria aquele. A jovem tocou-o com o cotovelo e murmurou: — Eu lhe tinha dito. Ele apenas pôde responder pensativamente: — Bom, Honey, se não é o dragão, é algo que nunca vi antes.

Mais adiante, ela puxou-o ansiosamente pela manga. “Veja”, sussurrou, e apontou para a frente, indicando um grande cerrado de árvores, ao lado do qual passavam as trilhas. O cerrado estava sem folhas, enegrecido. Ao centro viam-se os restos dos ninhos de pássaros carbonizados. — Ele respirou sobre as árvores, — disse a garota nervosamente.

Bond aproximou-se das árvores e examinou-as. — Certamente que o fez — admitiu. Por que aquele cerrado, em especial, tinha sido queimado? Era muito estranho aquilo.

As trilhas desciam em direção ao lago e desapareciam na água. Bond teria gostado de segui-las, mas não poderia abandonar a cobertura das árvores. Assim, continuaram a marcha, cada um entregue aos próprios pensamentos.

Lentamente o dia começou a morrer, por trás da colina, e por fim a garota apontou para a frente, através dos arbustos; Bond pôde ver uma comprida restinga internando-se no lago. Estava coberta por densas moitas de arbustos e podiam-se ver, a cem metros da praia, os restos de uma cabana incendiada. Aquele parecia um lugar razoavelmente atraente para se passar a noite, e era bem protegido dos dois lados, pela água.

O vento tinha declinado e a água se apresentava suave e convidativa. Que prazer não seria tirarem as suas imundas camisas para um banho no lago e, depois de horas de patinhação através da lama e do lodo do pântano, poderem descansar naquela areia dura e seca!

O sol brilhou com reflexos amarelecidos e desapareceu por trás da montanha. Ainda era dia na extremidade oriental da ilha, mas a sombra negra do monte avançava vagarosamente sobre o lago e acabaria por expulsar completamente os últimos vestígios do sol. Os sapos começaram a coaxar mais barulhentamente que em Jamaica, até que a noite ficou cheia daquele áspero ruído. Do outro lado do lago um grande sapo macho começou a soar o seu tambor. Aquele estranho som era algo entre um tom-tom e um rosnado de macaco. Enviava mensagens que subitamente se interrompiam e logo silenciaram. Com certeza encontrara o que procurava.

Chegaram à garganta da restinga e seguiram por um estreito caminho, até a clareira que encerrava os escombros da cabana de sapé. As grandes e misteriosas trilhas saíam da água, de ambos os lados, atravessavam a clareira e os cerrados próximos. Muitos dos arbustos estavam queimados ou crestados. Podiam-se ver os restos de um fogão feito de pedaços de coral, e algumas panelas e latas vazias. Examinaram os destroços, e Quarrel desenterrou um par de latas intactas de costeletas de porco e ervilhas marca “Heinz”. A jovem encontrou ainda um saco de dormir muito amarrotado, enquanto Bond achou uma pequena bolsa de couro com cinco notas de um dólar, três libras de Jamaica e algumas moedas de prata. Os dois homens certamente tinham abandonado aquele lugar a toda pressa.

Prosseguiram mais para diante, até uma pequena clareira arenosa. Através dos arbustos podiam ver luzes cintilando sobre a água e provenientes da montanha, talvez a mais de três quilômetros de distância. A leste nada mais havia senão. os suaves reflexos escuros da água sob o céu sombrio.

Bond comentou: — Enquanto não acendermos nada, estaremos bem aqui. A primeira coisa a fazer é tomarmos um bom banho, Honey. Você pode ficar com o resto da restinga, que nós ficaremos com a sua garganta. Dentro de meia hora espero vê-la para o jantar.

A garota riu: — Você virá a rigor?

— Sem dúvida — respondeu Bond — e de calças.

Quarrel observou: — Capitão, enquanto ainda há um pouco de luz, vou abrir essas latas e preparar as coisas para a noite. — Remexeu dentro da mochila. — Aqui estão as suas calças e o seu revólver. O pão talvez não esteja muito bom, mas está apenas molhado. Pode-se comê-lo bem, e amanhã estará seco. O melhor talvez fosse comermos das latas esta noite, guardando o queijo e as costeletas. As latas são pesadas e amanhã teremos que andar muito.

Bond respondeu: — Muito bem, Quarrel. Deixarei o cardápio aos seus cuidados.

Em seguida, apanhou o revólver e as calças úmidas e desceu para a água rasa. A água estava acariciante, mas desagradavelmente quente. Bond escavou punhados de areia, com as mãos, e esfregou o corpo com ela, utilizando-a como sabonete. Depois deixou-se ficar gostosamente em meio àquele silêncio e àquela solidão.

As estrelas começaram a brilhar palidamente, as estrelas que os tinham trazido à ilha na noite passada; as estrelas que os tirariam dali no dia seguinte. Que viagem! Mas pelo menos já tinha dado os seus resultados. Agora tinha provas bastantes, e testemunhas, para ir ter com o governador e conseguir dele um inquérito completo acerca das atividades do Dr. No. Ninguém lança mão de metralhadoras contra pessoas, mesmo contra intrusos. E, da mesma forma, o que seria aquilo do Dr. No, que invadira a propriedade da Sociedade Audubon, aquilo que chegara a destruir essa propriedade e provavelmente matara um de seus empregados? Isto também teria que ser investigado. E o que haveria ele de encontrar quando voltasse pela porta da frente, talvez a bordo de um destróier, e com um destacamento de fuzileiros navais? Qual seria a resposta para o mistério do Dr. No? O que estaria ele escondendo? Por que aquele segredo era tão importante, que seria capaz de matar repetidas vezes, para preservá-lo? E quem era esse Dr. No?

Bond ouviu o barulho de alguém espojando-se na água. Pensou na garota. E quem, afinal, era Honeychile Ri-der? Aquilo pelo menos, pensou ele ao sair da água, era algo que deveria esclarecer antes do amanhecer.

Bond enfiou as suas pegajosas calças, sentou-se na areia e desmontou o revólver. Fê-lo pelo tato, utilizando-se de sua camisa para secar cada peça e cada cartucho. Depois, tornou a montar a arma e pressionou o gatilho, fazendo com que o tambor vazio desse uma volta completa. O som era satisfatório. Seriam precisos alguns dias para que o revólver começasse a enferrujar. Carregou-o e meteu-o no coldre, para dentro do cós da calça. Depois, levantou-se e voltou para a clareira.

A sombra de Honey chegou até ele, e a sua voz se fez ouvir: — Venha; estamos morrendo de fome. Apanhei uma das panelas, limpei-a e pusemos as ervilhas nela. Temos pão também. E eu não sinto escrúpulos de comer a sua ração, porque você me fez trabalhar muito mais do que se eu estivesse sozinha. Agora, estique a mão.

Bond achou graça no tom autoritário que havia em sua voz. Ele apenas podia perceber a sua silhueta, no escuro. Sua cabeça parecia mais aflada. Ele se perguntou como seriam os seus cabelos quando secos e penteados. Como seria ela quando estivesse vestindo roupas limpas naquele lindo corpo dourado? Podia vê-la entrando numa sala ou atravessando um vestíbulo em Beau Desert. Ela seria uma linda e encantadora Patinha Feia. Por que nunca procurara endireitar o nariz? Seria uma operação fácil. Depois disso, ela seria a jovem mais bela de Jamaica.

O seu ombro tocou nele. Bond esticou o braço e descansou a mão aberta no colo da jovem. Então Bond sentiu que ela estava enchendo a sua mão com ervilhas.

Subitamente, Bond aspirou o seu cheiro cálido de animal. Foi uma explosão sensual tão aguda que o seu corpo se uniu ao dela, e, por um momento, os seus olhos se fecharam.

Ela deixou escapar um riso curto, no qual havia timidez, satisfação e ternura. E disse, maternalmente: “Lá”, — e empurrou a mão de Bond.

 

CONTINUA

IX - POR UM TRIZ


Dez minutos mais tarde a baía estava vazia e imaculada. Pequenas ondas encrespavam-se preguiçosamente através do espelho das águas, no interior dos recifes e morriam exaustas na areia escura onde as conchas lilás brilhavam como unhas pintadas. O monte de conchas tinha desaparecido e não havia mais vestígios de pegadas. Quarrel cortara galhos de mangues e caminhava de costas procurando apagar as pegadas com aqueles galhos. Onde tinha varrido, a areia apresentava uma limpidez diferente mas não tão diferente a ponto de ser notada de fora do recife. A canoa da jovem tinha sido arrastada para dentro do mar, entre as rochas, e ali ficou coberta com algas e gravetos.

Quarrel tinha voltado ao promontório. Bond e a jovem estavam juntos, sob tufos de folhas, onde Bond dormira, e olhavam silenciosamente para o contorno do promontório, à volta do qual surgira a embarcação.

A lancha estava talvez a uns quinhentos metros de distância. A julgar pelo lento ritmo do motor, Bond concluiu que cada acidente da costa estava sendo cuidadosamente inspecionado para descobrir indícios da presença de estranhos. De qualquer forma, aquilo parecia uma possante embarcação. Talvez uma grande lancha de cabina. Que tripulação teria? Quem estaria no comando? O Dr. No? Improvável. Ele certamente não se daria àquele trabalho de polícia.

Do lado do ocidente apareceu um bando de corvos marinhos, voando baixo sobre o mar, além dos recifes. Bond observou-os. Eram o primeiro indício para ele encontrado daquela colônia de aves, na outra extremidade da ilha. Aquele bando, segundo Pleydell-Smith, seriam batedores à procura do brilho prateado das enchovas, próximas à superfície. Enquanto observava, as aves começaram a dar mergulhos rasos, ferindo o mar superficialmente e levantando respingos de água. Quase que de uma só vez, apareceu outra coluna de aves, vinda do ocidente, e logo outra, e mais outra, fundindo-se todas numa espessa e escura nuvem. Durante minutos, elas sombrearam o céu, e depois atiraram-se à água, cobrindo vários alqueires, piando e lutando, e mergulhando as cabeças no mar, fazendo uma rica colheita naquele sólido campo de anchovas, como piranhas que se banqueteassem num cavalo afogado.

Bond sentiu um suave toque da jovem, que fez um movimento com a cabeça, dizendo:

— As galinhas do chinês estão comendo milho.

Bond observou-lhe o rosto belo e feliz. Ela parecia bastante despreocupada com a chegada daqueles homens. Para ela aquilo era apenas o jogo de esconde-esconde que já tinha praticado antes.

A vibração metálica dos motores diesel estava-se tornando mais forte. A lancha deveria estar justamente por trás do promontório. Bond deu mais uma olhada à volta da tranqüila baía, e depois fixou os olhos através da folhagem e do mato, para os lados dos recifes.

A ponta de uma proa branca apareceu, seguida de uns dez metros de tombadilho, e logo o parabrisas de vidro, uma cabina baixa e uma antena de rádio, e o vulto de um homem à volta do leme. Finalmente, o comprido e achatado fosso da popa, e uma flâmula vermelha pendente, Seria uma lancha-torpedeira convertida, um excedente de guerra do governo britânico?

Os olhos de Bond fixaram-se nos dois homens que estavam em pé na popa. Eram negros de pele pálida, envergando roupas caqui de marinheiro, com largos cinturões e chapéus de palha com longas palas. Estavam um ao lado do outro, equilibrando-se sob a lenta elevação da massa líquida. Um deles segurava um alto-falante e o outro manejava uma metralhadora instalada num tripé. Bond teve a impressão de que era uma metralhadora “Spandau”.

O homem com o alto-falante deixou que este caísse, e ele ficou oscilando numa tira, que lhe dava volta ao pescoço. Apanhou um binóculo e começou a vasculhar metro a metro da praia. Indistintos comentários chegavam aos ouvidos de Bond, por entre o ruído dos motores.

Bond percebeu que os olhos do binóculo começavam pelo promontório e depois percorriam a areia. As lentes detiveram-se entre as rochas e continuaram o seu passeio. Depois, voltaram. O murmúrio do comentário elevou-se ganhando animação. O homem passou o binóculo para o metralhador, que observou rapidamente, devolvendo-o logo ao dono. O observador gritou alguma coisa para o timoneiro. A lancha começou a se aproximar da praia. Agora estavam justamente diante dos recifes, em frente a Bond e à jovem. O observador ergueu novamente o binóculo, apontando-o para as rochas onde se encontrava escondida a canoa da jovem. Novamente a fala excitada chegou aos ouvidos de Bond, por sobre as águas. Mais uma vez o binóculo foi passado ao metralhador, que levou algum tempo observando. Dessa vez, ele fez um sinal de assentimento com a cabeça.

Bond pensou: agora vamos ter coisa; esses homens conhecem o ofício. Em seguida, viu que o metralhador se ocupava em carregar a arma. O duplo estalido metálico chegou aos seus ouvidos, por entre o matraquear do motor.

O observador ergueu o alto-falante e ligou-o. O eco produzido pelo amplificador chegou até Bond, conduzido pela superfície da água. A voz do homem ribombou pela baía:

— Alô, pessoal! Saiam daí e não serão feridos. Era uma voz educada, com sotaque americano.

— Agora, pessoal — trovejou a voz — depressa! Nós vimos quando vocês desembarcaram. Já descobrimos o bote sob os paus. Não somos tolos e não estamos brincando. Saiam daí com os braços levantados e não lhes acontecerá nada!

Não se ouviu nenhuma resposta. Apenas as ondas quebravam docemente na praia. Bond podia ouvir a respiração da jovem. Os guinchos agudos dos corvos marinhos chegavam-lhes de uma milha de distância, sobre o mar. O cano de escapamento dos motores diesel produzia um ruído desigual e gorgulhante, quando o intumescimento do mar cobria o orifício de descarga.

Silenciosamente Bond tocou o braço da jovem e disse-lhe:

— Fique mais perto. Alvo menor.

Ele sentiu o calor da jovem mais próximo de seu corpo, e o rosto de Honey raspou pelo seu braço. Bond sussurrou:

— Enterre-se na areia. Encolha-se. Cada polegada a menos ajudará.

Ele começou a se encolher cuidadosamente na depressão que tinham escavado para se abrigarem, e sentiu que ela fazia o mesmo.

O homem estava erguendo o seu alto-falante. A voz ribombou novamente.

— Muito bem, pessoal! Vocês irão ver que isso aqui não é para brincadeira. — Depois, levantou o polegar. O metralhador experimentou a arma fazendo alguns disparos para a copa dos mangues situados por trás da praia. Bond ouviu o rápido matraquear, tão seu conhecido, e do qual se despedira pela última vez diante das linhas alemãs, nas Ardenas. As balas produziam o velho som de pombos assustados, assobiando sobre sua cabeça. Depois fez-se silêncio.

À distância, Bond via a nuvem negra de corvos marinhos elevar-se, começando a fazer os seus amplos círculos. Seus olhos voltaram para a embarcação. O metralhador estava apalpando o cano da metralhadora, para ver se já estava aquecido. Os dois homens trocaram algumas palavras. O observador apanhou novamente o porta-voz.

— Está bem, pessoal. Vocês foram avisados.

Bond viu o cano da “Spandau” levantar-se e abaixar-se. O homem estava querendo começar com a canoa, entre as rochas. Bond sussurrou para a jovem: — Muito bem, Honey. Agüente firme. Mantenha-se abaixada. Não vai durar muito.

Ele sentiu que a mão da jovem apertava o seu braço, e pensou: “Coitada; ela está metida nisso por minha causa.” Ele inclinou-se para a direita a fim de cobrir a cabeça de Honey e afundou o rosto na areia.

Dessa vez o matraquear foi terrível. Balas ricocheteavam no flanco do promontório. Fragmentos de pedra saltavam para todos os lados, sobre a praia. Outras balas ricocheteavam e iam perder-se dentro da mata. Simultaneamente com todo aquele barulho ouvia-se o martelar contínuo da metralhadora.

Houve uma pausa. Nova carga, pensou Bond. Agora será para nós. Pôde sentir a jovem agarrando-se a ele. Seu corpo tremia todo, encostado ao seu flanco. Bond apanhou uma arma e apertou-a de encontro ao corpo. O matraquear da metralhadora recomeçou. As balas vinham zunindo, da linha de maré, em direção a eles. Ouviu-se uma sucessão de rápidas batidas. O tufo, acima deles, estava sendo reduzido a pedaços. “Zuip Zuip Zuip”. Era como se um chicote de aço estivesse retalhando os arbustos. Pedaços de lenha caíam sobre eles, cobrindo-os lentamente. Bond respirou um ar mais fresco, o que significava que eles agora estavam ao ar-livre. Estariam eles escondidos pelas folhas o pelos destroços? As balas continuaram deslocando-se ao longo da linha da costa. Em menos de um minuto a metralhadora parou.

O silêncio tornou a reinar. A jovem lamuriou-se docemente. Bond fê-la calar-se e apertou-a mais forte.

O alto-falante apregoou:

— Está bem, pessoal. Se vocês ainda têm ouvidos, saibam que voltaremos logo para recolher-lhes os pedaços. Vamos trazer os cães. Até à vista, por enquanto.

O ritmo do motor se acelerou, e através das folhas Bond pôde ver a popa da lancha afundar-se mais na água, enquanto a embarcação rumava rapidamente para oeste. Dentro de minutos já não se ouvia mais nada.

Bond ergueu a cabeça cautelosamente. A baía estava serena, e tudo como antes, exceto o cheiro de cordite e as rochas quebradas.

Bond fez a jovem levantar-se. Havia marcas de lágrimas em seu rosto. Ela olhou-o aterrada, e disse:

— Isso foi terrível. Por que eles o fizeram? Podíamos ter sido mortos.

Bond pensou naquela jovem que sempre abrira caminho, na vida, por si mesma, mas apenas contra a natureza. Conhecia o mundo dos animais, dos insetos e dos peixes, e tirava todo o partido desse conhecimento. Mas aquele era um pequeno mundo, limitado pelo sol, pela lua e pelas estações. Ela não conhecia o grande mundo das salas cheias de fumo, dos corredores de negócios, dos corredores e antecâmaras governamentais, dos cautelosos encontros em bancos de praças — numa palavra: ela nada conhecia da luta pelo poder e pelo dinheiro, travada por homens poderosos.

Bond disse:

— É isso mesmo, Honey, eles não passam de uma quadrilha de bandidos assustados conosco. Podemos enfrentá-los.

Bond colocou o braço à volta de seus ombros e continuou:

— E você esteve maravilhosa, brava como ninguém. Agora, vamos ao encontro de Quarrel para traçar os nossos planos. De qualquer forma, já é tempo de comermos alguma coisa. O que é que você costuma comer nessas expedições?

Deram meia-volta e seguiram pela praia em direção ao promontório. Depois de um minuto, ela disse com voz bem controlada:

— Oh, há uma porção de coisas por aí que se podem comer. Ouriços do mar principalmente, mas também bananas silvestres e outras coisas. Eu como e durmo durante dois dias, antes de vir aqui. Não preciso de nada.

Bond apertou-a mais fortemente, mas deixou cair o braço, assim que Quarrel apareceu ao longe. Quarrel vinha saltando sobre as rochas, e, em determinado momento, parou, olhando para baixo. Bond e Honey se aproximaram dele. A canoa da jovem estava cortada ao meio pelas balas. Honey deixou escapar um grito, olhando desesperadamente para Bond:

— A minha canoa! Como poderei voltar?

— Não se preocupe, senhorita, — disse Quarrel, que sentia a perda de uma canoa mais do que Bond. Imaginou ainda que aquela embarcação representasse quase todo o capital da jovem. — O capitão lhe dará outra. E a senhorita voltará conosco. Temos um magnífico bote, entre os mangues, e ele não foi destruído. Já estive lá espiando.

Quarrel olhou para Bond. Agora, o seu rosto denotava preocupação.

— Mas, capitão, o senhor está vendo o que eu disse dessa gente. Eles são duros e não estão brincando. Esses cães que eles vão trazer são policiais — Pinschers, como eles os chamam. Bastardos. Meus amigos disseram-me que são uma matilha de vinte ou mais. É melhor resolvermos logo.

— Está bem, Quarrel. Mas antes de mais nada precisamos comer alguma coisa. — o diabo que me carregue se eu vou ser aterrorizado e expulso da ilha antes de dar uma olhada nisso. Levaremos Honey conosco. — E, voltando-se para a jovem:

— Está bem, Honey? Nada lhe acontecerá. Depois voltaremos juntos.

A jovem olhou-o em dúvida:

— Acho que não há alternativa. Quero dizer. Gostaria de ir com vocês, se não atrapalhasse. Francamente, não quero comer nada. Mas você me levará de volta, assim que puder? Não quero ver mais aquela gente. Durante quanto tempo vocês vão ficar olhando para essas aves?

Bond respondeu evasivamente:

— Pouco tempo. Eu terei apenas que ver o que lhes aconteceu e porquê. Depois, partiremos.

Olhou para o relógio e anunciou:

— Agora são doze horas. Você nos esperará aqui. Tome um banho ou faça o que quiser. Não ande por aí deixando pegadas. Vamos, Quarrel, é melhor escondermos aquele bote.

Só à uma hora eles estavam prontos. Bond e Quarrel encheram a canoa com pedras e areia, até que ela desapareceu sob a água, entre os mangues. Depois, apagaram as suas pegadas. As balas tinham deixado tantos gravetos na orla da praia, que eles podiam caminhar pisando em folhas e ramos quebrados. Comeram parte de suas rações — os homens com avidez, mas Honey com relutância — e depois, passando sobre as rochas, foram ter à lagoa, próxima da costa. Em seguida foram vadeando aquelas águas, em direção à foz do rio, trezentos metros praia abaixo.

Fazia muito calor. Um vento áspero e quente começou a soprar do nordeste. Quarrel informou que aquele vento soprava diariamente, durante todo o ano, e era vital para a guaneira, pois secava o guano. O revérbero do mar e das brilhantes folhas verdes dos mangues cegava-os. Bond deu-se por feliz, já que tivera o cuidado de acostumar sua pele ao sol.

Na foz do rio encontraram um banco de areia e um extenso pântano, profundo e de águas estagnadas. Os dois homens podiam molhar-se ou tirar as roupas. Bond disse à jovem:

— Honey, não podemos ter cerimônia, nesta situação. Vamos ficar apenas com as camisas por causa do sol. Fique apenas com o que for sensato e caminhe atrás de nós.

Sem esperar pela resposta da jovem, os dois homens tiraram as calças. Quarrel enrolou-as e guardou-as na sacola, juntamente com as provisões e o revólver de Bond. Depois começaram a vadear a lagoa, com Quarrel na frente, logo seguido de Bond, e, finalmente a jovem. A água chegou até a cintura de Bond. Um grande peixe prateado deu um salto perto deles e depois caiu ruidosamente na água. Viram-se pequeninas setas riscarem a superfície, quando peixes menores se afastaram precipitadamente.

A lagoa convergia para uma estreita garganta, por sobre a qual as copas dos mangues se tocavam. Durante algum tempo eles vadearam através de um túnel fresco, e depois o rio se alargou num canal profundo, de águas morosas, que serpeava para a frente, entre as gigantescas raízes de sustentação dos mangues. O fundo era lamacento, e a cada passo os pés se enterravam algumas polegadas no lodo. Pequenos peixes ou camarões se encolhiam ou fugiam de baixo de seus pés, e de quando em quando eles tinham que parar para se desembaraçar das sanguessugas, antes que elas se agarrassem firmemente. A não ser isso, aquela caminhada era fácil, sob o frescor das arvores, e, pelo menos para Bond, era uma bênção estar ao abrigo do sol.

Em breve, à medida que se iam afastando do mar, começaram a sentir um cheiro de ovo podre, o cheiro de hidrogênio sulfurado do gás dos pântanos. Os mosquitos começaram a assaltá-los e pareciam gostar do corpo de Bond. Quarrel disse-lhe que mergulhasse na água do rio, pois os mosquitos gostavam de carne salgada. Bond tirou a camisa e fez o que Quarrel lhe aconselhara. Depois disso sentiu-se melhor e o seu olfato chegou mesmo a se acostumar com aquele repugnante cheiro, a não ser quando os pés de Quarrel desfaziam algum bolsão de gás, no fundo da lama, e uma gigantesca bolha atravessava a água para arrebentar na superfície sob as suas narinas.

Os mangues começaram a se tornar mais escassos e mais esparsos, enquanto o rio se ia alargando aos poucos. Ao mesmo tempo, a água tornava-se mais rasa e o fundo mais firme. Logo chegaram a uma volta e saíram para céu aberto, Honey disse:

— É melhor tomarmos cuidado, agora. Eles poderão ver-nos com muita facilidade. Isso vai assim durante uma milha. Depois o rio torna a se estreitar até o lago. E depois se poderá ver a restinga onde os tratadores das aves viviam.

O grupo deteve-se à sombra do túnel de mangues e olhou para fora. O rio serpeava perigosamente, afastando-se deles, em direção ao centro da ilha. As suas barrancas, bordadas de bambus de pequeno porte e de vegetação rala, dar-lhes-íam cobertura reduzida. Partindo de sua margem ocidental, o terreno elevava-se aos poucos, e logo abruptamente até o monte, situado a três quilômetros de distância, que era a guaneira. Na base daquela montanha, viam-se várias cabanas esparsas. Um ziguezague prateado galgava o flanco da colina, até as tendas — trilhos “Decauville”, pensou Bond, destinados a levarem o guano para o moinho e separa-dor. O cume do monte era branco, como se estivesse coberto de neve. De sua parte mais elevada desprendia-se como que uma bandeira de dó de guano. Bond podia ver os pontos negros que eram os corvos marinhos, sobre o fundo branco. Aquelas aves estavam levantando vôo e pousando como abelhas numa colmeia.

Bond deixou-se ficar de pé e contemplou o brilho distante daquela montanha de excrementos de aves. Então aquilo era o reino do Dr. No! Bond pensou que jamais vira um cenário tão escondido e distante, em toda a sua vida.

Examinou o terreno entre o rio e a montanha. Parecia ser principalmente formado com aquela matéria cinzenta de corais mortos. Não havia dúvida de que uma estrada ou trilha corria da falda da montanha até ao lago central e aos pântanos. Bond notou ainda que toda a vegetação se curvava para oeste, e imaginou viver durante todo um ano com aquele vento escaldante castigando a ilha, sem falar do cheiro do guano e do gás dos pântanos. Nenhuma colônia penal poderia encontrar pior localização do que aquela.

Bond olhou para leste, onde os mangues, na área dos charcos, pareciam oferecer mais hospitalidade. Os três puseram-se a caminhar sobre um sólido tapete verde de vegetação. Sobre suas cabeças, aves revoluteavam agitadas, para depois se, acalmarem, e logo tornarem a agitar-se. Seus pios eram carregados pelo vento crestante.

A voz de Quarrel interrompeu os pensamentos de Bond:

— Eles vêm vindo, capitão!

Bond seguiu o olhar de Quarrel. Um grande caminhão descia celeremente das tendas, com uma nuvem de pó levantando-se das rodas. Bond acompanhou-o durante dez minutos, até que o veículo desapareceu entre os mangues, na margem do rio. Bond pôs-se a escutar e ouviu latidos de cães, que eram trazidos pelo vento.

Quarrel comentou:

— Eles vão descer pelo rio, capitão. Sabem que não nos podemos mover, a não ser rio acima, se não estivermos mortos. Certamente que descerão pelo rio, até a praia, e farão um reconhecimento dos destroços. Depois, com toda a certeza, a lancha virá com um pequeno bote e recolherá os homens e os cães. Pelo menos, isso é o que eu faria no lugar deles.

Honey disse: — Isso é, de fato, o que eles fazem quando me procuram. É isso mesmo. Basta que cortemos um pedaço de bambu, e, quando eles estiverem perto, mergulhemos na água, procurando respirar através do bambu, até que eles se afastem.

Bond sorriu para Quarrel, e disse: — Suponhamos que você corte os bambus, enquanto eu procuro um bom esconderijo entre os mangues.

Quarrel aquiesceu hesitante e começou a subir contra a corrente, em direção ao bambuzal, enquanto Bond se encaminhava para o túnel formado pelos mangues.

Bond evitara olhar para a jovem, mas esta disse-lhe com impaciência:

— Não precisa ter tanto cuidado em não olhar para mim. Não adianta se preocupar com tais coisas, numa hora dessas. Você mesmo o disse, ainda há pouco.

Bond virou-se e olhou para a jovem. Sua camisa esfrangalhada descia até a linha d’água. Podia-se ainda ter um vislumbre de pálidas coxas, serpeando sob a superfície. O lindo rosto sorriu para ele. No meio daqueles mangues, o seu nariz quebrado parecia harmonizar-se com o ambiente, pela sua animalidade.

Bond fitou-a descansadamente e ela compreendeu. Depois, ele deu-lhe as costas e desceu pela correnteza, seguido por ela. Logo encontrou o que procurava, isto é, uma fenda naquela parede formada pelas raízes dos mangues. Bond recomendou: — Não quebre nenhum galho. — Depois, baixou a cabeça e meteu-se por aquela brecha. O canal avançava numa distância de dez metros. A lama sob seus pés tornou-se mais mole e espessa. Chegou a uma sólida e intransponível parede de raízes. Aquela água escura fluía vagarosamente através de uma ampla e tranqüila lagoa. Bond deteve-se. A jovem se aproximou dele.

— Isto é mesmo uma brincadeira de esconde-esconde — disse ela, trêmula.

— É verdade — aquiesceu Bond distraidamente, enquanto pensava em seu revólver. Com efeito, ele preocupava-se em saber com que eficiência a arma operaria depois de um banho no rio — quantos cães e homens ele poderia eliminar, se fossem descobertos. Sentiu um estremecimento de inquietação. Tinha sido uma falta de sorte ter encontrado aquela jovem. Em combate, queira-se ou não, uma mulher representa sempre um coração a mais. O inimigo tem dois alvos enquanto apenas oferece um.

Bond lembrou-se de sua sede. Apanhou na concha da mão um pouco de água e bebeu-a. Aquela água era salobra e tinha gosto de terra. Mas servia. Bond bebeu um pouco mais. A jovem agitou a mão e deteve-o, dizendo:

— Não beba demais. Lave a boca e cuspa. Você pode apanhar febre.

Quarrel assobiou de algum ponto situado na corrente principal. Bond respondeu e foi em direção ao amigo. Depois, voltaram juntos, internando-se no canal. Quarrel borrifou as raízes de mangues com água, nos pontos em que os seus corpos talvez as tivessem raspado. “Para tirar o nosso cheiro”, explicou, laconicamente. Em seguida mostrou o seu feixe de bambus e começou a cortá-los e prepará-los. Enquanto isso, Bond se ocupava com seu revólver e a munição. Os três ficaram imóveis, no meio daquele pântano, de modo a não levantarem mais lama.

A luz do sol filtrava-se através do espesso teto de folhas, os camarões agitavam-se sob os pés daqueles três fugitivos. Gradativamente foi-se avolumando uma insuportável tensão, naquele silêncio escaldante e angustioso.

Foi quase um alívio ouvir-se o ladrar dos cães.


X - O RASTRO DO DRAGÃO


O grupo de investigação descia rapidamente pelo rio. Os dois homens, de calções de banho e altas botas impermeáveis, tinham que correr para acompanhar os cães.

Eram grandes negros chineses, que traziam coldres sustentados ao ombro por meio de talabartes cruzados diante dos peitos suados. De quando em quando trocavam gritos que em geral não passavam de imprecações. À frente deles a matilha de cães Dobermann nadava e debatia-se n’água, latindo excitadamente. Tinham farejado uma pista e procuravam segui-la nervosamente, com as orelhas eretas sobre as cabeças afladas.

— Talvez um maldito crocodilo, — gritou o chefe elevando a voz sobre a algazarra. Empunhava um chicote que de vez em quando fazia estalar no campo de caça.

Os outros homens se encaminhavam para ele. O chefe gritou excitadamente: “Aposto que é o gringo inglês! Tenho certeza de que ele está entre os mangues. Cuidado para que o gringo não nos faça cair numa emboscada.” O homem tirou o revólver do coldre e colocou-o sob o sovaco, sem tirar a mão da coronha.

O grupo agora estava deixando a parte do rio, sob céu aberto, e entrando no túnel formado pelos mangues. O primeiro homem tinha um apito, que se projetava de seu largo rosto como um toco de charuto. Fez soar um agudo silvo. Quando os cães avançaram, ele se deixou ficar com o seu chicote junto do chefe. Os animais continuavam farejando, lamuriando-se porque a corrente os obrigava a desobedecer às ordens recebidas. Os dois homens sacaram os revólveres e vadearam lentamente o rio, na mesma direção da corrente, por entre os caules tortuosos dos mangues.

O homem que ia na frente chegou ao estreito canal que Bond tinha encontrado, agarrou um dos cães pela co-leira e lançou-o ao canal. O animal resfolegou ansiosamente e debateu-se para a frente. Os olhos do homem percorreram as raízes dos mangues, de ambos os lados do canal, para ver se apresentavam algum arranhão.

O cão e o homem chegaram ao pequeno lago situado na extremidade do canal. O homem olhou à sua volta, com ar animado. Tornou a agarrar o cão pela coleira e puxou-o para trás. O animal relutava em abandonar o lugar. Então, o homem feriu a água com o chicote.

O segundo homem estivera esperando à entrada do canal. O primeiro saiu daquele pequeno remanso e sacudiu a cabeça, descendo a corrente, com os cães, que agora se mostravam menos excitados, nadando à frente.

Lentamente, a algazarra da perseguição foi diminuindo e desapareceu.

Por mais cinco minutos nada se mexeu na laguna dos mangues; depois, num dos cantos, entre as raízes, apareceu lentamente para fora d’água um fino periscópio de bambu. O rosto de Bond emergiu logo em seguida, com os cabelos molhados colados à testa, como a cara de um cadáver que boiasse. Em sua mão direita, sob a água, o revólver estava pronto. Bond procurou escutar cuidadosamente. O silêncio era completo, não havia o mínimo ruído. Ou haveria? O que seria aquele suave barulho, como se algo deslizasse entre a água, na corrente principal? Viria alguém, muito serenamente, seguindo na esteira daquela caçada? Bond procurou apalpar à sua volta e tocou delicadamente nos dois corpos que estavam cada um em um de seus flancos, entre as raízes, na orla da laguna. Quando os dois rostos aforaram à superfície, ele colocou o seu dedo indicador sobre os lábios, mas já era tarde. Quarrel tinha tossido e cuspido. Bond fez uma careta e fez um sinal na direção da principal corrente. Todos procuravam escutar. O ruído recomeçou. Alguém estava-se dirigindo para o canal lateral. Os tubos de bambu voltaram para as três bocas e as cabeças tornaram a submergir. Debaixo da água Bond descansou a cabeça na lama, apertou as narinas e os lábios à volta do tubo. Sabia que a laguna já fora examinada uma vez, pois sentira a agitação causada na água pelo cão, que passara nadando! Da primeira vez não tinham sido achados, mas conseguiriam escapar desta? Agora haveria menos possibilidades de que a lama revolta se escoasse para fora da laguna. Se esse batedor visse a mancha mais escura, na água, atiraria ou usaria um punhal? Que armas traria? Bond resolveu não correr riscos. Ao primeiro rumor de movimento, ao seu lado, ele se poria de pé e daria logo ao gatilho, esperando pelo melhor.

Assim ficou ele, submerso, com todos os sentidos atentos. Como era desagradável aquele respirar controlado e insuportáveis as ligeiras mordidelas dos camarões! Por sorte nenhum deles tinha qualquer ferida no corpo, pois do contrário os malditos animalzinhos ter-se-iam atirado contra elas. De qualquer forma, aquela fora uma brilhante idéia da jovem. Sem ela os cães já os teriam alcançado, onde quer que eles se tivessem escondido.

Inesperadamente, Bond encolheu-se. Uma bota de borracha tinha pisado em seu queixo e escorregado. O homem pensaria tratar-se de um galho de árvore? Bond não podia correr aquele risco. Com um só impulso pôs-se de pé, atirando para longe o pedaço de bambu.

Bond teve uma rápida impressão de um gigantesco corpo de pé, quase em cima de si, e duma coronha de rife, em rápido movimento. Levantou o braço esquerdo para proteger a cabeça e recebeu um violento golpe no braço. Ao mesmo tempo, o seu braço direito se esticou para a frente, e, quando o cano tocou no lado direito do peito, sob o mamilo, ele acionou o gatilho.

O coice da arma, quase encostada ao corpo do homem, por pouco não quebrou o pulso de Bond, mas o homem desabou para trás como uma árvore decepada que cai n’água. Antes que o corpo afundasse, Bond ainda pôde perceber-lhe uma grande fenda no flanco. A cabeça, uma cabeça negróide de chinês, veio à superfície, com os olhos revirados para cima e a água a sair de sua boca escancarada e silenciosa. Em seguida a cabeça submergiu novamente e nada mais se pôde ver senão uma lama espumosa e uma mancha vermelha que gradualmente se ia ampliando e lentamente era atraída pela corrente.

Bond se endireitou e voltou-se para o lado. Quarrel e a jovem estavam atrás, em pé, com a água a escorrer-lhes dos corpos. Quarrel tinha um sorriso que ia de orelha a orelha, mas a garota mordia as articulações dos dedos, enquanto seus olhos se escancaravam horrorizados diante da água avermelhada.

Bond disse laconicamente: “Desculpe-me, Honey. Tinha que ser feito. Ele estava bem sobre nós. Venha, vamos indo.” Agarrou-a de qualquer maneira, pelo braço, e arrastou-a para fora da principal corrente, apenas detendo-se quando chegaram a rio aberto, na boca do túnel de mangues.

O cenário estava novamente vazio. Bond olhou para o relógio, e verificou que parara às três horas. Olhou para o sol, já bastante deslocado para o ocidente e concluiu que deveriam ser quatro horas. Quanto ainda teriam que caminhar? Bond inesperadamente sentiu-se cansado. Agora teria de enfrentar a situação. Ainda que o disparo não tivesse sido ouvido — e certamente que ele fora abafado pelo próprio corpo da vítima e pelas árvores — a falta do homem seria sentida quando os outros se reunissem, — se a suposição de Quarrel fosse correta, na embocadura do rio, de onde seriam recolhidos pela lancha. Voltariam eles, subindo o rio, a fim de procurarem o desaparecido? Talvez não. Já estaria muito escuro quando eles tivessem a certeza de que o homem estava realmente desaparecido. O mais certo seria mandarem um grupo de homens pela manhã. Os cães facilmente dariam com o corpo. E o que aconteceria?

A garota puxou-o pela manga e disse com irritação: — Já é tempo de você me dizer o que significa tudo isto! Por que estão todos procurando se matar mutuamente? E quem é você? Não acredito em toda essa história de aves. Ninguém carrega revólveres contra aves.

Bond baixou o olhar, fitando aqueles olhos bem separados e irados. — Desculpe-me, Honey. Receio tê-la arrastado para uma boa encrenca. Eu lhe contarei tudo quando voltarmos à noite para o acampamento. Foi apenas má sorte que você se envolvesse comigo, desta maneira. Tenho uma guerrinha com essa gente. Eles parecem querer matar-me. Agora estou apenas interessado em que todos nós saiamos desta ilha sem que ninguém fique ferido. Já tenho muito do que queria, para da próxima vez voltar pela porta da frente.

— O que você quer dizer? Você é alguma espécie de policial? Está querendo meter esse chinês na cadeia?

— Mais ou menos, — disse Bond, rindo para ela. — Pelo menos você está do lado dos anjos. Agora, diga-me uma coisa. Quanto falta ainda para chegar ao acampamento dos guardas?

— Oh, cerca de uma hora.

— É um lugar bom para nele esconder-se? Eles poderiam achar-nos com facilidade?

— Eles teriam que atravessar o lago ou subir o rio. Tudo estará muito bem se eles não puserem o dragão em nosso encalço. Ele pode muito bem atravessar a água, pois já o vi fazê-lo.

— Bem — disse Bond diplomaticamente — esperemos que ele esteja com a cauda machucada, ou tenha outra coisa qualquer.

A jovem vociferou: — Muito bem, sr. Sabe-Tudo. — E acrescentou irritada: — Espere e verá.

Quarrel deixou o túnel de mangues, agitando ruidosamente a água, tendo na mão o rife do chinês abatido, e dizendo à guisa de quem pede desculpas:

— Não há mal em termos outra arma, chefe. Parece que vamos precisar dela.

Bond apanhou aquela arma. Era uma carabina “Remington”, do exército norte-americano, calibre 300. Não havia dúvida de que aquela gente contava com equipamento apropriado. Bond devolveu a arma a Quarrel, depois de examiná-la.

Quarrel como que fez eco aos seus pensamentos: — Isso é gente astuta, capitão. Aquele homem veio esquadrinhando suavemente, atrás dos outros, a fim de nos surpreender quando deixássemos o esconderijo, depois da passagem dos cães. Esse tal de doutor com certeza é um sujeito muito esperto.

Bond disse pensativamente: — É, ele deve ser um homem incomum. — Depois espantou os pensamentos: — Agora, vamos tocando para a frente. Honey diz que ainda precisamos de uma hora para chegarmos ao acampamento. É melhor irmos pela margem esquerda, de modo a ficarmos ao abrigo da colina. Pelo que já pudemos ver, eles têm lunetas assestadas sobre o rio.

Bond entregou a sua arma a Quarrel, que a guardou na mochila molhada. Puseram-se novamente em marcha, com Quarrel à frente, e Bond e a jovem andando juntos, atrás.

Aproveitavam algumas sombras das árvores e bambus da margem ocidental, mas deviam agora suportar toda a intensidade de um vento crestante. Borrifaram braços e corpos com água, a fim de refrescar as queimaduras. Os olhos de Bond estavam injetados por aquele insuportável revérbero e o seu braço doía intoleràvelmente no ponto em que fora atingido pela coronha. E ele não teria à sua espera o seu jantar de pão embebido, queijo e fiambre. Quanto tempo poderiam dormir? Não dormira muito na véspera, e parece que não iria ter melhor ração de sono. E a garota? Ela nada dormira. Ele e Quarrel teriam que se revezar, em quartos de vigilância. E logo chegaria o dia seguinte, quando procurariam ganhar novamente os mangues e vencer lentamente a distância que os separava de sua canoa, através da extremidade oriental da ilha. As coisas correriam daquela forma, segundo era de esperar. Então, tratariam de se fazerem ao mar na noite seguinte. Bond pensou em como haveria de abrir caminho por entre sólidos mangues, na distância de oito quilômetros. Que perspectiva! Continuou se arrastando para a frente, pensando nas “férias ao sol dos trópicos” de M. Muito gostaria que M tivesse que partilhar com ele aquelas “férias”.

O rio foi-se estreitando até que se reduziu a uma simples corrente entre as moitas de bambu. Depois se ampliava num estuário baixo e pantanoso, além do qual as cinco milhas quadradas de lago raso davam vazão para o outro lado da ilha, perdendo-se num agitado espelho líquido azul-cinza. Mais para além estava a brilhante pista aérea e o reflexo da luz solar sobre um único hangar. A jovem disse-lhe que se mantivesse na direção leste, e eles foram lentamente avançando, protegidos pela orla da mata.

Inesperadamente, Quarrel deteve-se, com o rosto esticado como o focinho de um cão para o terreno pantanoso à sua frente. Dois profundos sulcos tinham sido escavados na lama, com um sulco mais raso no centro. Eram a trilha de algo que tinha descido da colina e atravessado o pântano em direção ao lago.

A jovem disse com indiferença: — Por aqui já passou o dragão.

Quarrel arregalou os olhos para ela.

Bond caminhou lentamente pela trilha. As marcas exteriores eram bastante lisas, trazendo a marca de uma linha curva. Poderiam ter sido causadas por rodas, mas eram enormes, pelo menos com sessenta centímetros de largura. A trilha central tinha a mesma forma, mas com apenas três polegadas de largura, ou seja a largura de um pneumático de automóvel. As trilhas não apresentavam nenhum indício de pegadas e eram completamente frescas. Estendiam-se em linha reta, e os arbustos por elas atravessados tinham sido derrubados e esmagados no chão, como se um tanque de guerra tivesse passado por ali. Bond não podia imaginar que espécie de veículo seria aquele. A jovem tocou-o com o cotovelo e murmurou: — Eu lhe tinha dito. Ele apenas pôde responder pensativamente: — Bom, Honey, se não é o dragão, é algo que nunca vi antes.

Mais adiante, ela puxou-o ansiosamente pela manga. “Veja”, sussurrou, e apontou para a frente, indicando um grande cerrado de árvores, ao lado do qual passavam as trilhas. O cerrado estava sem folhas, enegrecido. Ao centro viam-se os restos dos ninhos de pássaros carbonizados. — Ele respirou sobre as árvores, — disse a garota nervosamente.

Bond aproximou-se das árvores e examinou-as. — Certamente que o fez — admitiu. Por que aquele cerrado, em especial, tinha sido queimado? Era muito estranho aquilo.

As trilhas desciam em direção ao lago e desapareciam na água. Bond teria gostado de segui-las, mas não poderia abandonar a cobertura das árvores. Assim, continuaram a marcha, cada um entregue aos próprios pensamentos.

Lentamente o dia começou a morrer, por trás da colina, e por fim a garota apontou para a frente, através dos arbustos; Bond pôde ver uma comprida restinga internando-se no lago. Estava coberta por densas moitas de arbustos e podiam-se ver, a cem metros da praia, os restos de uma cabana incendiada. Aquele parecia um lugar razoavelmente atraente para se passar a noite, e era bem protegido dos dois lados, pela água.

O vento tinha declinado e a água se apresentava suave e convidativa. Que prazer não seria tirarem as suas imundas camisas para um banho no lago e, depois de horas de patinhação através da lama e do lodo do pântano, poderem descansar naquela areia dura e seca!

O sol brilhou com reflexos amarelecidos e desapareceu por trás da montanha. Ainda era dia na extremidade oriental da ilha, mas a sombra negra do monte avançava vagarosamente sobre o lago e acabaria por expulsar completamente os últimos vestígios do sol. Os sapos começaram a coaxar mais barulhentamente que em Jamaica, até que a noite ficou cheia daquele áspero ruído. Do outro lado do lago um grande sapo macho começou a soar o seu tambor. Aquele estranho som era algo entre um tom-tom e um rosnado de macaco. Enviava mensagens que subitamente se interrompiam e logo silenciaram. Com certeza encontrara o que procurava.

Chegaram à garganta da restinga e seguiram por um estreito caminho, até a clareira que encerrava os escombros da cabana de sapé. As grandes e misteriosas trilhas saíam da água, de ambos os lados, atravessavam a clareira e os cerrados próximos. Muitos dos arbustos estavam queimados ou crestados. Podiam-se ver os restos de um fogão feito de pedaços de coral, e algumas panelas e latas vazias. Examinaram os destroços, e Quarrel desenterrou um par de latas intactas de costeletas de porco e ervilhas marca “Heinz”. A jovem encontrou ainda um saco de dormir muito amarrotado, enquanto Bond achou uma pequena bolsa de couro com cinco notas de um dólar, três libras de Jamaica e algumas moedas de prata. Os dois homens certamente tinham abandonado aquele lugar a toda pressa.

Prosseguiram mais para diante, até uma pequena clareira arenosa. Através dos arbustos podiam ver luzes cintilando sobre a água e provenientes da montanha, talvez a mais de três quilômetros de distância. A leste nada mais havia senão. os suaves reflexos escuros da água sob o céu sombrio.

Bond comentou: — Enquanto não acendermos nada, estaremos bem aqui. A primeira coisa a fazer é tomarmos um bom banho, Honey. Você pode ficar com o resto da restinga, que nós ficaremos com a sua garganta. Dentro de meia hora espero vê-la para o jantar.

A garota riu: — Você virá a rigor?

— Sem dúvida — respondeu Bond — e de calças.

Quarrel observou: — Capitão, enquanto ainda há um pouco de luz, vou abrir essas latas e preparar as coisas para a noite. — Remexeu dentro da mochila. — Aqui estão as suas calças e o seu revólver. O pão talvez não esteja muito bom, mas está apenas molhado. Pode-se comê-lo bem, e amanhã estará seco. O melhor talvez fosse comermos das latas esta noite, guardando o queijo e as costeletas. As latas são pesadas e amanhã teremos que andar muito.

Bond respondeu: — Muito bem, Quarrel. Deixarei o cardápio aos seus cuidados.

Em seguida, apanhou o revólver e as calças úmidas e desceu para a água rasa. A água estava acariciante, mas desagradavelmente quente. Bond escavou punhados de areia, com as mãos, e esfregou o corpo com ela, utilizando-a como sabonete. Depois deixou-se ficar gostosamente em meio àquele silêncio e àquela solidão.

As estrelas começaram a brilhar palidamente, as estrelas que os tinham trazido à ilha na noite passada; as estrelas que os tirariam dali no dia seguinte. Que viagem! Mas pelo menos já tinha dado os seus resultados. Agora tinha provas bastantes, e testemunhas, para ir ter com o governador e conseguir dele um inquérito completo acerca das atividades do Dr. No. Ninguém lança mão de metralhadoras contra pessoas, mesmo contra intrusos. E, da mesma forma, o que seria aquilo do Dr. No, que invadira a propriedade da Sociedade Audubon, aquilo que chegara a destruir essa propriedade e provavelmente matara um de seus empregados? Isto também teria que ser investigado. E o que haveria ele de encontrar quando voltasse pela porta da frente, talvez a bordo de um destróier, e com um destacamento de fuzileiros navais? Qual seria a resposta para o mistério do Dr. No? O que estaria ele escondendo? Por que aquele segredo era tão importante, que seria capaz de matar repetidas vezes, para preservá-lo? E quem era esse Dr. No?

Bond ouviu o barulho de alguém espojando-se na água. Pensou na garota. E quem, afinal, era Honeychile Ri-der? Aquilo pelo menos, pensou ele ao sair da água, era algo que deveria esclarecer antes do amanhecer.

Bond enfiou as suas pegajosas calças, sentou-se na areia e desmontou o revólver. Fê-lo pelo tato, utilizando-se de sua camisa para secar cada peça e cada cartucho. Depois, tornou a montar a arma e pressionou o gatilho, fazendo com que o tambor vazio desse uma volta completa. O som era satisfatório. Seriam precisos alguns dias para que o revólver começasse a enferrujar. Carregou-o e meteu-o no coldre, para dentro do cós da calça. Depois, levantou-se e voltou para a clareira.

A sombra de Honey chegou até ele, e a sua voz se fez ouvir: — Venha; estamos morrendo de fome. Apanhei uma das panelas, limpei-a e pusemos as ervilhas nela. Temos pão também. E eu não sinto escrúpulos de comer a sua ração, porque você me fez trabalhar muito mais do que se eu estivesse sozinha. Agora, estique a mão.

Bond achou graça no tom autoritário que havia em sua voz. Ele apenas podia perceber a sua silhueta, no escuro. Sua cabeça parecia mais aflada. Ele se perguntou como seriam os seus cabelos quando secos e penteados. Como seria ela quando estivesse vestindo roupas limpas naquele lindo corpo dourado? Podia vê-la entrando numa sala ou atravessando um vestíbulo em Beau Desert. Ela seria uma linda e encantadora Patinha Feia. Por que nunca procurara endireitar o nariz? Seria uma operação fácil. Depois disso, ela seria a jovem mais bela de Jamaica.

O seu ombro tocou nele. Bond esticou o braço e descansou a mão aberta no colo da jovem. Então Bond sentiu que ela estava enchendo a sua mão com ervilhas.

Subitamente, Bond aspirou o seu cheiro cálido de animal. Foi uma explosão sensual tão aguda que o seu corpo se uniu ao dela, e, por um momento, os seus olhos se fecharam.

Ela deixou escapar um riso curto, no qual havia timidez, satisfação e ternura. E disse, maternalmente: “Lá”, — e empurrou a mão de Bond.

 

CONTINUA

IX - POR UM TRIZ


Dez minutos mais tarde a baía estava vazia e imaculada. Pequenas ondas encrespavam-se preguiçosamente através do espelho das águas, no interior dos recifes e morriam exaustas na areia escura onde as conchas lilás brilhavam como unhas pintadas. O monte de conchas tinha desaparecido e não havia mais vestígios de pegadas. Quarrel cortara galhos de mangues e caminhava de costas procurando apagar as pegadas com aqueles galhos. Onde tinha varrido, a areia apresentava uma limpidez diferente mas não tão diferente a ponto de ser notada de fora do recife. A canoa da jovem tinha sido arrastada para dentro do mar, entre as rochas, e ali ficou coberta com algas e gravetos.

Quarrel tinha voltado ao promontório. Bond e a jovem estavam juntos, sob tufos de folhas, onde Bond dormira, e olhavam silenciosamente para o contorno do promontório, à volta do qual surgira a embarcação.

A lancha estava talvez a uns quinhentos metros de distância. A julgar pelo lento ritmo do motor, Bond concluiu que cada acidente da costa estava sendo cuidadosamente inspecionado para descobrir indícios da presença de estranhos. De qualquer forma, aquilo parecia uma possante embarcação. Talvez uma grande lancha de cabina. Que tripulação teria? Quem estaria no comando? O Dr. No? Improvável. Ele certamente não se daria àquele trabalho de polícia.

Do lado do ocidente apareceu um bando de corvos marinhos, voando baixo sobre o mar, além dos recifes. Bond observou-os. Eram o primeiro indício para ele encontrado daquela colônia de aves, na outra extremidade da ilha. Aquele bando, segundo Pleydell-Smith, seriam batedores à procura do brilho prateado das enchovas, próximas à superfície. Enquanto observava, as aves começaram a dar mergulhos rasos, ferindo o mar superficialmente e levantando respingos de água. Quase que de uma só vez, apareceu outra coluna de aves, vinda do ocidente, e logo outra, e mais outra, fundindo-se todas numa espessa e escura nuvem. Durante minutos, elas sombrearam o céu, e depois atiraram-se à água, cobrindo vários alqueires, piando e lutando, e mergulhando as cabeças no mar, fazendo uma rica colheita naquele sólido campo de anchovas, como piranhas que se banqueteassem num cavalo afogado.

Bond sentiu um suave toque da jovem, que fez um movimento com a cabeça, dizendo:

— As galinhas do chinês estão comendo milho.

Bond observou-lhe o rosto belo e feliz. Ela parecia bastante despreocupada com a chegada daqueles homens. Para ela aquilo era apenas o jogo de esconde-esconde que já tinha praticado antes.

A vibração metálica dos motores diesel estava-se tornando mais forte. A lancha deveria estar justamente por trás do promontório. Bond deu mais uma olhada à volta da tranqüila baía, e depois fixou os olhos através da folhagem e do mato, para os lados dos recifes.

A ponta de uma proa branca apareceu, seguida de uns dez metros de tombadilho, e logo o parabrisas de vidro, uma cabina baixa e uma antena de rádio, e o vulto de um homem à volta do leme. Finalmente, o comprido e achatado fosso da popa, e uma flâmula vermelha pendente, Seria uma lancha-torpedeira convertida, um excedente de guerra do governo britânico?

Os olhos de Bond fixaram-se nos dois homens que estavam em pé na popa. Eram negros de pele pálida, envergando roupas caqui de marinheiro, com largos cinturões e chapéus de palha com longas palas. Estavam um ao lado do outro, equilibrando-se sob a lenta elevação da massa líquida. Um deles segurava um alto-falante e o outro manejava uma metralhadora instalada num tripé. Bond teve a impressão de que era uma metralhadora “Spandau”.

O homem com o alto-falante deixou que este caísse, e ele ficou oscilando numa tira, que lhe dava volta ao pescoço. Apanhou um binóculo e começou a vasculhar metro a metro da praia. Indistintos comentários chegavam aos ouvidos de Bond, por entre o ruído dos motores.

Bond percebeu que os olhos do binóculo começavam pelo promontório e depois percorriam a areia. As lentes detiveram-se entre as rochas e continuaram o seu passeio. Depois, voltaram. O murmúrio do comentário elevou-se ganhando animação. O homem passou o binóculo para o metralhador, que observou rapidamente, devolvendo-o logo ao dono. O observador gritou alguma coisa para o timoneiro. A lancha começou a se aproximar da praia. Agora estavam justamente diante dos recifes, em frente a Bond e à jovem. O observador ergueu novamente o binóculo, apontando-o para as rochas onde se encontrava escondida a canoa da jovem. Novamente a fala excitada chegou aos ouvidos de Bond, por sobre as águas. Mais uma vez o binóculo foi passado ao metralhador, que levou algum tempo observando. Dessa vez, ele fez um sinal de assentimento com a cabeça.

Bond pensou: agora vamos ter coisa; esses homens conhecem o ofício. Em seguida, viu que o metralhador se ocupava em carregar a arma. O duplo estalido metálico chegou aos seus ouvidos, por entre o matraquear do motor.

O observador ergueu o alto-falante e ligou-o. O eco produzido pelo amplificador chegou até Bond, conduzido pela superfície da água. A voz do homem ribombou pela baía:

— Alô, pessoal! Saiam daí e não serão feridos. Era uma voz educada, com sotaque americano.

— Agora, pessoal — trovejou a voz — depressa! Nós vimos quando vocês desembarcaram. Já descobrimos o bote sob os paus. Não somos tolos e não estamos brincando. Saiam daí com os braços levantados e não lhes acontecerá nada!

Não se ouviu nenhuma resposta. Apenas as ondas quebravam docemente na praia. Bond podia ouvir a respiração da jovem. Os guinchos agudos dos corvos marinhos chegavam-lhes de uma milha de distância, sobre o mar. O cano de escapamento dos motores diesel produzia um ruído desigual e gorgulhante, quando o intumescimento do mar cobria o orifício de descarga.

Silenciosamente Bond tocou o braço da jovem e disse-lhe:

— Fique mais perto. Alvo menor.

Ele sentiu o calor da jovem mais próximo de seu corpo, e o rosto de Honey raspou pelo seu braço. Bond sussurrou:

— Enterre-se na areia. Encolha-se. Cada polegada a menos ajudará.

Ele começou a se encolher cuidadosamente na depressão que tinham escavado para se abrigarem, e sentiu que ela fazia o mesmo.

O homem estava erguendo o seu alto-falante. A voz ribombou novamente.

— Muito bem, pessoal! Vocês irão ver que isso aqui não é para brincadeira. — Depois, levantou o polegar. O metralhador experimentou a arma fazendo alguns disparos para a copa dos mangues situados por trás da praia. Bond ouviu o rápido matraquear, tão seu conhecido, e do qual se despedira pela última vez diante das linhas alemãs, nas Ardenas. As balas produziam o velho som de pombos assustados, assobiando sobre sua cabeça. Depois fez-se silêncio.

À distância, Bond via a nuvem negra de corvos marinhos elevar-se, começando a fazer os seus amplos círculos. Seus olhos voltaram para a embarcação. O metralhador estava apalpando o cano da metralhadora, para ver se já estava aquecido. Os dois homens trocaram algumas palavras. O observador apanhou novamente o porta-voz.

— Está bem, pessoal. Vocês foram avisados.

Bond viu o cano da “Spandau” levantar-se e abaixar-se. O homem estava querendo começar com a canoa, entre as rochas. Bond sussurrou para a jovem: — Muito bem, Honey. Agüente firme. Mantenha-se abaixada. Não vai durar muito.

Ele sentiu que a mão da jovem apertava o seu braço, e pensou: “Coitada; ela está metida nisso por minha causa.” Ele inclinou-se para a direita a fim de cobrir a cabeça de Honey e afundou o rosto na areia.

Dessa vez o matraquear foi terrível. Balas ricocheteavam no flanco do promontório. Fragmentos de pedra saltavam para todos os lados, sobre a praia. Outras balas ricocheteavam e iam perder-se dentro da mata. Simultaneamente com todo aquele barulho ouvia-se o martelar contínuo da metralhadora.

Houve uma pausa. Nova carga, pensou Bond. Agora será para nós. Pôde sentir a jovem agarrando-se a ele. Seu corpo tremia todo, encostado ao seu flanco. Bond apanhou uma arma e apertou-a de encontro ao corpo. O matraquear da metralhadora recomeçou. As balas vinham zunindo, da linha de maré, em direção a eles. Ouviu-se uma sucessão de rápidas batidas. O tufo, acima deles, estava sendo reduzido a pedaços. “Zuip Zuip Zuip”. Era como se um chicote de aço estivesse retalhando os arbustos. Pedaços de lenha caíam sobre eles, cobrindo-os lentamente. Bond respirou um ar mais fresco, o que significava que eles agora estavam ao ar-livre. Estariam eles escondidos pelas folhas o pelos destroços? As balas continuaram deslocando-se ao longo da linha da costa. Em menos de um minuto a metralhadora parou.

O silêncio tornou a reinar. A jovem lamuriou-se docemente. Bond fê-la calar-se e apertou-a mais forte.

O alto-falante apregoou:

— Está bem, pessoal. Se vocês ainda têm ouvidos, saibam que voltaremos logo para recolher-lhes os pedaços. Vamos trazer os cães. Até à vista, por enquanto.

O ritmo do motor se acelerou, e através das folhas Bond pôde ver a popa da lancha afundar-se mais na água, enquanto a embarcação rumava rapidamente para oeste. Dentro de minutos já não se ouvia mais nada.

Bond ergueu a cabeça cautelosamente. A baía estava serena, e tudo como antes, exceto o cheiro de cordite e as rochas quebradas.

Bond fez a jovem levantar-se. Havia marcas de lágrimas em seu rosto. Ela olhou-o aterrada, e disse:

— Isso foi terrível. Por que eles o fizeram? Podíamos ter sido mortos.

Bond pensou naquela jovem que sempre abrira caminho, na vida, por si mesma, mas apenas contra a natureza. Conhecia o mundo dos animais, dos insetos e dos peixes, e tirava todo o partido desse conhecimento. Mas aquele era um pequeno mundo, limitado pelo sol, pela lua e pelas estações. Ela não conhecia o grande mundo das salas cheias de fumo, dos corredores de negócios, dos corredores e antecâmaras governamentais, dos cautelosos encontros em bancos de praças — numa palavra: ela nada conhecia da luta pelo poder e pelo dinheiro, travada por homens poderosos.

Bond disse:

— É isso mesmo, Honey, eles não passam de uma quadrilha de bandidos assustados conosco. Podemos enfrentá-los.

Bond colocou o braço à volta de seus ombros e continuou:

— E você esteve maravilhosa, brava como ninguém. Agora, vamos ao encontro de Quarrel para traçar os nossos planos. De qualquer forma, já é tempo de comermos alguma coisa. O que é que você costuma comer nessas expedições?

Deram meia-volta e seguiram pela praia em direção ao promontório. Depois de um minuto, ela disse com voz bem controlada:

— Oh, há uma porção de coisas por aí que se podem comer. Ouriços do mar principalmente, mas também bananas silvestres e outras coisas. Eu como e durmo durante dois dias, antes de vir aqui. Não preciso de nada.

Bond apertou-a mais fortemente, mas deixou cair o braço, assim que Quarrel apareceu ao longe. Quarrel vinha saltando sobre as rochas, e, em determinado momento, parou, olhando para baixo. Bond e Honey se aproximaram dele. A canoa da jovem estava cortada ao meio pelas balas. Honey deixou escapar um grito, olhando desesperadamente para Bond:

— A minha canoa! Como poderei voltar?

— Não se preocupe, senhorita, — disse Quarrel, que sentia a perda de uma canoa mais do que Bond. Imaginou ainda que aquela embarcação representasse quase todo o capital da jovem. — O capitão lhe dará outra. E a senhorita voltará conosco. Temos um magnífico bote, entre os mangues, e ele não foi destruído. Já estive lá espiando.

Quarrel olhou para Bond. Agora, o seu rosto denotava preocupação.

— Mas, capitão, o senhor está vendo o que eu disse dessa gente. Eles são duros e não estão brincando. Esses cães que eles vão trazer são policiais — Pinschers, como eles os chamam. Bastardos. Meus amigos disseram-me que são uma matilha de vinte ou mais. É melhor resolvermos logo.

— Está bem, Quarrel. Mas antes de mais nada precisamos comer alguma coisa. — o diabo que me carregue se eu vou ser aterrorizado e expulso da ilha antes de dar uma olhada nisso. Levaremos Honey conosco. — E, voltando-se para a jovem:

— Está bem, Honey? Nada lhe acontecerá. Depois voltaremos juntos.

A jovem olhou-o em dúvida:

— Acho que não há alternativa. Quero dizer. Gostaria de ir com vocês, se não atrapalhasse. Francamente, não quero comer nada. Mas você me levará de volta, assim que puder? Não quero ver mais aquela gente. Durante quanto tempo vocês vão ficar olhando para essas aves?

Bond respondeu evasivamente:

— Pouco tempo. Eu terei apenas que ver o que lhes aconteceu e porquê. Depois, partiremos.

Olhou para o relógio e anunciou:

— Agora são doze horas. Você nos esperará aqui. Tome um banho ou faça o que quiser. Não ande por aí deixando pegadas. Vamos, Quarrel, é melhor escondermos aquele bote.

Só à uma hora eles estavam prontos. Bond e Quarrel encheram a canoa com pedras e areia, até que ela desapareceu sob a água, entre os mangues. Depois, apagaram as suas pegadas. As balas tinham deixado tantos gravetos na orla da praia, que eles podiam caminhar pisando em folhas e ramos quebrados. Comeram parte de suas rações — os homens com avidez, mas Honey com relutância — e depois, passando sobre as rochas, foram ter à lagoa, próxima da costa. Em seguida foram vadeando aquelas águas, em direção à foz do rio, trezentos metros praia abaixo.

Fazia muito calor. Um vento áspero e quente começou a soprar do nordeste. Quarrel informou que aquele vento soprava diariamente, durante todo o ano, e era vital para a guaneira, pois secava o guano. O revérbero do mar e das brilhantes folhas verdes dos mangues cegava-os. Bond deu-se por feliz, já que tivera o cuidado de acostumar sua pele ao sol.

Na foz do rio encontraram um banco de areia e um extenso pântano, profundo e de águas estagnadas. Os dois homens podiam molhar-se ou tirar as roupas. Bond disse à jovem:

— Honey, não podemos ter cerimônia, nesta situação. Vamos ficar apenas com as camisas por causa do sol. Fique apenas com o que for sensato e caminhe atrás de nós.

Sem esperar pela resposta da jovem, os dois homens tiraram as calças. Quarrel enrolou-as e guardou-as na sacola, juntamente com as provisões e o revólver de Bond. Depois começaram a vadear a lagoa, com Quarrel na frente, logo seguido de Bond, e, finalmente a jovem. A água chegou até a cintura de Bond. Um grande peixe prateado deu um salto perto deles e depois caiu ruidosamente na água. Viram-se pequeninas setas riscarem a superfície, quando peixes menores se afastaram precipitadamente.

A lagoa convergia para uma estreita garganta, por sobre a qual as copas dos mangues se tocavam. Durante algum tempo eles vadearam através de um túnel fresco, e depois o rio se alargou num canal profundo, de águas morosas, que serpeava para a frente, entre as gigantescas raízes de sustentação dos mangues. O fundo era lamacento, e a cada passo os pés se enterravam algumas polegadas no lodo. Pequenos peixes ou camarões se encolhiam ou fugiam de baixo de seus pés, e de quando em quando eles tinham que parar para se desembaraçar das sanguessugas, antes que elas se agarrassem firmemente. A não ser isso, aquela caminhada era fácil, sob o frescor das arvores, e, pelo menos para Bond, era uma bênção estar ao abrigo do sol.

Em breve, à medida que se iam afastando do mar, começaram a sentir um cheiro de ovo podre, o cheiro de hidrogênio sulfurado do gás dos pântanos. Os mosquitos começaram a assaltá-los e pareciam gostar do corpo de Bond. Quarrel disse-lhe que mergulhasse na água do rio, pois os mosquitos gostavam de carne salgada. Bond tirou a camisa e fez o que Quarrel lhe aconselhara. Depois disso sentiu-se melhor e o seu olfato chegou mesmo a se acostumar com aquele repugnante cheiro, a não ser quando os pés de Quarrel desfaziam algum bolsão de gás, no fundo da lama, e uma gigantesca bolha atravessava a água para arrebentar na superfície sob as suas narinas.

Os mangues começaram a se tornar mais escassos e mais esparsos, enquanto o rio se ia alargando aos poucos. Ao mesmo tempo, a água tornava-se mais rasa e o fundo mais firme. Logo chegaram a uma volta e saíram para céu aberto, Honey disse:

— É melhor tomarmos cuidado, agora. Eles poderão ver-nos com muita facilidade. Isso vai assim durante uma milha. Depois o rio torna a se estreitar até o lago. E depois se poderá ver a restinga onde os tratadores das aves viviam.

O grupo deteve-se à sombra do túnel de mangues e olhou para fora. O rio serpeava perigosamente, afastando-se deles, em direção ao centro da ilha. As suas barrancas, bordadas de bambus de pequeno porte e de vegetação rala, dar-lhes-íam cobertura reduzida. Partindo de sua margem ocidental, o terreno elevava-se aos poucos, e logo abruptamente até o monte, situado a três quilômetros de distância, que era a guaneira. Na base daquela montanha, viam-se várias cabanas esparsas. Um ziguezague prateado galgava o flanco da colina, até as tendas — trilhos “Decauville”, pensou Bond, destinados a levarem o guano para o moinho e separa-dor. O cume do monte era branco, como se estivesse coberto de neve. De sua parte mais elevada desprendia-se como que uma bandeira de dó de guano. Bond podia ver os pontos negros que eram os corvos marinhos, sobre o fundo branco. Aquelas aves estavam levantando vôo e pousando como abelhas numa colmeia.

Bond deixou-se ficar de pé e contemplou o brilho distante daquela montanha de excrementos de aves. Então aquilo era o reino do Dr. No! Bond pensou que jamais vira um cenário tão escondido e distante, em toda a sua vida.

Examinou o terreno entre o rio e a montanha. Parecia ser principalmente formado com aquela matéria cinzenta de corais mortos. Não havia dúvida de que uma estrada ou trilha corria da falda da montanha até ao lago central e aos pântanos. Bond notou ainda que toda a vegetação se curvava para oeste, e imaginou viver durante todo um ano com aquele vento escaldante castigando a ilha, sem falar do cheiro do guano e do gás dos pântanos. Nenhuma colônia penal poderia encontrar pior localização do que aquela.

Bond olhou para leste, onde os mangues, na área dos charcos, pareciam oferecer mais hospitalidade. Os três puseram-se a caminhar sobre um sólido tapete verde de vegetação. Sobre suas cabeças, aves revoluteavam agitadas, para depois se, acalmarem, e logo tornarem a agitar-se. Seus pios eram carregados pelo vento crestante.

A voz de Quarrel interrompeu os pensamentos de Bond:

— Eles vêm vindo, capitão!

Bond seguiu o olhar de Quarrel. Um grande caminhão descia celeremente das tendas, com uma nuvem de pó levantando-se das rodas. Bond acompanhou-o durante dez minutos, até que o veículo desapareceu entre os mangues, na margem do rio. Bond pôs-se a escutar e ouviu latidos de cães, que eram trazidos pelo vento.

Quarrel comentou:

— Eles vão descer pelo rio, capitão. Sabem que não nos podemos mover, a não ser rio acima, se não estivermos mortos. Certamente que descerão pelo rio, até a praia, e farão um reconhecimento dos destroços. Depois, com toda a certeza, a lancha virá com um pequeno bote e recolherá os homens e os cães. Pelo menos, isso é o que eu faria no lugar deles.

Honey disse: — Isso é, de fato, o que eles fazem quando me procuram. É isso mesmo. Basta que cortemos um pedaço de bambu, e, quando eles estiverem perto, mergulhemos na água, procurando respirar através do bambu, até que eles se afastem.

Bond sorriu para Quarrel, e disse: — Suponhamos que você corte os bambus, enquanto eu procuro um bom esconderijo entre os mangues.

Quarrel aquiesceu hesitante e começou a subir contra a corrente, em direção ao bambuzal, enquanto Bond se encaminhava para o túnel formado pelos mangues.

Bond evitara olhar para a jovem, mas esta disse-lhe com impaciência:

— Não precisa ter tanto cuidado em não olhar para mim. Não adianta se preocupar com tais coisas, numa hora dessas. Você mesmo o disse, ainda há pouco.

Bond virou-se e olhou para a jovem. Sua camisa esfrangalhada descia até a linha d’água. Podia-se ainda ter um vislumbre de pálidas coxas, serpeando sob a superfície. O lindo rosto sorriu para ele. No meio daqueles mangues, o seu nariz quebrado parecia harmonizar-se com o ambiente, pela sua animalidade.

Bond fitou-a descansadamente e ela compreendeu. Depois, ele deu-lhe as costas e desceu pela correnteza, seguido por ela. Logo encontrou o que procurava, isto é, uma fenda naquela parede formada pelas raízes dos mangues. Bond recomendou: — Não quebre nenhum galho. — Depois, baixou a cabeça e meteu-se por aquela brecha. O canal avançava numa distância de dez metros. A lama sob seus pés tornou-se mais mole e espessa. Chegou a uma sólida e intransponível parede de raízes. Aquela água escura fluía vagarosamente através de uma ampla e tranqüila lagoa. Bond deteve-se. A jovem se aproximou dele.

— Isto é mesmo uma brincadeira de esconde-esconde — disse ela, trêmula.

— É verdade — aquiesceu Bond distraidamente, enquanto pensava em seu revólver. Com efeito, ele preocupava-se em saber com que eficiência a arma operaria depois de um banho no rio — quantos cães e homens ele poderia eliminar, se fossem descobertos. Sentiu um estremecimento de inquietação. Tinha sido uma falta de sorte ter encontrado aquela jovem. Em combate, queira-se ou não, uma mulher representa sempre um coração a mais. O inimigo tem dois alvos enquanto apenas oferece um.

Bond lembrou-se de sua sede. Apanhou na concha da mão um pouco de água e bebeu-a. Aquela água era salobra e tinha gosto de terra. Mas servia. Bond bebeu um pouco mais. A jovem agitou a mão e deteve-o, dizendo:

— Não beba demais. Lave a boca e cuspa. Você pode apanhar febre.

Quarrel assobiou de algum ponto situado na corrente principal. Bond respondeu e foi em direção ao amigo. Depois, voltaram juntos, internando-se no canal. Quarrel borrifou as raízes de mangues com água, nos pontos em que os seus corpos talvez as tivessem raspado. “Para tirar o nosso cheiro”, explicou, laconicamente. Em seguida mostrou o seu feixe de bambus e começou a cortá-los e prepará-los. Enquanto isso, Bond se ocupava com seu revólver e a munição. Os três ficaram imóveis, no meio daquele pântano, de modo a não levantarem mais lama.

A luz do sol filtrava-se através do espesso teto de folhas, os camarões agitavam-se sob os pés daqueles três fugitivos. Gradativamente foi-se avolumando uma insuportável tensão, naquele silêncio escaldante e angustioso.

Foi quase um alívio ouvir-se o ladrar dos cães.


X - O RASTRO DO DRAGÃO


O grupo de investigação descia rapidamente pelo rio. Os dois homens, de calções de banho e altas botas impermeáveis, tinham que correr para acompanhar os cães.

Eram grandes negros chineses, que traziam coldres sustentados ao ombro por meio de talabartes cruzados diante dos peitos suados. De quando em quando trocavam gritos que em geral não passavam de imprecações. À frente deles a matilha de cães Dobermann nadava e debatia-se n’água, latindo excitadamente. Tinham farejado uma pista e procuravam segui-la nervosamente, com as orelhas eretas sobre as cabeças afladas.

— Talvez um maldito crocodilo, — gritou o chefe elevando a voz sobre a algazarra. Empunhava um chicote que de vez em quando fazia estalar no campo de caça.

Os outros homens se encaminhavam para ele. O chefe gritou excitadamente: “Aposto que é o gringo inglês! Tenho certeza de que ele está entre os mangues. Cuidado para que o gringo não nos faça cair numa emboscada.” O homem tirou o revólver do coldre e colocou-o sob o sovaco, sem tirar a mão da coronha.

O grupo agora estava deixando a parte do rio, sob céu aberto, e entrando no túnel formado pelos mangues. O primeiro homem tinha um apito, que se projetava de seu largo rosto como um toco de charuto. Fez soar um agudo silvo. Quando os cães avançaram, ele se deixou ficar com o seu chicote junto do chefe. Os animais continuavam farejando, lamuriando-se porque a corrente os obrigava a desobedecer às ordens recebidas. Os dois homens sacaram os revólveres e vadearam lentamente o rio, na mesma direção da corrente, por entre os caules tortuosos dos mangues.

O homem que ia na frente chegou ao estreito canal que Bond tinha encontrado, agarrou um dos cães pela co-leira e lançou-o ao canal. O animal resfolegou ansiosamente e debateu-se para a frente. Os olhos do homem percorreram as raízes dos mangues, de ambos os lados do canal, para ver se apresentavam algum arranhão.

O cão e o homem chegaram ao pequeno lago situado na extremidade do canal. O homem olhou à sua volta, com ar animado. Tornou a agarrar o cão pela coleira e puxou-o para trás. O animal relutava em abandonar o lugar. Então, o homem feriu a água com o chicote.

O segundo homem estivera esperando à entrada do canal. O primeiro saiu daquele pequeno remanso e sacudiu a cabeça, descendo a corrente, com os cães, que agora se mostravam menos excitados, nadando à frente.

Lentamente, a algazarra da perseguição foi diminuindo e desapareceu.

Por mais cinco minutos nada se mexeu na laguna dos mangues; depois, num dos cantos, entre as raízes, apareceu lentamente para fora d’água um fino periscópio de bambu. O rosto de Bond emergiu logo em seguida, com os cabelos molhados colados à testa, como a cara de um cadáver que boiasse. Em sua mão direita, sob a água, o revólver estava pronto. Bond procurou escutar cuidadosamente. O silêncio era completo, não havia o mínimo ruído. Ou haveria? O que seria aquele suave barulho, como se algo deslizasse entre a água, na corrente principal? Viria alguém, muito serenamente, seguindo na esteira daquela caçada? Bond procurou apalpar à sua volta e tocou delicadamente nos dois corpos que estavam cada um em um de seus flancos, entre as raízes, na orla da laguna. Quando os dois rostos aforaram à superfície, ele colocou o seu dedo indicador sobre os lábios, mas já era tarde. Quarrel tinha tossido e cuspido. Bond fez uma careta e fez um sinal na direção da principal corrente. Todos procuravam escutar. O ruído recomeçou. Alguém estava-se dirigindo para o canal lateral. Os tubos de bambu voltaram para as três bocas e as cabeças tornaram a submergir. Debaixo da água Bond descansou a cabeça na lama, apertou as narinas e os lábios à volta do tubo. Sabia que a laguna já fora examinada uma vez, pois sentira a agitação causada na água pelo cão, que passara nadando! Da primeira vez não tinham sido achados, mas conseguiriam escapar desta? Agora haveria menos possibilidades de que a lama revolta se escoasse para fora da laguna. Se esse batedor visse a mancha mais escura, na água, atiraria ou usaria um punhal? Que armas traria? Bond resolveu não correr riscos. Ao primeiro rumor de movimento, ao seu lado, ele se poria de pé e daria logo ao gatilho, esperando pelo melhor.

Assim ficou ele, submerso, com todos os sentidos atentos. Como era desagradável aquele respirar controlado e insuportáveis as ligeiras mordidelas dos camarões! Por sorte nenhum deles tinha qualquer ferida no corpo, pois do contrário os malditos animalzinhos ter-se-iam atirado contra elas. De qualquer forma, aquela fora uma brilhante idéia da jovem. Sem ela os cães já os teriam alcançado, onde quer que eles se tivessem escondido.

Inesperadamente, Bond encolheu-se. Uma bota de borracha tinha pisado em seu queixo e escorregado. O homem pensaria tratar-se de um galho de árvore? Bond não podia correr aquele risco. Com um só impulso pôs-se de pé, atirando para longe o pedaço de bambu.

Bond teve uma rápida impressão de um gigantesco corpo de pé, quase em cima de si, e duma coronha de rife, em rápido movimento. Levantou o braço esquerdo para proteger a cabeça e recebeu um violento golpe no braço. Ao mesmo tempo, o seu braço direito se esticou para a frente, e, quando o cano tocou no lado direito do peito, sob o mamilo, ele acionou o gatilho.

O coice da arma, quase encostada ao corpo do homem, por pouco não quebrou o pulso de Bond, mas o homem desabou para trás como uma árvore decepada que cai n’água. Antes que o corpo afundasse, Bond ainda pôde perceber-lhe uma grande fenda no flanco. A cabeça, uma cabeça negróide de chinês, veio à superfície, com os olhos revirados para cima e a água a sair de sua boca escancarada e silenciosa. Em seguida a cabeça submergiu novamente e nada mais se pôde ver senão uma lama espumosa e uma mancha vermelha que gradualmente se ia ampliando e lentamente era atraída pela corrente.

Bond se endireitou e voltou-se para o lado. Quarrel e a jovem estavam atrás, em pé, com a água a escorrer-lhes dos corpos. Quarrel tinha um sorriso que ia de orelha a orelha, mas a garota mordia as articulações dos dedos, enquanto seus olhos se escancaravam horrorizados diante da água avermelhada.

Bond disse laconicamente: “Desculpe-me, Honey. Tinha que ser feito. Ele estava bem sobre nós. Venha, vamos indo.” Agarrou-a de qualquer maneira, pelo braço, e arrastou-a para fora da principal corrente, apenas detendo-se quando chegaram a rio aberto, na boca do túnel de mangues.

O cenário estava novamente vazio. Bond olhou para o relógio, e verificou que parara às três horas. Olhou para o sol, já bastante deslocado para o ocidente e concluiu que deveriam ser quatro horas. Quanto ainda teriam que caminhar? Bond inesperadamente sentiu-se cansado. Agora teria de enfrentar a situação. Ainda que o disparo não tivesse sido ouvido — e certamente que ele fora abafado pelo próprio corpo da vítima e pelas árvores — a falta do homem seria sentida quando os outros se reunissem, — se a suposição de Quarrel fosse correta, na embocadura do rio, de onde seriam recolhidos pela lancha. Voltariam eles, subindo o rio, a fim de procurarem o desaparecido? Talvez não. Já estaria muito escuro quando eles tivessem a certeza de que o homem estava realmente desaparecido. O mais certo seria mandarem um grupo de homens pela manhã. Os cães facilmente dariam com o corpo. E o que aconteceria?

A garota puxou-o pela manga e disse com irritação: — Já é tempo de você me dizer o que significa tudo isto! Por que estão todos procurando se matar mutuamente? E quem é você? Não acredito em toda essa história de aves. Ninguém carrega revólveres contra aves.

Bond baixou o olhar, fitando aqueles olhos bem separados e irados. — Desculpe-me, Honey. Receio tê-la arrastado para uma boa encrenca. Eu lhe contarei tudo quando voltarmos à noite para o acampamento. Foi apenas má sorte que você se envolvesse comigo, desta maneira. Tenho uma guerrinha com essa gente. Eles parecem querer matar-me. Agora estou apenas interessado em que todos nós saiamos desta ilha sem que ninguém fique ferido. Já tenho muito do que queria, para da próxima vez voltar pela porta da frente.

— O que você quer dizer? Você é alguma espécie de policial? Está querendo meter esse chinês na cadeia?

— Mais ou menos, — disse Bond, rindo para ela. — Pelo menos você está do lado dos anjos. Agora, diga-me uma coisa. Quanto falta ainda para chegar ao acampamento dos guardas?

— Oh, cerca de uma hora.

— É um lugar bom para nele esconder-se? Eles poderiam achar-nos com facilidade?

— Eles teriam que atravessar o lago ou subir o rio. Tudo estará muito bem se eles não puserem o dragão em nosso encalço. Ele pode muito bem atravessar a água, pois já o vi fazê-lo.

— Bem — disse Bond diplomaticamente — esperemos que ele esteja com a cauda machucada, ou tenha outra coisa qualquer.

A jovem vociferou: — Muito bem, sr. Sabe-Tudo. — E acrescentou irritada: — Espere e verá.

Quarrel deixou o túnel de mangues, agitando ruidosamente a água, tendo na mão o rife do chinês abatido, e dizendo à guisa de quem pede desculpas:

— Não há mal em termos outra arma, chefe. Parece que vamos precisar dela.

Bond apanhou aquela arma. Era uma carabina “Remington”, do exército norte-americano, calibre 300. Não havia dúvida de que aquela gente contava com equipamento apropriado. Bond devolveu a arma a Quarrel, depois de examiná-la.

Quarrel como que fez eco aos seus pensamentos: — Isso é gente astuta, capitão. Aquele homem veio esquadrinhando suavemente, atrás dos outros, a fim de nos surpreender quando deixássemos o esconderijo, depois da passagem dos cães. Esse tal de doutor com certeza é um sujeito muito esperto.

Bond disse pensativamente: — É, ele deve ser um homem incomum. — Depois espantou os pensamentos: — Agora, vamos tocando para a frente. Honey diz que ainda precisamos de uma hora para chegarmos ao acampamento. É melhor irmos pela margem esquerda, de modo a ficarmos ao abrigo da colina. Pelo que já pudemos ver, eles têm lunetas assestadas sobre o rio.

Bond entregou a sua arma a Quarrel, que a guardou na mochila molhada. Puseram-se novamente em marcha, com Quarrel à frente, e Bond e a jovem andando juntos, atrás.

Aproveitavam algumas sombras das árvores e bambus da margem ocidental, mas deviam agora suportar toda a intensidade de um vento crestante. Borrifaram braços e corpos com água, a fim de refrescar as queimaduras. Os olhos de Bond estavam injetados por aquele insuportável revérbero e o seu braço doía intoleràvelmente no ponto em que fora atingido pela coronha. E ele não teria à sua espera o seu jantar de pão embebido, queijo e fiambre. Quanto tempo poderiam dormir? Não dormira muito na véspera, e parece que não iria ter melhor ração de sono. E a garota? Ela nada dormira. Ele e Quarrel teriam que se revezar, em quartos de vigilância. E logo chegaria o dia seguinte, quando procurariam ganhar novamente os mangues e vencer lentamente a distância que os separava de sua canoa, através da extremidade oriental da ilha. As coisas correriam daquela forma, segundo era de esperar. Então, tratariam de se fazerem ao mar na noite seguinte. Bond pensou em como haveria de abrir caminho por entre sólidos mangues, na distância de oito quilômetros. Que perspectiva! Continuou se arrastando para a frente, pensando nas “férias ao sol dos trópicos” de M. Muito gostaria que M tivesse que partilhar com ele aquelas “férias”.

O rio foi-se estreitando até que se reduziu a uma simples corrente entre as moitas de bambu. Depois se ampliava num estuário baixo e pantanoso, além do qual as cinco milhas quadradas de lago raso davam vazão para o outro lado da ilha, perdendo-se num agitado espelho líquido azul-cinza. Mais para além estava a brilhante pista aérea e o reflexo da luz solar sobre um único hangar. A jovem disse-lhe que se mantivesse na direção leste, e eles foram lentamente avançando, protegidos pela orla da mata.

Inesperadamente, Quarrel deteve-se, com o rosto esticado como o focinho de um cão para o terreno pantanoso à sua frente. Dois profundos sulcos tinham sido escavados na lama, com um sulco mais raso no centro. Eram a trilha de algo que tinha descido da colina e atravessado o pântano em direção ao lago.

A jovem disse com indiferença: — Por aqui já passou o dragão.

Quarrel arregalou os olhos para ela.

Bond caminhou lentamente pela trilha. As marcas exteriores eram bastante lisas, trazendo a marca de uma linha curva. Poderiam ter sido causadas por rodas, mas eram enormes, pelo menos com sessenta centímetros de largura. A trilha central tinha a mesma forma, mas com apenas três polegadas de largura, ou seja a largura de um pneumático de automóvel. As trilhas não apresentavam nenhum indício de pegadas e eram completamente frescas. Estendiam-se em linha reta, e os arbustos por elas atravessados tinham sido derrubados e esmagados no chão, como se um tanque de guerra tivesse passado por ali. Bond não podia imaginar que espécie de veículo seria aquele. A jovem tocou-o com o cotovelo e murmurou: — Eu lhe tinha dito. Ele apenas pôde responder pensativamente: — Bom, Honey, se não é o dragão, é algo que nunca vi antes.

Mais adiante, ela puxou-o ansiosamente pela manga. “Veja”, sussurrou, e apontou para a frente, indicando um grande cerrado de árvores, ao lado do qual passavam as trilhas. O cerrado estava sem folhas, enegrecido. Ao centro viam-se os restos dos ninhos de pássaros carbonizados. — Ele respirou sobre as árvores, — disse a garota nervosamente.

Bond aproximou-se das árvores e examinou-as. — Certamente que o fez — admitiu. Por que aquele cerrado, em especial, tinha sido queimado? Era muito estranho aquilo.

As trilhas desciam em direção ao lago e desapareciam na água. Bond teria gostado de segui-las, mas não poderia abandonar a cobertura das árvores. Assim, continuaram a marcha, cada um entregue aos próprios pensamentos.

Lentamente o dia começou a morrer, por trás da colina, e por fim a garota apontou para a frente, através dos arbustos; Bond pôde ver uma comprida restinga internando-se no lago. Estava coberta por densas moitas de arbustos e podiam-se ver, a cem metros da praia, os restos de uma cabana incendiada. Aquele parecia um lugar razoavelmente atraente para se passar a noite, e era bem protegido dos dois lados, pela água.

O vento tinha declinado e a água se apresentava suave e convidativa. Que prazer não seria tirarem as suas imundas camisas para um banho no lago e, depois de horas de patinhação através da lama e do lodo do pântano, poderem descansar naquela areia dura e seca!

O sol brilhou com reflexos amarelecidos e desapareceu por trás da montanha. Ainda era dia na extremidade oriental da ilha, mas a sombra negra do monte avançava vagarosamente sobre o lago e acabaria por expulsar completamente os últimos vestígios do sol. Os sapos começaram a coaxar mais barulhentamente que em Jamaica, até que a noite ficou cheia daquele áspero ruído. Do outro lado do lago um grande sapo macho começou a soar o seu tambor. Aquele estranho som era algo entre um tom-tom e um rosnado de macaco. Enviava mensagens que subitamente se interrompiam e logo silenciaram. Com certeza encontrara o que procurava.

Chegaram à garganta da restinga e seguiram por um estreito caminho, até a clareira que encerrava os escombros da cabana de sapé. As grandes e misteriosas trilhas saíam da água, de ambos os lados, atravessavam a clareira e os cerrados próximos. Muitos dos arbustos estavam queimados ou crestados. Podiam-se ver os restos de um fogão feito de pedaços de coral, e algumas panelas e latas vazias. Examinaram os destroços, e Quarrel desenterrou um par de latas intactas de costeletas de porco e ervilhas marca “Heinz”. A jovem encontrou ainda um saco de dormir muito amarrotado, enquanto Bond achou uma pequena bolsa de couro com cinco notas de um dólar, três libras de Jamaica e algumas moedas de prata. Os dois homens certamente tinham abandonado aquele lugar a toda pressa.

Prosseguiram mais para diante, até uma pequena clareira arenosa. Através dos arbustos podiam ver luzes cintilando sobre a água e provenientes da montanha, talvez a mais de três quilômetros de distância. A leste nada mais havia senão. os suaves reflexos escuros da água sob o céu sombrio.

Bond comentou: — Enquanto não acendermos nada, estaremos bem aqui. A primeira coisa a fazer é tomarmos um bom banho, Honey. Você pode ficar com o resto da restinga, que nós ficaremos com a sua garganta. Dentro de meia hora espero vê-la para o jantar.

A garota riu: — Você virá a rigor?

— Sem dúvida — respondeu Bond — e de calças.

Quarrel observou: — Capitão, enquanto ainda há um pouco de luz, vou abrir essas latas e preparar as coisas para a noite. — Remexeu dentro da mochila. — Aqui estão as suas calças e o seu revólver. O pão talvez não esteja muito bom, mas está apenas molhado. Pode-se comê-lo bem, e amanhã estará seco. O melhor talvez fosse comermos das latas esta noite, guardando o queijo e as costeletas. As latas são pesadas e amanhã teremos que andar muito.

Bond respondeu: — Muito bem, Quarrel. Deixarei o cardápio aos seus cuidados.

Em seguida, apanhou o revólver e as calças úmidas e desceu para a água rasa. A água estava acariciante, mas desagradavelmente quente. Bond escavou punhados de areia, com as mãos, e esfregou o corpo com ela, utilizando-a como sabonete. Depois deixou-se ficar gostosamente em meio àquele silêncio e àquela solidão.

As estrelas começaram a brilhar palidamente, as estrelas que os tinham trazido à ilha na noite passada; as estrelas que os tirariam dali no dia seguinte. Que viagem! Mas pelo menos já tinha dado os seus resultados. Agora tinha provas bastantes, e testemunhas, para ir ter com o governador e conseguir dele um inquérito completo acerca das atividades do Dr. No. Ninguém lança mão de metralhadoras contra pessoas, mesmo contra intrusos. E, da mesma forma, o que seria aquilo do Dr. No, que invadira a propriedade da Sociedade Audubon, aquilo que chegara a destruir essa propriedade e provavelmente matara um de seus empregados? Isto também teria que ser investigado. E o que haveria ele de encontrar quando voltasse pela porta da frente, talvez a bordo de um destróier, e com um destacamento de fuzileiros navais? Qual seria a resposta para o mistério do Dr. No? O que estaria ele escondendo? Por que aquele segredo era tão importante, que seria capaz de matar repetidas vezes, para preservá-lo? E quem era esse Dr. No?

Bond ouviu o barulho de alguém espojando-se na água. Pensou na garota. E quem, afinal, era Honeychile Ri-der? Aquilo pelo menos, pensou ele ao sair da água, era algo que deveria esclarecer antes do amanhecer.

Bond enfiou as suas pegajosas calças, sentou-se na areia e desmontou o revólver. Fê-lo pelo tato, utilizando-se de sua camisa para secar cada peça e cada cartucho. Depois, tornou a montar a arma e pressionou o gatilho, fazendo com que o tambor vazio desse uma volta completa. O som era satisfatório. Seriam precisos alguns dias para que o revólver começasse a enferrujar. Carregou-o e meteu-o no coldre, para dentro do cós da calça. Depois, levantou-se e voltou para a clareira.

A sombra de Honey chegou até ele, e a sua voz se fez ouvir: — Venha; estamos morrendo de fome. Apanhei uma das panelas, limpei-a e pusemos as ervilhas nela. Temos pão também. E eu não sinto escrúpulos de comer a sua ração, porque você me fez trabalhar muito mais do que se eu estivesse sozinha. Agora, estique a mão.

Bond achou graça no tom autoritário que havia em sua voz. Ele apenas podia perceber a sua silhueta, no escuro. Sua cabeça parecia mais aflada. Ele se perguntou como seriam os seus cabelos quando secos e penteados. Como seria ela quando estivesse vestindo roupas limpas naquele lindo corpo dourado? Podia vê-la entrando numa sala ou atravessando um vestíbulo em Beau Desert. Ela seria uma linda e encantadora Patinha Feia. Por que nunca procurara endireitar o nariz? Seria uma operação fácil. Depois disso, ela seria a jovem mais bela de Jamaica.

O seu ombro tocou nele. Bond esticou o braço e descansou a mão aberta no colo da jovem. Então Bond sentiu que ela estava enchendo a sua mão com ervilhas.

Subitamente, Bond aspirou o seu cheiro cálido de animal. Foi uma explosão sensual tão aguda que o seu corpo se uniu ao dela, e, por um momento, os seus olhos se fecharam.

Ela deixou escapar um riso curto, no qual havia timidez, satisfação e ternura. E disse, maternalmente: “Lá”, — e empurrou a mão de Bond.

 

CONTINUA

IX - POR UM TRIZ


Dez minutos mais tarde a baía estava vazia e imaculada. Pequenas ondas encrespavam-se preguiçosamente através do espelho das águas, no interior dos recifes e morriam exaustas na areia escura onde as conchas lilás brilhavam como unhas pintadas. O monte de conchas tinha desaparecido e não havia mais vestígios de pegadas. Quarrel cortara galhos de mangues e caminhava de costas procurando apagar as pegadas com aqueles galhos. Onde tinha varrido, a areia apresentava uma limpidez diferente mas não tão diferente a ponto de ser notada de fora do recife. A canoa da jovem tinha sido arrastada para dentro do mar, entre as rochas, e ali ficou coberta com algas e gravetos.

Quarrel tinha voltado ao promontório. Bond e a jovem estavam juntos, sob tufos de folhas, onde Bond dormira, e olhavam silenciosamente para o contorno do promontório, à volta do qual surgira a embarcação.

A lancha estava talvez a uns quinhentos metros de distância. A julgar pelo lento ritmo do motor, Bond concluiu que cada acidente da costa estava sendo cuidadosamente inspecionado para descobrir indícios da presença de estranhos. De qualquer forma, aquilo parecia uma possante embarcação. Talvez uma grande lancha de cabina. Que tripulação teria? Quem estaria no comando? O Dr. No? Improvável. Ele certamente não se daria àquele trabalho de polícia.

Do lado do ocidente apareceu um bando de corvos marinhos, voando baixo sobre o mar, além dos recifes. Bond observou-os. Eram o primeiro indício para ele encontrado daquela colônia de aves, na outra extremidade da ilha. Aquele bando, segundo Pleydell-Smith, seriam batedores à procura do brilho prateado das enchovas, próximas à superfície. Enquanto observava, as aves começaram a dar mergulhos rasos, ferindo o mar superficialmente e levantando respingos de água. Quase que de uma só vez, apareceu outra coluna de aves, vinda do ocidente, e logo outra, e mais outra, fundindo-se todas numa espessa e escura nuvem. Durante minutos, elas sombrearam o céu, e depois atiraram-se à água, cobrindo vários alqueires, piando e lutando, e mergulhando as cabeças no mar, fazendo uma rica colheita naquele sólido campo de anchovas, como piranhas que se banqueteassem num cavalo afogado.

Bond sentiu um suave toque da jovem, que fez um movimento com a cabeça, dizendo:

— As galinhas do chinês estão comendo milho.

Bond observou-lhe o rosto belo e feliz. Ela parecia bastante despreocupada com a chegada daqueles homens. Para ela aquilo era apenas o jogo de esconde-esconde que já tinha praticado antes.

A vibração metálica dos motores diesel estava-se tornando mais forte. A lancha deveria estar justamente por trás do promontório. Bond deu mais uma olhada à volta da tranqüila baía, e depois fixou os olhos através da folhagem e do mato, para os lados dos recifes.

A ponta de uma proa branca apareceu, seguida de uns dez metros de tombadilho, e logo o parabrisas de vidro, uma cabina baixa e uma antena de rádio, e o vulto de um homem à volta do leme. Finalmente, o comprido e achatado fosso da popa, e uma flâmula vermelha pendente, Seria uma lancha-torpedeira convertida, um excedente de guerra do governo britânico?

Os olhos de Bond fixaram-se nos dois homens que estavam em pé na popa. Eram negros de pele pálida, envergando roupas caqui de marinheiro, com largos cinturões e chapéus de palha com longas palas. Estavam um ao lado do outro, equilibrando-se sob a lenta elevação da massa líquida. Um deles segurava um alto-falante e o outro manejava uma metralhadora instalada num tripé. Bond teve a impressão de que era uma metralhadora “Spandau”.

O homem com o alto-falante deixou que este caísse, e ele ficou oscilando numa tira, que lhe dava volta ao pescoço. Apanhou um binóculo e começou a vasculhar metro a metro da praia. Indistintos comentários chegavam aos ouvidos de Bond, por entre o ruído dos motores.

Bond percebeu que os olhos do binóculo começavam pelo promontório e depois percorriam a areia. As lentes detiveram-se entre as rochas e continuaram o seu passeio. Depois, voltaram. O murmúrio do comentário elevou-se ganhando animação. O homem passou o binóculo para o metralhador, que observou rapidamente, devolvendo-o logo ao dono. O observador gritou alguma coisa para o timoneiro. A lancha começou a se aproximar da praia. Agora estavam justamente diante dos recifes, em frente a Bond e à jovem. O observador ergueu novamente o binóculo, apontando-o para as rochas onde se encontrava escondida a canoa da jovem. Novamente a fala excitada chegou aos ouvidos de Bond, por sobre as águas. Mais uma vez o binóculo foi passado ao metralhador, que levou algum tempo observando. Dessa vez, ele fez um sinal de assentimento com a cabeça.

Bond pensou: agora vamos ter coisa; esses homens conhecem o ofício. Em seguida, viu que o metralhador se ocupava em carregar a arma. O duplo estalido metálico chegou aos seus ouvidos, por entre o matraquear do motor.

O observador ergueu o alto-falante e ligou-o. O eco produzido pelo amplificador chegou até Bond, conduzido pela superfície da água. A voz do homem ribombou pela baía:

— Alô, pessoal! Saiam daí e não serão feridos. Era uma voz educada, com sotaque americano.

— Agora, pessoal — trovejou a voz — depressa! Nós vimos quando vocês desembarcaram. Já descobrimos o bote sob os paus. Não somos tolos e não estamos brincando. Saiam daí com os braços levantados e não lhes acontecerá nada!

Não se ouviu nenhuma resposta. Apenas as ondas quebravam docemente na praia. Bond podia ouvir a respiração da jovem. Os guinchos agudos dos corvos marinhos chegavam-lhes de uma milha de distância, sobre o mar. O cano de escapamento dos motores diesel produzia um ruído desigual e gorgulhante, quando o intumescimento do mar cobria o orifício de descarga.

Silenciosamente Bond tocou o braço da jovem e disse-lhe:

— Fique mais perto. Alvo menor.

Ele sentiu o calor da jovem mais próximo de seu corpo, e o rosto de Honey raspou pelo seu braço. Bond sussurrou:

— Enterre-se na areia. Encolha-se. Cada polegada a menos ajudará.

Ele começou a se encolher cuidadosamente na depressão que tinham escavado para se abrigarem, e sentiu que ela fazia o mesmo.

O homem estava erguendo o seu alto-falante. A voz ribombou novamente.

— Muito bem, pessoal! Vocês irão ver que isso aqui não é para brincadeira. — Depois, levantou o polegar. O metralhador experimentou a arma fazendo alguns disparos para a copa dos mangues situados por trás da praia. Bond ouviu o rápido matraquear, tão seu conhecido, e do qual se despedira pela última vez diante das linhas alemãs, nas Ardenas. As balas produziam o velho som de pombos assustados, assobiando sobre sua cabeça. Depois fez-se silêncio.

À distância, Bond via a nuvem negra de corvos marinhos elevar-se, começando a fazer os seus amplos círculos. Seus olhos voltaram para a embarcação. O metralhador estava apalpando o cano da metralhadora, para ver se já estava aquecido. Os dois homens trocaram algumas palavras. O observador apanhou novamente o porta-voz.

— Está bem, pessoal. Vocês foram avisados.

Bond viu o cano da “Spandau” levantar-se e abaixar-se. O homem estava querendo começar com a canoa, entre as rochas. Bond sussurrou para a jovem: — Muito bem, Honey. Agüente firme. Mantenha-se abaixada. Não vai durar muito.

Ele sentiu que a mão da jovem apertava o seu braço, e pensou: “Coitada; ela está metida nisso por minha causa.” Ele inclinou-se para a direita a fim de cobrir a cabeça de Honey e afundou o rosto na areia.

Dessa vez o matraquear foi terrível. Balas ricocheteavam no flanco do promontório. Fragmentos de pedra saltavam para todos os lados, sobre a praia. Outras balas ricocheteavam e iam perder-se dentro da mata. Simultaneamente com todo aquele barulho ouvia-se o martelar contínuo da metralhadora.

Houve uma pausa. Nova carga, pensou Bond. Agora será para nós. Pôde sentir a jovem agarrando-se a ele. Seu corpo tremia todo, encostado ao seu flanco. Bond apanhou uma arma e apertou-a de encontro ao corpo. O matraquear da metralhadora recomeçou. As balas vinham zunindo, da linha de maré, em direção a eles. Ouviu-se uma sucessão de rápidas batidas. O tufo, acima deles, estava sendo reduzido a pedaços. “Zuip Zuip Zuip”. Era como se um chicote de aço estivesse retalhando os arbustos. Pedaços de lenha caíam sobre eles, cobrindo-os lentamente. Bond respirou um ar mais fresco, o que significava que eles agora estavam ao ar-livre. Estariam eles escondidos pelas folhas o pelos destroços? As balas continuaram deslocando-se ao longo da linha da costa. Em menos de um minuto a metralhadora parou.

O silêncio tornou a reinar. A jovem lamuriou-se docemente. Bond fê-la calar-se e apertou-a mais forte.

O alto-falante apregoou:

— Está bem, pessoal. Se vocês ainda têm ouvidos, saibam que voltaremos logo para recolher-lhes os pedaços. Vamos trazer os cães. Até à vista, por enquanto.

O ritmo do motor se acelerou, e através das folhas Bond pôde ver a popa da lancha afundar-se mais na água, enquanto a embarcação rumava rapidamente para oeste. Dentro de minutos já não se ouvia mais nada.

Bond ergueu a cabeça cautelosamente. A baía estava serena, e tudo como antes, exceto o cheiro de cordite e as rochas quebradas.

Bond fez a jovem levantar-se. Havia marcas de lágrimas em seu rosto. Ela olhou-o aterrada, e disse:

— Isso foi terrível. Por que eles o fizeram? Podíamos ter sido mortos.

Bond pensou naquela jovem que sempre abrira caminho, na vida, por si mesma, mas apenas contra a natureza. Conhecia o mundo dos animais, dos insetos e dos peixes, e tirava todo o partido desse conhecimento. Mas aquele era um pequeno mundo, limitado pelo sol, pela lua e pelas estações. Ela não conhecia o grande mundo das salas cheias de fumo, dos corredores de negócios, dos corredores e antecâmaras governamentais, dos cautelosos encontros em bancos de praças — numa palavra: ela nada conhecia da luta pelo poder e pelo dinheiro, travada por homens poderosos.

Bond disse:

— É isso mesmo, Honey, eles não passam de uma quadrilha de bandidos assustados conosco. Podemos enfrentá-los.

Bond colocou o braço à volta de seus ombros e continuou:

— E você esteve maravilhosa, brava como ninguém. Agora, vamos ao encontro de Quarrel para traçar os nossos planos. De qualquer forma, já é tempo de comermos alguma coisa. O que é que você costuma comer nessas expedições?

Deram meia-volta e seguiram pela praia em direção ao promontório. Depois de um minuto, ela disse com voz bem controlada:

— Oh, há uma porção de coisas por aí que se podem comer. Ouriços do mar principalmente, mas também bananas silvestres e outras coisas. Eu como e durmo durante dois dias, antes de vir aqui. Não preciso de nada.

Bond apertou-a mais fortemente, mas deixou cair o braço, assim que Quarrel apareceu ao longe. Quarrel vinha saltando sobre as rochas, e, em determinado momento, parou, olhando para baixo. Bond e Honey se aproximaram dele. A canoa da jovem estava cortada ao meio pelas balas. Honey deixou escapar um grito, olhando desesperadamente para Bond:

— A minha canoa! Como poderei voltar?

— Não se preocupe, senhorita, — disse Quarrel, que sentia a perda de uma canoa mais do que Bond. Imaginou ainda que aquela embarcação representasse quase todo o capital da jovem. — O capitão lhe dará outra. E a senhorita voltará conosco. Temos um magnífico bote, entre os mangues, e ele não foi destruído. Já estive lá espiando.

Quarrel olhou para Bond. Agora, o seu rosto denotava preocupação.

— Mas, capitão, o senhor está vendo o que eu disse dessa gente. Eles são duros e não estão brincando. Esses cães que eles vão trazer são policiais — Pinschers, como eles os chamam. Bastardos. Meus amigos disseram-me que são uma matilha de vinte ou mais. É melhor resolvermos logo.

— Está bem, Quarrel. Mas antes de mais nada precisamos comer alguma coisa. — o diabo que me carregue se eu vou ser aterrorizado e expulso da ilha antes de dar uma olhada nisso. Levaremos Honey conosco. — E, voltando-se para a jovem:

— Está bem, Honey? Nada lhe acontecerá. Depois voltaremos juntos.

A jovem olhou-o em dúvida:

— Acho que não há alternativa. Quero dizer. Gostaria de ir com vocês, se não atrapalhasse. Francamente, não quero comer nada. Mas você me levará de volta, assim que puder? Não quero ver mais aquela gente. Durante quanto tempo vocês vão ficar olhando para essas aves?

Bond respondeu evasivamente:

— Pouco tempo. Eu terei apenas que ver o que lhes aconteceu e porquê. Depois, partiremos.

Olhou para o relógio e anunciou:

— Agora são doze horas. Você nos esperará aqui. Tome um banho ou faça o que quiser. Não ande por aí deixando pegadas. Vamos, Quarrel, é melhor escondermos aquele bote.

Só à uma hora eles estavam prontos. Bond e Quarrel encheram a canoa com pedras e areia, até que ela desapareceu sob a água, entre os mangues. Depois, apagaram as suas pegadas. As balas tinham deixado tantos gravetos na orla da praia, que eles podiam caminhar pisando em folhas e ramos quebrados. Comeram parte de suas rações — os homens com avidez, mas Honey com relutância — e depois, passando sobre as rochas, foram ter à lagoa, próxima da costa. Em seguida foram vadeando aquelas águas, em direção à foz do rio, trezentos metros praia abaixo.

Fazia muito calor. Um vento áspero e quente começou a soprar do nordeste. Quarrel informou que aquele vento soprava diariamente, durante todo o ano, e era vital para a guaneira, pois secava o guano. O revérbero do mar e das brilhantes folhas verdes dos mangues cegava-os. Bond deu-se por feliz, já que tivera o cuidado de acostumar sua pele ao sol.

Na foz do rio encontraram um banco de areia e um extenso pântano, profundo e de águas estagnadas. Os dois homens podiam molhar-se ou tirar as roupas. Bond disse à jovem:

— Honey, não podemos ter cerimônia, nesta situação. Vamos ficar apenas com as camisas por causa do sol. Fique apenas com o que for sensato e caminhe atrás de nós.

Sem esperar pela resposta da jovem, os dois homens tiraram as calças. Quarrel enrolou-as e guardou-as na sacola, juntamente com as provisões e o revólver de Bond. Depois começaram a vadear a lagoa, com Quarrel na frente, logo seguido de Bond, e, finalmente a jovem. A água chegou até a cintura de Bond. Um grande peixe prateado deu um salto perto deles e depois caiu ruidosamente na água. Viram-se pequeninas setas riscarem a superfície, quando peixes menores se afastaram precipitadamente.

A lagoa convergia para uma estreita garganta, por sobre a qual as copas dos mangues se tocavam. Durante algum tempo eles vadearam através de um túnel fresco, e depois o rio se alargou num canal profundo, de águas morosas, que serpeava para a frente, entre as gigantescas raízes de sustentação dos mangues. O fundo era lamacento, e a cada passo os pés se enterravam algumas polegadas no lodo. Pequenos peixes ou camarões se encolhiam ou fugiam de baixo de seus pés, e de quando em quando eles tinham que parar para se desembaraçar das sanguessugas, antes que elas se agarrassem firmemente. A não ser isso, aquela caminhada era fácil, sob o frescor das arvores, e, pelo menos para Bond, era uma bênção estar ao abrigo do sol.

Em breve, à medida que se iam afastando do mar, começaram a sentir um cheiro de ovo podre, o cheiro de hidrogênio sulfurado do gás dos pântanos. Os mosquitos começaram a assaltá-los e pareciam gostar do corpo de Bond. Quarrel disse-lhe que mergulhasse na água do rio, pois os mosquitos gostavam de carne salgada. Bond tirou a camisa e fez o que Quarrel lhe aconselhara. Depois disso sentiu-se melhor e o seu olfato chegou mesmo a se acostumar com aquele repugnante cheiro, a não ser quando os pés de Quarrel desfaziam algum bolsão de gás, no fundo da lama, e uma gigantesca bolha atravessava a água para arrebentar na superfície sob as suas narinas.

Os mangues começaram a se tornar mais escassos e mais esparsos, enquanto o rio se ia alargando aos poucos. Ao mesmo tempo, a água tornava-se mais rasa e o fundo mais firme. Logo chegaram a uma volta e saíram para céu aberto, Honey disse:

— É melhor tomarmos cuidado, agora. Eles poderão ver-nos com muita facilidade. Isso vai assim durante uma milha. Depois o rio torna a se estreitar até o lago. E depois se poderá ver a restinga onde os tratadores das aves viviam.

O grupo deteve-se à sombra do túnel de mangues e olhou para fora. O rio serpeava perigosamente, afastando-se deles, em direção ao centro da ilha. As suas barrancas, bordadas de bambus de pequeno porte e de vegetação rala, dar-lhes-íam cobertura reduzida. Partindo de sua margem ocidental, o terreno elevava-se aos poucos, e logo abruptamente até o monte, situado a três quilômetros de distância, que era a guaneira. Na base daquela montanha, viam-se várias cabanas esparsas. Um ziguezague prateado galgava o flanco da colina, até as tendas — trilhos “Decauville”, pensou Bond, destinados a levarem o guano para o moinho e separa-dor. O cume do monte era branco, como se estivesse coberto de neve. De sua parte mais elevada desprendia-se como que uma bandeira de dó de guano. Bond podia ver os pontos negros que eram os corvos marinhos, sobre o fundo branco. Aquelas aves estavam levantando vôo e pousando como abelhas numa colmeia.

Bond deixou-se ficar de pé e contemplou o brilho distante daquela montanha de excrementos de aves. Então aquilo era o reino do Dr. No! Bond pensou que jamais vira um cenário tão escondido e distante, em toda a sua vida.

Examinou o terreno entre o rio e a montanha. Parecia ser principalmente formado com aquela matéria cinzenta de corais mortos. Não havia dúvida de que uma estrada ou trilha corria da falda da montanha até ao lago central e aos pântanos. Bond notou ainda que toda a vegetação se curvava para oeste, e imaginou viver durante todo um ano com aquele vento escaldante castigando a ilha, sem falar do cheiro do guano e do gás dos pântanos. Nenhuma colônia penal poderia encontrar pior localização do que aquela.

Bond olhou para leste, onde os mangues, na área dos charcos, pareciam oferecer mais hospitalidade. Os três puseram-se a caminhar sobre um sólido tapete verde de vegetação. Sobre suas cabeças, aves revoluteavam agitadas, para depois se, acalmarem, e logo tornarem a agitar-se. Seus pios eram carregados pelo vento crestante.

A voz de Quarrel interrompeu os pensamentos de Bond:

— Eles vêm vindo, capitão!

Bond seguiu o olhar de Quarrel. Um grande caminhão descia celeremente das tendas, com uma nuvem de pó levantando-se das rodas. Bond acompanhou-o durante dez minutos, até que o veículo desapareceu entre os mangues, na margem do rio. Bond pôs-se a escutar e ouviu latidos de cães, que eram trazidos pelo vento.

Quarrel comentou:

— Eles vão descer pelo rio, capitão. Sabem que não nos podemos mover, a não ser rio acima, se não estivermos mortos. Certamente que descerão pelo rio, até a praia, e farão um reconhecimento dos destroços. Depois, com toda a certeza, a lancha virá com um pequeno bote e recolherá os homens e os cães. Pelo menos, isso é o que eu faria no lugar deles.

Honey disse: — Isso é, de fato, o que eles fazem quando me procuram. É isso mesmo. Basta que cortemos um pedaço de bambu, e, quando eles estiverem perto, mergulhemos na água, procurando respirar através do bambu, até que eles se afastem.

Bond sorriu para Quarrel, e disse: — Suponhamos que você corte os bambus, enquanto eu procuro um bom esconderijo entre os mangues.

Quarrel aquiesceu hesitante e começou a subir contra a corrente, em direção ao bambuzal, enquanto Bond se encaminhava para o túnel formado pelos mangues.

Bond evitara olhar para a jovem, mas esta disse-lhe com impaciência:

— Não precisa ter tanto cuidado em não olhar para mim. Não adianta se preocupar com tais coisas, numa hora dessas. Você mesmo o disse, ainda há pouco.

Bond virou-se e olhou para a jovem. Sua camisa esfrangalhada descia até a linha d’água. Podia-se ainda ter um vislumbre de pálidas coxas, serpeando sob a superfície. O lindo rosto sorriu para ele. No meio daqueles mangues, o seu nariz quebrado parecia harmonizar-se com o ambiente, pela sua animalidade.

Bond fitou-a descansadamente e ela compreendeu. Depois, ele deu-lhe as costas e desceu pela correnteza, seguido por ela. Logo encontrou o que procurava, isto é, uma fenda naquela parede formada pelas raízes dos mangues. Bond recomendou: — Não quebre nenhum galho. — Depois, baixou a cabeça e meteu-se por aquela brecha. O canal avançava numa distância de dez metros. A lama sob seus pés tornou-se mais mole e espessa. Chegou a uma sólida e intransponível parede de raízes. Aquela água escura fluía vagarosamente através de uma ampla e tranqüila lagoa. Bond deteve-se. A jovem se aproximou dele.

— Isto é mesmo uma brincadeira de esconde-esconde — disse ela, trêmula.

— É verdade — aquiesceu Bond distraidamente, enquanto pensava em seu revólver. Com efeito, ele preocupava-se em saber com que eficiência a arma operaria depois de um banho no rio — quantos cães e homens ele poderia eliminar, se fossem descobertos. Sentiu um estremecimento de inquietação. Tinha sido uma falta de sorte ter encontrado aquela jovem. Em combate, queira-se ou não, uma mulher representa sempre um coração a mais. O inimigo tem dois alvos enquanto apenas oferece um.

Bond lembrou-se de sua sede. Apanhou na concha da mão um pouco de água e bebeu-a. Aquela água era salobra e tinha gosto de terra. Mas servia. Bond bebeu um pouco mais. A jovem agitou a mão e deteve-o, dizendo:

— Não beba demais. Lave a boca e cuspa. Você pode apanhar febre.

Quarrel assobiou de algum ponto situado na corrente principal. Bond respondeu e foi em direção ao amigo. Depois, voltaram juntos, internando-se no canal. Quarrel borrifou as raízes de mangues com água, nos pontos em que os seus corpos talvez as tivessem raspado. “Para tirar o nosso cheiro”, explicou, laconicamente. Em seguida mostrou o seu feixe de bambus e começou a cortá-los e prepará-los. Enquanto isso, Bond se ocupava com seu revólver e a munição. Os três ficaram imóveis, no meio daquele pântano, de modo a não levantarem mais lama.

A luz do sol filtrava-se através do espesso teto de folhas, os camarões agitavam-se sob os pés daqueles três fugitivos. Gradativamente foi-se avolumando uma insuportável tensão, naquele silêncio escaldante e angustioso.

Foi quase um alívio ouvir-se o ladrar dos cães.


X - O RASTRO DO DRAGÃO


O grupo de investigação descia rapidamente pelo rio. Os dois homens, de calções de banho e altas botas impermeáveis, tinham que correr para acompanhar os cães.

Eram grandes negros chineses, que traziam coldres sustentados ao ombro por meio de talabartes cruzados diante dos peitos suados. De quando em quando trocavam gritos que em geral não passavam de imprecações. À frente deles a matilha de cães Dobermann nadava e debatia-se n’água, latindo excitadamente. Tinham farejado uma pista e procuravam segui-la nervosamente, com as orelhas eretas sobre as cabeças afladas.

— Talvez um maldito crocodilo, — gritou o chefe elevando a voz sobre a algazarra. Empunhava um chicote que de vez em quando fazia estalar no campo de caça.

Os outros homens se encaminhavam para ele. O chefe gritou excitadamente: “Aposto que é o gringo inglês! Tenho certeza de que ele está entre os mangues. Cuidado para que o gringo não nos faça cair numa emboscada.” O homem tirou o revólver do coldre e colocou-o sob o sovaco, sem tirar a mão da coronha.

O grupo agora estava deixando a parte do rio, sob céu aberto, e entrando no túnel formado pelos mangues. O primeiro homem tinha um apito, que se projetava de seu largo rosto como um toco de charuto. Fez soar um agudo silvo. Quando os cães avançaram, ele se deixou ficar com o seu chicote junto do chefe. Os animais continuavam farejando, lamuriando-se porque a corrente os obrigava a desobedecer às ordens recebidas. Os dois homens sacaram os revólveres e vadearam lentamente o rio, na mesma direção da corrente, por entre os caules tortuosos dos mangues.

O homem que ia na frente chegou ao estreito canal que Bond tinha encontrado, agarrou um dos cães pela co-leira e lançou-o ao canal. O animal resfolegou ansiosamente e debateu-se para a frente. Os olhos do homem percorreram as raízes dos mangues, de ambos os lados do canal, para ver se apresentavam algum arranhão.

O cão e o homem chegaram ao pequeno lago situado na extremidade do canal. O homem olhou à sua volta, com ar animado. Tornou a agarrar o cão pela coleira e puxou-o para trás. O animal relutava em abandonar o lugar. Então, o homem feriu a água com o chicote.

O segundo homem estivera esperando à entrada do canal. O primeiro saiu daquele pequeno remanso e sacudiu a cabeça, descendo a corrente, com os cães, que agora se mostravam menos excitados, nadando à frente.

Lentamente, a algazarra da perseguição foi diminuindo e desapareceu.

Por mais cinco minutos nada se mexeu na laguna dos mangues; depois, num dos cantos, entre as raízes, apareceu lentamente para fora d’água um fino periscópio de bambu. O rosto de Bond emergiu logo em seguida, com os cabelos molhados colados à testa, como a cara de um cadáver que boiasse. Em sua mão direita, sob a água, o revólver estava pronto. Bond procurou escutar cuidadosamente. O silêncio era completo, não havia o mínimo ruído. Ou haveria? O que seria aquele suave barulho, como se algo deslizasse entre a água, na corrente principal? Viria alguém, muito serenamente, seguindo na esteira daquela caçada? Bond procurou apalpar à sua volta e tocou delicadamente nos dois corpos que estavam cada um em um de seus flancos, entre as raízes, na orla da laguna. Quando os dois rostos aforaram à superfície, ele colocou o seu dedo indicador sobre os lábios, mas já era tarde. Quarrel tinha tossido e cuspido. Bond fez uma careta e fez um sinal na direção da principal corrente. Todos procuravam escutar. O ruído recomeçou. Alguém estava-se dirigindo para o canal lateral. Os tubos de bambu voltaram para as três bocas e as cabeças tornaram a submergir. Debaixo da água Bond descansou a cabeça na lama, apertou as narinas e os lábios à volta do tubo. Sabia que a laguna já fora examinada uma vez, pois sentira a agitação causada na água pelo cão, que passara nadando! Da primeira vez não tinham sido achados, mas conseguiriam escapar desta? Agora haveria menos possibilidades de que a lama revolta se escoasse para fora da laguna. Se esse batedor visse a mancha mais escura, na água, atiraria ou usaria um punhal? Que armas traria? Bond resolveu não correr riscos. Ao primeiro rumor de movimento, ao seu lado, ele se poria de pé e daria logo ao gatilho, esperando pelo melhor.

Assim ficou ele, submerso, com todos os sentidos atentos. Como era desagradável aquele respirar controlado e insuportáveis as ligeiras mordidelas dos camarões! Por sorte nenhum deles tinha qualquer ferida no corpo, pois do contrário os malditos animalzinhos ter-se-iam atirado contra elas. De qualquer forma, aquela fora uma brilhante idéia da jovem. Sem ela os cães já os teriam alcançado, onde quer que eles se tivessem escondido.

Inesperadamente, Bond encolheu-se. Uma bota de borracha tinha pisado em seu queixo e escorregado. O homem pensaria tratar-se de um galho de árvore? Bond não podia correr aquele risco. Com um só impulso pôs-se de pé, atirando para longe o pedaço de bambu.

Bond teve uma rápida impressão de um gigantesco corpo de pé, quase em cima de si, e duma coronha de rife, em rápido movimento. Levantou o braço esquerdo para proteger a cabeça e recebeu um violento golpe no braço. Ao mesmo tempo, o seu braço direito se esticou para a frente, e, quando o cano tocou no lado direito do peito, sob o mamilo, ele acionou o gatilho.

O coice da arma, quase encostada ao corpo do homem, por pouco não quebrou o pulso de Bond, mas o homem desabou para trás como uma árvore decepada que cai n’água. Antes que o corpo afundasse, Bond ainda pôde perceber-lhe uma grande fenda no flanco. A cabeça, uma cabeça negróide de chinês, veio à superfície, com os olhos revirados para cima e a água a sair de sua boca escancarada e silenciosa. Em seguida a cabeça submergiu novamente e nada mais se pôde ver senão uma lama espumosa e uma mancha vermelha que gradualmente se ia ampliando e lentamente era atraída pela corrente.

Bond se endireitou e voltou-se para o lado. Quarrel e a jovem estavam atrás, em pé, com a água a escorrer-lhes dos corpos. Quarrel tinha um sorriso que ia de orelha a orelha, mas a garota mordia as articulações dos dedos, enquanto seus olhos se escancaravam horrorizados diante da água avermelhada.

Bond disse laconicamente: “Desculpe-me, Honey. Tinha que ser feito. Ele estava bem sobre nós. Venha, vamos indo.” Agarrou-a de qualquer maneira, pelo braço, e arrastou-a para fora da principal corrente, apenas detendo-se quando chegaram a rio aberto, na boca do túnel de mangues.

O cenário estava novamente vazio. Bond olhou para o relógio, e verificou que parara às três horas. Olhou para o sol, já bastante deslocado para o ocidente e concluiu que deveriam ser quatro horas. Quanto ainda teriam que caminhar? Bond inesperadamente sentiu-se cansado. Agora teria de enfrentar a situação. Ainda que o disparo não tivesse sido ouvido — e certamente que ele fora abafado pelo próprio corpo da vítima e pelas árvores — a falta do homem seria sentida quando os outros se reunissem, — se a suposição de Quarrel fosse correta, na embocadura do rio, de onde seriam recolhidos pela lancha. Voltariam eles, subindo o rio, a fim de procurarem o desaparecido? Talvez não. Já estaria muito escuro quando eles tivessem a certeza de que o homem estava realmente desaparecido. O mais certo seria mandarem um grupo de homens pela manhã. Os cães facilmente dariam com o corpo. E o que aconteceria?

A garota puxou-o pela manga e disse com irritação: — Já é tempo de você me dizer o que significa tudo isto! Por que estão todos procurando se matar mutuamente? E quem é você? Não acredito em toda essa história de aves. Ninguém carrega revólveres contra aves.

Bond baixou o olhar, fitando aqueles olhos bem separados e irados. — Desculpe-me, Honey. Receio tê-la arrastado para uma boa encrenca. Eu lhe contarei tudo quando voltarmos à noite para o acampamento. Foi apenas má sorte que você se envolvesse comigo, desta maneira. Tenho uma guerrinha com essa gente. Eles parecem querer matar-me. Agora estou apenas interessado em que todos nós saiamos desta ilha sem que ninguém fique ferido. Já tenho muito do que queria, para da próxima vez voltar pela porta da frente.

— O que você quer dizer? Você é alguma espécie de policial? Está querendo meter esse chinês na cadeia?

— Mais ou menos, — disse Bond, rindo para ela. — Pelo menos você está do lado dos anjos. Agora, diga-me uma coisa. Quanto falta ainda para chegar ao acampamento dos guardas?

— Oh, cerca de uma hora.

— É um lugar bom para nele esconder-se? Eles poderiam achar-nos com facilidade?

— Eles teriam que atravessar o lago ou subir o rio. Tudo estará muito bem se eles não puserem o dragão em nosso encalço. Ele pode muito bem atravessar a água, pois já o vi fazê-lo.

— Bem — disse Bond diplomaticamente — esperemos que ele esteja com a cauda machucada, ou tenha outra coisa qualquer.

A jovem vociferou: — Muito bem, sr. Sabe-Tudo. — E acrescentou irritada: — Espere e verá.

Quarrel deixou o túnel de mangues, agitando ruidosamente a água, tendo na mão o rife do chinês abatido, e dizendo à guisa de quem pede desculpas:

— Não há mal em termos outra arma, chefe. Parece que vamos precisar dela.

Bond apanhou aquela arma. Era uma carabina “Remington”, do exército norte-americano, calibre 300. Não havia dúvida de que aquela gente contava com equipamento apropriado. Bond devolveu a arma a Quarrel, depois de examiná-la.

Quarrel como que fez eco aos seus pensamentos: — Isso é gente astuta, capitão. Aquele homem veio esquadrinhando suavemente, atrás dos outros, a fim de nos surpreender quando deixássemos o esconderijo, depois da passagem dos cães. Esse tal de doutor com certeza é um sujeito muito esperto.

Bond disse pensativamente: — É, ele deve ser um homem incomum. — Depois espantou os pensamentos: — Agora, vamos tocando para a frente. Honey diz que ainda precisamos de uma hora para chegarmos ao acampamento. É melhor irmos pela margem esquerda, de modo a ficarmos ao abrigo da colina. Pelo que já pudemos ver, eles têm lunetas assestadas sobre o rio.

Bond entregou a sua arma a Quarrel, que a guardou na mochila molhada. Puseram-se novamente em marcha, com Quarrel à frente, e Bond e a jovem andando juntos, atrás.

Aproveitavam algumas sombras das árvores e bambus da margem ocidental, mas deviam agora suportar toda a intensidade de um vento crestante. Borrifaram braços e corpos com água, a fim de refrescar as queimaduras. Os olhos de Bond estavam injetados por aquele insuportável revérbero e o seu braço doía intoleràvelmente no ponto em que fora atingido pela coronha. E ele não teria à sua espera o seu jantar de pão embebido, queijo e fiambre. Quanto tempo poderiam dormir? Não dormira muito na véspera, e parece que não iria ter melhor ração de sono. E a garota? Ela nada dormira. Ele e Quarrel teriam que se revezar, em quartos de vigilância. E logo chegaria o dia seguinte, quando procurariam ganhar novamente os mangues e vencer lentamente a distância que os separava de sua canoa, através da extremidade oriental da ilha. As coisas correriam daquela forma, segundo era de esperar. Então, tratariam de se fazerem ao mar na noite seguinte. Bond pensou em como haveria de abrir caminho por entre sólidos mangues, na distância de oito quilômetros. Que perspectiva! Continuou se arrastando para a frente, pensando nas “férias ao sol dos trópicos” de M. Muito gostaria que M tivesse que partilhar com ele aquelas “férias”.

O rio foi-se estreitando até que se reduziu a uma simples corrente entre as moitas de bambu. Depois se ampliava num estuário baixo e pantanoso, além do qual as cinco milhas quadradas de lago raso davam vazão para o outro lado da ilha, perdendo-se num agitado espelho líquido azul-cinza. Mais para além estava a brilhante pista aérea e o reflexo da luz solar sobre um único hangar. A jovem disse-lhe que se mantivesse na direção leste, e eles foram lentamente avançando, protegidos pela orla da mata.

Inesperadamente, Quarrel deteve-se, com o rosto esticado como o focinho de um cão para o terreno pantanoso à sua frente. Dois profundos sulcos tinham sido escavados na lama, com um sulco mais raso no centro. Eram a trilha de algo que tinha descido da colina e atravessado o pântano em direção ao lago.

A jovem disse com indiferença: — Por aqui já passou o dragão.

Quarrel arregalou os olhos para ela.

Bond caminhou lentamente pela trilha. As marcas exteriores eram bastante lisas, trazendo a marca de uma linha curva. Poderiam ter sido causadas por rodas, mas eram enormes, pelo menos com sessenta centímetros de largura. A trilha central tinha a mesma forma, mas com apenas três polegadas de largura, ou seja a largura de um pneumático de automóvel. As trilhas não apresentavam nenhum indício de pegadas e eram completamente frescas. Estendiam-se em linha reta, e os arbustos por elas atravessados tinham sido derrubados e esmagados no chão, como se um tanque de guerra tivesse passado por ali. Bond não podia imaginar que espécie de veículo seria aquele. A jovem tocou-o com o cotovelo e murmurou: — Eu lhe tinha dito. Ele apenas pôde responder pensativamente: — Bom, Honey, se não é o dragão, é algo que nunca vi antes.

Mais adiante, ela puxou-o ansiosamente pela manga. “Veja”, sussurrou, e apontou para a frente, indicando um grande cerrado de árvores, ao lado do qual passavam as trilhas. O cerrado estava sem folhas, enegrecido. Ao centro viam-se os restos dos ninhos de pássaros carbonizados. — Ele respirou sobre as árvores, — disse a garota nervosamente.

Bond aproximou-se das árvores e examinou-as. — Certamente que o fez — admitiu. Por que aquele cerrado, em especial, tinha sido queimado? Era muito estranho aquilo.

As trilhas desciam em direção ao lago e desapareciam na água. Bond teria gostado de segui-las, mas não poderia abandonar a cobertura das árvores. Assim, continuaram a marcha, cada um entregue aos próprios pensamentos.

Lentamente o dia começou a morrer, por trás da colina, e por fim a garota apontou para a frente, através dos arbustos; Bond pôde ver uma comprida restinga internando-se no lago. Estava coberta por densas moitas de arbustos e podiam-se ver, a cem metros da praia, os restos de uma cabana incendiada. Aquele parecia um lugar razoavelmente atraente para se passar a noite, e era bem protegido dos dois lados, pela água.

O vento tinha declinado e a água se apresentava suave e convidativa. Que prazer não seria tirarem as suas imundas camisas para um banho no lago e, depois de horas de patinhação através da lama e do lodo do pântano, poderem descansar naquela areia dura e seca!

O sol brilhou com reflexos amarelecidos e desapareceu por trás da montanha. Ainda era dia na extremidade oriental da ilha, mas a sombra negra do monte avançava vagarosamente sobre o lago e acabaria por expulsar completamente os últimos vestígios do sol. Os sapos começaram a coaxar mais barulhentamente que em Jamaica, até que a noite ficou cheia daquele áspero ruído. Do outro lado do lago um grande sapo macho começou a soar o seu tambor. Aquele estranho som era algo entre um tom-tom e um rosnado de macaco. Enviava mensagens que subitamente se interrompiam e logo silenciaram. Com certeza encontrara o que procurava.

Chegaram à garganta da restinga e seguiram por um estreito caminho, até a clareira que encerrava os escombros da cabana de sapé. As grandes e misteriosas trilhas saíam da água, de ambos os lados, atravessavam a clareira e os cerrados próximos. Muitos dos arbustos estavam queimados ou crestados. Podiam-se ver os restos de um fogão feito de pedaços de coral, e algumas panelas e latas vazias. Examinaram os destroços, e Quarrel desenterrou um par de latas intactas de costeletas de porco e ervilhas marca “Heinz”. A jovem encontrou ainda um saco de dormir muito amarrotado, enquanto Bond achou uma pequena bolsa de couro com cinco notas de um dólar, três libras de Jamaica e algumas moedas de prata. Os dois homens certamente tinham abandonado aquele lugar a toda pressa.

Prosseguiram mais para diante, até uma pequena clareira arenosa. Através dos arbustos podiam ver luzes cintilando sobre a água e provenientes da montanha, talvez a mais de três quilômetros de distância. A leste nada mais havia senão. os suaves reflexos escuros da água sob o céu sombrio.

Bond comentou: — Enquanto não acendermos nada, estaremos bem aqui. A primeira coisa a fazer é tomarmos um bom banho, Honey. Você pode ficar com o resto da restinga, que nós ficaremos com a sua garganta. Dentro de meia hora espero vê-la para o jantar.

A garota riu: — Você virá a rigor?

— Sem dúvida — respondeu Bond — e de calças.

Quarrel observou: — Capitão, enquanto ainda há um pouco de luz, vou abrir essas latas e preparar as coisas para a noite. — Remexeu dentro da mochila. — Aqui estão as suas calças e o seu revólver. O pão talvez não esteja muito bom, mas está apenas molhado. Pode-se comê-lo bem, e amanhã estará seco. O melhor talvez fosse comermos das latas esta noite, guardando o queijo e as costeletas. As latas são pesadas e amanhã teremos que andar muito.

Bond respondeu: — Muito bem, Quarrel. Deixarei o cardápio aos seus cuidados.

Em seguida, apanhou o revólver e as calças úmidas e desceu para a água rasa. A água estava acariciante, mas desagradavelmente quente. Bond escavou punhados de areia, com as mãos, e esfregou o corpo com ela, utilizando-a como sabonete. Depois deixou-se ficar gostosamente em meio àquele silêncio e àquela solidão.

As estrelas começaram a brilhar palidamente, as estrelas que os tinham trazido à ilha na noite passada; as estrelas que os tirariam dali no dia seguinte. Que viagem! Mas pelo menos já tinha dado os seus resultados. Agora tinha provas bastantes, e testemunhas, para ir ter com o governador e conseguir dele um inquérito completo acerca das atividades do Dr. No. Ninguém lança mão de metralhadoras contra pessoas, mesmo contra intrusos. E, da mesma forma, o que seria aquilo do Dr. No, que invadira a propriedade da Sociedade Audubon, aquilo que chegara a destruir essa propriedade e provavelmente matara um de seus empregados? Isto também teria que ser investigado. E o que haveria ele de encontrar quando voltasse pela porta da frente, talvez a bordo de um destróier, e com um destacamento de fuzileiros navais? Qual seria a resposta para o mistério do Dr. No? O que estaria ele escondendo? Por que aquele segredo era tão importante, que seria capaz de matar repetidas vezes, para preservá-lo? E quem era esse Dr. No?

Bond ouviu o barulho de alguém espojando-se na água. Pensou na garota. E quem, afinal, era Honeychile Ri-der? Aquilo pelo menos, pensou ele ao sair da água, era algo que deveria esclarecer antes do amanhecer.

Bond enfiou as suas pegajosas calças, sentou-se na areia e desmontou o revólver. Fê-lo pelo tato, utilizando-se de sua camisa para secar cada peça e cada cartucho. Depois, tornou a montar a arma e pressionou o gatilho, fazendo com que o tambor vazio desse uma volta completa. O som era satisfatório. Seriam precisos alguns dias para que o revólver começasse a enferrujar. Carregou-o e meteu-o no coldre, para dentro do cós da calça. Depois, levantou-se e voltou para a clareira.

A sombra de Honey chegou até ele, e a sua voz se fez ouvir: — Venha; estamos morrendo de fome. Apanhei uma das panelas, limpei-a e pusemos as ervilhas nela. Temos pão também. E eu não sinto escrúpulos de comer a sua ração, porque você me fez trabalhar muito mais do que se eu estivesse sozinha. Agora, estique a mão.

Bond achou graça no tom autoritário que havia em sua voz. Ele apenas podia perceber a sua silhueta, no escuro. Sua cabeça parecia mais aflada. Ele se perguntou como seriam os seus cabelos quando secos e penteados. Como seria ela quando estivesse vestindo roupas limpas naquele lindo corpo dourado? Podia vê-la entrando numa sala ou atravessando um vestíbulo em Beau Desert. Ela seria uma linda e encantadora Patinha Feia. Por que nunca procurara endireitar o nariz? Seria uma operação fácil. Depois disso, ela seria a jovem mais bela de Jamaica.

O seu ombro tocou nele. Bond esticou o braço e descansou a mão aberta no colo da jovem. Então Bond sentiu que ela estava enchendo a sua mão com ervilhas.

Subitamente, Bond aspirou o seu cheiro cálido de animal. Foi uma explosão sensual tão aguda que o seu corpo se uniu ao dela, e, por um momento, os seus olhos se fecharam.

Ela deixou escapar um riso curto, no qual havia timidez, satisfação e ternura. E disse, maternalmente: “Lá”, — e empurrou a mão de Bond.

 

CONTINUA

IX - POR UM TRIZ


Dez minutos mais tarde a baía estava vazia e imaculada. Pequenas ondas encrespavam-se preguiçosamente através do espelho das águas, no interior dos recifes e morriam exaustas na areia escura onde as conchas lilás brilhavam como unhas pintadas. O monte de conchas tinha desaparecido e não havia mais vestígios de pegadas. Quarrel cortara galhos de mangues e caminhava de costas procurando apagar as pegadas com aqueles galhos. Onde tinha varrido, a areia apresentava uma limpidez diferente mas não tão diferente a ponto de ser notada de fora do recife. A canoa da jovem tinha sido arrastada para dentro do mar, entre as rochas, e ali ficou coberta com algas e gravetos.

Quarrel tinha voltado ao promontório. Bond e a jovem estavam juntos, sob tufos de folhas, onde Bond dormira, e olhavam silenciosamente para o contorno do promontório, à volta do qual surgira a embarcação.

A lancha estava talvez a uns quinhentos metros de distância. A julgar pelo lento ritmo do motor, Bond concluiu que cada acidente da costa estava sendo cuidadosamente inspecionado para descobrir indícios da presença de estranhos. De qualquer forma, aquilo parecia uma possante embarcação. Talvez uma grande lancha de cabina. Que tripulação teria? Quem estaria no comando? O Dr. No? Improvável. Ele certamente não se daria àquele trabalho de polícia.

Do lado do ocidente apareceu um bando de corvos marinhos, voando baixo sobre o mar, além dos recifes. Bond observou-os. Eram o primeiro indício para ele encontrado daquela colônia de aves, na outra extremidade da ilha. Aquele bando, segundo Pleydell-Smith, seriam batedores à procura do brilho prateado das enchovas, próximas à superfície. Enquanto observava, as aves começaram a dar mergulhos rasos, ferindo o mar superficialmente e levantando respingos de água. Quase que de uma só vez, apareceu outra coluna de aves, vinda do ocidente, e logo outra, e mais outra, fundindo-se todas numa espessa e escura nuvem. Durante minutos, elas sombrearam o céu, e depois atiraram-se à água, cobrindo vários alqueires, piando e lutando, e mergulhando as cabeças no mar, fazendo uma rica colheita naquele sólido campo de anchovas, como piranhas que se banqueteassem num cavalo afogado.

Bond sentiu um suave toque da jovem, que fez um movimento com a cabeça, dizendo:

— As galinhas do chinês estão comendo milho.

Bond observou-lhe o rosto belo e feliz. Ela parecia bastante despreocupada com a chegada daqueles homens. Para ela aquilo era apenas o jogo de esconde-esconde que já tinha praticado antes.

A vibração metálica dos motores diesel estava-se tornando mais forte. A lancha deveria estar justamente por trás do promontório. Bond deu mais uma olhada à volta da tranqüila baía, e depois fixou os olhos através da folhagem e do mato, para os lados dos recifes.

A ponta de uma proa branca apareceu, seguida de uns dez metros de tombadilho, e logo o parabrisas de vidro, uma cabina baixa e uma antena de rádio, e o vulto de um homem à volta do leme. Finalmente, o comprido e achatado fosso da popa, e uma flâmula vermelha pendente, Seria uma lancha-torpedeira convertida, um excedente de guerra do governo britânico?

Os olhos de Bond fixaram-se nos dois homens que estavam em pé na popa. Eram negros de pele pálida, envergando roupas caqui de marinheiro, com largos cinturões e chapéus de palha com longas palas. Estavam um ao lado do outro, equilibrando-se sob a lenta elevação da massa líquida. Um deles segurava um alto-falante e o outro manejava uma metralhadora instalada num tripé. Bond teve a impressão de que era uma metralhadora “Spandau”.

O homem com o alto-falante deixou que este caísse, e ele ficou oscilando numa tira, que lhe dava volta ao pescoço. Apanhou um binóculo e começou a vasculhar metro a metro da praia. Indistintos comentários chegavam aos ouvidos de Bond, por entre o ruído dos motores.

Bond percebeu que os olhos do binóculo começavam pelo promontório e depois percorriam a areia. As lentes detiveram-se entre as rochas e continuaram o seu passeio. Depois, voltaram. O murmúrio do comentário elevou-se ganhando animação. O homem passou o binóculo para o metralhador, que observou rapidamente, devolvendo-o logo ao dono. O observador gritou alguma coisa para o timoneiro. A lancha começou a se aproximar da praia. Agora estavam justamente diante dos recifes, em frente a Bond e à jovem. O observador ergueu novamente o binóculo, apontando-o para as rochas onde se encontrava escondida a canoa da jovem. Novamente a fala excitada chegou aos ouvidos de Bond, por sobre as águas. Mais uma vez o binóculo foi passado ao metralhador, que levou algum tempo observando. Dessa vez, ele fez um sinal de assentimento com a cabeça.

Bond pensou: agora vamos ter coisa; esses homens conhecem o ofício. Em seguida, viu que o metralhador se ocupava em carregar a arma. O duplo estalido metálico chegou aos seus ouvidos, por entre o matraquear do motor.

O observador ergueu o alto-falante e ligou-o. O eco produzido pelo amplificador chegou até Bond, conduzido pela superfície da água. A voz do homem ribombou pela baía:

— Alô, pessoal! Saiam daí e não serão feridos. Era uma voz educada, com sotaque americano.

— Agora, pessoal — trovejou a voz — depressa! Nós vimos quando vocês desembarcaram. Já descobrimos o bote sob os paus. Não somos tolos e não estamos brincando. Saiam daí com os braços levantados e não lhes acontecerá nada!

Não se ouviu nenhuma resposta. Apenas as ondas quebravam docemente na praia. Bond podia ouvir a respiração da jovem. Os guinchos agudos dos corvos marinhos chegavam-lhes de uma milha de distância, sobre o mar. O cano de escapamento dos motores diesel produzia um ruído desigual e gorgulhante, quando o intumescimento do mar cobria o orifício de descarga.

Silenciosamente Bond tocou o braço da jovem e disse-lhe:

— Fique mais perto. Alvo menor.

Ele sentiu o calor da jovem mais próximo de seu corpo, e o rosto de Honey raspou pelo seu braço. Bond sussurrou:

— Enterre-se na areia. Encolha-se. Cada polegada a menos ajudará.

Ele começou a se encolher cuidadosamente na depressão que tinham escavado para se abrigarem, e sentiu que ela fazia o mesmo.

O homem estava erguendo o seu alto-falante. A voz ribombou novamente.

— Muito bem, pessoal! Vocês irão ver que isso aqui não é para brincadeira. — Depois, levantou o polegar. O metralhador experimentou a arma fazendo alguns disparos para a copa dos mangues situados por trás da praia. Bond ouviu o rápido matraquear, tão seu conhecido, e do qual se despedira pela última vez diante das linhas alemãs, nas Ardenas. As balas produziam o velho som de pombos assustados, assobiando sobre sua cabeça. Depois fez-se silêncio.

À distância, Bond via a nuvem negra de corvos marinhos elevar-se, começando a fazer os seus amplos círculos. Seus olhos voltaram para a embarcação. O metralhador estava apalpando o cano da metralhadora, para ver se já estava aquecido. Os dois homens trocaram algumas palavras. O observador apanhou novamente o porta-voz.

— Está bem, pessoal. Vocês foram avisados.

Bond viu o cano da “Spandau” levantar-se e abaixar-se. O homem estava querendo começar com a canoa, entre as rochas. Bond sussurrou para a jovem: — Muito bem, Honey. Agüente firme. Mantenha-se abaixada. Não vai durar muito.

Ele sentiu que a mão da jovem apertava o seu braço, e pensou: “Coitada; ela está metida nisso por minha causa.” Ele inclinou-se para a direita a fim de cobrir a cabeça de Honey e afundou o rosto na areia.

Dessa vez o matraquear foi terrível. Balas ricocheteavam no flanco do promontório. Fragmentos de pedra saltavam para todos os lados, sobre a praia. Outras balas ricocheteavam e iam perder-se dentro da mata. Simultaneamente com todo aquele barulho ouvia-se o martelar contínuo da metralhadora.

Houve uma pausa. Nova carga, pensou Bond. Agora será para nós. Pôde sentir a jovem agarrando-se a ele. Seu corpo tremia todo, encostado ao seu flanco. Bond apanhou uma arma e apertou-a de encontro ao corpo. O matraquear da metralhadora recomeçou. As balas vinham zunindo, da linha de maré, em direção a eles. Ouviu-se uma sucessão de rápidas batidas. O tufo, acima deles, estava sendo reduzido a pedaços. “Zuip Zuip Zuip”. Era como se um chicote de aço estivesse retalhando os arbustos. Pedaços de lenha caíam sobre eles, cobrindo-os lentamente. Bond respirou um ar mais fresco, o que significava que eles agora estavam ao ar-livre. Estariam eles escondidos pelas folhas o pelos destroços? As balas continuaram deslocando-se ao longo da linha da costa. Em menos de um minuto a metralhadora parou.

O silêncio tornou a reinar. A jovem lamuriou-se docemente. Bond fê-la calar-se e apertou-a mais forte.

O alto-falante apregoou:

— Está bem, pessoal. Se vocês ainda têm ouvidos, saibam que voltaremos logo para recolher-lhes os pedaços. Vamos trazer os cães. Até à vista, por enquanto.

O ritmo do motor se acelerou, e através das folhas Bond pôde ver a popa da lancha afundar-se mais na água, enquanto a embarcação rumava rapidamente para oeste. Dentro de minutos já não se ouvia mais nada.

Bond ergueu a cabeça cautelosamente. A baía estava serena, e tudo como antes, exceto o cheiro de cordite e as rochas quebradas.

Bond fez a jovem levantar-se. Havia marcas de lágrimas em seu rosto. Ela olhou-o aterrada, e disse:

— Isso foi terrível. Por que eles o fizeram? Podíamos ter sido mortos.

Bond pensou naquela jovem que sempre abrira caminho, na vida, por si mesma, mas apenas contra a natureza. Conhecia o mundo dos animais, dos insetos e dos peixes, e tirava todo o partido desse conhecimento. Mas aquele era um pequeno mundo, limitado pelo sol, pela lua e pelas estações. Ela não conhecia o grande mundo das salas cheias de fumo, dos corredores de negócios, dos corredores e antecâmaras governamentais, dos cautelosos encontros em bancos de praças — numa palavra: ela nada conhecia da luta pelo poder e pelo dinheiro, travada por homens poderosos.

Bond disse:

— É isso mesmo, Honey, eles não passam de uma quadrilha de bandidos assustados conosco. Podemos enfrentá-los.

Bond colocou o braço à volta de seus ombros e continuou:

— E você esteve maravilhosa, brava como ninguém. Agora, vamos ao encontro de Quarrel para traçar os nossos planos. De qualquer forma, já é tempo de comermos alguma coisa. O que é que você costuma comer nessas expedições?

Deram meia-volta e seguiram pela praia em direção ao promontório. Depois de um minuto, ela disse com voz bem controlada:

— Oh, há uma porção de coisas por aí que se podem comer. Ouriços do mar principalmente, mas também bananas silvestres e outras coisas. Eu como e durmo durante dois dias, antes de vir aqui. Não preciso de nada.

Bond apertou-a mais fortemente, mas deixou cair o braço, assim que Quarrel apareceu ao longe. Quarrel vinha saltando sobre as rochas, e, em determinado momento, parou, olhando para baixo. Bond e Honey se aproximaram dele. A canoa da jovem estava cortada ao meio pelas balas. Honey deixou escapar um grito, olhando desesperadamente para Bond:

— A minha canoa! Como poderei voltar?

— Não se preocupe, senhorita, — disse Quarrel, que sentia a perda de uma canoa mais do que Bond. Imaginou ainda que aquela embarcação representasse quase todo o capital da jovem. — O capitão lhe dará outra. E a senhorita voltará conosco. Temos um magnífico bote, entre os mangues, e ele não foi destruído. Já estive lá espiando.

Quarrel olhou para Bond. Agora, o seu rosto denotava preocupação.

— Mas, capitão, o senhor está vendo o que eu disse dessa gente. Eles são duros e não estão brincando. Esses cães que eles vão trazer são policiais — Pinschers, como eles os chamam. Bastardos. Meus amigos disseram-me que são uma matilha de vinte ou mais. É melhor resolvermos logo.

— Está bem, Quarrel. Mas antes de mais nada precisamos comer alguma coisa. — o diabo que me carregue se eu vou ser aterrorizado e expulso da ilha antes de dar uma olhada nisso. Levaremos Honey conosco. — E, voltando-se para a jovem:

— Está bem, Honey? Nada lhe acontecerá. Depois voltaremos juntos.

A jovem olhou-o em dúvida:

— Acho que não há alternativa. Quero dizer. Gostaria de ir com vocês, se não atrapalhasse. Francamente, não quero comer nada. Mas você me levará de volta, assim que puder? Não quero ver mais aquela gente. Durante quanto tempo vocês vão ficar olhando para essas aves?

Bond respondeu evasivamente:

— Pouco tempo. Eu terei apenas que ver o que lhes aconteceu e porquê. Depois, partiremos.

Olhou para o relógio e anunciou:

— Agora são doze horas. Você nos esperará aqui. Tome um banho ou faça o que quiser. Não ande por aí deixando pegadas. Vamos, Quarrel, é melhor escondermos aquele bote.

Só à uma hora eles estavam prontos. Bond e Quarrel encheram a canoa com pedras e areia, até que ela desapareceu sob a água, entre os mangues. Depois, apagaram as suas pegadas. As balas tinham deixado tantos gravetos na orla da praia, que eles podiam caminhar pisando em folhas e ramos quebrados. Comeram parte de suas rações — os homens com avidez, mas Honey com relutância — e depois, passando sobre as rochas, foram ter à lagoa, próxima da costa. Em seguida foram vadeando aquelas águas, em direção à foz do rio, trezentos metros praia abaixo.

Fazia muito calor. Um vento áspero e quente começou a soprar do nordeste. Quarrel informou que aquele vento soprava diariamente, durante todo o ano, e era vital para a guaneira, pois secava o guano. O revérbero do mar e das brilhantes folhas verdes dos mangues cegava-os. Bond deu-se por feliz, já que tivera o cuidado de acostumar sua pele ao sol.

Na foz do rio encontraram um banco de areia e um extenso pântano, profundo e de águas estagnadas. Os dois homens podiam molhar-se ou tirar as roupas. Bond disse à jovem:

— Honey, não podemos ter cerimônia, nesta situação. Vamos ficar apenas com as camisas por causa do sol. Fique apenas com o que for sensato e caminhe atrás de nós.

Sem esperar pela resposta da jovem, os dois homens tiraram as calças. Quarrel enrolou-as e guardou-as na sacola, juntamente com as provisões e o revólver de Bond. Depois começaram a vadear a lagoa, com Quarrel na frente, logo seguido de Bond, e, finalmente a jovem. A água chegou até a cintura de Bond. Um grande peixe prateado deu um salto perto deles e depois caiu ruidosamente na água. Viram-se pequeninas setas riscarem a superfície, quando peixes menores se afastaram precipitadamente.

A lagoa convergia para uma estreita garganta, por sobre a qual as copas dos mangues se tocavam. Durante algum tempo eles vadearam através de um túnel fresco, e depois o rio se alargou num canal profundo, de águas morosas, que serpeava para a frente, entre as gigantescas raízes de sustentação dos mangues. O fundo era lamacento, e a cada passo os pés se enterravam algumas polegadas no lodo. Pequenos peixes ou camarões se encolhiam ou fugiam de baixo de seus pés, e de quando em quando eles tinham que parar para se desembaraçar das sanguessugas, antes que elas se agarrassem firmemente. A não ser isso, aquela caminhada era fácil, sob o frescor das arvores, e, pelo menos para Bond, era uma bênção estar ao abrigo do sol.

Em breve, à medida que se iam afastando do mar, começaram a sentir um cheiro de ovo podre, o cheiro de hidrogênio sulfurado do gás dos pântanos. Os mosquitos começaram a assaltá-los e pareciam gostar do corpo de Bond. Quarrel disse-lhe que mergulhasse na água do rio, pois os mosquitos gostavam de carne salgada. Bond tirou a camisa e fez o que Quarrel lhe aconselhara. Depois disso sentiu-se melhor e o seu olfato chegou mesmo a se acostumar com aquele repugnante cheiro, a não ser quando os pés de Quarrel desfaziam algum bolsão de gás, no fundo da lama, e uma gigantesca bolha atravessava a água para arrebentar na superfície sob as suas narinas.

Os mangues começaram a se tornar mais escassos e mais esparsos, enquanto o rio se ia alargando aos poucos. Ao mesmo tempo, a água tornava-se mais rasa e o fundo mais firme. Logo chegaram a uma volta e saíram para céu aberto, Honey disse:

— É melhor tomarmos cuidado, agora. Eles poderão ver-nos com muita facilidade. Isso vai assim durante uma milha. Depois o rio torna a se estreitar até o lago. E depois se poderá ver a restinga onde os tratadores das aves viviam.

O grupo deteve-se à sombra do túnel de mangues e olhou para fora. O rio serpeava perigosamente, afastando-se deles, em direção ao centro da ilha. As suas barrancas, bordadas de bambus de pequeno porte e de vegetação rala, dar-lhes-íam cobertura reduzida. Partindo de sua margem ocidental, o terreno elevava-se aos poucos, e logo abruptamente até o monte, situado a três quilômetros de distância, que era a guaneira. Na base daquela montanha, viam-se várias cabanas esparsas. Um ziguezague prateado galgava o flanco da colina, até as tendas — trilhos “Decauville”, pensou Bond, destinados a levarem o guano para o moinho e separa-dor. O cume do monte era branco, como se estivesse coberto de neve. De sua parte mais elevada desprendia-se como que uma bandeira de dó de guano. Bond podia ver os pontos negros que eram os corvos marinhos, sobre o fundo branco. Aquelas aves estavam levantando vôo e pousando como abelhas numa colmeia.

Bond deixou-se ficar de pé e contemplou o brilho distante daquela montanha de excrementos de aves. Então aquilo era o reino do Dr. No! Bond pensou que jamais vira um cenário tão escondido e distante, em toda a sua vida.

Examinou o terreno entre o rio e a montanha. Parecia ser principalmente formado com aquela matéria cinzenta de corais mortos. Não havia dúvida de que uma estrada ou trilha corria da falda da montanha até ao lago central e aos pântanos. Bond notou ainda que toda a vegetação se curvava para oeste, e imaginou viver durante todo um ano com aquele vento escaldante castigando a ilha, sem falar do cheiro do guano e do gás dos pântanos. Nenhuma colônia penal poderia encontrar pior localização do que aquela.

Bond olhou para leste, onde os mangues, na área dos charcos, pareciam oferecer mais hospitalidade. Os três puseram-se a caminhar sobre um sólido tapete verde de vegetação. Sobre suas cabeças, aves revoluteavam agitadas, para depois se, acalmarem, e logo tornarem a agitar-se. Seus pios eram carregados pelo vento crestante.

A voz de Quarrel interrompeu os pensamentos de Bond:

— Eles vêm vindo, capitão!

Bond seguiu o olhar de Quarrel. Um grande caminhão descia celeremente das tendas, com uma nuvem de pó levantando-se das rodas. Bond acompanhou-o durante dez minutos, até que o veículo desapareceu entre os mangues, na margem do rio. Bond pôs-se a escutar e ouviu latidos de cães, que eram trazidos pelo vento.

Quarrel comentou:

— Eles vão descer pelo rio, capitão. Sabem que não nos podemos mover, a não ser rio acima, se não estivermos mortos. Certamente que descerão pelo rio, até a praia, e farão um reconhecimento dos destroços. Depois, com toda a certeza, a lancha virá com um pequeno bote e recolherá os homens e os cães. Pelo menos, isso é o que eu faria no lugar deles.

Honey disse: — Isso é, de fato, o que eles fazem quando me procuram. É isso mesmo. Basta que cortemos um pedaço de bambu, e, quando eles estiverem perto, mergulhemos na água, procurando respirar através do bambu, até que eles se afastem.

Bond sorriu para Quarrel, e disse: — Suponhamos que você corte os bambus, enquanto eu procuro um bom esconderijo entre os mangues.

Quarrel aquiesceu hesitante e começou a subir contra a corrente, em direção ao bambuzal, enquanto Bond se encaminhava para o túnel formado pelos mangues.

Bond evitara olhar para a jovem, mas esta disse-lhe com impaciência:

— Não precisa ter tanto cuidado em não olhar para mim. Não adianta se preocupar com tais coisas, numa hora dessas. Você mesmo o disse, ainda há pouco.

Bond virou-se e olhou para a jovem. Sua camisa esfrangalhada descia até a linha d’água. Podia-se ainda ter um vislumbre de pálidas coxas, serpeando sob a superfície. O lindo rosto sorriu para ele. No meio daqueles mangues, o seu nariz quebrado parecia harmonizar-se com o ambiente, pela sua animalidade.

Bond fitou-a descansadamente e ela compreendeu. Depois, ele deu-lhe as costas e desceu pela correnteza, seguido por ela. Logo encontrou o que procurava, isto é, uma fenda naquela parede formada pelas raízes dos mangues. Bond recomendou: — Não quebre nenhum galho. — Depois, baixou a cabeça e meteu-se por aquela brecha. O canal avançava numa distância de dez metros. A lama sob seus pés tornou-se mais mole e espessa. Chegou a uma sólida e intransponível parede de raízes. Aquela água escura fluía vagarosamente através de uma ampla e tranqüila lagoa. Bond deteve-se. A jovem se aproximou dele.

— Isto é mesmo uma brincadeira de esconde-esconde — disse ela, trêmula.

— É verdade — aquiesceu Bond distraidamente, enquanto pensava em seu revólver. Com efeito, ele preocupava-se em saber com que eficiência a arma operaria depois de um banho no rio — quantos cães e homens ele poderia eliminar, se fossem descobertos. Sentiu um estremecimento de inquietação. Tinha sido uma falta de sorte ter encontrado aquela jovem. Em combate, queira-se ou não, uma mulher representa sempre um coração a mais. O inimigo tem dois alvos enquanto apenas oferece um.

Bond lembrou-se de sua sede. Apanhou na concha da mão um pouco de água e bebeu-a. Aquela água era salobra e tinha gosto de terra. Mas servia. Bond bebeu um pouco mais. A jovem agitou a mão e deteve-o, dizendo:

— Não beba demais. Lave a boca e cuspa. Você pode apanhar febre.

Quarrel assobiou de algum ponto situado na corrente principal. Bond respondeu e foi em direção ao amigo. Depois, voltaram juntos, internando-se no canal. Quarrel borrifou as raízes de mangues com água, nos pontos em que os seus corpos talvez as tivessem raspado. “Para tirar o nosso cheiro”, explicou, laconicamente. Em seguida mostrou o seu feixe de bambus e começou a cortá-los e prepará-los. Enquanto isso, Bond se ocupava com seu revólver e a munição. Os três ficaram imóveis, no meio daquele pântano, de modo a não levantarem mais lama.

A luz do sol filtrava-se através do espesso teto de folhas, os camarões agitavam-se sob os pés daqueles três fugitivos. Gradativamente foi-se avolumando uma insuportável tensão, naquele silêncio escaldante e angustioso.

Foi quase um alívio ouvir-se o ladrar dos cães.


X - O RASTRO DO DRAGÃO


O grupo de investigação descia rapidamente pelo rio. Os dois homens, de calções de banho e altas botas impermeáveis, tinham que correr para acompanhar os cães.

Eram grandes negros chineses, que traziam coldres sustentados ao ombro por meio de talabartes cruzados diante dos peitos suados. De quando em quando trocavam gritos que em geral não passavam de imprecações. À frente deles a matilha de cães Dobermann nadava e debatia-se n’água, latindo excitadamente. Tinham farejado uma pista e procuravam segui-la nervosamente, com as orelhas eretas sobre as cabeças afladas.

— Talvez um maldito crocodilo, — gritou o chefe elevando a voz sobre a algazarra. Empunhava um chicote que de vez em quando fazia estalar no campo de caça.

Os outros homens se encaminhavam para ele. O chefe gritou excitadamente: “Aposto que é o gringo inglês! Tenho certeza de que ele está entre os mangues. Cuidado para que o gringo não nos faça cair numa emboscada.” O homem tirou o revólver do coldre e colocou-o sob o sovaco, sem tirar a mão da coronha.

O grupo agora estava deixando a parte do rio, sob céu aberto, e entrando no túnel formado pelos mangues. O primeiro homem tinha um apito, que se projetava de seu largo rosto como um toco de charuto. Fez soar um agudo silvo. Quando os cães avançaram, ele se deixou ficar com o seu chicote junto do chefe. Os animais continuavam farejando, lamuriando-se porque a corrente os obrigava a desobedecer às ordens recebidas. Os dois homens sacaram os revólveres e vadearam lentamente o rio, na mesma direção da corrente, por entre os caules tortuosos dos mangues.

O homem que ia na frente chegou ao estreito canal que Bond tinha encontrado, agarrou um dos cães pela co-leira e lançou-o ao canal. O animal resfolegou ansiosamente e debateu-se para a frente. Os olhos do homem percorreram as raízes dos mangues, de ambos os lados do canal, para ver se apresentavam algum arranhão.

O cão e o homem chegaram ao pequeno lago situado na extremidade do canal. O homem olhou à sua volta, com ar animado. Tornou a agarrar o cão pela coleira e puxou-o para trás. O animal relutava em abandonar o lugar. Então, o homem feriu a água com o chicote.

O segundo homem estivera esperando à entrada do canal. O primeiro saiu daquele pequeno remanso e sacudiu a cabeça, descendo a corrente, com os cães, que agora se mostravam menos excitados, nadando à frente.

Lentamente, a algazarra da perseguição foi diminuindo e desapareceu.

Por mais cinco minutos nada se mexeu na laguna dos mangues; depois, num dos cantos, entre as raízes, apareceu lentamente para fora d’água um fino periscópio de bambu. O rosto de Bond emergiu logo em seguida, com os cabelos molhados colados à testa, como a cara de um cadáver que boiasse. Em sua mão direita, sob a água, o revólver estava pronto. Bond procurou escutar cuidadosamente. O silêncio era completo, não havia o mínimo ruído. Ou haveria? O que seria aquele suave barulho, como se algo deslizasse entre a água, na corrente principal? Viria alguém, muito serenamente, seguindo na esteira daquela caçada? Bond procurou apalpar à sua volta e tocou delicadamente nos dois corpos que estavam cada um em um de seus flancos, entre as raízes, na orla da laguna. Quando os dois rostos aforaram à superfície, ele colocou o seu dedo indicador sobre os lábios, mas já era tarde. Quarrel tinha tossido e cuspido. Bond fez uma careta e fez um sinal na direção da principal corrente. Todos procuravam escutar. O ruído recomeçou. Alguém estava-se dirigindo para o canal lateral. Os tubos de bambu voltaram para as três bocas e as cabeças tornaram a submergir. Debaixo da água Bond descansou a cabeça na lama, apertou as narinas e os lábios à volta do tubo. Sabia que a laguna já fora examinada uma vez, pois sentira a agitação causada na água pelo cão, que passara nadando! Da primeira vez não tinham sido achados, mas conseguiriam escapar desta? Agora haveria menos possibilidades de que a lama revolta se escoasse para fora da laguna. Se esse batedor visse a mancha mais escura, na água, atiraria ou usaria um punhal? Que armas traria? Bond resolveu não correr riscos. Ao primeiro rumor de movimento, ao seu lado, ele se poria de pé e daria logo ao gatilho, esperando pelo melhor.

Assim ficou ele, submerso, com todos os sentidos atentos. Como era desagradável aquele respirar controlado e insuportáveis as ligeiras mordidelas dos camarões! Por sorte nenhum deles tinha qualquer ferida no corpo, pois do contrário os malditos animalzinhos ter-se-iam atirado contra elas. De qualquer forma, aquela fora uma brilhante idéia da jovem. Sem ela os cães já os teriam alcançado, onde quer que eles se tivessem escondido.

Inesperadamente, Bond encolheu-se. Uma bota de borracha tinha pisado em seu queixo e escorregado. O homem pensaria tratar-se de um galho de árvore? Bond não podia correr aquele risco. Com um só impulso pôs-se de pé, atirando para longe o pedaço de bambu.

Bond teve uma rápida impressão de um gigantesco corpo de pé, quase em cima de si, e duma coronha de rife, em rápido movimento. Levantou o braço esquerdo para proteger a cabeça e recebeu um violento golpe no braço. Ao mesmo tempo, o seu braço direito se esticou para a frente, e, quando o cano tocou no lado direito do peito, sob o mamilo, ele acionou o gatilho.

O coice da arma, quase encostada ao corpo do homem, por pouco não quebrou o pulso de Bond, mas o homem desabou para trás como uma árvore decepada que cai n’água. Antes que o corpo afundasse, Bond ainda pôde perceber-lhe uma grande fenda no flanco. A cabeça, uma cabeça negróide de chinês, veio à superfície, com os olhos revirados para cima e a água a sair de sua boca escancarada e silenciosa. Em seguida a cabeça submergiu novamente e nada mais se pôde ver senão uma lama espumosa e uma mancha vermelha que gradualmente se ia ampliando e lentamente era atraída pela corrente.

Bond se endireitou e voltou-se para o lado. Quarrel e a jovem estavam atrás, em pé, com a água a escorrer-lhes dos corpos. Quarrel tinha um sorriso que ia de orelha a orelha, mas a garota mordia as articulações dos dedos, enquanto seus olhos se escancaravam horrorizados diante da água avermelhada.

Bond disse laconicamente: “Desculpe-me, Honey. Tinha que ser feito. Ele estava bem sobre nós. Venha, vamos indo.” Agarrou-a de qualquer maneira, pelo braço, e arrastou-a para fora da principal corrente, apenas detendo-se quando chegaram a rio aberto, na boca do túnel de mangues.

O cenário estava novamente vazio. Bond olhou para o relógio, e verificou que parara às três horas. Olhou para o sol, já bastante deslocado para o ocidente e concluiu que deveriam ser quatro horas. Quanto ainda teriam que caminhar? Bond inesperadamente sentiu-se cansado. Agora teria de enfrentar a situação. Ainda que o disparo não tivesse sido ouvido — e certamente que ele fora abafado pelo próprio corpo da vítima e pelas árvores — a falta do homem seria sentida quando os outros se reunissem, — se a suposição de Quarrel fosse correta, na embocadura do rio, de onde seriam recolhidos pela lancha. Voltariam eles, subindo o rio, a fim de procurarem o desaparecido? Talvez não. Já estaria muito escuro quando eles tivessem a certeza de que o homem estava realmente desaparecido. O mais certo seria mandarem um grupo de homens pela manhã. Os cães facilmente dariam com o corpo. E o que aconteceria?

A garota puxou-o pela manga e disse com irritação: — Já é tempo de você me dizer o que significa tudo isto! Por que estão todos procurando se matar mutuamente? E quem é você? Não acredito em toda essa história de aves. Ninguém carrega revólveres contra aves.

Bond baixou o olhar, fitando aqueles olhos bem separados e irados. — Desculpe-me, Honey. Receio tê-la arrastado para uma boa encrenca. Eu lhe contarei tudo quando voltarmos à noite para o acampamento. Foi apenas má sorte que você se envolvesse comigo, desta maneira. Tenho uma guerrinha com essa gente. Eles parecem querer matar-me. Agora estou apenas interessado em que todos nós saiamos desta ilha sem que ninguém fique ferido. Já tenho muito do que queria, para da próxima vez voltar pela porta da frente.

— O que você quer dizer? Você é alguma espécie de policial? Está querendo meter esse chinês na cadeia?

— Mais ou menos, — disse Bond, rindo para ela. — Pelo menos você está do lado dos anjos. Agora, diga-me uma coisa. Quanto falta ainda para chegar ao acampamento dos guardas?

— Oh, cerca de uma hora.

— É um lugar bom para nele esconder-se? Eles poderiam achar-nos com facilidade?

— Eles teriam que atravessar o lago ou subir o rio. Tudo estará muito bem se eles não puserem o dragão em nosso encalço. Ele pode muito bem atravessar a água, pois já o vi fazê-lo.

— Bem — disse Bond diplomaticamente — esperemos que ele esteja com a cauda machucada, ou tenha outra coisa qualquer.

A jovem vociferou: — Muito bem, sr. Sabe-Tudo. — E acrescentou irritada: — Espere e verá.

Quarrel deixou o túnel de mangues, agitando ruidosamente a água, tendo na mão o rife do chinês abatido, e dizendo à guisa de quem pede desculpas:

— Não há mal em termos outra arma, chefe. Parece que vamos precisar dela.

Bond apanhou aquela arma. Era uma carabina “Remington”, do exército norte-americano, calibre 300. Não havia dúvida de que aquela gente contava com equipamento apropriado. Bond devolveu a arma a Quarrel, depois de examiná-la.

Quarrel como que fez eco aos seus pensamentos: — Isso é gente astuta, capitão. Aquele homem veio esquadrinhando suavemente, atrás dos outros, a fim de nos surpreender quando deixássemos o esconderijo, depois da passagem dos cães. Esse tal de doutor com certeza é um sujeito muito esperto.

Bond disse pensativamente: — É, ele deve ser um homem incomum. — Depois espantou os pensamentos: — Agora, vamos tocando para a frente. Honey diz que ainda precisamos de uma hora para chegarmos ao acampamento. É melhor irmos pela margem esquerda, de modo a ficarmos ao abrigo da colina. Pelo que já pudemos ver, eles têm lunetas assestadas sobre o rio.

Bond entregou a sua arma a Quarrel, que a guardou na mochila molhada. Puseram-se novamente em marcha, com Quarrel à frente, e Bond e a jovem andando juntos, atrás.

Aproveitavam algumas sombras das árvores e bambus da margem ocidental, mas deviam agora suportar toda a intensidade de um vento crestante. Borrifaram braços e corpos com água, a fim de refrescar as queimaduras. Os olhos de Bond estavam injetados por aquele insuportável revérbero e o seu braço doía intoleràvelmente no ponto em que fora atingido pela coronha. E ele não teria à sua espera o seu jantar de pão embebido, queijo e fiambre. Quanto tempo poderiam dormir? Não dormira muito na véspera, e parece que não iria ter melhor ração de sono. E a garota? Ela nada dormira. Ele e Quarrel teriam que se revezar, em quartos de vigilância. E logo chegaria o dia seguinte, quando procurariam ganhar novamente os mangues e vencer lentamente a distância que os separava de sua canoa, através da extremidade oriental da ilha. As coisas correriam daquela forma, segundo era de esperar. Então, tratariam de se fazerem ao mar na noite seguinte. Bond pensou em como haveria de abrir caminho por entre sólidos mangues, na distância de oito quilômetros. Que perspectiva! Continuou se arrastando para a frente, pensando nas “férias ao sol dos trópicos” de M. Muito gostaria que M tivesse que partilhar com ele aquelas “férias”.

O rio foi-se estreitando até que se reduziu a uma simples corrente entre as moitas de bambu. Depois se ampliava num estuário baixo e pantanoso, além do qual as cinco milhas quadradas de lago raso davam vazão para o outro lado da ilha, perdendo-se num agitado espelho líquido azul-cinza. Mais para além estava a brilhante pista aérea e o reflexo da luz solar sobre um único hangar. A jovem disse-lhe que se mantivesse na direção leste, e eles foram lentamente avançando, protegidos pela orla da mata.

Inesperadamente, Quarrel deteve-se, com o rosto esticado como o focinho de um cão para o terreno pantanoso à sua frente. Dois profundos sulcos tinham sido escavados na lama, com um sulco mais raso no centro. Eram a trilha de algo que tinha descido da colina e atravessado o pântano em direção ao lago.

A jovem disse com indiferença: — Por aqui já passou o dragão.

Quarrel arregalou os olhos para ela.

Bond caminhou lentamente pela trilha. As marcas exteriores eram bastante lisas, trazendo a marca de uma linha curva. Poderiam ter sido causadas por rodas, mas eram enormes, pelo menos com sessenta centímetros de largura. A trilha central tinha a mesma forma, mas com apenas três polegadas de largura, ou seja a largura de um pneumático de automóvel. As trilhas não apresentavam nenhum indício de pegadas e eram completamente frescas. Estendiam-se em linha reta, e os arbustos por elas atravessados tinham sido derrubados e esmagados no chão, como se um tanque de guerra tivesse passado por ali. Bond não podia imaginar que espécie de veículo seria aquele. A jovem tocou-o com o cotovelo e murmurou: — Eu lhe tinha dito. Ele apenas pôde responder pensativamente: — Bom, Honey, se não é o dragão, é algo que nunca vi antes.

Mais adiante, ela puxou-o ansiosamente pela manga. “Veja”, sussurrou, e apontou para a frente, indicando um grande cerrado de árvores, ao lado do qual passavam as trilhas. O cerrado estava sem folhas, enegrecido. Ao centro viam-se os restos dos ninhos de pássaros carbonizados. — Ele respirou sobre as árvores, — disse a garota nervosamente.

Bond aproximou-se das árvores e examinou-as. — Certamente que o fez — admitiu. Por que aquele cerrado, em especial, tinha sido queimado? Era muito estranho aquilo.

As trilhas desciam em direção ao lago e desapareciam na água. Bond teria gostado de segui-las, mas não poderia abandonar a cobertura das árvores. Assim, continuaram a marcha, cada um entregue aos próprios pensamentos.

Lentamente o dia começou a morrer, por trás da colina, e por fim a garota apontou para a frente, através dos arbustos; Bond pôde ver uma comprida restinga internando-se no lago. Estava coberta por densas moitas de arbustos e podiam-se ver, a cem metros da praia, os restos de uma cabana incendiada. Aquele parecia um lugar razoavelmente atraente para se passar a noite, e era bem protegido dos dois lados, pela água.

O vento tinha declinado e a água se apresentava suave e convidativa. Que prazer não seria tirarem as suas imundas camisas para um banho no lago e, depois de horas de patinhação através da lama e do lodo do pântano, poderem descansar naquela areia dura e seca!

O sol brilhou com reflexos amarelecidos e desapareceu por trás da montanha. Ainda era dia na extremidade oriental da ilha, mas a sombra negra do monte avançava vagarosamente sobre o lago e acabaria por expulsar completamente os últimos vestígios do sol. Os sapos começaram a coaxar mais barulhentamente que em Jamaica, até que a noite ficou cheia daquele áspero ruído. Do outro lado do lago um grande sapo macho começou a soar o seu tambor. Aquele estranho som era algo entre um tom-tom e um rosnado de macaco. Enviava mensagens que subitamente se interrompiam e logo silenciaram. Com certeza encontrara o que procurava.

Chegaram à garganta da restinga e seguiram por um estreito caminho, até a clareira que encerrava os escombros da cabana de sapé. As grandes e misteriosas trilhas saíam da água, de ambos os lados, atravessavam a clareira e os cerrados próximos. Muitos dos arbustos estavam queimados ou crestados. Podiam-se ver os restos de um fogão feito de pedaços de coral, e algumas panelas e latas vazias. Examinaram os destroços, e Quarrel desenterrou um par de latas intactas de costeletas de porco e ervilhas marca “Heinz”. A jovem encontrou ainda um saco de dormir muito amarrotado, enquanto Bond achou uma pequena bolsa de couro com cinco notas de um dólar, três libras de Jamaica e algumas moedas de prata. Os dois homens certamente tinham abandonado aquele lugar a toda pressa.

Prosseguiram mais para diante, até uma pequena clareira arenosa. Através dos arbustos podiam ver luzes cintilando sobre a água e provenientes da montanha, talvez a mais de três quilômetros de distância. A leste nada mais havia senão. os suaves reflexos escuros da água sob o céu sombrio.

Bond comentou: — Enquanto não acendermos nada, estaremos bem aqui. A primeira coisa a fazer é tomarmos um bom banho, Honey. Você pode ficar com o resto da restinga, que nós ficaremos com a sua garganta. Dentro de meia hora espero vê-la para o jantar.

A garota riu: — Você virá a rigor?

— Sem dúvida — respondeu Bond — e de calças.

Quarrel observou: — Capitão, enquanto ainda há um pouco de luz, vou abrir essas latas e preparar as coisas para a noite. — Remexeu dentro da mochila. — Aqui estão as suas calças e o seu revólver. O pão talvez não esteja muito bom, mas está apenas molhado. Pode-se comê-lo bem, e amanhã estará seco. O melhor talvez fosse comermos das latas esta noite, guardando o queijo e as costeletas. As latas são pesadas e amanhã teremos que andar muito.

Bond respondeu: — Muito bem, Quarrel. Deixarei o cardápio aos seus cuidados.

Em seguida, apanhou o revólver e as calças úmidas e desceu para a água rasa. A água estava acariciante, mas desagradavelmente quente. Bond escavou punhados de areia, com as mãos, e esfregou o corpo com ela, utilizando-a como sabonete. Depois deixou-se ficar gostosamente em meio àquele silêncio e àquela solidão.

As estrelas começaram a brilhar palidamente, as estrelas que os tinham trazido à ilha na noite passada; as estrelas que os tirariam dali no dia seguinte. Que viagem! Mas pelo menos já tinha dado os seus resultados. Agora tinha provas bastantes, e testemunhas, para ir ter com o governador e conseguir dele um inquérito completo acerca das atividades do Dr. No. Ninguém lança mão de metralhadoras contra pessoas, mesmo contra intrusos. E, da mesma forma, o que seria aquilo do Dr. No, que invadira a propriedade da Sociedade Audubon, aquilo que chegara a destruir essa propriedade e provavelmente matara um de seus empregados? Isto também teria que ser investigado. E o que haveria ele de encontrar quando voltasse pela porta da frente, talvez a bordo de um destróier, e com um destacamento de fuzileiros navais? Qual seria a resposta para o mistério do Dr. No? O que estaria ele escondendo? Por que aquele segredo era tão importante, que seria capaz de matar repetidas vezes, para preservá-lo? E quem era esse Dr. No?

Bond ouviu o barulho de alguém espojando-se na água. Pensou na garota. E quem, afinal, era Honeychile Ri-der? Aquilo pelo menos, pensou ele ao sair da água, era algo que deveria esclarecer antes do amanhecer.

Bond enfiou as suas pegajosas calças, sentou-se na areia e desmontou o revólver. Fê-lo pelo tato, utilizando-se de sua camisa para secar cada peça e cada cartucho. Depois, tornou a montar a arma e pressionou o gatilho, fazendo com que o tambor vazio desse uma volta completa. O som era satisfatório. Seriam precisos alguns dias para que o revólver começasse a enferrujar. Carregou-o e meteu-o no coldre, para dentro do cós da calça. Depois, levantou-se e voltou para a clareira.

A sombra de Honey chegou até ele, e a sua voz se fez ouvir: — Venha; estamos morrendo de fome. Apanhei uma das panelas, limpei-a e pusemos as ervilhas nela. Temos pão também. E eu não sinto escrúpulos de comer a sua ração, porque você me fez trabalhar muito mais do que se eu estivesse sozinha. Agora, estique a mão.

Bond achou graça no tom autoritário que havia em sua voz. Ele apenas podia perceber a sua silhueta, no escuro. Sua cabeça parecia mais aflada. Ele se perguntou como seriam os seus cabelos quando secos e penteados. Como seria ela quando estivesse vestindo roupas limpas naquele lindo corpo dourado? Podia vê-la entrando numa sala ou atravessando um vestíbulo em Beau Desert. Ela seria uma linda e encantadora Patinha Feia. Por que nunca procurara endireitar o nariz? Seria uma operação fácil. Depois disso, ela seria a jovem mais bela de Jamaica.

O seu ombro tocou nele. Bond esticou o braço e descansou a mão aberta no colo da jovem. Então Bond sentiu que ela estava enchendo a sua mão com ervilhas.

Subitamente, Bond aspirou o seu cheiro cálido de animal. Foi uma explosão sensual tão aguda que o seu corpo se uniu ao dela, e, por um momento, os seus olhos se fecharam.

Ela deixou escapar um riso curto, no qual havia timidez, satisfação e ternura. E disse, maternalmente: “Lá”, — e empurrou a mão de Bond.

 

CONTINUA

IX - POR UM TRIZ


Dez minutos mais tarde a baía estava vazia e imaculada. Pequenas ondas encrespavam-se preguiçosamente através do espelho das águas, no interior dos recifes e morriam exaustas na areia escura onde as conchas lilás brilhavam como unhas pintadas. O monte de conchas tinha desaparecido e não havia mais vestígios de pegadas. Quarrel cortara galhos de mangues e caminhava de costas procurando apagar as pegadas com aqueles galhos. Onde tinha varrido, a areia apresentava uma limpidez diferente mas não tão diferente a ponto de ser notada de fora do recife. A canoa da jovem tinha sido arrastada para dentro do mar, entre as rochas, e ali ficou coberta com algas e gravetos.

Quarrel tinha voltado ao promontório. Bond e a jovem estavam juntos, sob tufos de folhas, onde Bond dormira, e olhavam silenciosamente para o contorno do promontório, à volta do qual surgira a embarcação.

A lancha estava talvez a uns quinhentos metros de distância. A julgar pelo lento ritmo do motor, Bond concluiu que cada acidente da costa estava sendo cuidadosamente inspecionado para descobrir indícios da presença de estranhos. De qualquer forma, aquilo parecia uma possante embarcação. Talvez uma grande lancha de cabina. Que tripulação teria? Quem estaria no comando? O Dr. No? Improvável. Ele certamente não se daria àquele trabalho de polícia.

Do lado do ocidente apareceu um bando de corvos marinhos, voando baixo sobre o mar, além dos recifes. Bond observou-os. Eram o primeiro indício para ele encontrado daquela colônia de aves, na outra extremidade da ilha. Aquele bando, segundo Pleydell-Smith, seriam batedores à procura do brilho prateado das enchovas, próximas à superfície. Enquanto observava, as aves começaram a dar mergulhos rasos, ferindo o mar superficialmente e levantando respingos de água. Quase que de uma só vez, apareceu outra coluna de aves, vinda do ocidente, e logo outra, e mais outra, fundindo-se todas numa espessa e escura nuvem. Durante minutos, elas sombrearam o céu, e depois atiraram-se à água, cobrindo vários alqueires, piando e lutando, e mergulhando as cabeças no mar, fazendo uma rica colheita naquele sólido campo de anchovas, como piranhas que se banqueteassem num cavalo afogado.

Bond sentiu um suave toque da jovem, que fez um movimento com a cabeça, dizendo:

— As galinhas do chinês estão comendo milho.

Bond observou-lhe o rosto belo e feliz. Ela parecia bastante despreocupada com a chegada daqueles homens. Para ela aquilo era apenas o jogo de esconde-esconde que já tinha praticado antes.

A vibração metálica dos motores diesel estava-se tornando mais forte. A lancha deveria estar justamente por trás do promontório. Bond deu mais uma olhada à volta da tranqüila baía, e depois fixou os olhos através da folhagem e do mato, para os lados dos recifes.

A ponta de uma proa branca apareceu, seguida de uns dez metros de tombadilho, e logo o parabrisas de vidro, uma cabina baixa e uma antena de rádio, e o vulto de um homem à volta do leme. Finalmente, o comprido e achatado fosso da popa, e uma flâmula vermelha pendente, Seria uma lancha-torpedeira convertida, um excedente de guerra do governo britânico?

Os olhos de Bond fixaram-se nos dois homens que estavam em pé na popa. Eram negros de pele pálida, envergando roupas caqui de marinheiro, com largos cinturões e chapéus de palha com longas palas. Estavam um ao lado do outro, equilibrando-se sob a lenta elevação da massa líquida. Um deles segurava um alto-falante e o outro manejava uma metralhadora instalada num tripé. Bond teve a impressão de que era uma metralhadora “Spandau”.

O homem com o alto-falante deixou que este caísse, e ele ficou oscilando numa tira, que lhe dava volta ao pescoço. Apanhou um binóculo e começou a vasculhar metro a metro da praia. Indistintos comentários chegavam aos ouvidos de Bond, por entre o ruído dos motores.

Bond percebeu que os olhos do binóculo começavam pelo promontório e depois percorriam a areia. As lentes detiveram-se entre as rochas e continuaram o seu passeio. Depois, voltaram. O murmúrio do comentário elevou-se ganhando animação. O homem passou o binóculo para o metralhador, que observou rapidamente, devolvendo-o logo ao dono. O observador gritou alguma coisa para o timoneiro. A lancha começou a se aproximar da praia. Agora estavam justamente diante dos recifes, em frente a Bond e à jovem. O observador ergueu novamente o binóculo, apontando-o para as rochas onde se encontrava escondida a canoa da jovem. Novamente a fala excitada chegou aos ouvidos de Bond, por sobre as águas. Mais uma vez o binóculo foi passado ao metralhador, que levou algum tempo observando. Dessa vez, ele fez um sinal de assentimento com a cabeça.

Bond pensou: agora vamos ter coisa; esses homens conhecem o ofício. Em seguida, viu que o metralhador se ocupava em carregar a arma. O duplo estalido metálico chegou aos seus ouvidos, por entre o matraquear do motor.

O observador ergueu o alto-falante e ligou-o. O eco produzido pelo amplificador chegou até Bond, conduzido pela superfície da água. A voz do homem ribombou pela baía:

— Alô, pessoal! Saiam daí e não serão feridos. Era uma voz educada, com sotaque americano.

— Agora, pessoal — trovejou a voz — depressa! Nós vimos quando vocês desembarcaram. Já descobrimos o bote sob os paus. Não somos tolos e não estamos brincando. Saiam daí com os braços levantados e não lhes acontecerá nada!

Não se ouviu nenhuma resposta. Apenas as ondas quebravam docemente na praia. Bond podia ouvir a respiração da jovem. Os guinchos agudos dos corvos marinhos chegavam-lhes de uma milha de distância, sobre o mar. O cano de escapamento dos motores diesel produzia um ruído desigual e gorgulhante, quando o intumescimento do mar cobria o orifício de descarga.

Silenciosamente Bond tocou o braço da jovem e disse-lhe:

— Fique mais perto. Alvo menor.

Ele sentiu o calor da jovem mais próximo de seu corpo, e o rosto de Honey raspou pelo seu braço. Bond sussurrou:

— Enterre-se na areia. Encolha-se. Cada polegada a menos ajudará.

Ele começou a se encolher cuidadosamente na depressão que tinham escavado para se abrigarem, e sentiu que ela fazia o mesmo.

O homem estava erguendo o seu alto-falante. A voz ribombou novamente.

— Muito bem, pessoal! Vocês irão ver que isso aqui não é para brincadeira. — Depois, levantou o polegar. O metralhador experimentou a arma fazendo alguns disparos para a copa dos mangues situados por trás da praia. Bond ouviu o rápido matraquear, tão seu conhecido, e do qual se despedira pela última vez diante das linhas alemãs, nas Ardenas. As balas produziam o velho som de pombos assustados, assobiando sobre sua cabeça. Depois fez-se silêncio.

À distância, Bond via a nuvem negra de corvos marinhos elevar-se, começando a fazer os seus amplos círculos. Seus olhos voltaram para a embarcação. O metralhador estava apalpando o cano da metralhadora, para ver se já estava aquecido. Os dois homens trocaram algumas palavras. O observador apanhou novamente o porta-voz.

— Está bem, pessoal. Vocês foram avisados.

Bond viu o cano da “Spandau” levantar-se e abaixar-se. O homem estava querendo começar com a canoa, entre as rochas. Bond sussurrou para a jovem: — Muito bem, Honey. Agüente firme. Mantenha-se abaixada. Não vai durar muito.

Ele sentiu que a mão da jovem apertava o seu braço, e pensou: “Coitada; ela está metida nisso por minha causa.” Ele inclinou-se para a direita a fim de cobrir a cabeça de Honey e afundou o rosto na areia.

Dessa vez o matraquear foi terrível. Balas ricocheteavam no flanco do promontório. Fragmentos de pedra saltavam para todos os lados, sobre a praia. Outras balas ricocheteavam e iam perder-se dentro da mata. Simultaneamente com todo aquele barulho ouvia-se o martelar contínuo da metralhadora.

Houve uma pausa. Nova carga, pensou Bond. Agora será para nós. Pôde sentir a jovem agarrando-se a ele. Seu corpo tremia todo, encostado ao seu flanco. Bond apanhou uma arma e apertou-a de encontro ao corpo. O matraquear da metralhadora recomeçou. As balas vinham zunindo, da linha de maré, em direção a eles. Ouviu-se uma sucessão de rápidas batidas. O tufo, acima deles, estava sendo reduzido a pedaços. “Zuip Zuip Zuip”. Era como se um chicote de aço estivesse retalhando os arbustos. Pedaços de lenha caíam sobre eles, cobrindo-os lentamente. Bond respirou um ar mais fresco, o que significava que eles agora estavam ao ar-livre. Estariam eles escondidos pelas folhas o pelos destroços? As balas continuaram deslocando-se ao longo da linha da costa. Em menos de um minuto a metralhadora parou.

O silêncio tornou a reinar. A jovem lamuriou-se docemente. Bond fê-la calar-se e apertou-a mais forte.

O alto-falante apregoou:

— Está bem, pessoal. Se vocês ainda têm ouvidos, saibam que voltaremos logo para recolher-lhes os pedaços. Vamos trazer os cães. Até à vista, por enquanto.

O ritmo do motor se acelerou, e através das folhas Bond pôde ver a popa da lancha afundar-se mais na água, enquanto a embarcação rumava rapidamente para oeste. Dentro de minutos já não se ouvia mais nada.

Bond ergueu a cabeça cautelosamente. A baía estava serena, e tudo como antes, exceto o cheiro de cordite e as rochas quebradas.

Bond fez a jovem levantar-se. Havia marcas de lágrimas em seu rosto. Ela olhou-o aterrada, e disse:

— Isso foi terrível. Por que eles o fizeram? Podíamos ter sido mortos.

Bond pensou naquela jovem que sempre abrira caminho, na vida, por si mesma, mas apenas contra a natureza. Conhecia o mundo dos animais, dos insetos e dos peixes, e tirava todo o partido desse conhecimento. Mas aquele era um pequeno mundo, limitado pelo sol, pela lua e pelas estações. Ela não conhecia o grande mundo das salas cheias de fumo, dos corredores de negócios, dos corredores e antecâmaras governamentais, dos cautelosos encontros em bancos de praças — numa palavra: ela nada conhecia da luta pelo poder e pelo dinheiro, travada por homens poderosos.

Bond disse:

— É isso mesmo, Honey, eles não passam de uma quadrilha de bandidos assustados conosco. Podemos enfrentá-los.

Bond colocou o braço à volta de seus ombros e continuou:

— E você esteve maravilhosa, brava como ninguém. Agora, vamos ao encontro de Quarrel para traçar os nossos planos. De qualquer forma, já é tempo de comermos alguma coisa. O que é que você costuma comer nessas expedições?

Deram meia-volta e seguiram pela praia em direção ao promontório. Depois de um minuto, ela disse com voz bem controlada:

— Oh, há uma porção de coisas por aí que se podem comer. Ouriços do mar principalmente, mas também bananas silvestres e outras coisas. Eu como e durmo durante dois dias, antes de vir aqui. Não preciso de nada.

Bond apertou-a mais fortemente, mas deixou cair o braço, assim que Quarrel apareceu ao longe. Quarrel vinha saltando sobre as rochas, e, em determinado momento, parou, olhando para baixo. Bond e Honey se aproximaram dele. A canoa da jovem estava cortada ao meio pelas balas. Honey deixou escapar um grito, olhando desesperadamente para Bond:

— A minha canoa! Como poderei voltar?

— Não se preocupe, senhorita, — disse Quarrel, que sentia a perda de uma canoa mais do que Bond. Imaginou ainda que aquela embarcação representasse quase todo o capital da jovem. — O capitão lhe dará outra. E a senhorita voltará conosco. Temos um magnífico bote, entre os mangues, e ele não foi destruído. Já estive lá espiando.

Quarrel olhou para Bond. Agora, o seu rosto denotava preocupação.

— Mas, capitão, o senhor está vendo o que eu disse dessa gente. Eles são duros e não estão brincando. Esses cães que eles vão trazer são policiais — Pinschers, como eles os chamam. Bastardos. Meus amigos disseram-me que são uma matilha de vinte ou mais. É melhor resolvermos logo.

— Está bem, Quarrel. Mas antes de mais nada precisamos comer alguma coisa. — o diabo que me carregue se eu vou ser aterrorizado e expulso da ilha antes de dar uma olhada nisso. Levaremos Honey conosco. — E, voltando-se para a jovem:

— Está bem, Honey? Nada lhe acontecerá. Depois voltaremos juntos.

A jovem olhou-o em dúvida:

— Acho que não há alternativa. Quero dizer. Gostaria de ir com vocês, se não atrapalhasse. Francamente, não quero comer nada. Mas você me levará de volta, assim que puder? Não quero ver mais aquela gente. Durante quanto tempo vocês vão ficar olhando para essas aves?

Bond respondeu evasivamente:

— Pouco tempo. Eu terei apenas que ver o que lhes aconteceu e porquê. Depois, partiremos.

Olhou para o relógio e anunciou:

— Agora são doze horas. Você nos esperará aqui. Tome um banho ou faça o que quiser. Não ande por aí deixando pegadas. Vamos, Quarrel, é melhor escondermos aquele bote.

Só à uma hora eles estavam prontos. Bond e Quarrel encheram a canoa com pedras e areia, até que ela desapareceu sob a água, entre os mangues. Depois, apagaram as suas pegadas. As balas tinham deixado tantos gravetos na orla da praia, que eles podiam caminhar pisando em folhas e ramos quebrados. Comeram parte de suas rações — os homens com avidez, mas Honey com relutância — e depois, passando sobre as rochas, foram ter à lagoa, próxima da costa. Em seguida foram vadeando aquelas águas, em direção à foz do rio, trezentos metros praia abaixo.

Fazia muito calor. Um vento áspero e quente começou a soprar do nordeste. Quarrel informou que aquele vento soprava diariamente, durante todo o ano, e era vital para a guaneira, pois secava o guano. O revérbero do mar e das brilhantes folhas verdes dos mangues cegava-os. Bond deu-se por feliz, já que tivera o cuidado de acostumar sua pele ao sol.

Na foz do rio encontraram um banco de areia e um extenso pântano, profundo e de águas estagnadas. Os dois homens podiam molhar-se ou tirar as roupas. Bond disse à jovem:

— Honey, não podemos ter cerimônia, nesta situação. Vamos ficar apenas com as camisas por causa do sol. Fique apenas com o que for sensato e caminhe atrás de nós.

Sem esperar pela resposta da jovem, os dois homens tiraram as calças. Quarrel enrolou-as e guardou-as na sacola, juntamente com as provisões e o revólver de Bond. Depois começaram a vadear a lagoa, com Quarrel na frente, logo seguido de Bond, e, finalmente a jovem. A água chegou até a cintura de Bond. Um grande peixe prateado deu um salto perto deles e depois caiu ruidosamente na água. Viram-se pequeninas setas riscarem a superfície, quando peixes menores se afastaram precipitadamente.

A lagoa convergia para uma estreita garganta, por sobre a qual as copas dos mangues se tocavam. Durante algum tempo eles vadearam através de um túnel fresco, e depois o rio se alargou num canal profundo, de águas morosas, que serpeava para a frente, entre as gigantescas raízes de sustentação dos mangues. O fundo era lamacento, e a cada passo os pés se enterravam algumas polegadas no lodo. Pequenos peixes ou camarões se encolhiam ou fugiam de baixo de seus pés, e de quando em quando eles tinham que parar para se desembaraçar das sanguessugas, antes que elas se agarrassem firmemente. A não ser isso, aquela caminhada era fácil, sob o frescor das arvores, e, pelo menos para Bond, era uma bênção estar ao abrigo do sol.

Em breve, à medida que se iam afastando do mar, começaram a sentir um cheiro de ovo podre, o cheiro de hidrogênio sulfurado do gás dos pântanos. Os mosquitos começaram a assaltá-los e pareciam gostar do corpo de Bond. Quarrel disse-lhe que mergulhasse na água do rio, pois os mosquitos gostavam de carne salgada. Bond tirou a camisa e fez o que Quarrel lhe aconselhara. Depois disso sentiu-se melhor e o seu olfato chegou mesmo a se acostumar com aquele repugnante cheiro, a não ser quando os pés de Quarrel desfaziam algum bolsão de gás, no fundo da lama, e uma gigantesca bolha atravessava a água para arrebentar na superfície sob as suas narinas.

Os mangues começaram a se tornar mais escassos e mais esparsos, enquanto o rio se ia alargando aos poucos. Ao mesmo tempo, a água tornava-se mais rasa e o fundo mais firme. Logo chegaram a uma volta e saíram para céu aberto, Honey disse:

— É melhor tomarmos cuidado, agora. Eles poderão ver-nos com muita facilidade. Isso vai assim durante uma milha. Depois o rio torna a se estreitar até o lago. E depois se poderá ver a restinga onde os tratadores das aves viviam.

O grupo deteve-se à sombra do túnel de mangues e olhou para fora. O rio serpeava perigosamente, afastando-se deles, em direção ao centro da ilha. As suas barrancas, bordadas de bambus de pequeno porte e de vegetação rala, dar-lhes-íam cobertura reduzida. Partindo de sua margem ocidental, o terreno elevava-se aos poucos, e logo abruptamente até o monte, situado a três quilômetros de distância, que era a guaneira. Na base daquela montanha, viam-se várias cabanas esparsas. Um ziguezague prateado galgava o flanco da colina, até as tendas — trilhos “Decauville”, pensou Bond, destinados a levarem o guano para o moinho e separa-dor. O cume do monte era branco, como se estivesse coberto de neve. De sua parte mais elevada desprendia-se como que uma bandeira de dó de guano. Bond podia ver os pontos negros que eram os corvos marinhos, sobre o fundo branco. Aquelas aves estavam levantando vôo e pousando como abelhas numa colmeia.

Bond deixou-se ficar de pé e contemplou o brilho distante daquela montanha de excrementos de aves. Então aquilo era o reino do Dr. No! Bond pensou que jamais vira um cenário tão escondido e distante, em toda a sua vida.

Examinou o terreno entre o rio e a montanha. Parecia ser principalmente formado com aquela matéria cinzenta de corais mortos. Não havia dúvida de que uma estrada ou trilha corria da falda da montanha até ao lago central e aos pântanos. Bond notou ainda que toda a vegetação se curvava para oeste, e imaginou viver durante todo um ano com aquele vento escaldante castigando a ilha, sem falar do cheiro do guano e do gás dos pântanos. Nenhuma colônia penal poderia encontrar pior localização do que aquela.

Bond olhou para leste, onde os mangues, na área dos charcos, pareciam oferecer mais hospitalidade. Os três puseram-se a caminhar sobre um sólido tapete verde de vegetação. Sobre suas cabeças, aves revoluteavam agitadas, para depois se, acalmarem, e logo tornarem a agitar-se. Seus pios eram carregados pelo vento crestante.

A voz de Quarrel interrompeu os pensamentos de Bond:

— Eles vêm vindo, capitão!

Bond seguiu o olhar de Quarrel. Um grande caminhão descia celeremente das tendas, com uma nuvem de pó levantando-se das rodas. Bond acompanhou-o durante dez minutos, até que o veículo desapareceu entre os mangues, na margem do rio. Bond pôs-se a escutar e ouviu latidos de cães, que eram trazidos pelo vento.

Quarrel comentou:

— Eles vão descer pelo rio, capitão. Sabem que não nos podemos mover, a não ser rio acima, se não estivermos mortos. Certamente que descerão pelo rio, até a praia, e farão um reconhecimento dos destroços. Depois, com toda a certeza, a lancha virá com um pequeno bote e recolherá os homens e os cães. Pelo menos, isso é o que eu faria no lugar deles.

Honey disse: — Isso é, de fato, o que eles fazem quando me procuram. É isso mesmo. Basta que cortemos um pedaço de bambu, e, quando eles estiverem perto, mergulhemos na água, procurando respirar através do bambu, até que eles se afastem.

Bond sorriu para Quarrel, e disse: — Suponhamos que você corte os bambus, enquanto eu procuro um bom esconderijo entre os mangues.

Quarrel aquiesceu hesitante e começou a subir contra a corrente, em direção ao bambuzal, enquanto Bond se encaminhava para o túnel formado pelos mangues.

Bond evitara olhar para a jovem, mas esta disse-lhe com impaciência:

— Não precisa ter tanto cuidado em não olhar para mim. Não adianta se preocupar com tais coisas, numa hora dessas. Você mesmo o disse, ainda há pouco.

Bond virou-se e olhou para a jovem. Sua camisa esfrangalhada descia até a linha d’água. Podia-se ainda ter um vislumbre de pálidas coxas, serpeando sob a superfície. O lindo rosto sorriu para ele. No meio daqueles mangues, o seu nariz quebrado parecia harmonizar-se com o ambiente, pela sua animalidade.

Bond fitou-a descansadamente e ela compreendeu. Depois, ele deu-lhe as costas e desceu pela correnteza, seguido por ela. Logo encontrou o que procurava, isto é, uma fenda naquela parede formada pelas raízes dos mangues. Bond recomendou: — Não quebre nenhum galho. — Depois, baixou a cabeça e meteu-se por aquela brecha. O canal avançava numa distância de dez metros. A lama sob seus pés tornou-se mais mole e espessa. Chegou a uma sólida e intransponível parede de raízes. Aquela água escura fluía vagarosamente através de uma ampla e tranqüila lagoa. Bond deteve-se. A jovem se aproximou dele.

— Isto é mesmo uma brincadeira de esconde-esconde — disse ela, trêmula.

— É verdade — aquiesceu Bond distraidamente, enquanto pensava em seu revólver. Com efeito, ele preocupava-se em saber com que eficiência a arma operaria depois de um banho no rio — quantos cães e homens ele poderia eliminar, se fossem descobertos. Sentiu um estremecimento de inquietação. Tinha sido uma falta de sorte ter encontrado aquela jovem. Em combate, queira-se ou não, uma mulher representa sempre um coração a mais. O inimigo tem dois alvos enquanto apenas oferece um.

Bond lembrou-se de sua sede. Apanhou na concha da mão um pouco de água e bebeu-a. Aquela água era salobra e tinha gosto de terra. Mas servia. Bond bebeu um pouco mais. A jovem agitou a mão e deteve-o, dizendo:

— Não beba demais. Lave a boca e cuspa. Você pode apanhar febre.

Quarrel assobiou de algum ponto situado na corrente principal. Bond respondeu e foi em direção ao amigo. Depois, voltaram juntos, internando-se no canal. Quarrel borrifou as raízes de mangues com água, nos pontos em que os seus corpos talvez as tivessem raspado. “Para tirar o nosso cheiro”, explicou, laconicamente. Em seguida mostrou o seu feixe de bambus e começou a cortá-los e prepará-los. Enquanto isso, Bond se ocupava com seu revólver e a munição. Os três ficaram imóveis, no meio daquele pântano, de modo a não levantarem mais lama.

A luz do sol filtrava-se através do espesso teto de folhas, os camarões agitavam-se sob os pés daqueles três fugitivos. Gradativamente foi-se avolumando uma insuportável tensão, naquele silêncio escaldante e angustioso.

Foi quase um alívio ouvir-se o ladrar dos cães.


X - O RASTRO DO DRAGÃO


O grupo de investigação descia rapidamente pelo rio. Os dois homens, de calções de banho e altas botas impermeáveis, tinham que correr para acompanhar os cães.

Eram grandes negros chineses, que traziam coldres sustentados ao ombro por meio de talabartes cruzados diante dos peitos suados. De quando em quando trocavam gritos que em geral não passavam de imprecações. À frente deles a matilha de cães Dobermann nadava e debatia-se n’água, latindo excitadamente. Tinham farejado uma pista e procuravam segui-la nervosamente, com as orelhas eretas sobre as cabeças afladas.

— Talvez um maldito crocodilo, — gritou o chefe elevando a voz sobre a algazarra. Empunhava um chicote que de vez em quando fazia estalar no campo de caça.

Os outros homens se encaminhavam para ele. O chefe gritou excitadamente: “Aposto que é o gringo inglês! Tenho certeza de que ele está entre os mangues. Cuidado para que o gringo não nos faça cair numa emboscada.” O homem tirou o revólver do coldre e colocou-o sob o sovaco, sem tirar a mão da coronha.

O grupo agora estava deixando a parte do rio, sob céu aberto, e entrando no túnel formado pelos mangues. O primeiro homem tinha um apito, que se projetava de seu largo rosto como um toco de charuto. Fez soar um agudo silvo. Quando os cães avançaram, ele se deixou ficar com o seu chicote junto do chefe. Os animais continuavam farejando, lamuriando-se porque a corrente os obrigava a desobedecer às ordens recebidas. Os dois homens sacaram os revólveres e vadearam lentamente o rio, na mesma direção da corrente, por entre os caules tortuosos dos mangues.

O homem que ia na frente chegou ao estreito canal que Bond tinha encontrado, agarrou um dos cães pela co-leira e lançou-o ao canal. O animal resfolegou ansiosamente e debateu-se para a frente. Os olhos do homem percorreram as raízes dos mangues, de ambos os lados do canal, para ver se apresentavam algum arranhão.

O cão e o homem chegaram ao pequeno lago situado na extremidade do canal. O homem olhou à sua volta, com ar animado. Tornou a agarrar o cão pela coleira e puxou-o para trás. O animal relutava em abandonar o lugar. Então, o homem feriu a água com o chicote.

O segundo homem estivera esperando à entrada do canal. O primeiro saiu daquele pequeno remanso e sacudiu a cabeça, descendo a corrente, com os cães, que agora se mostravam menos excitados, nadando à frente.

Lentamente, a algazarra da perseguição foi diminuindo e desapareceu.

Por mais cinco minutos nada se mexeu na laguna dos mangues; depois, num dos cantos, entre as raízes, apareceu lentamente para fora d’água um fino periscópio de bambu. O rosto de Bond emergiu logo em seguida, com os cabelos molhados colados à testa, como a cara de um cadáver que boiasse. Em sua mão direita, sob a água, o revólver estava pronto. Bond procurou escutar cuidadosamente. O silêncio era completo, não havia o mínimo ruído. Ou haveria? O que seria aquele suave barulho, como se algo deslizasse entre a água, na corrente principal? Viria alguém, muito serenamente, seguindo na esteira daquela caçada? Bond procurou apalpar à sua volta e tocou delicadamente nos dois corpos que estavam cada um em um de seus flancos, entre as raízes, na orla da laguna. Quando os dois rostos aforaram à superfície, ele colocou o seu dedo indicador sobre os lábios, mas já era tarde. Quarrel tinha tossido e cuspido. Bond fez uma careta e fez um sinal na direção da principal corrente. Todos procuravam escutar. O ruído recomeçou. Alguém estava-se dirigindo para o canal lateral. Os tubos de bambu voltaram para as três bocas e as cabeças tornaram a submergir. Debaixo da água Bond descansou a cabeça na lama, apertou as narinas e os lábios à volta do tubo. Sabia que a laguna já fora examinada uma vez, pois sentira a agitação causada na água pelo cão, que passara nadando! Da primeira vez não tinham sido achados, mas conseguiriam escapar desta? Agora haveria menos possibilidades de que a lama revolta se escoasse para fora da laguna. Se esse batedor visse a mancha mais escura, na água, atiraria ou usaria um punhal? Que armas traria? Bond resolveu não correr riscos. Ao primeiro rumor de movimento, ao seu lado, ele se poria de pé e daria logo ao gatilho, esperando pelo melhor.

Assim ficou ele, submerso, com todos os sentidos atentos. Como era desagradável aquele respirar controlado e insuportáveis as ligeiras mordidelas dos camarões! Por sorte nenhum deles tinha qualquer ferida no corpo, pois do contrário os malditos animalzinhos ter-se-iam atirado contra elas. De qualquer forma, aquela fora uma brilhante idéia da jovem. Sem ela os cães já os teriam alcançado, onde quer que eles se tivessem escondido.

Inesperadamente, Bond encolheu-se. Uma bota de borracha tinha pisado em seu queixo e escorregado. O homem pensaria tratar-se de um galho de árvore? Bond não podia correr aquele risco. Com um só impulso pôs-se de pé, atirando para longe o pedaço de bambu.

Bond teve uma rápida impressão de um gigantesco corpo de pé, quase em cima de si, e duma coronha de rife, em rápido movimento. Levantou o braço esquerdo para proteger a cabeça e recebeu um violento golpe no braço. Ao mesmo tempo, o seu braço direito se esticou para a frente, e, quando o cano tocou no lado direito do peito, sob o mamilo, ele acionou o gatilho.

O coice da arma, quase encostada ao corpo do homem, por pouco não quebrou o pulso de Bond, mas o homem desabou para trás como uma árvore decepada que cai n’água. Antes que o corpo afundasse, Bond ainda pôde perceber-lhe uma grande fenda no flanco. A cabeça, uma cabeça negróide de chinês, veio à superfície, com os olhos revirados para cima e a água a sair de sua boca escancarada e silenciosa. Em seguida a cabeça submergiu novamente e nada mais se pôde ver senão uma lama espumosa e uma mancha vermelha que gradualmente se ia ampliando e lentamente era atraída pela corrente.

Bond se endireitou e voltou-se para o lado. Quarrel e a jovem estavam atrás, em pé, com a água a escorrer-lhes dos corpos. Quarrel tinha um sorriso que ia de orelha a orelha, mas a garota mordia as articulações dos dedos, enquanto seus olhos se escancaravam horrorizados diante da água avermelhada.

Bond disse laconicamente: “Desculpe-me, Honey. Tinha que ser feito. Ele estava bem sobre nós. Venha, vamos indo.” Agarrou-a de qualquer maneira, pelo braço, e arrastou-a para fora da principal corrente, apenas detendo-se quando chegaram a rio aberto, na boca do túnel de mangues.

O cenário estava novamente vazio. Bond olhou para o relógio, e verificou que parara às três horas. Olhou para o sol, já bastante deslocado para o ocidente e concluiu que deveriam ser quatro horas. Quanto ainda teriam que caminhar? Bond inesperadamente sentiu-se cansado. Agora teria de enfrentar a situação. Ainda que o disparo não tivesse sido ouvido — e certamente que ele fora abafado pelo próprio corpo da vítima e pelas árvores — a falta do homem seria sentida quando os outros se reunissem, — se a suposição de Quarrel fosse correta, na embocadura do rio, de onde seriam recolhidos pela lancha. Voltariam eles, subindo o rio, a fim de procurarem o desaparecido? Talvez não. Já estaria muito escuro quando eles tivessem a certeza de que o homem estava realmente desaparecido. O mais certo seria mandarem um grupo de homens pela manhã. Os cães facilmente dariam com o corpo. E o que aconteceria?

A garota puxou-o pela manga e disse com irritação: — Já é tempo de você me dizer o que significa tudo isto! Por que estão todos procurando se matar mutuamente? E quem é você? Não acredito em toda essa história de aves. Ninguém carrega revólveres contra aves.

Bond baixou o olhar, fitando aqueles olhos bem separados e irados. — Desculpe-me, Honey. Receio tê-la arrastado para uma boa encrenca. Eu lhe contarei tudo quando voltarmos à noite para o acampamento. Foi apenas má sorte que você se envolvesse comigo, desta maneira. Tenho uma guerrinha com essa gente. Eles parecem querer matar-me. Agora estou apenas interessado em que todos nós saiamos desta ilha sem que ninguém fique ferido. Já tenho muito do que queria, para da próxima vez voltar pela porta da frente.

— O que você quer dizer? Você é alguma espécie de policial? Está querendo meter esse chinês na cadeia?

— Mais ou menos, — disse Bond, rindo para ela. — Pelo menos você está do lado dos anjos. Agora, diga-me uma coisa. Quanto falta ainda para chegar ao acampamento dos guardas?

— Oh, cerca de uma hora.

— É um lugar bom para nele esconder-se? Eles poderiam achar-nos com facilidade?

— Eles teriam que atravessar o lago ou subir o rio. Tudo estará muito bem se eles não puserem o dragão em nosso encalço. Ele pode muito bem atravessar a água, pois já o vi fazê-lo.

— Bem — disse Bond diplomaticamente — esperemos que ele esteja com a cauda machucada, ou tenha outra coisa qualquer.

A jovem vociferou: — Muito bem, sr. Sabe-Tudo. — E acrescentou irritada: — Espere e verá.

Quarrel deixou o túnel de mangues, agitando ruidosamente a água, tendo na mão o rife do chinês abatido, e dizendo à guisa de quem pede desculpas:

— Não há mal em termos outra arma, chefe. Parece que vamos precisar dela.

Bond apanhou aquela arma. Era uma carabina “Remington”, do exército norte-americano, calibre 300. Não havia dúvida de que aquela gente contava com equipamento apropriado. Bond devolveu a arma a Quarrel, depois de examiná-la.

Quarrel como que fez eco aos seus pensamentos: — Isso é gente astuta, capitão. Aquele homem veio esquadrinhando suavemente, atrás dos outros, a fim de nos surpreender quando deixássemos o esconderijo, depois da passagem dos cães. Esse tal de doutor com certeza é um sujeito muito esperto.

Bond disse pensativamente: — É, ele deve ser um homem incomum. — Depois espantou os pensamentos: — Agora, vamos tocando para a frente. Honey diz que ainda precisamos de uma hora para chegarmos ao acampamento. É melhor irmos pela margem esquerda, de modo a ficarmos ao abrigo da colina. Pelo que já pudemos ver, eles têm lunetas assestadas sobre o rio.

Bond entregou a sua arma a Quarrel, que a guardou na mochila molhada. Puseram-se novamente em marcha, com Quarrel à frente, e Bond e a jovem andando juntos, atrás.

Aproveitavam algumas sombras das árvores e bambus da margem ocidental, mas deviam agora suportar toda a intensidade de um vento crestante. Borrifaram braços e corpos com água, a fim de refrescar as queimaduras. Os olhos de Bond estavam injetados por aquele insuportável revérbero e o seu braço doía intoleràvelmente no ponto em que fora atingido pela coronha. E ele não teria à sua espera o seu jantar de pão embebido, queijo e fiambre. Quanto tempo poderiam dormir? Não dormira muito na véspera, e parece que não iria ter melhor ração de sono. E a garota? Ela nada dormira. Ele e Quarrel teriam que se revezar, em quartos de vigilância. E logo chegaria o dia seguinte, quando procurariam ganhar novamente os mangues e vencer lentamente a distância que os separava de sua canoa, através da extremidade oriental da ilha. As coisas correriam daquela forma, segundo era de esperar. Então, tratariam de se fazerem ao mar na noite seguinte. Bond pensou em como haveria de abrir caminho por entre sólidos mangues, na distância de oito quilômetros. Que perspectiva! Continuou se arrastando para a frente, pensando nas “férias ao sol dos trópicos” de M. Muito gostaria que M tivesse que partilhar com ele aquelas “férias”.

O rio foi-se estreitando até que se reduziu a uma simples corrente entre as moitas de bambu. Depois se ampliava num estuário baixo e pantanoso, além do qual as cinco milhas quadradas de lago raso davam vazão para o outro lado da ilha, perdendo-se num agitado espelho líquido azul-cinza. Mais para além estava a brilhante pista aérea e o reflexo da luz solar sobre um único hangar. A jovem disse-lhe que se mantivesse na direção leste, e eles foram lentamente avançando, protegidos pela orla da mata.

Inesperadamente, Quarrel deteve-se, com o rosto esticado como o focinho de um cão para o terreno pantanoso à sua frente. Dois profundos sulcos tinham sido escavados na lama, com um sulco mais raso no centro. Eram a trilha de algo que tinha descido da colina e atravessado o pântano em direção ao lago.

A jovem disse com indiferença: — Por aqui já passou o dragão.

Quarrel arregalou os olhos para ela.

Bond caminhou lentamente pela trilha. As marcas exteriores eram bastante lisas, trazendo a marca de uma linha curva. Poderiam ter sido causadas por rodas, mas eram enormes, pelo menos com sessenta centímetros de largura. A trilha central tinha a mesma forma, mas com apenas três polegadas de largura, ou seja a largura de um pneumático de automóvel. As trilhas não apresentavam nenhum indício de pegadas e eram completamente frescas. Estendiam-se em linha reta, e os arbustos por elas atravessados tinham sido derrubados e esmagados no chão, como se um tanque de guerra tivesse passado por ali. Bond não podia imaginar que espécie de veículo seria aquele. A jovem tocou-o com o cotovelo e murmurou: — Eu lhe tinha dito. Ele apenas pôde responder pensativamente: — Bom, Honey, se não é o dragão, é algo que nunca vi antes.

Mais adiante, ela puxou-o ansiosamente pela manga. “Veja”, sussurrou, e apontou para a frente, indicando um grande cerrado de árvores, ao lado do qual passavam as trilhas. O cerrado estava sem folhas, enegrecido. Ao centro viam-se os restos dos ninhos de pássaros carbonizados. — Ele respirou sobre as árvores, — disse a garota nervosamente.

Bond aproximou-se das árvores e examinou-as. — Certamente que o fez — admitiu. Por que aquele cerrado, em especial, tinha sido queimado? Era muito estranho aquilo.

As trilhas desciam em direção ao lago e desapareciam na água. Bond teria gostado de segui-las, mas não poderia abandonar a cobertura das árvores. Assim, continuaram a marcha, cada um entregue aos próprios pensamentos.

Lentamente o dia começou a morrer, por trás da colina, e por fim a garota apontou para a frente, através dos arbustos; Bond pôde ver uma comprida restinga internando-se no lago. Estava coberta por densas moitas de arbustos e podiam-se ver, a cem metros da praia, os restos de uma cabana incendiada. Aquele parecia um lugar razoavelmente atraente para se passar a noite, e era bem protegido dos dois lados, pela água.

O vento tinha declinado e a água se apresentava suave e convidativa. Que prazer não seria tirarem as suas imundas camisas para um banho no lago e, depois de horas de patinhação através da lama e do lodo do pântano, poderem descansar naquela areia dura e seca!

O sol brilhou com reflexos amarelecidos e desapareceu por trás da montanha. Ainda era dia na extremidade oriental da ilha, mas a sombra negra do monte avançava vagarosamente sobre o lago e acabaria por expulsar completamente os últimos vestígios do sol. Os sapos começaram a coaxar mais barulhentamente que em Jamaica, até que a noite ficou cheia daquele áspero ruído. Do outro lado do lago um grande sapo macho começou a soar o seu tambor. Aquele estranho som era algo entre um tom-tom e um rosnado de macaco. Enviava mensagens que subitamente se interrompiam e logo silenciaram. Com certeza encontrara o que procurava.

Chegaram à garganta da restinga e seguiram por um estreito caminho, até a clareira que encerrava os escombros da cabana de sapé. As grandes e misteriosas trilhas saíam da água, de ambos os lados, atravessavam a clareira e os cerrados próximos. Muitos dos arbustos estavam queimados ou crestados. Podiam-se ver os restos de um fogão feito de pedaços de coral, e algumas panelas e latas vazias. Examinaram os destroços, e Quarrel desenterrou um par de latas intactas de costeletas de porco e ervilhas marca “Heinz”. A jovem encontrou ainda um saco de dormir muito amarrotado, enquanto Bond achou uma pequena bolsa de couro com cinco notas de um dólar, três libras de Jamaica e algumas moedas de prata. Os dois homens certamente tinham abandonado aquele lugar a toda pressa.

Prosseguiram mais para diante, até uma pequena clareira arenosa. Através dos arbustos podiam ver luzes cintilando sobre a água e provenientes da montanha, talvez a mais de três quilômetros de distância. A leste nada mais havia senão. os suaves reflexos escuros da água sob o céu sombrio.

Bond comentou: — Enquanto não acendermos nada, estaremos bem aqui. A primeira coisa a fazer é tomarmos um bom banho, Honey. Você pode ficar com o resto da restinga, que nós ficaremos com a sua garganta. Dentro de meia hora espero vê-la para o jantar.

A garota riu: — Você virá a rigor?

— Sem dúvida — respondeu Bond — e de calças.

Quarrel observou: — Capitão, enquanto ainda há um pouco de luz, vou abrir essas latas e preparar as coisas para a noite. — Remexeu dentro da mochila. — Aqui estão as suas calças e o seu revólver. O pão talvez não esteja muito bom, mas está apenas molhado. Pode-se comê-lo bem, e amanhã estará seco. O melhor talvez fosse comermos das latas esta noite, guardando o queijo e as costeletas. As latas são pesadas e amanhã teremos que andar muito.

Bond respondeu: — Muito bem, Quarrel. Deixarei o cardápio aos seus cuidados.

Em seguida, apanhou o revólver e as calças úmidas e desceu para a água rasa. A água estava acariciante, mas desagradavelmente quente. Bond escavou punhados de areia, com as mãos, e esfregou o corpo com ela, utilizando-a como sabonete. Depois deixou-se ficar gostosamente em meio àquele silêncio e àquela solidão.

As estrelas começaram a brilhar palidamente, as estrelas que os tinham trazido à ilha na noite passada; as estrelas que os tirariam dali no dia seguinte. Que viagem! Mas pelo menos já tinha dado os seus resultados. Agora tinha provas bastantes, e testemunhas, para ir ter com o governador e conseguir dele um inquérito completo acerca das atividades do Dr. No. Ninguém lança mão de metralhadoras contra pessoas, mesmo contra intrusos. E, da mesma forma, o que seria aquilo do Dr. No, que invadira a propriedade da Sociedade Audubon, aquilo que chegara a destruir essa propriedade e provavelmente matara um de seus empregados? Isto também teria que ser investigado. E o que haveria ele de encontrar quando voltasse pela porta da frente, talvez a bordo de um destróier, e com um destacamento de fuzileiros navais? Qual seria a resposta para o mistério do Dr. No? O que estaria ele escondendo? Por que aquele segredo era tão importante, que seria capaz de matar repetidas vezes, para preservá-lo? E quem era esse Dr. No?

Bond ouviu o barulho de alguém espojando-se na água. Pensou na garota. E quem, afinal, era Honeychile Ri-der? Aquilo pelo menos, pensou ele ao sair da água, era algo que deveria esclarecer antes do amanhecer.

Bond enfiou as suas pegajosas calças, sentou-se na areia e desmontou o revólver. Fê-lo pelo tato, utilizando-se de sua camisa para secar cada peça e cada cartucho. Depois, tornou a montar a arma e pressionou o gatilho, fazendo com que o tambor vazio desse uma volta completa. O som era satisfatório. Seriam precisos alguns dias para que o revólver começasse a enferrujar. Carregou-o e meteu-o no coldre, para dentro do cós da calça. Depois, levantou-se e voltou para a clareira.

A sombra de Honey chegou até ele, e a sua voz se fez ouvir: — Venha; estamos morrendo de fome. Apanhei uma das panelas, limpei-a e pusemos as ervilhas nela. Temos pão também. E eu não sinto escrúpulos de comer a sua ração, porque você me fez trabalhar muito mais do que se eu estivesse sozinha. Agora, estique a mão.

Bond achou graça no tom autoritário que havia em sua voz. Ele apenas podia perceber a sua silhueta, no escuro. Sua cabeça parecia mais aflada. Ele se perguntou como seriam os seus cabelos quando secos e penteados. Como seria ela quando estivesse vestindo roupas limpas naquele lindo corpo dourado? Podia vê-la entrando numa sala ou atravessando um vestíbulo em Beau Desert. Ela seria uma linda e encantadora Patinha Feia. Por que nunca procurara endireitar o nariz? Seria uma operação fácil. Depois disso, ela seria a jovem mais bela de Jamaica.

O seu ombro tocou nele. Bond esticou o braço e descansou a mão aberta no colo da jovem. Então Bond sentiu que ela estava enchendo a sua mão com ervilhas.

Subitamente, Bond aspirou o seu cheiro cálido de animal. Foi uma explosão sensual tão aguda que o seu corpo se uniu ao dela, e, por um momento, os seus olhos se fecharam.

Ela deixou escapar um riso curto, no qual havia timidez, satisfação e ternura. E disse, maternalmente: “Lá”, — e empurrou a mão de Bond.

 

CONTINUA

IX - POR UM TRIZ


Dez minutos mais tarde a baía estava vazia e imaculada. Pequenas ondas encrespavam-se preguiçosamente através do espelho das águas, no interior dos recifes e morriam exaustas na areia escura onde as conchas lilás brilhavam como unhas pintadas. O monte de conchas tinha desaparecido e não havia mais vestígios de pegadas. Quarrel cortara galhos de mangues e caminhava de costas procurando apagar as pegadas com aqueles galhos. Onde tinha varrido, a areia apresentava uma limpidez diferente mas não tão diferente a ponto de ser notada de fora do recife. A canoa da jovem tinha sido arrastada para dentro do mar, entre as rochas, e ali ficou coberta com algas e gravetos.

Quarrel tinha voltado ao promontório. Bond e a jovem estavam juntos, sob tufos de folhas, onde Bond dormira, e olhavam silenciosamente para o contorno do promontório, à volta do qual surgira a embarcação.

A lancha estava talvez a uns quinhentos metros de distância. A julgar pelo lento ritmo do motor, Bond concluiu que cada acidente da costa estava sendo cuidadosamente inspecionado para descobrir indícios da presença de estranhos. De qualquer forma, aquilo parecia uma possante embarcação. Talvez uma grande lancha de cabina. Que tripulação teria? Quem estaria no comando? O Dr. No? Improvável. Ele certamente não se daria àquele trabalho de polícia.

Do lado do ocidente apareceu um bando de corvos marinhos, voando baixo sobre o mar, além dos recifes. Bond observou-os. Eram o primeiro indício para ele encontrado daquela colônia de aves, na outra extremidade da ilha. Aquele bando, segundo Pleydell-Smith, seriam batedores à procura do brilho prateado das enchovas, próximas à superfície. Enquanto observava, as aves começaram a dar mergulhos rasos, ferindo o mar superficialmente e levantando respingos de água. Quase que de uma só vez, apareceu outra coluna de aves, vinda do ocidente, e logo outra, e mais outra, fundindo-se todas numa espessa e escura nuvem. Durante minutos, elas sombrearam o céu, e depois atiraram-se à água, cobrindo vários alqueires, piando e lutando, e mergulhando as cabeças no mar, fazendo uma rica colheita naquele sólido campo de anchovas, como piranhas que se banqueteassem num cavalo afogado.

Bond sentiu um suave toque da jovem, que fez um movimento com a cabeça, dizendo:

— As galinhas do chinês estão comendo milho.

Bond observou-lhe o rosto belo e feliz. Ela parecia bastante despreocupada com a chegada daqueles homens. Para ela aquilo era apenas o jogo de esconde-esconde que já tinha praticado antes.

A vibração metálica dos motores diesel estava-se tornando mais forte. A lancha deveria estar justamente por trás do promontório. Bond deu mais uma olhada à volta da tranqüila baía, e depois fixou os olhos através da folhagem e do mato, para os lados dos recifes.

A ponta de uma proa branca apareceu, seguida de uns dez metros de tombadilho, e logo o parabrisas de vidro, uma cabina baixa e uma antena de rádio, e o vulto de um homem à volta do leme. Finalmente, o comprido e achatado fosso da popa, e uma flâmula vermelha pendente, Seria uma lancha-torpedeira convertida, um excedente de guerra do governo britânico?

Os olhos de Bond fixaram-se nos dois homens que estavam em pé na popa. Eram negros de pele pálida, envergando roupas caqui de marinheiro, com largos cinturões e chapéus de palha com longas palas. Estavam um ao lado do outro, equilibrando-se sob a lenta elevação da massa líquida. Um deles segurava um alto-falante e o outro manejava uma metralhadora instalada num tripé. Bond teve a impressão de que era uma metralhadora “Spandau”.

O homem com o alto-falante deixou que este caísse, e ele ficou oscilando numa tira, que lhe dava volta ao pescoço. Apanhou um binóculo e começou a vasculhar metro a metro da praia. Indistintos comentários chegavam aos ouvidos de Bond, por entre o ruído dos motores.

Bond percebeu que os olhos do binóculo começavam pelo promontório e depois percorriam a areia. As lentes detiveram-se entre as rochas e continuaram o seu passeio. Depois, voltaram. O murmúrio do comentário elevou-se ganhando animação. O homem passou o binóculo para o metralhador, que observou rapidamente, devolvendo-o logo ao dono. O observador gritou alguma coisa para o timoneiro. A lancha começou a se aproximar da praia. Agora estavam justamente diante dos recifes, em frente a Bond e à jovem. O observador ergueu novamente o binóculo, apontando-o para as rochas onde se encontrava escondida a canoa da jovem. Novamente a fala excitada chegou aos ouvidos de Bond, por sobre as águas. Mais uma vez o binóculo foi passado ao metralhador, que levou algum tempo observando. Dessa vez, ele fez um sinal de assentimento com a cabeça.

Bond pensou: agora vamos ter coisa; esses homens conhecem o ofício. Em seguida, viu que o metralhador se ocupava em carregar a arma. O duplo estalido metálico chegou aos seus ouvidos, por entre o matraquear do motor.

O observador ergueu o alto-falante e ligou-o. O eco produzido pelo amplificador chegou até Bond, conduzido pela superfície da água. A voz do homem ribombou pela baía:

— Alô, pessoal! Saiam daí e não serão feridos. Era uma voz educada, com sotaque americano.

— Agora, pessoal — trovejou a voz — depressa! Nós vimos quando vocês desembarcaram. Já descobrimos o bote sob os paus. Não somos tolos e não estamos brincando. Saiam daí com os braços levantados e não lhes acontecerá nada!

Não se ouviu nenhuma resposta. Apenas as ondas quebravam docemente na praia. Bond podia ouvir a respiração da jovem. Os guinchos agudos dos corvos marinhos chegavam-lhes de uma milha de distância, sobre o mar. O cano de escapamento dos motores diesel produzia um ruído desigual e gorgulhante, quando o intumescimento do mar cobria o orifício de descarga.

Silenciosamente Bond tocou o braço da jovem e disse-lhe:

— Fique mais perto. Alvo menor.

Ele sentiu o calor da jovem mais próximo de seu corpo, e o rosto de Honey raspou pelo seu braço. Bond sussurrou:

— Enterre-se na areia. Encolha-se. Cada polegada a menos ajudará.

Ele começou a se encolher cuidadosamente na depressão que tinham escavado para se abrigarem, e sentiu que ela fazia o mesmo.

O homem estava erguendo o seu alto-falante. A voz ribombou novamente.

— Muito bem, pessoal! Vocês irão ver que isso aqui não é para brincadeira. — Depois, levantou o polegar. O metralhador experimentou a arma fazendo alguns disparos para a copa dos mangues situados por trás da praia. Bond ouviu o rápido matraquear, tão seu conhecido, e do qual se despedira pela última vez diante das linhas alemãs, nas Ardenas. As balas produziam o velho som de pombos assustados, assobiando sobre sua cabeça. Depois fez-se silêncio.

À distância, Bond via a nuvem negra de corvos marinhos elevar-se, começando a fazer os seus amplos círculos. Seus olhos voltaram para a embarcação. O metralhador estava apalpando o cano da metralhadora, para ver se já estava aquecido. Os dois homens trocaram algumas palavras. O observador apanhou novamente o porta-voz.

— Está bem, pessoal. Vocês foram avisados.

Bond viu o cano da “Spandau” levantar-se e abaixar-se. O homem estava querendo começar com a canoa, entre as rochas. Bond sussurrou para a jovem: — Muito bem, Honey. Agüente firme. Mantenha-se abaixada. Não vai durar muito.

Ele sentiu que a mão da jovem apertava o seu braço, e pensou: “Coitada; ela está metida nisso por minha causa.” Ele inclinou-se para a direita a fim de cobrir a cabeça de Honey e afundou o rosto na areia.

Dessa vez o matraquear foi terrível. Balas ricocheteavam no flanco do promontório. Fragmentos de pedra saltavam para todos os lados, sobre a praia. Outras balas ricocheteavam e iam perder-se dentro da mata. Simultaneamente com todo aquele barulho ouvia-se o martelar contínuo da metralhadora.

Houve uma pausa. Nova carga, pensou Bond. Agora será para nós. Pôde sentir a jovem agarrando-se a ele. Seu corpo tremia todo, encostado ao seu flanco. Bond apanhou uma arma e apertou-a de encontro ao corpo. O matraquear da metralhadora recomeçou. As balas vinham zunindo, da linha de maré, em direção a eles. Ouviu-se uma sucessão de rápidas batidas. O tufo, acima deles, estava sendo reduzido a pedaços. “Zuip Zuip Zuip”. Era como se um chicote de aço estivesse retalhando os arbustos. Pedaços de lenha caíam sobre eles, cobrindo-os lentamente. Bond respirou um ar mais fresco, o que significava que eles agora estavam ao ar-livre. Estariam eles escondidos pelas folhas o pelos destroços? As balas continuaram deslocando-se ao longo da linha da costa. Em menos de um minuto a metralhadora parou.

O silêncio tornou a reinar. A jovem lamuriou-se docemente. Bond fê-la calar-se e apertou-a mais forte.

O alto-falante apregoou:

— Está bem, pessoal. Se vocês ainda têm ouvidos, saibam que voltaremos logo para recolher-lhes os pedaços. Vamos trazer os cães. Até à vista, por enquanto.

O ritmo do motor se acelerou, e através das folhas Bond pôde ver a popa da lancha afundar-se mais na água, enquanto a embarcação rumava rapidamente para oeste. Dentro de minutos já não se ouvia mais nada.

Bond ergueu a cabeça cautelosamente. A baía estava serena, e tudo como antes, exceto o cheiro de cordite e as rochas quebradas.

Bond fez a jovem levantar-se. Havia marcas de lágrimas em seu rosto. Ela olhou-o aterrada, e disse:

— Isso foi terrível. Por que eles o fizeram? Podíamos ter sido mortos.

Bond pensou naquela jovem que sempre abrira caminho, na vida, por si mesma, mas apenas contra a natureza. Conhecia o mundo dos animais, dos insetos e dos peixes, e tirava todo o partido desse conhecimento. Mas aquele era um pequeno mundo, limitado pelo sol, pela lua e pelas estações. Ela não conhecia o grande mundo das salas cheias de fumo, dos corredores de negócios, dos corredores e antecâmaras governamentais, dos cautelosos encontros em bancos de praças — numa palavra: ela nada conhecia da luta pelo poder e pelo dinheiro, travada por homens poderosos.

Bond disse:

— É isso mesmo, Honey, eles não passam de uma quadrilha de bandidos assustados conosco. Podemos enfrentá-los.

Bond colocou o braço à volta de seus ombros e continuou:

— E você esteve maravilhosa, brava como ninguém. Agora, vamos ao encontro de Quarrel para traçar os nossos planos. De qualquer forma, já é tempo de comermos alguma coisa. O que é que você costuma comer nessas expedições?

Deram meia-volta e seguiram pela praia em direção ao promontório. Depois de um minuto, ela disse com voz bem controlada:

— Oh, há uma porção de coisas por aí que se podem comer. Ouriços do mar principalmente, mas também bananas silvestres e outras coisas. Eu como e durmo durante dois dias, antes de vir aqui. Não preciso de nada.

Bond apertou-a mais fortemente, mas deixou cair o braço, assim que Quarrel apareceu ao longe. Quarrel vinha saltando sobre as rochas, e, em determinado momento, parou, olhando para baixo. Bond e Honey se aproximaram dele. A canoa da jovem estava cortada ao meio pelas balas. Honey deixou escapar um grito, olhando desesperadamente para Bond:

— A minha canoa! Como poderei voltar?

— Não se preocupe, senhorita, — disse Quarrel, que sentia a perda de uma canoa mais do que Bond. Imaginou ainda que aquela embarcação representasse quase todo o capital da jovem. — O capitão lhe dará outra. E a senhorita voltará conosco. Temos um magnífico bote, entre os mangues, e ele não foi destruído. Já estive lá espiando.

Quarrel olhou para Bond. Agora, o seu rosto denotava preocupação.

— Mas, capitão, o senhor está vendo o que eu disse dessa gente. Eles são duros e não estão brincando. Esses cães que eles vão trazer são policiais — Pinschers, como eles os chamam. Bastardos. Meus amigos disseram-me que são uma matilha de vinte ou mais. É melhor resolvermos logo.

— Está bem, Quarrel. Mas antes de mais nada precisamos comer alguma coisa. — o diabo que me carregue se eu vou ser aterrorizado e expulso da ilha antes de dar uma olhada nisso. Levaremos Honey conosco. — E, voltando-se para a jovem:

— Está bem, Honey? Nada lhe acontecerá. Depois voltaremos juntos.

A jovem olhou-o em dúvida:

— Acho que não há alternativa. Quero dizer. Gostaria de ir com vocês, se não atrapalhasse. Francamente, não quero comer nada. Mas você me levará de volta, assim que puder? Não quero ver mais aquela gente. Durante quanto tempo vocês vão ficar olhando para essas aves?

Bond respondeu evasivamente:

— Pouco tempo. Eu terei apenas que ver o que lhes aconteceu e porquê. Depois, partiremos.

Olhou para o relógio e anunciou:

— Agora são doze horas. Você nos esperará aqui. Tome um banho ou faça o que quiser. Não ande por aí deixando pegadas. Vamos, Quarrel, é melhor escondermos aquele bote.

Só à uma hora eles estavam prontos. Bond e Quarrel encheram a canoa com pedras e areia, até que ela desapareceu sob a água, entre os mangues. Depois, apagaram as suas pegadas. As balas tinham deixado tantos gravetos na orla da praia, que eles podiam caminhar pisando em folhas e ramos quebrados. Comeram parte de suas rações — os homens com avidez, mas Honey com relutância — e depois, passando sobre as rochas, foram ter à lagoa, próxima da costa. Em seguida foram vadeando aquelas águas, em direção à foz do rio, trezentos metros praia abaixo.

Fazia muito calor. Um vento áspero e quente começou a soprar do nordeste. Quarrel informou que aquele vento soprava diariamente, durante todo o ano, e era vital para a guaneira, pois secava o guano. O revérbero do mar e das brilhantes folhas verdes dos mangues cegava-os. Bond deu-se por feliz, já que tivera o cuidado de acostumar sua pele ao sol.

Na foz do rio encontraram um banco de areia e um extenso pântano, profundo e de águas estagnadas. Os dois homens podiam molhar-se ou tirar as roupas. Bond disse à jovem:

— Honey, não podemos ter cerimônia, nesta situação. Vamos ficar apenas com as camisas por causa do sol. Fique apenas com o que for sensato e caminhe atrás de nós.

Sem esperar pela resposta da jovem, os dois homens tiraram as calças. Quarrel enrolou-as e guardou-as na sacola, juntamente com as provisões e o revólver de Bond. Depois começaram a vadear a lagoa, com Quarrel na frente, logo seguido de Bond, e, finalmente a jovem. A água chegou até a cintura de Bond. Um grande peixe prateado deu um salto perto deles e depois caiu ruidosamente na água. Viram-se pequeninas setas riscarem a superfície, quando peixes menores se afastaram precipitadamente.

A lagoa convergia para uma estreita garganta, por sobre a qual as copas dos mangues se tocavam. Durante algum tempo eles vadearam através de um túnel fresco, e depois o rio se alargou num canal profundo, de águas morosas, que serpeava para a frente, entre as gigantescas raízes de sustentação dos mangues. O fundo era lamacento, e a cada passo os pés se enterravam algumas polegadas no lodo. Pequenos peixes ou camarões se encolhiam ou fugiam de baixo de seus pés, e de quando em quando eles tinham que parar para se desembaraçar das sanguessugas, antes que elas se agarrassem firmemente. A não ser isso, aquela caminhada era fácil, sob o frescor das arvores, e, pelo menos para Bond, era uma bênção estar ao abrigo do sol.

Em breve, à medida que se iam afastando do mar, começaram a sentir um cheiro de ovo podre, o cheiro de hidrogênio sulfurado do gás dos pântanos. Os mosquitos começaram a assaltá-los e pareciam gostar do corpo de Bond. Quarrel disse-lhe que mergulhasse na água do rio, pois os mosquitos gostavam de carne salgada. Bond tirou a camisa e fez o que Quarrel lhe aconselhara. Depois disso sentiu-se melhor e o seu olfato chegou mesmo a se acostumar com aquele repugnante cheiro, a não ser quando os pés de Quarrel desfaziam algum bolsão de gás, no fundo da lama, e uma gigantesca bolha atravessava a água para arrebentar na superfície sob as suas narinas.

Os mangues começaram a se tornar mais escassos e mais esparsos, enquanto o rio se ia alargando aos poucos. Ao mesmo tempo, a água tornava-se mais rasa e o fundo mais firme. Logo chegaram a uma volta e saíram para céu aberto, Honey disse:

— É melhor tomarmos cuidado, agora. Eles poderão ver-nos com muita facilidade. Isso vai assim durante uma milha. Depois o rio torna a se estreitar até o lago. E depois se poderá ver a restinga onde os tratadores das aves viviam.

O grupo deteve-se à sombra do túnel de mangues e olhou para fora. O rio serpeava perigosamente, afastando-se deles, em direção ao centro da ilha. As suas barrancas, bordadas de bambus de pequeno porte e de vegetação rala, dar-lhes-íam cobertura reduzida. Partindo de sua margem ocidental, o terreno elevava-se aos poucos, e logo abruptamente até o monte, situado a três quilômetros de distância, que era a guaneira. Na base daquela montanha, viam-se várias cabanas esparsas. Um ziguezague prateado galgava o flanco da colina, até as tendas — trilhos “Decauville”, pensou Bond, destinados a levarem o guano para o moinho e separa-dor. O cume do monte era branco, como se estivesse coberto de neve. De sua parte mais elevada desprendia-se como que uma bandeira de dó de guano. Bond podia ver os pontos negros que eram os corvos marinhos, sobre o fundo branco. Aquelas aves estavam levantando vôo e pousando como abelhas numa colmeia.

Bond deixou-se ficar de pé e contemplou o brilho distante daquela montanha de excrementos de aves. Então aquilo era o reino do Dr. No! Bond pensou que jamais vira um cenário tão escondido e distante, em toda a sua vida.

Examinou o terreno entre o rio e a montanha. Parecia ser principalmente formado com aquela matéria cinzenta de corais mortos. Não havia dúvida de que uma estrada ou trilha corria da falda da montanha até ao lago central e aos pântanos. Bond notou ainda que toda a vegetação se curvava para oeste, e imaginou viver durante todo um ano com aquele vento escaldante castigando a ilha, sem falar do cheiro do guano e do gás dos pântanos. Nenhuma colônia penal poderia encontrar pior localização do que aquela.

Bond olhou para leste, onde os mangues, na área dos charcos, pareciam oferecer mais hospitalidade. Os três puseram-se a caminhar sobre um sólido tapete verde de vegetação. Sobre suas cabeças, aves revoluteavam agitadas, para depois se, acalmarem, e logo tornarem a agitar-se. Seus pios eram carregados pelo vento crestante.

A voz de Quarrel interrompeu os pensamentos de Bond:

— Eles vêm vindo, capitão!

Bond seguiu o olhar de Quarrel. Um grande caminhão descia celeremente das tendas, com uma nuvem de pó levantando-se das rodas. Bond acompanhou-o durante dez minutos, até que o veículo desapareceu entre os mangues, na margem do rio. Bond pôs-se a escutar e ouviu latidos de cães, que eram trazidos pelo vento.

Quarrel comentou:

— Eles vão descer pelo rio, capitão. Sabem que não nos podemos mover, a não ser rio acima, se não estivermos mortos. Certamente que descerão pelo rio, até a praia, e farão um reconhecimento dos destroços. Depois, com toda a certeza, a lancha virá com um pequeno bote e recolherá os homens e os cães. Pelo menos, isso é o que eu faria no lugar deles.

Honey disse: — Isso é, de fato, o que eles fazem quando me procuram. É isso mesmo. Basta que cortemos um pedaço de bambu, e, quando eles estiverem perto, mergulhemos na água, procurando respirar através do bambu, até que eles se afastem.

Bond sorriu para Quarrel, e disse: — Suponhamos que você corte os bambus, enquanto eu procuro um bom esconderijo entre os mangues.

Quarrel aquiesceu hesitante e começou a subir contra a corrente, em direção ao bambuzal, enquanto Bond se encaminhava para o túnel formado pelos mangues.

Bond evitara olhar para a jovem, mas esta disse-lhe com impaciência:

— Não precisa ter tanto cuidado em não olhar para mim. Não adianta se preocupar com tais coisas, numa hora dessas. Você mesmo o disse, ainda há pouco.

Bond virou-se e olhou para a jovem. Sua camisa esfrangalhada descia até a linha d’água. Podia-se ainda ter um vislumbre de pálidas coxas, serpeando sob a superfície. O lindo rosto sorriu para ele. No meio daqueles mangues, o seu nariz quebrado parecia harmonizar-se com o ambiente, pela sua animalidade.

Bond fitou-a descansadamente e ela compreendeu. Depois, ele deu-lhe as costas e desceu pela correnteza, seguido por ela. Logo encontrou o que procurava, isto é, uma fenda naquela parede formada pelas raízes dos mangues. Bond recomendou: — Não quebre nenhum galho. — Depois, baixou a cabeça e meteu-se por aquela brecha. O canal avançava numa distância de dez metros. A lama sob seus pés tornou-se mais mole e espessa. Chegou a uma sólida e intransponível parede de raízes. Aquela água escura fluía vagarosamente através de uma ampla e tranqüila lagoa. Bond deteve-se. A jovem se aproximou dele.

— Isto é mesmo uma brincadeira de esconde-esconde — disse ela, trêmula.

— É verdade — aquiesceu Bond distraidamente, enquanto pensava em seu revólver. Com efeito, ele preocupava-se em saber com que eficiência a arma operaria depois de um banho no rio — quantos cães e homens ele poderia eliminar, se fossem descobertos. Sentiu um estremecimento de inquietação. Tinha sido uma falta de sorte ter encontrado aquela jovem. Em combate, queira-se ou não, uma mulher representa sempre um coração a mais. O inimigo tem dois alvos enquanto apenas oferece um.

Bond lembrou-se de sua sede. Apanhou na concha da mão um pouco de água e bebeu-a. Aquela água era salobra e tinha gosto de terra. Mas servia. Bond bebeu um pouco mais. A jovem agitou a mão e deteve-o, dizendo:

— Não beba demais. Lave a boca e cuspa. Você pode apanhar febre.

Quarrel assobiou de algum ponto situado na corrente principal. Bond respondeu e foi em direção ao amigo. Depois, voltaram juntos, internando-se no canal. Quarrel borrifou as raízes de mangues com água, nos pontos em que os seus corpos talvez as tivessem raspado. “Para tirar o nosso cheiro”, explicou, laconicamente. Em seguida mostrou o seu feixe de bambus e começou a cortá-los e prepará-los. Enquanto isso, Bond se ocupava com seu revólver e a munição. Os três ficaram imóveis, no meio daquele pântano, de modo a não levantarem mais lama.

A luz do sol filtrava-se através do espesso teto de folhas, os camarões agitavam-se sob os pés daqueles três fugitivos. Gradativamente foi-se avolumando uma insuportável tensão, naquele silêncio escaldante e angustioso.

Foi quase um alívio ouvir-se o ladrar dos cães.


X - O RASTRO DO DRAGÃO


O grupo de investigação descia rapidamente pelo rio. Os dois homens, de calções de banho e altas botas impermeáveis, tinham que correr para acompanhar os cães.

Eram grandes negros chineses, que traziam coldres sustentados ao ombro por meio de talabartes cruzados diante dos peitos suados. De quando em quando trocavam gritos que em geral não passavam de imprecações. À frente deles a matilha de cães Dobermann nadava e debatia-se n’água, latindo excitadamente. Tinham farejado uma pista e procuravam segui-la nervosamente, com as orelhas eretas sobre as cabeças afladas.

— Talvez um maldito crocodilo, — gritou o chefe elevando a voz sobre a algazarra. Empunhava um chicote que de vez em quando fazia estalar no campo de caça.

Os outros homens se encaminhavam para ele. O chefe gritou excitadamente: “Aposto que é o gringo inglês! Tenho certeza de que ele está entre os mangues. Cuidado para que o gringo não nos faça cair numa emboscada.” O homem tirou o revólver do coldre e colocou-o sob o sovaco, sem tirar a mão da coronha.

O grupo agora estava deixando a parte do rio, sob céu aberto, e entrando no túnel formado pelos mangues. O primeiro homem tinha um apito, que se projetava de seu largo rosto como um toco de charuto. Fez soar um agudo silvo. Quando os cães avançaram, ele se deixou ficar com o seu chicote junto do chefe. Os animais continuavam farejando, lamuriando-se porque a corrente os obrigava a desobedecer às ordens recebidas. Os dois homens sacaram os revólveres e vadearam lentamente o rio, na mesma direção da corrente, por entre os caules tortuosos dos mangues.

O homem que ia na frente chegou ao estreito canal que Bond tinha encontrado, agarrou um dos cães pela co-leira e lançou-o ao canal. O animal resfolegou ansiosamente e debateu-se para a frente. Os olhos do homem percorreram as raízes dos mangues, de ambos os lados do canal, para ver se apresentavam algum arranhão.

O cão e o homem chegaram ao pequeno lago situado na extremidade do canal. O homem olhou à sua volta, com ar animado. Tornou a agarrar o cão pela coleira e puxou-o para trás. O animal relutava em abandonar o lugar. Então, o homem feriu a água com o chicote.

O segundo homem estivera esperando à entrada do canal. O primeiro saiu daquele pequeno remanso e sacudiu a cabeça, descendo a corrente, com os cães, que agora se mostravam menos excitados, nadando à frente.

Lentamente, a algazarra da perseguição foi diminuindo e desapareceu.

Por mais cinco minutos nada se mexeu na laguna dos mangues; depois, num dos cantos, entre as raízes, apareceu lentamente para fora d’água um fino periscópio de bambu. O rosto de Bond emergiu logo em seguida, com os cabelos molhados colados à testa, como a cara de um cadáver que boiasse. Em sua mão direita, sob a água, o revólver estava pronto. Bond procurou escutar cuidadosamente. O silêncio era completo, não havia o mínimo ruído. Ou haveria? O que seria aquele suave barulho, como se algo deslizasse entre a água, na corrente principal? Viria alguém, muito serenamente, seguindo na esteira daquela caçada? Bond procurou apalpar à sua volta e tocou delicadamente nos dois corpos que estavam cada um em um de seus flancos, entre as raízes, na orla da laguna. Quando os dois rostos aforaram à superfície, ele colocou o seu dedo indicador sobre os lábios, mas já era tarde. Quarrel tinha tossido e cuspido. Bond fez uma careta e fez um sinal na direção da principal corrente. Todos procuravam escutar. O ruído recomeçou. Alguém estava-se dirigindo para o canal lateral. Os tubos de bambu voltaram para as três bocas e as cabeças tornaram a submergir. Debaixo da água Bond descansou a cabeça na lama, apertou as narinas e os lábios à volta do tubo. Sabia que a laguna já fora examinada uma vez, pois sentira a agitação causada na água pelo cão, que passara nadando! Da primeira vez não tinham sido achados, mas conseguiriam escapar desta? Agora haveria menos possibilidades de que a lama revolta se escoasse para fora da laguna. Se esse batedor visse a mancha mais escura, na água, atiraria ou usaria um punhal? Que armas traria? Bond resolveu não correr riscos. Ao primeiro rumor de movimento, ao seu lado, ele se poria de pé e daria logo ao gatilho, esperando pelo melhor.

Assim ficou ele, submerso, com todos os sentidos atentos. Como era desagradável aquele respirar controlado e insuportáveis as ligeiras mordidelas dos camarões! Por sorte nenhum deles tinha qualquer ferida no corpo, pois do contrário os malditos animalzinhos ter-se-iam atirado contra elas. De qualquer forma, aquela fora uma brilhante idéia da jovem. Sem ela os cães já os teriam alcançado, onde quer que eles se tivessem escondido.

Inesperadamente, Bond encolheu-se. Uma bota de borracha tinha pisado em seu queixo e escorregado. O homem pensaria tratar-se de um galho de árvore? Bond não podia correr aquele risco. Com um só impulso pôs-se de pé, atirando para longe o pedaço de bambu.

Bond teve uma rápida impressão de um gigantesco corpo de pé, quase em cima de si, e duma coronha de rife, em rápido movimento. Levantou o braço esquerdo para proteger a cabeça e recebeu um violento golpe no braço. Ao mesmo tempo, o seu braço direito se esticou para a frente, e, quando o cano tocou no lado direito do peito, sob o mamilo, ele acionou o gatilho.

O coice da arma, quase encostada ao corpo do homem, por pouco não quebrou o pulso de Bond, mas o homem desabou para trás como uma árvore decepada que cai n’água. Antes que o corpo afundasse, Bond ainda pôde perceber-lhe uma grande fenda no flanco. A cabeça, uma cabeça negróide de chinês, veio à superfície, com os olhos revirados para cima e a água a sair de sua boca escancarada e silenciosa. Em seguida a cabeça submergiu novamente e nada mais se pôde ver senão uma lama espumosa e uma mancha vermelha que gradualmente se ia ampliando e lentamente era atraída pela corrente.

Bond se endireitou e voltou-se para o lado. Quarrel e a jovem estavam atrás, em pé, com a água a escorrer-lhes dos corpos. Quarrel tinha um sorriso que ia de orelha a orelha, mas a garota mordia as articulações dos dedos, enquanto seus olhos se escancaravam horrorizados diante da água avermelhada.

Bond disse laconicamente: “Desculpe-me, Honey. Tinha que ser feito. Ele estava bem sobre nós. Venha, vamos indo.” Agarrou-a de qualquer maneira, pelo braço, e arrastou-a para fora da principal corrente, apenas detendo-se quando chegaram a rio aberto, na boca do túnel de mangues.

O cenário estava novamente vazio. Bond olhou para o relógio, e verificou que parara às três horas. Olhou para o sol, já bastante deslocado para o ocidente e concluiu que deveriam ser quatro horas. Quanto ainda teriam que caminhar? Bond inesperadamente sentiu-se cansado. Agora teria de enfrentar a situação. Ainda que o disparo não tivesse sido ouvido — e certamente que ele fora abafado pelo próprio corpo da vítima e pelas árvores — a falta do homem seria sentida quando os outros se reunissem, — se a suposição de Quarrel fosse correta, na embocadura do rio, de onde seriam recolhidos pela lancha. Voltariam eles, subindo o rio, a fim de procurarem o desaparecido? Talvez não. Já estaria muito escuro quando eles tivessem a certeza de que o homem estava realmente desaparecido. O mais certo seria mandarem um grupo de homens pela manhã. Os cães facilmente dariam com o corpo. E o que aconteceria?

A garota puxou-o pela manga e disse com irritação: — Já é tempo de você me dizer o que significa tudo isto! Por que estão todos procurando se matar mutuamente? E quem é você? Não acredito em toda essa história de aves. Ninguém carrega revólveres contra aves.

Bond baixou o olhar, fitando aqueles olhos bem separados e irados. — Desculpe-me, Honey. Receio tê-la arrastado para uma boa encrenca. Eu lhe contarei tudo quando voltarmos à noite para o acampamento. Foi apenas má sorte que você se envolvesse comigo, desta maneira. Tenho uma guerrinha com essa gente. Eles parecem querer matar-me. Agora estou apenas interessado em que todos nós saiamos desta ilha sem que ninguém fique ferido. Já tenho muito do que queria, para da próxima vez voltar pela porta da frente.

— O que você quer dizer? Você é alguma espécie de policial? Está querendo meter esse chinês na cadeia?

— Mais ou menos, — disse Bond, rindo para ela. — Pelo menos você está do lado dos anjos. Agora, diga-me uma coisa. Quanto falta ainda para chegar ao acampamento dos guardas?

— Oh, cerca de uma hora.

— É um lugar bom para nele esconder-se? Eles poderiam achar-nos com facilidade?

— Eles teriam que atravessar o lago ou subir o rio. Tudo estará muito bem se eles não puserem o dragão em nosso encalço. Ele pode muito bem atravessar a água, pois já o vi fazê-lo.

— Bem — disse Bond diplomaticamente — esperemos que ele esteja com a cauda machucada, ou tenha outra coisa qualquer.

A jovem vociferou: — Muito bem, sr. Sabe-Tudo. — E acrescentou irritada: — Espere e verá.

Quarrel deixou o túnel de mangues, agitando ruidosamente a água, tendo na mão o rife do chinês abatido, e dizendo à guisa de quem pede desculpas:

— Não há mal em termos outra arma, chefe. Parece que vamos precisar dela.

Bond apanhou aquela arma. Era uma carabina “Remington”, do exército norte-americano, calibre 300. Não havia dúvida de que aquela gente contava com equipamento apropriado. Bond devolveu a arma a Quarrel, depois de examiná-la.

Quarrel como que fez eco aos seus pensamentos: — Isso é gente astuta, capitão. Aquele homem veio esquadrinhando suavemente, atrás dos outros, a fim de nos surpreender quando deixássemos o esconderijo, depois da passagem dos cães. Esse tal de doutor com certeza é um sujeito muito esperto.

Bond disse pensativamente: — É, ele deve ser um homem incomum. — Depois espantou os pensamentos: — Agora, vamos tocando para a frente. Honey diz que ainda precisamos de uma hora para chegarmos ao acampamento. É melhor irmos pela margem esquerda, de modo a ficarmos ao abrigo da colina. Pelo que já pudemos ver, eles têm lunetas assestadas sobre o rio.

Bond entregou a sua arma a Quarrel, que a guardou na mochila molhada. Puseram-se novamente em marcha, com Quarrel à frente, e Bond e a jovem andando juntos, atrás.

Aproveitavam algumas sombras das árvores e bambus da margem ocidental, mas deviam agora suportar toda a intensidade de um vento crestante. Borrifaram braços e corpos com água, a fim de refrescar as queimaduras. Os olhos de Bond estavam injetados por aquele insuportável revérbero e o seu braço doía intoleràvelmente no ponto em que fora atingido pela coronha. E ele não teria à sua espera o seu jantar de pão embebido, queijo e fiambre. Quanto tempo poderiam dormir? Não dormira muito na véspera, e parece que não iria ter melhor ração de sono. E a garota? Ela nada dormira. Ele e Quarrel teriam que se revezar, em quartos de vigilância. E logo chegaria o dia seguinte, quando procurariam ganhar novamente os mangues e vencer lentamente a distância que os separava de sua canoa, através da extremidade oriental da ilha. As coisas correriam daquela forma, segundo era de esperar. Então, tratariam de se fazerem ao mar na noite seguinte. Bond pensou em como haveria de abrir caminho por entre sólidos mangues, na distância de oito quilômetros. Que perspectiva! Continuou se arrastando para a frente, pensando nas “férias ao sol dos trópicos” de M. Muito gostaria que M tivesse que partilhar com ele aquelas “férias”.

O rio foi-se estreitando até que se reduziu a uma simples corrente entre as moitas de bambu. Depois se ampliava num estuário baixo e pantanoso, além do qual as cinco milhas quadradas de lago raso davam vazão para o outro lado da ilha, perdendo-se num agitado espelho líquido azul-cinza. Mais para além estava a brilhante pista aérea e o reflexo da luz solar sobre um único hangar. A jovem disse-lhe que se mantivesse na direção leste, e eles foram lentamente avançando, protegidos pela orla da mata.

Inesperadamente, Quarrel deteve-se, com o rosto esticado como o focinho de um cão para o terreno pantanoso à sua frente. Dois profundos sulcos tinham sido escavados na lama, com um sulco mais raso no centro. Eram a trilha de algo que tinha descido da colina e atravessado o pântano em direção ao lago.

A jovem disse com indiferença: — Por aqui já passou o dragão.

Quarrel arregalou os olhos para ela.

Bond caminhou lentamente pela trilha. As marcas exteriores eram bastante lisas, trazendo a marca de uma linha curva. Poderiam ter sido causadas por rodas, mas eram enormes, pelo menos com sessenta centímetros de largura. A trilha central tinha a mesma forma, mas com apenas três polegadas de largura, ou seja a largura de um pneumático de automóvel. As trilhas não apresentavam nenhum indício de pegadas e eram completamente frescas. Estendiam-se em linha reta, e os arbustos por elas atravessados tinham sido derrubados e esmagados no chão, como se um tanque de guerra tivesse passado por ali. Bond não podia imaginar que espécie de veículo seria aquele. A jovem tocou-o com o cotovelo e murmurou: — Eu lhe tinha dito. Ele apenas pôde responder pensativamente: — Bom, Honey, se não é o dragão, é algo que nunca vi antes.

Mais adiante, ela puxou-o ansiosamente pela manga. “Veja”, sussurrou, e apontou para a frente, indicando um grande cerrado de árvores, ao lado do qual passavam as trilhas. O cerrado estava sem folhas, enegrecido. Ao centro viam-se os restos dos ninhos de pássaros carbonizados. — Ele respirou sobre as árvores, — disse a garota nervosamente.

Bond aproximou-se das árvores e examinou-as. — Certamente que o fez — admitiu. Por que aquele cerrado, em especial, tinha sido queimado? Era muito estranho aquilo.

As trilhas desciam em direção ao lago e desapareciam na água. Bond teria gostado de segui-las, mas não poderia abandonar a cobertura das árvores. Assim, continuaram a marcha, cada um entregue aos próprios pensamentos.

Lentamente o dia começou a morrer, por trás da colina, e por fim a garota apontou para a frente, através dos arbustos; Bond pôde ver uma comprida restinga internando-se no lago. Estava coberta por densas moitas de arbustos e podiam-se ver, a cem metros da praia, os restos de uma cabana incendiada. Aquele parecia um lugar razoavelmente atraente para se passar a noite, e era bem protegido dos dois lados, pela água.

O vento tinha declinado e a água se apresentava suave e convidativa. Que prazer não seria tirarem as suas imundas camisas para um banho no lago e, depois de horas de patinhação através da lama e do lodo do pântano, poderem descansar naquela areia dura e seca!

O sol brilhou com reflexos amarelecidos e desapareceu por trás da montanha. Ainda era dia na extremidade oriental da ilha, mas a sombra negra do monte avançava vagarosamente sobre o lago e acabaria por expulsar completamente os últimos vestígios do sol. Os sapos começaram a coaxar mais barulhentamente que em Jamaica, até que a noite ficou cheia daquele áspero ruído. Do outro lado do lago um grande sapo macho começou a soar o seu tambor. Aquele estranho som era algo entre um tom-tom e um rosnado de macaco. Enviava mensagens que subitamente se interrompiam e logo silenciaram. Com certeza encontrara o que procurava.

Chegaram à garganta da restinga e seguiram por um estreito caminho, até a clareira que encerrava os escombros da cabana de sapé. As grandes e misteriosas trilhas saíam da água, de ambos os lados, atravessavam a clareira e os cerrados próximos. Muitos dos arbustos estavam queimados ou crestados. Podiam-se ver os restos de um fogão feito de pedaços de coral, e algumas panelas e latas vazias. Examinaram os destroços, e Quarrel desenterrou um par de latas intactas de costeletas de porco e ervilhas marca “Heinz”. A jovem encontrou ainda um saco de dormir muito amarrotado, enquanto Bond achou uma pequena bolsa de couro com cinco notas de um dólar, três libras de Jamaica e algumas moedas de prata. Os dois homens certamente tinham abandonado aquele lugar a toda pressa.

Prosseguiram mais para diante, até uma pequena clareira arenosa. Através dos arbustos podiam ver luzes cintilando sobre a água e provenientes da montanha, talvez a mais de três quilômetros de distância. A leste nada mais havia senão. os suaves reflexos escuros da água sob o céu sombrio.

Bond comentou: — Enquanto não acendermos nada, estaremos bem aqui. A primeira coisa a fazer é tomarmos um bom banho, Honey. Você pode ficar com o resto da restinga, que nós ficaremos com a sua garganta. Dentro de meia hora espero vê-la para o jantar.

A garota riu: — Você virá a rigor?

— Sem dúvida — respondeu Bond — e de calças.

Quarrel observou: — Capitão, enquanto ainda há um pouco de luz, vou abrir essas latas e preparar as coisas para a noite. — Remexeu dentro da mochila. — Aqui estão as suas calças e o seu revólver. O pão talvez não esteja muito bom, mas está apenas molhado. Pode-se comê-lo bem, e amanhã estará seco. O melhor talvez fosse comermos das latas esta noite, guardando o queijo e as costeletas. As latas são pesadas e amanhã teremos que andar muito.

Bond respondeu: — Muito bem, Quarrel. Deixarei o cardápio aos seus cuidados.

Em seguida, apanhou o revólver e as calças úmidas e desceu para a água rasa. A água estava acariciante, mas desagradavelmente quente. Bond escavou punhados de areia, com as mãos, e esfregou o corpo com ela, utilizando-a como sabonete. Depois deixou-se ficar gostosamente em meio àquele silêncio e àquela solidão.

As estrelas começaram a brilhar palidamente, as estrelas que os tinham trazido à ilha na noite passada; as estrelas que os tirariam dali no dia seguinte. Que viagem! Mas pelo menos já tinha dado os seus resultados. Agora tinha provas bastantes, e testemunhas, para ir ter com o governador e conseguir dele um inquérito completo acerca das atividades do Dr. No. Ninguém lança mão de metralhadoras contra pessoas, mesmo contra intrusos. E, da mesma forma, o que seria aquilo do Dr. No, que invadira a propriedade da Sociedade Audubon, aquilo que chegara a destruir essa propriedade e provavelmente matara um de seus empregados? Isto também teria que ser investigado. E o que haveria ele de encontrar quando voltasse pela porta da frente, talvez a bordo de um destróier, e com um destacamento de fuzileiros navais? Qual seria a resposta para o mistério do Dr. No? O que estaria ele escondendo? Por que aquele segredo era tão importante, que seria capaz de matar repetidas vezes, para preservá-lo? E quem era esse Dr. No?

Bond ouviu o barulho de alguém espojando-se na água. Pensou na garota. E quem, afinal, era Honeychile Ri-der? Aquilo pelo menos, pensou ele ao sair da água, era algo que deveria esclarecer antes do amanhecer.

Bond enfiou as suas pegajosas calças, sentou-se na areia e desmontou o revólver. Fê-lo pelo tato, utilizando-se de sua camisa para secar cada peça e cada cartucho. Depois, tornou a montar a arma e pressionou o gatilho, fazendo com que o tambor vazio desse uma volta completa. O som era satisfatório. Seriam precisos alguns dias para que o revólver começasse a enferrujar. Carregou-o e meteu-o no coldre, para dentro do cós da calça. Depois, levantou-se e voltou para a clareira.

A sombra de Honey chegou até ele, e a sua voz se fez ouvir: — Venha; estamos morrendo de fome. Apanhei uma das panelas, limpei-a e pusemos as ervilhas nela. Temos pão também. E eu não sinto escrúpulos de comer a sua ração, porque você me fez trabalhar muito mais do que se eu estivesse sozinha. Agora, estique a mão.

Bond achou graça no tom autoritário que havia em sua voz. Ele apenas podia perceber a sua silhueta, no escuro. Sua cabeça parecia mais aflada. Ele se perguntou como seriam os seus cabelos quando secos e penteados. Como seria ela quando estivesse vestindo roupas limpas naquele lindo corpo dourado? Podia vê-la entrando numa sala ou atravessando um vestíbulo em Beau Desert. Ela seria uma linda e encantadora Patinha Feia. Por que nunca procurara endireitar o nariz? Seria uma operação fácil. Depois disso, ela seria a jovem mais bela de Jamaica.

O seu ombro tocou nele. Bond esticou o braço e descansou a mão aberta no colo da jovem. Então Bond sentiu que ela estava enchendo a sua mão com ervilhas.

Subitamente, Bond aspirou o seu cheiro cálido de animal. Foi uma explosão sensual tão aguda que o seu corpo se uniu ao dela, e, por um momento, os seus olhos se fecharam.

Ela deixou escapar um riso curto, no qual havia timidez, satisfação e ternura. E disse, maternalmente: “Lá”, — e empurrou a mão de Bond.

 

CONTINUA

IX - POR UM TRIZ


Dez minutos mais tarde a baía estava vazia e imaculada. Pequenas ondas encrespavam-se preguiçosamente através do espelho das águas, no interior dos recifes e morriam exaustas na areia escura onde as conchas lilás brilhavam como unhas pintadas. O monte de conchas tinha desaparecido e não havia mais vestígios de pegadas. Quarrel cortara galhos de mangues e caminhava de costas procurando apagar as pegadas com aqueles galhos. Onde tinha varrido, a areia apresentava uma limpidez diferente mas não tão diferente a ponto de ser notada de fora do recife. A canoa da jovem tinha sido arrastada para dentro do mar, entre as rochas, e ali ficou coberta com algas e gravetos.

Quarrel tinha voltado ao promontório. Bond e a jovem estavam juntos, sob tufos de folhas, onde Bond dormira, e olhavam silenciosamente para o contorno do promontório, à volta do qual surgira a embarcação.

A lancha estava talvez a uns quinhentos metros de distância. A julgar pelo lento ritmo do motor, Bond concluiu que cada acidente da costa estava sendo cuidadosamente inspecionado para descobrir indícios da presença de estranhos. De qualquer forma, aquilo parecia uma possante embarcação. Talvez uma grande lancha de cabina. Que tripulação teria? Quem estaria no comando? O Dr. No? Improvável. Ele certamente não se daria àquele trabalho de polícia.

Do lado do ocidente apareceu um bando de corvos marinhos, voando baixo sobre o mar, além dos recifes. Bond observou-os. Eram o primeiro indício para ele encontrado daquela colônia de aves, na outra extremidade da ilha. Aquele bando, segundo Pleydell-Smith, seriam batedores à procura do brilho prateado das enchovas, próximas à superfície. Enquanto observava, as aves começaram a dar mergulhos rasos, ferindo o mar superficialmente e levantando respingos de água. Quase que de uma só vez, apareceu outra coluna de aves, vinda do ocidente, e logo outra, e mais outra, fundindo-se todas numa espessa e escura nuvem. Durante minutos, elas sombrearam o céu, e depois atiraram-se à água, cobrindo vários alqueires, piando e lutando, e mergulhando as cabeças no mar, fazendo uma rica colheita naquele sólido campo de anchovas, como piranhas que se banqueteassem num cavalo afogado.

Bond sentiu um suave toque da jovem, que fez um movimento com a cabeça, dizendo:

— As galinhas do chinês estão comendo milho.

Bond observou-lhe o rosto belo e feliz. Ela parecia bastante despreocupada com a chegada daqueles homens. Para ela aquilo era apenas o jogo de esconde-esconde que já tinha praticado antes.

A vibração metálica dos motores diesel estava-se tornando mais forte. A lancha deveria estar justamente por trás do promontório. Bond deu mais uma olhada à volta da tranqüila baía, e depois fixou os olhos através da folhagem e do mato, para os lados dos recifes.

A ponta de uma proa branca apareceu, seguida de uns dez metros de tombadilho, e logo o parabrisas de vidro, uma cabina baixa e uma antena de rádio, e o vulto de um homem à volta do leme. Finalmente, o comprido e achatado fosso da popa, e uma flâmula vermelha pendente, Seria uma lancha-torpedeira convertida, um excedente de guerra do governo britânico?

Os olhos de Bond fixaram-se nos dois homens que estavam em pé na popa. Eram negros de pele pálida, envergando roupas caqui de marinheiro, com largos cinturões e chapéus de palha com longas palas. Estavam um ao lado do outro, equilibrando-se sob a lenta elevação da massa líquida. Um deles segurava um alto-falante e o outro manejava uma metralhadora instalada num tripé. Bond teve a impressão de que era uma metralhadora “Spandau”.

O homem com o alto-falante deixou que este caísse, e ele ficou oscilando numa tira, que lhe dava volta ao pescoço. Apanhou um binóculo e começou a vasculhar metro a metro da praia. Indistintos comentários chegavam aos ouvidos de Bond, por entre o ruído dos motores.

Bond percebeu que os olhos do binóculo começavam pelo promontório e depois percorriam a areia. As lentes detiveram-se entre as rochas e continuaram o seu passeio. Depois, voltaram. O murmúrio do comentário elevou-se ganhando animação. O homem passou o binóculo para o metralhador, que observou rapidamente, devolvendo-o logo ao dono. O observador gritou alguma coisa para o timoneiro. A lancha começou a se aproximar da praia. Agora estavam justamente diante dos recifes, em frente a Bond e à jovem. O observador ergueu novamente o binóculo, apontando-o para as rochas onde se encontrava escondida a canoa da jovem. Novamente a fala excitada chegou aos ouvidos de Bond, por sobre as águas. Mais uma vez o binóculo foi passado ao metralhador, que levou algum tempo observando. Dessa vez, ele fez um sinal de assentimento com a cabeça.

Bond pensou: agora vamos ter coisa; esses homens conhecem o ofício. Em seguida, viu que o metralhador se ocupava em carregar a arma. O duplo estalido metálico chegou aos seus ouvidos, por entre o matraquear do motor.

O observador ergueu o alto-falante e ligou-o. O eco produzido pelo amplificador chegou até Bond, conduzido pela superfície da água. A voz do homem ribombou pela baía:

— Alô, pessoal! Saiam daí e não serão feridos. Era uma voz educada, com sotaque americano.

— Agora, pessoal — trovejou a voz — depressa! Nós vimos quando vocês desembarcaram. Já descobrimos o bote sob os paus. Não somos tolos e não estamos brincando. Saiam daí com os braços levantados e não lhes acontecerá nada!

Não se ouviu nenhuma resposta. Apenas as ondas quebravam docemente na praia. Bond podia ouvir a respiração da jovem. Os guinchos agudos dos corvos marinhos chegavam-lhes de uma milha de distância, sobre o mar. O cano de escapamento dos motores diesel produzia um ruído desigual e gorgulhante, quando o intumescimento do mar cobria o orifício de descarga.

Silenciosamente Bond tocou o braço da jovem e disse-lhe:

— Fique mais perto. Alvo menor.

Ele sentiu o calor da jovem mais próximo de seu corpo, e o rosto de Honey raspou pelo seu braço. Bond sussurrou:

— Enterre-se na areia. Encolha-se. Cada polegada a menos ajudará.

Ele começou a se encolher cuidadosamente na depressão que tinham escavado para se abrigarem, e sentiu que ela fazia o mesmo.

O homem estava erguendo o seu alto-falante. A voz ribombou novamente.

— Muito bem, pessoal! Vocês irão ver que isso aqui não é para brincadeira. — Depois, levantou o polegar. O metralhador experimentou a arma fazendo alguns disparos para a copa dos mangues situados por trás da praia. Bond ouviu o rápido matraquear, tão seu conhecido, e do qual se despedira pela última vez diante das linhas alemãs, nas Ardenas. As balas produziam o velho som de pombos assustados, assobiando sobre sua cabeça. Depois fez-se silêncio.

À distância, Bond via a nuvem negra de corvos marinhos elevar-se, começando a fazer os seus amplos círculos. Seus olhos voltaram para a embarcação. O metralhador estava apalpando o cano da metralhadora, para ver se já estava aquecido. Os dois homens trocaram algumas palavras. O observador apanhou novamente o porta-voz.

— Está bem, pessoal. Vocês foram avisados.

Bond viu o cano da “Spandau” levantar-se e abaixar-se. O homem estava querendo começar com a canoa, entre as rochas. Bond sussurrou para a jovem: — Muito bem, Honey. Agüente firme. Mantenha-se abaixada. Não vai durar muito.

Ele sentiu que a mão da jovem apertava o seu braço, e pensou: “Coitada; ela está metida nisso por minha causa.” Ele inclinou-se para a direita a fim de cobrir a cabeça de Honey e afundou o rosto na areia.

Dessa vez o matraquear foi terrível. Balas ricocheteavam no flanco do promontório. Fragmentos de pedra saltavam para todos os lados, sobre a praia. Outras balas ricocheteavam e iam perder-se dentro da mata. Simultaneamente com todo aquele barulho ouvia-se o martelar contínuo da metralhadora.

Houve uma pausa. Nova carga, pensou Bond. Agora será para nós. Pôde sentir a jovem agarrando-se a ele. Seu corpo tremia todo, encostado ao seu flanco. Bond apanhou uma arma e apertou-a de encontro ao corpo. O matraquear da metralhadora recomeçou. As balas vinham zunindo, da linha de maré, em direção a eles. Ouviu-se uma sucessão de rápidas batidas. O tufo, acima deles, estava sendo reduzido a pedaços. “Zuip Zuip Zuip”. Era como se um chicote de aço estivesse retalhando os arbustos. Pedaços de lenha caíam sobre eles, cobrindo-os lentamente. Bond respirou um ar mais fresco, o que significava que eles agora estavam ao ar-livre. Estariam eles escondidos pelas folhas o pelos destroços? As balas continuaram deslocando-se ao longo da linha da costa. Em menos de um minuto a metralhadora parou.

O silêncio tornou a reinar. A jovem lamuriou-se docemente. Bond fê-la calar-se e apertou-a mais forte.

O alto-falante apregoou:

— Está bem, pessoal. Se vocês ainda têm ouvidos, saibam que voltaremos logo para recolher-lhes os pedaços. Vamos trazer os cães. Até à vista, por enquanto.

O ritmo do motor se acelerou, e através das folhas Bond pôde ver a popa da lancha afundar-se mais na água, enquanto a embarcação rumava rapidamente para oeste. Dentro de minutos já não se ouvia mais nada.

Bond ergueu a cabeça cautelosamente. A baía estava serena, e tudo como antes, exceto o cheiro de cordite e as rochas quebradas.

Bond fez a jovem levantar-se. Havia marcas de lágrimas em seu rosto. Ela olhou-o aterrada, e disse:

— Isso foi terrível. Por que eles o fizeram? Podíamos ter sido mortos.

Bond pensou naquela jovem que sempre abrira caminho, na vida, por si mesma, mas apenas contra a natureza. Conhecia o mundo dos animais, dos insetos e dos peixes, e tirava todo o partido desse conhecimento. Mas aquele era um pequeno mundo, limitado pelo sol, pela lua e pelas estações. Ela não conhecia o grande mundo das salas cheias de fumo, dos corredores de negócios, dos corredores e antecâmaras governamentais, dos cautelosos encontros em bancos de praças — numa palavra: ela nada conhecia da luta pelo poder e pelo dinheiro, travada por homens poderosos.

Bond disse:

— É isso mesmo, Honey, eles não passam de uma quadrilha de bandidos assustados conosco. Podemos enfrentá-los.

Bond colocou o braço à volta de seus ombros e continuou:

— E você esteve maravilhosa, brava como ninguém. Agora, vamos ao encontro de Quarrel para traçar os nossos planos. De qualquer forma, já é tempo de comermos alguma coisa. O que é que você costuma comer nessas expedições?

Deram meia-volta e seguiram pela praia em direção ao promontório. Depois de um minuto, ela disse com voz bem controlada:

— Oh, há uma porção de coisas por aí que se podem comer. Ouriços do mar principalmente, mas também bananas silvestres e outras coisas. Eu como e durmo durante dois dias, antes de vir aqui. Não preciso de nada.

Bond apertou-a mais fortemente, mas deixou cair o braço, assim que Quarrel apareceu ao longe. Quarrel vinha saltando sobre as rochas, e, em determinado momento, parou, olhando para baixo. Bond e Honey se aproximaram dele. A canoa da jovem estava cortada ao meio pelas balas. Honey deixou escapar um grito, olhando desesperadamente para Bond:

— A minha canoa! Como poderei voltar?

— Não se preocupe, senhorita, — disse Quarrel, que sentia a perda de uma canoa mais do que Bond. Imaginou ainda que aquela embarcação representasse quase todo o capital da jovem. — O capitão lhe dará outra. E a senhorita voltará conosco. Temos um magnífico bote, entre os mangues, e ele não foi destruído. Já estive lá espiando.

Quarrel olhou para Bond. Agora, o seu rosto denotava preocupação.

— Mas, capitão, o senhor está vendo o que eu disse dessa gente. Eles são duros e não estão brincando. Esses cães que eles vão trazer são policiais — Pinschers, como eles os chamam. Bastardos. Meus amigos disseram-me que são uma matilha de vinte ou mais. É melhor resolvermos logo.

— Está bem, Quarrel. Mas antes de mais nada precisamos comer alguma coisa. — o diabo que me carregue se eu vou ser aterrorizado e expulso da ilha antes de dar uma olhada nisso. Levaremos Honey conosco. — E, voltando-se para a jovem:

— Está bem, Honey? Nada lhe acontecerá. Depois voltaremos juntos.

A jovem olhou-o em dúvida:

— Acho que não há alternativa. Quero dizer. Gostaria de ir com vocês, se não atrapalhasse. Francamente, não quero comer nada. Mas você me levará de volta, assim que puder? Não quero ver mais aquela gente. Durante quanto tempo vocês vão ficar olhando para essas aves?

Bond respondeu evasivamente:

— Pouco tempo. Eu terei apenas que ver o que lhes aconteceu e porquê. Depois, partiremos.

Olhou para o relógio e anunciou:

— Agora são doze horas. Você nos esperará aqui. Tome um banho ou faça o que quiser. Não ande por aí deixando pegadas. Vamos, Quarrel, é melhor escondermos aquele bote.

Só à uma hora eles estavam prontos. Bond e Quarrel encheram a canoa com pedras e areia, até que ela desapareceu sob a água, entre os mangues. Depois, apagaram as suas pegadas. As balas tinham deixado tantos gravetos na orla da praia, que eles podiam caminhar pisando em folhas e ramos quebrados. Comeram parte de suas rações — os homens com avidez, mas Honey com relutância — e depois, passando sobre as rochas, foram ter à lagoa, próxima da costa. Em seguida foram vadeando aquelas águas, em direção à foz do rio, trezentos metros praia abaixo.

Fazia muito calor. Um vento áspero e quente começou a soprar do nordeste. Quarrel informou que aquele vento soprava diariamente, durante todo o ano, e era vital para a guaneira, pois secava o guano. O revérbero do mar e das brilhantes folhas verdes dos mangues cegava-os. Bond deu-se por feliz, já que tivera o cuidado de acostumar sua pele ao sol.

Na foz do rio encontraram um banco de areia e um extenso pântano, profundo e de águas estagnadas. Os dois homens podiam molhar-se ou tirar as roupas. Bond disse à jovem:

— Honey, não podemos ter cerimônia, nesta situação. Vamos ficar apenas com as camisas por causa do sol. Fique apenas com o que for sensato e caminhe atrás de nós.

Sem esperar pela resposta da jovem, os dois homens tiraram as calças. Quarrel enrolou-as e guardou-as na sacola, juntamente com as provisões e o revólver de Bond. Depois começaram a vadear a lagoa, com Quarrel na frente, logo seguido de Bond, e, finalmente a jovem. A água chegou até a cintura de Bond. Um grande peixe prateado deu um salto perto deles e depois caiu ruidosamente na água. Viram-se pequeninas setas riscarem a superfície, quando peixes menores se afastaram precipitadamente.

A lagoa convergia para uma estreita garganta, por sobre a qual as copas dos mangues se tocavam. Durante algum tempo eles vadearam através de um túnel fresco, e depois o rio se alargou num canal profundo, de águas morosas, que serpeava para a frente, entre as gigantescas raízes de sustentação dos mangues. O fundo era lamacento, e a cada passo os pés se enterravam algumas polegadas no lodo. Pequenos peixes ou camarões se encolhiam ou fugiam de baixo de seus pés, e de quando em quando eles tinham que parar para se desembaraçar das sanguessugas, antes que elas se agarrassem firmemente. A não ser isso, aquela caminhada era fácil, sob o frescor das arvores, e, pelo menos para Bond, era uma bênção estar ao abrigo do sol.

Em breve, à medida que se iam afastando do mar, começaram a sentir um cheiro de ovo podre, o cheiro de hidrogênio sulfurado do gás dos pântanos. Os mosquitos começaram a assaltá-los e pareciam gostar do corpo de Bond. Quarrel disse-lhe que mergulhasse na água do rio, pois os mosquitos gostavam de carne salgada. Bond tirou a camisa e fez o que Quarrel lhe aconselhara. Depois disso sentiu-se melhor e o seu olfato chegou mesmo a se acostumar com aquele repugnante cheiro, a não ser quando os pés de Quarrel desfaziam algum bolsão de gás, no fundo da lama, e uma gigantesca bolha atravessava a água para arrebentar na superfície sob as suas narinas.

Os mangues começaram a se tornar mais escassos e mais esparsos, enquanto o rio se ia alargando aos poucos. Ao mesmo tempo, a água tornava-se mais rasa e o fundo mais firme. Logo chegaram a uma volta e saíram para céu aberto, Honey disse:

— É melhor tomarmos cuidado, agora. Eles poderão ver-nos com muita facilidade. Isso vai assim durante uma milha. Depois o rio torna a se estreitar até o lago. E depois se poderá ver a restinga onde os tratadores das aves viviam.

O grupo deteve-se à sombra do túnel de mangues e olhou para fora. O rio serpeava perigosamente, afastando-se deles, em direção ao centro da ilha. As suas barrancas, bordadas de bambus de pequeno porte e de vegetação rala, dar-lhes-íam cobertura reduzida. Partindo de sua margem ocidental, o terreno elevava-se aos poucos, e logo abruptamente até o monte, situado a três quilômetros de distância, que era a guaneira. Na base daquela montanha, viam-se várias cabanas esparsas. Um ziguezague prateado galgava o flanco da colina, até as tendas — trilhos “Decauville”, pensou Bond, destinados a levarem o guano para o moinho e separa-dor. O cume do monte era branco, como se estivesse coberto de neve. De sua parte mais elevada desprendia-se como que uma bandeira de dó de guano. Bond podia ver os pontos negros que eram os corvos marinhos, sobre o fundo branco. Aquelas aves estavam levantando vôo e pousando como abelhas numa colmeia.

Bond deixou-se ficar de pé e contemplou o brilho distante daquela montanha de excrementos de aves. Então aquilo era o reino do Dr. No! Bond pensou que jamais vira um cenário tão escondido e distante, em toda a sua vida.

Examinou o terreno entre o rio e a montanha. Parecia ser principalmente formado com aquela matéria cinzenta de corais mortos. Não havia dúvida de que uma estrada ou trilha corria da falda da montanha até ao lago central e aos pântanos. Bond notou ainda que toda a vegetação se curvava para oeste, e imaginou viver durante todo um ano com aquele vento escaldante castigando a ilha, sem falar do cheiro do guano e do gás dos pântanos. Nenhuma colônia penal poderia encontrar pior localização do que aquela.

Bond olhou para leste, onde os mangues, na área dos charcos, pareciam oferecer mais hospitalidade. Os três puseram-se a caminhar sobre um sólido tapete verde de vegetação. Sobre suas cabeças, aves revoluteavam agitadas, para depois se, acalmarem, e logo tornarem a agitar-se. Seus pios eram carregados pelo vento crestante.

A voz de Quarrel interrompeu os pensamentos de Bond:

— Eles vêm vindo, capitão!

Bond seguiu o olhar de Quarrel. Um grande caminhão descia celeremente das tendas, com uma nuvem de pó levantando-se das rodas. Bond acompanhou-o durante dez minutos, até que o veículo desapareceu entre os mangues, na margem do rio. Bond pôs-se a escutar e ouviu latidos de cães, que eram trazidos pelo vento.

Quarrel comentou:

— Eles vão descer pelo rio, capitão. Sabem que não nos podemos mover, a não ser rio acima, se não estivermos mortos. Certamente que descerão pelo rio, até a praia, e farão um reconhecimento dos destroços. Depois, com toda a certeza, a lancha virá com um pequeno bote e recolherá os homens e os cães. Pelo menos, isso é o que eu faria no lugar deles.

Honey disse: — Isso é, de fato, o que eles fazem quando me procuram. É isso mesmo. Basta que cortemos um pedaço de bambu, e, quando eles estiverem perto, mergulhemos na água, procurando respirar através do bambu, até que eles se afastem.

Bond sorriu para Quarrel, e disse: — Suponhamos que você corte os bambus, enquanto eu procuro um bom esconderijo entre os mangues.

Quarrel aquiesceu hesitante e começou a subir contra a corrente, em direção ao bambuzal, enquanto Bond se encaminhava para o túnel formado pelos mangues.

Bond evitara olhar para a jovem, mas esta disse-lhe com impaciência:

— Não precisa ter tanto cuidado em não olhar para mim. Não adianta se preocupar com tais coisas, numa hora dessas. Você mesmo o disse, ainda há pouco.

Bond virou-se e olhou para a jovem. Sua camisa esfrangalhada descia até a linha d’água. Podia-se ainda ter um vislumbre de pálidas coxas, serpeando sob a superfície. O lindo rosto sorriu para ele. No meio daqueles mangues, o seu nariz quebrado parecia harmonizar-se com o ambiente, pela sua animalidade.

Bond fitou-a descansadamente e ela compreendeu. Depois, ele deu-lhe as costas e desceu pela correnteza, seguido por ela. Logo encontrou o que procurava, isto é, uma fenda naquela parede formada pelas raízes dos mangues. Bond recomendou: — Não quebre nenhum galho. — Depois, baixou a cabeça e meteu-se por aquela brecha. O canal avançava numa distância de dez metros. A lama sob seus pés tornou-se mais mole e espessa. Chegou a uma sólida e intransponível parede de raízes. Aquela água escura fluía vagarosamente através de uma ampla e tranqüila lagoa. Bond deteve-se. A jovem se aproximou dele.

— Isto é mesmo uma brincadeira de esconde-esconde — disse ela, trêmula.

— É verdade — aquiesceu Bond distraidamente, enquanto pensava em seu revólver. Com efeito, ele preocupava-se em saber com que eficiência a arma operaria depois de um banho no rio — quantos cães e homens ele poderia eliminar, se fossem descobertos. Sentiu um estremecimento de inquietação. Tinha sido uma falta de sorte ter encontrado aquela jovem. Em combate, queira-se ou não, uma mulher representa sempre um coração a mais. O inimigo tem dois alvos enquanto apenas oferece um.

Bond lembrou-se de sua sede. Apanhou na concha da mão um pouco de água e bebeu-a. Aquela água era salobra e tinha gosto de terra. Mas servia. Bond bebeu um pouco mais. A jovem agitou a mão e deteve-o, dizendo:

— Não beba demais. Lave a boca e cuspa. Você pode apanhar febre.

Quarrel assobiou de algum ponto situado na corrente principal. Bond respondeu e foi em direção ao amigo. Depois, voltaram juntos, internando-se no canal. Quarrel borrifou as raízes de mangues com água, nos pontos em que os seus corpos talvez as tivessem raspado. “Para tirar o nosso cheiro”, explicou, laconicamente. Em seguida mostrou o seu feixe de bambus e começou a cortá-los e prepará-los. Enquanto isso, Bond se ocupava com seu revólver e a munição. Os três ficaram imóveis, no meio daquele pântano, de modo a não levantarem mais lama.

A luz do sol filtrava-se através do espesso teto de folhas, os camarões agitavam-se sob os pés daqueles três fugitivos. Gradativamente foi-se avolumando uma insuportável tensão, naquele silêncio escaldante e angustioso.

Foi quase um alívio ouvir-se o ladrar dos cães.


X - O RASTRO DO DRAGÃO


O grupo de investigação descia rapidamente pelo rio. Os dois homens, de calções de banho e altas botas impermeáveis, tinham que correr para acompanhar os cães.

Eram grandes negros chineses, que traziam coldres sustentados ao ombro por meio de talabartes cruzados diante dos peitos suados. De quando em quando trocavam gritos que em geral não passavam de imprecações. À frente deles a matilha de cães Dobermann nadava e debatia-se n’água, latindo excitadamente. Tinham farejado uma pista e procuravam segui-la nervosamente, com as orelhas eretas sobre as cabeças afladas.

— Talvez um maldito crocodilo, — gritou o chefe elevando a voz sobre a algazarra. Empunhava um chicote que de vez em quando fazia estalar no campo de caça.

Os outros homens se encaminhavam para ele. O chefe gritou excitadamente: “Aposto que é o gringo inglês! Tenho certeza de que ele está entre os mangues. Cuidado para que o gringo não nos faça cair numa emboscada.” O homem tirou o revólver do coldre e colocou-o sob o sovaco, sem tirar a mão da coronha.

O grupo agora estava deixando a parte do rio, sob céu aberto, e entrando no túnel formado pelos mangues. O primeiro homem tinha um apito, que se projetava de seu largo rosto como um toco de charuto. Fez soar um agudo silvo. Quando os cães avançaram, ele se deixou ficar com o seu chicote junto do chefe. Os animais continuavam farejando, lamuriando-se porque a corrente os obrigava a desobedecer às ordens recebidas. Os dois homens sacaram os revólveres e vadearam lentamente o rio, na mesma direção da corrente, por entre os caules tortuosos dos mangues.

O homem que ia na frente chegou ao estreito canal que Bond tinha encontrado, agarrou um dos cães pela co-leira e lançou-o ao canal. O animal resfolegou ansiosamente e debateu-se para a frente. Os olhos do homem percorreram as raízes dos mangues, de ambos os lados do canal, para ver se apresentavam algum arranhão.

O cão e o homem chegaram ao pequeno lago situado na extremidade do canal. O homem olhou à sua volta, com ar animado. Tornou a agarrar o cão pela coleira e puxou-o para trás. O animal relutava em abandonar o lugar. Então, o homem feriu a água com o chicote.

O segundo homem estivera esperando à entrada do canal. O primeiro saiu daquele pequeno remanso e sacudiu a cabeça, descendo a corrente, com os cães, que agora se mostravam menos excitados, nadando à frente.

Lentamente, a algazarra da perseguição foi diminuindo e desapareceu.

Por mais cinco minutos nada se mexeu na laguna dos mangues; depois, num dos cantos, entre as raízes, apareceu lentamente para fora d’água um fino periscópio de bambu. O rosto de Bond emergiu logo em seguida, com os cabelos molhados colados à testa, como a cara de um cadáver que boiasse. Em sua mão direita, sob a água, o revólver estava pronto. Bond procurou escutar cuidadosamente. O silêncio era completo, não havia o mínimo ruído. Ou haveria? O que seria aquele suave barulho, como se algo deslizasse entre a água, na corrente principal? Viria alguém, muito serenamente, seguindo na esteira daquela caçada? Bond procurou apalpar à sua volta e tocou delicadamente nos dois corpos que estavam cada um em um de seus flancos, entre as raízes, na orla da laguna. Quando os dois rostos aforaram à superfície, ele colocou o seu dedo indicador sobre os lábios, mas já era tarde. Quarrel tinha tossido e cuspido. Bond fez uma careta e fez um sinal na direção da principal corrente. Todos procuravam escutar. O ruído recomeçou. Alguém estava-se dirigindo para o canal lateral. Os tubos de bambu voltaram para as três bocas e as cabeças tornaram a submergir. Debaixo da água Bond descansou a cabeça na lama, apertou as narinas e os lábios à volta do tubo. Sabia que a laguna já fora examinada uma vez, pois sentira a agitação causada na água pelo cão, que passara nadando! Da primeira vez não tinham sido achados, mas conseguiriam escapar desta? Agora haveria menos possibilidades de que a lama revolta se escoasse para fora da laguna. Se esse batedor visse a mancha mais escura, na água, atiraria ou usaria um punhal? Que armas traria? Bond resolveu não correr riscos. Ao primeiro rumor de movimento, ao seu lado, ele se poria de pé e daria logo ao gatilho, esperando pelo melhor.

Assim ficou ele, submerso, com todos os sentidos atentos. Como era desagradável aquele respirar controlado e insuportáveis as ligeiras mordidelas dos camarões! Por sorte nenhum deles tinha qualquer ferida no corpo, pois do contrário os malditos animalzinhos ter-se-iam atirado contra elas. De qualquer forma, aquela fora uma brilhante idéia da jovem. Sem ela os cães já os teriam alcançado, onde quer que eles se tivessem escondido.

Inesperadamente, Bond encolheu-se. Uma bota de borracha tinha pisado em seu queixo e escorregado. O homem pensaria tratar-se de um galho de árvore? Bond não podia correr aquele risco. Com um só impulso pôs-se de pé, atirando para longe o pedaço de bambu.

Bond teve uma rápida impressão de um gigantesco corpo de pé, quase em cima de si, e duma coronha de rife, em rápido movimento. Levantou o braço esquerdo para proteger a cabeça e recebeu um violento golpe no braço. Ao mesmo tempo, o seu braço direito se esticou para a frente, e, quando o cano tocou no lado direito do peito, sob o mamilo, ele acionou o gatilho.

O coice da arma, quase encostada ao corpo do homem, por pouco não quebrou o pulso de Bond, mas o homem desabou para trás como uma árvore decepada que cai n’água. Antes que o corpo afundasse, Bond ainda pôde perceber-lhe uma grande fenda no flanco. A cabeça, uma cabeça negróide de chinês, veio à superfície, com os olhos revirados para cima e a água a sair de sua boca escancarada e silenciosa. Em seguida a cabeça submergiu novamente e nada mais se pôde ver senão uma lama espumosa e uma mancha vermelha que gradualmente se ia ampliando e lentamente era atraída pela corrente.

Bond se endireitou e voltou-se para o lado. Quarrel e a jovem estavam atrás, em pé, com a água a escorrer-lhes dos corpos. Quarrel tinha um sorriso que ia de orelha a orelha, mas a garota mordia as articulações dos dedos, enquanto seus olhos se escancaravam horrorizados diante da água avermelhada.

Bond disse laconicamente: “Desculpe-me, Honey. Tinha que ser feito. Ele estava bem sobre nós. Venha, vamos indo.” Agarrou-a de qualquer maneira, pelo braço, e arrastou-a para fora da principal corrente, apenas detendo-se quando chegaram a rio aberto, na boca do túnel de mangues.

O cenário estava novamente vazio. Bond olhou para o relógio, e verificou que parara às três horas. Olhou para o sol, já bastante deslocado para o ocidente e concluiu que deveriam ser quatro horas. Quanto ainda teriam que caminhar? Bond inesperadamente sentiu-se cansado. Agora teria de enfrentar a situação. Ainda que o disparo não tivesse sido ouvido — e certamente que ele fora abafado pelo próprio corpo da vítima e pelas árvores — a falta do homem seria sentida quando os outros se reunissem, — se a suposição de Quarrel fosse correta, na embocadura do rio, de onde seriam recolhidos pela lancha. Voltariam eles, subindo o rio, a fim de procurarem o desaparecido? Talvez não. Já estaria muito escuro quando eles tivessem a certeza de que o homem estava realmente desaparecido. O mais certo seria mandarem um grupo de homens pela manhã. Os cães facilmente dariam com o corpo. E o que aconteceria?

A garota puxou-o pela manga e disse com irritação: — Já é tempo de você me dizer o que significa tudo isto! Por que estão todos procurando se matar mutuamente? E quem é você? Não acredito em toda essa história de aves. Ninguém carrega revólveres contra aves.

Bond baixou o olhar, fitando aqueles olhos bem separados e irados. — Desculpe-me, Honey. Receio tê-la arrastado para uma boa encrenca. Eu lhe contarei tudo quando voltarmos à noite para o acampamento. Foi apenas má sorte que você se envolvesse comigo, desta maneira. Tenho uma guerrinha com essa gente. Eles parecem querer matar-me. Agora estou apenas interessado em que todos nós saiamos desta ilha sem que ninguém fique ferido. Já tenho muito do que queria, para da próxima vez voltar pela porta da frente.

— O que você quer dizer? Você é alguma espécie de policial? Está querendo meter esse chinês na cadeia?

— Mais ou menos, — disse Bond, rindo para ela. — Pelo menos você está do lado dos anjos. Agora, diga-me uma coisa. Quanto falta ainda para chegar ao acampamento dos guardas?

— Oh, cerca de uma hora.

— É um lugar bom para nele esconder-se? Eles poderiam achar-nos com facilidade?

— Eles teriam que atravessar o lago ou subir o rio. Tudo estará muito bem se eles não puserem o dragão em nosso encalço. Ele pode muito bem atravessar a água, pois já o vi fazê-lo.

— Bem — disse Bond diplomaticamente — esperemos que ele esteja com a cauda machucada, ou tenha outra coisa qualquer.

A jovem vociferou: — Muito bem, sr. Sabe-Tudo. — E acrescentou irritada: — Espere e verá.

Quarrel deixou o túnel de mangues, agitando ruidosamente a água, tendo na mão o rife do chinês abatido, e dizendo à guisa de quem pede desculpas:

— Não há mal em termos outra arma, chefe. Parece que vamos precisar dela.

Bond apanhou aquela arma. Era uma carabina “Remington”, do exército norte-americano, calibre 300. Não havia dúvida de que aquela gente contava com equipamento apropriado. Bond devolveu a arma a Quarrel, depois de examiná-la.

Quarrel como que fez eco aos seus pensamentos: — Isso é gente astuta, capitão. Aquele homem veio esquadrinhando suavemente, atrás dos outros, a fim de nos surpreender quando deixássemos o esconderijo, depois da passagem dos cães. Esse tal de doutor com certeza é um sujeito muito esperto.

Bond disse pensativamente: — É, ele deve ser um homem incomum. — Depois espantou os pensamentos: — Agora, vamos tocando para a frente. Honey diz que ainda precisamos de uma hora para chegarmos ao acampamento. É melhor irmos pela margem esquerda, de modo a ficarmos ao abrigo da colina. Pelo que já pudemos ver, eles têm lunetas assestadas sobre o rio.

Bond entregou a sua arma a Quarrel, que a guardou na mochila molhada. Puseram-se novamente em marcha, com Quarrel à frente, e Bond e a jovem andando juntos, atrás.

Aproveitavam algumas sombras das árvores e bambus da margem ocidental, mas deviam agora suportar toda a intensidade de um vento crestante. Borrifaram braços e corpos com água, a fim de refrescar as queimaduras. Os olhos de Bond estavam injetados por aquele insuportável revérbero e o seu braço doía intoleràvelmente no ponto em que fora atingido pela coronha. E ele não teria à sua espera o seu jantar de pão embebido, queijo e fiambre. Quanto tempo poderiam dormir? Não dormira muito na véspera, e parece que não iria ter melhor ração de sono. E a garota? Ela nada dormira. Ele e Quarrel teriam que se revezar, em quartos de vigilância. E logo chegaria o dia seguinte, quando procurariam ganhar novamente os mangues e vencer lentamente a distância que os separava de sua canoa, através da extremidade oriental da ilha. As coisas correriam daquela forma, segundo era de esperar. Então, tratariam de se fazerem ao mar na noite seguinte. Bond pensou em como haveria de abrir caminho por entre sólidos mangues, na distância de oito quilômetros. Que perspectiva! Continuou se arrastando para a frente, pensando nas “férias ao sol dos trópicos” de M. Muito gostaria que M tivesse que partilhar com ele aquelas “férias”.

O rio foi-se estreitando até que se reduziu a uma simples corrente entre as moitas de bambu. Depois se ampliava num estuário baixo e pantanoso, além do qual as cinco milhas quadradas de lago raso davam vazão para o outro lado da ilha, perdendo-se num agitado espelho líquido azul-cinza. Mais para além estava a brilhante pista aérea e o reflexo da luz solar sobre um único hangar. A jovem disse-lhe que se mantivesse na direção leste, e eles foram lentamente avançando, protegidos pela orla da mata.

Inesperadamente, Quarrel deteve-se, com o rosto esticado como o focinho de um cão para o terreno pantanoso à sua frente. Dois profundos sulcos tinham sido escavados na lama, com um sulco mais raso no centro. Eram a trilha de algo que tinha descido da colina e atravessado o pântano em direção ao lago.

A jovem disse com indiferença: — Por aqui já passou o dragão.

Quarrel arregalou os olhos para ela.

Bond caminhou lentamente pela trilha. As marcas exteriores eram bastante lisas, trazendo a marca de uma linha curva. Poderiam ter sido causadas por rodas, mas eram enormes, pelo menos com sessenta centímetros de largura. A trilha central tinha a mesma forma, mas com apenas três polegadas de largura, ou seja a largura de um pneumático de automóvel. As trilhas não apresentavam nenhum indício de pegadas e eram completamente frescas. Estendiam-se em linha reta, e os arbustos por elas atravessados tinham sido derrubados e esmagados no chão, como se um tanque de guerra tivesse passado por ali. Bond não podia imaginar que espécie de veículo seria aquele. A jovem tocou-o com o cotovelo e murmurou: — Eu lhe tinha dito. Ele apenas pôde responder pensativamente: — Bom, Honey, se não é o dragão, é algo que nunca vi antes.

Mais adiante, ela puxou-o ansiosamente pela manga. “Veja”, sussurrou, e apontou para a frente, indicando um grande cerrado de árvores, ao lado do qual passavam as trilhas. O cerrado estava sem folhas, enegrecido. Ao centro viam-se os restos dos ninhos de pássaros carbonizados. — Ele respirou sobre as árvores, — disse a garota nervosamente.

Bond aproximou-se das árvores e examinou-as. — Certamente que o fez — admitiu. Por que aquele cerrado, em especial, tinha sido queimado? Era muito estranho aquilo.

As trilhas desciam em direção ao lago e desapareciam na água. Bond teria gostado de segui-las, mas não poderia abandonar a cobertura das árvores. Assim, continuaram a marcha, cada um entregue aos próprios pensamentos.

Lentamente o dia começou a morrer, por trás da colina, e por fim a garota apontou para a frente, através dos arbustos; Bond pôde ver uma comprida restinga internando-se no lago. Estava coberta por densas moitas de arbustos e podiam-se ver, a cem metros da praia, os restos de uma cabana incendiada. Aquele parecia um lugar razoavelmente atraente para se passar a noite, e era bem protegido dos dois lados, pela água.

O vento tinha declinado e a água se apresentava suave e convidativa. Que prazer não seria tirarem as suas imundas camisas para um banho no lago e, depois de horas de patinhação através da lama e do lodo do pântano, poderem descansar naquela areia dura e seca!

O sol brilhou com reflexos amarelecidos e desapareceu por trás da montanha. Ainda era dia na extremidade oriental da ilha, mas a sombra negra do monte avançava vagarosamente sobre o lago e acabaria por expulsar completamente os últimos vestígios do sol. Os sapos começaram a coaxar mais barulhentamente que em Jamaica, até que a noite ficou cheia daquele áspero ruído. Do outro lado do lago um grande sapo macho começou a soar o seu tambor. Aquele estranho som era algo entre um tom-tom e um rosnado de macaco. Enviava mensagens que subitamente se interrompiam e logo silenciaram. Com certeza encontrara o que procurava.

Chegaram à garganta da restinga e seguiram por um estreito caminho, até a clareira que encerrava os escombros da cabana de sapé. As grandes e misteriosas trilhas saíam da água, de ambos os lados, atravessavam a clareira e os cerrados próximos. Muitos dos arbustos estavam queimados ou crestados. Podiam-se ver os restos de um fogão feito de pedaços de coral, e algumas panelas e latas vazias. Examinaram os destroços, e Quarrel desenterrou um par de latas intactas de costeletas de porco e ervilhas marca “Heinz”. A jovem encontrou ainda um saco de dormir muito amarrotado, enquanto Bond achou uma pequena bolsa de couro com cinco notas de um dólar, três libras de Jamaica e algumas moedas de prata. Os dois homens certamente tinham abandonado aquele lugar a toda pressa.

Prosseguiram mais para diante, até uma pequena clareira arenosa. Através dos arbustos podiam ver luzes cintilando sobre a água e provenientes da montanha, talvez a mais de três quilômetros de distância. A leste nada mais havia senão. os suaves reflexos escuros da água sob o céu sombrio.

Bond comentou: — Enquanto não acendermos nada, estaremos bem aqui. A primeira coisa a fazer é tomarmos um bom banho, Honey. Você pode ficar com o resto da restinga, que nós ficaremos com a sua garganta. Dentro de meia hora espero vê-la para o jantar.

A garota riu: — Você virá a rigor?

— Sem dúvida — respondeu Bond — e de calças.

Quarrel observou: — Capitão, enquanto ainda há um pouco de luz, vou abrir essas latas e preparar as coisas para a noite. — Remexeu dentro da mochila. — Aqui estão as suas calças e o seu revólver. O pão talvez não esteja muito bom, mas está apenas molhado. Pode-se comê-lo bem, e amanhã estará seco. O melhor talvez fosse comermos das latas esta noite, guardando o queijo e as costeletas. As latas são pesadas e amanhã teremos que andar muito.

Bond respondeu: — Muito bem, Quarrel. Deixarei o cardápio aos seus cuidados.

Em seguida, apanhou o revólver e as calças úmidas e desceu para a água rasa. A água estava acariciante, mas desagradavelmente quente. Bond escavou punhados de areia, com as mãos, e esfregou o corpo com ela, utilizando-a como sabonete. Depois deixou-se ficar gostosamente em meio àquele silêncio e àquela solidão.

As estrelas começaram a brilhar palidamente, as estrelas que os tinham trazido à ilha na noite passada; as estrelas que os tirariam dali no dia seguinte. Que viagem! Mas pelo menos já tinha dado os seus resultados. Agora tinha provas bastantes, e testemunhas, para ir ter com o governador e conseguir dele um inquérito completo acerca das atividades do Dr. No. Ninguém lança mão de metralhadoras contra pessoas, mesmo contra intrusos. E, da mesma forma, o que seria aquilo do Dr. No, que invadira a propriedade da Sociedade Audubon, aquilo que chegara a destruir essa propriedade e provavelmente matara um de seus empregados? Isto também teria que ser investigado. E o que haveria ele de encontrar quando voltasse pela porta da frente, talvez a bordo de um destróier, e com um destacamento de fuzileiros navais? Qual seria a resposta para o mistério do Dr. No? O que estaria ele escondendo? Por que aquele segredo era tão importante, que seria capaz de matar repetidas vezes, para preservá-lo? E quem era esse Dr. No?

Bond ouviu o barulho de alguém espojando-se na água. Pensou na garota. E quem, afinal, era Honeychile Ri-der? Aquilo pelo menos, pensou ele ao sair da água, era algo que deveria esclarecer antes do amanhecer.

Bond enfiou as suas pegajosas calças, sentou-se na areia e desmontou o revólver. Fê-lo pelo tato, utilizando-se de sua camisa para secar cada peça e cada cartucho. Depois, tornou a montar a arma e pressionou o gatilho, fazendo com que o tambor vazio desse uma volta completa. O som era satisfatório. Seriam precisos alguns dias para que o revólver começasse a enferrujar. Carregou-o e meteu-o no coldre, para dentro do cós da calça. Depois, levantou-se e voltou para a clareira.

A sombra de Honey chegou até ele, e a sua voz se fez ouvir: — Venha; estamos morrendo de fome. Apanhei uma das panelas, limpei-a e pusemos as ervilhas nela. Temos pão também. E eu não sinto escrúpulos de comer a sua ração, porque você me fez trabalhar muito mais do que se eu estivesse sozinha. Agora, estique a mão.

Bond achou graça no tom autoritário que havia em sua voz. Ele apenas podia perceber a sua silhueta, no escuro. Sua cabeça parecia mais aflada. Ele se perguntou como seriam os seus cabelos quando secos e penteados. Como seria ela quando estivesse vestindo roupas limpas naquele lindo corpo dourado? Podia vê-la entrando numa sala ou atravessando um vestíbulo em Beau Desert. Ela seria uma linda e encantadora Patinha Feia. Por que nunca procurara endireitar o nariz? Seria uma operação fácil. Depois disso, ela seria a jovem mais bela de Jamaica.

O seu ombro tocou nele. Bond esticou o braço e descansou a mão aberta no colo da jovem. Então Bond sentiu que ela estava enchendo a sua mão com ervilhas.

Subitamente, Bond aspirou o seu cheiro cálido de animal. Foi uma explosão sensual tão aguda que o seu corpo se uniu ao dela, e, por um momento, os seus olhos se fecharam.

Ela deixou escapar um riso curto, no qual havia timidez, satisfação e ternura. E disse, maternalmente: “Lá”, — e empurrou a mão de Bond.

 

CONTINUA

IX - POR UM TRIZ


Dez minutos mais tarde a baía estava vazia e imaculada. Pequenas ondas encrespavam-se preguiçosamente através do espelho das águas, no interior dos recifes e morriam exaustas na areia escura onde as conchas lilás brilhavam como unhas pintadas. O monte de conchas tinha desaparecido e não havia mais vestígios de pegadas. Quarrel cortara galhos de mangues e caminhava de costas procurando apagar as pegadas com aqueles galhos. Onde tinha varrido, a areia apresentava uma limpidez diferente mas não tão diferente a ponto de ser notada de fora do recife. A canoa da jovem tinha sido arrastada para dentro do mar, entre as rochas, e ali ficou coberta com algas e gravetos.

Quarrel tinha voltado ao promontório. Bond e a jovem estavam juntos, sob tufos de folhas, onde Bond dormira, e olhavam silenciosamente para o contorno do promontório, à volta do qual surgira a embarcação.

A lancha estava talvez a uns quinhentos metros de distância. A julgar pelo lento ritmo do motor, Bond concluiu que cada acidente da costa estava sendo cuidadosamente inspecionado para descobrir indícios da presença de estranhos. De qualquer forma, aquilo parecia uma possante embarcação. Talvez uma grande lancha de cabina. Que tripulação teria? Quem estaria no comando? O Dr. No? Improvável. Ele certamente não se daria àquele trabalho de polícia.

Do lado do ocidente apareceu um bando de corvos marinhos, voando baixo sobre o mar, além dos recifes. Bond observou-os. Eram o primeiro indício para ele encontrado daquela colônia de aves, na outra extremidade da ilha. Aquele bando, segundo Pleydell-Smith, seriam batedores à procura do brilho prateado das enchovas, próximas à superfície. Enquanto observava, as aves começaram a dar mergulhos rasos, ferindo o mar superficialmente e levantando respingos de água. Quase que de uma só vez, apareceu outra coluna de aves, vinda do ocidente, e logo outra, e mais outra, fundindo-se todas numa espessa e escura nuvem. Durante minutos, elas sombrearam o céu, e depois atiraram-se à água, cobrindo vários alqueires, piando e lutando, e mergulhando as cabeças no mar, fazendo uma rica colheita naquele sólido campo de anchovas, como piranhas que se banqueteassem num cavalo afogado.

Bond sentiu um suave toque da jovem, que fez um movimento com a cabeça, dizendo:

— As galinhas do chinês estão comendo milho.

Bond observou-lhe o rosto belo e feliz. Ela parecia bastante despreocupada com a chegada daqueles homens. Para ela aquilo era apenas o jogo de esconde-esconde que já tinha praticado antes.

A vibração metálica dos motores diesel estava-se tornando mais forte. A lancha deveria estar justamente por trás do promontório. Bond deu mais uma olhada à volta da tranqüila baía, e depois fixou os olhos através da folhagem e do mato, para os lados dos recifes.

A ponta de uma proa branca apareceu, seguida de uns dez metros de tombadilho, e logo o parabrisas de vidro, uma cabina baixa e uma antena de rádio, e o vulto de um homem à volta do leme. Finalmente, o comprido e achatado fosso da popa, e uma flâmula vermelha pendente, Seria uma lancha-torpedeira convertida, um excedente de guerra do governo britânico?

Os olhos de Bond fixaram-se nos dois homens que estavam em pé na popa. Eram negros de pele pálida, envergando roupas caqui de marinheiro, com largos cinturões e chapéus de palha com longas palas. Estavam um ao lado do outro, equilibrando-se sob a lenta elevação da massa líquida. Um deles segurava um alto-falante e o outro manejava uma metralhadora instalada num tripé. Bond teve a impressão de que era uma metralhadora “Spandau”.

O homem com o alto-falante deixou que este caísse, e ele ficou oscilando numa tira, que lhe dava volta ao pescoço. Apanhou um binóculo e começou a vasculhar metro a metro da praia. Indistintos comentários chegavam aos ouvidos de Bond, por entre o ruído dos motores.

Bond percebeu que os olhos do binóculo começavam pelo promontório e depois percorriam a areia. As lentes detiveram-se entre as rochas e continuaram o seu passeio. Depois, voltaram. O murmúrio do comentário elevou-se ganhando animação. O homem passou o binóculo para o metralhador, que observou rapidamente, devolvendo-o logo ao dono. O observador gritou alguma coisa para o timoneiro. A lancha começou a se aproximar da praia. Agora estavam justamente diante dos recifes, em frente a Bond e à jovem. O observador ergueu novamente o binóculo, apontando-o para as rochas onde se encontrava escondida a canoa da jovem. Novamente a fala excitada chegou aos ouvidos de Bond, por sobre as águas. Mais uma vez o binóculo foi passado ao metralhador, que levou algum tempo observando. Dessa vez, ele fez um sinal de assentimento com a cabeça.

Bond pensou: agora vamos ter coisa; esses homens conhecem o ofício. Em seguida, viu que o metralhador se ocupava em carregar a arma. O duplo estalido metálico chegou aos seus ouvidos, por entre o matraquear do motor.

O observador ergueu o alto-falante e ligou-o. O eco produzido pelo amplificador chegou até Bond, conduzido pela superfície da água. A voz do homem ribombou pela baía:

— Alô, pessoal! Saiam daí e não serão feridos. Era uma voz educada, com sotaque americano.

— Agora, pessoal — trovejou a voz — depressa! Nós vimos quando vocês desembarcaram. Já descobrimos o bote sob os paus. Não somos tolos e não estamos brincando. Saiam daí com os braços levantados e não lhes acontecerá nada!

Não se ouviu nenhuma resposta. Apenas as ondas quebravam docemente na praia. Bond podia ouvir a respiração da jovem. Os guinchos agudos dos corvos marinhos chegavam-lhes de uma milha de distância, sobre o mar. O cano de escapamento dos motores diesel produzia um ruído desigual e gorgulhante, quando o intumescimento do mar cobria o orifício de descarga.

Silenciosamente Bond tocou o braço da jovem e disse-lhe:

— Fique mais perto. Alvo menor.

Ele sentiu o calor da jovem mais próximo de seu corpo, e o rosto de Honey raspou pelo seu braço. Bond sussurrou:

— Enterre-se na areia. Encolha-se. Cada polegada a menos ajudará.

Ele começou a se encolher cuidadosamente na depressão que tinham escavado para se abrigarem, e sentiu que ela fazia o mesmo.

O homem estava erguendo o seu alto-falante. A voz ribombou novamente.

— Muito bem, pessoal! Vocês irão ver que isso aqui não é para brincadeira. — Depois, levantou o polegar. O metralhador experimentou a arma fazendo alguns disparos para a copa dos mangues situados por trás da praia. Bond ouviu o rápido matraquear, tão seu conhecido, e do qual se despedira pela última vez diante das linhas alemãs, nas Ardenas. As balas produziam o velho som de pombos assustados, assobiando sobre sua cabeça. Depois fez-se silêncio.

À distância, Bond via a nuvem negra de corvos marinhos elevar-se, começando a fazer os seus amplos círculos. Seus olhos voltaram para a embarcação. O metralhador estava apalpando o cano da metralhadora, para ver se já estava aquecido. Os dois homens trocaram algumas palavras. O observador apanhou novamente o porta-voz.

— Está bem, pessoal. Vocês foram avisados.

Bond viu o cano da “Spandau” levantar-se e abaixar-se. O homem estava querendo começar com a canoa, entre as rochas. Bond sussurrou para a jovem: — Muito bem, Honey. Agüente firme. Mantenha-se abaixada. Não vai durar muito.

Ele sentiu que a mão da jovem apertava o seu braço, e pensou: “Coitada; ela está metida nisso por minha causa.” Ele inclinou-se para a direita a fim de cobrir a cabeça de Honey e afundou o rosto na areia.

Dessa vez o matraquear foi terrível. Balas ricocheteavam no flanco do promontório. Fragmentos de pedra saltavam para todos os lados, sobre a praia. Outras balas ricocheteavam e iam perder-se dentro da mata. Simultaneamente com todo aquele barulho ouvia-se o martelar contínuo da metralhadora.

Houve uma pausa. Nova carga, pensou Bond. Agora será para nós. Pôde sentir a jovem agarrando-se a ele. Seu corpo tremia todo, encostado ao seu flanco. Bond apanhou uma arma e apertou-a de encontro ao corpo. O matraquear da metralhadora recomeçou. As balas vinham zunindo, da linha de maré, em direção a eles. Ouviu-se uma sucessão de rápidas batidas. O tufo, acima deles, estava sendo reduzido a pedaços. “Zuip Zuip Zuip”. Era como se um chicote de aço estivesse retalhando os arbustos. Pedaços de lenha caíam sobre eles, cobrindo-os lentamente. Bond respirou um ar mais fresco, o que significava que eles agora estavam ao ar-livre. Estariam eles escondidos pelas folhas o pelos destroços? As balas continuaram deslocando-se ao longo da linha da costa. Em menos de um minuto a metralhadora parou.

O silêncio tornou a reinar. A jovem lamuriou-se docemente. Bond fê-la calar-se e apertou-a mais forte.

O alto-falante apregoou:

— Está bem, pessoal. Se vocês ainda têm ouvidos, saibam que voltaremos logo para recolher-lhes os pedaços. Vamos trazer os cães. Até à vista, por enquanto.

O ritmo do motor se acelerou, e através das folhas Bond pôde ver a popa da lancha afundar-se mais na água, enquanto a embarcação rumava rapidamente para oeste. Dentro de minutos já não se ouvia mais nada.

Bond ergueu a cabeça cautelosamente. A baía estava serena, e tudo como antes, exceto o cheiro de cordite e as rochas quebradas.

Bond fez a jovem levantar-se. Havia marcas de lágrimas em seu rosto. Ela olhou-o aterrada, e disse:

— Isso foi terrível. Por que eles o fizeram? Podíamos ter sido mortos.

Bond pensou naquela jovem que sempre abrira caminho, na vida, por si mesma, mas apenas contra a natureza. Conhecia o mundo dos animais, dos insetos e dos peixes, e tirava todo o partido desse conhecimento. Mas aquele era um pequeno mundo, limitado pelo sol, pela lua e pelas estações. Ela não conhecia o grande mundo das salas cheias de fumo, dos corredores de negócios, dos corredores e antecâmaras governamentais, dos cautelosos encontros em bancos de praças — numa palavra: ela nada conhecia da luta pelo poder e pelo dinheiro, travada por homens poderosos.

Bond disse:

— É isso mesmo, Honey, eles não passam de uma quadrilha de bandidos assustados conosco. Podemos enfrentá-los.

Bond colocou o braço à volta de seus ombros e continuou:

— E você esteve maravilhosa, brava como ninguém. Agora, vamos ao encontro de Quarrel para traçar os nossos planos. De qualquer forma, já é tempo de comermos alguma coisa. O que é que você costuma comer nessas expedições?

Deram meia-volta e seguiram pela praia em direção ao promontório. Depois de um minuto, ela disse com voz bem controlada:

— Oh, há uma porção de coisas por aí que se podem comer. Ouriços do mar principalmente, mas também bananas silvestres e outras coisas. Eu como e durmo durante dois dias, antes de vir aqui. Não preciso de nada.

Bond apertou-a mais fortemente, mas deixou cair o braço, assim que Quarrel apareceu ao longe. Quarrel vinha saltando sobre as rochas, e, em determinado momento, parou, olhando para baixo. Bond e Honey se aproximaram dele. A canoa da jovem estava cortada ao meio pelas balas. Honey deixou escapar um grito, olhando desesperadamente para Bond:

— A minha canoa! Como poderei voltar?

— Não se preocupe, senhorita, — disse Quarrel, que sentia a perda de uma canoa mais do que Bond. Imaginou ainda que aquela embarcação representasse quase todo o capital da jovem. — O capitão lhe dará outra. E a senhorita voltará conosco. Temos um magnífico bote, entre os mangues, e ele não foi destruído. Já estive lá espiando.

Quarrel olhou para Bond. Agora, o seu rosto denotava preocupação.

— Mas, capitão, o senhor está vendo o que eu disse dessa gente. Eles são duros e não estão brincando. Esses cães que eles vão trazer são policiais — Pinschers, como eles os chamam. Bastardos. Meus amigos disseram-me que são uma matilha de vinte ou mais. É melhor resolvermos logo.

— Está bem, Quarrel. Mas antes de mais nada precisamos comer alguma coisa. — o diabo que me carregue se eu vou ser aterrorizado e expulso da ilha antes de dar uma olhada nisso. Levaremos Honey conosco. — E, voltando-se para a jovem:

— Está bem, Honey? Nada lhe acontecerá. Depois voltaremos juntos.

A jovem olhou-o em dúvida:

— Acho que não há alternativa. Quero dizer. Gostaria de ir com vocês, se não atrapalhasse. Francamente, não quero comer nada. Mas você me levará de volta, assim que puder? Não quero ver mais aquela gente. Durante quanto tempo vocês vão ficar olhando para essas aves?

Bond respondeu evasivamente:

— Pouco tempo. Eu terei apenas que ver o que lhes aconteceu e porquê. Depois, partiremos.

Olhou para o relógio e anunciou:

— Agora são doze horas. Você nos esperará aqui. Tome um banho ou faça o que quiser. Não ande por aí deixando pegadas. Vamos, Quarrel, é melhor escondermos aquele bote.

Só à uma hora eles estavam prontos. Bond e Quarrel encheram a canoa com pedras e areia, até que ela desapareceu sob a água, entre os mangues. Depois, apagaram as suas pegadas. As balas tinham deixado tantos gravetos na orla da praia, que eles podiam caminhar pisando em folhas e ramos quebrados. Comeram parte de suas rações — os homens com avidez, mas Honey com relutância — e depois, passando sobre as rochas, foram ter à lagoa, próxima da costa. Em seguida foram vadeando aquelas águas, em direção à foz do rio, trezentos metros praia abaixo.

Fazia muito calor. Um vento áspero e quente começou a soprar do nordeste. Quarrel informou que aquele vento soprava diariamente, durante todo o ano, e era vital para a guaneira, pois secava o guano. O revérbero do mar e das brilhantes folhas verdes dos mangues cegava-os. Bond deu-se por feliz, já que tivera o cuidado de acostumar sua pele ao sol.

Na foz do rio encontraram um banco de areia e um extenso pântano, profundo e de águas estagnadas. Os dois homens podiam molhar-se ou tirar as roupas. Bond disse à jovem:

— Honey, não podemos ter cerimônia, nesta situação. Vamos ficar apenas com as camisas por causa do sol. Fique apenas com o que for sensato e caminhe atrás de nós.

Sem esperar pela resposta da jovem, os dois homens tiraram as calças. Quarrel enrolou-as e guardou-as na sacola, juntamente com as provisões e o revólver de Bond. Depois começaram a vadear a lagoa, com Quarrel na frente, logo seguido de Bond, e, finalmente a jovem. A água chegou até a cintura de Bond. Um grande peixe prateado deu um salto perto deles e depois caiu ruidosamente na água. Viram-se pequeninas setas riscarem a superfície, quando peixes menores se afastaram precipitadamente.

A lagoa convergia para uma estreita garganta, por sobre a qual as copas dos mangues se tocavam. Durante algum tempo eles vadearam através de um túnel fresco, e depois o rio se alargou num canal profundo, de águas morosas, que serpeava para a frente, entre as gigantescas raízes de sustentação dos mangues. O fundo era lamacento, e a cada passo os pés se enterravam algumas polegadas no lodo. Pequenos peixes ou camarões se encolhiam ou fugiam de baixo de seus pés, e de quando em quando eles tinham que parar para se desembaraçar das sanguessugas, antes que elas se agarrassem firmemente. A não ser isso, aquela caminhada era fácil, sob o frescor das arvores, e, pelo menos para Bond, era uma bênção estar ao abrigo do sol.

Em breve, à medida que se iam afastando do mar, começaram a sentir um cheiro de ovo podre, o cheiro de hidrogênio sulfurado do gás dos pântanos. Os mosquitos começaram a assaltá-los e pareciam gostar do corpo de Bond. Quarrel disse-lhe que mergulhasse na água do rio, pois os mosquitos gostavam de carne salgada. Bond tirou a camisa e fez o que Quarrel lhe aconselhara. Depois disso sentiu-se melhor e o seu olfato chegou mesmo a se acostumar com aquele repugnante cheiro, a não ser quando os pés de Quarrel desfaziam algum bolsão de gás, no fundo da lama, e uma gigantesca bolha atravessava a água para arrebentar na superfície sob as suas narinas.

Os mangues começaram a se tornar mais escassos e mais esparsos, enquanto o rio se ia alargando aos poucos. Ao mesmo tempo, a água tornava-se mais rasa e o fundo mais firme. Logo chegaram a uma volta e saíram para céu aberto, Honey disse:

— É melhor tomarmos cuidado, agora. Eles poderão ver-nos com muita facilidade. Isso vai assim durante uma milha. Depois o rio torna a se estreitar até o lago. E depois se poderá ver a restinga onde os tratadores das aves viviam.

O grupo deteve-se à sombra do túnel de mangues e olhou para fora. O rio serpeava perigosamente, afastando-se deles, em direção ao centro da ilha. As suas barrancas, bordadas de bambus de pequeno porte e de vegetação rala, dar-lhes-íam cobertura reduzida. Partindo de sua margem ocidental, o terreno elevava-se aos poucos, e logo abruptamente até o monte, situado a três quilômetros de distância, que era a guaneira. Na base daquela montanha, viam-se várias cabanas esparsas. Um ziguezague prateado galgava o flanco da colina, até as tendas — trilhos “Decauville”, pensou Bond, destinados a levarem o guano para o moinho e separa-dor. O cume do monte era branco, como se estivesse coberto de neve. De sua parte mais elevada desprendia-se como que uma bandeira de dó de guano. Bond podia ver os pontos negros que eram os corvos marinhos, sobre o fundo branco. Aquelas aves estavam levantando vôo e pousando como abelhas numa colmeia.

Bond deixou-se ficar de pé e contemplou o brilho distante daquela montanha de excrementos de aves. Então aquilo era o reino do Dr. No! Bond pensou que jamais vira um cenário tão escondido e distante, em toda a sua vida.

Examinou o terreno entre o rio e a montanha. Parecia ser principalmente formado com aquela matéria cinzenta de corais mortos. Não havia dúvida de que uma estrada ou trilha corria da falda da montanha até ao lago central e aos pântanos. Bond notou ainda que toda a vegetação se curvava para oeste, e imaginou viver durante todo um ano com aquele vento escaldante castigando a ilha, sem falar do cheiro do guano e do gás dos pântanos. Nenhuma colônia penal poderia encontrar pior localização do que aquela.

Bond olhou para leste, onde os mangues, na área dos charcos, pareciam oferecer mais hospitalidade. Os três puseram-se a caminhar sobre um sólido tapete verde de vegetação. Sobre suas cabeças, aves revoluteavam agitadas, para depois se, acalmarem, e logo tornarem a agitar-se. Seus pios eram carregados pelo vento crestante.

A voz de Quarrel interrompeu os pensamentos de Bond:

— Eles vêm vindo, capitão!

Bond seguiu o olhar de Quarrel. Um grande caminhão descia celeremente das tendas, com uma nuvem de pó levantando-se das rodas. Bond acompanhou-o durante dez minutos, até que o veículo desapareceu entre os mangues, na margem do rio. Bond pôs-se a escutar e ouviu latidos de cães, que eram trazidos pelo vento.

Quarrel comentou:

— Eles vão descer pelo rio, capitão. Sabem que não nos podemos mover, a não ser rio acima, se não estivermos mortos. Certamente que descerão pelo rio, até a praia, e farão um reconhecimento dos destroços. Depois, com toda a certeza, a lancha virá com um pequeno bote e recolherá os homens e os cães. Pelo menos, isso é o que eu faria no lugar deles.

Honey disse: — Isso é, de fato, o que eles fazem quando me procuram. É isso mesmo. Basta que cortemos um pedaço de bambu, e, quando eles estiverem perto, mergulhemos na água, procurando respirar através do bambu, até que eles se afastem.

Bond sorriu para Quarrel, e disse: — Suponhamos que você corte os bambus, enquanto eu procuro um bom esconderijo entre os mangues.

Quarrel aquiesceu hesitante e começou a subir contra a corrente, em direção ao bambuzal, enquanto Bond se encaminhava para o túnel formado pelos mangues.

Bond evitara olhar para a jovem, mas esta disse-lhe com impaciência:

— Não precisa ter tanto cuidado em não olhar para mim. Não adianta se preocupar com tais coisas, numa hora dessas. Você mesmo o disse, ainda há pouco.

Bond virou-se e olhou para a jovem. Sua camisa esfrangalhada descia até a linha d’água. Podia-se ainda ter um vislumbre de pálidas coxas, serpeando sob a superfície. O lindo rosto sorriu para ele. No meio daqueles mangues, o seu nariz quebrado parecia harmonizar-se com o ambiente, pela sua animalidade.

Bond fitou-a descansadamente e ela compreendeu. Depois, ele deu-lhe as costas e desceu pela correnteza, seguido por ela. Logo encontrou o que procurava, isto é, uma fenda naquela parede formada pelas raízes dos mangues. Bond recomendou: — Não quebre nenhum galho. — Depois, baixou a cabeça e meteu-se por aquela brecha. O canal avançava numa distância de dez metros. A lama sob seus pés tornou-se mais mole e espessa. Chegou a uma sólida e intransponível parede de raízes. Aquela água escura fluía vagarosamente através de uma ampla e tranqüila lagoa. Bond deteve-se. A jovem se aproximou dele.

— Isto é mesmo uma brincadeira de esconde-esconde — disse ela, trêmula.

— É verdade — aquiesceu Bond distraidamente, enquanto pensava em seu revólver. Com efeito, ele preocupava-se em saber com que eficiência a arma operaria depois de um banho no rio — quantos cães e homens ele poderia eliminar, se fossem descobertos. Sentiu um estremecimento de inquietação. Tinha sido uma falta de sorte ter encontrado aquela jovem. Em combate, queira-se ou não, uma mulher representa sempre um coração a mais. O inimigo tem dois alvos enquanto apenas oferece um.

Bond lembrou-se de sua sede. Apanhou na concha da mão um pouco de água e bebeu-a. Aquela água era salobra e tinha gosto de terra. Mas servia. Bond bebeu um pouco mais. A jovem agitou a mão e deteve-o, dizendo:

— Não beba demais. Lave a boca e cuspa. Você pode apanhar febre.

Quarrel assobiou de algum ponto situado na corrente principal. Bond respondeu e foi em direção ao amigo. Depois, voltaram juntos, internando-se no canal. Quarrel borrifou as raízes de mangues com água, nos pontos em que os seus corpos talvez as tivessem raspado. “Para tirar o nosso cheiro”, explicou, laconicamente. Em seguida mostrou o seu feixe de bambus e começou a cortá-los e prepará-los. Enquanto isso, Bond se ocupava com seu revólver e a munição. Os três ficaram imóveis, no meio daquele pântano, de modo a não levantarem mais lama.

A luz do sol filtrava-se através do espesso teto de folhas, os camarões agitavam-se sob os pés daqueles três fugitivos. Gradativamente foi-se avolumando uma insuportável tensão, naquele silêncio escaldante e angustioso.

Foi quase um alívio ouvir-se o ladrar dos cães.


X - O RASTRO DO DRAGÃO


O grupo de investigação descia rapidamente pelo rio. Os dois homens, de calções de banho e altas botas impermeáveis, tinham que correr para acompanhar os cães.

Eram grandes negros chineses, que traziam coldres sustentados ao ombro por meio de talabartes cruzados diante dos peitos suados. De quando em quando trocavam gritos que em geral não passavam de imprecações. À frente deles a matilha de cães Dobermann nadava e debatia-se n’água, latindo excitadamente. Tinham farejado uma pista e procuravam segui-la nervosamente, com as orelhas eretas sobre as cabeças afladas.

— Talvez um maldito crocodilo, — gritou o chefe elevando a voz sobre a algazarra. Empunhava um chicote que de vez em quando fazia estalar no campo de caça.

Os outros homens se encaminhavam para ele. O chefe gritou excitadamente: “Aposto que é o gringo inglês! Tenho certeza de que ele está entre os mangues. Cuidado para que o gringo não nos faça cair numa emboscada.” O homem tirou o revólver do coldre e colocou-o sob o sovaco, sem tirar a mão da coronha.

O grupo agora estava deixando a parte do rio, sob céu aberto, e entrando no túnel formado pelos mangues. O primeiro homem tinha um apito, que se projetava de seu largo rosto como um toco de charuto. Fez soar um agudo silvo. Quando os cães avançaram, ele se deixou ficar com o seu chicote junto do chefe. Os animais continuavam farejando, lamuriando-se porque a corrente os obrigava a desobedecer às ordens recebidas. Os dois homens sacaram os revólveres e vadearam lentamente o rio, na mesma direção da corrente, por entre os caules tortuosos dos mangues.

O homem que ia na frente chegou ao estreito canal que Bond tinha encontrado, agarrou um dos cães pela co-leira e lançou-o ao canal. O animal resfolegou ansiosamente e debateu-se para a frente. Os olhos do homem percorreram as raízes dos mangues, de ambos os lados do canal, para ver se apresentavam algum arranhão.

O cão e o homem chegaram ao pequeno lago situado na extremidade do canal. O homem olhou à sua volta, com ar animado. Tornou a agarrar o cão pela coleira e puxou-o para trás. O animal relutava em abandonar o lugar. Então, o homem feriu a água com o chicote.

O segundo homem estivera esperando à entrada do canal. O primeiro saiu daquele pequeno remanso e sacudiu a cabeça, descendo a corrente, com os cães, que agora se mostravam menos excitados, nadando à frente.

Lentamente, a algazarra da perseguição foi diminuindo e desapareceu.

Por mais cinco minutos nada se mexeu na laguna dos mangues; depois, num dos cantos, entre as raízes, apareceu lentamente para fora d’água um fino periscópio de bambu. O rosto de Bond emergiu logo em seguida, com os cabelos molhados colados à testa, como a cara de um cadáver que boiasse. Em sua mão direita, sob a água, o revólver estava pronto. Bond procurou escutar cuidadosamente. O silêncio era completo, não havia o mínimo ruído. Ou haveria? O que seria aquele suave barulho, como se algo deslizasse entre a água, na corrente principal? Viria alguém, muito serenamente, seguindo na esteira daquela caçada? Bond procurou apalpar à sua volta e tocou delicadamente nos dois corpos que estavam cada um em um de seus flancos, entre as raízes, na orla da laguna. Quando os dois rostos aforaram à superfície, ele colocou o seu dedo indicador sobre os lábios, mas já era tarde. Quarrel tinha tossido e cuspido. Bond fez uma careta e fez um sinal na direção da principal corrente. Todos procuravam escutar. O ruído recomeçou. Alguém estava-se dirigindo para o canal lateral. Os tubos de bambu voltaram para as três bocas e as cabeças tornaram a submergir. Debaixo da água Bond descansou a cabeça na lama, apertou as narinas e os lábios à volta do tubo. Sabia que a laguna já fora examinada uma vez, pois sentira a agitação causada na água pelo cão, que passara nadando! Da primeira vez não tinham sido achados, mas conseguiriam escapar desta? Agora haveria menos possibilidades de que a lama revolta se escoasse para fora da laguna. Se esse batedor visse a mancha mais escura, na água, atiraria ou usaria um punhal? Que armas traria? Bond resolveu não correr riscos. Ao primeiro rumor de movimento, ao seu lado, ele se poria de pé e daria logo ao gatilho, esperando pelo melhor.

Assim ficou ele, submerso, com todos os sentidos atentos. Como era desagradável aquele respirar controlado e insuportáveis as ligeiras mordidelas dos camarões! Por sorte nenhum deles tinha qualquer ferida no corpo, pois do contrário os malditos animalzinhos ter-se-iam atirado contra elas. De qualquer forma, aquela fora uma brilhante idéia da jovem. Sem ela os cães já os teriam alcançado, onde quer que eles se tivessem escondido.

Inesperadamente, Bond encolheu-se. Uma bota de borracha tinha pisado em seu queixo e escorregado. O homem pensaria tratar-se de um galho de árvore? Bond não podia correr aquele risco. Com um só impulso pôs-se de pé, atirando para longe o pedaço de bambu.

Bond teve uma rápida impressão de um gigantesco corpo de pé, quase em cima de si, e duma coronha de rife, em rápido movimento. Levantou o braço esquerdo para proteger a cabeça e recebeu um violento golpe no braço. Ao mesmo tempo, o seu braço direito se esticou para a frente, e, quando o cano tocou no lado direito do peito, sob o mamilo, ele acionou o gatilho.

O coice da arma, quase encostada ao corpo do homem, por pouco não quebrou o pulso de Bond, mas o homem desabou para trás como uma árvore decepada que cai n’água. Antes que o corpo afundasse, Bond ainda pôde perceber-lhe uma grande fenda no flanco. A cabeça, uma cabeça negróide de chinês, veio à superfície, com os olhos revirados para cima e a água a sair de sua boca escancarada e silenciosa. Em seguida a cabeça submergiu novamente e nada mais se pôde ver senão uma lama espumosa e uma mancha vermelha que gradualmente se ia ampliando e lentamente era atraída pela corrente.

Bond se endireitou e voltou-se para o lado. Quarrel e a jovem estavam atrás, em pé, com a água a escorrer-lhes dos corpos. Quarrel tinha um sorriso que ia de orelha a orelha, mas a garota mordia as articulações dos dedos, enquanto seus olhos se escancaravam horrorizados diante da água avermelhada.

Bond disse laconicamente: “Desculpe-me, Honey. Tinha que ser feito. Ele estava bem sobre nós. Venha, vamos indo.” Agarrou-a de qualquer maneira, pelo braço, e arrastou-a para fora da principal corrente, apenas detendo-se quando chegaram a rio aberto, na boca do túnel de mangues.

O cenário estava novamente vazio. Bond olhou para o relógio, e verificou que parara às três horas. Olhou para o sol, já bastante deslocado para o ocidente e concluiu que deveriam ser quatro horas. Quanto ainda teriam que caminhar? Bond inesperadamente sentiu-se cansado. Agora teria de enfrentar a situação. Ainda que o disparo não tivesse sido ouvido — e certamente que ele fora abafado pelo próprio corpo da vítima e pelas árvores — a falta do homem seria sentida quando os outros se reunissem, — se a suposição de Quarrel fosse correta, na embocadura do rio, de onde seriam recolhidos pela lancha. Voltariam eles, subindo o rio, a fim de procurarem o desaparecido? Talvez não. Já estaria muito escuro quando eles tivessem a certeza de que o homem estava realmente desaparecido. O mais certo seria mandarem um grupo de homens pela manhã. Os cães facilmente dariam com o corpo. E o que aconteceria?

A garota puxou-o pela manga e disse com irritação: — Já é tempo de você me dizer o que significa tudo isto! Por que estão todos procurando se matar mutuamente? E quem é você? Não acredito em toda essa história de aves. Ninguém carrega revólveres contra aves.

Bond baixou o olhar, fitando aqueles olhos bem separados e irados. — Desculpe-me, Honey. Receio tê-la arrastado para uma boa encrenca. Eu lhe contarei tudo quando voltarmos à noite para o acampamento. Foi apenas má sorte que você se envolvesse comigo, desta maneira. Tenho uma guerrinha com essa gente. Eles parecem querer matar-me. Agora estou apenas interessado em que todos nós saiamos desta ilha sem que ninguém fique ferido. Já tenho muito do que queria, para da próxima vez voltar pela porta da frente.

— O que você quer dizer? Você é alguma espécie de policial? Está querendo meter esse chinês na cadeia?

— Mais ou menos, — disse Bond, rindo para ela. — Pelo menos você está do lado dos anjos. Agora, diga-me uma coisa. Quanto falta ainda para chegar ao acampamento dos guardas?

— Oh, cerca de uma hora.

— É um lugar bom para nele esconder-se? Eles poderiam achar-nos com facilidade?

— Eles teriam que atravessar o lago ou subir o rio. Tudo estará muito bem se eles não puserem o dragão em nosso encalço. Ele pode muito bem atravessar a água, pois já o vi fazê-lo.

— Bem — disse Bond diplomaticamente — esperemos que ele esteja com a cauda machucada, ou tenha outra coisa qualquer.

A jovem vociferou: — Muito bem, sr. Sabe-Tudo. — E acrescentou irritada: — Espere e verá.

Quarrel deixou o túnel de mangues, agitando ruidosamente a água, tendo na mão o rife do chinês abatido, e dizendo à guisa de quem pede desculpas:

— Não há mal em termos outra arma, chefe. Parece que vamos precisar dela.

Bond apanhou aquela arma. Era uma carabina “Remington”, do exército norte-americano, calibre 300. Não havia dúvida de que aquela gente contava com equipamento apropriado. Bond devolveu a arma a Quarrel, depois de examiná-la.

Quarrel como que fez eco aos seus pensamentos: — Isso é gente astuta, capitão. Aquele homem veio esquadrinhando suavemente, atrás dos outros, a fim de nos surpreender quando deixássemos o esconderijo, depois da passagem dos cães. Esse tal de doutor com certeza é um sujeito muito esperto.

Bond disse pensativamente: — É, ele deve ser um homem incomum. — Depois espantou os pensamentos: — Agora, vamos tocando para a frente. Honey diz que ainda precisamos de uma hora para chegarmos ao acampamento. É melhor irmos pela margem esquerda, de modo a ficarmos ao abrigo da colina. Pelo que já pudemos ver, eles têm lunetas assestadas sobre o rio.

Bond entregou a sua arma a Quarrel, que a guardou na mochila molhada. Puseram-se novamente em marcha, com Quarrel à frente, e Bond e a jovem andando juntos, atrás.

Aproveitavam algumas sombras das árvores e bambus da margem ocidental, mas deviam agora suportar toda a intensidade de um vento crestante. Borrifaram braços e corpos com água, a fim de refrescar as queimaduras. Os olhos de Bond estavam injetados por aquele insuportável revérbero e o seu braço doía intoleràvelmente no ponto em que fora atingido pela coronha. E ele não teria à sua espera o seu jantar de pão embebido, queijo e fiambre. Quanto tempo poderiam dormir? Não dormira muito na véspera, e parece que não iria ter melhor ração de sono. E a garota? Ela nada dormira. Ele e Quarrel teriam que se revezar, em quartos de vigilância. E logo chegaria o dia seguinte, quando procurariam ganhar novamente os mangues e vencer lentamente a distância que os separava de sua canoa, através da extremidade oriental da ilha. As coisas correriam daquela forma, segundo era de esperar. Então, tratariam de se fazerem ao mar na noite seguinte. Bond pensou em como haveria de abrir caminho por entre sólidos mangues, na distância de oito quilômetros. Que perspectiva! Continuou se arrastando para a frente, pensando nas “férias ao sol dos trópicos” de M. Muito gostaria que M tivesse que partilhar com ele aquelas “férias”.

O rio foi-se estreitando até que se reduziu a uma simples corrente entre as moitas de bambu. Depois se ampliava num estuário baixo e pantanoso, além do qual as cinco milhas quadradas de lago raso davam vazão para o outro lado da ilha, perdendo-se num agitado espelho líquido azul-cinza. Mais para além estava a brilhante pista aérea e o reflexo da luz solar sobre um único hangar. A jovem disse-lhe que se mantivesse na direção leste, e eles foram lentamente avançando, protegidos pela orla da mata.

Inesperadamente, Quarrel deteve-se, com o rosto esticado como o focinho de um cão para o terreno pantanoso à sua frente. Dois profundos sulcos tinham sido escavados na lama, com um sulco mais raso no centro. Eram a trilha de algo que tinha descido da colina e atravessado o pântano em direção ao lago.

A jovem disse com indiferença: — Por aqui já passou o dragão.

Quarrel arregalou os olhos para ela.

Bond caminhou lentamente pela trilha. As marcas exteriores eram bastante lisas, trazendo a marca de uma linha curva. Poderiam ter sido causadas por rodas, mas eram enormes, pelo menos com sessenta centímetros de largura. A trilha central tinha a mesma forma, mas com apenas três polegadas de largura, ou seja a largura de um pneumático de automóvel. As trilhas não apresentavam nenhum indício de pegadas e eram completamente frescas. Estendiam-se em linha reta, e os arbustos por elas atravessados tinham sido derrubados e esmagados no chão, como se um tanque de guerra tivesse passado por ali. Bond não podia imaginar que espécie de veículo seria aquele. A jovem tocou-o com o cotovelo e murmurou: — Eu lhe tinha dito. Ele apenas pôde responder pensativamente: — Bom, Honey, se não é o dragão, é algo que nunca vi antes.

Mais adiante, ela puxou-o ansiosamente pela manga. “Veja”, sussurrou, e apontou para a frente, indicando um grande cerrado de árvores, ao lado do qual passavam as trilhas. O cerrado estava sem folhas, enegrecido. Ao centro viam-se os restos dos ninhos de pássaros carbonizados. — Ele respirou sobre as árvores, — disse a garota nervosamente.

Bond aproximou-se das árvores e examinou-as. — Certamente que o fez — admitiu. Por que aquele cerrado, em especial, tinha sido queimado? Era muito estranho aquilo.

As trilhas desciam em direção ao lago e desapareciam na água. Bond teria gostado de segui-las, mas não poderia abandonar a cobertura das árvores. Assim, continuaram a marcha, cada um entregue aos próprios pensamentos.

Lentamente o dia começou a morrer, por trás da colina, e por fim a garota apontou para a frente, através dos arbustos; Bond pôde ver uma comprida restinga internando-se no lago. Estava coberta por densas moitas de arbustos e podiam-se ver, a cem metros da praia, os restos de uma cabana incendiada. Aquele parecia um lugar razoavelmente atraente para se passar a noite, e era bem protegido dos dois lados, pela água.

O vento tinha declinado e a água se apresentava suave e convidativa. Que prazer não seria tirarem as suas imundas camisas para um banho no lago e, depois de horas de patinhação através da lama e do lodo do pântano, poderem descansar naquela areia dura e seca!

O sol brilhou com reflexos amarelecidos e desapareceu por trás da montanha. Ainda era dia na extremidade oriental da ilha, mas a sombra negra do monte avançava vagarosamente sobre o lago e acabaria por expulsar completamente os últimos vestígios do sol. Os sapos começaram a coaxar mais barulhentamente que em Jamaica, até que a noite ficou cheia daquele áspero ruído. Do outro lado do lago um grande sapo macho começou a soar o seu tambor. Aquele estranho som era algo entre um tom-tom e um rosnado de macaco. Enviava mensagens que subitamente se interrompiam e logo silenciaram. Com certeza encontrara o que procurava.

Chegaram à garganta da restinga e seguiram por um estreito caminho, até a clareira que encerrava os escombros da cabana de sapé. As grandes e misteriosas trilhas saíam da água, de ambos os lados, atravessavam a clareira e os cerrados próximos. Muitos dos arbustos estavam queimados ou crestados. Podiam-se ver os restos de um fogão feito de pedaços de coral, e algumas panelas e latas vazias. Examinaram os destroços, e Quarrel desenterrou um par de latas intactas de costeletas de porco e ervilhas marca “Heinz”. A jovem encontrou ainda um saco de dormir muito amarrotado, enquanto Bond achou uma pequena bolsa de couro com cinco notas de um dólar, três libras de Jamaica e algumas moedas de prata. Os dois homens certamente tinham abandonado aquele lugar a toda pressa.

Prosseguiram mais para diante, até uma pequena clareira arenosa. Através dos arbustos podiam ver luzes cintilando sobre a água e provenientes da montanha, talvez a mais de três quilômetros de distância. A leste nada mais havia senão. os suaves reflexos escuros da água sob o céu sombrio.

Bond comentou: — Enquanto não acendermos nada, estaremos bem aqui. A primeira coisa a fazer é tomarmos um bom banho, Honey. Você pode ficar com o resto da restinga, que nós ficaremos com a sua garganta. Dentro de meia hora espero vê-la para o jantar.

A garota riu: — Você virá a rigor?

— Sem dúvida — respondeu Bond — e de calças.

Quarrel observou: — Capitão, enquanto ainda há um pouco de luz, vou abrir essas latas e preparar as coisas para a noite. — Remexeu dentro da mochila. — Aqui estão as suas calças e o seu revólver. O pão talvez não esteja muito bom, mas está apenas molhado. Pode-se comê-lo bem, e amanhã estará seco. O melhor talvez fosse comermos das latas esta noite, guardando o queijo e as costeletas. As latas são pesadas e amanhã teremos que andar muito.

Bond respondeu: — Muito bem, Quarrel. Deixarei o cardápio aos seus cuidados.

Em seguida, apanhou o revólver e as calças úmidas e desceu para a água rasa. A água estava acariciante, mas desagradavelmente quente. Bond escavou punhados de areia, com as mãos, e esfregou o corpo com ela, utilizando-a como sabonete. Depois deixou-se ficar gostosamente em meio àquele silêncio e àquela solidão.

As estrelas começaram a brilhar palidamente, as estrelas que os tinham trazido à ilha na noite passada; as estrelas que os tirariam dali no dia seguinte. Que viagem! Mas pelo menos já tinha dado os seus resultados. Agora tinha provas bastantes, e testemunhas, para ir ter com o governador e conseguir dele um inquérito completo acerca das atividades do Dr. No. Ninguém lança mão de metralhadoras contra pessoas, mesmo contra intrusos. E, da mesma forma, o que seria aquilo do Dr. No, que invadira a propriedade da Sociedade Audubon, aquilo que chegara a destruir essa propriedade e provavelmente matara um de seus empregados? Isto também teria que ser investigado. E o que haveria ele de encontrar quando voltasse pela porta da frente, talvez a bordo de um destróier, e com um destacamento de fuzileiros navais? Qual seria a resposta para o mistério do Dr. No? O que estaria ele escondendo? Por que aquele segredo era tão importante, que seria capaz de matar repetidas vezes, para preservá-lo? E quem era esse Dr. No?

Bond ouviu o barulho de alguém espojando-se na água. Pensou na garota. E quem, afinal, era Honeychile Ri-der? Aquilo pelo menos, pensou ele ao sair da água, era algo que deveria esclarecer antes do amanhecer.

Bond enfiou as suas pegajosas calças, sentou-se na areia e desmontou o revólver. Fê-lo pelo tato, utilizando-se de sua camisa para secar cada peça e cada cartucho. Depois, tornou a montar a arma e pressionou o gatilho, fazendo com que o tambor vazio desse uma volta completa. O som era satisfatório. Seriam precisos alguns dias para que o revólver começasse a enferrujar. Carregou-o e meteu-o no coldre, para dentro do cós da calça. Depois, levantou-se e voltou para a clareira.

A sombra de Honey chegou até ele, e a sua voz se fez ouvir: — Venha; estamos morrendo de fome. Apanhei uma das panelas, limpei-a e pusemos as ervilhas nela. Temos pão também. E eu não sinto escrúpulos de comer a sua ração, porque você me fez trabalhar muito mais do que se eu estivesse sozinha. Agora, estique a mão.

Bond achou graça no tom autoritário que havia em sua voz. Ele apenas podia perceber a sua silhueta, no escuro. Sua cabeça parecia mais aflada. Ele se perguntou como seriam os seus cabelos quando secos e penteados. Como seria ela quando estivesse vestindo roupas limpas naquele lindo corpo dourado? Podia vê-la entrando numa sala ou atravessando um vestíbulo em Beau Desert. Ela seria uma linda e encantadora Patinha Feia. Por que nunca procurara endireitar o nariz? Seria uma operação fácil. Depois disso, ela seria a jovem mais bela de Jamaica.

O seu ombro tocou nele. Bond esticou o braço e descansou a mão aberta no colo da jovem. Então Bond sentiu que ela estava enchendo a sua mão com ervilhas.

Subitamente, Bond aspirou o seu cheiro cálido de animal. Foi uma explosão sensual tão aguda que o seu corpo se uniu ao dela, e, por um momento, os seus olhos se fecharam.

Ela deixou escapar um riso curto, no qual havia timidez, satisfação e ternura. E disse, maternalmente: “Lá”, — e empurrou a mão de Bond.

 

CONTINUA

IX - POR UM TRIZ


Dez minutos mais tarde a baía estava vazia e imaculada. Pequenas ondas encrespavam-se preguiçosamente através do espelho das águas, no interior dos recifes e morriam exaustas na areia escura onde as conchas lilás brilhavam como unhas pintadas. O monte de conchas tinha desaparecido e não havia mais vestígios de pegadas. Quarrel cortara galhos de mangues e caminhava de costas procurando apagar as pegadas com aqueles galhos. Onde tinha varrido, a areia apresentava uma limpidez diferente mas não tão diferente a ponto de ser notada de fora do recife. A canoa da jovem tinha sido arrastada para dentro do mar, entre as rochas, e ali ficou coberta com algas e gravetos.

Quarrel tinha voltado ao promontório. Bond e a jovem estavam juntos, sob tufos de folhas, onde Bond dormira, e olhavam silenciosamente para o contorno do promontório, à volta do qual surgira a embarcação.

A lancha estava talvez a uns quinhentos metros de distância. A julgar pelo lento ritmo do motor, Bond concluiu que cada acidente da costa estava sendo cuidadosamente inspecionado para descobrir indícios da presença de estranhos. De qualquer forma, aquilo parecia uma possante embarcação. Talvez uma grande lancha de cabina. Que tripulação teria? Quem estaria no comando? O Dr. No? Improvável. Ele certamente não se daria àquele trabalho de polícia.

Do lado do ocidente apareceu um bando de corvos marinhos, voando baixo sobre o mar, além dos recifes. Bond observou-os. Eram o primeiro indício para ele encontrado daquela colônia de aves, na outra extremidade da ilha. Aquele bando, segundo Pleydell-Smith, seriam batedores à procura do brilho prateado das enchovas, próximas à superfície. Enquanto observava, as aves começaram a dar mergulhos rasos, ferindo o mar superficialmente e levantando respingos de água. Quase que de uma só vez, apareceu outra coluna de aves, vinda do ocidente, e logo outra, e mais outra, fundindo-se todas numa espessa e escura nuvem. Durante minutos, elas sombrearam o céu, e depois atiraram-se à água, cobrindo vários alqueires, piando e lutando, e mergulhando as cabeças no mar, fazendo uma rica colheita naquele sólido campo de anchovas, como piranhas que se banqueteassem num cavalo afogado.

Bond sentiu um suave toque da jovem, que fez um movimento com a cabeça, dizendo:

— As galinhas do chinês estão comendo milho.

Bond observou-lhe o rosto belo e feliz. Ela parecia bastante despreocupada com a chegada daqueles homens. Para ela aquilo era apenas o jogo de esconde-esconde que já tinha praticado antes.

A vibração metálica dos motores diesel estava-se tornando mais forte. A lancha deveria estar justamente por trás do promontório. Bond deu mais uma olhada à volta da tranqüila baía, e depois fixou os olhos através da folhagem e do mato, para os lados dos recifes.

A ponta de uma proa branca apareceu, seguida de uns dez metros de tombadilho, e logo o parabrisas de vidro, uma cabina baixa e uma antena de rádio, e o vulto de um homem à volta do leme. Finalmente, o comprido e achatado fosso da popa, e uma flâmula vermelha pendente, Seria uma lancha-torpedeira convertida, um excedente de guerra do governo britânico?

Os olhos de Bond fixaram-se nos dois homens que estavam em pé na popa. Eram negros de pele pálida, envergando roupas caqui de marinheiro, com largos cinturões e chapéus de palha com longas palas. Estavam um ao lado do outro, equilibrando-se sob a lenta elevação da massa líquida. Um deles segurava um alto-falante e o outro manejava uma metralhadora instalada num tripé. Bond teve a impressão de que era uma metralhadora “Spandau”.

O homem com o alto-falante deixou que este caísse, e ele ficou oscilando numa tira, que lhe dava volta ao pescoço. Apanhou um binóculo e começou a vasculhar metro a metro da praia. Indistintos comentários chegavam aos ouvidos de Bond, por entre o ruído dos motores.

Bond percebeu que os olhos do binóculo começavam pelo promontório e depois percorriam a areia. As lentes detiveram-se entre as rochas e continuaram o seu passeio. Depois, voltaram. O murmúrio do comentário elevou-se ganhando animação. O homem passou o binóculo para o metralhador, que observou rapidamente, devolvendo-o logo ao dono. O observador gritou alguma coisa para o timoneiro. A lancha começou a se aproximar da praia. Agora estavam justamente diante dos recifes, em frente a Bond e à jovem. O observador ergueu novamente o binóculo, apontando-o para as rochas onde se encontrava escondida a canoa da jovem. Novamente a fala excitada chegou aos ouvidos de Bond, por sobre as águas. Mais uma vez o binóculo foi passado ao metralhador, que levou algum tempo observando. Dessa vez, ele fez um sinal de assentimento com a cabeça.

Bond pensou: agora vamos ter coisa; esses homens conhecem o ofício. Em seguida, viu que o metralhador se ocupava em carregar a arma. O duplo estalido metálico chegou aos seus ouvidos, por entre o matraquear do motor.

O observador ergueu o alto-falante e ligou-o. O eco produzido pelo amplificador chegou até Bond, conduzido pela superfície da água. A voz do homem ribombou pela baía:

— Alô, pessoal! Saiam daí e não serão feridos. Era uma voz educada, com sotaque americano.

— Agora, pessoal — trovejou a voz — depressa! Nós vimos quando vocês desembarcaram. Já descobrimos o bote sob os paus. Não somos tolos e não estamos brincando. Saiam daí com os braços levantados e não lhes acontecerá nada!

Não se ouviu nenhuma resposta. Apenas as ondas quebravam docemente na praia. Bond podia ouvir a respiração da jovem. Os guinchos agudos dos corvos marinhos chegavam-lhes de uma milha de distância, sobre o mar. O cano de escapamento dos motores diesel produzia um ruído desigual e gorgulhante, quando o intumescimento do mar cobria o orifício de descarga.

Silenciosamente Bond tocou o braço da jovem e disse-lhe:

— Fique mais perto. Alvo menor.

Ele sentiu o calor da jovem mais próximo de seu corpo, e o rosto de Honey raspou pelo seu braço. Bond sussurrou:

— Enterre-se na areia. Encolha-se. Cada polegada a menos ajudará.

Ele começou a se encolher cuidadosamente na depressão que tinham escavado para se abrigarem, e sentiu que ela fazia o mesmo.

O homem estava erguendo o seu alto-falante. A voz ribombou novamente.

— Muito bem, pessoal! Vocês irão ver que isso aqui não é para brincadeira. — Depois, levantou o polegar. O metralhador experimentou a arma fazendo alguns disparos para a copa dos mangues situados por trás da praia. Bond ouviu o rápido matraquear, tão seu conhecido, e do qual se despedira pela última vez diante das linhas alemãs, nas Ardenas. As balas produziam o velho som de pombos assustados, assobiando sobre sua cabeça. Depois fez-se silêncio.

À distância, Bond via a nuvem negra de corvos marinhos elevar-se, começando a fazer os seus amplos círculos. Seus olhos voltaram para a embarcação. O metralhador estava apalpando o cano da metralhadora, para ver se já estava aquecido. Os dois homens trocaram algumas palavras. O observador apanhou novamente o porta-voz.

— Está bem, pessoal. Vocês foram avisados.

Bond viu o cano da “Spandau” levantar-se e abaixar-se. O homem estava querendo começar com a canoa, entre as rochas. Bond sussurrou para a jovem: — Muito bem, Honey. Agüente firme. Mantenha-se abaixada. Não vai durar muito.

Ele sentiu que a mão da jovem apertava o seu braço, e pensou: “Coitada; ela está metida nisso por minha causa.” Ele inclinou-se para a direita a fim de cobrir a cabeça de Honey e afundou o rosto na areia.

Dessa vez o matraquear foi terrível. Balas ricocheteavam no flanco do promontório. Fragmentos de pedra saltavam para todos os lados, sobre a praia. Outras balas ricocheteavam e iam perder-se dentro da mata. Simultaneamente com todo aquele barulho ouvia-se o martelar contínuo da metralhadora.

Houve uma pausa. Nova carga, pensou Bond. Agora será para nós. Pôde sentir a jovem agarrando-se a ele. Seu corpo tremia todo, encostado ao seu flanco. Bond apanhou uma arma e apertou-a de encontro ao corpo. O matraquear da metralhadora recomeçou. As balas vinham zunindo, da linha de maré, em direção a eles. Ouviu-se uma sucessão de rápidas batidas. O tufo, acima deles, estava sendo reduzido a pedaços. “Zuip Zuip Zuip”. Era como se um chicote de aço estivesse retalhando os arbustos. Pedaços de lenha caíam sobre eles, cobrindo-os lentamente. Bond respirou um ar mais fresco, o que significava que eles agora estavam ao ar-livre. Estariam eles escondidos pelas folhas o pelos destroços? As balas continuaram deslocando-se ao longo da linha da costa. Em menos de um minuto a metralhadora parou.

O silêncio tornou a reinar. A jovem lamuriou-se docemente. Bond fê-la calar-se e apertou-a mais forte.

O alto-falante apregoou:

— Está bem, pessoal. Se vocês ainda têm ouvidos, saibam que voltaremos logo para recolher-lhes os pedaços. Vamos trazer os cães. Até à vista, por enquanto.

O ritmo do motor se acelerou, e através das folhas Bond pôde ver a popa da lancha afundar-se mais na água, enquanto a embarcação rumava rapidamente para oeste. Dentro de minutos já não se ouvia mais nada.

Bond ergueu a cabeça cautelosamente. A baía estava serena, e tudo como antes, exceto o cheiro de cordite e as rochas quebradas.

Bond fez a jovem levantar-se. Havia marcas de lágrimas em seu rosto. Ela olhou-o aterrada, e disse:

— Isso foi terrível. Por que eles o fizeram? Podíamos ter sido mortos.

Bond pensou naquela jovem que sempre abrira caminho, na vida, por si mesma, mas apenas contra a natureza. Conhecia o mundo dos animais, dos insetos e dos peixes, e tirava todo o partido desse conhecimento. Mas aquele era um pequeno mundo, limitado pelo sol, pela lua e pelas estações. Ela não conhecia o grande mundo das salas cheias de fumo, dos corredores de negócios, dos corredores e antecâmaras governamentais, dos cautelosos encontros em bancos de praças — numa palavra: ela nada conhecia da luta pelo poder e pelo dinheiro, travada por homens poderosos.

Bond disse:

— É isso mesmo, Honey, eles não passam de uma quadrilha de bandidos assustados conosco. Podemos enfrentá-los.

Bond colocou o braço à volta de seus ombros e continuou:

— E você esteve maravilhosa, brava como ninguém. Agora, vamos ao encontro de Quarrel para traçar os nossos planos. De qualquer forma, já é tempo de comermos alguma coisa. O que é que você costuma comer nessas expedições?

Deram meia-volta e seguiram pela praia em direção ao promontório. Depois de um minuto, ela disse com voz bem controlada:

— Oh, há uma porção de coisas por aí que se podem comer. Ouriços do mar principalmente, mas também bananas silvestres e outras coisas. Eu como e durmo durante dois dias, antes de vir aqui. Não preciso de nada.

Bond apertou-a mais fortemente, mas deixou cair o braço, assim que Quarrel apareceu ao longe. Quarrel vinha saltando sobre as rochas, e, em determinado momento, parou, olhando para baixo. Bond e Honey se aproximaram dele. A canoa da jovem estava cortada ao meio pelas balas. Honey deixou escapar um grito, olhando desesperadamente para Bond:

— A minha canoa! Como poderei voltar?

— Não se preocupe, senhorita, — disse Quarrel, que sentia a perda de uma canoa mais do que Bond. Imaginou ainda que aquela embarcação representasse quase todo o capital da jovem. — O capitão lhe dará outra. E a senhorita voltará conosco. Temos um magnífico bote, entre os mangues, e ele não foi destruído. Já estive lá espiando.

Quarrel olhou para Bond. Agora, o seu rosto denotava preocupação.

— Mas, capitão, o senhor está vendo o que eu disse dessa gente. Eles são duros e não estão brincando. Esses cães que eles vão trazer são policiais — Pinschers, como eles os chamam. Bastardos. Meus amigos disseram-me que são uma matilha de vinte ou mais. É melhor resolvermos logo.

— Está bem, Quarrel. Mas antes de mais nada precisamos comer alguma coisa. — o diabo que me carregue se eu vou ser aterrorizado e expulso da ilha antes de dar uma olhada nisso. Levaremos Honey conosco. — E, voltando-se para a jovem:

— Está bem, Honey? Nada lhe acontecerá. Depois voltaremos juntos.

A jovem olhou-o em dúvida:

— Acho que não há alternativa. Quero dizer. Gostaria de ir com vocês, se não atrapalhasse. Francamente, não quero comer nada. Mas você me levará de volta, assim que puder? Não quero ver mais aquela gente. Durante quanto tempo vocês vão ficar olhando para essas aves?

Bond respondeu evasivamente:

— Pouco tempo. Eu terei apenas que ver o que lhes aconteceu e porquê. Depois, partiremos.

Olhou para o relógio e anunciou:

— Agora são doze horas. Você nos esperará aqui. Tome um banho ou faça o que quiser. Não ande por aí deixando pegadas. Vamos, Quarrel, é melhor escondermos aquele bote.

Só à uma hora eles estavam prontos. Bond e Quarrel encheram a canoa com pedras e areia, até que ela desapareceu sob a água, entre os mangues. Depois, apagaram as suas pegadas. As balas tinham deixado tantos gravetos na orla da praia, que eles podiam caminhar pisando em folhas e ramos quebrados. Comeram parte de suas rações — os homens com avidez, mas Honey com relutância — e depois, passando sobre as rochas, foram ter à lagoa, próxima da costa. Em seguida foram vadeando aquelas águas, em direção à foz do rio, trezentos metros praia abaixo.

Fazia muito calor. Um vento áspero e quente começou a soprar do nordeste. Quarrel informou que aquele vento soprava diariamente, durante todo o ano, e era vital para a guaneira, pois secava o guano. O revérbero do mar e das brilhantes folhas verdes dos mangues cegava-os. Bond deu-se por feliz, já que tivera o cuidado de acostumar sua pele ao sol.

Na foz do rio encontraram um banco de areia e um extenso pântano, profundo e de águas estagnadas. Os dois homens podiam molhar-se ou tirar as roupas. Bond disse à jovem:

— Honey, não podemos ter cerimônia, nesta situação. Vamos ficar apenas com as camisas por causa do sol. Fique apenas com o que for sensato e caminhe atrás de nós.

Sem esperar pela resposta da jovem, os dois homens tiraram as calças. Quarrel enrolou-as e guardou-as na sacola, juntamente com as provisões e o revólver de Bond. Depois começaram a vadear a lagoa, com Quarrel na frente, logo seguido de Bond, e, finalmente a jovem. A água chegou até a cintura de Bond. Um grande peixe prateado deu um salto perto deles e depois caiu ruidosamente na água. Viram-se pequeninas setas riscarem a superfície, quando peixes menores se afastaram precipitadamente.

A lagoa convergia para uma estreita garganta, por sobre a qual as copas dos mangues se tocavam. Durante algum tempo eles vadearam através de um túnel fresco, e depois o rio se alargou num canal profundo, de águas morosas, que serpeava para a frente, entre as gigantescas raízes de sustentação dos mangues. O fundo era lamacento, e a cada passo os pés se enterravam algumas polegadas no lodo. Pequenos peixes ou camarões se encolhiam ou fugiam de baixo de seus pés, e de quando em quando eles tinham que parar para se desembaraçar das sanguessugas, antes que elas se agarrassem firmemente. A não ser isso, aquela caminhada era fácil, sob o frescor das arvores, e, pelo menos para Bond, era uma bênção estar ao abrigo do sol.

Em breve, à medida que se iam afastando do mar, começaram a sentir um cheiro de ovo podre, o cheiro de hidrogênio sulfurado do gás dos pântanos. Os mosquitos começaram a assaltá-los e pareciam gostar do corpo de Bond. Quarrel disse-lhe que mergulhasse na água do rio, pois os mosquitos gostavam de carne salgada. Bond tirou a camisa e fez o que Quarrel lhe aconselhara. Depois disso sentiu-se melhor e o seu olfato chegou mesmo a se acostumar com aquele repugnante cheiro, a não ser quando os pés de Quarrel desfaziam algum bolsão de gás, no fundo da lama, e uma gigantesca bolha atravessava a água para arrebentar na superfície sob as suas narinas.

Os mangues começaram a se tornar mais escassos e mais esparsos, enquanto o rio se ia alargando aos poucos. Ao mesmo tempo, a água tornava-se mais rasa e o fundo mais firme. Logo chegaram a uma volta e saíram para céu aberto, Honey disse:

— É melhor tomarmos cuidado, agora. Eles poderão ver-nos com muita facilidade. Isso vai assim durante uma milha. Depois o rio torna a se estreitar até o lago. E depois se poderá ver a restinga onde os tratadores das aves viviam.

O grupo deteve-se à sombra do túnel de mangues e olhou para fora. O rio serpeava perigosamente, afastando-se deles, em direção ao centro da ilha. As suas barrancas, bordadas de bambus de pequeno porte e de vegetação rala, dar-lhes-íam cobertura reduzida. Partindo de sua margem ocidental, o terreno elevava-se aos poucos, e logo abruptamente até o monte, situado a três quilômetros de distância, que era a guaneira. Na base daquela montanha, viam-se várias cabanas esparsas. Um ziguezague prateado galgava o flanco da colina, até as tendas — trilhos “Decauville”, pensou Bond, destinados a levarem o guano para o moinho e separa-dor. O cume do monte era branco, como se estivesse coberto de neve. De sua parte mais elevada desprendia-se como que uma bandeira de dó de guano. Bond podia ver os pontos negros que eram os corvos marinhos, sobre o fundo branco. Aquelas aves estavam levantando vôo e pousando como abelhas numa colmeia.

Bond deixou-se ficar de pé e contemplou o brilho distante daquela montanha de excrementos de aves. Então aquilo era o reino do Dr. No! Bond pensou que jamais vira um cenário tão escondido e distante, em toda a sua vida.

Examinou o terreno entre o rio e a montanha. Parecia ser principalmente formado com aquela matéria cinzenta de corais mortos. Não havia dúvida de que uma estrada ou trilha corria da falda da montanha até ao lago central e aos pântanos. Bond notou ainda que toda a vegetação se curvava para oeste, e imaginou viver durante todo um ano com aquele vento escaldante castigando a ilha, sem falar do cheiro do guano e do gás dos pântanos. Nenhuma colônia penal poderia encontrar pior localização do que aquela.

Bond olhou para leste, onde os mangues, na área dos charcos, pareciam oferecer mais hospitalidade. Os três puseram-se a caminhar sobre um sólido tapete verde de vegetação. Sobre suas cabeças, aves revoluteavam agitadas, para depois se, acalmarem, e logo tornarem a agitar-se. Seus pios eram carregados pelo vento crestante.

A voz de Quarrel interrompeu os pensamentos de Bond:

— Eles vêm vindo, capitão!

Bond seguiu o olhar de Quarrel. Um grande caminhão descia celeremente das tendas, com uma nuvem de pó levantando-se das rodas. Bond acompanhou-o durante dez minutos, até que o veículo desapareceu entre os mangues, na margem do rio. Bond pôs-se a escutar e ouviu latidos de cães, que eram trazidos pelo vento.

Quarrel comentou:

— Eles vão descer pelo rio, capitão. Sabem que não nos podemos mover, a não ser rio acima, se não estivermos mortos. Certamente que descerão pelo rio, até a praia, e farão um reconhecimento dos destroços. Depois, com toda a certeza, a lancha virá com um pequeno bote e recolherá os homens e os cães. Pelo menos, isso é o que eu faria no lugar deles.

Honey disse: — Isso é, de fato, o que eles fazem quando me procuram. É isso mesmo. Basta que cortemos um pedaço de bambu, e, quando eles estiverem perto, mergulhemos na água, procurando respirar através do bambu, até que eles se afastem.

Bond sorriu para Quarrel, e disse: — Suponhamos que você corte os bambus, enquanto eu procuro um bom esconderijo entre os mangues.

Quarrel aquiesceu hesitante e começou a subir contra a corrente, em direção ao bambuzal, enquanto Bond se encaminhava para o túnel formado pelos mangues.

Bond evitara olhar para a jovem, mas esta disse-lhe com impaciência:

— Não precisa ter tanto cuidado em não olhar para mim. Não adianta se preocupar com tais coisas, numa hora dessas. Você mesmo o disse, ainda há pouco.

Bond virou-se e olhou para a jovem. Sua camisa esfrangalhada descia até a linha d’água. Podia-se ainda ter um vislumbre de pálidas coxas, serpeando sob a superfície. O lindo rosto sorriu para ele. No meio daqueles mangues, o seu nariz quebrado parecia harmonizar-se com o ambiente, pela sua animalidade.

Bond fitou-a descansadamente e ela compreendeu. Depois, ele deu-lhe as costas e desceu pela correnteza, seguido por ela. Logo encontrou o que procurava, isto é, uma fenda naquela parede formada pelas raízes dos mangues. Bond recomendou: — Não quebre nenhum galho. — Depois, baixou a cabeça e meteu-se por aquela brecha. O canal avançava numa distância de dez metros. A lama sob seus pés tornou-se mais mole e espessa. Chegou a uma sólida e intransponível parede de raízes. Aquela água escura fluía vagarosamente através de uma ampla e tranqüila lagoa. Bond deteve-se. A jovem se aproximou dele.

— Isto é mesmo uma brincadeira de esconde-esconde — disse ela, trêmula.

— É verdade — aquiesceu Bond distraidamente, enquanto pensava em seu revólver. Com efeito, ele preocupava-se em saber com que eficiência a arma operaria depois de um banho no rio — quantos cães e homens ele poderia eliminar, se fossem descobertos. Sentiu um estremecimento de inquietação. Tinha sido uma falta de sorte ter encontrado aquela jovem. Em combate, queira-se ou não, uma mulher representa sempre um coração a mais. O inimigo tem dois alvos enquanto apenas oferece um.

Bond lembrou-se de sua sede. Apanhou na concha da mão um pouco de água e bebeu-a. Aquela água era salobra e tinha gosto de terra. Mas servia. Bond bebeu um pouco mais. A jovem agitou a mão e deteve-o, dizendo:

— Não beba demais. Lave a boca e cuspa. Você pode apanhar febre.

Quarrel assobiou de algum ponto situado na corrente principal. Bond respondeu e foi em direção ao amigo. Depois, voltaram juntos, internando-se no canal. Quarrel borrifou as raízes de mangues com água, nos pontos em que os seus corpos talvez as tivessem raspado. “Para tirar o nosso cheiro”, explicou, laconicamente. Em seguida mostrou o seu feixe de bambus e começou a cortá-los e prepará-los. Enquanto isso, Bond se ocupava com seu revólver e a munição. Os três ficaram imóveis, no meio daquele pântano, de modo a não levantarem mais lama.

A luz do sol filtrava-se através do espesso teto de folhas, os camarões agitavam-se sob os pés daqueles três fugitivos. Gradativamente foi-se avolumando uma insuportável tensão, naquele silêncio escaldante e angustioso.

Foi quase um alívio ouvir-se o ladrar dos cães.


X - O RASTRO DO DRAGÃO


O grupo de investigação descia rapidamente pelo rio. Os dois homens, de calções de banho e altas botas impermeáveis, tinham que correr para acompanhar os cães.

Eram grandes negros chineses, que traziam coldres sustentados ao ombro por meio de talabartes cruzados diante dos peitos suados. De quando em quando trocavam gritos que em geral não passavam de imprecações. À frente deles a matilha de cães Dobermann nadava e debatia-se n’água, latindo excitadamente. Tinham farejado uma pista e procuravam segui-la nervosamente, com as orelhas eretas sobre as cabeças afladas.

— Talvez um maldito crocodilo, — gritou o chefe elevando a voz sobre a algazarra. Empunhava um chicote que de vez em quando fazia estalar no campo de caça.

Os outros homens se encaminhavam para ele. O chefe gritou excitadamente: “Aposto que é o gringo inglês! Tenho certeza de que ele está entre os mangues. Cuidado para que o gringo não nos faça cair numa emboscada.” O homem tirou o revólver do coldre e colocou-o sob o sovaco, sem tirar a mão da coronha.

O grupo agora estava deixando a parte do rio, sob céu aberto, e entrando no túnel formado pelos mangues. O primeiro homem tinha um apito, que se projetava de seu largo rosto como um toco de charuto. Fez soar um agudo silvo. Quando os cães avançaram, ele se deixou ficar com o seu chicote junto do chefe. Os animais continuavam farejando, lamuriando-se porque a corrente os obrigava a desobedecer às ordens recebidas. Os dois homens sacaram os revólveres e vadearam lentamente o rio, na mesma direção da corrente, por entre os caules tortuosos dos mangues.

O homem que ia na frente chegou ao estreito canal que Bond tinha encontrado, agarrou um dos cães pela co-leira e lançou-o ao canal. O animal resfolegou ansiosamente e debateu-se para a frente. Os olhos do homem percorreram as raízes dos mangues, de ambos os lados do canal, para ver se apresentavam algum arranhão.

O cão e o homem chegaram ao pequeno lago situado na extremidade do canal. O homem olhou à sua volta, com ar animado. Tornou a agarrar o cão pela coleira e puxou-o para trás. O animal relutava em abandonar o lugar. Então, o homem feriu a água com o chicote.

O segundo homem estivera esperando à entrada do canal. O primeiro saiu daquele pequeno remanso e sacudiu a cabeça, descendo a corrente, com os cães, que agora se mostravam menos excitados, nadando à frente.

Lentamente, a algazarra da perseguição foi diminuindo e desapareceu.

Por mais cinco minutos nada se mexeu na laguna dos mangues; depois, num dos cantos, entre as raízes, apareceu lentamente para fora d’água um fino periscópio de bambu. O rosto de Bond emergiu logo em seguida, com os cabelos molhados colados à testa, como a cara de um cadáver que boiasse. Em sua mão direita, sob a água, o revólver estava pronto. Bond procurou escutar cuidadosamente. O silêncio era completo, não havia o mínimo ruído. Ou haveria? O que seria aquele suave barulho, como se algo deslizasse entre a água, na corrente principal? Viria alguém, muito serenamente, seguindo na esteira daquela caçada? Bond procurou apalpar à sua volta e tocou delicadamente nos dois corpos que estavam cada um em um de seus flancos, entre as raízes, na orla da laguna. Quando os dois rostos aforaram à superfície, ele colocou o seu dedo indicador sobre os lábios, mas já era tarde. Quarrel tinha tossido e cuspido. Bond fez uma careta e fez um sinal na direção da principal corrente. Todos procuravam escutar. O ruído recomeçou. Alguém estava-se dirigindo para o canal lateral. Os tubos de bambu voltaram para as três bocas e as cabeças tornaram a submergir. Debaixo da água Bond descansou a cabeça na lama, apertou as narinas e os lábios à volta do tubo. Sabia que a laguna já fora examinada uma vez, pois sentira a agitação causada na água pelo cão, que passara nadando! Da primeira vez não tinham sido achados, mas conseguiriam escapar desta? Agora haveria menos possibilidades de que a lama revolta se escoasse para fora da laguna. Se esse batedor visse a mancha mais escura, na água, atiraria ou usaria um punhal? Que armas traria? Bond resolveu não correr riscos. Ao primeiro rumor de movimento, ao seu lado, ele se poria de pé e daria logo ao gatilho, esperando pelo melhor.

Assim ficou ele, submerso, com todos os sentidos atentos. Como era desagradável aquele respirar controlado e insuportáveis as ligeiras mordidelas dos camarões! Por sorte nenhum deles tinha qualquer ferida no corpo, pois do contrário os malditos animalzinhos ter-se-iam atirado contra elas. De qualquer forma, aquela fora uma brilhante idéia da jovem. Sem ela os cães já os teriam alcançado, onde quer que eles se tivessem escondido.

Inesperadamente, Bond encolheu-se. Uma bota de borracha tinha pisado em seu queixo e escorregado. O homem pensaria tratar-se de um galho de árvore? Bond não podia correr aquele risco. Com um só impulso pôs-se de pé, atirando para longe o pedaço de bambu.

Bond teve uma rápida impressão de um gigantesco corpo de pé, quase em cima de si, e duma coronha de rife, em rápido movimento. Levantou o braço esquerdo para proteger a cabeça e recebeu um violento golpe no braço. Ao mesmo tempo, o seu braço direito se esticou para a frente, e, quando o cano tocou no lado direito do peito, sob o mamilo, ele acionou o gatilho.

O coice da arma, quase encostada ao corpo do homem, por pouco não quebrou o pulso de Bond, mas o homem desabou para trás como uma árvore decepada que cai n’água. Antes que o corpo afundasse, Bond ainda pôde perceber-lhe uma grande fenda no flanco. A cabeça, uma cabeça negróide de chinês, veio à superfície, com os olhos revirados para cima e a água a sair de sua boca escancarada e silenciosa. Em seguida a cabeça submergiu novamente e nada mais se pôde ver senão uma lama espumosa e uma mancha vermelha que gradualmente se ia ampliando e lentamente era atraída pela corrente.

Bond se endireitou e voltou-se para o lado. Quarrel e a jovem estavam atrás, em pé, com a água a escorrer-lhes dos corpos. Quarrel tinha um sorriso que ia de orelha a orelha, mas a garota mordia as articulações dos dedos, enquanto seus olhos se escancaravam horrorizados diante da água avermelhada.

Bond disse laconicamente: “Desculpe-me, Honey. Tinha que ser feito. Ele estava bem sobre nós. Venha, vamos indo.” Agarrou-a de qualquer maneira, pelo braço, e arrastou-a para fora da principal corrente, apenas detendo-se quando chegaram a rio aberto, na boca do túnel de mangues.

O cenário estava novamente vazio. Bond olhou para o relógio, e verificou que parara às três horas. Olhou para o sol, já bastante deslocado para o ocidente e concluiu que deveriam ser quatro horas. Quanto ainda teriam que caminhar? Bond inesperadamente sentiu-se cansado. Agora teria de enfrentar a situação. Ainda que o disparo não tivesse sido ouvido — e certamente que ele fora abafado pelo próprio corpo da vítima e pelas árvores — a falta do homem seria sentida quando os outros se reunissem, — se a suposição de Quarrel fosse correta, na embocadura do rio, de onde seriam recolhidos pela lancha. Voltariam eles, subindo o rio, a fim de procurarem o desaparecido? Talvez não. Já estaria muito escuro quando eles tivessem a certeza de que o homem estava realmente desaparecido. O mais certo seria mandarem um grupo de homens pela manhã. Os cães facilmente dariam com o corpo. E o que aconteceria?

A garota puxou-o pela manga e disse com irritação: — Já é tempo de você me dizer o que significa tudo isto! Por que estão todos procurando se matar mutuamente? E quem é você? Não acredito em toda essa história de aves. Ninguém carrega revólveres contra aves.

Bond baixou o olhar, fitando aqueles olhos bem separados e irados. — Desculpe-me, Honey. Receio tê-la arrastado para uma boa encrenca. Eu lhe contarei tudo quando voltarmos à noite para o acampamento. Foi apenas má sorte que você se envolvesse comigo, desta maneira. Tenho uma guerrinha com essa gente. Eles parecem querer matar-me. Agora estou apenas interessado em que todos nós saiamos desta ilha sem que ninguém fique ferido. Já tenho muito do que queria, para da próxima vez voltar pela porta da frente.

— O que você quer dizer? Você é alguma espécie de policial? Está querendo meter esse chinês na cadeia?

— Mais ou menos, — disse Bond, rindo para ela. — Pelo menos você está do lado dos anjos. Agora, diga-me uma coisa. Quanto falta ainda para chegar ao acampamento dos guardas?

— Oh, cerca de uma hora.

— É um lugar bom para nele esconder-se? Eles poderiam achar-nos com facilidade?

— Eles teriam que atravessar o lago ou subir o rio. Tudo estará muito bem se eles não puserem o dragão em nosso encalço. Ele pode muito bem atravessar a água, pois já o vi fazê-lo.

— Bem — disse Bond diplomaticamente — esperemos que ele esteja com a cauda machucada, ou tenha outra coisa qualquer.

A jovem vociferou: — Muito bem, sr. Sabe-Tudo. — E acrescentou irritada: — Espere e verá.

Quarrel deixou o túnel de mangues, agitando ruidosamente a água, tendo na mão o rife do chinês abatido, e dizendo à guisa de quem pede desculpas:

— Não há mal em termos outra arma, chefe. Parece que vamos precisar dela.

Bond apanhou aquela arma. Era uma carabina “Remington”, do exército norte-americano, calibre 300. Não havia dúvida de que aquela gente contava com equipamento apropriado. Bond devolveu a arma a Quarrel, depois de examiná-la.

Quarrel como que fez eco aos seus pensamentos: — Isso é gente astuta, capitão. Aquele homem veio esquadrinhando suavemente, atrás dos outros, a fim de nos surpreender quando deixássemos o esconderijo, depois da passagem dos cães. Esse tal de doutor com certeza é um sujeito muito esperto.

Bond disse pensativamente: — É, ele deve ser um homem incomum. — Depois espantou os pensamentos: — Agora, vamos tocando para a frente. Honey diz que ainda precisamos de uma hora para chegarmos ao acampamento. É melhor irmos pela margem esquerda, de modo a ficarmos ao abrigo da colina. Pelo que já pudemos ver, eles têm lunetas assestadas sobre o rio.

Bond entregou a sua arma a Quarrel, que a guardou na mochila molhada. Puseram-se novamente em marcha, com Quarrel à frente, e Bond e a jovem andando juntos, atrás.

Aproveitavam algumas sombras das árvores e bambus da margem ocidental, mas deviam agora suportar toda a intensidade de um vento crestante. Borrifaram braços e corpos com água, a fim de refrescar as queimaduras. Os olhos de Bond estavam injetados por aquele insuportável revérbero e o seu braço doía intoleràvelmente no ponto em que fora atingido pela coronha. E ele não teria à sua espera o seu jantar de pão embebido, queijo e fiambre. Quanto tempo poderiam dormir? Não dormira muito na véspera, e parece que não iria ter melhor ração de sono. E a garota? Ela nada dormira. Ele e Quarrel teriam que se revezar, em quartos de vigilância. E logo chegaria o dia seguinte, quando procurariam ganhar novamente os mangues e vencer lentamente a distância que os separava de sua canoa, através da extremidade oriental da ilha. As coisas correriam daquela forma, segundo era de esperar. Então, tratariam de se fazerem ao mar na noite seguinte. Bond pensou em como haveria de abrir caminho por entre sólidos mangues, na distância de oito quilômetros. Que perspectiva! Continuou se arrastando para a frente, pensando nas “férias ao sol dos trópicos” de M. Muito gostaria que M tivesse que partilhar com ele aquelas “férias”.

O rio foi-se estreitando até que se reduziu a uma simples corrente entre as moitas de bambu. Depois se ampliava num estuário baixo e pantanoso, além do qual as cinco milhas quadradas de lago raso davam vazão para o outro lado da ilha, perdendo-se num agitado espelho líquido azul-cinza. Mais para além estava a brilhante pista aérea e o reflexo da luz solar sobre um único hangar. A jovem disse-lhe que se mantivesse na direção leste, e eles foram lentamente avançando, protegidos pela orla da mata.

Inesperadamente, Quarrel deteve-se, com o rosto esticado como o focinho de um cão para o terreno pantanoso à sua frente. Dois profundos sulcos tinham sido escavados na lama, com um sulco mais raso no centro. Eram a trilha de algo que tinha descido da colina e atravessado o pântano em direção ao lago.

A jovem disse com indiferença: — Por aqui já passou o dragão.

Quarrel arregalou os olhos para ela.

Bond caminhou lentamente pela trilha. As marcas exteriores eram bastante lisas, trazendo a marca de uma linha curva. Poderiam ter sido causadas por rodas, mas eram enormes, pelo menos com sessenta centímetros de largura. A trilha central tinha a mesma forma, mas com apenas três polegadas de largura, ou seja a largura de um pneumático de automóvel. As trilhas não apresentavam nenhum indício de pegadas e eram completamente frescas. Estendiam-se em linha reta, e os arbustos por elas atravessados tinham sido derrubados e esmagados no chão, como se um tanque de guerra tivesse passado por ali. Bond não podia imaginar que espécie de veículo seria aquele. A jovem tocou-o com o cotovelo e murmurou: — Eu lhe tinha dito. Ele apenas pôde responder pensativamente: — Bom, Honey, se não é o dragão, é algo que nunca vi antes.

Mais adiante, ela puxou-o ansiosamente pela manga. “Veja”, sussurrou, e apontou para a frente, indicando um grande cerrado de árvores, ao lado do qual passavam as trilhas. O cerrado estava sem folhas, enegrecido. Ao centro viam-se os restos dos ninhos de pássaros carbonizados. — Ele respirou sobre as árvores, — disse a garota nervosamente.

Bond aproximou-se das árvores e examinou-as. — Certamente que o fez — admitiu. Por que aquele cerrado, em especial, tinha sido queimado? Era muito estranho aquilo.

As trilhas desciam em direção ao lago e desapareciam na água. Bond teria gostado de segui-las, mas não poderia abandonar a cobertura das árvores. Assim, continuaram a marcha, cada um entregue aos próprios pensamentos.

Lentamente o dia começou a morrer, por trás da colina, e por fim a garota apontou para a frente, através dos arbustos; Bond pôde ver uma comprida restinga internando-se no lago. Estava coberta por densas moitas de arbustos e podiam-se ver, a cem metros da praia, os restos de uma cabana incendiada. Aquele parecia um lugar razoavelmente atraente para se passar a noite, e era bem protegido dos dois lados, pela água.

O vento tinha declinado e a água se apresentava suave e convidativa. Que prazer não seria tirarem as suas imundas camisas para um banho no lago e, depois de horas de patinhação através da lama e do lodo do pântano, poderem descansar naquela areia dura e seca!

O sol brilhou com reflexos amarelecidos e desapareceu por trás da montanha. Ainda era dia na extremidade oriental da ilha, mas a sombra negra do monte avançava vagarosamente sobre o lago e acabaria por expulsar completamente os últimos vestígios do sol. Os sapos começaram a coaxar mais barulhentamente que em Jamaica, até que a noite ficou cheia daquele áspero ruído. Do outro lado do lago um grande sapo macho começou a soar o seu tambor. Aquele estranho som era algo entre um tom-tom e um rosnado de macaco. Enviava mensagens que subitamente se interrompiam e logo silenciaram. Com certeza encontrara o que procurava.

Chegaram à garganta da restinga e seguiram por um estreito caminho, até a clareira que encerrava os escombros da cabana de sapé. As grandes e misteriosas trilhas saíam da água, de ambos os lados, atravessavam a clareira e os cerrados próximos. Muitos dos arbustos estavam queimados ou crestados. Podiam-se ver os restos de um fogão feito de pedaços de coral, e algumas panelas e latas vazias. Examinaram os destroços, e Quarrel desenterrou um par de latas intactas de costeletas de porco e ervilhas marca “Heinz”. A jovem encontrou ainda um saco de dormir muito amarrotado, enquanto Bond achou uma pequena bolsa de couro com cinco notas de um dólar, três libras de Jamaica e algumas moedas de prata. Os dois homens certamente tinham abandonado aquele lugar a toda pressa.

Prosseguiram mais para diante, até uma pequena clareira arenosa. Através dos arbustos podiam ver luzes cintilando sobre a água e provenientes da montanha, talvez a mais de três quilômetros de distância. A leste nada mais havia senão. os suaves reflexos escuros da água sob o céu sombrio.

Bond comentou: — Enquanto não acendermos nada, estaremos bem aqui. A primeira coisa a fazer é tomarmos um bom banho, Honey. Você pode ficar com o resto da restinga, que nós ficaremos com a sua garganta. Dentro de meia hora espero vê-la para o jantar.

A garota riu: — Você virá a rigor?

— Sem dúvida — respondeu Bond — e de calças.

Quarrel observou: — Capitão, enquanto ainda há um pouco de luz, vou abrir essas latas e preparar as coisas para a noite. — Remexeu dentro da mochila. — Aqui estão as suas calças e o seu revólver. O pão talvez não esteja muito bom, mas está apenas molhado. Pode-se comê-lo bem, e amanhã estará seco. O melhor talvez fosse comermos das latas esta noite, guardando o queijo e as costeletas. As latas são pesadas e amanhã teremos que andar muito.

Bond respondeu: — Muito bem, Quarrel. Deixarei o cardápio aos seus cuidados.

Em seguida, apanhou o revólver e as calças úmidas e desceu para a água rasa. A água estava acariciante, mas desagradavelmente quente. Bond escavou punhados de areia, com as mãos, e esfregou o corpo com ela, utilizando-a como sabonete. Depois deixou-se ficar gostosamente em meio àquele silêncio e àquela solidão.

As estrelas começaram a brilhar palidamente, as estrelas que os tinham trazido à ilha na noite passada; as estrelas que os tirariam dali no dia seguinte. Que viagem! Mas pelo menos já tinha dado os seus resultados. Agora tinha provas bastantes, e testemunhas, para ir ter com o governador e conseguir dele um inquérito completo acerca das atividades do Dr. No. Ninguém lança mão de metralhadoras contra pessoas, mesmo contra intrusos. E, da mesma forma, o que seria aquilo do Dr. No, que invadira a propriedade da Sociedade Audubon, aquilo que chegara a destruir essa propriedade e provavelmente matara um de seus empregados? Isto também teria que ser investigado. E o que haveria ele de encontrar quando voltasse pela porta da frente, talvez a bordo de um destróier, e com um destacamento de fuzileiros navais? Qual seria a resposta para o mistério do Dr. No? O que estaria ele escondendo? Por que aquele segredo era tão importante, que seria capaz de matar repetidas vezes, para preservá-lo? E quem era esse Dr. No?

Bond ouviu o barulho de alguém espojando-se na água. Pensou na garota. E quem, afinal, era Honeychile Ri-der? Aquilo pelo menos, pensou ele ao sair da água, era algo que deveria esclarecer antes do amanhecer.

Bond enfiou as suas pegajosas calças, sentou-se na areia e desmontou o revólver. Fê-lo pelo tato, utilizando-se de sua camisa para secar cada peça e cada cartucho. Depois, tornou a montar a arma e pressionou o gatilho, fazendo com que o tambor vazio desse uma volta completa. O som era satisfatório. Seriam precisos alguns dias para que o revólver começasse a enferrujar. Carregou-o e meteu-o no coldre, para dentro do cós da calça. Depois, levantou-se e voltou para a clareira.

A sombra de Honey chegou até ele, e a sua voz se fez ouvir: — Venha; estamos morrendo de fome. Apanhei uma das panelas, limpei-a e pusemos as ervilhas nela. Temos pão também. E eu não sinto escrúpulos de comer a sua ração, porque você me fez trabalhar muito mais do que se eu estivesse sozinha. Agora, estique a mão.

Bond achou graça no tom autoritário que havia em sua voz. Ele apenas podia perceber a sua silhueta, no escuro. Sua cabeça parecia mais aflada. Ele se perguntou como seriam os seus cabelos quando secos e penteados. Como seria ela quando estivesse vestindo roupas limpas naquele lindo corpo dourado? Podia vê-la entrando numa sala ou atravessando um vestíbulo em Beau Desert. Ela seria uma linda e encantadora Patinha Feia. Por que nunca procurara endireitar o nariz? Seria uma operação fácil. Depois disso, ela seria a jovem mais bela de Jamaica.

O seu ombro tocou nele. Bond esticou o braço e descansou a mão aberta no colo da jovem. Então Bond sentiu que ela estava enchendo a sua mão com ervilhas.

Subitamente, Bond aspirou o seu cheiro cálido de animal. Foi uma explosão sensual tão aguda que o seu corpo se uniu ao dela, e, por um momento, os seus olhos se fecharam.

Ela deixou escapar um riso curto, no qual havia timidez, satisfação e ternura. E disse, maternalmente: “Lá”, — e empurrou a mão de Bond.

 

CONTINUA

IX - POR UM TRIZ


Dez minutos mais tarde a baía estava vazia e imaculada. Pequenas ondas encrespavam-se preguiçosamente através do espelho das águas, no interior dos recifes e morriam exaustas na areia escura onde as conchas lilás brilhavam como unhas pintadas. O monte de conchas tinha desaparecido e não havia mais vestígios de pegadas. Quarrel cortara galhos de mangues e caminhava de costas procurando apagar as pegadas com aqueles galhos. Onde tinha varrido, a areia apresentava uma limpidez diferente mas não tão diferente a ponto de ser notada de fora do recife. A canoa da jovem tinha sido arrastada para dentro do mar, entre as rochas, e ali ficou coberta com algas e gravetos.

Quarrel tinha voltado ao promontório. Bond e a jovem estavam juntos, sob tufos de folhas, onde Bond dormira, e olhavam silenciosamente para o contorno do promontório, à volta do qual surgira a embarcação.

A lancha estava talvez a uns quinhentos metros de distância. A julgar pelo lento ritmo do motor, Bond concluiu que cada acidente da costa estava sendo cuidadosamente inspecionado para descobrir indícios da presença de estranhos. De qualquer forma, aquilo parecia uma possante embarcação. Talvez uma grande lancha de cabina. Que tripulação teria? Quem estaria no comando? O Dr. No? Improvável. Ele certamente não se daria àquele trabalho de polícia.

Do lado do ocidente apareceu um bando de corvos marinhos, voando baixo sobre o mar, além dos recifes. Bond observou-os. Eram o primeiro indício para ele encontrado daquela colônia de aves, na outra extremidade da ilha. Aquele bando, segundo Pleydell-Smith, seriam batedores à procura do brilho prateado das enchovas, próximas à superfície. Enquanto observava, as aves começaram a dar mergulhos rasos, ferindo o mar superficialmente e levantando respingos de água. Quase que de uma só vez, apareceu outra coluna de aves, vinda do ocidente, e logo outra, e mais outra, fundindo-se todas numa espessa e escura nuvem. Durante minutos, elas sombrearam o céu, e depois atiraram-se à água, cobrindo vários alqueires, piando e lutando, e mergulhando as cabeças no mar, fazendo uma rica colheita naquele sólido campo de anchovas, como piranhas que se banqueteassem num cavalo afogado.

Bond sentiu um suave toque da jovem, que fez um movimento com a cabeça, dizendo:

— As galinhas do chinês estão comendo milho.

Bond observou-lhe o rosto belo e feliz. Ela parecia bastante despreocupada com a chegada daqueles homens. Para ela aquilo era apenas o jogo de esconde-esconde que já tinha praticado antes.

A vibração metálica dos motores diesel estava-se tornando mais forte. A lancha deveria estar justamente por trás do promontório. Bond deu mais uma olhada à volta da tranqüila baía, e depois fixou os olhos através da folhagem e do mato, para os lados dos recifes.

A ponta de uma proa branca apareceu, seguida de uns dez metros de tombadilho, e logo o parabrisas de vidro, uma cabina baixa e uma antena de rádio, e o vulto de um homem à volta do leme. Finalmente, o comprido e achatado fosso da popa, e uma flâmula vermelha pendente, Seria uma lancha-torpedeira convertida, um excedente de guerra do governo britânico?

Os olhos de Bond fixaram-se nos dois homens que estavam em pé na popa. Eram negros de pele pálida, envergando roupas caqui de marinheiro, com largos cinturões e chapéus de palha com longas palas. Estavam um ao lado do outro, equilibrando-se sob a lenta elevação da massa líquida. Um deles segurava um alto-falante e o outro manejava uma metralhadora instalada num tripé. Bond teve a impressão de que era uma metralhadora “Spandau”.

O homem com o alto-falante deixou que este caísse, e ele ficou oscilando numa tira, que lhe dava volta ao pescoço. Apanhou um binóculo e começou a vasculhar metro a metro da praia. Indistintos comentários chegavam aos ouvidos de Bond, por entre o ruído dos motores.

Bond percebeu que os olhos do binóculo começavam pelo promontório e depois percorriam a areia. As lentes detiveram-se entre as rochas e continuaram o seu passeio. Depois, voltaram. O murmúrio do comentário elevou-se ganhando animação. O homem passou o binóculo para o metralhador, que observou rapidamente, devolvendo-o logo ao dono. O observador gritou alguma coisa para o timoneiro. A lancha começou a se aproximar da praia. Agora estavam justamente diante dos recifes, em frente a Bond e à jovem. O observador ergueu novamente o binóculo, apontando-o para as rochas onde se encontrava escondida a canoa da jovem. Novamente a fala excitada chegou aos ouvidos de Bond, por sobre as águas. Mais uma vez o binóculo foi passado ao metralhador, que levou algum tempo observando. Dessa vez, ele fez um sinal de assentimento com a cabeça.

Bond pensou: agora vamos ter coisa; esses homens conhecem o ofício. Em seguida, viu que o metralhador se ocupava em carregar a arma. O duplo estalido metálico chegou aos seus ouvidos, por entre o matraquear do motor.

O observador ergueu o alto-falante e ligou-o. O eco produzido pelo amplificador chegou até Bond, conduzido pela superfície da água. A voz do homem ribombou pela baía:

— Alô, pessoal! Saiam daí e não serão feridos. Era uma voz educada, com sotaque americano.

— Agora, pessoal — trovejou a voz — depressa! Nós vimos quando vocês desembarcaram. Já descobrimos o bote sob os paus. Não somos tolos e não estamos brincando. Saiam daí com os braços levantados e não lhes acontecerá nada!

Não se ouviu nenhuma resposta. Apenas as ondas quebravam docemente na praia. Bond podia ouvir a respiração da jovem. Os guinchos agudos dos corvos marinhos chegavam-lhes de uma milha de distância, sobre o mar. O cano de escapamento dos motores diesel produzia um ruído desigual e gorgulhante, quando o intumescimento do mar cobria o orifício de descarga.

Silenciosamente Bond tocou o braço da jovem e disse-lhe:

— Fique mais perto. Alvo menor.

Ele sentiu o calor da jovem mais próximo de seu corpo, e o rosto de Honey raspou pelo seu braço. Bond sussurrou:

— Enterre-se na areia. Encolha-se. Cada polegada a menos ajudará.

Ele começou a se encolher cuidadosamente na depressão que tinham escavado para se abrigarem, e sentiu que ela fazia o mesmo.

O homem estava erguendo o seu alto-falante. A voz ribombou novamente.

— Muito bem, pessoal! Vocês irão ver que isso aqui não é para brincadeira. — Depois, levantou o polegar. O metralhador experimentou a arma fazendo alguns disparos para a copa dos mangues situados por trás da praia. Bond ouviu o rápido matraquear, tão seu conhecido, e do qual se despedira pela última vez diante das linhas alemãs, nas Ardenas. As balas produziam o velho som de pombos assustados, assobiando sobre sua cabeça. Depois fez-se silêncio.

À distância, Bond via a nuvem negra de corvos marinhos elevar-se, começando a fazer os seus amplos círculos. Seus olhos voltaram para a embarcação. O metralhador estava apalpando o cano da metralhadora, para ver se já estava aquecido. Os dois homens trocaram algumas palavras. O observador apanhou novamente o porta-voz.

— Está bem, pessoal. Vocês foram avisados.

Bond viu o cano da “Spandau” levantar-se e abaixar-se. O homem estava querendo começar com a canoa, entre as rochas. Bond sussurrou para a jovem: — Muito bem, Honey. Agüente firme. Mantenha-se abaixada. Não vai durar muito.

Ele sentiu que a mão da jovem apertava o seu braço, e pensou: “Coitada; ela está metida nisso por minha causa.” Ele inclinou-se para a direita a fim de cobrir a cabeça de Honey e afundou o rosto na areia.

Dessa vez o matraquear foi terrível. Balas ricocheteavam no flanco do promontório. Fragmentos de pedra saltavam para todos os lados, sobre a praia. Outras balas ricocheteavam e iam perder-se dentro da mata. Simultaneamente com todo aquele barulho ouvia-se o martelar contínuo da metralhadora.

Houve uma pausa. Nova carga, pensou Bond. Agora será para nós. Pôde sentir a jovem agarrando-se a ele. Seu corpo tremia todo, encostado ao seu flanco. Bond apanhou uma arma e apertou-a de encontro ao corpo. O matraquear da metralhadora recomeçou. As balas vinham zunindo, da linha de maré, em direção a eles. Ouviu-se uma sucessão de rápidas batidas. O tufo, acima deles, estava sendo reduzido a pedaços. “Zuip Zuip Zuip”. Era como se um chicote de aço estivesse retalhando os arbustos. Pedaços de lenha caíam sobre eles, cobrindo-os lentamente. Bond respirou um ar mais fresco, o que significava que eles agora estavam ao ar-livre. Estariam eles escondidos pelas folhas o pelos destroços? As balas continuaram deslocando-se ao longo da linha da costa. Em menos de um minuto a metralhadora parou.

O silêncio tornou a reinar. A jovem lamuriou-se docemente. Bond fê-la calar-se e apertou-a mais forte.

O alto-falante apregoou:

— Está bem, pessoal. Se vocês ainda têm ouvidos, saibam que voltaremos logo para recolher-lhes os pedaços. Vamos trazer os cães. Até à vista, por enquanto.

O ritmo do motor se acelerou, e através das folhas Bond pôde ver a popa da lancha afundar-se mais na água, enquanto a embarcação rumava rapidamente para oeste. Dentro de minutos já não se ouvia mais nada.

Bond ergueu a cabeça cautelosamente. A baía estava serena, e tudo como antes, exceto o cheiro de cordite e as rochas quebradas.

Bond fez a jovem levantar-se. Havia marcas de lágrimas em seu rosto. Ela olhou-o aterrada, e disse:

— Isso foi terrível. Por que eles o fizeram? Podíamos ter sido mortos.

Bond pensou naquela jovem que sempre abrira caminho, na vida, por si mesma, mas apenas contra a natureza. Conhecia o mundo dos animais, dos insetos e dos peixes, e tirava todo o partido desse conhecimento. Mas aquele era um pequeno mundo, limitado pelo sol, pela lua e pelas estações. Ela não conhecia o grande mundo das salas cheias de fumo, dos corredores de negócios, dos corredores e antecâmaras governamentais, dos cautelosos encontros em bancos de praças — numa palavra: ela nada conhecia da luta pelo poder e pelo dinheiro, travada por homens poderosos.

Bond disse:

— É isso mesmo, Honey, eles não passam de uma quadrilha de bandidos assustados conosco. Podemos enfrentá-los.

Bond colocou o braço à volta de seus ombros e continuou:

— E você esteve maravilhosa, brava como ninguém. Agora, vamos ao encontro de Quarrel para traçar os nossos planos. De qualquer forma, já é tempo de comermos alguma coisa. O que é que você costuma comer nessas expedições?

Deram meia-volta e seguiram pela praia em direção ao promontório. Depois de um minuto, ela disse com voz bem controlada:

— Oh, há uma porção de coisas por aí que se podem comer. Ouriços do mar principalmente, mas também bananas silvestres e outras coisas. Eu como e durmo durante dois dias, antes de vir aqui. Não preciso de nada.

Bond apertou-a mais fortemente, mas deixou cair o braço, assim que Quarrel apareceu ao longe. Quarrel vinha saltando sobre as rochas, e, em determinado momento, parou, olhando para baixo. Bond e Honey se aproximaram dele. A canoa da jovem estava cortada ao meio pelas balas. Honey deixou escapar um grito, olhando desesperadamente para Bond:

— A minha canoa! Como poderei voltar?

— Não se preocupe, senhorita, — disse Quarrel, que sentia a perda de uma canoa mais do que Bond. Imaginou ainda que aquela embarcação representasse quase todo o capital da jovem. — O capitão lhe dará outra. E a senhorita voltará conosco. Temos um magnífico bote, entre os mangues, e ele não foi destruído. Já estive lá espiando.

Quarrel olhou para Bond. Agora, o seu rosto denotava preocupação.

— Mas, capitão, o senhor está vendo o que eu disse dessa gente. Eles são duros e não estão brincando. Esses cães que eles vão trazer são policiais — Pinschers, como eles os chamam. Bastardos. Meus amigos disseram-me que são uma matilha de vinte ou mais. É melhor resolvermos logo.

— Está bem, Quarrel. Mas antes de mais nada precisamos comer alguma coisa. — o diabo que me carregue se eu vou ser aterrorizado e expulso da ilha antes de dar uma olhada nisso. Levaremos Honey conosco. — E, voltando-se para a jovem:

— Está bem, Honey? Nada lhe acontecerá. Depois voltaremos juntos.

A jovem olhou-o em dúvida:

— Acho que não há alternativa. Quero dizer. Gostaria de ir com vocês, se não atrapalhasse. Francamente, não quero comer nada. Mas você me levará de volta, assim que puder? Não quero ver mais aquela gente. Durante quanto tempo vocês vão ficar olhando para essas aves?

Bond respondeu evasivamente:

— Pouco tempo. Eu terei apenas que ver o que lhes aconteceu e porquê. Depois, partiremos.

Olhou para o relógio e anunciou:

— Agora são doze horas. Você nos esperará aqui. Tome um banho ou faça o que quiser. Não ande por aí deixando pegadas. Vamos, Quarrel, é melhor escondermos aquele bote.

Só à uma hora eles estavam prontos. Bond e Quarrel encheram a canoa com pedras e areia, até que ela desapareceu sob a água, entre os mangues. Depois, apagaram as suas pegadas. As balas tinham deixado tantos gravetos na orla da praia, que eles podiam caminhar pisando em folhas e ramos quebrados. Comeram parte de suas rações — os homens com avidez, mas Honey com relutância — e depois, passando sobre as rochas, foram ter à lagoa, próxima da costa. Em seguida foram vadeando aquelas águas, em direção à foz do rio, trezentos metros praia abaixo.

Fazia muito calor. Um vento áspero e quente começou a soprar do nordeste. Quarrel informou que aquele vento soprava diariamente, durante todo o ano, e era vital para a guaneira, pois secava o guano. O revérbero do mar e das brilhantes folhas verdes dos mangues cegava-os. Bond deu-se por feliz, já que tivera o cuidado de acostumar sua pele ao sol.

Na foz do rio encontraram um banco de areia e um extenso pântano, profundo e de águas estagnadas. Os dois homens podiam molhar-se ou tirar as roupas. Bond disse à jovem:

— Honey, não podemos ter cerimônia, nesta situação. Vamos ficar apenas com as camisas por causa do sol. Fique apenas com o que for sensato e caminhe atrás de nós.

Sem esperar pela resposta da jovem, os dois homens tiraram as calças. Quarrel enrolou-as e guardou-as na sacola, juntamente com as provisões e o revólver de Bond. Depois começaram a vadear a lagoa, com Quarrel na frente, logo seguido de Bond, e, finalmente a jovem. A água chegou até a cintura de Bond. Um grande peixe prateado deu um salto perto deles e depois caiu ruidosamente na água. Viram-se pequeninas setas riscarem a superfície, quando peixes menores se afastaram precipitadamente.

A lagoa convergia para uma estreita garganta, por sobre a qual as copas dos mangues se tocavam. Durante algum tempo eles vadearam através de um túnel fresco, e depois o rio se alargou num canal profundo, de águas morosas, que serpeava para a frente, entre as gigantescas raízes de sustentação dos mangues. O fundo era lamacento, e a cada passo os pés se enterravam algumas polegadas no lodo. Pequenos peixes ou camarões se encolhiam ou fugiam de baixo de seus pés, e de quando em quando eles tinham que parar para se desembaraçar das sanguessugas, antes que elas se agarrassem firmemente. A não ser isso, aquela caminhada era fácil, sob o frescor das arvores, e, pelo menos para Bond, era uma bênção estar ao abrigo do sol.

Em breve, à medida que se iam afastando do mar, começaram a sentir um cheiro de ovo podre, o cheiro de hidrogênio sulfurado do gás dos pântanos. Os mosquitos começaram a assaltá-los e pareciam gostar do corpo de Bond. Quarrel disse-lhe que mergulhasse na água do rio, pois os mosquitos gostavam de carne salgada. Bond tirou a camisa e fez o que Quarrel lhe aconselhara. Depois disso sentiu-se melhor e o seu olfato chegou mesmo a se acostumar com aquele repugnante cheiro, a não ser quando os pés de Quarrel desfaziam algum bolsão de gás, no fundo da lama, e uma gigantesca bolha atravessava a água para arrebentar na superfície sob as suas narinas.

Os mangues começaram a se tornar mais escassos e mais esparsos, enquanto o rio se ia alargando aos poucos. Ao mesmo tempo, a água tornava-se mais rasa e o fundo mais firme. Logo chegaram a uma volta e saíram para céu aberto, Honey disse:

— É melhor tomarmos cuidado, agora. Eles poderão ver-nos com muita facilidade. Isso vai assim durante uma milha. Depois o rio torna a se estreitar até o lago. E depois se poderá ver a restinga onde os tratadores das aves viviam.

O grupo deteve-se à sombra do túnel de mangues e olhou para fora. O rio serpeava perigosamente, afastando-se deles, em direção ao centro da ilha. As suas barrancas, bordadas de bambus de pequeno porte e de vegetação rala, dar-lhes-íam cobertura reduzida. Partindo de sua margem ocidental, o terreno elevava-se aos poucos, e logo abruptamente até o monte, situado a três quilômetros de distância, que era a guaneira. Na base daquela montanha, viam-se várias cabanas esparsas. Um ziguezague prateado galgava o flanco da colina, até as tendas — trilhos “Decauville”, pensou Bond, destinados a levarem o guano para o moinho e separa-dor. O cume do monte era branco, como se estivesse coberto de neve. De sua parte mais elevada desprendia-se como que uma bandeira de dó de guano. Bond podia ver os pontos negros que eram os corvos marinhos, sobre o fundo branco. Aquelas aves estavam levantando vôo e pousando como abelhas numa colmeia.

Bond deixou-se ficar de pé e contemplou o brilho distante daquela montanha de excrementos de aves. Então aquilo era o reino do Dr. No! Bond pensou que jamais vira um cenário tão escondido e distante, em toda a sua vida.

Examinou o terreno entre o rio e a montanha. Parecia ser principalmente formado com aquela matéria cinzenta de corais mortos. Não havia dúvida de que uma estrada ou trilha corria da falda da montanha até ao lago central e aos pântanos. Bond notou ainda que toda a vegetação se curvava para oeste, e imaginou viver durante todo um ano com aquele vento escaldante castigando a ilha, sem falar do cheiro do guano e do gás dos pântanos. Nenhuma colônia penal poderia encontrar pior localização do que aquela.

Bond olhou para leste, onde os mangues, na área dos charcos, pareciam oferecer mais hospitalidade. Os três puseram-se a caminhar sobre um sólido tapete verde de vegetação. Sobre suas cabeças, aves revoluteavam agitadas, para depois se, acalmarem, e logo tornarem a agitar-se. Seus pios eram carregados pelo vento crestante.

A voz de Quarrel interrompeu os pensamentos de Bond:

— Eles vêm vindo, capitão!

Bond seguiu o olhar de Quarrel. Um grande caminhão descia celeremente das tendas, com uma nuvem de pó levantando-se das rodas. Bond acompanhou-o durante dez minutos, até que o veículo desapareceu entre os mangues, na margem do rio. Bond pôs-se a escutar e ouviu latidos de cães, que eram trazidos pelo vento.

Quarrel comentou:

— Eles vão descer pelo rio, capitão. Sabem que não nos podemos mover, a não ser rio acima, se não estivermos mortos. Certamente que descerão pelo rio, até a praia, e farão um reconhecimento dos destroços. Depois, com toda a certeza, a lancha virá com um pequeno bote e recolherá os homens e os cães. Pelo menos, isso é o que eu faria no lugar deles.

Honey disse: — Isso é, de fato, o que eles fazem quando me procuram. É isso mesmo. Basta que cortemos um pedaço de bambu, e, quando eles estiverem perto, mergulhemos na água, procurando respirar através do bambu, até que eles se afastem.

Bond sorriu para Quarrel, e disse: — Suponhamos que você corte os bambus, enquanto eu procuro um bom esconderijo entre os mangues.

Quarrel aquiesceu hesitante e começou a subir contra a corrente, em direção ao bambuzal, enquanto Bond se encaminhava para o túnel formado pelos mangues.

Bond evitara olhar para a jovem, mas esta disse-lhe com impaciência:

— Não precisa ter tanto cuidado em não olhar para mim. Não adianta se preocupar com tais coisas, numa hora dessas. Você mesmo o disse, ainda há pouco.

Bond virou-se e olhou para a jovem. Sua camisa esfrangalhada descia até a linha d’água. Podia-se ainda ter um vislumbre de pálidas coxas, serpeando sob a superfície. O lindo rosto sorriu para ele. No meio daqueles mangues, o seu nariz quebrado parecia harmonizar-se com o ambiente, pela sua animalidade.

Bond fitou-a descansadamente e ela compreendeu. Depois, ele deu-lhe as costas e desceu pela correnteza, seguido por ela. Logo encontrou o que procurava, isto é, uma fenda naquela parede formada pelas raízes dos mangues. Bond recomendou: — Não quebre nenhum galho. — Depois, baixou a cabeça e meteu-se por aquela brecha. O canal avançava numa distância de dez metros. A lama sob seus pés tornou-se mais mole e espessa. Chegou a uma sólida e intransponível parede de raízes. Aquela água escura fluía vagarosamente através de uma ampla e tranqüila lagoa. Bond deteve-se. A jovem se aproximou dele.

— Isto é mesmo uma brincadeira de esconde-esconde — disse ela, trêmula.

— É verdade — aquiesceu Bond distraidamente, enquanto pensava em seu revólver. Com efeito, ele preocupava-se em saber com que eficiência a arma operaria depois de um banho no rio — quantos cães e homens ele poderia eliminar, se fossem descobertos. Sentiu um estremecimento de inquietação. Tinha sido uma falta de sorte ter encontrado aquela jovem. Em combate, queira-se ou não, uma mulher representa sempre um coração a mais. O inimigo tem dois alvos enquanto apenas oferece um.

Bond lembrou-se de sua sede. Apanhou na concha da mão um pouco de água e bebeu-a. Aquela água era salobra e tinha gosto de terra. Mas servia. Bond bebeu um pouco mais. A jovem agitou a mão e deteve-o, dizendo:

— Não beba demais. Lave a boca e cuspa. Você pode apanhar febre.

Quarrel assobiou de algum ponto situado na corrente principal. Bond respondeu e foi em direção ao amigo. Depois, voltaram juntos, internando-se no canal. Quarrel borrifou as raízes de mangues com água, nos pontos em que os seus corpos talvez as tivessem raspado. “Para tirar o nosso cheiro”, explicou, laconicamente. Em seguida mostrou o seu feixe de bambus e começou a cortá-los e prepará-los. Enquanto isso, Bond se ocupava com seu revólver e a munição. Os três ficaram imóveis, no meio daquele pântano, de modo a não levantarem mais lama.

A luz do sol filtrava-se através do espesso teto de folhas, os camarões agitavam-se sob os pés daqueles três fugitivos. Gradativamente foi-se avolumando uma insuportável tensão, naquele silêncio escaldante e angustioso.

Foi quase um alívio ouvir-se o ladrar dos cães.


X - O RASTRO DO DRAGÃO


O grupo de investigação descia rapidamente pelo rio. Os dois homens, de calções de banho e altas botas impermeáveis, tinham que correr para acompanhar os cães.

Eram grandes negros chineses, que traziam coldres sustentados ao ombro por meio de talabartes cruzados diante dos peitos suados. De quando em quando trocavam gritos que em geral não passavam de imprecações. À frente deles a matilha de cães Dobermann nadava e debatia-se n’água, latindo excitadamente. Tinham farejado uma pista e procuravam segui-la nervosamente, com as orelhas eretas sobre as cabeças afladas.

— Talvez um maldito crocodilo, — gritou o chefe elevando a voz sobre a algazarra. Empunhava um chicote que de vez em quando fazia estalar no campo de caça.

Os outros homens se encaminhavam para ele. O chefe gritou excitadamente: “Aposto que é o gringo inglês! Tenho certeza de que ele está entre os mangues. Cuidado para que o gringo não nos faça cair numa emboscada.” O homem tirou o revólver do coldre e colocou-o sob o sovaco, sem tirar a mão da coronha.

O grupo agora estava deixando a parte do rio, sob céu aberto, e entrando no túnel formado pelos mangues. O primeiro homem tinha um apito, que se projetava de seu largo rosto como um toco de charuto. Fez soar um agudo silvo. Quando os cães avançaram, ele se deixou ficar com o seu chicote junto do chefe. Os animais continuavam farejando, lamuriando-se porque a corrente os obrigava a desobedecer às ordens recebidas. Os dois homens sacaram os revólveres e vadearam lentamente o rio, na mesma direção da corrente, por entre os caules tortuosos dos mangues.

O homem que ia na frente chegou ao estreito canal que Bond tinha encontrado, agarrou um dos cães pela co-leira e lançou-o ao canal. O animal resfolegou ansiosamente e debateu-se para a frente. Os olhos do homem percorreram as raízes dos mangues, de ambos os lados do canal, para ver se apresentavam algum arranhão.

O cão e o homem chegaram ao pequeno lago situado na extremidade do canal. O homem olhou à sua volta, com ar animado. Tornou a agarrar o cão pela coleira e puxou-o para trás. O animal relutava em abandonar o lugar. Então, o homem feriu a água com o chicote.

O segundo homem estivera esperando à entrada do canal. O primeiro saiu daquele pequeno remanso e sacudiu a cabeça, descendo a corrente, com os cães, que agora se mostravam menos excitados, nadando à frente.

Lentamente, a algazarra da perseguição foi diminuindo e desapareceu.

Por mais cinco minutos nada se mexeu na laguna dos mangues; depois, num dos cantos, entre as raízes, apareceu lentamente para fora d’água um fino periscópio de bambu. O rosto de Bond emergiu logo em seguida, com os cabelos molhados colados à testa, como a cara de um cadáver que boiasse. Em sua mão direita, sob a água, o revólver estava pronto. Bond procurou escutar cuidadosamente. O silêncio era completo, não havia o mínimo ruído. Ou haveria? O que seria aquele suave barulho, como se algo deslizasse entre a água, na corrente principal? Viria alguém, muito serenamente, seguindo na esteira daquela caçada? Bond procurou apalpar à sua volta e tocou delicadamente nos dois corpos que estavam cada um em um de seus flancos, entre as raízes, na orla da laguna. Quando os dois rostos aforaram à superfície, ele colocou o seu dedo indicador sobre os lábios, mas já era tarde. Quarrel tinha tossido e cuspido. Bond fez uma careta e fez um sinal na direção da principal corrente. Todos procuravam escutar. O ruído recomeçou. Alguém estava-se dirigindo para o canal lateral. Os tubos de bambu voltaram para as três bocas e as cabeças tornaram a submergir. Debaixo da água Bond descansou a cabeça na lama, apertou as narinas e os lábios à volta do tubo. Sabia que a laguna já fora examinada uma vez, pois sentira a agitação causada na água pelo cão, que passara nadando! Da primeira vez não tinham sido achados, mas conseguiriam escapar desta? Agora haveria menos possibilidades de que a lama revolta se escoasse para fora da laguna. Se esse batedor visse a mancha mais escura, na água, atiraria ou usaria um punhal? Que armas traria? Bond resolveu não correr riscos. Ao primeiro rumor de movimento, ao seu lado, ele se poria de pé e daria logo ao gatilho, esperando pelo melhor.

Assim ficou ele, submerso, com todos os sentidos atentos. Como era desagradável aquele respirar controlado e insuportáveis as ligeiras mordidelas dos camarões! Por sorte nenhum deles tinha qualquer ferida no corpo, pois do contrário os malditos animalzinhos ter-se-iam atirado contra elas. De qualquer forma, aquela fora uma brilhante idéia da jovem. Sem ela os cães já os teriam alcançado, onde quer que eles se tivessem escondido.

Inesperadamente, Bond encolheu-se. Uma bota de borracha tinha pisado em seu queixo e escorregado. O homem pensaria tratar-se de um galho de árvore? Bond não podia correr aquele risco. Com um só impulso pôs-se de pé, atirando para longe o pedaço de bambu.

Bond teve uma rápida impressão de um gigantesco corpo de pé, quase em cima de si, e duma coronha de rife, em rápido movimento. Levantou o braço esquerdo para proteger a cabeça e recebeu um violento golpe no braço. Ao mesmo tempo, o seu braço direito se esticou para a frente, e, quando o cano tocou no lado direito do peito, sob o mamilo, ele acionou o gatilho.

O coice da arma, quase encostada ao corpo do homem, por pouco não quebrou o pulso de Bond, mas o homem desabou para trás como uma árvore decepada que cai n’água. Antes que o corpo afundasse, Bond ainda pôde perceber-lhe uma grande fenda no flanco. A cabeça, uma cabeça negróide de chinês, veio à superfície, com os olhos revirados para cima e a água a sair de sua boca escancarada e silenciosa. Em seguida a cabeça submergiu novamente e nada mais se pôde ver senão uma lama espumosa e uma mancha vermelha que gradualmente se ia ampliando e lentamente era atraída pela corrente.

Bond se endireitou e voltou-se para o lado. Quarrel e a jovem estavam atrás, em pé, com a água a escorrer-lhes dos corpos. Quarrel tinha um sorriso que ia de orelha a orelha, mas a garota mordia as articulações dos dedos, enquanto seus olhos se escancaravam horrorizados diante da água avermelhada.

Bond disse laconicamente: “Desculpe-me, Honey. Tinha que ser feito. Ele estava bem sobre nós. Venha, vamos indo.” Agarrou-a de qualquer maneira, pelo braço, e arrastou-a para fora da principal corrente, apenas detendo-se quando chegaram a rio aberto, na boca do túnel de mangues.

O cenário estava novamente vazio. Bond olhou para o relógio, e verificou que parara às três horas. Olhou para o sol, já bastante deslocado para o ocidente e concluiu que deveriam ser quatro horas. Quanto ainda teriam que caminhar? Bond inesperadamente sentiu-se cansado. Agora teria de enfrentar a situação. Ainda que o disparo não tivesse sido ouvido — e certamente que ele fora abafado pelo próprio corpo da vítima e pelas árvores — a falta do homem seria sentida quando os outros se reunissem, — se a suposição de Quarrel fosse correta, na embocadura do rio, de onde seriam recolhidos pela lancha. Voltariam eles, subindo o rio, a fim de procurarem o desaparecido? Talvez não. Já estaria muito escuro quando eles tivessem a certeza de que o homem estava realmente desaparecido. O mais certo seria mandarem um grupo de homens pela manhã. Os cães facilmente dariam com o corpo. E o que aconteceria?

A garota puxou-o pela manga e disse com irritação: — Já é tempo de você me dizer o que significa tudo isto! Por que estão todos procurando se matar mutuamente? E quem é você? Não acredito em toda essa história de aves. Ninguém carrega revólveres contra aves.

Bond baixou o olhar, fitando aqueles olhos bem separados e irados. — Desculpe-me, Honey. Receio tê-la arrastado para uma boa encrenca. Eu lhe contarei tudo quando voltarmos à noite para o acampamento. Foi apenas má sorte que você se envolvesse comigo, desta maneira. Tenho uma guerrinha com essa gente. Eles parecem querer matar-me. Agora estou apenas interessado em que todos nós saiamos desta ilha sem que ninguém fique ferido. Já tenho muito do que queria, para da próxima vez voltar pela porta da frente.

— O que você quer dizer? Você é alguma espécie de policial? Está querendo meter esse chinês na cadeia?

— Mais ou menos, — disse Bond, rindo para ela. — Pelo menos você está do lado dos anjos. Agora, diga-me uma coisa. Quanto falta ainda para chegar ao acampamento dos guardas?

— Oh, cerca de uma hora.

— É um lugar bom para nele esconder-se? Eles poderiam achar-nos com facilidade?

— Eles teriam que atravessar o lago ou subir o rio. Tudo estará muito bem se eles não puserem o dragão em nosso encalço. Ele pode muito bem atravessar a água, pois já o vi fazê-lo.

— Bem — disse Bond diplomaticamente — esperemos que ele esteja com a cauda machucada, ou tenha outra coisa qualquer.

A jovem vociferou: — Muito bem, sr. Sabe-Tudo. — E acrescentou irritada: — Espere e verá.

Quarrel deixou o túnel de mangues, agitando ruidosamente a água, tendo na mão o rife do chinês abatido, e dizendo à guisa de quem pede desculpas:

— Não há mal em termos outra arma, chefe. Parece que vamos precisar dela.

Bond apanhou aquela arma. Era uma carabina “Remington”, do exército norte-americano, calibre 300. Não havia dúvida de que aquela gente contava com equipamento apropriado. Bond devolveu a arma a Quarrel, depois de examiná-la.

Quarrel como que fez eco aos seus pensamentos: — Isso é gente astuta, capitão. Aquele homem veio esquadrinhando suavemente, atrás dos outros, a fim de nos surpreender quando deixássemos o esconderijo, depois da passagem dos cães. Esse tal de doutor com certeza é um sujeito muito esperto.

Bond disse pensativamente: — É, ele deve ser um homem incomum. — Depois espantou os pensamentos: — Agora, vamos tocando para a frente. Honey diz que ainda precisamos de uma hora para chegarmos ao acampamento. É melhor irmos pela margem esquerda, de modo a ficarmos ao abrigo da colina. Pelo que já pudemos ver, eles têm lunetas assestadas sobre o rio.

Bond entregou a sua arma a Quarrel, que a guardou na mochila molhada. Puseram-se novamente em marcha, com Quarrel à frente, e Bond e a jovem andando juntos, atrás.

Aproveitavam algumas sombras das árvores e bambus da margem ocidental, mas deviam agora suportar toda a intensidade de um vento crestante. Borrifaram braços e corpos com água, a fim de refrescar as queimaduras. Os olhos de Bond estavam injetados por aquele insuportável revérbero e o seu braço doía intoleràvelmente no ponto em que fora atingido pela coronha. E ele não teria à sua espera o seu jantar de pão embebido, queijo e fiambre. Quanto tempo poderiam dormir? Não dormira muito na véspera, e parece que não iria ter melhor ração de sono. E a garota? Ela nada dormira. Ele e Quarrel teriam que se revezar, em quartos de vigilância. E logo chegaria o dia seguinte, quando procurariam ganhar novamente os mangues e vencer lentamente a distância que os separava de sua canoa, através da extremidade oriental da ilha. As coisas correriam daquela forma, segundo era de esperar. Então, tratariam de se fazerem ao mar na noite seguinte. Bond pensou em como haveria de abrir caminho por entre sólidos mangues, na distância de oito quilômetros. Que perspectiva! Continuou se arrastando para a frente, pensando nas “férias ao sol dos trópicos” de M. Muito gostaria que M tivesse que partilhar com ele aquelas “férias”.

O rio foi-se estreitando até que se reduziu a uma simples corrente entre as moitas de bambu. Depois se ampliava num estuário baixo e pantanoso, além do qual as cinco milhas quadradas de lago raso davam vazão para o outro lado da ilha, perdendo-se num agitado espelho líquido azul-cinza. Mais para além estava a brilhante pista aérea e o reflexo da luz solar sobre um único hangar. A jovem disse-lhe que se mantivesse na direção leste, e eles foram lentamente avançando, protegidos pela orla da mata.

Inesperadamente, Quarrel deteve-se, com o rosto esticado como o focinho de um cão para o terreno pantanoso à sua frente. Dois profundos sulcos tinham sido escavados na lama, com um sulco mais raso no centro. Eram a trilha de algo que tinha descido da colina e atravessado o pântano em direção ao lago.

A jovem disse com indiferença: — Por aqui já passou o dragão.

Quarrel arregalou os olhos para ela.

Bond caminhou lentamente pela trilha. As marcas exteriores eram bastante lisas, trazendo a marca de uma linha curva. Poderiam ter sido causadas por rodas, mas eram enormes, pelo menos com sessenta centímetros de largura. A trilha central tinha a mesma forma, mas com apenas três polegadas de largura, ou seja a largura de um pneumático de automóvel. As trilhas não apresentavam nenhum indício de pegadas e eram completamente frescas. Estendiam-se em linha reta, e os arbustos por elas atravessados tinham sido derrubados e esmagados no chão, como se um tanque de guerra tivesse passado por ali. Bond não podia imaginar que espécie de veículo seria aquele. A jovem tocou-o com o cotovelo e murmurou: — Eu lhe tinha dito. Ele apenas pôde responder pensativamente: — Bom, Honey, se não é o dragão, é algo que nunca vi antes.

Mais adiante, ela puxou-o ansiosamente pela manga. “Veja”, sussurrou, e apontou para a frente, indicando um grande cerrado de árvores, ao lado do qual passavam as trilhas. O cerrado estava sem folhas, enegrecido. Ao centro viam-se os restos dos ninhos de pássaros carbonizados. — Ele respirou sobre as árvores, — disse a garota nervosamente.

Bond aproximou-se das árvores e examinou-as. — Certamente que o fez — admitiu. Por que aquele cerrado, em especial, tinha sido queimado? Era muito estranho aquilo.

As trilhas desciam em direção ao lago e desapareciam na água. Bond teria gostado de segui-las, mas não poderia abandonar a cobertura das árvores. Assim, continuaram a marcha, cada um entregue aos próprios pensamentos.

Lentamente o dia começou a morrer, por trás da colina, e por fim a garota apontou para a frente, através dos arbustos; Bond pôde ver uma comprida restinga internando-se no lago. Estava coberta por densas moitas de arbustos e podiam-se ver, a cem metros da praia, os restos de uma cabana incendiada. Aquele parecia um lugar razoavelmente atraente para se passar a noite, e era bem protegido dos dois lados, pela água.

O vento tinha declinado e a água se apresentava suave e convidativa. Que prazer não seria tirarem as suas imundas camisas para um banho no lago e, depois de horas de patinhação através da lama e do lodo do pântano, poderem descansar naquela areia dura e seca!

O sol brilhou com reflexos amarelecidos e desapareceu por trás da montanha. Ainda era dia na extremidade oriental da ilha, mas a sombra negra do monte avançava vagarosamente sobre o lago e acabaria por expulsar completamente os últimos vestígios do sol. Os sapos começaram a coaxar mais barulhentamente que em Jamaica, até que a noite ficou cheia daquele áspero ruído. Do outro lado do lago um grande sapo macho começou a soar o seu tambor. Aquele estranho som era algo entre um tom-tom e um rosnado de macaco. Enviava mensagens que subitamente se interrompiam e logo silenciaram. Com certeza encontrara o que procurava.

Chegaram à garganta da restinga e seguiram por um estreito caminho, até a clareira que encerrava os escombros da cabana de sapé. As grandes e misteriosas trilhas saíam da água, de ambos os lados, atravessavam a clareira e os cerrados próximos. Muitos dos arbustos estavam queimados ou crestados. Podiam-se ver os restos de um fogão feito de pedaços de coral, e algumas panelas e latas vazias. Examinaram os destroços, e Quarrel desenterrou um par de latas intactas de costeletas de porco e ervilhas marca “Heinz”. A jovem encontrou ainda um saco de dormir muito amarrotado, enquanto Bond achou uma pequena bolsa de couro com cinco notas de um dólar, três libras de Jamaica e algumas moedas de prata. Os dois homens certamente tinham abandonado aquele lugar a toda pressa.

Prosseguiram mais para diante, até uma pequena clareira arenosa. Através dos arbustos podiam ver luzes cintilando sobre a água e provenientes da montanha, talvez a mais de três quilômetros de distância. A leste nada mais havia senão. os suaves reflexos escuros da água sob o céu sombrio.

Bond comentou: — Enquanto não acendermos nada, estaremos bem aqui. A primeira coisa a fazer é tomarmos um bom banho, Honey. Você pode ficar com o resto da restinga, que nós ficaremos com a sua garganta. Dentro de meia hora espero vê-la para o jantar.

A garota riu: — Você virá a rigor?

— Sem dúvida — respondeu Bond — e de calças.

Quarrel observou: — Capitão, enquanto ainda há um pouco de luz, vou abrir essas latas e preparar as coisas para a noite. — Remexeu dentro da mochila. — Aqui estão as suas calças e o seu revólver. O pão talvez não esteja muito bom, mas está apenas molhado. Pode-se comê-lo bem, e amanhã estará seco. O melhor talvez fosse comermos das latas esta noite, guardando o queijo e as costeletas. As latas são pesadas e amanhã teremos que andar muito.

Bond respondeu: — Muito bem, Quarrel. Deixarei o cardápio aos seus cuidados.

Em seguida, apanhou o revólver e as calças úmidas e desceu para a água rasa. A água estava acariciante, mas desagradavelmente quente. Bond escavou punhados de areia, com as mãos, e esfregou o corpo com ela, utilizando-a como sabonete. Depois deixou-se ficar gostosamente em meio àquele silêncio e àquela solidão.

As estrelas começaram a brilhar palidamente, as estrelas que os tinham trazido à ilha na noite passada; as estrelas que os tirariam dali no dia seguinte. Que viagem! Mas pelo menos já tinha dado os seus resultados. Agora tinha provas bastantes, e testemunhas, para ir ter com o governador e conseguir dele um inquérito completo acerca das atividades do Dr. No. Ninguém lança mão de metralhadoras contra pessoas, mesmo contra intrusos. E, da mesma forma, o que seria aquilo do Dr. No, que invadira a propriedade da Sociedade Audubon, aquilo que chegara a destruir essa propriedade e provavelmente matara um de seus empregados? Isto também teria que ser investigado. E o que haveria ele de encontrar quando voltasse pela porta da frente, talvez a bordo de um destróier, e com um destacamento de fuzileiros navais? Qual seria a resposta para o mistério do Dr. No? O que estaria ele escondendo? Por que aquele segredo era tão importante, que seria capaz de matar repetidas vezes, para preservá-lo? E quem era esse Dr. No?

Bond ouviu o barulho de alguém espojando-se na água. Pensou na garota. E quem, afinal, era Honeychile Ri-der? Aquilo pelo menos, pensou ele ao sair da água, era algo que deveria esclarecer antes do amanhecer.

Bond enfiou as suas pegajosas calças, sentou-se na areia e desmontou o revólver. Fê-lo pelo tato, utilizando-se de sua camisa para secar cada peça e cada cartucho. Depois, tornou a montar a arma e pressionou o gatilho, fazendo com que o tambor vazio desse uma volta completa. O som era satisfatório. Seriam precisos alguns dias para que o revólver começasse a enferrujar. Carregou-o e meteu-o no coldre, para dentro do cós da calça. Depois, levantou-se e voltou para a clareira.

A sombra de Honey chegou até ele, e a sua voz se fez ouvir: — Venha; estamos morrendo de fome. Apanhei uma das panelas, limpei-a e pusemos as ervilhas nela. Temos pão também. E eu não sinto escrúpulos de comer a sua ração, porque você me fez trabalhar muito mais do que se eu estivesse sozinha. Agora, estique a mão.

Bond achou graça no tom autoritário que havia em sua voz. Ele apenas podia perceber a sua silhueta, no escuro. Sua cabeça parecia mais aflada. Ele se perguntou como seriam os seus cabelos quando secos e penteados. Como seria ela quando estivesse vestindo roupas limpas naquele lindo corpo dourado? Podia vê-la entrando numa sala ou atravessando um vestíbulo em Beau Desert. Ela seria uma linda e encantadora Patinha Feia. Por que nunca procurara endireitar o nariz? Seria uma operação fácil. Depois disso, ela seria a jovem mais bela de Jamaica.

O seu ombro tocou nele. Bond esticou o braço e descansou a mão aberta no colo da jovem. Então Bond sentiu que ela estava enchendo a sua mão com ervilhas.

Subitamente, Bond aspirou o seu cheiro cálido de animal. Foi uma explosão sensual tão aguda que o seu corpo se uniu ao dela, e, por um momento, os seus olhos se fecharam.

Ela deixou escapar um riso curto, no qual havia timidez, satisfação e ternura. E disse, maternalmente: “Lá”, — e empurrou a mão de Bond.

 

CONTINUA

IX - POR UM TRIZ


Dez minutos mais tarde a baía estava vazia e imaculada. Pequenas ondas encrespavam-se preguiçosamente através do espelho das águas, no interior dos recifes e morriam exaustas na areia escura onde as conchas lilás brilhavam como unhas pintadas. O monte de conchas tinha desaparecido e não havia mais vestígios de pegadas. Quarrel cortara galhos de mangues e caminhava de costas procurando apagar as pegadas com aqueles galhos. Onde tinha varrido, a areia apresentava uma limpidez diferente mas não tão diferente a ponto de ser notada de fora do recife. A canoa da jovem tinha sido arrastada para dentro do mar, entre as rochas, e ali ficou coberta com algas e gravetos.

Quarrel tinha voltado ao promontório. Bond e a jovem estavam juntos, sob tufos de folhas, onde Bond dormira, e olhavam silenciosamente para o contorno do promontório, à volta do qual surgira a embarcação.

A lancha estava talvez a uns quinhentos metros de distância. A julgar pelo lento ritmo do motor, Bond concluiu que cada acidente da costa estava sendo cuidadosamente inspecionado para descobrir indícios da presença de estranhos. De qualquer forma, aquilo parecia uma possante embarcação. Talvez uma grande lancha de cabina. Que tripulação teria? Quem estaria no comando? O Dr. No? Improvável. Ele certamente não se daria àquele trabalho de polícia.

Do lado do ocidente apareceu um bando de corvos marinhos, voando baixo sobre o mar, além dos recifes. Bond observou-os. Eram o primeiro indício para ele encontrado daquela colônia de aves, na outra extremidade da ilha. Aquele bando, segundo Pleydell-Smith, seriam batedores à procura do brilho prateado das enchovas, próximas à superfície. Enquanto observava, as aves começaram a dar mergulhos rasos, ferindo o mar superficialmente e levantando respingos de água. Quase que de uma só vez, apareceu outra coluna de aves, vinda do ocidente, e logo outra, e mais outra, fundindo-se todas numa espessa e escura nuvem. Durante minutos, elas sombrearam o céu, e depois atiraram-se à água, cobrindo vários alqueires, piando e lutando, e mergulhando as cabeças no mar, fazendo uma rica colheita naquele sólido campo de anchovas, como piranhas que se banqueteassem num cavalo afogado.

Bond sentiu um suave toque da jovem, que fez um movimento com a cabeça, dizendo:

— As galinhas do chinês estão comendo milho.

Bond observou-lhe o rosto belo e feliz. Ela parecia bastante despreocupada com a chegada daqueles homens. Para ela aquilo era apenas o jogo de esconde-esconde que já tinha praticado antes.

A vibração metálica dos motores diesel estava-se tornando mais forte. A lancha deveria estar justamente por trás do promontório. Bond deu mais uma olhada à volta da tranqüila baía, e depois fixou os olhos através da folhagem e do mato, para os lados dos recifes.

A ponta de uma proa branca apareceu, seguida de uns dez metros de tombadilho, e logo o parabrisas de vidro, uma cabina baixa e uma antena de rádio, e o vulto de um homem à volta do leme. Finalmente, o comprido e achatado fosso da popa, e uma flâmula vermelha pendente, Seria uma lancha-torpedeira convertida, um excedente de guerra do governo britânico?

Os olhos de Bond fixaram-se nos dois homens que estavam em pé na popa. Eram negros de pele pálida, envergando roupas caqui de marinheiro, com largos cinturões e chapéus de palha com longas palas. Estavam um ao lado do outro, equilibrando-se sob a lenta elevação da massa líquida. Um deles segurava um alto-falante e o outro manejava uma metralhadora instalada num tripé. Bond teve a impressão de que era uma metralhadora “Spandau”.

O homem com o alto-falante deixou que este caísse, e ele ficou oscilando numa tira, que lhe dava volta ao pescoço. Apanhou um binóculo e começou a vasculhar metro a metro da praia. Indistintos comentários chegavam aos ouvidos de Bond, por entre o ruído dos motores.

Bond percebeu que os olhos do binóculo começavam pelo promontório e depois percorriam a areia. As lentes detiveram-se entre as rochas e continuaram o seu passeio. Depois, voltaram. O murmúrio do comentário elevou-se ganhando animação. O homem passou o binóculo para o metralhador, que observou rapidamente, devolvendo-o logo ao dono. O observador gritou alguma coisa para o timoneiro. A lancha começou a se aproximar da praia. Agora estavam justamente diante dos recifes, em frente a Bond e à jovem. O observador ergueu novamente o binóculo, apontando-o para as rochas onde se encontrava escondida a canoa da jovem. Novamente a fala excitada chegou aos ouvidos de Bond, por sobre as águas. Mais uma vez o binóculo foi passado ao metralhador, que levou algum tempo observando. Dessa vez, ele fez um sinal de assentimento com a cabeça.

Bond pensou: agora vamos ter coisa; esses homens conhecem o ofício. Em seguida, viu que o metralhador se ocupava em carregar a arma. O duplo estalido metálico chegou aos seus ouvidos, por entre o matraquear do motor.

O observador ergueu o alto-falante e ligou-o. O eco produzido pelo amplificador chegou até Bond, conduzido pela superfície da água. A voz do homem ribombou pela baía:

— Alô, pessoal! Saiam daí e não serão feridos. Era uma voz educada, com sotaque americano.

— Agora, pessoal — trovejou a voz — depressa! Nós vimos quando vocês desembarcaram. Já descobrimos o bote sob os paus. Não somos tolos e não estamos brincando. Saiam daí com os braços levantados e não lhes acontecerá nada!

Não se ouviu nenhuma resposta. Apenas as ondas quebravam docemente na praia. Bond podia ouvir a respiração da jovem. Os guinchos agudos dos corvos marinhos chegavam-lhes de uma milha de distância, sobre o mar. O cano de escapamento dos motores diesel produzia um ruído desigual e gorgulhante, quando o intumescimento do mar cobria o orifício de descarga.

Silenciosamente Bond tocou o braço da jovem e disse-lhe:

— Fique mais perto. Alvo menor.

Ele sentiu o calor da jovem mais próximo de seu corpo, e o rosto de Honey raspou pelo seu braço. Bond sussurrou:

— Enterre-se na areia. Encolha-se. Cada polegada a menos ajudará.

Ele começou a se encolher cuidadosamente na depressão que tinham escavado para se abrigarem, e sentiu que ela fazia o mesmo.

O homem estava erguendo o seu alto-falante. A voz ribombou novamente.

— Muito bem, pessoal! Vocês irão ver que isso aqui não é para brincadeira. — Depois, levantou o polegar. O metralhador experimentou a arma fazendo alguns disparos para a copa dos mangues situados por trás da praia. Bond ouviu o rápido matraquear, tão seu conhecido, e do qual se despedira pela última vez diante das linhas alemãs, nas Ardenas. As balas produziam o velho som de pombos assustados, assobiando sobre sua cabeça. Depois fez-se silêncio.

À distância, Bond via a nuvem negra de corvos marinhos elevar-se, começando a fazer os seus amplos círculos. Seus olhos voltaram para a embarcação. O metralhador estava apalpando o cano da metralhadora, para ver se já estava aquecido. Os dois homens trocaram algumas palavras. O observador apanhou novamente o porta-voz.

— Está bem, pessoal. Vocês foram avisados.

Bond viu o cano da “Spandau” levantar-se e abaixar-se. O homem estava querendo começar com a canoa, entre as rochas. Bond sussurrou para a jovem: — Muito bem, Honey. Agüente firme. Mantenha-se abaixada. Não vai durar muito.

Ele sentiu que a mão da jovem apertava o seu braço, e pensou: “Coitada; ela está metida nisso por minha causa.” Ele inclinou-se para a direita a fim de cobrir a cabeça de Honey e afundou o rosto na areia.

Dessa vez o matraquear foi terrível. Balas ricocheteavam no flanco do promontório. Fragmentos de pedra saltavam para todos os lados, sobre a praia. Outras balas ricocheteavam e iam perder-se dentro da mata. Simultaneamente com todo aquele barulho ouvia-se o martelar contínuo da metralhadora.

Houve uma pausa. Nova carga, pensou Bond. Agora será para nós. Pôde sentir a jovem agarrando-se a ele. Seu corpo tremia todo, encostado ao seu flanco. Bond apanhou uma arma e apertou-a de encontro ao corpo. O matraquear da metralhadora recomeçou. As balas vinham zunindo, da linha de maré, em direção a eles. Ouviu-se uma sucessão de rápidas batidas. O tufo, acima deles, estava sendo reduzido a pedaços. “Zuip Zuip Zuip”. Era como se um chicote de aço estivesse retalhando os arbustos. Pedaços de lenha caíam sobre eles, cobrindo-os lentamente. Bond respirou um ar mais fresco, o que significava que eles agora estavam ao ar-livre. Estariam eles escondidos pelas folhas o pelos destroços? As balas continuaram deslocando-se ao longo da linha da costa. Em menos de um minuto a metralhadora parou.

O silêncio tornou a reinar. A jovem lamuriou-se docemente. Bond fê-la calar-se e apertou-a mais forte.

O alto-falante apregoou:

— Está bem, pessoal. Se vocês ainda têm ouvidos, saibam que voltaremos logo para recolher-lhes os pedaços. Vamos trazer os cães. Até à vista, por enquanto.

O ritmo do motor se acelerou, e através das folhas Bond pôde ver a popa da lancha afundar-se mais na água, enquanto a embarcação rumava rapidamente para oeste. Dentro de minutos já não se ouvia mais nada.

Bond ergueu a cabeça cautelosamente. A baía estava serena, e tudo como antes, exceto o cheiro de cordite e as rochas quebradas.

Bond fez a jovem levantar-se. Havia marcas de lágrimas em seu rosto. Ela olhou-o aterrada, e disse:

— Isso foi terrível. Por que eles o fizeram? Podíamos ter sido mortos.

Bond pensou naquela jovem que sempre abrira caminho, na vida, por si mesma, mas apenas contra a natureza. Conhecia o mundo dos animais, dos insetos e dos peixes, e tirava todo o partido desse conhecimento. Mas aquele era um pequeno mundo, limitado pelo sol, pela lua e pelas estações. Ela não conhecia o grande mundo das salas cheias de fumo, dos corredores de negócios, dos corredores e antecâmaras governamentais, dos cautelosos encontros em bancos de praças — numa palavra: ela nada conhecia da luta pelo poder e pelo dinheiro, travada por homens poderosos.

Bond disse:

— É isso mesmo, Honey, eles não passam de uma quadrilha de bandidos assustados conosco. Podemos enfrentá-los.

Bond colocou o braço à volta de seus ombros e continuou:

— E você esteve maravilhosa, brava como ninguém. Agora, vamos ao encontro de Quarrel para traçar os nossos planos. De qualquer forma, já é tempo de comermos alguma coisa. O que é que você costuma comer nessas expedições?

Deram meia-volta e seguiram pela praia em direção ao promontório. Depois de um minuto, ela disse com voz bem controlada:

— Oh, há uma porção de coisas por aí que se podem comer. Ouriços do mar principalmente, mas também bananas silvestres e outras coisas. Eu como e durmo durante dois dias, antes de vir aqui. Não preciso de nada.

Bond apertou-a mais fortemente, mas deixou cair o braço, assim que Quarrel apareceu ao longe. Quarrel vinha saltando sobre as rochas, e, em determinado momento, parou, olhando para baixo. Bond e Honey se aproximaram dele. A canoa da jovem estava cortada ao meio pelas balas. Honey deixou escapar um grito, olhando desesperadamente para Bond:

— A minha canoa! Como poderei voltar?

— Não se preocupe, senhorita, — disse Quarrel, que sentia a perda de uma canoa mais do que Bond. Imaginou ainda que aquela embarcação representasse quase todo o capital da jovem. — O capitão lhe dará outra. E a senhorita voltará conosco. Temos um magnífico bote, entre os mangues, e ele não foi destruído. Já estive lá espiando.

Quarrel olhou para Bond. Agora, o seu rosto denotava preocupação.

— Mas, capitão, o senhor está vendo o que eu disse dessa gente. Eles são duros e não estão brincando. Esses cães que eles vão trazer são policiais — Pinschers, como eles os chamam. Bastardos. Meus amigos disseram-me que são uma matilha de vinte ou mais. É melhor resolvermos logo.

— Está bem, Quarrel. Mas antes de mais nada precisamos comer alguma coisa. — o diabo que me carregue se eu vou ser aterrorizado e expulso da ilha antes de dar uma olhada nisso. Levaremos Honey conosco. — E, voltando-se para a jovem:

— Está bem, Honey? Nada lhe acontecerá. Depois voltaremos juntos.

A jovem olhou-o em dúvida:

— Acho que não há alternativa. Quero dizer. Gostaria de ir com vocês, se não atrapalhasse. Francamente, não quero comer nada. Mas você me levará de volta, assim que puder? Não quero ver mais aquela gente. Durante quanto tempo vocês vão ficar olhando para essas aves?

Bond respondeu evasivamente:

— Pouco tempo. Eu terei apenas que ver o que lhes aconteceu e porquê. Depois, partiremos.

Olhou para o relógio e anunciou:

— Agora são doze horas. Você nos esperará aqui. Tome um banho ou faça o que quiser. Não ande por aí deixando pegadas. Vamos, Quarrel, é melhor escondermos aquele bote.

Só à uma hora eles estavam prontos. Bond e Quarrel encheram a canoa com pedras e areia, até que ela desapareceu sob a água, entre os mangues. Depois, apagaram as suas pegadas. As balas tinham deixado tantos gravetos na orla da praia, que eles podiam caminhar pisando em folhas e ramos quebrados. Comeram parte de suas rações — os homens com avidez, mas Honey com relutância — e depois, passando sobre as rochas, foram ter à lagoa, próxima da costa. Em seguida foram vadeando aquelas águas, em direção à foz do rio, trezentos metros praia abaixo.

Fazia muito calor. Um vento áspero e quente começou a soprar do nordeste. Quarrel informou que aquele vento soprava diariamente, durante todo o ano, e era vital para a guaneira, pois secava o guano. O revérbero do mar e das brilhantes folhas verdes dos mangues cegava-os. Bond deu-se por feliz, já que tivera o cuidado de acostumar sua pele ao sol.

Na foz do rio encontraram um banco de areia e um extenso pântano, profundo e de águas estagnadas. Os dois homens podiam molhar-se ou tirar as roupas. Bond disse à jovem:

— Honey, não podemos ter cerimônia, nesta situação. Vamos ficar apenas com as camisas por causa do sol. Fique apenas com o que for sensato e caminhe atrás de nós.

Sem esperar pela resposta da jovem, os dois homens tiraram as calças. Quarrel enrolou-as e guardou-as na sacola, juntamente com as provisões e o revólver de Bond. Depois começaram a vadear a lagoa, com Quarrel na frente, logo seguido de Bond, e, finalmente a jovem. A água chegou até a cintura de Bond. Um grande peixe prateado deu um salto perto deles e depois caiu ruidosamente na água. Viram-se pequeninas setas riscarem a superfície, quando peixes menores se afastaram precipitadamente.

A lagoa convergia para uma estreita garganta, por sobre a qual as copas dos mangues se tocavam. Durante algum tempo eles vadearam através de um túnel fresco, e depois o rio se alargou num canal profundo, de águas morosas, que serpeava para a frente, entre as gigantescas raízes de sustentação dos mangues. O fundo era lamacento, e a cada passo os pés se enterravam algumas polegadas no lodo. Pequenos peixes ou camarões se encolhiam ou fugiam de baixo de seus pés, e de quando em quando eles tinham que parar para se desembaraçar das sanguessugas, antes que elas se agarrassem firmemente. A não ser isso, aquela caminhada era fácil, sob o frescor das arvores, e, pelo menos para Bond, era uma bênção estar ao abrigo do sol.

Em breve, à medida que se iam afastando do mar, começaram a sentir um cheiro de ovo podre, o cheiro de hidrogênio sulfurado do gás dos pântanos. Os mosquitos começaram a assaltá-los e pareciam gostar do corpo de Bond. Quarrel disse-lhe que mergulhasse na água do rio, pois os mosquitos gostavam de carne salgada. Bond tirou a camisa e fez o que Quarrel lhe aconselhara. Depois disso sentiu-se melhor e o seu olfato chegou mesmo a se acostumar com aquele repugnante cheiro, a não ser quando os pés de Quarrel desfaziam algum bolsão de gás, no fundo da lama, e uma gigantesca bolha atravessava a água para arrebentar na superfície sob as suas narinas.

Os mangues começaram a se tornar mais escassos e mais esparsos, enquanto o rio se ia alargando aos poucos. Ao mesmo tempo, a água tornava-se mais rasa e o fundo mais firme. Logo chegaram a uma volta e saíram para céu aberto, Honey disse:

— É melhor tomarmos cuidado, agora. Eles poderão ver-nos com muita facilidade. Isso vai assim durante uma milha. Depois o rio torna a se estreitar até o lago. E depois se poderá ver a restinga onde os tratadores das aves viviam.

O grupo deteve-se à sombra do túnel de mangues e olhou para fora. O rio serpeava perigosamente, afastando-se deles, em direção ao centro da ilha. As suas barrancas, bordadas de bambus de pequeno porte e de vegetação rala, dar-lhes-íam cobertura reduzida. Partindo de sua margem ocidental, o terreno elevava-se aos poucos, e logo abruptamente até o monte, situado a três quilômetros de distância, que era a guaneira. Na base daquela montanha, viam-se várias cabanas esparsas. Um ziguezague prateado galgava o flanco da colina, até as tendas — trilhos “Decauville”, pensou Bond, destinados a levarem o guano para o moinho e separa-dor. O cume do monte era branco, como se estivesse coberto de neve. De sua parte mais elevada desprendia-se como que uma bandeira de dó de guano. Bond podia ver os pontos negros que eram os corvos marinhos, sobre o fundo branco. Aquelas aves estavam levantando vôo e pousando como abelhas numa colmeia.

Bond deixou-se ficar de pé e contemplou o brilho distante daquela montanha de excrementos de aves. Então aquilo era o reino do Dr. No! Bond pensou que jamais vira um cenário tão escondido e distante, em toda a sua vida.

Examinou o terreno entre o rio e a montanha. Parecia ser principalmente formado com aquela matéria cinzenta de corais mortos. Não havia dúvida de que uma estrada ou trilha corria da falda da montanha até ao lago central e aos pântanos. Bond notou ainda que toda a vegetação se curvava para oeste, e imaginou viver durante todo um ano com aquele vento escaldante castigando a ilha, sem falar do cheiro do guano e do gás dos pântanos. Nenhuma colônia penal poderia encontrar pior localização do que aquela.

Bond olhou para leste, onde os mangues, na área dos charcos, pareciam oferecer mais hospitalidade. Os três puseram-se a caminhar sobre um sólido tapete verde de vegetação. Sobre suas cabeças, aves revoluteavam agitadas, para depois se, acalmarem, e logo tornarem a agitar-se. Seus pios eram carregados pelo vento crestante.

A voz de Quarrel interrompeu os pensamentos de Bond:

— Eles vêm vindo, capitão!

Bond seguiu o olhar de Quarrel. Um grande caminhão descia celeremente das tendas, com uma nuvem de pó levantando-se das rodas. Bond acompanhou-o durante dez minutos, até que o veículo desapareceu entre os mangues, na margem do rio. Bond pôs-se a escutar e ouviu latidos de cães, que eram trazidos pelo vento.

Quarrel comentou:

— Eles vão descer pelo rio, capitão. Sabem que não nos podemos mover, a não ser rio acima, se não estivermos mortos. Certamente que descerão pelo rio, até a praia, e farão um reconhecimento dos destroços. Depois, com toda a certeza, a lancha virá com um pequeno bote e recolherá os homens e os cães. Pelo menos, isso é o que eu faria no lugar deles.

Honey disse: — Isso é, de fato, o que eles fazem quando me procuram. É isso mesmo. Basta que cortemos um pedaço de bambu, e, quando eles estiverem perto, mergulhemos na água, procurando respirar através do bambu, até que eles se afastem.

Bond sorriu para Quarrel, e disse: — Suponhamos que você corte os bambus, enquanto eu procuro um bom esconderijo entre os mangues.

Quarrel aquiesceu hesitante e começou a subir contra a corrente, em direção ao bambuzal, enquanto Bond se encaminhava para o túnel formado pelos mangues.

Bond evitara olhar para a jovem, mas esta disse-lhe com impaciência:

— Não precisa ter tanto cuidado em não olhar para mim. Não adianta se preocupar com tais coisas, numa hora dessas. Você mesmo o disse, ainda há pouco.

Bond virou-se e olhou para a jovem. Sua camisa esfrangalhada descia até a linha d’água. Podia-se ainda ter um vislumbre de pálidas coxas, serpeando sob a superfície. O lindo rosto sorriu para ele. No meio daqueles mangues, o seu nariz quebrado parecia harmonizar-se com o ambiente, pela sua animalidade.

Bond fitou-a descansadamente e ela compreendeu. Depois, ele deu-lhe as costas e desceu pela correnteza, seguido por ela. Logo encontrou o que procurava, isto é, uma fenda naquela parede formada pelas raízes dos mangues. Bond recomendou: — Não quebre nenhum galho. — Depois, baixou a cabeça e meteu-se por aquela brecha. O canal avançava numa distância de dez metros. A lama sob seus pés tornou-se mais mole e espessa. Chegou a uma sólida e intransponível parede de raízes. Aquela água escura fluía vagarosamente através de uma ampla e tranqüila lagoa. Bond deteve-se. A jovem se aproximou dele.

— Isto é mesmo uma brincadeira de esconde-esconde — disse ela, trêmula.

— É verdade — aquiesceu Bond distraidamente, enquanto pensava em seu revólver. Com efeito, ele preocupava-se em saber com que eficiência a arma operaria depois de um banho no rio — quantos cães e homens ele poderia eliminar, se fossem descobertos. Sentiu um estremecimento de inquietação. Tinha sido uma falta de sorte ter encontrado aquela jovem. Em combate, queira-se ou não, uma mulher representa sempre um coração a mais. O inimigo tem dois alvos enquanto apenas oferece um.

Bond lembrou-se de sua sede. Apanhou na concha da mão um pouco de água e bebeu-a. Aquela água era salobra e tinha gosto de terra. Mas servia. Bond bebeu um pouco mais. A jovem agitou a mão e deteve-o, dizendo:

— Não beba demais. Lave a boca e cuspa. Você pode apanhar febre.

Quarrel assobiou de algum ponto situado na corrente principal. Bond respondeu e foi em direção ao amigo. Depois, voltaram juntos, internando-se no canal. Quarrel borrifou as raízes de mangues com água, nos pontos em que os seus corpos talvez as tivessem raspado. “Para tirar o nosso cheiro”, explicou, laconicamente. Em seguida mostrou o seu feixe de bambus e começou a cortá-los e prepará-los. Enquanto isso, Bond se ocupava com seu revólver e a munição. Os três ficaram imóveis, no meio daquele pântano, de modo a não levantarem mais lama.

A luz do sol filtrava-se através do espesso teto de folhas, os camarões agitavam-se sob os pés daqueles três fugitivos. Gradativamente foi-se avolumando uma insuportável tensão, naquele silêncio escaldante e angustioso.

Foi quase um alívio ouvir-se o ladrar dos cães.


X - O RASTRO DO DRAGÃO


O grupo de investigação descia rapidamente pelo rio. Os dois homens, de calções de banho e altas botas impermeáveis, tinham que correr para acompanhar os cães.

Eram grandes negros chineses, que traziam coldres sustentados ao ombro por meio de talabartes cruzados diante dos peitos suados. De quando em quando trocavam gritos que em geral não passavam de imprecações. À frente deles a matilha de cães Dobermann nadava e debatia-se n’água, latindo excitadamente. Tinham farejado uma pista e procuravam segui-la nervosamente, com as orelhas eretas sobre as cabeças afladas.

— Talvez um maldito crocodilo, — gritou o chefe elevando a voz sobre a algazarra. Empunhava um chicote que de vez em quando fazia estalar no campo de caça.

Os outros homens se encaminhavam para ele. O chefe gritou excitadamente: “Aposto que é o gringo inglês! Tenho certeza de que ele está entre os mangues. Cuidado para que o gringo não nos faça cair numa emboscada.” O homem tirou o revólver do coldre e colocou-o sob o sovaco, sem tirar a mão da coronha.

O grupo agora estava deixando a parte do rio, sob céu aberto, e entrando no túnel formado pelos mangues. O primeiro homem tinha um apito, que se projetava de seu largo rosto como um toco de charuto. Fez soar um agudo silvo. Quando os cães avançaram, ele se deixou ficar com o seu chicote junto do chefe. Os animais continuavam farejando, lamuriando-se porque a corrente os obrigava a desobedecer às ordens recebidas. Os dois homens sacaram os revólveres e vadearam lentamente o rio, na mesma direção da corrente, por entre os caules tortuosos dos mangues.

O homem que ia na frente chegou ao estreito canal que Bond tinha encontrado, agarrou um dos cães pela co-leira e lançou-o ao canal. O animal resfolegou ansiosamente e debateu-se para a frente. Os olhos do homem percorreram as raízes dos mangues, de ambos os lados do canal, para ver se apresentavam algum arranhão.

O cão e o homem chegaram ao pequeno lago situado na extremidade do canal. O homem olhou à sua volta, com ar animado. Tornou a agarrar o cão pela coleira e puxou-o para trás. O animal relutava em abandonar o lugar. Então, o homem feriu a água com o chicote.

O segundo homem estivera esperando à entrada do canal. O primeiro saiu daquele pequeno remanso e sacudiu a cabeça, descendo a corrente, com os cães, que agora se mostravam menos excitados, nadando à frente.

Lentamente, a algazarra da perseguição foi diminuindo e desapareceu.

Por mais cinco minutos nada se mexeu na laguna dos mangues; depois, num dos cantos, entre as raízes, apareceu lentamente para fora d’água um fino periscópio de bambu. O rosto de Bond emergiu logo em seguida, com os cabelos molhados colados à testa, como a cara de um cadáver que boiasse. Em sua mão direita, sob a água, o revólver estava pronto. Bond procurou escutar cuidadosamente. O silêncio era completo, não havia o mínimo ruído. Ou haveria? O que seria aquele suave barulho, como se algo deslizasse entre a água, na corrente principal? Viria alguém, muito serenamente, seguindo na esteira daquela caçada? Bond procurou apalpar à sua volta e tocou delicadamente nos dois corpos que estavam cada um em um de seus flancos, entre as raízes, na orla da laguna. Quando os dois rostos aforaram à superfície, ele colocou o seu dedo indicador sobre os lábios, mas já era tarde. Quarrel tinha tossido e cuspido. Bond fez uma careta e fez um sinal na direção da principal corrente. Todos procuravam escutar. O ruído recomeçou. Alguém estava-se dirigindo para o canal lateral. Os tubos de bambu voltaram para as três bocas e as cabeças tornaram a submergir. Debaixo da água Bond descansou a cabeça na lama, apertou as narinas e os lábios à volta do tubo. Sabia que a laguna já fora examinada uma vez, pois sentira a agitação causada na água pelo cão, que passara nadando! Da primeira vez não tinham sido achados, mas conseguiriam escapar desta? Agora haveria menos possibilidades de que a lama revolta se escoasse para fora da laguna. Se esse batedor visse a mancha mais escura, na água, atiraria ou usaria um punhal? Que armas traria? Bond resolveu não correr riscos. Ao primeiro rumor de movimento, ao seu lado, ele se poria de pé e daria logo ao gatilho, esperando pelo melhor.

Assim ficou ele, submerso, com todos os sentidos atentos. Como era desagradável aquele respirar controlado e insuportáveis as ligeiras mordidelas dos camarões! Por sorte nenhum deles tinha qualquer ferida no corpo, pois do contrário os malditos animalzinhos ter-se-iam atirado contra elas. De qualquer forma, aquela fora uma brilhante idéia da jovem. Sem ela os cães já os teriam alcançado, onde quer que eles se tivessem escondido.

Inesperadamente, Bond encolheu-se. Uma bota de borracha tinha pisado em seu queixo e escorregado. O homem pensaria tratar-se de um galho de árvore? Bond não podia correr aquele risco. Com um só impulso pôs-se de pé, atirando para longe o pedaço de bambu.

Bond teve uma rápida impressão de um gigantesco corpo de pé, quase em cima de si, e duma coronha de rife, em rápido movimento. Levantou o braço esquerdo para proteger a cabeça e recebeu um violento golpe no braço. Ao mesmo tempo, o seu braço direito se esticou para a frente, e, quando o cano tocou no lado direito do peito, sob o mamilo, ele acionou o gatilho.

O coice da arma, quase encostada ao corpo do homem, por pouco não quebrou o pulso de Bond, mas o homem desabou para trás como uma árvore decepada que cai n’água. Antes que o corpo afundasse, Bond ainda pôde perceber-lhe uma grande fenda no flanco. A cabeça, uma cabeça negróide de chinês, veio à superfície, com os olhos revirados para cima e a água a sair de sua boca escancarada e silenciosa. Em seguida a cabeça submergiu novamente e nada mais se pôde ver senão uma lama espumosa e uma mancha vermelha que gradualmente se ia ampliando e lentamente era atraída pela corrente.

Bond se endireitou e voltou-se para o lado. Quarrel e a jovem estavam atrás, em pé, com a água a escorrer-lhes dos corpos. Quarrel tinha um sorriso que ia de orelha a orelha, mas a garota mordia as articulações dos dedos, enquanto seus olhos se escancaravam horrorizados diante da água avermelhada.

Bond disse laconicamente: “Desculpe-me, Honey. Tinha que ser feito. Ele estava bem sobre nós. Venha, vamos indo.” Agarrou-a de qualquer maneira, pelo braço, e arrastou-a para fora da principal corrente, apenas detendo-se quando chegaram a rio aberto, na boca do túnel de mangues.

O cenário estava novamente vazio. Bond olhou para o relógio, e verificou que parara às três horas. Olhou para o sol, já bastante deslocado para o ocidente e concluiu que deveriam ser quatro horas. Quanto ainda teriam que caminhar? Bond inesperadamente sentiu-se cansado. Agora teria de enfrentar a situação. Ainda que o disparo não tivesse sido ouvido — e certamente que ele fora abafado pelo próprio corpo da vítima e pelas árvores — a falta do homem seria sentida quando os outros se reunissem, — se a suposição de Quarrel fosse correta, na embocadura do rio, de onde seriam recolhidos pela lancha. Voltariam eles, subindo o rio, a fim de procurarem o desaparecido? Talvez não. Já estaria muito escuro quando eles tivessem a certeza de que o homem estava realmente desaparecido. O mais certo seria mandarem um grupo de homens pela manhã. Os cães facilmente dariam com o corpo. E o que aconteceria?

A garota puxou-o pela manga e disse com irritação: — Já é tempo de você me dizer o que significa tudo isto! Por que estão todos procurando se matar mutuamente? E quem é você? Não acredito em toda essa história de aves. Ninguém carrega revólveres contra aves.

Bond baixou o olhar, fitando aqueles olhos bem separados e irados. — Desculpe-me, Honey. Receio tê-la arrastado para uma boa encrenca. Eu lhe contarei tudo quando voltarmos à noite para o acampamento. Foi apenas má sorte que você se envolvesse comigo, desta maneira. Tenho uma guerrinha com essa gente. Eles parecem querer matar-me. Agora estou apenas interessado em que todos nós saiamos desta ilha sem que ninguém fique ferido. Já tenho muito do que queria, para da próxima vez voltar pela porta da frente.

— O que você quer dizer? Você é alguma espécie de policial? Está querendo meter esse chinês na cadeia?

— Mais ou menos, — disse Bond, rindo para ela. — Pelo menos você está do lado dos anjos. Agora, diga-me uma coisa. Quanto falta ainda para chegar ao acampamento dos guardas?

— Oh, cerca de uma hora.

— É um lugar bom para nele esconder-se? Eles poderiam achar-nos com facilidade?

— Eles teriam que atravessar o lago ou subir o rio. Tudo estará muito bem se eles não puserem o dragão em nosso encalço. Ele pode muito bem atravessar a água, pois já o vi fazê-lo.

— Bem — disse Bond diplomaticamente — esperemos que ele esteja com a cauda machucada, ou tenha outra coisa qualquer.

A jovem vociferou: — Muito bem, sr. Sabe-Tudo. — E acrescentou irritada: — Espere e verá.

Quarrel deixou o túnel de mangues, agitando ruidosamente a água, tendo na mão o rife do chinês abatido, e dizendo à guisa de quem pede desculpas:

— Não há mal em termos outra arma, chefe. Parece que vamos precisar dela.

Bond apanhou aquela arma. Era uma carabina “Remington”, do exército norte-americano, calibre 300. Não havia dúvida de que aquela gente contava com equipamento apropriado. Bond devolveu a arma a Quarrel, depois de examiná-la.

Quarrel como que fez eco aos seus pensamentos: — Isso é gente astuta, capitão. Aquele homem veio esquadrinhando suavemente, atrás dos outros, a fim de nos surpreender quando deixássemos o esconderijo, depois da passagem dos cães. Esse tal de doutor com certeza é um sujeito muito esperto.

Bond disse pensativamente: — É, ele deve ser um homem incomum. — Depois espantou os pensamentos: — Agora, vamos tocando para a frente. Honey diz que ainda precisamos de uma hora para chegarmos ao acampamento. É melhor irmos pela margem esquerda, de modo a ficarmos ao abrigo da colina. Pelo que já pudemos ver, eles têm lunetas assestadas sobre o rio.

Bond entregou a sua arma a Quarrel, que a guardou na mochila molhada. Puseram-se novamente em marcha, com Quarrel à frente, e Bond e a jovem andando juntos, atrás.

Aproveitavam algumas sombras das árvores e bambus da margem ocidental, mas deviam agora suportar toda a intensidade de um vento crestante. Borrifaram braços e corpos com água, a fim de refrescar as queimaduras. Os olhos de Bond estavam injetados por aquele insuportável revérbero e o seu braço doía intoleràvelmente no ponto em que fora atingido pela coronha. E ele não teria à sua espera o seu jantar de pão embebido, queijo e fiambre. Quanto tempo poderiam dormir? Não dormira muito na véspera, e parece que não iria ter melhor ração de sono. E a garota? Ela nada dormira. Ele e Quarrel teriam que se revezar, em quartos de vigilância. E logo chegaria o dia seguinte, quando procurariam ganhar novamente os mangues e vencer lentamente a distância que os separava de sua canoa, através da extremidade oriental da ilha. As coisas correriam daquela forma, segundo era de esperar. Então, tratariam de se fazerem ao mar na noite seguinte. Bond pensou em como haveria de abrir caminho por entre sólidos mangues, na distância de oito quilômetros. Que perspectiva! Continuou se arrastando para a frente, pensando nas “férias ao sol dos trópicos” de M. Muito gostaria que M tivesse que partilhar com ele aquelas “férias”.

O rio foi-se estreitando até que se reduziu a uma simples corrente entre as moitas de bambu. Depois se ampliava num estuário baixo e pantanoso, além do qual as cinco milhas quadradas de lago raso davam vazão para o outro lado da ilha, perdendo-se num agitado espelho líquido azul-cinza. Mais para além estava a brilhante pista aérea e o reflexo da luz solar sobre um único hangar. A jovem disse-lhe que se mantivesse na direção leste, e eles foram lentamente avançando, protegidos pela orla da mata.

Inesperadamente, Quarrel deteve-se, com o rosto esticado como o focinho de um cão para o terreno pantanoso à sua frente. Dois profundos sulcos tinham sido escavados na lama, com um sulco mais raso no centro. Eram a trilha de algo que tinha descido da colina e atravessado o pântano em direção ao lago.

A jovem disse com indiferença: — Por aqui já passou o dragão.

Quarrel arregalou os olhos para ela.

Bond caminhou lentamente pela trilha. As marcas exteriores eram bastante lisas, trazendo a marca de uma linha curva. Poderiam ter sido causadas por rodas, mas eram enormes, pelo menos com sessenta centímetros de largura. A trilha central tinha a mesma forma, mas com apenas três polegadas de largura, ou seja a largura de um pneumático de automóvel. As trilhas não apresentavam nenhum indício de pegadas e eram completamente frescas. Estendiam-se em linha reta, e os arbustos por elas atravessados tinham sido derrubados e esmagados no chão, como se um tanque de guerra tivesse passado por ali. Bond não podia imaginar que espécie de veículo seria aquele. A jovem tocou-o com o cotovelo e murmurou: — Eu lhe tinha dito. Ele apenas pôde responder pensativamente: — Bom, Honey, se não é o dragão, é algo que nunca vi antes.

Mais adiante, ela puxou-o ansiosamente pela manga. “Veja”, sussurrou, e apontou para a frente, indicando um grande cerrado de árvores, ao lado do qual passavam as trilhas. O cerrado estava sem folhas, enegrecido. Ao centro viam-se os restos dos ninhos de pássaros carbonizados. — Ele respirou sobre as árvores, — disse a garota nervosamente.

Bond aproximou-se das árvores e examinou-as. — Certamente que o fez — admitiu. Por que aquele cerrado, em especial, tinha sido queimado? Era muito estranho aquilo.

As trilhas desciam em direção ao lago e desapareciam na água. Bond teria gostado de segui-las, mas não poderia abandonar a cobertura das árvores. Assim, continuaram a marcha, cada um entregue aos próprios pensamentos.

Lentamente o dia começou a morrer, por trás da colina, e por fim a garota apontou para a frente, através dos arbustos; Bond pôde ver uma comprida restinga internando-se no lago. Estava coberta por densas moitas de arbustos e podiam-se ver, a cem metros da praia, os restos de uma cabana incendiada. Aquele parecia um lugar razoavelmente atraente para se passar a noite, e era bem protegido dos dois lados, pela água.

O vento tinha declinado e a água se apresentava suave e convidativa. Que prazer não seria tirarem as suas imundas camisas para um banho no lago e, depois de horas de patinhação através da lama e do lodo do pântano, poderem descansar naquela areia dura e seca!

O sol brilhou com reflexos amarelecidos e desapareceu por trás da montanha. Ainda era dia na extremidade oriental da ilha, mas a sombra negra do monte avançava vagarosamente sobre o lago e acabaria por expulsar completamente os últimos vestígios do sol. Os sapos começaram a coaxar mais barulhentamente que em Jamaica, até que a noite ficou cheia daquele áspero ruído. Do outro lado do lago um grande sapo macho começou a soar o seu tambor. Aquele estranho som era algo entre um tom-tom e um rosnado de macaco. Enviava mensagens que subitamente se interrompiam e logo silenciaram. Com certeza encontrara o que procurava.

Chegaram à garganta da restinga e seguiram por um estreito caminho, até a clareira que encerrava os escombros da cabana de sapé. As grandes e misteriosas trilhas saíam da água, de ambos os lados, atravessavam a clareira e os cerrados próximos. Muitos dos arbustos estavam queimados ou crestados. Podiam-se ver os restos de um fogão feito de pedaços de coral, e algumas panelas e latas vazias. Examinaram os destroços, e Quarrel desenterrou um par de latas intactas de costeletas de porco e ervilhas marca “Heinz”. A jovem encontrou ainda um saco de dormir muito amarrotado, enquanto Bond achou uma pequena bolsa de couro com cinco notas de um dólar, três libras de Jamaica e algumas moedas de prata. Os dois homens certamente tinham abandonado aquele lugar a toda pressa.

Prosseguiram mais para diante, até uma pequena clareira arenosa. Através dos arbustos podiam ver luzes cintilando sobre a água e provenientes da montanha, talvez a mais de três quilômetros de distância. A leste nada mais havia senão. os suaves reflexos escuros da água sob o céu sombrio.

Bond comentou: — Enquanto não acendermos nada, estaremos bem aqui. A primeira coisa a fazer é tomarmos um bom banho, Honey. Você pode ficar com o resto da restinga, que nós ficaremos com a sua garganta. Dentro de meia hora espero vê-la para o jantar.

A garota riu: — Você virá a rigor?

— Sem dúvida — respondeu Bond — e de calças.

Quarrel observou: — Capitão, enquanto ainda há um pouco de luz, vou abrir essas latas e preparar as coisas para a noite. — Remexeu dentro da mochila. — Aqui estão as suas calças e o seu revólver. O pão talvez não esteja muito bom, mas está apenas molhado. Pode-se comê-lo bem, e amanhã estará seco. O melhor talvez fosse comermos das latas esta noite, guardando o queijo e as costeletas. As latas são pesadas e amanhã teremos que andar muito.

Bond respondeu: — Muito bem, Quarrel. Deixarei o cardápio aos seus cuidados.

Em seguida, apanhou o revólver e as calças úmidas e desceu para a água rasa. A água estava acariciante, mas desagradavelmente quente. Bond escavou punhados de areia, com as mãos, e esfregou o corpo com ela, utilizando-a como sabonete. Depois deixou-se ficar gostosamente em meio àquele silêncio e àquela solidão.

As estrelas começaram a brilhar palidamente, as estrelas que os tinham trazido à ilha na noite passada; as estrelas que os tirariam dali no dia seguinte. Que viagem! Mas pelo menos já tinha dado os seus resultados. Agora tinha provas bastantes, e testemunhas, para ir ter com o governador e conseguir dele um inquérito completo acerca das atividades do Dr. No. Ninguém lança mão de metralhadoras contra pessoas, mesmo contra intrusos. E, da mesma forma, o que seria aquilo do Dr. No, que invadira a propriedade da Sociedade Audubon, aquilo que chegara a destruir essa propriedade e provavelmente matara um de seus empregados? Isto também teria que ser investigado. E o que haveria ele de encontrar quando voltasse pela porta da frente, talvez a bordo de um destróier, e com um destacamento de fuzileiros navais? Qual seria a resposta para o mistério do Dr. No? O que estaria ele escondendo? Por que aquele segredo era tão importante, que seria capaz de matar repetidas vezes, para preservá-lo? E quem era esse Dr. No?

Bond ouviu o barulho de alguém espojando-se na água. Pensou na garota. E quem, afinal, era Honeychile Ri-der? Aquilo pelo menos, pensou ele ao sair da água, era algo que deveria esclarecer antes do amanhecer.

Bond enfiou as suas pegajosas calças, sentou-se na areia e desmontou o revólver. Fê-lo pelo tato, utilizando-se de sua camisa para secar cada peça e cada cartucho. Depois, tornou a montar a arma e pressionou o gatilho, fazendo com que o tambor vazio desse uma volta completa. O som era satisfatório. Seriam precisos alguns dias para que o revólver começasse a enferrujar. Carregou-o e meteu-o no coldre, para dentro do cós da calça. Depois, levantou-se e voltou para a clareira.

A sombra de Honey chegou até ele, e a sua voz se fez ouvir: — Venha; estamos morrendo de fome. Apanhei uma das panelas, limpei-a e pusemos as ervilhas nela. Temos pão também. E eu não sinto escrúpulos de comer a sua ração, porque você me fez trabalhar muito mais do que se eu estivesse sozinha. Agora, estique a mão.

Bond achou graça no tom autoritário que havia em sua voz. Ele apenas podia perceber a sua silhueta, no escuro. Sua cabeça parecia mais aflada. Ele se perguntou como seriam os seus cabelos quando secos e penteados. Como seria ela quando estivesse vestindo roupas limpas naquele lindo corpo dourado? Podia vê-la entrando numa sala ou atravessando um vestíbulo em Beau Desert. Ela seria uma linda e encantadora Patinha Feia. Por que nunca procurara endireitar o nariz? Seria uma operação fácil. Depois disso, ela seria a jovem mais bela de Jamaica.

O seu ombro tocou nele. Bond esticou o braço e descansou a mão aberta no colo da jovem. Então Bond sentiu que ela estava enchendo a sua mão com ervilhas.

Subitamente, Bond aspirou o seu cheiro cálido de animal. Foi uma explosão sensual tão aguda que o seu corpo se uniu ao dela, e, por um momento, os seus olhos se fecharam.

Ela deixou escapar um riso curto, no qual havia timidez, satisfação e ternura. E disse, maternalmente: “Lá”, — e empurrou a mão de Bond.

 

CONTINUA

IX - POR UM TRIZ


Dez minutos mais tarde a baía estava vazia e imaculada. Pequenas ondas encrespavam-se preguiçosamente através do espelho das águas, no interior dos recifes e morriam exaustas na areia escura onde as conchas lilás brilhavam como unhas pintadas. O monte de conchas tinha desaparecido e não havia mais vestígios de pegadas. Quarrel cortara galhos de mangues e caminhava de costas procurando apagar as pegadas com aqueles galhos. Onde tinha varrido, a areia apresentava uma limpidez diferente mas não tão diferente a ponto de ser notada de fora do recife. A canoa da jovem tinha sido arrastada para dentro do mar, entre as rochas, e ali ficou coberta com algas e gravetos.

Quarrel tinha voltado ao promontório. Bond e a jovem estavam juntos, sob tufos de folhas, onde Bond dormira, e olhavam silenciosamente para o contorno do promontório, à volta do qual surgira a embarcação.

A lancha estava talvez a uns quinhentos metros de distância. A julgar pelo lento ritmo do motor, Bond concluiu que cada acidente da costa estava sendo cuidadosamente inspecionado para descobrir indícios da presença de estranhos. De qualquer forma, aquilo parecia uma possante embarcação. Talvez uma grande lancha de cabina. Que tripulação teria? Quem estaria no comando? O Dr. No? Improvável. Ele certamente não se daria àquele trabalho de polícia.

Do lado do ocidente apareceu um bando de corvos marinhos, voando baixo sobre o mar, além dos recifes. Bond observou-os. Eram o primeiro indício para ele encontrado daquela colônia de aves, na outra extremidade da ilha. Aquele bando, segundo Pleydell-Smith, seriam batedores à procura do brilho prateado das enchovas, próximas à superfície. Enquanto observava, as aves começaram a dar mergulhos rasos, ferindo o mar superficialmente e levantando respingos de água. Quase que de uma só vez, apareceu outra coluna de aves, vinda do ocidente, e logo outra, e mais outra, fundindo-se todas numa espessa e escura nuvem. Durante minutos, elas sombrearam o céu, e depois atiraram-se à água, cobrindo vários alqueires, piando e lutando, e mergulhando as cabeças no mar, fazendo uma rica colheita naquele sólido campo de anchovas, como piranhas que se banqueteassem num cavalo afogado.

Bond sentiu um suave toque da jovem, que fez um movimento com a cabeça, dizendo:

— As galinhas do chinês estão comendo milho.

Bond observou-lhe o rosto belo e feliz. Ela parecia bastante despreocupada com a chegada daqueles homens. Para ela aquilo era apenas o jogo de esconde-esconde que já tinha praticado antes.

A vibração metálica dos motores diesel estava-se tornando mais forte. A lancha deveria estar justamente por trás do promontório. Bond deu mais uma olhada à volta da tranqüila baía, e depois fixou os olhos através da folhagem e do mato, para os lados dos recifes.

A ponta de uma proa branca apareceu, seguida de uns dez metros de tombadilho, e logo o parabrisas de vidro, uma cabina baixa e uma antena de rádio, e o vulto de um homem à volta do leme. Finalmente, o comprido e achatado fosso da popa, e uma flâmula vermelha pendente, Seria uma lancha-torpedeira convertida, um excedente de guerra do governo britânico?

Os olhos de Bond fixaram-se nos dois homens que estavam em pé na popa. Eram negros de pele pálida, envergando roupas caqui de marinheiro, com largos cinturões e chapéus de palha com longas palas. Estavam um ao lado do outro, equilibrando-se sob a lenta elevação da massa líquida. Um deles segurava um alto-falante e o outro manejava uma metralhadora instalada num tripé. Bond teve a impressão de que era uma metralhadora “Spandau”.

O homem com o alto-falante deixou que este caísse, e ele ficou oscilando numa tira, que lhe dava volta ao pescoço. Apanhou um binóculo e começou a vasculhar metro a metro da praia. Indistintos comentários chegavam aos ouvidos de Bond, por entre o ruído dos motores.

Bond percebeu que os olhos do binóculo começavam pelo promontório e depois percorriam a areia. As lentes detiveram-se entre as rochas e continuaram o seu passeio. Depois, voltaram. O murmúrio do comentário elevou-se ganhando animação. O homem passou o binóculo para o metralhador, que observou rapidamente, devolvendo-o logo ao dono. O observador gritou alguma coisa para o timoneiro. A lancha começou a se aproximar da praia. Agora estavam justamente diante dos recifes, em frente a Bond e à jovem. O observador ergueu novamente o binóculo, apontando-o para as rochas onde se encontrava escondida a canoa da jovem. Novamente a fala excitada chegou aos ouvidos de Bond, por sobre as águas. Mais uma vez o binóculo foi passado ao metralhador, que levou algum tempo observando. Dessa vez, ele fez um sinal de assentimento com a cabeça.

Bond pensou: agora vamos ter coisa; esses homens conhecem o ofício. Em seguida, viu que o metralhador se ocupava em carregar a arma. O duplo estalido metálico chegou aos seus ouvidos, por entre o matraquear do motor.

O observador ergueu o alto-falante e ligou-o. O eco produzido pelo amplificador chegou até Bond, conduzido pela superfície da água. A voz do homem ribombou pela baía:

— Alô, pessoal! Saiam daí e não serão feridos. Era uma voz educada, com sotaque americano.

— Agora, pessoal — trovejou a voz — depressa! Nós vimos quando vocês desembarcaram. Já descobrimos o bote sob os paus. Não somos tolos e não estamos brincando. Saiam daí com os braços levantados e não lhes acontecerá nada!

Não se ouviu nenhuma resposta. Apenas as ondas quebravam docemente na praia. Bond podia ouvir a respiração da jovem. Os guinchos agudos dos corvos marinhos chegavam-lhes de uma milha de distância, sobre o mar. O cano de escapamento dos motores diesel produzia um ruído desigual e gorgulhante, quando o intumescimento do mar cobria o orifício de descarga.

Silenciosamente Bond tocou o braço da jovem e disse-lhe:

— Fique mais perto. Alvo menor.

Ele sentiu o calor da jovem mais próximo de seu corpo, e o rosto de Honey raspou pelo seu braço. Bond sussurrou:

— Enterre-se na areia. Encolha-se. Cada polegada a menos ajudará.

Ele começou a se encolher cuidadosamente na depressão que tinham escavado para se abrigarem, e sentiu que ela fazia o mesmo.

O homem estava erguendo o seu alto-falante. A voz ribombou novamente.

— Muito bem, pessoal! Vocês irão ver que isso aqui não é para brincadeira. — Depois, levantou o polegar. O metralhador experimentou a arma fazendo alguns disparos para a copa dos mangues situados por trás da praia. Bond ouviu o rápido matraquear, tão seu conhecido, e do qual se despedira pela última vez diante das linhas alemãs, nas Ardenas. As balas produziam o velho som de pombos assustados, assobiando sobre sua cabeça. Depois fez-se silêncio.

À distância, Bond via a nuvem negra de corvos marinhos elevar-se, começando a fazer os seus amplos círculos. Seus olhos voltaram para a embarcação. O metralhador estava apalpando o cano da metralhadora, para ver se já estava aquecido. Os dois homens trocaram algumas palavras. O observador apanhou novamente o porta-voz.

— Está bem, pessoal. Vocês foram avisados.

Bond viu o cano da “Spandau” levantar-se e abaixar-se. O homem estava querendo começar com a canoa, entre as rochas. Bond sussurrou para a jovem: — Muito bem, Honey. Agüente firme. Mantenha-se abaixada. Não vai durar muito.

Ele sentiu que a mão da jovem apertava o seu braço, e pensou: “Coitada; ela está metida nisso por minha causa.” Ele inclinou-se para a direita a fim de cobrir a cabeça de Honey e afundou o rosto na areia.

Dessa vez o matraquear foi terrível. Balas ricocheteavam no flanco do promontório. Fragmentos de pedra saltavam para todos os lados, sobre a praia. Outras balas ricocheteavam e iam perder-se dentro da mata. Simultaneamente com todo aquele barulho ouvia-se o martelar contínuo da metralhadora.

Houve uma pausa. Nova carga, pensou Bond. Agora será para nós. Pôde sentir a jovem agarrando-se a ele. Seu corpo tremia todo, encostado ao seu flanco. Bond apanhou uma arma e apertou-a de encontro ao corpo. O matraquear da metralhadora recomeçou. As balas vinham zunindo, da linha de maré, em direção a eles. Ouviu-se uma sucessão de rápidas batidas. O tufo, acima deles, estava sendo reduzido a pedaços. “Zuip Zuip Zuip”. Era como se um chicote de aço estivesse retalhando os arbustos. Pedaços de lenha caíam sobre eles, cobrindo-os lentamente. Bond respirou um ar mais fresco, o que significava que eles agora estavam ao ar-livre. Estariam eles escondidos pelas folhas o pelos destroços? As balas continuaram deslocando-se ao longo da linha da costa. Em menos de um minuto a metralhadora parou.

O silêncio tornou a reinar. A jovem lamuriou-se docemente. Bond fê-la calar-se e apertou-a mais forte.

O alto-falante apregoou:

— Está bem, pessoal. Se vocês ainda têm ouvidos, saibam que voltaremos logo para recolher-lhes os pedaços. Vamos trazer os cães. Até à vista, por enquanto.

O ritmo do motor se acelerou, e através das folhas Bond pôde ver a popa da lancha afundar-se mais na água, enquanto a embarcação rumava rapidamente para oeste. Dentro de minutos já não se ouvia mais nada.

Bond ergueu a cabeça cautelosamente. A baía estava serena, e tudo como antes, exceto o cheiro de cordite e as rochas quebradas.

Bond fez a jovem levantar-se. Havia marcas de lágrimas em seu rosto. Ela olhou-o aterrada, e disse:

— Isso foi terrível. Por que eles o fizeram? Podíamos ter sido mortos.

Bond pensou naquela jovem que sempre abrira caminho, na vida, por si mesma, mas apenas contra a natureza. Conhecia o mundo dos animais, dos insetos e dos peixes, e tirava todo o partido desse conhecimento. Mas aquele era um pequeno mundo, limitado pelo sol, pela lua e pelas estações. Ela não conhecia o grande mundo das salas cheias de fumo, dos corredores de negócios, dos corredores e antecâmaras governamentais, dos cautelosos encontros em bancos de praças — numa palavra: ela nada conhecia da luta pelo poder e pelo dinheiro, travada por homens poderosos.

Bond disse:

— É isso mesmo, Honey, eles não passam de uma quadrilha de bandidos assustados conosco. Podemos enfrentá-los.

Bond colocou o braço à volta de seus ombros e continuou:

— E você esteve maravilhosa, brava como ninguém. Agora, vamos ao encontro de Quarrel para traçar os nossos planos. De qualquer forma, já é tempo de comermos alguma coisa. O que é que você costuma comer nessas expedições?

Deram meia-volta e seguiram pela praia em direção ao promontório. Depois de um minuto, ela disse com voz bem controlada:

— Oh, há uma porção de coisas por aí que se podem comer. Ouriços do mar principalmente, mas também bananas silvestres e outras coisas. Eu como e durmo durante dois dias, antes de vir aqui. Não preciso de nada.

Bond apertou-a mais fortemente, mas deixou cair o braço, assim que Quarrel apareceu ao longe. Quarrel vinha saltando sobre as rochas, e, em determinado momento, parou, olhando para baixo. Bond e Honey se aproximaram dele. A canoa da jovem estava cortada ao meio pelas balas. Honey deixou escapar um grito, olhando desesperadamente para Bond:

— A minha canoa! Como poderei voltar?

— Não se preocupe, senhorita, — disse Quarrel, que sentia a perda de uma canoa mais do que Bond. Imaginou ainda que aquela embarcação representasse quase todo o capital da jovem. — O capitão lhe dará outra. E a senhorita voltará conosco. Temos um magnífico bote, entre os mangues, e ele não foi destruído. Já estive lá espiando.

Quarrel olhou para Bond. Agora, o seu rosto denotava preocupação.

— Mas, capitão, o senhor está vendo o que eu disse dessa gente. Eles são duros e não estão brincando. Esses cães que eles vão trazer são policiais — Pinschers, como eles os chamam. Bastardos. Meus amigos disseram-me que são uma matilha de vinte ou mais. É melhor resolvermos logo.

— Está bem, Quarrel. Mas antes de mais nada precisamos comer alguma coisa. — o diabo que me carregue se eu vou ser aterrorizado e expulso da ilha antes de dar uma olhada nisso. Levaremos Honey conosco. — E, voltando-se para a jovem:

— Está bem, Honey? Nada lhe acontecerá. Depois voltaremos juntos.

A jovem olhou-o em dúvida:

— Acho que não há alternativa. Quero dizer. Gostaria de ir com vocês, se não atrapalhasse. Francamente, não quero comer nada. Mas você me levará de volta, assim que puder? Não quero ver mais aquela gente. Durante quanto tempo vocês vão ficar olhando para essas aves?

Bond respondeu evasivamente:

— Pouco tempo. Eu terei apenas que ver o que lhes aconteceu e porquê. Depois, partiremos.

Olhou para o relógio e anunciou:

— Agora são doze horas. Você nos esperará aqui. Tome um banho ou faça o que quiser. Não ande por aí deixando pegadas. Vamos, Quarrel, é melhor escondermos aquele bote.

Só à uma hora eles estavam prontos. Bond e Quarrel encheram a canoa com pedras e areia, até que ela desapareceu sob a água, entre os mangues. Depois, apagaram as suas pegadas. As balas tinham deixado tantos gravetos na orla da praia, que eles podiam caminhar pisando em folhas e ramos quebrados. Comeram parte de suas rações — os homens com avidez, mas Honey com relutância — e depois, passando sobre as rochas, foram ter à lagoa, próxima da costa. Em seguida foram vadeando aquelas águas, em direção à foz do rio, trezentos metros praia abaixo.

Fazia muito calor. Um vento áspero e quente começou a soprar do nordeste. Quarrel informou que aquele vento soprava diariamente, durante todo o ano, e era vital para a guaneira, pois secava o guano. O revérbero do mar e das brilhantes folhas verdes dos mangues cegava-os. Bond deu-se por feliz, já que tivera o cuidado de acostumar sua pele ao sol.

Na foz do rio encontraram um banco de areia e um extenso pântano, profundo e de águas estagnadas. Os dois homens podiam molhar-se ou tirar as roupas. Bond disse à jovem:

— Honey, não podemos ter cerimônia, nesta situação. Vamos ficar apenas com as camisas por causa do sol. Fique apenas com o que for sensato e caminhe atrás de nós.

Sem esperar pela resposta da jovem, os dois homens tiraram as calças. Quarrel enrolou-as e guardou-as na sacola, juntamente com as provisões e o revólver de Bond. Depois começaram a vadear a lagoa, com Quarrel na frente, logo seguido de Bond, e, finalmente a jovem. A água chegou até a cintura de Bond. Um grande peixe prateado deu um salto perto deles e depois caiu ruidosamente na água. Viram-se pequeninas setas riscarem a superfície, quando peixes menores se afastaram precipitadamente.

A lagoa convergia para uma estreita garganta, por sobre a qual as copas dos mangues se tocavam. Durante algum tempo eles vadearam através de um túnel fresco, e depois o rio se alargou num canal profundo, de águas morosas, que serpeava para a frente, entre as gigantescas raízes de sustentação dos mangues. O fundo era lamacento, e a cada passo os pés se enterravam algumas polegadas no lodo. Pequenos peixes ou camarões se encolhiam ou fugiam de baixo de seus pés, e de quando em quando eles tinham que parar para se desembaraçar das sanguessugas, antes que elas se agarrassem firmemente. A não ser isso, aquela caminhada era fácil, sob o frescor das arvores, e, pelo menos para Bond, era uma bênção estar ao abrigo do sol.

Em breve, à medida que se iam afastando do mar, começaram a sentir um cheiro de ovo podre, o cheiro de hidrogênio sulfurado do gás dos pântanos. Os mosquitos começaram a assaltá-los e pareciam gostar do corpo de Bond. Quarrel disse-lhe que mergulhasse na água do rio, pois os mosquitos gostavam de carne salgada. Bond tirou a camisa e fez o que Quarrel lhe aconselhara. Depois disso sentiu-se melhor e o seu olfato chegou mesmo a se acostumar com aquele repugnante cheiro, a não ser quando os pés de Quarrel desfaziam algum bolsão de gás, no fundo da lama, e uma gigantesca bolha atravessava a água para arrebentar na superfície sob as suas narinas.

Os mangues começaram a se tornar mais escassos e mais esparsos, enquanto o rio se ia alargando aos poucos. Ao mesmo tempo, a água tornava-se mais rasa e o fundo mais firme. Logo chegaram a uma volta e saíram para céu aberto, Honey disse:

— É melhor tomarmos cuidado, agora. Eles poderão ver-nos com muita facilidade. Isso vai assim durante uma milha. Depois o rio torna a se estreitar até o lago. E depois se poderá ver a restinga onde os tratadores das aves viviam.

O grupo deteve-se à sombra do túnel de mangues e olhou para fora. O rio serpeava perigosamente, afastando-se deles, em direção ao centro da ilha. As suas barrancas, bordadas de bambus de pequeno porte e de vegetação rala, dar-lhes-íam cobertura reduzida. Partindo de sua margem ocidental, o terreno elevava-se aos poucos, e logo abruptamente até o monte, situado a três quilômetros de distância, que era a guaneira. Na base daquela montanha, viam-se várias cabanas esparsas. Um ziguezague prateado galgava o flanco da colina, até as tendas — trilhos “Decauville”, pensou Bond, destinados a levarem o guano para o moinho e separa-dor. O cume do monte era branco, como se estivesse coberto de neve. De sua parte mais elevada desprendia-se como que uma bandeira de dó de guano. Bond podia ver os pontos negros que eram os corvos marinhos, sobre o fundo branco. Aquelas aves estavam levantando vôo e pousando como abelhas numa colmeia.

Bond deixou-se ficar de pé e contemplou o brilho distante daquela montanha de excrementos de aves. Então aquilo era o reino do Dr. No! Bond pensou que jamais vira um cenário tão escondido e distante, em toda a sua vida.

Examinou o terreno entre o rio e a montanha. Parecia ser principalmente formado com aquela matéria cinzenta de corais mortos. Não havia dúvida de que uma estrada ou trilha corria da falda da montanha até ao lago central e aos pântanos. Bond notou ainda que toda a vegetação se curvava para oeste, e imaginou viver durante todo um ano com aquele vento escaldante castigando a ilha, sem falar do cheiro do guano e do gás dos pântanos. Nenhuma colônia penal poderia encontrar pior localização do que aquela.

Bond olhou para leste, onde os mangues, na área dos charcos, pareciam oferecer mais hospitalidade. Os três puseram-se a caminhar sobre um sólido tapete verde de vegetação. Sobre suas cabeças, aves revoluteavam agitadas, para depois se, acalmarem, e logo tornarem a agitar-se. Seus pios eram carregados pelo vento crestante.

A voz de Quarrel interrompeu os pensamentos de Bond:

— Eles vêm vindo, capitão!

Bond seguiu o olhar de Quarrel. Um grande caminhão descia celeremente das tendas, com uma nuvem de pó levantando-se das rodas. Bond acompanhou-o durante dez minutos, até que o veículo desapareceu entre os mangues, na margem do rio. Bond pôs-se a escutar e ouviu latidos de cães, que eram trazidos pelo vento.

Quarrel comentou:

— Eles vão descer pelo rio, capitão. Sabem que não nos podemos mover, a não ser rio acima, se não estivermos mortos. Certamente que descerão pelo rio, até a praia, e farão um reconhecimento dos destroços. Depois, com toda a certeza, a lancha virá com um pequeno bote e recolherá os homens e os cães. Pelo menos, isso é o que eu faria no lugar deles.

Honey disse: — Isso é, de fato, o que eles fazem quando me procuram. É isso mesmo. Basta que cortemos um pedaço de bambu, e, quando eles estiverem perto, mergulhemos na água, procurando respirar através do bambu, até que eles se afastem.

Bond sorriu para Quarrel, e disse: — Suponhamos que você corte os bambus, enquanto eu procuro um bom esconderijo entre os mangues.

Quarrel aquiesceu hesitante e começou a subir contra a corrente, em direção ao bambuzal, enquanto Bond se encaminhava para o túnel formado pelos mangues.

Bond evitara olhar para a jovem, mas esta disse-lhe com impaciência:

— Não precisa ter tanto cuidado em não olhar para mim. Não adianta se preocupar com tais coisas, numa hora dessas. Você mesmo o disse, ainda há pouco.

Bond virou-se e olhou para a jovem. Sua camisa esfrangalhada descia até a linha d’água. Podia-se ainda ter um vislumbre de pálidas coxas, serpeando sob a superfície. O lindo rosto sorriu para ele. No meio daqueles mangues, o seu nariz quebrado parecia harmonizar-se com o ambiente, pela sua animalidade.

Bond fitou-a descansadamente e ela compreendeu. Depois, ele deu-lhe as costas e desceu pela correnteza, seguido por ela. Logo encontrou o que procurava, isto é, uma fenda naquela parede formada pelas raízes dos mangues. Bond recomendou: — Não quebre nenhum galho. — Depois, baixou a cabeça e meteu-se por aquela brecha. O canal avançava numa distância de dez metros. A lama sob seus pés tornou-se mais mole e espessa. Chegou a uma sólida e intransponível parede de raízes. Aquela água escura fluía vagarosamente através de uma ampla e tranqüila lagoa. Bond deteve-se. A jovem se aproximou dele.

— Isto é mesmo uma brincadeira de esconde-esconde — disse ela, trêmula.

— É verdade — aquiesceu Bond distraidamente, enquanto pensava em seu revólver. Com efeito, ele preocupava-se em saber com que eficiência a arma operaria depois de um banho no rio — quantos cães e homens ele poderia eliminar, se fossem descobertos. Sentiu um estremecimento de inquietação. Tinha sido uma falta de sorte ter encontrado aquela jovem. Em combate, queira-se ou não, uma mulher representa sempre um coração a mais. O inimigo tem dois alvos enquanto apenas oferece um.

Bond lembrou-se de sua sede. Apanhou na concha da mão um pouco de água e bebeu-a. Aquela água era salobra e tinha gosto de terra. Mas servia. Bond bebeu um pouco mais. A jovem agitou a mão e deteve-o, dizendo:

— Não beba demais. Lave a boca e cuspa. Você pode apanhar febre.

Quarrel assobiou de algum ponto situado na corrente principal. Bond respondeu e foi em direção ao amigo. Depois, voltaram juntos, internando-se no canal. Quarrel borrifou as raízes de mangues com água, nos pontos em que os seus corpos talvez as tivessem raspado. “Para tirar o nosso cheiro”, explicou, laconicamente. Em seguida mostrou o seu feixe de bambus e começou a cortá-los e prepará-los. Enquanto isso, Bond se ocupava com seu revólver e a munição. Os três ficaram imóveis, no meio daquele pântano, de modo a não levantarem mais lama.

A luz do sol filtrava-se através do espesso teto de folhas, os camarões agitavam-se sob os pés daqueles três fugitivos. Gradativamente foi-se avolumando uma insuportável tensão, naquele silêncio escaldante e angustioso.

Foi quase um alívio ouvir-se o ladrar dos cães.


X - O RASTRO DO DRAGÃO


O grupo de investigação descia rapidamente pelo rio. Os dois homens, de calções de banho e altas botas impermeáveis, tinham que correr para acompanhar os cães.

Eram grandes negros chineses, que traziam coldres sustentados ao ombro por meio de talabartes cruzados diante dos peitos suados. De quando em quando trocavam gritos que em geral não passavam de imprecações. À frente deles a matilha de cães Dobermann nadava e debatia-se n’água, latindo excitadamente. Tinham farejado uma pista e procuravam segui-la nervosamente, com as orelhas eretas sobre as cabeças afladas.

— Talvez um maldito crocodilo, — gritou o chefe elevando a voz sobre a algazarra. Empunhava um chicote que de vez em quando fazia estalar no campo de caça.

Os outros homens se encaminhavam para ele. O chefe gritou excitadamente: “Aposto que é o gringo inglês! Tenho certeza de que ele está entre os mangues. Cuidado para que o gringo não nos faça cair numa emboscada.” O homem tirou o revólver do coldre e colocou-o sob o sovaco, sem tirar a mão da coronha.

O grupo agora estava deixando a parte do rio, sob céu aberto, e entrando no túnel formado pelos mangues. O primeiro homem tinha um apito, que se projetava de seu largo rosto como um toco de charuto. Fez soar um agudo silvo. Quando os cães avançaram, ele se deixou ficar com o seu chicote junto do chefe. Os animais continuavam farejando, lamuriando-se porque a corrente os obrigava a desobedecer às ordens recebidas. Os dois homens sacaram os revólveres e vadearam lentamente o rio, na mesma direção da corrente, por entre os caules tortuosos dos mangues.

O homem que ia na frente chegou ao estreito canal que Bond tinha encontrado, agarrou um dos cães pela co-leira e lançou-o ao canal. O animal resfolegou ansiosamente e debateu-se para a frente. Os olhos do homem percorreram as raízes dos mangues, de ambos os lados do canal, para ver se apresentavam algum arranhão.

O cão e o homem chegaram ao pequeno lago situado na extremidade do canal. O homem olhou à sua volta, com ar animado. Tornou a agarrar o cão pela coleira e puxou-o para trás. O animal relutava em abandonar o lugar. Então, o homem feriu a água com o chicote.

O segundo homem estivera esperando à entrada do canal. O primeiro saiu daquele pequeno remanso e sacudiu a cabeça, descendo a corrente, com os cães, que agora se mostravam menos excitados, nadando à frente.

Lentamente, a algazarra da perseguição foi diminuindo e desapareceu.

Por mais cinco minutos nada se mexeu na laguna dos mangues; depois, num dos cantos, entre as raízes, apareceu lentamente para fora d’água um fino periscópio de bambu. O rosto de Bond emergiu logo em seguida, com os cabelos molhados colados à testa, como a cara de um cadáver que boiasse. Em sua mão direita, sob a água, o revólver estava pronto. Bond procurou escutar cuidadosamente. O silêncio era completo, não havia o mínimo ruído. Ou haveria? O que seria aquele suave barulho, como se algo deslizasse entre a água, na corrente principal? Viria alguém, muito serenamente, seguindo na esteira daquela caçada? Bond procurou apalpar à sua volta e tocou delicadamente nos dois corpos que estavam cada um em um de seus flancos, entre as raízes, na orla da laguna. Quando os dois rostos aforaram à superfície, ele colocou o seu dedo indicador sobre os lábios, mas já era tarde. Quarrel tinha tossido e cuspido. Bond fez uma careta e fez um sinal na direção da principal corrente. Todos procuravam escutar. O ruído recomeçou. Alguém estava-se dirigindo para o canal lateral. Os tubos de bambu voltaram para as três bocas e as cabeças tornaram a submergir. Debaixo da água Bond descansou a cabeça na lama, apertou as narinas e os lábios à volta do tubo. Sabia que a laguna já fora examinada uma vez, pois sentira a agitação causada na água pelo cão, que passara nadando! Da primeira vez não tinham sido achados, mas conseguiriam escapar desta? Agora haveria menos possibilidades de que a lama revolta se escoasse para fora da laguna. Se esse batedor visse a mancha mais escura, na água, atiraria ou usaria um punhal? Que armas traria? Bond resolveu não correr riscos. Ao primeiro rumor de movimento, ao seu lado, ele se poria de pé e daria logo ao gatilho, esperando pelo melhor.

Assim ficou ele, submerso, com todos os sentidos atentos. Como era desagradável aquele respirar controlado e insuportáveis as ligeiras mordidelas dos camarões! Por sorte nenhum deles tinha qualquer ferida no corpo, pois do contrário os malditos animalzinhos ter-se-iam atirado contra elas. De qualquer forma, aquela fora uma brilhante idéia da jovem. Sem ela os cães já os teriam alcançado, onde quer que eles se tivessem escondido.

Inesperadamente, Bond encolheu-se. Uma bota de borracha tinha pisado em seu queixo e escorregado. O homem pensaria tratar-se de um galho de árvore? Bond não podia correr aquele risco. Com um só impulso pôs-se de pé, atirando para longe o pedaço de bambu.

Bond teve uma rápida impressão de um gigantesco corpo de pé, quase em cima de si, e duma coronha de rife, em rápido movimento. Levantou o braço esquerdo para proteger a cabeça e recebeu um violento golpe no braço. Ao mesmo tempo, o seu braço direito se esticou para a frente, e, quando o cano tocou no lado direito do peito, sob o mamilo, ele acionou o gatilho.

O coice da arma, quase encostada ao corpo do homem, por pouco não quebrou o pulso de Bond, mas o homem desabou para trás como uma árvore decepada que cai n’água. Antes que o corpo afundasse, Bond ainda pôde perceber-lhe uma grande fenda no flanco. A cabeça, uma cabeça negróide de chinês, veio à superfície, com os olhos revirados para cima e a água a sair de sua boca escancarada e silenciosa. Em seguida a cabeça submergiu novamente e nada mais se pôde ver senão uma lama espumosa e uma mancha vermelha que gradualmente se ia ampliando e lentamente era atraída pela corrente.

Bond se endireitou e voltou-se para o lado. Quarrel e a jovem estavam atrás, em pé, com a água a escorrer-lhes dos corpos. Quarrel tinha um sorriso que ia de orelha a orelha, mas a garota mordia as articulações dos dedos, enquanto seus olhos se escancaravam horrorizados diante da água avermelhada.

Bond disse laconicamente: “Desculpe-me, Honey. Tinha que ser feito. Ele estava bem sobre nós. Venha, vamos indo.” Agarrou-a de qualquer maneira, pelo braço, e arrastou-a para fora da principal corrente, apenas detendo-se quando chegaram a rio aberto, na boca do túnel de mangues.

O cenário estava novamente vazio. Bond olhou para o relógio, e verificou que parara às três horas. Olhou para o sol, já bastante deslocado para o ocidente e concluiu que deveriam ser quatro horas. Quanto ainda teriam que caminhar? Bond inesperadamente sentiu-se cansado. Agora teria de enfrentar a situação. Ainda que o disparo não tivesse sido ouvido — e certamente que ele fora abafado pelo próprio corpo da vítima e pelas árvores — a falta do homem seria sentida quando os outros se reunissem, — se a suposição de Quarrel fosse correta, na embocadura do rio, de onde seriam recolhidos pela lancha. Voltariam eles, subindo o rio, a fim de procurarem o desaparecido? Talvez não. Já estaria muito escuro quando eles tivessem a certeza de que o homem estava realmente desaparecido. O mais certo seria mandarem um grupo de homens pela manhã. Os cães facilmente dariam com o corpo. E o que aconteceria?

A garota puxou-o pela manga e disse com irritação: — Já é tempo de você me dizer o que significa tudo isto! Por que estão todos procurando se matar mutuamente? E quem é você? Não acredito em toda essa história de aves. Ninguém carrega revólveres contra aves.

Bond baixou o olhar, fitando aqueles olhos bem separados e irados. — Desculpe-me, Honey. Receio tê-la arrastado para uma boa encrenca. Eu lhe contarei tudo quando voltarmos à noite para o acampamento. Foi apenas má sorte que você se envolvesse comigo, desta maneira. Tenho uma guerrinha com essa gente. Eles parecem querer matar-me. Agora estou apenas interessado em que todos nós saiamos desta ilha sem que ninguém fique ferido. Já tenho muito do que queria, para da próxima vez voltar pela porta da frente.

— O que você quer dizer? Você é alguma espécie de policial? Está querendo meter esse chinês na cadeia?

— Mais ou menos, — disse Bond, rindo para ela. — Pelo menos você está do lado dos anjos. Agora, diga-me uma coisa. Quanto falta ainda para chegar ao acampamento dos guardas?

— Oh, cerca de uma hora.

— É um lugar bom para nele esconder-se? Eles poderiam achar-nos com facilidade?

— Eles teriam que atravessar o lago ou subir o rio. Tudo estará muito bem se eles não puserem o dragão em nosso encalço. Ele pode muito bem atravessar a água, pois já o vi fazê-lo.

— Bem — disse Bond diplomaticamente — esperemos que ele esteja com a cauda machucada, ou tenha outra coisa qualquer.

A jovem vociferou: — Muito bem, sr. Sabe-Tudo. — E acrescentou irritada: — Espere e verá.

Quarrel deixou o túnel de mangues, agitando ruidosamente a água, tendo na mão o rife do chinês abatido, e dizendo à guisa de quem pede desculpas:

— Não há mal em termos outra arma, chefe. Parece que vamos precisar dela.

Bond apanhou aquela arma. Era uma carabina “Remington”, do exército norte-americano, calibre 300. Não havia dúvida de que aquela gente contava com equipamento apropriado. Bond devolveu a arma a Quarrel, depois de examiná-la.

Quarrel como que fez eco aos seus pensamentos: — Isso é gente astuta, capitão. Aquele homem veio esquadrinhando suavemente, atrás dos outros, a fim de nos surpreender quando deixássemos o esconderijo, depois da passagem dos cães. Esse tal de doutor com certeza é um sujeito muito esperto.

Bond disse pensativamente: — É, ele deve ser um homem incomum. — Depois espantou os pensamentos: — Agora, vamos tocando para a frente. Honey diz que ainda precisamos de uma hora para chegarmos ao acampamento. É melhor irmos pela margem esquerda, de modo a ficarmos ao abrigo da colina. Pelo que já pudemos ver, eles têm lunetas assestadas sobre o rio.

Bond entregou a sua arma a Quarrel, que a guardou na mochila molhada. Puseram-se novamente em marcha, com Quarrel à frente, e Bond e a jovem andando juntos, atrás.

Aproveitavam algumas sombras das árvores e bambus da margem ocidental, mas deviam agora suportar toda a intensidade de um vento crestante. Borrifaram braços e corpos com água, a fim de refrescar as queimaduras. Os olhos de Bond estavam injetados por aquele insuportável revérbero e o seu braço doía intoleràvelmente no ponto em que fora atingido pela coronha. E ele não teria à sua espera o seu jantar de pão embebido, queijo e fiambre. Quanto tempo poderiam dormir? Não dormira muito na véspera, e parece que não iria ter melhor ração de sono. E a garota? Ela nada dormira. Ele e Quarrel teriam que se revezar, em quartos de vigilância. E logo chegaria o dia seguinte, quando procurariam ganhar novamente os mangues e vencer lentamente a distância que os separava de sua canoa, através da extremidade oriental da ilha. As coisas correriam daquela forma, segundo era de esperar. Então, tratariam de se fazerem ao mar na noite seguinte. Bond pensou em como haveria de abrir caminho por entre sólidos mangues, na distância de oito quilômetros. Que perspectiva! Continuou se arrastando para a frente, pensando nas “férias ao sol dos trópicos” de M. Muito gostaria que M tivesse que partilhar com ele aquelas “férias”.

O rio foi-se estreitando até que se reduziu a uma simples corrente entre as moitas de bambu. Depois se ampliava num estuário baixo e pantanoso, além do qual as cinco milhas quadradas de lago raso davam vazão para o outro lado da ilha, perdendo-se num agitado espelho líquido azul-cinza. Mais para além estava a brilhante pista aérea e o reflexo da luz solar sobre um único hangar. A jovem disse-lhe que se mantivesse na direção leste, e eles foram lentamente avançando, protegidos pela orla da mata.

Inesperadamente, Quarrel deteve-se, com o rosto esticado como o focinho de um cão para o terreno pantanoso à sua frente. Dois profundos sulcos tinham sido escavados na lama, com um sulco mais raso no centro. Eram a trilha de algo que tinha descido da colina e atravessado o pântano em direção ao lago.

A jovem disse com indiferença: — Por aqui já passou o dragão.

Quarrel arregalou os olhos para ela.

Bond caminhou lentamente pela trilha. As marcas exteriores eram bastante lisas, trazendo a marca de uma linha curva. Poderiam ter sido causadas por rodas, mas eram enormes, pelo menos com sessenta centímetros de largura. A trilha central tinha a mesma forma, mas com apenas três polegadas de largura, ou seja a largura de um pneumático de automóvel. As trilhas não apresentavam nenhum indício de pegadas e eram completamente frescas. Estendiam-se em linha reta, e os arbustos por elas atravessados tinham sido derrubados e esmagados no chão, como se um tanque de guerra tivesse passado por ali. Bond não podia imaginar que espécie de veículo seria aquele. A jovem tocou-o com o cotovelo e murmurou: — Eu lhe tinha dito. Ele apenas pôde responder pensativamente: — Bom, Honey, se não é o dragão, é algo que nunca vi antes.

Mais adiante, ela puxou-o ansiosamente pela manga. “Veja”, sussurrou, e apontou para a frente, indicando um grande cerrado de árvores, ao lado do qual passavam as trilhas. O cerrado estava sem folhas, enegrecido. Ao centro viam-se os restos dos ninhos de pássaros carbonizados. — Ele respirou sobre as árvores, — disse a garota nervosamente.

Bond aproximou-se das árvores e examinou-as. — Certamente que o fez — admitiu. Por que aquele cerrado, em especial, tinha sido queimado? Era muito estranho aquilo.

As trilhas desciam em direção ao lago e desapareciam na água. Bond teria gostado de segui-las, mas não poderia abandonar a cobertura das árvores. Assim, continuaram a marcha, cada um entregue aos próprios pensamentos.

Lentamente o dia começou a morrer, por trás da colina, e por fim a garota apontou para a frente, através dos arbustos; Bond pôde ver uma comprida restinga internando-se no lago. Estava coberta por densas moitas de arbustos e podiam-se ver, a cem metros da praia, os restos de uma cabana incendiada. Aquele parecia um lugar razoavelmente atraente para se passar a noite, e era bem protegido dos dois lados, pela água.

O vento tinha declinado e a água se apresentava suave e convidativa. Que prazer não seria tirarem as suas imundas camisas para um banho no lago e, depois de horas de patinhação através da lama e do lodo do pântano, poderem descansar naquela areia dura e seca!

O sol brilhou com reflexos amarelecidos e desapareceu por trás da montanha. Ainda era dia na extremidade oriental da ilha, mas a sombra negra do monte avançava vagarosamente sobre o lago e acabaria por expulsar completamente os últimos vestígios do sol. Os sapos começaram a coaxar mais barulhentamente que em Jamaica, até que a noite ficou cheia daquele áspero ruído. Do outro lado do lago um grande sapo macho começou a soar o seu tambor. Aquele estranho som era algo entre um tom-tom e um rosnado de macaco. Enviava mensagens que subitamente se interrompiam e logo silenciaram. Com certeza encontrara o que procurava.

Chegaram à garganta da restinga e seguiram por um estreito caminho, até a clareira que encerrava os escombros da cabana de sapé. As grandes e misteriosas trilhas saíam da água, de ambos os lados, atravessavam a clareira e os cerrados próximos. Muitos dos arbustos estavam queimados ou crestados. Podiam-se ver os restos de um fogão feito de pedaços de coral, e algumas panelas e latas vazias. Examinaram os destroços, e Quarrel desenterrou um par de latas intactas de costeletas de porco e ervilhas marca “Heinz”. A jovem encontrou ainda um saco de dormir muito amarrotado, enquanto Bond achou uma pequena bolsa de couro com cinco notas de um dólar, três libras de Jamaica e algumas moedas de prata. Os dois homens certamente tinham abandonado aquele lugar a toda pressa.

Prosseguiram mais para diante, até uma pequena clareira arenosa. Através dos arbustos podiam ver luzes cintilando sobre a água e provenientes da montanha, talvez a mais de três quilômetros de distância. A leste nada mais havia senão. os suaves reflexos escuros da água sob o céu sombrio.

Bond comentou: — Enquanto não acendermos nada, estaremos bem aqui. A primeira coisa a fazer é tomarmos um bom banho, Honey. Você pode ficar com o resto da restinga, que nós ficaremos com a sua garganta. Dentro de meia hora espero vê-la para o jantar.

A garota riu: — Você virá a rigor?

— Sem dúvida — respondeu Bond — e de calças.

Quarrel observou: — Capitão, enquanto ainda há um pouco de luz, vou abrir essas latas e preparar as coisas para a noite. — Remexeu dentro da mochila. — Aqui estão as suas calças e o seu revólver. O pão talvez não esteja muito bom, mas está apenas molhado. Pode-se comê-lo bem, e amanhã estará seco. O melhor talvez fosse comermos das latas esta noite, guardando o queijo e as costeletas. As latas são pesadas e amanhã teremos que andar muito.

Bond respondeu: — Muito bem, Quarrel. Deixarei o cardápio aos seus cuidados.

Em seguida, apanhou o revólver e as calças úmidas e desceu para a água rasa. A água estava acariciante, mas desagradavelmente quente. Bond escavou punhados de areia, com as mãos, e esfregou o corpo com ela, utilizando-a como sabonete. Depois deixou-se ficar gostosamente em meio àquele silêncio e àquela solidão.

As estrelas começaram a brilhar palidamente, as estrelas que os tinham trazido à ilha na noite passada; as estrelas que os tirariam dali no dia seguinte. Que viagem! Mas pelo menos já tinha dado os seus resultados. Agora tinha provas bastantes, e testemunhas, para ir ter com o governador e conseguir dele um inquérito completo acerca das atividades do Dr. No. Ninguém lança mão de metralhadoras contra pessoas, mesmo contra intrusos. E, da mesma forma, o que seria aquilo do Dr. No, que invadira a propriedade da Sociedade Audubon, aquilo que chegara a destruir essa propriedade e provavelmente matara um de seus empregados? Isto também teria que ser investigado. E o que haveria ele de encontrar quando voltasse pela porta da frente, talvez a bordo de um destróier, e com um destacamento de fuzileiros navais? Qual seria a resposta para o mistério do Dr. No? O que estaria ele escondendo? Por que aquele segredo era tão importante, que seria capaz de matar repetidas vezes, para preservá-lo? E quem era esse Dr. No?

Bond ouviu o barulho de alguém espojando-se na água. Pensou na garota. E quem, afinal, era Honeychile Ri-der? Aquilo pelo menos, pensou ele ao sair da água, era algo que deveria esclarecer antes do amanhecer.

Bond enfiou as suas pegajosas calças, sentou-se na areia e desmontou o revólver. Fê-lo pelo tato, utilizando-se de sua camisa para secar cada peça e cada cartucho. Depois, tornou a montar a arma e pressionou o gatilho, fazendo com que o tambor vazio desse uma volta completa. O som era satisfatório. Seriam precisos alguns dias para que o revólver começasse a enferrujar. Carregou-o e meteu-o no coldre, para dentro do cós da calça. Depois, levantou-se e voltou para a clareira.

A sombra de Honey chegou até ele, e a sua voz se fez ouvir: — Venha; estamos morrendo de fome. Apanhei uma das panelas, limpei-a e pusemos as ervilhas nela. Temos pão também. E eu não sinto escrúpulos de comer a sua ração, porque você me fez trabalhar muito mais do que se eu estivesse sozinha. Agora, estique a mão.

Bond achou graça no tom autoritário que havia em sua voz. Ele apenas podia perceber a sua silhueta, no escuro. Sua cabeça parecia mais aflada. Ele se perguntou como seriam os seus cabelos quando secos e penteados. Como seria ela quando estivesse vestindo roupas limpas naquele lindo corpo dourado? Podia vê-la entrando numa sala ou atravessando um vestíbulo em Beau Desert. Ela seria uma linda e encantadora Patinha Feia. Por que nunca procurara endireitar o nariz? Seria uma operação fácil. Depois disso, ela seria a jovem mais bela de Jamaica.

O seu ombro tocou nele. Bond esticou o braço e descansou a mão aberta no colo da jovem. Então Bond sentiu que ela estava enchendo a sua mão com ervilhas.

Subitamente, Bond aspirou o seu cheiro cálido de animal. Foi uma explosão sensual tão aguda que o seu corpo se uniu ao dela, e, por um momento, os seus olhos se fecharam.

Ela deixou escapar um riso curto, no qual havia timidez, satisfação e ternura. E disse, maternalmente: “Lá”, — e empurrou a mão de Bond.

 

CONTINUA

IX - POR UM TRIZ


Dez minutos mais tarde a baía estava vazia e imaculada. Pequenas ondas encrespavam-se preguiçosamente através do espelho das águas, no interior dos recifes e morriam exaustas na areia escura onde as conchas lilás brilhavam como unhas pintadas. O monte de conchas tinha desaparecido e não havia mais vestígios de pegadas. Quarrel cortara galhos de mangues e caminhava de costas procurando apagar as pegadas com aqueles galhos. Onde tinha varrido, a areia apresentava uma limpidez diferente mas não tão diferente a ponto de ser notada de fora do recife. A canoa da jovem tinha sido arrastada para dentro do mar, entre as rochas, e ali ficou coberta com algas e gravetos.

Quarrel tinha voltado ao promontório. Bond e a jovem estavam juntos, sob tufos de folhas, onde Bond dormira, e olhavam silenciosamente para o contorno do promontório, à volta do qual surgira a embarcação.

A lancha estava talvez a uns quinhentos metros de distância. A julgar pelo lento ritmo do motor, Bond concluiu que cada acidente da costa estava sendo cuidadosamente inspecionado para descobrir indícios da presença de estranhos. De qualquer forma, aquilo parecia uma possante embarcação. Talvez uma grande lancha de cabina. Que tripulação teria? Quem estaria no comando? O Dr. No? Improvável. Ele certamente não se daria àquele trabalho de polícia.

Do lado do ocidente apareceu um bando de corvos marinhos, voando baixo sobre o mar, além dos recifes. Bond observou-os. Eram o primeiro indício para ele encontrado daquela colônia de aves, na outra extremidade da ilha. Aquele bando, segundo Pleydell-Smith, seriam batedores à procura do brilho prateado das enchovas, próximas à superfície. Enquanto observava, as aves começaram a dar mergulhos rasos, ferindo o mar superficialmente e levantando respingos de água. Quase que de uma só vez, apareceu outra coluna de aves, vinda do ocidente, e logo outra, e mais outra, fundindo-se todas numa espessa e escura nuvem. Durante minutos, elas sombrearam o céu, e depois atiraram-se à água, cobrindo vários alqueires, piando e lutando, e mergulhando as cabeças no mar, fazendo uma rica colheita naquele sólido campo de anchovas, como piranhas que se banqueteassem num cavalo afogado.

Bond sentiu um suave toque da jovem, que fez um movimento com a cabeça, dizendo:

— As galinhas do chinês estão comendo milho.

Bond observou-lhe o rosto belo e feliz. Ela parecia bastante despreocupada com a chegada daqueles homens. Para ela aquilo era apenas o jogo de esconde-esconde que já tinha praticado antes.

A vibração metálica dos motores diesel estava-se tornando mais forte. A lancha deveria estar justamente por trás do promontório. Bond deu mais uma olhada à volta da tranqüila baía, e depois fixou os olhos através da folhagem e do mato, para os lados dos recifes.

A ponta de uma proa branca apareceu, seguida de uns dez metros de tombadilho, e logo o parabrisas de vidro, uma cabina baixa e uma antena de rádio, e o vulto de um homem à volta do leme. Finalmente, o comprido e achatado fosso da popa, e uma flâmula vermelha pendente, Seria uma lancha-torpedeira convertida, um excedente de guerra do governo britânico?

Os olhos de Bond fixaram-se nos dois homens que estavam em pé na popa. Eram negros de pele pálida, envergando roupas caqui de marinheiro, com largos cinturões e chapéus de palha com longas palas. Estavam um ao lado do outro, equilibrando-se sob a lenta elevação da massa líquida. Um deles segurava um alto-falante e o outro manejava uma metralhadora instalada num tripé. Bond teve a impressão de que era uma metralhadora “Spandau”.

O homem com o alto-falante deixou que este caísse, e ele ficou oscilando numa tira, que lhe dava volta ao pescoço. Apanhou um binóculo e começou a vasculhar metro a metro da praia. Indistintos comentários chegavam aos ouvidos de Bond, por entre o ruído dos motores.

Bond percebeu que os olhos do binóculo começavam pelo promontório e depois percorriam a areia. As lentes detiveram-se entre as rochas e continuaram o seu passeio. Depois, voltaram. O murmúrio do comentário elevou-se ganhando animação. O homem passou o binóculo para o metralhador, que observou rapidamente, devolvendo-o logo ao dono. O observador gritou alguma coisa para o timoneiro. A lancha começou a se aproximar da praia. Agora estavam justamente diante dos recifes, em frente a Bond e à jovem. O observador ergueu novamente o binóculo, apontando-o para as rochas onde se encontrava escondida a canoa da jovem. Novamente a fala excitada chegou aos ouvidos de Bond, por sobre as águas. Mais uma vez o binóculo foi passado ao metralhador, que levou algum tempo observando. Dessa vez, ele fez um sinal de assentimento com a cabeça.

Bond pensou: agora vamos ter coisa; esses homens conhecem o ofício. Em seguida, viu que o metralhador se ocupava em carregar a arma. O duplo estalido metálico chegou aos seus ouvidos, por entre o matraquear do motor.

O observador ergueu o alto-falante e ligou-o. O eco produzido pelo amplificador chegou até Bond, conduzido pela superfície da água. A voz do homem ribombou pela baía:

— Alô, pessoal! Saiam daí e não serão feridos. Era uma voz educada, com sotaque americano.

— Agora, pessoal — trovejou a voz — depressa! Nós vimos quando vocês desembarcaram. Já descobrimos o bote sob os paus. Não somos tolos e não estamos brincando. Saiam daí com os braços levantados e não lhes acontecerá nada!

Não se ouviu nenhuma resposta. Apenas as ondas quebravam docemente na praia. Bond podia ouvir a respiração da jovem. Os guinchos agudos dos corvos marinhos chegavam-lhes de uma milha de distância, sobre o mar. O cano de escapamento dos motores diesel produzia um ruído desigual e gorgulhante, quando o intumescimento do mar cobria o orifício de descarga.

Silenciosamente Bond tocou o braço da jovem e disse-lhe:

— Fique mais perto. Alvo menor.

Ele sentiu o calor da jovem mais próximo de seu corpo, e o rosto de Honey raspou pelo seu braço. Bond sussurrou:

— Enterre-se na areia. Encolha-se. Cada polegada a menos ajudará.

Ele começou a se encolher cuidadosamente na depressão que tinham escavado para se abrigarem, e sentiu que ela fazia o mesmo.

O homem estava erguendo o seu alto-falante. A voz ribombou novamente.

— Muito bem, pessoal! Vocês irão ver que isso aqui não é para brincadeira. — Depois, levantou o polegar. O metralhador experimentou a arma fazendo alguns disparos para a copa dos mangues situados por trás da praia. Bond ouviu o rápido matraquear, tão seu conhecido, e do qual se despedira pela última vez diante das linhas alemãs, nas Ardenas. As balas produziam o velho som de pombos assustados, assobiando sobre sua cabeça. Depois fez-se silêncio.

À distância, Bond via a nuvem negra de corvos marinhos elevar-se, começando a fazer os seus amplos círculos. Seus olhos voltaram para a embarcação. O metralhador estava apalpando o cano da metralhadora, para ver se já estava aquecido. Os dois homens trocaram algumas palavras. O observador apanhou novamente o porta-voz.

— Está bem, pessoal. Vocês foram avisados.

Bond viu o cano da “Spandau” levantar-se e abaixar-se. O homem estava querendo começar com a canoa, entre as rochas. Bond sussurrou para a jovem: — Muito bem, Honey. Agüente firme. Mantenha-se abaixada. Não vai durar muito.

Ele sentiu que a mão da jovem apertava o seu braço, e pensou: “Coitada; ela está metida nisso por minha causa.” Ele inclinou-se para a direita a fim de cobrir a cabeça de Honey e afundou o rosto na areia.

Dessa vez o matraquear foi terrível. Balas ricocheteavam no flanco do promontório. Fragmentos de pedra saltavam para todos os lados, sobre a praia. Outras balas ricocheteavam e iam perder-se dentro da mata. Simultaneamente com todo aquele barulho ouvia-se o martelar contínuo da metralhadora.

Houve uma pausa. Nova carga, pensou Bond. Agora será para nós. Pôde sentir a jovem agarrando-se a ele. Seu corpo tremia todo, encostado ao seu flanco. Bond apanhou uma arma e apertou-a de encontro ao corpo. O matraquear da metralhadora recomeçou. As balas vinham zunindo, da linha de maré, em direção a eles. Ouviu-se uma sucessão de rápidas batidas. O tufo, acima deles, estava sendo reduzido a pedaços. “Zuip Zuip Zuip”. Era como se um chicote de aço estivesse retalhando os arbustos. Pedaços de lenha caíam sobre eles, cobrindo-os lentamente. Bond respirou um ar mais fresco, o que significava que eles agora estavam ao ar-livre. Estariam eles escondidos pelas folhas o pelos destroços? As balas continuaram deslocando-se ao longo da linha da costa. Em menos de um minuto a metralhadora parou.

O silêncio tornou a reinar. A jovem lamuriou-se docemente. Bond fê-la calar-se e apertou-a mais forte.

O alto-falante apregoou:

— Está bem, pessoal. Se vocês ainda têm ouvidos, saibam que voltaremos logo para recolher-lhes os pedaços. Vamos trazer os cães. Até à vista, por enquanto.

O ritmo do motor se acelerou, e através das folhas Bond pôde ver a popa da lancha afundar-se mais na água, enquanto a embarcação rumava rapidamente para oeste. Dentro de minutos já não se ouvia mais nada.

Bond ergueu a cabeça cautelosamente. A baía estava serena, e tudo como antes, exceto o cheiro de cordite e as rochas quebradas.

Bond fez a jovem levantar-se. Havia marcas de lágrimas em seu rosto. Ela olhou-o aterrada, e disse:

— Isso foi terrível. Por que eles o fizeram? Podíamos ter sido mortos.

Bond pensou naquela jovem que sempre abrira caminho, na vida, por si mesma, mas apenas contra a natureza. Conhecia o mundo dos animais, dos insetos e dos peixes, e tirava todo o partido desse conhecimento. Mas aquele era um pequeno mundo, limitado pelo sol, pela lua e pelas estações. Ela não conhecia o grande mundo das salas cheias de fumo, dos corredores de negócios, dos corredores e antecâmaras governamentais, dos cautelosos encontros em bancos de praças — numa palavra: ela nada conhecia da luta pelo poder e pelo dinheiro, travada por homens poderosos.

Bond disse:

— É isso mesmo, Honey, eles não passam de uma quadrilha de bandidos assustados conosco. Podemos enfrentá-los.

Bond colocou o braço à volta de seus ombros e continuou:

— E você esteve maravilhosa, brava como ninguém. Agora, vamos ao encontro de Quarrel para traçar os nossos planos. De qualquer forma, já é tempo de comermos alguma coisa. O que é que você costuma comer nessas expedições?

Deram meia-volta e seguiram pela praia em direção ao promontório. Depois de um minuto, ela disse com voz bem controlada:

— Oh, há uma porção de coisas por aí que se podem comer. Ouriços do mar principalmente, mas também bananas silvestres e outras coisas. Eu como e durmo durante dois dias, antes de vir aqui. Não preciso de nada.

Bond apertou-a mais fortemente, mas deixou cair o braço, assim que Quarrel apareceu ao longe. Quarrel vinha saltando sobre as rochas, e, em determinado momento, parou, olhando para baixo. Bond e Honey se aproximaram dele. A canoa da jovem estava cortada ao meio pelas balas. Honey deixou escapar um grito, olhando desesperadamente para Bond:

— A minha canoa! Como poderei voltar?

— Não se preocupe, senhorita, — disse Quarrel, que sentia a perda de uma canoa mais do que Bond. Imaginou ainda que aquela embarcação representasse quase todo o capital da jovem. — O capitão lhe dará outra. E a senhorita voltará conosco. Temos um magnífico bote, entre os mangues, e ele não foi destruído. Já estive lá espiando.

Quarrel olhou para Bond. Agora, o seu rosto denotava preocupação.

— Mas, capitão, o senhor está vendo o que eu disse dessa gente. Eles são duros e não estão brincando. Esses cães que eles vão trazer são policiais — Pinschers, como eles os chamam. Bastardos. Meus amigos disseram-me que são uma matilha de vinte ou mais. É melhor resolvermos logo.

— Está bem, Quarrel. Mas antes de mais nada precisamos comer alguma coisa. — o diabo que me carregue se eu vou ser aterrorizado e expulso da ilha antes de dar uma olhada nisso. Levaremos Honey conosco. — E, voltando-se para a jovem:

— Está bem, Honey? Nada lhe acontecerá. Depois voltaremos juntos.

A jovem olhou-o em dúvida:

— Acho que não há alternativa. Quero dizer. Gostaria de ir com vocês, se não atrapalhasse. Francamente, não quero comer nada. Mas você me levará de volta, assim que puder? Não quero ver mais aquela gente. Durante quanto tempo vocês vão ficar olhando para essas aves?

Bond respondeu evasivamente:

— Pouco tempo. Eu terei apenas que ver o que lhes aconteceu e porquê. Depois, partiremos.

Olhou para o relógio e anunciou:

— Agora são doze horas. Você nos esperará aqui. Tome um banho ou faça o que quiser. Não ande por aí deixando pegadas. Vamos, Quarrel, é melhor escondermos aquele bote.

Só à uma hora eles estavam prontos. Bond e Quarrel encheram a canoa com pedras e areia, até que ela desapareceu sob a água, entre os mangues. Depois, apagaram as suas pegadas. As balas tinham deixado tantos gravetos na orla da praia, que eles podiam caminhar pisando em folhas e ramos quebrados. Comeram parte de suas rações — os homens com avidez, mas Honey com relutância — e depois, passando sobre as rochas, foram ter à lagoa, próxima da costa. Em seguida foram vadeando aquelas águas, em direção à foz do rio, trezentos metros praia abaixo.

Fazia muito calor. Um vento áspero e quente começou a soprar do nordeste. Quarrel informou que aquele vento soprava diariamente, durante todo o ano, e era vital para a guaneira, pois secava o guano. O revérbero do mar e das brilhantes folhas verdes dos mangues cegava-os. Bond deu-se por feliz, já que tivera o cuidado de acostumar sua pele ao sol.

Na foz do rio encontraram um banco de areia e um extenso pântano, profundo e de águas estagnadas. Os dois homens podiam molhar-se ou tirar as roupas. Bond disse à jovem:

— Honey, não podemos ter cerimônia, nesta situação. Vamos ficar apenas com as camisas por causa do sol. Fique apenas com o que for sensato e caminhe atrás de nós.

Sem esperar pela resposta da jovem, os dois homens tiraram as calças. Quarrel enrolou-as e guardou-as na sacola, juntamente com as provisões e o revólver de Bond. Depois começaram a vadear a lagoa, com Quarrel na frente, logo seguido de Bond, e, finalmente a jovem. A água chegou até a cintura de Bond. Um grande peixe prateado deu um salto perto deles e depois caiu ruidosamente na água. Viram-se pequeninas setas riscarem a superfície, quando peixes menores se afastaram precipitadamente.

A lagoa convergia para uma estreita garganta, por sobre a qual as copas dos mangues se tocavam. Durante algum tempo eles vadearam através de um túnel fresco, e depois o rio se alargou num canal profundo, de águas morosas, que serpeava para a frente, entre as gigantescas raízes de sustentação dos mangues. O fundo era lamacento, e a cada passo os pés se enterravam algumas polegadas no lodo. Pequenos peixes ou camarões se encolhiam ou fugiam de baixo de seus pés, e de quando em quando eles tinham que parar para se desembaraçar das sanguessugas, antes que elas se agarrassem firmemente. A não ser isso, aquela caminhada era fácil, sob o frescor das arvores, e, pelo menos para Bond, era uma bênção estar ao abrigo do sol.

Em breve, à medida que se iam afastando do mar, começaram a sentir um cheiro de ovo podre, o cheiro de hidrogênio sulfurado do gás dos pântanos. Os mosquitos começaram a assaltá-los e pareciam gostar do corpo de Bond. Quarrel disse-lhe que mergulhasse na água do rio, pois os mosquitos gostavam de carne salgada. Bond tirou a camisa e fez o que Quarrel lhe aconselhara. Depois disso sentiu-se melhor e o seu olfato chegou mesmo a se acostumar com aquele repugnante cheiro, a não ser quando os pés de Quarrel desfaziam algum bolsão de gás, no fundo da lama, e uma gigantesca bolha atravessava a água para arrebentar na superfície sob as suas narinas.

Os mangues começaram a se tornar mais escassos e mais esparsos, enquanto o rio se ia alargando aos poucos. Ao mesmo tempo, a água tornava-se mais rasa e o fundo mais firme. Logo chegaram a uma volta e saíram para céu aberto, Honey disse:

— É melhor tomarmos cuidado, agora. Eles poderão ver-nos com muita facilidade. Isso vai assim durante uma milha. Depois o rio torna a se estreitar até o lago. E depois se poderá ver a restinga onde os tratadores das aves viviam.

O grupo deteve-se à sombra do túnel de mangues e olhou para fora. O rio serpeava perigosamente, afastando-se deles, em direção ao centro da ilha. As suas barrancas, bordadas de bambus de pequeno porte e de vegetação rala, dar-lhes-íam cobertura reduzida. Partindo de sua margem ocidental, o terreno elevava-se aos poucos, e logo abruptamente até o monte, situado a três quilômetros de distância, que era a guaneira. Na base daquela montanha, viam-se várias cabanas esparsas. Um ziguezague prateado galgava o flanco da colina, até as tendas — trilhos “Decauville”, pensou Bond, destinados a levarem o guano para o moinho e separa-dor. O cume do monte era branco, como se estivesse coberto de neve. De sua parte mais elevada desprendia-se como que uma bandeira de dó de guano. Bond podia ver os pontos negros que eram os corvos marinhos, sobre o fundo branco. Aquelas aves estavam levantando vôo e pousando como abelhas numa colmeia.

Bond deixou-se ficar de pé e contemplou o brilho distante daquela montanha de excrementos de aves. Então aquilo era o reino do Dr. No! Bond pensou que jamais vira um cenário tão escondido e distante, em toda a sua vida.

Examinou o terreno entre o rio e a montanha. Parecia ser principalmente formado com aquela matéria cinzenta de corais mortos. Não havia dúvida de que uma estrada ou trilha corria da falda da montanha até ao lago central e aos pântanos. Bond notou ainda que toda a vegetação se curvava para oeste, e imaginou viver durante todo um ano com aquele vento escaldante castigando a ilha, sem falar do cheiro do guano e do gás dos pântanos. Nenhuma colônia penal poderia encontrar pior localização do que aquela.

Bond olhou para leste, onde os mangues, na área dos charcos, pareciam oferecer mais hospitalidade. Os três puseram-se a caminhar sobre um sólido tapete verde de vegetação. Sobre suas cabeças, aves revoluteavam agitadas, para depois se, acalmarem, e logo tornarem a agitar-se. Seus pios eram carregados pelo vento crestante.

A voz de Quarrel interrompeu os pensamentos de Bond:

— Eles vêm vindo, capitão!

Bond seguiu o olhar de Quarrel. Um grande caminhão descia celeremente das tendas, com uma nuvem de pó levantando-se das rodas. Bond acompanhou-o durante dez minutos, até que o veículo desapareceu entre os mangues, na margem do rio. Bond pôs-se a escutar e ouviu latidos de cães, que eram trazidos pelo vento.

Quarrel comentou:

— Eles vão descer pelo rio, capitão. Sabem que não nos podemos mover, a não ser rio acima, se não estivermos mortos. Certamente que descerão pelo rio, até a praia, e farão um reconhecimento dos destroços. Depois, com toda a certeza, a lancha virá com um pequeno bote e recolherá os homens e os cães. Pelo menos, isso é o que eu faria no lugar deles.

Honey disse: — Isso é, de fato, o que eles fazem quando me procuram. É isso mesmo. Basta que cortemos um pedaço de bambu, e, quando eles estiverem perto, mergulhemos na água, procurando respirar através do bambu, até que eles se afastem.

Bond sorriu para Quarrel, e disse: — Suponhamos que você corte os bambus, enquanto eu procuro um bom esconderijo entre os mangues.

Quarrel aquiesceu hesitante e começou a subir contra a corrente, em direção ao bambuzal, enquanto Bond se encaminhava para o túnel formado pelos mangues.

Bond evitara olhar para a jovem, mas esta disse-lhe com impaciência:

— Não precisa ter tanto cuidado em não olhar para mim. Não adianta se preocupar com tais coisas, numa hora dessas. Você mesmo o disse, ainda há pouco.

Bond virou-se e olhou para a jovem. Sua camisa esfrangalhada descia até a linha d’água. Podia-se ainda ter um vislumbre de pálidas coxas, serpeando sob a superfície. O lindo rosto sorriu para ele. No meio daqueles mangues, o seu nariz quebrado parecia harmonizar-se com o ambiente, pela sua animalidade.

Bond fitou-a descansadamente e ela compreendeu. Depois, ele deu-lhe as costas e desceu pela correnteza, seguido por ela. Logo encontrou o que procurava, isto é, uma fenda naquela parede formada pelas raízes dos mangues. Bond recomendou: — Não quebre nenhum galho. — Depois, baixou a cabeça e meteu-se por aquela brecha. O canal avançava numa distância de dez metros. A lama sob seus pés tornou-se mais mole e espessa. Chegou a uma sólida e intransponível parede de raízes. Aquela água escura fluía vagarosamente através de uma ampla e tranqüila lagoa. Bond deteve-se. A jovem se aproximou dele.

— Isto é mesmo uma brincadeira de esconde-esconde — disse ela, trêmula.

— É verdade — aquiesceu Bond distraidamente, enquanto pensava em seu revólver. Com efeito, ele preocupava-se em saber com que eficiência a arma operaria depois de um banho no rio — quantos cães e homens ele poderia eliminar, se fossem descobertos. Sentiu um estremecimento de inquietação. Tinha sido uma falta de sorte ter encontrado aquela jovem. Em combate, queira-se ou não, uma mulher representa sempre um coração a mais. O inimigo tem dois alvos enquanto apenas oferece um.

Bond lembrou-se de sua sede. Apanhou na concha da mão um pouco de água e bebeu-a. Aquela água era salobra e tinha gosto de terra. Mas servia. Bond bebeu um pouco mais. A jovem agitou a mão e deteve-o, dizendo:

— Não beba demais. Lave a boca e cuspa. Você pode apanhar febre.

Quarrel assobiou de algum ponto situado na corrente principal. Bond respondeu e foi em direção ao amigo. Depois, voltaram juntos, internando-se no canal. Quarrel borrifou as raízes de mangues com água, nos pontos em que os seus corpos talvez as tivessem raspado. “Para tirar o nosso cheiro”, explicou, laconicamente. Em seguida mostrou o seu feixe de bambus e começou a cortá-los e prepará-los. Enquanto isso, Bond se ocupava com seu revólver e a munição. Os três ficaram imóveis, no meio daquele pântano, de modo a não levantarem mais lama.

A luz do sol filtrava-se através do espesso teto de folhas, os camarões agitavam-se sob os pés daqueles três fugitivos. Gradativamente foi-se avolumando uma insuportável tensão, naquele silêncio escaldante e angustioso.

Foi quase um alívio ouvir-se o ladrar dos cães.


X - O RASTRO DO DRAGÃO


O grupo de investigação descia rapidamente pelo rio. Os dois homens, de calções de banho e altas botas impermeáveis, tinham que correr para acompanhar os cães.

Eram grandes negros chineses, que traziam coldres sustentados ao ombro por meio de talabartes cruzados diante dos peitos suados. De quando em quando trocavam gritos que em geral não passavam de imprecações. À frente deles a matilha de cães Dobermann nadava e debatia-se n’água, latindo excitadamente. Tinham farejado uma pista e procuravam segui-la nervosamente, com as orelhas eretas sobre as cabeças afladas.

— Talvez um maldito crocodilo, — gritou o chefe elevando a voz sobre a algazarra. Empunhava um chicote que de vez em quando fazia estalar no campo de caça.

Os outros homens se encaminhavam para ele. O chefe gritou excitadamente: “Aposto que é o gringo inglês! Tenho certeza de que ele está entre os mangues. Cuidado para que o gringo não nos faça cair numa emboscada.” O homem tirou o revólver do coldre e colocou-o sob o sovaco, sem tirar a mão da coronha.

O grupo agora estava deixando a parte do rio, sob céu aberto, e entrando no túnel formado pelos mangues. O primeiro homem tinha um apito, que se projetava de seu largo rosto como um toco de charuto. Fez soar um agudo silvo. Quando os cães avançaram, ele se deixou ficar com o seu chicote junto do chefe. Os animais continuavam farejando, lamuriando-se porque a corrente os obrigava a desobedecer às ordens recebidas. Os dois homens sacaram os revólveres e vadearam lentamente o rio, na mesma direção da corrente, por entre os caules tortuosos dos mangues.

O homem que ia na frente chegou ao estreito canal que Bond tinha encontrado, agarrou um dos cães pela co-leira e lançou-o ao canal. O animal resfolegou ansiosamente e debateu-se para a frente. Os olhos do homem percorreram as raízes dos mangues, de ambos os lados do canal, para ver se apresentavam algum arranhão.

O cão e o homem chegaram ao pequeno lago situado na extremidade do canal. O homem olhou à sua volta, com ar animado. Tornou a agarrar o cão pela coleira e puxou-o para trás. O animal relutava em abandonar o lugar. Então, o homem feriu a água com o chicote.

O segundo homem estivera esperando à entrada do canal. O primeiro saiu daquele pequeno remanso e sacudiu a cabeça, descendo a corrente, com os cães, que agora se mostravam menos excitados, nadando à frente.

Lentamente, a algazarra da perseguição foi diminuindo e desapareceu.

Por mais cinco minutos nada se mexeu na laguna dos mangues; depois, num dos cantos, entre as raízes, apareceu lentamente para fora d’água um fino periscópio de bambu. O rosto de Bond emergiu logo em seguida, com os cabelos molhados colados à testa, como a cara de um cadáver que boiasse. Em sua mão direita, sob a água, o revólver estava pronto. Bond procurou escutar cuidadosamente. O silêncio era completo, não havia o mínimo ruído. Ou haveria? O que seria aquele suave barulho, como se algo deslizasse entre a água, na corrente principal? Viria alguém, muito serenamente, seguindo na esteira daquela caçada? Bond procurou apalpar à sua volta e tocou delicadamente nos dois corpos que estavam cada um em um de seus flancos, entre as raízes, na orla da laguna. Quando os dois rostos aforaram à superfície, ele colocou o seu dedo indicador sobre os lábios, mas já era tarde. Quarrel tinha tossido e cuspido. Bond fez uma careta e fez um sinal na direção da principal corrente. Todos procuravam escutar. O ruído recomeçou. Alguém estava-se dirigindo para o canal lateral. Os tubos de bambu voltaram para as três bocas e as cabeças tornaram a submergir. Debaixo da água Bond descansou a cabeça na lama, apertou as narinas e os lábios à volta do tubo. Sabia que a laguna já fora examinada uma vez, pois sentira a agitação causada na água pelo cão, que passara nadando! Da primeira vez não tinham sido achados, mas conseguiriam escapar desta? Agora haveria menos possibilidades de que a lama revolta se escoasse para fora da laguna. Se esse batedor visse a mancha mais escura, na água, atiraria ou usaria um punhal? Que armas traria? Bond resolveu não correr riscos. Ao primeiro rumor de movimento, ao seu lado, ele se poria de pé e daria logo ao gatilho, esperando pelo melhor.

Assim ficou ele, submerso, com todos os sentidos atentos. Como era desagradável aquele respirar controlado e insuportáveis as ligeiras mordidelas dos camarões! Por sorte nenhum deles tinha qualquer ferida no corpo, pois do contrário os malditos animalzinhos ter-se-iam atirado contra elas. De qualquer forma, aquela fora uma brilhante idéia da jovem. Sem ela os cães já os teriam alcançado, onde quer que eles se tivessem escondido.

Inesperadamente, Bond encolheu-se. Uma bota de borracha tinha pisado em seu queixo e escorregado. O homem pensaria tratar-se de um galho de árvore? Bond não podia correr aquele risco. Com um só impulso pôs-se de pé, atirando para longe o pedaço de bambu.

Bond teve uma rápida impressão de um gigantesco corpo de pé, quase em cima de si, e duma coronha de rife, em rápido movimento. Levantou o braço esquerdo para proteger a cabeça e recebeu um violento golpe no braço. Ao mesmo tempo, o seu braço direito se esticou para a frente, e, quando o cano tocou no lado direito do peito, sob o mamilo, ele acionou o gatilho.

O coice da arma, quase encostada ao corpo do homem, por pouco não quebrou o pulso de Bond, mas o homem desabou para trás como uma árvore decepada que cai n’água. Antes que o corpo afundasse, Bond ainda pôde perceber-lhe uma grande fenda no flanco. A cabeça, uma cabeça negróide de chinês, veio à superfície, com os olhos revirados para cima e a água a sair de sua boca escancarada e silenciosa. Em seguida a cabeça submergiu novamente e nada mais se pôde ver senão uma lama espumosa e uma mancha vermelha que gradualmente se ia ampliando e lentamente era atraída pela corrente.

Bond se endireitou e voltou-se para o lado. Quarrel e a jovem estavam atrás, em pé, com a água a escorrer-lhes dos corpos. Quarrel tinha um sorriso que ia de orelha a orelha, mas a garota mordia as articulações dos dedos, enquanto seus olhos se escancaravam horrorizados diante da água avermelhada.

Bond disse laconicamente: “Desculpe-me, Honey. Tinha que ser feito. Ele estava bem sobre nós. Venha, vamos indo.” Agarrou-a de qualquer maneira, pelo braço, e arrastou-a para fora da principal corrente, apenas detendo-se quando chegaram a rio aberto, na boca do túnel de mangues.

O cenário estava novamente vazio. Bond olhou para o relógio, e verificou que parara às três horas. Olhou para o sol, já bastante deslocado para o ocidente e concluiu que deveriam ser quatro horas. Quanto ainda teriam que caminhar? Bond inesperadamente sentiu-se cansado. Agora teria de enfrentar a situação. Ainda que o disparo não tivesse sido ouvido — e certamente que ele fora abafado pelo próprio corpo da vítima e pelas árvores — a falta do homem seria sentida quando os outros se reunissem, — se a suposição de Quarrel fosse correta, na embocadura do rio, de onde seriam recolhidos pela lancha. Voltariam eles, subindo o rio, a fim de procurarem o desaparecido? Talvez não. Já estaria muito escuro quando eles tivessem a certeza de que o homem estava realmente desaparecido. O mais certo seria mandarem um grupo de homens pela manhã. Os cães facilmente dariam com o corpo. E o que aconteceria?

A garota puxou-o pela manga e disse com irritação: — Já é tempo de você me dizer o que significa tudo isto! Por que estão todos procurando se matar mutuamente? E quem é você? Não acredito em toda essa história de aves. Ninguém carrega revólveres contra aves.

Bond baixou o olhar, fitando aqueles olhos bem separados e irados. — Desculpe-me, Honey. Receio tê-la arrastado para uma boa encrenca. Eu lhe contarei tudo quando voltarmos à noite para o acampamento. Foi apenas má sorte que você se envolvesse comigo, desta maneira. Tenho uma guerrinha com essa gente. Eles parecem querer matar-me. Agora estou apenas interessado em que todos nós saiamos desta ilha sem que ninguém fique ferido. Já tenho muito do que queria, para da próxima vez voltar pela porta da frente.

— O que você quer dizer? Você é alguma espécie de policial? Está querendo meter esse chinês na cadeia?

— Mais ou menos, — disse Bond, rindo para ela. — Pelo menos você está do lado dos anjos. Agora, diga-me uma coisa. Quanto falta ainda para chegar ao acampamento dos guardas?

— Oh, cerca de uma hora.

— É um lugar bom para nele esconder-se? Eles poderiam achar-nos com facilidade?

— Eles teriam que atravessar o lago ou subir o rio. Tudo estará muito bem se eles não puserem o dragão em nosso encalço. Ele pode muito bem atravessar a água, pois já o vi fazê-lo.

— Bem — disse Bond diplomaticamente — esperemos que ele esteja com a cauda machucada, ou tenha outra coisa qualquer.

A jovem vociferou: — Muito bem, sr. Sabe-Tudo. — E acrescentou irritada: — Espere e verá.

Quarrel deixou o túnel de mangues, agitando ruidosamente a água, tendo na mão o rife do chinês abatido, e dizendo à guisa de quem pede desculpas:

— Não há mal em termos outra arma, chefe. Parece que vamos precisar dela.

Bond apanhou aquela arma. Era uma carabina “Remington”, do exército norte-americano, calibre 300. Não havia dúvida de que aquela gente contava com equipamento apropriado. Bond devolveu a arma a Quarrel, depois de examiná-la.

Quarrel como que fez eco aos seus pensamentos: — Isso é gente astuta, capitão. Aquele homem veio esquadrinhando suavemente, atrás dos outros, a fim de nos surpreender quando deixássemos o esconderijo, depois da passagem dos cães. Esse tal de doutor com certeza é um sujeito muito esperto.

Bond disse pensativamente: — É, ele deve ser um homem incomum. — Depois espantou os pensamentos: — Agora, vamos tocando para a frente. Honey diz que ainda precisamos de uma hora para chegarmos ao acampamento. É melhor irmos pela margem esquerda, de modo a ficarmos ao abrigo da colina. Pelo que já pudemos ver, eles têm lunetas assestadas sobre o rio.

Bond entregou a sua arma a Quarrel, que a guardou na mochila molhada. Puseram-se novamente em marcha, com Quarrel à frente, e Bond e a jovem andando juntos, atrás.

Aproveitavam algumas sombras das árvores e bambus da margem ocidental, mas deviam agora suportar toda a intensidade de um vento crestante. Borrifaram braços e corpos com água, a fim de refrescar as queimaduras. Os olhos de Bond estavam injetados por aquele insuportável revérbero e o seu braço doía intoleràvelmente no ponto em que fora atingido pela coronha. E ele não teria à sua espera o seu jantar de pão embebido, queijo e fiambre. Quanto tempo poderiam dormir? Não dormira muito na véspera, e parece que não iria ter melhor ração de sono. E a garota? Ela nada dormira. Ele e Quarrel teriam que se revezar, em quartos de vigilância. E logo chegaria o dia seguinte, quando procurariam ganhar novamente os mangues e vencer lentamente a distância que os separava de sua canoa, através da extremidade oriental da ilha. As coisas correriam daquela forma, segundo era de esperar. Então, tratariam de se fazerem ao mar na noite seguinte. Bond pensou em como haveria de abrir caminho por entre sólidos mangues, na distância de oito quilômetros. Que perspectiva! Continuou se arrastando para a frente, pensando nas “férias ao sol dos trópicos” de M. Muito gostaria que M tivesse que partilhar com ele aquelas “férias”.

O rio foi-se estreitando até que se reduziu a uma simples corrente entre as moitas de bambu. Depois se ampliava num estuário baixo e pantanoso, além do qual as cinco milhas quadradas de lago raso davam vazão para o outro lado da ilha, perdendo-se num agitado espelho líquido azul-cinza. Mais para além estava a brilhante pista aérea e o reflexo da luz solar sobre um único hangar. A jovem disse-lhe que se mantivesse na direção leste, e eles foram lentamente avançando, protegidos pela orla da mata.

Inesperadamente, Quarrel deteve-se, com o rosto esticado como o focinho de um cão para o terreno pantanoso à sua frente. Dois profundos sulcos tinham sido escavados na lama, com um sulco mais raso no centro. Eram a trilha de algo que tinha descido da colina e atravessado o pântano em direção ao lago.

A jovem disse com indiferença: — Por aqui já passou o dragão.

Quarrel arregalou os olhos para ela.

Bond caminhou lentamente pela trilha. As marcas exteriores eram bastante lisas, trazendo a marca de uma linha curva. Poderiam ter sido causadas por rodas, mas eram enormes, pelo menos com sessenta centímetros de largura. A trilha central tinha a mesma forma, mas com apenas três polegadas de largura, ou seja a largura de um pneumático de automóvel. As trilhas não apresentavam nenhum indício de pegadas e eram completamente frescas. Estendiam-se em linha reta, e os arbustos por elas atravessados tinham sido derrubados e esmagados no chão, como se um tanque de guerra tivesse passado por ali. Bond não podia imaginar que espécie de veículo seria aquele. A jovem tocou-o com o cotovelo e murmurou: — Eu lhe tinha dito. Ele apenas pôde responder pensativamente: — Bom, Honey, se não é o dragão, é algo que nunca vi antes.

Mais adiante, ela puxou-o ansiosamente pela manga. “Veja”, sussurrou, e apontou para a frente, indicando um grande cerrado de árvores, ao lado do qual passavam as trilhas. O cerrado estava sem folhas, enegrecido. Ao centro viam-se os restos dos ninhos de pássaros carbonizados. — Ele respirou sobre as árvores, — disse a garota nervosamente.

Bond aproximou-se das árvores e examinou-as. — Certamente que o fez — admitiu. Por que aquele cerrado, em especial, tinha sido queimado? Era muito estranho aquilo.

As trilhas desciam em direção ao lago e desapareciam na água. Bond teria gostado de segui-las, mas não poderia abandonar a cobertura das árvores. Assim, continuaram a marcha, cada um entregue aos próprios pensamentos.

Lentamente o dia começou a morrer, por trás da colina, e por fim a garota apontou para a frente, através dos arbustos; Bond pôde ver uma comprida restinga internando-se no lago. Estava coberta por densas moitas de arbustos e podiam-se ver, a cem metros da praia, os restos de uma cabana incendiada. Aquele parecia um lugar razoavelmente atraente para se passar a noite, e era bem protegido dos dois lados, pela água.

O vento tinha declinado e a água se apresentava suave e convidativa. Que prazer não seria tirarem as suas imundas camisas para um banho no lago e, depois de horas de patinhação através da lama e do lodo do pântano, poderem descansar naquela areia dura e seca!

O sol brilhou com reflexos amarelecidos e desapareceu por trás da montanha. Ainda era dia na extremidade oriental da ilha, mas a sombra negra do monte avançava vagarosamente sobre o lago e acabaria por expulsar completamente os últimos vestígios do sol. Os sapos começaram a coaxar mais barulhentamente que em Jamaica, até que a noite ficou cheia daquele áspero ruído. Do outro lado do lago um grande sapo macho começou a soar o seu tambor. Aquele estranho som era algo entre um tom-tom e um rosnado de macaco. Enviava mensagens que subitamente se interrompiam e logo silenciaram. Com certeza encontrara o que procurava.

Chegaram à garganta da restinga e seguiram por um estreito caminho, até a clareira que encerrava os escombros da cabana de sapé. As grandes e misteriosas trilhas saíam da água, de ambos os lados, atravessavam a clareira e os cerrados próximos. Muitos dos arbustos estavam queimados ou crestados. Podiam-se ver os restos de um fogão feito de pedaços de coral, e algumas panelas e latas vazias. Examinaram os destroços, e Quarrel desenterrou um par de latas intactas de costeletas de porco e ervilhas marca “Heinz”. A jovem encontrou ainda um saco de dormir muito amarrotado, enquanto Bond achou uma pequena bolsa de couro com cinco notas de um dólar, três libras de Jamaica e algumas moedas de prata. Os dois homens certamente tinham abandonado aquele lugar a toda pressa.

Prosseguiram mais para diante, até uma pequena clareira arenosa. Através dos arbustos podiam ver luzes cintilando sobre a água e provenientes da montanha, talvez a mais de três quilômetros de distância. A leste nada mais havia senão. os suaves reflexos escuros da água sob o céu sombrio.

Bond comentou: — Enquanto não acendermos nada, estaremos bem aqui. A primeira coisa a fazer é tomarmos um bom banho, Honey. Você pode ficar com o resto da restinga, que nós ficaremos com a sua garganta. Dentro de meia hora espero vê-la para o jantar.

A garota riu: — Você virá a rigor?

— Sem dúvida — respondeu Bond — e de calças.

Quarrel observou: — Capitão, enquanto ainda há um pouco de luz, vou abrir essas latas e preparar as coisas para a noite. — Remexeu dentro da mochila. — Aqui estão as suas calças e o seu revólver. O pão talvez não esteja muito bom, mas está apenas molhado. Pode-se comê-lo bem, e amanhã estará seco. O melhor talvez fosse comermos das latas esta noite, guardando o queijo e as costeletas. As latas são pesadas e amanhã teremos que andar muito.

Bond respondeu: — Muito bem, Quarrel. Deixarei o cardápio aos seus cuidados.

Em seguida, apanhou o revólver e as calças úmidas e desceu para a água rasa. A água estava acariciante, mas desagradavelmente quente. Bond escavou punhados de areia, com as mãos, e esfregou o corpo com ela, utilizando-a como sabonete. Depois deixou-se ficar gostosamente em meio àquele silêncio e àquela solidão.

As estrelas começaram a brilhar palidamente, as estrelas que os tinham trazido à ilha na noite passada; as estrelas que os tirariam dali no dia seguinte. Que viagem! Mas pelo menos já tinha dado os seus resultados. Agora tinha provas bastantes, e testemunhas, para ir ter com o governador e conseguir dele um inquérito completo acerca das atividades do Dr. No. Ninguém lança mão de metralhadoras contra pessoas, mesmo contra intrusos. E, da mesma forma, o que seria aquilo do Dr. No, que invadira a propriedade da Sociedade Audubon, aquilo que chegara a destruir essa propriedade e provavelmente matara um de seus empregados? Isto também teria que ser investigado. E o que haveria ele de encontrar quando voltasse pela porta da frente, talvez a bordo de um destróier, e com um destacamento de fuzileiros navais? Qual seria a resposta para o mistério do Dr. No? O que estaria ele escondendo? Por que aquele segredo era tão importante, que seria capaz de matar repetidas vezes, para preservá-lo? E quem era esse Dr. No?

Bond ouviu o barulho de alguém espojando-se na água. Pensou na garota. E quem, afinal, era Honeychile Ri-der? Aquilo pelo menos, pensou ele ao sair da água, era algo que deveria esclarecer antes do amanhecer.

Bond enfiou as suas pegajosas calças, sentou-se na areia e desmontou o revólver. Fê-lo pelo tato, utilizando-se de sua camisa para secar cada peça e cada cartucho. Depois, tornou a montar a arma e pressionou o gatilho, fazendo com que o tambor vazio desse uma volta completa. O som era satisfatório. Seriam precisos alguns dias para que o revólver começasse a enferrujar. Carregou-o e meteu-o no coldre, para dentro do cós da calça. Depois, levantou-se e voltou para a clareira.

A sombra de Honey chegou até ele, e a sua voz se fez ouvir: — Venha; estamos morrendo de fome. Apanhei uma das panelas, limpei-a e pusemos as ervilhas nela. Temos pão também. E eu não sinto escrúpulos de comer a sua ração, porque você me fez trabalhar muito mais do que se eu estivesse sozinha. Agora, estique a mão.

Bond achou graça no tom autoritário que havia em sua voz. Ele apenas podia perceber a sua silhueta, no escuro. Sua cabeça parecia mais aflada. Ele se perguntou como seriam os seus cabelos quando secos e penteados. Como seria ela quando estivesse vestindo roupas limpas naquele lindo corpo dourado? Podia vê-la entrando numa sala ou atravessando um vestíbulo em Beau Desert. Ela seria uma linda e encantadora Patinha Feia. Por que nunca procurara endireitar o nariz? Seria uma operação fácil. Depois disso, ela seria a jovem mais bela de Jamaica.

O seu ombro tocou nele. Bond esticou o braço e descansou a mão aberta no colo da jovem. Então Bond sentiu que ela estava enchendo a sua mão com ervilhas.

Subitamente, Bond aspirou o seu cheiro cálido de animal. Foi uma explosão sensual tão aguda que o seu corpo se uniu ao dela, e, por um momento, os seus olhos se fecharam.

Ela deixou escapar um riso curto, no qual havia timidez, satisfação e ternura. E disse, maternalmente: “Lá”, — e empurrou a mão de Bond.

 

CONTINUA

IX - POR UM TRIZ


Dez minutos mais tarde a baía estava vazia e imaculada. Pequenas ondas encrespavam-se preguiçosamente através do espelho das águas, no interior dos recifes e morriam exaustas na areia escura onde as conchas lilás brilhavam como unhas pintadas. O monte de conchas tinha desaparecido e não havia mais vestígios de pegadas. Quarrel cortara galhos de mangues e caminhava de costas procurando apagar as pegadas com aqueles galhos. Onde tinha varrido, a areia apresentava uma limpidez diferente mas não tão diferente a ponto de ser notada de fora do recife. A canoa da jovem tinha sido arrastada para dentro do mar, entre as rochas, e ali ficou coberta com algas e gravetos.

Quarrel tinha voltado ao promontório. Bond e a jovem estavam juntos, sob tufos de folhas, onde Bond dormira, e olhavam silenciosamente para o contorno do promontório, à volta do qual surgira a embarcação.

A lancha estava talvez a uns quinhentos metros de distância. A julgar pelo lento ritmo do motor, Bond concluiu que cada acidente da costa estava sendo cuidadosamente inspecionado para descobrir indícios da presença de estranhos. De qualquer forma, aquilo parecia uma possante embarcação. Talvez uma grande lancha de cabina. Que tripulação teria? Quem estaria no comando? O Dr. No? Improvável. Ele certamente não se daria àquele trabalho de polícia.

Do lado do ocidente apareceu um bando de corvos marinhos, voando baixo sobre o mar, além dos recifes. Bond observou-os. Eram o primeiro indício para ele encontrado daquela colônia de aves, na outra extremidade da ilha. Aquele bando, segundo Pleydell-Smith, seriam batedores à procura do brilho prateado das enchovas, próximas à superfície. Enquanto observava, as aves começaram a dar mergulhos rasos, ferindo o mar superficialmente e levantando respingos de água. Quase que de uma só vez, apareceu outra coluna de aves, vinda do ocidente, e logo outra, e mais outra, fundindo-se todas numa espessa e escura nuvem. Durante minutos, elas sombrearam o céu, e depois atiraram-se à água, cobrindo vários alqueires, piando e lutando, e mergulhando as cabeças no mar, fazendo uma rica colheita naquele sólido campo de anchovas, como piranhas que se banqueteassem num cavalo afogado.

Bond sentiu um suave toque da jovem, que fez um movimento com a cabeça, dizendo:

— As galinhas do chinês estão comendo milho.

Bond observou-lhe o rosto belo e feliz. Ela parecia bastante despreocupada com a chegada daqueles homens. Para ela aquilo era apenas o jogo de esconde-esconde que já tinha praticado antes.

A vibração metálica dos motores diesel estava-se tornando mais forte. A lancha deveria estar justamente por trás do promontório. Bond deu mais uma olhada à volta da tranqüila baía, e depois fixou os olhos através da folhagem e do mato, para os lados dos recifes.

A ponta de uma proa branca apareceu, seguida de uns dez metros de tombadilho, e logo o parabrisas de vidro, uma cabina baixa e uma antena de rádio, e o vulto de um homem à volta do leme. Finalmente, o comprido e achatado fosso da popa, e uma flâmula vermelha pendente, Seria uma lancha-torpedeira convertida, um excedente de guerra do governo britânico?

Os olhos de Bond fixaram-se nos dois homens que estavam em pé na popa. Eram negros de pele pálida, envergando roupas caqui de marinheiro, com largos cinturões e chapéus de palha com longas palas. Estavam um ao lado do outro, equilibrando-se sob a lenta elevação da massa líquida. Um deles segurava um alto-falante e o outro manejava uma metralhadora instalada num tripé. Bond teve a impressão de que era uma metralhadora “Spandau”.

O homem com o alto-falante deixou que este caísse, e ele ficou oscilando numa tira, que lhe dava volta ao pescoço. Apanhou um binóculo e começou a vasculhar metro a metro da praia. Indistintos comentários chegavam aos ouvidos de Bond, por entre o ruído dos motores.

Bond percebeu que os olhos do binóculo começavam pelo promontório e depois percorriam a areia. As lentes detiveram-se entre as rochas e continuaram o seu passeio. Depois, voltaram. O murmúrio do comentário elevou-se ganhando animação. O homem passou o binóculo para o metralhador, que observou rapidamente, devolvendo-o logo ao dono. O observador gritou alguma coisa para o timoneiro. A lancha começou a se aproximar da praia. Agora estavam justamente diante dos recifes, em frente a Bond e à jovem. O observador ergueu novamente o binóculo, apontando-o para as rochas onde se encontrava escondida a canoa da jovem. Novamente a fala excitada chegou aos ouvidos de Bond, por sobre as águas. Mais uma vez o binóculo foi passado ao metralhador, que levou algum tempo observando. Dessa vez, ele fez um sinal de assentimento com a cabeça.

Bond pensou: agora vamos ter coisa; esses homens conhecem o ofício. Em seguida, viu que o metralhador se ocupava em carregar a arma. O duplo estalido metálico chegou aos seus ouvidos, por entre o matraquear do motor.

O observador ergueu o alto-falante e ligou-o. O eco produzido pelo amplificador chegou até Bond, conduzido pela superfície da água. A voz do homem ribombou pela baía:

— Alô, pessoal! Saiam daí e não serão feridos. Era uma voz educada, com sotaque americano.

— Agora, pessoal — trovejou a voz — depressa! Nós vimos quando vocês desembarcaram. Já descobrimos o bote sob os paus. Não somos tolos e não estamos brincando. Saiam daí com os braços levantados e não lhes acontecerá nada!

Não se ouviu nenhuma resposta. Apenas as ondas quebravam docemente na praia. Bond podia ouvir a respiração da jovem. Os guinchos agudos dos corvos marinhos chegavam-lhes de uma milha de distância, sobre o mar. O cano de escapamento dos motores diesel produzia um ruído desigual e gorgulhante, quando o intumescimento do mar cobria o orifício de descarga.

Silenciosamente Bond tocou o braço da jovem e disse-lhe:

— Fique mais perto. Alvo menor.

Ele sentiu o calor da jovem mais próximo de seu corpo, e o rosto de Honey raspou pelo seu braço. Bond sussurrou:

— Enterre-se na areia. Encolha-se. Cada polegada a menos ajudará.

Ele começou a se encolher cuidadosamente na depressão que tinham escavado para se abrigarem, e sentiu que ela fazia o mesmo.

O homem estava erguendo o seu alto-falante. A voz ribombou novamente.

— Muito bem, pessoal! Vocês irão ver que isso aqui não é para brincadeira. — Depois, levantou o polegar. O metralhador experimentou a arma fazendo alguns disparos para a copa dos mangues situados por trás da praia. Bond ouviu o rápido matraquear, tão seu conhecido, e do qual se despedira pela última vez diante das linhas alemãs, nas Ardenas. As balas produziam o velho som de pombos assustados, assobiando sobre sua cabeça. Depois fez-se silêncio.

À distância, Bond via a nuvem negra de corvos marinhos elevar-se, começando a fazer os seus amplos círculos. Seus olhos voltaram para a embarcação. O metralhador estava apalpando o cano da metralhadora, para ver se já estava aquecido. Os dois homens trocaram algumas palavras. O observador apanhou novamente o porta-voz.

— Está bem, pessoal. Vocês foram avisados.

Bond viu o cano da “Spandau” levantar-se e abaixar-se. O homem estava querendo começar com a canoa, entre as rochas. Bond sussurrou para a jovem: — Muito bem, Honey. Agüente firme. Mantenha-se abaixada. Não vai durar muito.

Ele sentiu que a mão da jovem apertava o seu braço, e pensou: “Coitada; ela está metida nisso por minha causa.” Ele inclinou-se para a direita a fim de cobrir a cabeça de Honey e afundou o rosto na areia.

Dessa vez o matraquear foi terrível. Balas ricocheteavam no flanco do promontório. Fragmentos de pedra saltavam para todos os lados, sobre a praia. Outras balas ricocheteavam e iam perder-se dentro da mata. Simultaneamente com todo aquele barulho ouvia-se o martelar contínuo da metralhadora.

Houve uma pausa. Nova carga, pensou Bond. Agora será para nós. Pôde sentir a jovem agarrando-se a ele. Seu corpo tremia todo, encostado ao seu flanco. Bond apanhou uma arma e apertou-a de encontro ao corpo. O matraquear da metralhadora recomeçou. As balas vinham zunindo, da linha de maré, em direção a eles. Ouviu-se uma sucessão de rápidas batidas. O tufo, acima deles, estava sendo reduzido a pedaços. “Zuip Zuip Zuip”. Era como se um chicote de aço estivesse retalhando os arbustos. Pedaços de lenha caíam sobre eles, cobrindo-os lentamente. Bond respirou um ar mais fresco, o que significava que eles agora estavam ao ar-livre. Estariam eles escondidos pelas folhas o pelos destroços? As balas continuaram deslocando-se ao longo da linha da costa. Em menos de um minuto a metralhadora parou.

O silêncio tornou a reinar. A jovem lamuriou-se docemente. Bond fê-la calar-se e apertou-a mais forte.

O alto-falante apregoou:

— Está bem, pessoal. Se vocês ainda têm ouvidos, saibam que voltaremos logo para recolher-lhes os pedaços. Vamos trazer os cães. Até à vista, por enquanto.

O ritmo do motor se acelerou, e através das folhas Bond pôde ver a popa da lancha afundar-se mais na água, enquanto a embarcação rumava rapidamente para oeste. Dentro de minutos já não se ouvia mais nada.

Bond ergueu a cabeça cautelosamente. A baía estava serena, e tudo como antes, exceto o cheiro de cordite e as rochas quebradas.

Bond fez a jovem levantar-se. Havia marcas de lágrimas em seu rosto. Ela olhou-o aterrada, e disse:

— Isso foi terrível. Por que eles o fizeram? Podíamos ter sido mortos.

Bond pensou naquela jovem que sempre abrira caminho, na vida, por si mesma, mas apenas contra a natureza. Conhecia o mundo dos animais, dos insetos e dos peixes, e tirava todo o partido desse conhecimento. Mas aquele era um pequeno mundo, limitado pelo sol, pela lua e pelas estações. Ela não conhecia o grande mundo das salas cheias de fumo, dos corredores de negócios, dos corredores e antecâmaras governamentais, dos cautelosos encontros em bancos de praças — numa palavra: ela nada conhecia da luta pelo poder e pelo dinheiro, travada por homens poderosos.

Bond disse:

— É isso mesmo, Honey, eles não passam de uma quadrilha de bandidos assustados conosco. Podemos enfrentá-los.

Bond colocou o braço à volta de seus ombros e continuou:

— E você esteve maravilhosa, brava como ninguém. Agora, vamos ao encontro de Quarrel para traçar os nossos planos. De qualquer forma, já é tempo de comermos alguma coisa. O que é que você costuma comer nessas expedições?

Deram meia-volta e seguiram pela praia em direção ao promontório. Depois de um minuto, ela disse com voz bem controlada:

— Oh, há uma porção de coisas por aí que se podem comer. Ouriços do mar principalmente, mas também bananas silvestres e outras coisas. Eu como e durmo durante dois dias, antes de vir aqui. Não preciso de nada.

Bond apertou-a mais fortemente, mas deixou cair o braço, assim que Quarrel apareceu ao longe. Quarrel vinha saltando sobre as rochas, e, em determinado momento, parou, olhando para baixo. Bond e Honey se aproximaram dele. A canoa da jovem estava cortada ao meio pelas balas. Honey deixou escapar um grito, olhando desesperadamente para Bond:

— A minha canoa! Como poderei voltar?

— Não se preocupe, senhorita, — disse Quarrel, que sentia a perda de uma canoa mais do que Bond. Imaginou ainda que aquela embarcação representasse quase todo o capital da jovem. — O capitão lhe dará outra. E a senhorita voltará conosco. Temos um magnífico bote, entre os mangues, e ele não foi destruído. Já estive lá espiando.

Quarrel olhou para Bond. Agora, o seu rosto denotava preocupação.

— Mas, capitão, o senhor está vendo o que eu disse dessa gente. Eles são duros e não estão brincando. Esses cães que eles vão trazer são policiais — Pinschers, como eles os chamam. Bastardos. Meus amigos disseram-me que são uma matilha de vinte ou mais. É melhor resolvermos logo.

— Está bem, Quarrel. Mas antes de mais nada precisamos comer alguma coisa. — o diabo que me carregue se eu vou ser aterrorizado e expulso da ilha antes de dar uma olhada nisso. Levaremos Honey conosco. — E, voltando-se para a jovem:

— Está bem, Honey? Nada lhe acontecerá. Depois voltaremos juntos.

A jovem olhou-o em dúvida:

— Acho que não há alternativa. Quero dizer. Gostaria de ir com vocês, se não atrapalhasse. Francamente, não quero comer nada. Mas você me levará de volta, assim que puder? Não quero ver mais aquela gente. Durante quanto tempo vocês vão ficar olhando para essas aves?

Bond respondeu evasivamente:

— Pouco tempo. Eu terei apenas que ver o que lhes aconteceu e porquê. Depois, partiremos.

Olhou para o relógio e anunciou:

— Agora são doze horas. Você nos esperará aqui. Tome um banho ou faça o que quiser. Não ande por aí deixando pegadas. Vamos, Quarrel, é melhor escondermos aquele bote.

Só à uma hora eles estavam prontos. Bond e Quarrel encheram a canoa com pedras e areia, até que ela desapareceu sob a água, entre os mangues. Depois, apagaram as suas pegadas. As balas tinham deixado tantos gravetos na orla da praia, que eles podiam caminhar pisando em folhas e ramos quebrados. Comeram parte de suas rações — os homens com avidez, mas Honey com relutância — e depois, passando sobre as rochas, foram ter à lagoa, próxima da costa. Em seguida foram vadeando aquelas águas, em direção à foz do rio, trezentos metros praia abaixo.

Fazia muito calor. Um vento áspero e quente começou a soprar do nordeste. Quarrel informou que aquele vento soprava diariamente, durante todo o ano, e era vital para a guaneira, pois secava o guano. O revérbero do mar e das brilhantes folhas verdes dos mangues cegava-os. Bond deu-se por feliz, já que tivera o cuidado de acostumar sua pele ao sol.

Na foz do rio encontraram um banco de areia e um extenso pântano, profundo e de águas estagnadas. Os dois homens podiam molhar-se ou tirar as roupas. Bond disse à jovem:

— Honey, não podemos ter cerimônia, nesta situação. Vamos ficar apenas com as camisas por causa do sol. Fique apenas com o que for sensato e caminhe atrás de nós.

Sem esperar pela resposta da jovem, os dois homens tiraram as calças. Quarrel enrolou-as e guardou-as na sacola, juntamente com as provisões e o revólver de Bond. Depois começaram a vadear a lagoa, com Quarrel na frente, logo seguido de Bond, e, finalmente a jovem. A água chegou até a cintura de Bond. Um grande peixe prateado deu um salto perto deles e depois caiu ruidosamente na água. Viram-se pequeninas setas riscarem a superfície, quando peixes menores se afastaram precipitadamente.

A lagoa convergia para uma estreita garganta, por sobre a qual as copas dos mangues se tocavam. Durante algum tempo eles vadearam através de um túnel fresco, e depois o rio se alargou num canal profundo, de águas morosas, que serpeava para a frente, entre as gigantescas raízes de sustentação dos mangues. O fundo era lamacento, e a cada passo os pés se enterravam algumas polegadas no lodo. Pequenos peixes ou camarões se encolhiam ou fugiam de baixo de seus pés, e de quando em quando eles tinham que parar para se desembaraçar das sanguessugas, antes que elas se agarrassem firmemente. A não ser isso, aquela caminhada era fácil, sob o frescor das arvores, e, pelo menos para Bond, era uma bênção estar ao abrigo do sol.

Em breve, à medida que se iam afastando do mar, começaram a sentir um cheiro de ovo podre, o cheiro de hidrogênio sulfurado do gás dos pântanos. Os mosquitos começaram a assaltá-los e pareciam gostar do corpo de Bond. Quarrel disse-lhe que mergulhasse na água do rio, pois os mosquitos gostavam de carne salgada. Bond tirou a camisa e fez o que Quarrel lhe aconselhara. Depois disso sentiu-se melhor e o seu olfato chegou mesmo a se acostumar com aquele repugnante cheiro, a não ser quando os pés de Quarrel desfaziam algum bolsão de gás, no fundo da lama, e uma gigantesca bolha atravessava a água para arrebentar na superfície sob as suas narinas.

Os mangues começaram a se tornar mais escassos e mais esparsos, enquanto o rio se ia alargando aos poucos. Ao mesmo tempo, a água tornava-se mais rasa e o fundo mais firme. Logo chegaram a uma volta e saíram para céu aberto, Honey disse:

— É melhor tomarmos cuidado, agora. Eles poderão ver-nos com muita facilidade. Isso vai assim durante uma milha. Depois o rio torna a se estreitar até o lago. E depois se poderá ver a restinga onde os tratadores das aves viviam.

O grupo deteve-se à sombra do túnel de mangues e olhou para fora. O rio serpeava perigosamente, afastando-se deles, em direção ao centro da ilha. As suas barrancas, bordadas de bambus de pequeno porte e de vegetação rala, dar-lhes-íam cobertura reduzida. Partindo de sua margem ocidental, o terreno elevava-se aos poucos, e logo abruptamente até o monte, situado a três quilômetros de distância, que era a guaneira. Na base daquela montanha, viam-se várias cabanas esparsas. Um ziguezague prateado galgava o flanco da colina, até as tendas — trilhos “Decauville”, pensou Bond, destinados a levarem o guano para o moinho e separa-dor. O cume do monte era branco, como se estivesse coberto de neve. De sua parte mais elevada desprendia-se como que uma bandeira de dó de guano. Bond podia ver os pontos negros que eram os corvos marinhos, sobre o fundo branco. Aquelas aves estavam levantando vôo e pousando como abelhas numa colmeia.

Bond deixou-se ficar de pé e contemplou o brilho distante daquela montanha de excrementos de aves. Então aquilo era o reino do Dr. No! Bond pensou que jamais vira um cenário tão escondido e distante, em toda a sua vida.

Examinou o terreno entre o rio e a montanha. Parecia ser principalmente formado com aquela matéria cinzenta de corais mortos. Não havia dúvida de que uma estrada ou trilha corria da falda da montanha até ao lago central e aos pântanos. Bond notou ainda que toda a vegetação se curvava para oeste, e imaginou viver durante todo um ano com aquele vento escaldante castigando a ilha, sem falar do cheiro do guano e do gás dos pântanos. Nenhuma colônia penal poderia encontrar pior localização do que aquela.

Bond olhou para leste, onde os mangues, na área dos charcos, pareciam oferecer mais hospitalidade. Os três puseram-se a caminhar sobre um sólido tapete verde de vegetação. Sobre suas cabeças, aves revoluteavam agitadas, para depois se, acalmarem, e logo tornarem a agitar-se. Seus pios eram carregados pelo vento crestante.

A voz de Quarrel interrompeu os pensamentos de Bond:

— Eles vêm vindo, capitão!

Bond seguiu o olhar de Quarrel. Um grande caminhão descia celeremente das tendas, com uma nuvem de pó levantando-se das rodas. Bond acompanhou-o durante dez minutos, até que o veículo desapareceu entre os mangues, na margem do rio. Bond pôs-se a escutar e ouviu latidos de cães, que eram trazidos pelo vento.

Quarrel comentou:

— Eles vão descer pelo rio, capitão. Sabem que não nos podemos mover, a não ser rio acima, se não estivermos mortos. Certamente que descerão pelo rio, até a praia, e farão um reconhecimento dos destroços. Depois, com toda a certeza, a lancha virá com um pequeno bote e recolherá os homens e os cães. Pelo menos, isso é o que eu faria no lugar deles.

Honey disse: — Isso é, de fato, o que eles fazem quando me procuram. É isso mesmo. Basta que cortemos um pedaço de bambu, e, quando eles estiverem perto, mergulhemos na água, procurando respirar através do bambu, até que eles se afastem.

Bond sorriu para Quarrel, e disse: — Suponhamos que você corte os bambus, enquanto eu procuro um bom esconderijo entre os mangues.

Quarrel aquiesceu hesitante e começou a subir contra a corrente, em direção ao bambuzal, enquanto Bond se encaminhava para o túnel formado pelos mangues.

Bond evitara olhar para a jovem, mas esta disse-lhe com impaciência:

— Não precisa ter tanto cuidado em não olhar para mim. Não adianta se preocupar com tais coisas, numa hora dessas. Você mesmo o disse, ainda há pouco.

Bond virou-se e olhou para a jovem. Sua camisa esfrangalhada descia até a linha d’água. Podia-se ainda ter um vislumbre de pálidas coxas, serpeando sob a superfície. O lindo rosto sorriu para ele. No meio daqueles mangues, o seu nariz quebrado parecia harmonizar-se com o ambiente, pela sua animalidade.

Bond fitou-a descansadamente e ela compreendeu. Depois, ele deu-lhe as costas e desceu pela correnteza, seguido por ela. Logo encontrou o que procurava, isto é, uma fenda naquela parede formada pelas raízes dos mangues. Bond recomendou: — Não quebre nenhum galho. — Depois, baixou a cabeça e meteu-se por aquela brecha. O canal avançava numa distância de dez metros. A lama sob seus pés tornou-se mais mole e espessa. Chegou a uma sólida e intransponível parede de raízes. Aquela água escura fluía vagarosamente através de uma ampla e tranqüila lagoa. Bond deteve-se. A jovem se aproximou dele.

— Isto é mesmo uma brincadeira de esconde-esconde — disse ela, trêmula.

— É verdade — aquiesceu Bond distraidamente, enquanto pensava em seu revólver. Com efeito, ele preocupava-se em saber com que eficiência a arma operaria depois de um banho no rio — quantos cães e homens ele poderia eliminar, se fossem descobertos. Sentiu um estremecimento de inquietação. Tinha sido uma falta de sorte ter encontrado aquela jovem. Em combate, queira-se ou não, uma mulher representa sempre um coração a mais. O inimigo tem dois alvos enquanto apenas oferece um.

Bond lembrou-se de sua sede. Apanhou na concha da mão um pouco de água e bebeu-a. Aquela água era salobra e tinha gosto de terra. Mas servia. Bond bebeu um pouco mais. A jovem agitou a mão e deteve-o, dizendo:

— Não beba demais. Lave a boca e cuspa. Você pode apanhar febre.

Quarrel assobiou de algum ponto situado na corrente principal. Bond respondeu e foi em direção ao amigo. Depois, voltaram juntos, internando-se no canal. Quarrel borrifou as raízes de mangues com água, nos pontos em que os seus corpos talvez as tivessem raspado. “Para tirar o nosso cheiro”, explicou, laconicamente. Em seguida mostrou o seu feixe de bambus e começou a cortá-los e prepará-los. Enquanto isso, Bond se ocupava com seu revólver e a munição. Os três ficaram imóveis, no meio daquele pântano, de modo a não levantarem mais lama.

A luz do sol filtrava-se através do espesso teto de folhas, os camarões agitavam-se sob os pés daqueles três fugitivos. Gradativamente foi-se avolumando uma insuportável tensão, naquele silêncio escaldante e angustioso.

Foi quase um alívio ouvir-se o ladrar dos cães.


X - O RASTRO DO DRAGÃO


O grupo de investigação descia rapidamente pelo rio. Os dois homens, de calções de banho e altas botas impermeáveis, tinham que correr para acompanhar os cães.

Eram grandes negros chineses, que traziam coldres sustentados ao ombro por meio de talabartes cruzados diante dos peitos suados. De quando em quando trocavam gritos que em geral não passavam de imprecações. À frente deles a matilha de cães Dobermann nadava e debatia-se n’água, latindo excitadamente. Tinham farejado uma pista e procuravam segui-la nervosamente, com as orelhas eretas sobre as cabeças afladas.

— Talvez um maldito crocodilo, — gritou o chefe elevando a voz sobre a algazarra. Empunhava um chicote que de vez em quando fazia estalar no campo de caça.

Os outros homens se encaminhavam para ele. O chefe gritou excitadamente: “Aposto que é o gringo inglês! Tenho certeza de que ele está entre os mangues. Cuidado para que o gringo não nos faça cair numa emboscada.” O homem tirou o revólver do coldre e colocou-o sob o sovaco, sem tirar a mão da coronha.

O grupo agora estava deixando a parte do rio, sob céu aberto, e entrando no túnel formado pelos mangues. O primeiro homem tinha um apito, que se projetava de seu largo rosto como um toco de charuto. Fez soar um agudo silvo. Quando os cães avançaram, ele se deixou ficar com o seu chicote junto do chefe. Os animais continuavam farejando, lamuriando-se porque a corrente os obrigava a desobedecer às ordens recebidas. Os dois homens sacaram os revólveres e vadearam lentamente o rio, na mesma direção da corrente, por entre os caules tortuosos dos mangues.

O homem que ia na frente chegou ao estreito canal que Bond tinha encontrado, agarrou um dos cães pela co-leira e lançou-o ao canal. O animal resfolegou ansiosamente e debateu-se para a frente. Os olhos do homem percorreram as raízes dos mangues, de ambos os lados do canal, para ver se apresentavam algum arranhão.

O cão e o homem chegaram ao pequeno lago situado na extremidade do canal. O homem olhou à sua volta, com ar animado. Tornou a agarrar o cão pela coleira e puxou-o para trás. O animal relutava em abandonar o lugar. Então, o homem feriu a água com o chicote.

O segundo homem estivera esperando à entrada do canal. O primeiro saiu daquele pequeno remanso e sacudiu a cabeça, descendo a corrente, com os cães, que agora se mostravam menos excitados, nadando à frente.

Lentamente, a algazarra da perseguição foi diminuindo e desapareceu.

Por mais cinco minutos nada se mexeu na laguna dos mangues; depois, num dos cantos, entre as raízes, apareceu lentamente para fora d’água um fino periscópio de bambu. O rosto de Bond emergiu logo em seguida, com os cabelos molhados colados à testa, como a cara de um cadáver que boiasse. Em sua mão direita, sob a água, o revólver estava pronto. Bond procurou escutar cuidadosamente. O silêncio era completo, não havia o mínimo ruído. Ou haveria? O que seria aquele suave barulho, como se algo deslizasse entre a água, na corrente principal? Viria alguém, muito serenamente, seguindo na esteira daquela caçada? Bond procurou apalpar à sua volta e tocou delicadamente nos dois corpos que estavam cada um em um de seus flancos, entre as raízes, na orla da laguna. Quando os dois rostos aforaram à superfície, ele colocou o seu dedo indicador sobre os lábios, mas já era tarde. Quarrel tinha tossido e cuspido. Bond fez uma careta e fez um sinal na direção da principal corrente. Todos procuravam escutar. O ruído recomeçou. Alguém estava-se dirigindo para o canal lateral. Os tubos de bambu voltaram para as três bocas e as cabeças tornaram a submergir. Debaixo da água Bond descansou a cabeça na lama, apertou as narinas e os lábios à volta do tubo. Sabia que a laguna já fora examinada uma vez, pois sentira a agitação causada na água pelo cão, que passara nadando! Da primeira vez não tinham sido achados, mas conseguiriam escapar desta? Agora haveria menos possibilidades de que a lama revolta se escoasse para fora da laguna. Se esse batedor visse a mancha mais escura, na água, atiraria ou usaria um punhal? Que armas traria? Bond resolveu não correr riscos. Ao primeiro rumor de movimento, ao seu lado, ele se poria de pé e daria logo ao gatilho, esperando pelo melhor.

Assim ficou ele, submerso, com todos os sentidos atentos. Como era desagradável aquele respirar controlado e insuportáveis as ligeiras mordidelas dos camarões! Por sorte nenhum deles tinha qualquer ferida no corpo, pois do contrário os malditos animalzinhos ter-se-iam atirado contra elas. De qualquer forma, aquela fora uma brilhante idéia da jovem. Sem ela os cães já os teriam alcançado, onde quer que eles se tivessem escondido.

Inesperadamente, Bond encolheu-se. Uma bota de borracha tinha pisado em seu queixo e escorregado. O homem pensaria tratar-se de um galho de árvore? Bond não podia correr aquele risco. Com um só impulso pôs-se de pé, atirando para longe o pedaço de bambu.

Bond teve uma rápida impressão de um gigantesco corpo de pé, quase em cima de si, e duma coronha de rife, em rápido movimento. Levantou o braço esquerdo para proteger a cabeça e recebeu um violento golpe no braço. Ao mesmo tempo, o seu braço direito se esticou para a frente, e, quando o cano tocou no lado direito do peito, sob o mamilo, ele acionou o gatilho.

O coice da arma, quase encostada ao corpo do homem, por pouco não quebrou o pulso de Bond, mas o homem desabou para trás como uma árvore decepada que cai n’água. Antes que o corpo afundasse, Bond ainda pôde perceber-lhe uma grande fenda no flanco. A cabeça, uma cabeça negróide de chinês, veio à superfície, com os olhos revirados para cima e a água a sair de sua boca escancarada e silenciosa. Em seguida a cabeça submergiu novamente e nada mais se pôde ver senão uma lama espumosa e uma mancha vermelha que gradualmente se ia ampliando e lentamente era atraída pela corrente.

Bond se endireitou e voltou-se para o lado. Quarrel e a jovem estavam atrás, em pé, com a água a escorrer-lhes dos corpos. Quarrel tinha um sorriso que ia de orelha a orelha, mas a garota mordia as articulações dos dedos, enquanto seus olhos se escancaravam horrorizados diante da água avermelhada.

Bond disse laconicamente: “Desculpe-me, Honey. Tinha que ser feito. Ele estava bem sobre nós. Venha, vamos indo.” Agarrou-a de qualquer maneira, pelo braço, e arrastou-a para fora da principal corrente, apenas detendo-se quando chegaram a rio aberto, na boca do túnel de mangues.

O cenário estava novamente vazio. Bond olhou para o relógio, e verificou que parara às três horas. Olhou para o sol, já bastante deslocado para o ocidente e concluiu que deveriam ser quatro horas. Quanto ainda teriam que caminhar? Bond inesperadamente sentiu-se cansado. Agora teria de enfrentar a situação. Ainda que o disparo não tivesse sido ouvido — e certamente que ele fora abafado pelo próprio corpo da vítima e pelas árvores — a falta do homem seria sentida quando os outros se reunissem, — se a suposição de Quarrel fosse correta, na embocadura do rio, de onde seriam recolhidos pela lancha. Voltariam eles, subindo o rio, a fim de procurarem o desaparecido? Talvez não. Já estaria muito escuro quando eles tivessem a certeza de que o homem estava realmente desaparecido. O mais certo seria mandarem um grupo de homens pela manhã. Os cães facilmente dariam com o corpo. E o que aconteceria?

A garota puxou-o pela manga e disse com irritação: — Já é tempo de você me dizer o que significa tudo isto! Por que estão todos procurando se matar mutuamente? E quem é você? Não acredito em toda essa história de aves. Ninguém carrega revólveres contra aves.

Bond baixou o olhar, fitando aqueles olhos bem separados e irados. — Desculpe-me, Honey. Receio tê-la arrastado para uma boa encrenca. Eu lhe contarei tudo quando voltarmos à noite para o acampamento. Foi apenas má sorte que você se envolvesse comigo, desta maneira. Tenho uma guerrinha com essa gente. Eles parecem querer matar-me. Agora estou apenas interessado em que todos nós saiamos desta ilha sem que ninguém fique ferido. Já tenho muito do que queria, para da próxima vez voltar pela porta da frente.

— O que você quer dizer? Você é alguma espécie de policial? Está querendo meter esse chinês na cadeia?

— Mais ou menos, — disse Bond, rindo para ela. — Pelo menos você está do lado dos anjos. Agora, diga-me uma coisa. Quanto falta ainda para chegar ao acampamento dos guardas?

— Oh, cerca de uma hora.

— É um lugar bom para nele esconder-se? Eles poderiam achar-nos com facilidade?

— Eles teriam que atravessar o lago ou subir o rio. Tudo estará muito bem se eles não puserem o dragão em nosso encalço. Ele pode muito bem atravessar a água, pois já o vi fazê-lo.

— Bem — disse Bond diplomaticamente — esperemos que ele esteja com a cauda machucada, ou tenha outra coisa qualquer.

A jovem vociferou: — Muito bem, sr. Sabe-Tudo. — E acrescentou irritada: — Espere e verá.

Quarrel deixou o túnel de mangues, agitando ruidosamente a água, tendo na mão o rife do chinês abatido, e dizendo à guisa de quem pede desculpas:

— Não há mal em termos outra arma, chefe. Parece que vamos precisar dela.

Bond apanhou aquela arma. Era uma carabina “Remington”, do exército norte-americano, calibre 300. Não havia dúvida de que aquela gente contava com equipamento apropriado. Bond devolveu a arma a Quarrel, depois de examiná-la.

Quarrel como que fez eco aos seus pensamentos: — Isso é gente astuta, capitão. Aquele homem veio esquadrinhando suavemente, atrás dos outros, a fim de nos surpreender quando deixássemos o esconderijo, depois da passagem dos cães. Esse tal de doutor com certeza é um sujeito muito esperto.

Bond disse pensativamente: — É, ele deve ser um homem incomum. — Depois espantou os pensamentos: — Agora, vamos tocando para a frente. Honey diz que ainda precisamos de uma hora para chegarmos ao acampamento. É melhor irmos pela margem esquerda, de modo a ficarmos ao abrigo da colina. Pelo que já pudemos ver, eles têm lunetas assestadas sobre o rio.

Bond entregou a sua arma a Quarrel, que a guardou na mochila molhada. Puseram-se novamente em marcha, com Quarrel à frente, e Bond e a jovem andando juntos, atrás.

Aproveitavam algumas sombras das árvores e bambus da margem ocidental, mas deviam agora suportar toda a intensidade de um vento crestante. Borrifaram braços e corpos com água, a fim de refrescar as queimaduras. Os olhos de Bond estavam injetados por aquele insuportável revérbero e o seu braço doía intoleràvelmente no ponto em que fora atingido pela coronha. E ele não teria à sua espera o seu jantar de pão embebido, queijo e fiambre. Quanto tempo poderiam dormir? Não dormira muito na véspera, e parece que não iria ter melhor ração de sono. E a garota? Ela nada dormira. Ele e Quarrel teriam que se revezar, em quartos de vigilância. E logo chegaria o dia seguinte, quando procurariam ganhar novamente os mangues e vencer lentamente a distância que os separava de sua canoa, através da extremidade oriental da ilha. As coisas correriam daquela forma, segundo era de esperar. Então, tratariam de se fazerem ao mar na noite seguinte. Bond pensou em como haveria de abrir caminho por entre sólidos mangues, na distância de oito quilômetros. Que perspectiva! Continuou se arrastando para a frente, pensando nas “férias ao sol dos trópicos” de M. Muito gostaria que M tivesse que partilhar com ele aquelas “férias”.

O rio foi-se estreitando até que se reduziu a uma simples corrente entre as moitas de bambu. Depois se ampliava num estuário baixo e pantanoso, além do qual as cinco milhas quadradas de lago raso davam vazão para o outro lado da ilha, perdendo-se num agitado espelho líquido azul-cinza. Mais para além estava a brilhante pista aérea e o reflexo da luz solar sobre um único hangar. A jovem disse-lhe que se mantivesse na direção leste, e eles foram lentamente avançando, protegidos pela orla da mata.

Inesperadamente, Quarrel deteve-se, com o rosto esticado como o focinho de um cão para o terreno pantanoso à sua frente. Dois profundos sulcos tinham sido escavados na lama, com um sulco mais raso no centro. Eram a trilha de algo que tinha descido da colina e atravessado o pântano em direção ao lago.

A jovem disse com indiferença: — Por aqui já passou o dragão.

Quarrel arregalou os olhos para ela.

Bond caminhou lentamente pela trilha. As marcas exteriores eram bastante lisas, trazendo a marca de uma linha curva. Poderiam ter sido causadas por rodas, mas eram enormes, pelo menos com sessenta centímetros de largura. A trilha central tinha a mesma forma, mas com apenas três polegadas de largura, ou seja a largura de um pneumático de automóvel. As trilhas não apresentavam nenhum indício de pegadas e eram completamente frescas. Estendiam-se em linha reta, e os arbustos por elas atravessados tinham sido derrubados e esmagados no chão, como se um tanque de guerra tivesse passado por ali. Bond não podia imaginar que espécie de veículo seria aquele. A jovem tocou-o com o cotovelo e murmurou: — Eu lhe tinha dito. Ele apenas pôde responder pensativamente: — Bom, Honey, se não é o dragão, é algo que nunca vi antes.

Mais adiante, ela puxou-o ansiosamente pela manga. “Veja”, sussurrou, e apontou para a frente, indicando um grande cerrado de árvores, ao lado do qual passavam as trilhas. O cerrado estava sem folhas, enegrecido. Ao centro viam-se os restos dos ninhos de pássaros carbonizados. — Ele respirou sobre as árvores, — disse a garota nervosamente.

Bond aproximou-se das árvores e examinou-as. — Certamente que o fez — admitiu. Por que aquele cerrado, em especial, tinha sido queimado? Era muito estranho aquilo.

As trilhas desciam em direção ao lago e desapareciam na água. Bond teria gostado de segui-las, mas não poderia abandonar a cobertura das árvores. Assim, continuaram a marcha, cada um entregue aos próprios pensamentos.

Lentamente o dia começou a morrer, por trás da colina, e por fim a garota apontou para a frente, através dos arbustos; Bond pôde ver uma comprida restinga internando-se no lago. Estava coberta por densas moitas de arbustos e podiam-se ver, a cem metros da praia, os restos de uma cabana incendiada. Aquele parecia um lugar razoavelmente atraente para se passar a noite, e era bem protegido dos dois lados, pela água.

O vento tinha declinado e a água se apresentava suave e convidativa. Que prazer não seria tirarem as suas imundas camisas para um banho no lago e, depois de horas de patinhação através da lama e do lodo do pântano, poderem descansar naquela areia dura e seca!

O sol brilhou com reflexos amarelecidos e desapareceu por trás da montanha. Ainda era dia na extremidade oriental da ilha, mas a sombra negra do monte avançava vagarosamente sobre o lago e acabaria por expulsar completamente os últimos vestígios do sol. Os sapos começaram a coaxar mais barulhentamente que em Jamaica, até que a noite ficou cheia daquele áspero ruído. Do outro lado do lago um grande sapo macho começou a soar o seu tambor. Aquele estranho som era algo entre um tom-tom e um rosnado de macaco. Enviava mensagens que subitamente se interrompiam e logo silenciaram. Com certeza encontrara o que procurava.

Chegaram à garganta da restinga e seguiram por um estreito caminho, até a clareira que encerrava os escombros da cabana de sapé. As grandes e misteriosas trilhas saíam da água, de ambos os lados, atravessavam a clareira e os cerrados próximos. Muitos dos arbustos estavam queimados ou crestados. Podiam-se ver os restos de um fogão feito de pedaços de coral, e algumas panelas e latas vazias. Examinaram os destroços, e Quarrel desenterrou um par de latas intactas de costeletas de porco e ervilhas marca “Heinz”. A jovem encontrou ainda um saco de dormir muito amarrotado, enquanto Bond achou uma pequena bolsa de couro com cinco notas de um dólar, três libras de Jamaica e algumas moedas de prata. Os dois homens certamente tinham abandonado aquele lugar a toda pressa.

Prosseguiram mais para diante, até uma pequena clareira arenosa. Através dos arbustos podiam ver luzes cintilando sobre a água e provenientes da montanha, talvez a mais de três quilômetros de distância. A leste nada mais havia senão. os suaves reflexos escuros da água sob o céu sombrio.

Bond comentou: — Enquanto não acendermos nada, estaremos bem aqui. A primeira coisa a fazer é tomarmos um bom banho, Honey. Você pode ficar com o resto da restinga, que nós ficaremos com a sua garganta. Dentro de meia hora espero vê-la para o jantar.

A garota riu: — Você virá a rigor?

— Sem dúvida — respondeu Bond — e de calças.

Quarrel observou: — Capitão, enquanto ainda há um pouco de luz, vou abrir essas latas e preparar as coisas para a noite. — Remexeu dentro da mochila. — Aqui estão as suas calças e o seu revólver. O pão talvez não esteja muito bom, mas está apenas molhado. Pode-se comê-lo bem, e amanhã estará seco. O melhor talvez fosse comermos das latas esta noite, guardando o queijo e as costeletas. As latas são pesadas e amanhã teremos que andar muito.

Bond respondeu: — Muito bem, Quarrel. Deixarei o cardápio aos seus cuidados.

Em seguida, apanhou o revólver e as calças úmidas e desceu para a água rasa. A água estava acariciante, mas desagradavelmente quente. Bond escavou punhados de areia, com as mãos, e esfregou o corpo com ela, utilizando-a como sabonete. Depois deixou-se ficar gostosamente em meio àquele silêncio e àquela solidão.

As estrelas começaram a brilhar palidamente, as estrelas que os tinham trazido à ilha na noite passada; as estrelas que os tirariam dali no dia seguinte. Que viagem! Mas pelo menos já tinha dado os seus resultados. Agora tinha provas bastantes, e testemunhas, para ir ter com o governador e conseguir dele um inquérito completo acerca das atividades do Dr. No. Ninguém lança mão de metralhadoras contra pessoas, mesmo contra intrusos. E, da mesma forma, o que seria aquilo do Dr. No, que invadira a propriedade da Sociedade Audubon, aquilo que chegara a destruir essa propriedade e provavelmente matara um de seus empregados? Isto também teria que ser investigado. E o que haveria ele de encontrar quando voltasse pela porta da frente, talvez a bordo de um destróier, e com um destacamento de fuzileiros navais? Qual seria a resposta para o mistério do Dr. No? O que estaria ele escondendo? Por que aquele segredo era tão importante, que seria capaz de matar repetidas vezes, para preservá-lo? E quem era esse Dr. No?

Bond ouviu o barulho de alguém espojando-se na água. Pensou na garota. E quem, afinal, era Honeychile Ri-der? Aquilo pelo menos, pensou ele ao sair da água, era algo que deveria esclarecer antes do amanhecer.

Bond enfiou as suas pegajosas calças, sentou-se na areia e desmontou o revólver. Fê-lo pelo tato, utilizando-se de sua camisa para secar cada peça e cada cartucho. Depois, tornou a montar a arma e pressionou o gatilho, fazendo com que o tambor vazio desse uma volta completa. O som era satisfatório. Seriam precisos alguns dias para que o revólver começasse a enferrujar. Carregou-o e meteu-o no coldre, para dentro do cós da calça. Depois, levantou-se e voltou para a clareira.

A sombra de Honey chegou até ele, e a sua voz se fez ouvir: — Venha; estamos morrendo de fome. Apanhei uma das panelas, limpei-a e pusemos as ervilhas nela. Temos pão também. E eu não sinto escrúpulos de comer a sua ração, porque você me fez trabalhar muito mais do que se eu estivesse sozinha. Agora, estique a mão.

Bond achou graça no tom autoritário que havia em sua voz. Ele apenas podia perceber a sua silhueta, no escuro. Sua cabeça parecia mais aflada. Ele se perguntou como seriam os seus cabelos quando secos e penteados. Como seria ela quando estivesse vestindo roupas limpas naquele lindo corpo dourado? Podia vê-la entrando numa sala ou atravessando um vestíbulo em Beau Desert. Ela seria uma linda e encantadora Patinha Feia. Por que nunca procurara endireitar o nariz? Seria uma operação fácil. Depois disso, ela seria a jovem mais bela de Jamaica.

O seu ombro tocou nele. Bond esticou o braço e descansou a mão aberta no colo da jovem. Então Bond sentiu que ela estava enchendo a sua mão com ervilhas.

Subitamente, Bond aspirou o seu cheiro cálido de animal. Foi uma explosão sensual tão aguda que o seu corpo se uniu ao dela, e, por um momento, os seus olhos se fecharam.

Ela deixou escapar um riso curto, no qual havia timidez, satisfação e ternura. E disse, maternalmente: “Lá”, — e empurrou a mão de Bond.

 

CONTINUA

IX - POR UM TRIZ


Dez minutos mais tarde a baía estava vazia e imaculada. Pequenas ondas encrespavam-se preguiçosamente através do espelho das águas, no interior dos recifes e morriam exaustas na areia escura onde as conchas lilás brilhavam como unhas pintadas. O monte de conchas tinha desaparecido e não havia mais vestígios de pegadas. Quarrel cortara galhos de mangues e caminhava de costas procurando apagar as pegadas com aqueles galhos. Onde tinha varrido, a areia apresentava uma limpidez diferente mas não tão diferente a ponto de ser notada de fora do recife. A canoa da jovem tinha sido arrastada para dentro do mar, entre as rochas, e ali ficou coberta com algas e gravetos.

Quarrel tinha voltado ao promontório. Bond e a jovem estavam juntos, sob tufos de folhas, onde Bond dormira, e olhavam silenciosamente para o contorno do promontório, à volta do qual surgira a embarcação.

A lancha estava talvez a uns quinhentos metros de distância. A julgar pelo lento ritmo do motor, Bond concluiu que cada acidente da costa estava sendo cuidadosamente inspecionado para descobrir indícios da presença de estranhos. De qualquer forma, aquilo parecia uma possante embarcação. Talvez uma grande lancha de cabina. Que tripulação teria? Quem estaria no comando? O Dr. No? Improvável. Ele certamente não se daria àquele trabalho de polícia.

Do lado do ocidente apareceu um bando de corvos marinhos, voando baixo sobre o mar, além dos recifes. Bond observou-os. Eram o primeiro indício para ele encontrado daquela colônia de aves, na outra extremidade da ilha. Aquele bando, segundo Pleydell-Smith, seriam batedores à procura do brilho prateado das enchovas, próximas à superfície. Enquanto observava, as aves começaram a dar mergulhos rasos, ferindo o mar superficialmente e levantando respingos de água. Quase que de uma só vez, apareceu outra coluna de aves, vinda do ocidente, e logo outra, e mais outra, fundindo-se todas numa espessa e escura nuvem. Durante minutos, elas sombrearam o céu, e depois atiraram-se à água, cobrindo vários alqueires, piando e lutando, e mergulhando as cabeças no mar, fazendo uma rica colheita naquele sólido campo de anchovas, como piranhas que se banqueteassem num cavalo afogado.

Bond sentiu um suave toque da jovem, que fez um movimento com a cabeça, dizendo:

— As galinhas do chinês estão comendo milho.

Bond observou-lhe o rosto belo e feliz. Ela parecia bastante despreocupada com a chegada daqueles homens. Para ela aquilo era apenas o jogo de esconde-esconde que já tinha praticado antes.

A vibração metálica dos motores diesel estava-se tornando mais forte. A lancha deveria estar justamente por trás do promontório. Bond deu mais uma olhada à volta da tranqüila baía, e depois fixou os olhos através da folhagem e do mato, para os lados dos recifes.

A ponta de uma proa branca apareceu, seguida de uns dez metros de tombadilho, e logo o parabrisas de vidro, uma cabina baixa e uma antena de rádio, e o vulto de um homem à volta do leme. Finalmente, o comprido e achatado fosso da popa, e uma flâmula vermelha pendente, Seria uma lancha-torpedeira convertida, um excedente de guerra do governo britânico?

Os olhos de Bond fixaram-se nos dois homens que estavam em pé na popa. Eram negros de pele pálida, envergando roupas caqui de marinheiro, com largos cinturões e chapéus de palha com longas palas. Estavam um ao lado do outro, equilibrando-se sob a lenta elevação da massa líquida. Um deles segurava um alto-falante e o outro manejava uma metralhadora instalada num tripé. Bond teve a impressão de que era uma metralhadora “Spandau”.

O homem com o alto-falante deixou que este caísse, e ele ficou oscilando numa tira, que lhe dava volta ao pescoço. Apanhou um binóculo e começou a vasculhar metro a metro da praia. Indistintos comentários chegavam aos ouvidos de Bond, por entre o ruído dos motores.

Bond percebeu que os olhos do binóculo começavam pelo promontório e depois percorriam a areia. As lentes detiveram-se entre as rochas e continuaram o seu passeio. Depois, voltaram. O murmúrio do comentário elevou-se ganhando animação. O homem passou o binóculo para o metralhador, que observou rapidamente, devolvendo-o logo ao dono. O observador gritou alguma coisa para o timoneiro. A lancha começou a se aproximar da praia. Agora estavam justamente diante dos recifes, em frente a Bond e à jovem. O observador ergueu novamente o binóculo, apontando-o para as rochas onde se encontrava escondida a canoa da jovem. Novamente a fala excitada chegou aos ouvidos de Bond, por sobre as águas. Mais uma vez o binóculo foi passado ao metralhador, que levou algum tempo observando. Dessa vez, ele fez um sinal de assentimento com a cabeça.

Bond pensou: agora vamos ter coisa; esses homens conhecem o ofício. Em seguida, viu que o metralhador se ocupava em carregar a arma. O duplo estalido metálico chegou aos seus ouvidos, por entre o matraquear do motor.

O observador ergueu o alto-falante e ligou-o. O eco produzido pelo amplificador chegou até Bond, conduzido pela superfície da água. A voz do homem ribombou pela baía:

— Alô, pessoal! Saiam daí e não serão feridos. Era uma voz educada, com sotaque americano.

— Agora, pessoal — trovejou a voz — depressa! Nós vimos quando vocês desembarcaram. Já descobrimos o bote sob os paus. Não somos tolos e não estamos brincando. Saiam daí com os braços levantados e não lhes acontecerá nada!

Não se ouviu nenhuma resposta. Apenas as ondas quebravam docemente na praia. Bond podia ouvir a respiração da jovem. Os guinchos agudos dos corvos marinhos chegavam-lhes de uma milha de distância, sobre o mar. O cano de escapamento dos motores diesel produzia um ruído desigual e gorgulhante, quando o intumescimento do mar cobria o orifício de descarga.

Silenciosamente Bond tocou o braço da jovem e disse-lhe:

— Fique mais perto. Alvo menor.

Ele sentiu o calor da jovem mais próximo de seu corpo, e o rosto de Honey raspou pelo seu braço. Bond sussurrou:

— Enterre-se na areia. Encolha-se. Cada polegada a menos ajudará.

Ele começou a se encolher cuidadosamente na depressão que tinham escavado para se abrigarem, e sentiu que ela fazia o mesmo.

O homem estava erguendo o seu alto-falante. A voz ribombou novamente.

— Muito bem, pessoal! Vocês irão ver que isso aqui não é para brincadeira. — Depois, levantou o polegar. O metralhador experimentou a arma fazendo alguns disparos para a copa dos mangues situados por trás da praia. Bond ouviu o rápido matraquear, tão seu conhecido, e do qual se despedira pela última vez diante das linhas alemãs, nas Ardenas. As balas produziam o velho som de pombos assustados, assobiando sobre sua cabeça. Depois fez-se silêncio.

À distância, Bond via a nuvem negra de corvos marinhos elevar-se, começando a fazer os seus amplos círculos. Seus olhos voltaram para a embarcação. O metralhador estava apalpando o cano da metralhadora, para ver se já estava aquecido. Os dois homens trocaram algumas palavras. O observador apanhou novamente o porta-voz.

— Está bem, pessoal. Vocês foram avisados.

Bond viu o cano da “Spandau” levantar-se e abaixar-se. O homem estava querendo começar com a canoa, entre as rochas. Bond sussurrou para a jovem: — Muito bem, Honey. Agüente firme. Mantenha-se abaixada. Não vai durar muito.

Ele sentiu que a mão da jovem apertava o seu braço, e pensou: “Coitada; ela está metida nisso por minha causa.” Ele inclinou-se para a direita a fim de cobrir a cabeça de Honey e afundou o rosto na areia.

Dessa vez o matraquear foi terrível. Balas ricocheteavam no flanco do promontório. Fragmentos de pedra saltavam para todos os lados, sobre a praia. Outras balas ricocheteavam e iam perder-se dentro da mata. Simultaneamente com todo aquele barulho ouvia-se o martelar contínuo da metralhadora.

Houve uma pausa. Nova carga, pensou Bond. Agora será para nós. Pôde sentir a jovem agarrando-se a ele. Seu corpo tremia todo, encostado ao seu flanco. Bond apanhou uma arma e apertou-a de encontro ao corpo. O matraquear da metralhadora recomeçou. As balas vinham zunindo, da linha de maré, em direção a eles. Ouviu-se uma sucessão de rápidas batidas. O tufo, acima deles, estava sendo reduzido a pedaços. “Zuip Zuip Zuip”. Era como se um chicote de aço estivesse retalhando os arbustos. Pedaços de lenha caíam sobre eles, cobrindo-os lentamente. Bond respirou um ar mais fresco, o que significava que eles agora estavam ao ar-livre. Estariam eles escondidos pelas folhas o pelos destroços? As balas continuaram deslocando-se ao longo da linha da costa. Em menos de um minuto a metralhadora parou.

O silêncio tornou a reinar. A jovem lamuriou-se docemente. Bond fê-la calar-se e apertou-a mais forte.

O alto-falante apregoou:

— Está bem, pessoal. Se vocês ainda têm ouvidos, saibam que voltaremos logo para recolher-lhes os pedaços. Vamos trazer os cães. Até à vista, por enquanto.

O ritmo do motor se acelerou, e através das folhas Bond pôde ver a popa da lancha afundar-se mais na água, enquanto a embarcação rumava rapidamente para oeste. Dentro de minutos já não se ouvia mais nada.

Bond ergueu a cabeça cautelosamente. A baía estava serena, e tudo como antes, exceto o cheiro de cordite e as rochas quebradas.

Bond fez a jovem levantar-se. Havia marcas de lágrimas em seu rosto. Ela olhou-o aterrada, e disse:

— Isso foi terrível. Por que eles o fizeram? Podíamos ter sido mortos.

Bond pensou naquela jovem que sempre abrira caminho, na vida, por si mesma, mas apenas contra a natureza. Conhecia o mundo dos animais, dos insetos e dos peixes, e tirava todo o partido desse conhecimento. Mas aquele era um pequeno mundo, limitado pelo sol, pela lua e pelas estações. Ela não conhecia o grande mundo das salas cheias de fumo, dos corredores de negócios, dos corredores e antecâmaras governamentais, dos cautelosos encontros em bancos de praças — numa palavra: ela nada conhecia da luta pelo poder e pelo dinheiro, travada por homens poderosos.

Bond disse:

— É isso mesmo, Honey, eles não passam de uma quadrilha de bandidos assustados conosco. Podemos enfrentá-los.

Bond colocou o braço à volta de seus ombros e continuou:

— E você esteve maravilhosa, brava como ninguém. Agora, vamos ao encontro de Quarrel para traçar os nossos planos. De qualquer forma, já é tempo de comermos alguma coisa. O que é que você costuma comer nessas expedições?

Deram meia-volta e seguiram pela praia em direção ao promontório. Depois de um minuto, ela disse com voz bem controlada:

— Oh, há uma porção de coisas por aí que se podem comer. Ouriços do mar principalmente, mas também bananas silvestres e outras coisas. Eu como e durmo durante dois dias, antes de vir aqui. Não preciso de nada.

Bond apertou-a mais fortemente, mas deixou cair o braço, assim que Quarrel apareceu ao longe. Quarrel vinha saltando sobre as rochas, e, em determinado momento, parou, olhando para baixo. Bond e Honey se aproximaram dele. A canoa da jovem estava cortada ao meio pelas balas. Honey deixou escapar um grito, olhando desesperadamente para Bond:

— A minha canoa! Como poderei voltar?

— Não se preocupe, senhorita, — disse Quarrel, que sentia a perda de uma canoa mais do que Bond. Imaginou ainda que aquela embarcação representasse quase todo o capital da jovem. — O capitão lhe dará outra. E a senhorita voltará conosco. Temos um magnífico bote, entre os mangues, e ele não foi destruído. Já estive lá espiando.

Quarrel olhou para Bond. Agora, o seu rosto denotava preocupação.

— Mas, capitão, o senhor está vendo o que eu disse dessa gente. Eles são duros e não estão brincando. Esses cães que eles vão trazer são policiais — Pinschers, como eles os chamam. Bastardos. Meus amigos disseram-me que são uma matilha de vinte ou mais. É melhor resolvermos logo.

— Está bem, Quarrel. Mas antes de mais nada precisamos comer alguma coisa. — o diabo que me carregue se eu vou ser aterrorizado e expulso da ilha antes de dar uma olhada nisso. Levaremos Honey conosco. — E, voltando-se para a jovem:

— Está bem, Honey? Nada lhe acontecerá. Depois voltaremos juntos.

A jovem olhou-o em dúvida:

— Acho que não há alternativa. Quero dizer. Gostaria de ir com vocês, se não atrapalhasse. Francamente, não quero comer nada. Mas você me levará de volta, assim que puder? Não quero ver mais aquela gente. Durante quanto tempo vocês vão ficar olhando para essas aves?

Bond respondeu evasivamente:

— Pouco tempo. Eu terei apenas que ver o que lhes aconteceu e porquê. Depois, partiremos.

Olhou para o relógio e anunciou:

— Agora são doze horas. Você nos esperará aqui. Tome um banho ou faça o que quiser. Não ande por aí deixando pegadas. Vamos, Quarrel, é melhor escondermos aquele bote.

Só à uma hora eles estavam prontos. Bond e Quarrel encheram a canoa com pedras e areia, até que ela desapareceu sob a água, entre os mangues. Depois, apagaram as suas pegadas. As balas tinham deixado tantos gravetos na orla da praia, que eles podiam caminhar pisando em folhas e ramos quebrados. Comeram parte de suas rações — os homens com avidez, mas Honey com relutância — e depois, passando sobre as rochas, foram ter à lagoa, próxima da costa. Em seguida foram vadeando aquelas águas, em direção à foz do rio, trezentos metros praia abaixo.

Fazia muito calor. Um vento áspero e quente começou a soprar do nordeste. Quarrel informou que aquele vento soprava diariamente, durante todo o ano, e era vital para a guaneira, pois secava o guano. O revérbero do mar e das brilhantes folhas verdes dos mangues cegava-os. Bond deu-se por feliz, já que tivera o cuidado de acostumar sua pele ao sol.

Na foz do rio encontraram um banco de areia e um extenso pântano, profundo e de águas estagnadas. Os dois homens podiam molhar-se ou tirar as roupas. Bond disse à jovem:

— Honey, não podemos ter cerimônia, nesta situação. Vamos ficar apenas com as camisas por causa do sol. Fique apenas com o que for sensato e caminhe atrás de nós.

Sem esperar pela resposta da jovem, os dois homens tiraram as calças. Quarrel enrolou-as e guardou-as na sacola, juntamente com as provisões e o revólver de Bond. Depois começaram a vadear a lagoa, com Quarrel na frente, logo seguido de Bond, e, finalmente a jovem. A água chegou até a cintura de Bond. Um grande peixe prateado deu um salto perto deles e depois caiu ruidosamente na água. Viram-se pequeninas setas riscarem a superfície, quando peixes menores se afastaram precipitadamente.

A lagoa convergia para uma estreita garganta, por sobre a qual as copas dos mangues se tocavam. Durante algum tempo eles vadearam através de um túnel fresco, e depois o rio se alargou num canal profundo, de águas morosas, que serpeava para a frente, entre as gigantescas raízes de sustentação dos mangues. O fundo era lamacento, e a cada passo os pés se enterravam algumas polegadas no lodo. Pequenos peixes ou camarões se encolhiam ou fugiam de baixo de seus pés, e de quando em quando eles tinham que parar para se desembaraçar das sanguessugas, antes que elas se agarrassem firmemente. A não ser isso, aquela caminhada era fácil, sob o frescor das arvores, e, pelo menos para Bond, era uma bênção estar ao abrigo do sol.

Em breve, à medida que se iam afastando do mar, começaram a sentir um cheiro de ovo podre, o cheiro de hidrogênio sulfurado do gás dos pântanos. Os mosquitos começaram a assaltá-los e pareciam gostar do corpo de Bond. Quarrel disse-lhe que mergulhasse na água do rio, pois os mosquitos gostavam de carne salgada. Bond tirou a camisa e fez o que Quarrel lhe aconselhara. Depois disso sentiu-se melhor e o seu olfato chegou mesmo a se acostumar com aquele repugnante cheiro, a não ser quando os pés de Quarrel desfaziam algum bolsão de gás, no fundo da lama, e uma gigantesca bolha atravessava a água para arrebentar na superfície sob as suas narinas.

Os mangues começaram a se tornar mais escassos e mais esparsos, enquanto o rio se ia alargando aos poucos. Ao mesmo tempo, a água tornava-se mais rasa e o fundo mais firme. Logo chegaram a uma volta e saíram para céu aberto, Honey disse:

— É melhor tomarmos cuidado, agora. Eles poderão ver-nos com muita facilidade. Isso vai assim durante uma milha. Depois o rio torna a se estreitar até o lago. E depois se poderá ver a restinga onde os tratadores das aves viviam.

O grupo deteve-se à sombra do túnel de mangues e olhou para fora. O rio serpeava perigosamente, afastando-se deles, em direção ao centro da ilha. As suas barrancas, bordadas de bambus de pequeno porte e de vegetação rala, dar-lhes-íam cobertura reduzida. Partindo de sua margem ocidental, o terreno elevava-se aos poucos, e logo abruptamente até o monte, situado a três quilômetros de distância, que era a guaneira. Na base daquela montanha, viam-se várias cabanas esparsas. Um ziguezague prateado galgava o flanco da colina, até as tendas — trilhos “Decauville”, pensou Bond, destinados a levarem o guano para o moinho e separa-dor. O cume do monte era branco, como se estivesse coberto de neve. De sua parte mais elevada desprendia-se como que uma bandeira de dó de guano. Bond podia ver os pontos negros que eram os corvos marinhos, sobre o fundo branco. Aquelas aves estavam levantando vôo e pousando como abelhas numa colmeia.

Bond deixou-se ficar de pé e contemplou o brilho distante daquela montanha de excrementos de aves. Então aquilo era o reino do Dr. No! Bond pensou que jamais vira um cenário tão escondido e distante, em toda a sua vida.

Examinou o terreno entre o rio e a montanha. Parecia ser principalmente formado com aquela matéria cinzenta de corais mortos. Não havia dúvida de que uma estrada ou trilha corria da falda da montanha até ao lago central e aos pântanos. Bond notou ainda que toda a vegetação se curvava para oeste, e imaginou viver durante todo um ano com aquele vento escaldante castigando a ilha, sem falar do cheiro do guano e do gás dos pântanos. Nenhuma colônia penal poderia encontrar pior localização do que aquela.

Bond olhou para leste, onde os mangues, na área dos charcos, pareciam oferecer mais hospitalidade. Os três puseram-se a caminhar sobre um sólido tapete verde de vegetação. Sobre suas cabeças, aves revoluteavam agitadas, para depois se, acalmarem, e logo tornarem a agitar-se. Seus pios eram carregados pelo vento crestante.

A voz de Quarrel interrompeu os pensamentos de Bond:

— Eles vêm vindo, capitão!

Bond seguiu o olhar de Quarrel. Um grande caminhão descia celeremente das tendas, com uma nuvem de pó levantando-se das rodas. Bond acompanhou-o durante dez minutos, até que o veículo desapareceu entre os mangues, na margem do rio. Bond pôs-se a escutar e ouviu latidos de cães, que eram trazidos pelo vento.

Quarrel comentou:

— Eles vão descer pelo rio, capitão. Sabem que não nos podemos mover, a não ser rio acima, se não estivermos mortos. Certamente que descerão pelo rio, até a praia, e farão um reconhecimento dos destroços. Depois, com toda a certeza, a lancha virá com um pequeno bote e recolherá os homens e os cães. Pelo menos, isso é o que eu faria no lugar deles.

Honey disse: — Isso é, de fato, o que eles fazem quando me procuram. É isso mesmo. Basta que cortemos um pedaço de bambu, e, quando eles estiverem perto, mergulhemos na água, procurando respirar através do bambu, até que eles se afastem.

Bond sorriu para Quarrel, e disse: — Suponhamos que você corte os bambus, enquanto eu procuro um bom esconderijo entre os mangues.

Quarrel aquiesceu hesitante e começou a subir contra a corrente, em direção ao bambuzal, enquanto Bond se encaminhava para o túnel formado pelos mangues.

Bond evitara olhar para a jovem, mas esta disse-lhe com impaciência:

— Não precisa ter tanto cuidado em não olhar para mim. Não adianta se preocupar com tais coisas, numa hora dessas. Você mesmo o disse, ainda há pouco.

Bond virou-se e olhou para a jovem. Sua camisa esfrangalhada descia até a linha d’água. Podia-se ainda ter um vislumbre de pálidas coxas, serpeando sob a superfície. O lindo rosto sorriu para ele. No meio daqueles mangues, o seu nariz quebrado parecia harmonizar-se com o ambiente, pela sua animalidade.

Bond fitou-a descansadamente e ela compreendeu. Depois, ele deu-lhe as costas e desceu pela correnteza, seguido por ela. Logo encontrou o que procurava, isto é, uma fenda naquela parede formada pelas raízes dos mangues. Bond recomendou: — Não quebre nenhum galho. — Depois, baixou a cabeça e meteu-se por aquela brecha. O canal avançava numa distância de dez metros. A lama sob seus pés tornou-se mais mole e espessa. Chegou a uma sólida e intransponível parede de raízes. Aquela água escura fluía vagarosamente através de uma ampla e tranqüila lagoa. Bond deteve-se. A jovem se aproximou dele.

— Isto é mesmo uma brincadeira de esconde-esconde — disse ela, trêmula.

— É verdade — aquiesceu Bond distraidamente, enquanto pensava em seu revólver. Com efeito, ele preocupava-se em saber com que eficiência a arma operaria depois de um banho no rio — quantos cães e homens ele poderia eliminar, se fossem descobertos. Sentiu um estremecimento de inquietação. Tinha sido uma falta de sorte ter encontrado aquela jovem. Em combate, queira-se ou não, uma mulher representa sempre um coração a mais. O inimigo tem dois alvos enquanto apenas oferece um.

Bond lembrou-se de sua sede. Apanhou na concha da mão um pouco de água e bebeu-a. Aquela água era salobra e tinha gosto de terra. Mas servia. Bond bebeu um pouco mais. A jovem agitou a mão e deteve-o, dizendo:

— Não beba demais. Lave a boca e cuspa. Você pode apanhar febre.

Quarrel assobiou de algum ponto situado na corrente principal. Bond respondeu e foi em direção ao amigo. Depois, voltaram juntos, internando-se no canal. Quarrel borrifou as raízes de mangues com água, nos pontos em que os seus corpos talvez as tivessem raspado. “Para tirar o nosso cheiro”, explicou, laconicamente. Em seguida mostrou o seu feixe de bambus e começou a cortá-los e prepará-los. Enquanto isso, Bond se ocupava com seu revólver e a munição. Os três ficaram imóveis, no meio daquele pântano, de modo a não levantarem mais lama.

A luz do sol filtrava-se através do espesso teto de folhas, os camarões agitavam-se sob os pés daqueles três fugitivos. Gradativamente foi-se avolumando uma insuportável tensão, naquele silêncio escaldante e angustioso.

Foi quase um alívio ouvir-se o ladrar dos cães.


X - O RASTRO DO DRAGÃO


O grupo de investigação descia rapidamente pelo rio. Os dois homens, de calções de banho e altas botas impermeáveis, tinham que correr para acompanhar os cães.

Eram grandes negros chineses, que traziam coldres sustentados ao ombro por meio de talabartes cruzados diante dos peitos suados. De quando em quando trocavam gritos que em geral não passavam de imprecações. À frente deles a matilha de cães Dobermann nadava e debatia-se n’água, latindo excitadamente. Tinham farejado uma pista e procuravam segui-la nervosamente, com as orelhas eretas sobre as cabeças afladas.

— Talvez um maldito crocodilo, — gritou o chefe elevando a voz sobre a algazarra. Empunhava um chicote que de vez em quando fazia estalar no campo de caça.

Os outros homens se encaminhavam para ele. O chefe gritou excitadamente: “Aposto que é o gringo inglês! Tenho certeza de que ele está entre os mangues. Cuidado para que o gringo não nos faça cair numa emboscada.” O homem tirou o revólver do coldre e colocou-o sob o sovaco, sem tirar a mão da coronha.

O grupo agora estava deixando a parte do rio, sob céu aberto, e entrando no túnel formado pelos mangues. O primeiro homem tinha um apito, que se projetava de seu largo rosto como um toco de charuto. Fez soar um agudo silvo. Quando os cães avançaram, ele se deixou ficar com o seu chicote junto do chefe. Os animais continuavam farejando, lamuriando-se porque a corrente os obrigava a desobedecer às ordens recebidas. Os dois homens sacaram os revólveres e vadearam lentamente o rio, na mesma direção da corrente, por entre os caules tortuosos dos mangues.

O homem que ia na frente chegou ao estreito canal que Bond tinha encontrado, agarrou um dos cães pela co-leira e lançou-o ao canal. O animal resfolegou ansiosamente e debateu-se para a frente. Os olhos do homem percorreram as raízes dos mangues, de ambos os lados do canal, para ver se apresentavam algum arranhão.

O cão e o homem chegaram ao pequeno lago situado na extremidade do canal. O homem olhou à sua volta, com ar animado. Tornou a agarrar o cão pela coleira e puxou-o para trás. O animal relutava em abandonar o lugar. Então, o homem feriu a água com o chicote.

O segundo homem estivera esperando à entrada do canal. O primeiro saiu daquele pequeno remanso e sacudiu a cabeça, descendo a corrente, com os cães, que agora se mostravam menos excitados, nadando à frente.

Lentamente, a algazarra da perseguição foi diminuindo e desapareceu.

Por mais cinco minutos nada se mexeu na laguna dos mangues; depois, num dos cantos, entre as raízes, apareceu lentamente para fora d’água um fino periscópio de bambu. O rosto de Bond emergiu logo em seguida, com os cabelos molhados colados à testa, como a cara de um cadáver que boiasse. Em sua mão direita, sob a água, o revólver estava pronto. Bond procurou escutar cuidadosamente. O silêncio era completo, não havia o mínimo ruído. Ou haveria? O que seria aquele suave barulho, como se algo deslizasse entre a água, na corrente principal? Viria alguém, muito serenamente, seguindo na esteira daquela caçada? Bond procurou apalpar à sua volta e tocou delicadamente nos dois corpos que estavam cada um em um de seus flancos, entre as raízes, na orla da laguna. Quando os dois rostos aforaram à superfície, ele colocou o seu dedo indicador sobre os lábios, mas já era tarde. Quarrel tinha tossido e cuspido. Bond fez uma careta e fez um sinal na direção da principal corrente. Todos procuravam escutar. O ruído recomeçou. Alguém estava-se dirigindo para o canal lateral. Os tubos de bambu voltaram para as três bocas e as cabeças tornaram a submergir. Debaixo da água Bond descansou a cabeça na lama, apertou as narinas e os lábios à volta do tubo. Sabia que a laguna já fora examinada uma vez, pois sentira a agitação causada na água pelo cão, que passara nadando! Da primeira vez não tinham sido achados, mas conseguiriam escapar desta? Agora haveria menos possibilidades de que a lama revolta se escoasse para fora da laguna. Se esse batedor visse a mancha mais escura, na água, atiraria ou usaria um punhal? Que armas traria? Bond resolveu não correr riscos. Ao primeiro rumor de movimento, ao seu lado, ele se poria de pé e daria logo ao gatilho, esperando pelo melhor.

Assim ficou ele, submerso, com todos os sentidos atentos. Como era desagradável aquele respirar controlado e insuportáveis as ligeiras mordidelas dos camarões! Por sorte nenhum deles tinha qualquer ferida no corpo, pois do contrário os malditos animalzinhos ter-se-iam atirado contra elas. De qualquer forma, aquela fora uma brilhante idéia da jovem. Sem ela os cães já os teriam alcançado, onde quer que eles se tivessem escondido.

Inesperadamente, Bond encolheu-se. Uma bota de borracha tinha pisado em seu queixo e escorregado. O homem pensaria tratar-se de um galho de árvore? Bond não podia correr aquele risco. Com um só impulso pôs-se de pé, atirando para longe o pedaço de bambu.

Bond teve uma rápida impressão de um gigantesco corpo de pé, quase em cima de si, e duma coronha de rife, em rápido movimento. Levantou o braço esquerdo para proteger a cabeça e recebeu um violento golpe no braço. Ao mesmo tempo, o seu braço direito se esticou para a frente, e, quando o cano tocou no lado direito do peito, sob o mamilo, ele acionou o gatilho.

O coice da arma, quase encostada ao corpo do homem, por pouco não quebrou o pulso de Bond, mas o homem desabou para trás como uma árvore decepada que cai n’água. Antes que o corpo afundasse, Bond ainda pôde perceber-lhe uma grande fenda no flanco. A cabeça, uma cabeça negróide de chinês, veio à superfície, com os olhos revirados para cima e a água a sair de sua boca escancarada e silenciosa. Em seguida a cabeça submergiu novamente e nada mais se pôde ver senão uma lama espumosa e uma mancha vermelha que gradualmente se ia ampliando e lentamente era atraída pela corrente.

Bond se endireitou e voltou-se para o lado. Quarrel e a jovem estavam atrás, em pé, com a água a escorrer-lhes dos corpos. Quarrel tinha um sorriso que ia de orelha a orelha, mas a garota mordia as articulações dos dedos, enquanto seus olhos se escancaravam horrorizados diante da água avermelhada.

Bond disse laconicamente: “Desculpe-me, Honey. Tinha que ser feito. Ele estava bem sobre nós. Venha, vamos indo.” Agarrou-a de qualquer maneira, pelo braço, e arrastou-a para fora da principal corrente, apenas detendo-se quando chegaram a rio aberto, na boca do túnel de mangues.

O cenário estava novamente vazio. Bond olhou para o relógio, e verificou que parara às três horas. Olhou para o sol, já bastante deslocado para o ocidente e concluiu que deveriam ser quatro horas. Quanto ainda teriam que caminhar? Bond inesperadamente sentiu-se cansado. Agora teria de enfrentar a situação. Ainda que o disparo não tivesse sido ouvido — e certamente que ele fora abafado pelo próprio corpo da vítima e pelas árvores — a falta do homem seria sentida quando os outros se reunissem, — se a suposição de Quarrel fosse correta, na embocadura do rio, de onde seriam recolhidos pela lancha. Voltariam eles, subindo o rio, a fim de procurarem o desaparecido? Talvez não. Já estaria muito escuro quando eles tivessem a certeza de que o homem estava realmente desaparecido. O mais certo seria mandarem um grupo de homens pela manhã. Os cães facilmente dariam com o corpo. E o que aconteceria?

A garota puxou-o pela manga e disse com irritação: — Já é tempo de você me dizer o que significa tudo isto! Por que estão todos procurando se matar mutuamente? E quem é você? Não acredito em toda essa história de aves. Ninguém carrega revólveres contra aves.

Bond baixou o olhar, fitando aqueles olhos bem separados e irados. — Desculpe-me, Honey. Receio tê-la arrastado para uma boa encrenca. Eu lhe contarei tudo quando voltarmos à noite para o acampamento. Foi apenas má sorte que você se envolvesse comigo, desta maneira. Tenho uma guerrinha com essa gente. Eles parecem querer matar-me. Agora estou apenas interessado em que todos nós saiamos desta ilha sem que ninguém fique ferido. Já tenho muito do que queria, para da próxima vez voltar pela porta da frente.

— O que você quer dizer? Você é alguma espécie de policial? Está querendo meter esse chinês na cadeia?

— Mais ou menos, — disse Bond, rindo para ela. — Pelo menos você está do lado dos anjos. Agora, diga-me uma coisa. Quanto falta ainda para chegar ao acampamento dos guardas?

— Oh, cerca de uma hora.

— É um lugar bom para nele esconder-se? Eles poderiam achar-nos com facilidade?

— Eles teriam que atravessar o lago ou subir o rio. Tudo estará muito bem se eles não puserem o dragão em nosso encalço. Ele pode muito bem atravessar a água, pois já o vi fazê-lo.

— Bem — disse Bond diplomaticamente — esperemos que ele esteja com a cauda machucada, ou tenha outra coisa qualquer.

A jovem vociferou: — Muito bem, sr. Sabe-Tudo. — E acrescentou irritada: — Espere e verá.

Quarrel deixou o túnel de mangues, agitando ruidosamente a água, tendo na mão o rife do chinês abatido, e dizendo à guisa de quem pede desculpas:

— Não há mal em termos outra arma, chefe. Parece que vamos precisar dela.

Bond apanhou aquela arma. Era uma carabina “Remington”, do exército norte-americano, calibre 300. Não havia dúvida de que aquela gente contava com equipamento apropriado. Bond devolveu a arma a Quarrel, depois de examiná-la.

Quarrel como que fez eco aos seus pensamentos: — Isso é gente astuta, capitão. Aquele homem veio esquadrinhando suavemente, atrás dos outros, a fim de nos surpreender quando deixássemos o esconderijo, depois da passagem dos cães. Esse tal de doutor com certeza é um sujeito muito esperto.

Bond disse pensativamente: — É, ele deve ser um homem incomum. — Depois espantou os pensamentos: — Agora, vamos tocando para a frente. Honey diz que ainda precisamos de uma hora para chegarmos ao acampamento. É melhor irmos pela margem esquerda, de modo a ficarmos ao abrigo da colina. Pelo que já pudemos ver, eles têm lunetas assestadas sobre o rio.

Bond entregou a sua arma a Quarrel, que a guardou na mochila molhada. Puseram-se novamente em marcha, com Quarrel à frente, e Bond e a jovem andando juntos, atrás.

Aproveitavam algumas sombras das árvores e bambus da margem ocidental, mas deviam agora suportar toda a intensidade de um vento crestante. Borrifaram braços e corpos com água, a fim de refrescar as queimaduras. Os olhos de Bond estavam injetados por aquele insuportável revérbero e o seu braço doía intoleràvelmente no ponto em que fora atingido pela coronha. E ele não teria à sua espera o seu jantar de pão embebido, queijo e fiambre. Quanto tempo poderiam dormir? Não dormira muito na véspera, e parece que não iria ter melhor ração de sono. E a garota? Ela nada dormira. Ele e Quarrel teriam que se revezar, em quartos de vigilância. E logo chegaria o dia seguinte, quando procurariam ganhar novamente os mangues e vencer lentamente a distância que os separava de sua canoa, através da extremidade oriental da ilha. As coisas correriam daquela forma, segundo era de esperar. Então, tratariam de se fazerem ao mar na noite seguinte. Bond pensou em como haveria de abrir caminho por entre sólidos mangues, na distância de oito quilômetros. Que perspectiva! Continuou se arrastando para a frente, pensando nas “férias ao sol dos trópicos” de M. Muito gostaria que M tivesse que partilhar com ele aquelas “férias”.

O rio foi-se estreitando até que se reduziu a uma simples corrente entre as moitas de bambu. Depois se ampliava num estuário baixo e pantanoso, além do qual as cinco milhas quadradas de lago raso davam vazão para o outro lado da ilha, perdendo-se num agitado espelho líquido azul-cinza. Mais para além estava a brilhante pista aérea e o reflexo da luz solar sobre um único hangar. A jovem disse-lhe que se mantivesse na direção leste, e eles foram lentamente avançando, protegidos pela orla da mata.

Inesperadamente, Quarrel deteve-se, com o rosto esticado como o focinho de um cão para o terreno pantanoso à sua frente. Dois profundos sulcos tinham sido escavados na lama, com um sulco mais raso no centro. Eram a trilha de algo que tinha descido da colina e atravessado o pântano em direção ao lago.

A jovem disse com indiferença: — Por aqui já passou o dragão.

Quarrel arregalou os olhos para ela.

Bond caminhou lentamente pela trilha. As marcas exteriores eram bastante lisas, trazendo a marca de uma linha curva. Poderiam ter sido causadas por rodas, mas eram enormes, pelo menos com sessenta centímetros de largura. A trilha central tinha a mesma forma, mas com apenas três polegadas de largura, ou seja a largura de um pneumático de automóvel. As trilhas não apresentavam nenhum indício de pegadas e eram completamente frescas. Estendiam-se em linha reta, e os arbustos por elas atravessados tinham sido derrubados e esmagados no chão, como se um tanque de guerra tivesse passado por ali. Bond não podia imaginar que espécie de veículo seria aquele. A jovem tocou-o com o cotovelo e murmurou: — Eu lhe tinha dito. Ele apenas pôde responder pensativamente: — Bom, Honey, se não é o dragão, é algo que nunca vi antes.

Mais adiante, ela puxou-o ansiosamente pela manga. “Veja”, sussurrou, e apontou para a frente, indicando um grande cerrado de árvores, ao lado do qual passavam as trilhas. O cerrado estava sem folhas, enegrecido. Ao centro viam-se os restos dos ninhos de pássaros carbonizados. — Ele respirou sobre as árvores, — disse a garota nervosamente.

Bond aproximou-se das árvores e examinou-as. — Certamente que o fez — admitiu. Por que aquele cerrado, em especial, tinha sido queimado? Era muito estranho aquilo.

As trilhas desciam em direção ao lago e desapareciam na água. Bond teria gostado de segui-las, mas não poderia abandonar a cobertura das árvores. Assim, continuaram a marcha, cada um entregue aos próprios pensamentos.

Lentamente o dia começou a morrer, por trás da colina, e por fim a garota apontou para a frente, através dos arbustos; Bond pôde ver uma comprida restinga internando-se no lago. Estava coberta por densas moitas de arbustos e podiam-se ver, a cem metros da praia, os restos de uma cabana incendiada. Aquele parecia um lugar razoavelmente atraente para se passar a noite, e era bem protegido dos dois lados, pela água.

O vento tinha declinado e a água se apresentava suave e convidativa. Que prazer não seria tirarem as suas imundas camisas para um banho no lago e, depois de horas de patinhação através da lama e do lodo do pântano, poderem descansar naquela areia dura e seca!

O sol brilhou com reflexos amarelecidos e desapareceu por trás da montanha. Ainda era dia na extremidade oriental da ilha, mas a sombra negra do monte avançava vagarosamente sobre o lago e acabaria por expulsar completamente os últimos vestígios do sol. Os sapos começaram a coaxar mais barulhentamente que em Jamaica, até que a noite ficou cheia daquele áspero ruído. Do outro lado do lago um grande sapo macho começou a soar o seu tambor. Aquele estranho som era algo entre um tom-tom e um rosnado de macaco. Enviava mensagens que subitamente se interrompiam e logo silenciaram. Com certeza encontrara o que procurava.

Chegaram à garganta da restinga e seguiram por um estreito caminho, até a clareira que encerrava os escombros da cabana de sapé. As grandes e misteriosas trilhas saíam da água, de ambos os lados, atravessavam a clareira e os cerrados próximos. Muitos dos arbustos estavam queimados ou crestados. Podiam-se ver os restos de um fogão feito de pedaços de coral, e algumas panelas e latas vazias. Examinaram os destroços, e Quarrel desenterrou um par de latas intactas de costeletas de porco e ervilhas marca “Heinz”. A jovem encontrou ainda um saco de dormir muito amarrotado, enquanto Bond achou uma pequena bolsa de couro com cinco notas de um dólar, três libras de Jamaica e algumas moedas de prata. Os dois homens certamente tinham abandonado aquele lugar a toda pressa.

Prosseguiram mais para diante, até uma pequena clareira arenosa. Através dos arbustos podiam ver luzes cintilando sobre a água e provenientes da montanha, talvez a mais de três quilômetros de distância. A leste nada mais havia senão. os suaves reflexos escuros da água sob o céu sombrio.

Bond comentou: — Enquanto não acendermos nada, estaremos bem aqui. A primeira coisa a fazer é tomarmos um bom banho, Honey. Você pode ficar com o resto da restinga, que nós ficaremos com a sua garganta. Dentro de meia hora espero vê-la para o jantar.

A garota riu: — Você virá a rigor?

— Sem dúvida — respondeu Bond — e de calças.

Quarrel observou: — Capitão, enquanto ainda há um pouco de luz, vou abrir essas latas e preparar as coisas para a noite. — Remexeu dentro da mochila. — Aqui estão as suas calças e o seu revólver. O pão talvez não esteja muito bom, mas está apenas molhado. Pode-se comê-lo bem, e amanhã estará seco. O melhor talvez fosse comermos das latas esta noite, guardando o queijo e as costeletas. As latas são pesadas e amanhã teremos que andar muito.

Bond respondeu: — Muito bem, Quarrel. Deixarei o cardápio aos seus cuidados.

Em seguida, apanhou o revólver e as calças úmidas e desceu para a água rasa. A água estava acariciante, mas desagradavelmente quente. Bond escavou punhados de areia, com as mãos, e esfregou o corpo com ela, utilizando-a como sabonete. Depois deixou-se ficar gostosamente em meio àquele silêncio e àquela solidão.

As estrelas começaram a brilhar palidamente, as estrelas que os tinham trazido à ilha na noite passada; as estrelas que os tirariam dali no dia seguinte. Que viagem! Mas pelo menos já tinha dado os seus resultados. Agora tinha provas bastantes, e testemunhas, para ir ter com o governador e conseguir dele um inquérito completo acerca das atividades do Dr. No. Ninguém lança mão de metralhadoras contra pessoas, mesmo contra intrusos. E, da mesma forma, o que seria aquilo do Dr. No, que invadira a propriedade da Sociedade Audubon, aquilo que chegara a destruir essa propriedade e provavelmente matara um de seus empregados? Isto também teria que ser investigado. E o que haveria ele de encontrar quando voltasse pela porta da frente, talvez a bordo de um destróier, e com um destacamento de fuzileiros navais? Qual seria a resposta para o mistério do Dr. No? O que estaria ele escondendo? Por que aquele segredo era tão importante, que seria capaz de matar repetidas vezes, para preservá-lo? E quem era esse Dr. No?

Bond ouviu o barulho de alguém espojando-se na água. Pensou na garota. E quem, afinal, era Honeychile Ri-der? Aquilo pelo menos, pensou ele ao sair da água, era algo que deveria esclarecer antes do amanhecer.

Bond enfiou as suas pegajosas calças, sentou-se na areia e desmontou o revólver. Fê-lo pelo tato, utilizando-se de sua camisa para secar cada peça e cada cartucho. Depois, tornou a montar a arma e pressionou o gatilho, fazendo com que o tambor vazio desse uma volta completa. O som era satisfatório. Seriam precisos alguns dias para que o revólver começasse a enferrujar. Carregou-o e meteu-o no coldre, para dentro do cós da calça. Depois, levantou-se e voltou para a clareira.

A sombra de Honey chegou até ele, e a sua voz se fez ouvir: — Venha; estamos morrendo de fome. Apanhei uma das panelas, limpei-a e pusemos as ervilhas nela. Temos pão também. E eu não sinto escrúpulos de comer a sua ração, porque você me fez trabalhar muito mais do que se eu estivesse sozinha. Agora, estique a mão.

Bond achou graça no tom autoritário que havia em sua voz. Ele apenas podia perceber a sua silhueta, no escuro. Sua cabeça parecia mais aflada. Ele se perguntou como seriam os seus cabelos quando secos e penteados. Como seria ela quando estivesse vestindo roupas limpas naquele lindo corpo dourado? Podia vê-la entrando numa sala ou atravessando um vestíbulo em Beau Desert. Ela seria uma linda e encantadora Patinha Feia. Por que nunca procurara endireitar o nariz? Seria uma operação fácil. Depois disso, ela seria a jovem mais bela de Jamaica.

O seu ombro tocou nele. Bond esticou o braço e descansou a mão aberta no colo da jovem. Então Bond sentiu que ela estava enchendo a sua mão com ervilhas.

Subitamente, Bond aspirou o seu cheiro cálido de animal. Foi uma explosão sensual tão aguda que o seu corpo se uniu ao dela, e, por um momento, os seus olhos se fecharam.

Ela deixou escapar um riso curto, no qual havia timidez, satisfação e ternura. E disse, maternalmente: “Lá”, — e empurrou a mão de Bond.

 

CONTINUA

IX - POR UM TRIZ


Dez minutos mais tarde a baía estava vazia e imaculada. Pequenas ondas encrespavam-se preguiçosamente através do espelho das águas, no interior dos recifes e morriam exaustas na areia escura onde as conchas lilás brilhavam como unhas pintadas. O monte de conchas tinha desaparecido e não havia mais vestígios de pegadas. Quarrel cortara galhos de mangues e caminhava de costas procurando apagar as pegadas com aqueles galhos. Onde tinha varrido, a areia apresentava uma limpidez diferente mas não tão diferente a ponto de ser notada de fora do recife. A canoa da jovem tinha sido arrastada para dentro do mar, entre as rochas, e ali ficou coberta com algas e gravetos.

Quarrel tinha voltado ao promontório. Bond e a jovem estavam juntos, sob tufos de folhas, onde Bond dormira, e olhavam silenciosamente para o contorno do promontório, à volta do qual surgira a embarcação.

A lancha estava talvez a uns quinhentos metros de distância. A julgar pelo lento ritmo do motor, Bond concluiu que cada acidente da costa estava sendo cuidadosamente inspecionado para descobrir indícios da presença de estranhos. De qualquer forma, aquilo parecia uma possante embarcação. Talvez uma grande lancha de cabina. Que tripulação teria? Quem estaria no comando? O Dr. No? Improvável. Ele certamente não se daria àquele trabalho de polícia.

Do lado do ocidente apareceu um bando de corvos marinhos, voando baixo sobre o mar, além dos recifes. Bond observou-os. Eram o primeiro indício para ele encontrado daquela colônia de aves, na outra extremidade da ilha. Aquele bando, segundo Pleydell-Smith, seriam batedores à procura do brilho prateado das enchovas, próximas à superfície. Enquanto observava, as aves começaram a dar mergulhos rasos, ferindo o mar superficialmente e levantando respingos de água. Quase que de uma só vez, apareceu outra coluna de aves, vinda do ocidente, e logo outra, e mais outra, fundindo-se todas numa espessa e escura nuvem. Durante minutos, elas sombrearam o céu, e depois atiraram-se à água, cobrindo vários alqueires, piando e lutando, e mergulhando as cabeças no mar, fazendo uma rica colheita naquele sólido campo de anchovas, como piranhas que se banqueteassem num cavalo afogado.

Bond sentiu um suave toque da jovem, que fez um movimento com a cabeça, dizendo:

— As galinhas do chinês estão comendo milho.

Bond observou-lhe o rosto belo e feliz. Ela parecia bastante despreocupada com a chegada daqueles homens. Para ela aquilo era apenas o jogo de esconde-esconde que já tinha praticado antes.

A vibração metálica dos motores diesel estava-se tornando mais forte. A lancha deveria estar justamente por trás do promontório. Bond deu mais uma olhada à volta da tranqüila baía, e depois fixou os olhos através da folhagem e do mato, para os lados dos recifes.

A ponta de uma proa branca apareceu, seguida de uns dez metros de tombadilho, e logo o parabrisas de vidro, uma cabina baixa e uma antena de rádio, e o vulto de um homem à volta do leme. Finalmente, o comprido e achatado fosso da popa, e uma flâmula vermelha pendente, Seria uma lancha-torpedeira convertida, um excedente de guerra do governo britânico?

Os olhos de Bond fixaram-se nos dois homens que estavam em pé na popa. Eram negros de pele pálida, envergando roupas caqui de marinheiro, com largos cinturões e chapéus de palha com longas palas. Estavam um ao lado do outro, equilibrando-se sob a lenta elevação da massa líquida. Um deles segurava um alto-falante e o outro manejava uma metralhadora instalada num tripé. Bond teve a impressão de que era uma metralhadora “Spandau”.

O homem com o alto-falante deixou que este caísse, e ele ficou oscilando numa tira, que lhe dava volta ao pescoço. Apanhou um binóculo e começou a vasculhar metro a metro da praia. Indistintos comentários chegavam aos ouvidos de Bond, por entre o ruído dos motores.

Bond percebeu que os olhos do binóculo começavam pelo promontório e depois percorriam a areia. As lentes detiveram-se entre as rochas e continuaram o seu passeio. Depois, voltaram. O murmúrio do comentário elevou-se ganhando animação. O homem passou o binóculo para o metralhador, que observou rapidamente, devolvendo-o logo ao dono. O observador gritou alguma coisa para o timoneiro. A lancha começou a se aproximar da praia. Agora estavam justamente diante dos recifes, em frente a Bond e à jovem. O observador ergueu novamente o binóculo, apontando-o para as rochas onde se encontrava escondida a canoa da jovem. Novamente a fala excitada chegou aos ouvidos de Bond, por sobre as águas. Mais uma vez o binóculo foi passado ao metralhador, que levou algum tempo observando. Dessa vez, ele fez um sinal de assentimento com a cabeça.

Bond pensou: agora vamos ter coisa; esses homens conhecem o ofício. Em seguida, viu que o metralhador se ocupava em carregar a arma. O duplo estalido metálico chegou aos seus ouvidos, por entre o matraquear do motor.

O observador ergueu o alto-falante e ligou-o. O eco produzido pelo amplificador chegou até Bond, conduzido pela superfície da água. A voz do homem ribombou pela baía:

— Alô, pessoal! Saiam daí e não serão feridos. Era uma voz educada, com sotaque americano.

— Agora, pessoal — trovejou a voz — depressa! Nós vimos quando vocês desembarcaram. Já descobrimos o bote sob os paus. Não somos tolos e não estamos brincando. Saiam daí com os braços levantados e não lhes acontecerá nada!

Não se ouviu nenhuma resposta. Apenas as ondas quebravam docemente na praia. Bond podia ouvir a respiração da jovem. Os guinchos agudos dos corvos marinhos chegavam-lhes de uma milha de distância, sobre o mar. O cano de escapamento dos motores diesel produzia um ruído desigual e gorgulhante, quando o intumescimento do mar cobria o orifício de descarga.

Silenciosamente Bond tocou o braço da jovem e disse-lhe:

— Fique mais perto. Alvo menor.

Ele sentiu o calor da jovem mais próximo de seu corpo, e o rosto de Honey raspou pelo seu braço. Bond sussurrou:

— Enterre-se na areia. Encolha-se. Cada polegada a menos ajudará.

Ele começou a se encolher cuidadosamente na depressão que tinham escavado para se abrigarem, e sentiu que ela fazia o mesmo.

O homem estava erguendo o seu alto-falante. A voz ribombou novamente.

— Muito bem, pessoal! Vocês irão ver que isso aqui não é para brincadeira. — Depois, levantou o polegar. O metralhador experimentou a arma fazendo alguns disparos para a copa dos mangues situados por trás da praia. Bond ouviu o rápido matraquear, tão seu conhecido, e do qual se despedira pela última vez diante das linhas alemãs, nas Ardenas. As balas produziam o velho som de pombos assustados, assobiando sobre sua cabeça. Depois fez-se silêncio.

À distância, Bond via a nuvem negra de corvos marinhos elevar-se, começando a fazer os seus amplos círculos. Seus olhos voltaram para a embarcação. O metralhador estava apalpando o cano da metralhadora, para ver se já estava aquecido. Os dois homens trocaram algumas palavras. O observador apanhou novamente o porta-voz.

— Está bem, pessoal. Vocês foram avisados.

Bond viu o cano da “Spandau” levantar-se e abaixar-se. O homem estava querendo começar com a canoa, entre as rochas. Bond sussurrou para a jovem: — Muito bem, Honey. Agüente firme. Mantenha-se abaixada. Não vai durar muito.

Ele sentiu que a mão da jovem apertava o seu braço, e pensou: “Coitada; ela está metida nisso por minha causa.” Ele inclinou-se para a direita a fim de cobrir a cabeça de Honey e afundou o rosto na areia.

Dessa vez o matraquear foi terrível. Balas ricocheteavam no flanco do promontório. Fragmentos de pedra saltavam para todos os lados, sobre a praia. Outras balas ricocheteavam e iam perder-se dentro da mata. Simultaneamente com todo aquele barulho ouvia-se o martelar contínuo da metralhadora.

Houve uma pausa. Nova carga, pensou Bond. Agora será para nós. Pôde sentir a jovem agarrando-se a ele. Seu corpo tremia todo, encostado ao seu flanco. Bond apanhou uma arma e apertou-a de encontro ao corpo. O matraquear da metralhadora recomeçou. As balas vinham zunindo, da linha de maré, em direção a eles. Ouviu-se uma sucessão de rápidas batidas. O tufo, acima deles, estava sendo reduzido a pedaços. “Zuip Zuip Zuip”. Era como se um chicote de aço estivesse retalhando os arbustos. Pedaços de lenha caíam sobre eles, cobrindo-os lentamente. Bond respirou um ar mais fresco, o que significava que eles agora estavam ao ar-livre. Estariam eles escondidos pelas folhas o pelos destroços? As balas continuaram deslocando-se ao longo da linha da costa. Em menos de um minuto a metralhadora parou.

O silêncio tornou a reinar. A jovem lamuriou-se docemente. Bond fê-la calar-se e apertou-a mais forte.

O alto-falante apregoou:

— Está bem, pessoal. Se vocês ainda têm ouvidos, saibam que voltaremos logo para recolher-lhes os pedaços. Vamos trazer os cães. Até à vista, por enquanto.

O ritmo do motor se acelerou, e através das folhas Bond pôde ver a popa da lancha afundar-se mais na água, enquanto a embarcação rumava rapidamente para oeste. Dentro de minutos já não se ouvia mais nada.

Bond ergueu a cabeça cautelosamente. A baía estava serena, e tudo como antes, exceto o cheiro de cordite e as rochas quebradas.

Bond fez a jovem levantar-se. Havia marcas de lágrimas em seu rosto. Ela olhou-o aterrada, e disse:

— Isso foi terrível. Por que eles o fizeram? Podíamos ter sido mortos.

Bond pensou naquela jovem que sempre abrira caminho, na vida, por si mesma, mas apenas contra a natureza. Conhecia o mundo dos animais, dos insetos e dos peixes, e tirava todo o partido desse conhecimento. Mas aquele era um pequeno mundo, limitado pelo sol, pela lua e pelas estações. Ela não conhecia o grande mundo das salas cheias de fumo, dos corredores de negócios, dos corredores e antecâmaras governamentais, dos cautelosos encontros em bancos de praças — numa palavra: ela nada conhecia da luta pelo poder e pelo dinheiro, travada por homens poderosos.

Bond disse:

— É isso mesmo, Honey, eles não passam de uma quadrilha de bandidos assustados conosco. Podemos enfrentá-los.

Bond colocou o braço à volta de seus ombros e continuou:

— E você esteve maravilhosa, brava como ninguém. Agora, vamos ao encontro de Quarrel para traçar os nossos planos. De qualquer forma, já é tempo de comermos alguma coisa. O que é que você costuma comer nessas expedições?

Deram meia-volta e seguiram pela praia em direção ao promontório. Depois de um minuto, ela disse com voz bem controlada:

— Oh, há uma porção de coisas por aí que se podem comer. Ouriços do mar principalmente, mas também bananas silvestres e outras coisas. Eu como e durmo durante dois dias, antes de vir aqui. Não preciso de nada.

Bond apertou-a mais fortemente, mas deixou cair o braço, assim que Quarrel apareceu ao longe. Quarrel vinha saltando sobre as rochas, e, em determinado momento, parou, olhando para baixo. Bond e Honey se aproximaram dele. A canoa da jovem estava cortada ao meio pelas balas. Honey deixou escapar um grito, olhando desesperadamente para Bond:

— A minha canoa! Como poderei voltar?

— Não se preocupe, senhorita, — disse Quarrel, que sentia a perda de uma canoa mais do que Bond. Imaginou ainda que aquela embarcação representasse quase todo o capital da jovem. — O capitão lhe dará outra. E a senhorita voltará conosco. Temos um magnífico bote, entre os mangues, e ele não foi destruído. Já estive lá espiando.

Quarrel olhou para Bond. Agora, o seu rosto denotava preocupação.

— Mas, capitão, o senhor está vendo o que eu disse dessa gente. Eles são duros e não estão brincando. Esses cães que eles vão trazer são policiais — Pinschers, como eles os chamam. Bastardos. Meus amigos disseram-me que são uma matilha de vinte ou mais. É melhor resolvermos logo.

— Está bem, Quarrel. Mas antes de mais nada precisamos comer alguma coisa. — o diabo que me carregue se eu vou ser aterrorizado e expulso da ilha antes de dar uma olhada nisso. Levaremos Honey conosco. — E, voltando-se para a jovem:

— Está bem, Honey? Nada lhe acontecerá. Depois voltaremos juntos.

A jovem olhou-o em dúvida:

— Acho que não há alternativa. Quero dizer. Gostaria de ir com vocês, se não atrapalhasse. Francamente, não quero comer nada. Mas você me levará de volta, assim que puder? Não quero ver mais aquela gente. Durante quanto tempo vocês vão ficar olhando para essas aves?

Bond respondeu evasivamente:

— Pouco tempo. Eu terei apenas que ver o que lhes aconteceu e porquê. Depois, partiremos.

Olhou para o relógio e anunciou:

— Agora são doze horas. Você nos esperará aqui. Tome um banho ou faça o que quiser. Não ande por aí deixando pegadas. Vamos, Quarrel, é melhor escondermos aquele bote.

Só à uma hora eles estavam prontos. Bond e Quarrel encheram a canoa com pedras e areia, até que ela desapareceu sob a água, entre os mangues. Depois, apagaram as suas pegadas. As balas tinham deixado tantos gravetos na orla da praia, que eles podiam caminhar pisando em folhas e ramos quebrados. Comeram parte de suas rações — os homens com avidez, mas Honey com relutância — e depois, passando sobre as rochas, foram ter à lagoa, próxima da costa. Em seguida foram vadeando aquelas águas, em direção à foz do rio, trezentos metros praia abaixo.

Fazia muito calor. Um vento áspero e quente começou a soprar do nordeste. Quarrel informou que aquele vento soprava diariamente, durante todo o ano, e era vital para a guaneira, pois secava o guano. O revérbero do mar e das brilhantes folhas verdes dos mangues cegava-os. Bond deu-se por feliz, já que tivera o cuidado de acostumar sua pele ao sol.

Na foz do rio encontraram um banco de areia e um extenso pântano, profundo e de águas estagnadas. Os dois homens podiam molhar-se ou tirar as roupas. Bond disse à jovem:

— Honey, não podemos ter cerimônia, nesta situação. Vamos ficar apenas com as camisas por causa do sol. Fique apenas com o que for sensato e caminhe atrás de nós.

Sem esperar pela resposta da jovem, os dois homens tiraram as calças. Quarrel enrolou-as e guardou-as na sacola, juntamente com as provisões e o revólver de Bond. Depois começaram a vadear a lagoa, com Quarrel na frente, logo seguido de Bond, e, finalmente a jovem. A água chegou até a cintura de Bond. Um grande peixe prateado deu um salto perto deles e depois caiu ruidosamente na água. Viram-se pequeninas setas riscarem a superfície, quando peixes menores se afastaram precipitadamente.

A lagoa convergia para uma estreita garganta, por sobre a qual as copas dos mangues se tocavam. Durante algum tempo eles vadearam através de um túnel fresco, e depois o rio se alargou num canal profundo, de águas morosas, que serpeava para a frente, entre as gigantescas raízes de sustentação dos mangues. O fundo era lamacento, e a cada passo os pés se enterravam algumas polegadas no lodo. Pequenos peixes ou camarões se encolhiam ou fugiam de baixo de seus pés, e de quando em quando eles tinham que parar para se desembaraçar das sanguessugas, antes que elas se agarrassem firmemente. A não ser isso, aquela caminhada era fácil, sob o frescor das arvores, e, pelo menos para Bond, era uma bênção estar ao abrigo do sol.

Em breve, à medida que se iam afastando do mar, começaram a sentir um cheiro de ovo podre, o cheiro de hidrogênio sulfurado do gás dos pântanos. Os mosquitos começaram a assaltá-los e pareciam gostar do corpo de Bond. Quarrel disse-lhe que mergulhasse na água do rio, pois os mosquitos gostavam de carne salgada. Bond tirou a camisa e fez o que Quarrel lhe aconselhara. Depois disso sentiu-se melhor e o seu olfato chegou mesmo a se acostumar com aquele repugnante cheiro, a não ser quando os pés de Quarrel desfaziam algum bolsão de gás, no fundo da lama, e uma gigantesca bolha atravessava a água para arrebentar na superfície sob as suas narinas.

Os mangues começaram a se tornar mais escassos e mais esparsos, enquanto o rio se ia alargando aos poucos. Ao mesmo tempo, a água tornava-se mais rasa e o fundo mais firme. Logo chegaram a uma volta e saíram para céu aberto, Honey disse:

— É melhor tomarmos cuidado, agora. Eles poderão ver-nos com muita facilidade. Isso vai assim durante uma milha. Depois o rio torna a se estreitar até o lago. E depois se poderá ver a restinga onde os tratadores das aves viviam.

O grupo deteve-se à sombra do túnel de mangues e olhou para fora. O rio serpeava perigosamente, afastando-se deles, em direção ao centro da ilha. As suas barrancas, bordadas de bambus de pequeno porte e de vegetação rala, dar-lhes-íam cobertura reduzida. Partindo de sua margem ocidental, o terreno elevava-se aos poucos, e logo abruptamente até o monte, situado a três quilômetros de distância, que era a guaneira. Na base daquela montanha, viam-se várias cabanas esparsas. Um ziguezague prateado galgava o flanco da colina, até as tendas — trilhos “Decauville”, pensou Bond, destinados a levarem o guano para o moinho e separa-dor. O cume do monte era branco, como se estivesse coberto de neve. De sua parte mais elevada desprendia-se como que uma bandeira de dó de guano. Bond podia ver os pontos negros que eram os corvos marinhos, sobre o fundo branco. Aquelas aves estavam levantando vôo e pousando como abelhas numa colmeia.

Bond deixou-se ficar de pé e contemplou o brilho distante daquela montanha de excrementos de aves. Então aquilo era o reino do Dr. No! Bond pensou que jamais vira um cenário tão escondido e distante, em toda a sua vida.

Examinou o terreno entre o rio e a montanha. Parecia ser principalmente formado com aquela matéria cinzenta de corais mortos. Não havia dúvida de que uma estrada ou trilha corria da falda da montanha até ao lago central e aos pântanos. Bond notou ainda que toda a vegetação se curvava para oeste, e imaginou viver durante todo um ano com aquele vento escaldante castigando a ilha, sem falar do cheiro do guano e do gás dos pântanos. Nenhuma colônia penal poderia encontrar pior localização do que aquela.

Bond olhou para leste, onde os mangues, na área dos charcos, pareciam oferecer mais hospitalidade. Os três puseram-se a caminhar sobre um sólido tapete verde de vegetação. Sobre suas cabeças, aves revoluteavam agitadas, para depois se, acalmarem, e logo tornarem a agitar-se. Seus pios eram carregados pelo vento crestante.

A voz de Quarrel interrompeu os pensamentos de Bond:

— Eles vêm vindo, capitão!

Bond seguiu o olhar de Quarrel. Um grande caminhão descia celeremente das tendas, com uma nuvem de pó levantando-se das rodas. Bond acompanhou-o durante dez minutos, até que o veículo desapareceu entre os mangues, na margem do rio. Bond pôs-se a escutar e ouviu latidos de cães, que eram trazidos pelo vento.

Quarrel comentou:

— Eles vão descer pelo rio, capitão. Sabem que não nos podemos mover, a não ser rio acima, se não estivermos mortos. Certamente que descerão pelo rio, até a praia, e farão um reconhecimento dos destroços. Depois, com toda a certeza, a lancha virá com um pequeno bote e recolherá os homens e os cães. Pelo menos, isso é o que eu faria no lugar deles.

Honey disse: — Isso é, de fato, o que eles fazem quando me procuram. É isso mesmo. Basta que cortemos um pedaço de bambu, e, quando eles estiverem perto, mergulhemos na água, procurando respirar através do bambu, até que eles se afastem.

Bond sorriu para Quarrel, e disse: — Suponhamos que você corte os bambus, enquanto eu procuro um bom esconderijo entre os mangues.

Quarrel aquiesceu hesitante e começou a subir contra a corrente, em direção ao bambuzal, enquanto Bond se encaminhava para o túnel formado pelos mangues.

Bond evitara olhar para a jovem, mas esta disse-lhe com impaciência:

— Não precisa ter tanto cuidado em não olhar para mim. Não adianta se preocupar com tais coisas, numa hora dessas. Você mesmo o disse, ainda há pouco.

Bond virou-se e olhou para a jovem. Sua camisa esfrangalhada descia até a linha d’água. Podia-se ainda ter um vislumbre de pálidas coxas, serpeando sob a superfície. O lindo rosto sorriu para ele. No meio daqueles mangues, o seu nariz quebrado parecia harmonizar-se com o ambiente, pela sua animalidade.

Bond fitou-a descansadamente e ela compreendeu. Depois, ele deu-lhe as costas e desceu pela correnteza, seguido por ela. Logo encontrou o que procurava, isto é, uma fenda naquela parede formada pelas raízes dos mangues. Bond recomendou: — Não quebre nenhum galho. — Depois, baixou a cabeça e meteu-se por aquela brecha. O canal avançava numa distância de dez metros. A lama sob seus pés tornou-se mais mole e espessa. Chegou a uma sólida e intransponível parede de raízes. Aquela água escura fluía vagarosamente através de uma ampla e tranqüila lagoa. Bond deteve-se. A jovem se aproximou dele.

— Isto é mesmo uma brincadeira de esconde-esconde — disse ela, trêmula.

— É verdade — aquiesceu Bond distraidamente, enquanto pensava em seu revólver. Com efeito, ele preocupava-se em saber com que eficiência a arma operaria depois de um banho no rio — quantos cães e homens ele poderia eliminar, se fossem descobertos. Sentiu um estremecimento de inquietação. Tinha sido uma falta de sorte ter encontrado aquela jovem. Em combate, queira-se ou não, uma mulher representa sempre um coração a mais. O inimigo tem dois alvos enquanto apenas oferece um.

Bond lembrou-se de sua sede. Apanhou na concha da mão um pouco de água e bebeu-a. Aquela água era salobra e tinha gosto de terra. Mas servia. Bond bebeu um pouco mais. A jovem agitou a mão e deteve-o, dizendo:

— Não beba demais. Lave a boca e cuspa. Você pode apanhar febre.

Quarrel assobiou de algum ponto situado na corrente principal. Bond respondeu e foi em direção ao amigo. Depois, voltaram juntos, internando-se no canal. Quarrel borrifou as raízes de mangues com água, nos pontos em que os seus corpos talvez as tivessem raspado. “Para tirar o nosso cheiro”, explicou, laconicamente. Em seguida mostrou o seu feixe de bambus e começou a cortá-los e prepará-los. Enquanto isso, Bond se ocupava com seu revólver e a munição. Os três ficaram imóveis, no meio daquele pântano, de modo a não levantarem mais lama.

A luz do sol filtrava-se através do espesso teto de folhas, os camarões agitavam-se sob os pés daqueles três fugitivos. Gradativamente foi-se avolumando uma insuportável tensão, naquele silêncio escaldante e angustioso.

Foi quase um alívio ouvir-se o ladrar dos cães.


X - O RASTRO DO DRAGÃO


O grupo de investigação descia rapidamente pelo rio. Os dois homens, de calções de banho e altas botas impermeáveis, tinham que correr para acompanhar os cães.

Eram grandes negros chineses, que traziam coldres sustentados ao ombro por meio de talabartes cruzados diante dos peitos suados. De quando em quando trocavam gritos que em geral não passavam de imprecações. À frente deles a matilha de cães Dobermann nadava e debatia-se n’água, latindo excitadamente. Tinham farejado uma pista e procuravam segui-la nervosamente, com as orelhas eretas sobre as cabeças afladas.

— Talvez um maldito crocodilo, — gritou o chefe elevando a voz sobre a algazarra. Empunhava um chicote que de vez em quando fazia estalar no campo de caça.

Os outros homens se encaminhavam para ele. O chefe gritou excitadamente: “Aposto que é o gringo inglês! Tenho certeza de que ele está entre os mangues. Cuidado para que o gringo não nos faça cair numa emboscada.” O homem tirou o revólver do coldre e colocou-o sob o sovaco, sem tirar a mão da coronha.

O grupo agora estava deixando a parte do rio, sob céu aberto, e entrando no túnel formado pelos mangues. O primeiro homem tinha um apito, que se projetava de seu largo rosto como um toco de charuto. Fez soar um agudo silvo. Quando os cães avançaram, ele se deixou ficar com o seu chicote junto do chefe. Os animais continuavam farejando, lamuriando-se porque a corrente os obrigava a desobedecer às ordens recebidas. Os dois homens sacaram os revólveres e vadearam lentamente o rio, na mesma direção da corrente, por entre os caules tortuosos dos mangues.

O homem que ia na frente chegou ao estreito canal que Bond tinha encontrado, agarrou um dos cães pela co-leira e lançou-o ao canal. O animal resfolegou ansiosamente e debateu-se para a frente. Os olhos do homem percorreram as raízes dos mangues, de ambos os lados do canal, para ver se apresentavam algum arranhão.

O cão e o homem chegaram ao pequeno lago situado na extremidade do canal. O homem olhou à sua volta, com ar animado. Tornou a agarrar o cão pela coleira e puxou-o para trás. O animal relutava em abandonar o lugar. Então, o homem feriu a água com o chicote.

O segundo homem estivera esperando à entrada do canal. O primeiro saiu daquele pequeno remanso e sacudiu a cabeça, descendo a corrente, com os cães, que agora se mostravam menos excitados, nadando à frente.

Lentamente, a algazarra da perseguição foi diminuindo e desapareceu.

Por mais cinco minutos nada se mexeu na laguna dos mangues; depois, num dos cantos, entre as raízes, apareceu lentamente para fora d’água um fino periscópio de bambu. O rosto de Bond emergiu logo em seguida, com os cabelos molhados colados à testa, como a cara de um cadáver que boiasse. Em sua mão direita, sob a água, o revólver estava pronto. Bond procurou escutar cuidadosamente. O silêncio era completo, não havia o mínimo ruído. Ou haveria? O que seria aquele suave barulho, como se algo deslizasse entre a água, na corrente principal? Viria alguém, muito serenamente, seguindo na esteira daquela caçada? Bond procurou apalpar à sua volta e tocou delicadamente nos dois corpos que estavam cada um em um de seus flancos, entre as raízes, na orla da laguna. Quando os dois rostos aforaram à superfície, ele colocou o seu dedo indicador sobre os lábios, mas já era tarde. Quarrel tinha tossido e cuspido. Bond fez uma careta e fez um sinal na direção da principal corrente. Todos procuravam escutar. O ruído recomeçou. Alguém estava-se dirigindo para o canal lateral. Os tubos de bambu voltaram para as três bocas e as cabeças tornaram a submergir. Debaixo da água Bond descansou a cabeça na lama, apertou as narinas e os lábios à volta do tubo. Sabia que a laguna já fora examinada uma vez, pois sentira a agitação causada na água pelo cão, que passara nadando! Da primeira vez não tinham sido achados, mas conseguiriam escapar desta? Agora haveria menos possibilidades de que a lama revolta se escoasse para fora da laguna. Se esse batedor visse a mancha mais escura, na água, atiraria ou usaria um punhal? Que armas traria? Bond resolveu não correr riscos. Ao primeiro rumor de movimento, ao seu lado, ele se poria de pé e daria logo ao gatilho, esperando pelo melhor.

Assim ficou ele, submerso, com todos os sentidos atentos. Como era desagradável aquele respirar controlado e insuportáveis as ligeiras mordidelas dos camarões! Por sorte nenhum deles tinha qualquer ferida no corpo, pois do contrário os malditos animalzinhos ter-se-iam atirado contra elas. De qualquer forma, aquela fora uma brilhante idéia da jovem. Sem ela os cães já os teriam alcançado, onde quer que eles se tivessem escondido.

Inesperadamente, Bond encolheu-se. Uma bota de borracha tinha pisado em seu queixo e escorregado. O homem pensaria tratar-se de um galho de árvore? Bond não podia correr aquele risco. Com um só impulso pôs-se de pé, atirando para longe o pedaço de bambu.

Bond teve uma rápida impressão de um gigantesco corpo de pé, quase em cima de si, e duma coronha de rife, em rápido movimento. Levantou o braço esquerdo para proteger a cabeça e recebeu um violento golpe no braço. Ao mesmo tempo, o seu braço direito se esticou para a frente, e, quando o cano tocou no lado direito do peito, sob o mamilo, ele acionou o gatilho.

O coice da arma, quase encostada ao corpo do homem, por pouco não quebrou o pulso de Bond, mas o homem desabou para trás como uma árvore decepada que cai n’água. Antes que o corpo afundasse, Bond ainda pôde perceber-lhe uma grande fenda no flanco. A cabeça, uma cabeça negróide de chinês, veio à superfície, com os olhos revirados para cima e a água a sair de sua boca escancarada e silenciosa. Em seguida a cabeça submergiu novamente e nada mais se pôde ver senão uma lama espumosa e uma mancha vermelha que gradualmente se ia ampliando e lentamente era atraída pela corrente.

Bond se endireitou e voltou-se para o lado. Quarrel e a jovem estavam atrás, em pé, com a água a escorrer-lhes dos corpos. Quarrel tinha um sorriso que ia de orelha a orelha, mas a garota mordia as articulações dos dedos, enquanto seus olhos se escancaravam horrorizados diante da água avermelhada.

Bond disse laconicamente: “Desculpe-me, Honey. Tinha que ser feito. Ele estava bem sobre nós. Venha, vamos indo.” Agarrou-a de qualquer maneira, pelo braço, e arrastou-a para fora da principal corrente, apenas detendo-se quando chegaram a rio aberto, na boca do túnel de mangues.

O cenário estava novamente vazio. Bond olhou para o relógio, e verificou que parara às três horas. Olhou para o sol, já bastante deslocado para o ocidente e concluiu que deveriam ser quatro horas. Quanto ainda teriam que caminhar? Bond inesperadamente sentiu-se cansado. Agora teria de enfrentar a situação. Ainda que o disparo não tivesse sido ouvido — e certamente que ele fora abafado pelo próprio corpo da vítima e pelas árvores — a falta do homem seria sentida quando os outros se reunissem, — se a suposição de Quarrel fosse correta, na embocadura do rio, de onde seriam recolhidos pela lancha. Voltariam eles, subindo o rio, a fim de procurarem o desaparecido? Talvez não. Já estaria muito escuro quando eles tivessem a certeza de que o homem estava realmente desaparecido. O mais certo seria mandarem um grupo de homens pela manhã. Os cães facilmente dariam com o corpo. E o que aconteceria?

A garota puxou-o pela manga e disse com irritação: — Já é tempo de você me dizer o que significa tudo isto! Por que estão todos procurando se matar mutuamente? E quem é você? Não acredito em toda essa história de aves. Ninguém carrega revólveres contra aves.

Bond baixou o olhar, fitando aqueles olhos bem separados e irados. — Desculpe-me, Honey. Receio tê-la arrastado para uma boa encrenca. Eu lhe contarei tudo quando voltarmos à noite para o acampamento. Foi apenas má sorte que você se envolvesse comigo, desta maneira. Tenho uma guerrinha com essa gente. Eles parecem querer matar-me. Agora estou apenas interessado em que todos nós saiamos desta ilha sem que ninguém fique ferido. Já tenho muito do que queria, para da próxima vez voltar pela porta da frente.

— O que você quer dizer? Você é alguma espécie de policial? Está querendo meter esse chinês na cadeia?

— Mais ou menos, — disse Bond, rindo para ela. — Pelo menos você está do lado dos anjos. Agora, diga-me uma coisa. Quanto falta ainda para chegar ao acampamento dos guardas?

— Oh, cerca de uma hora.

— É um lugar bom para nele esconder-se? Eles poderiam achar-nos com facilidade?

— Eles teriam que atravessar o lago ou subir o rio. Tudo estará muito bem se eles não puserem o dragão em nosso encalço. Ele pode muito bem atravessar a água, pois já o vi fazê-lo.

— Bem — disse Bond diplomaticamente — esperemos que ele esteja com a cauda machucada, ou tenha outra coisa qualquer.

A jovem vociferou: — Muito bem, sr. Sabe-Tudo. — E acrescentou irritada: — Espere e verá.

Quarrel deixou o túnel de mangues, agitando ruidosamente a água, tendo na mão o rife do chinês abatido, e dizendo à guisa de quem pede desculpas:

— Não há mal em termos outra arma, chefe. Parece que vamos precisar dela.

Bond apanhou aquela arma. Era uma carabina “Remington”, do exército norte-americano, calibre 300. Não havia dúvida de que aquela gente contava com equipamento apropriado. Bond devolveu a arma a Quarrel, depois de examiná-la.

Quarrel como que fez eco aos seus pensamentos: — Isso é gente astuta, capitão. Aquele homem veio esquadrinhando suavemente, atrás dos outros, a fim de nos surpreender quando deixássemos o esconderijo, depois da passagem dos cães. Esse tal de doutor com certeza é um sujeito muito esperto.

Bond disse pensativamente: — É, ele deve ser um homem incomum. — Depois espantou os pensamentos: — Agora, vamos tocando para a frente. Honey diz que ainda precisamos de uma hora para chegarmos ao acampamento. É melhor irmos pela margem esquerda, de modo a ficarmos ao abrigo da colina. Pelo que já pudemos ver, eles têm lunetas assestadas sobre o rio.

Bond entregou a sua arma a Quarrel, que a guardou na mochila molhada. Puseram-se novamente em marcha, com Quarrel à frente, e Bond e a jovem andando juntos, atrás.

Aproveitavam algumas sombras das árvores e bambus da margem ocidental, mas deviam agora suportar toda a intensidade de um vento crestante. Borrifaram braços e corpos com água, a fim de refrescar as queimaduras. Os olhos de Bond estavam injetados por aquele insuportável revérbero e o seu braço doía intoleràvelmente no ponto em que fora atingido pela coronha. E ele não teria à sua espera o seu jantar de pão embebido, queijo e fiambre. Quanto tempo poderiam dormir? Não dormira muito na véspera, e parece que não iria ter melhor ração de sono. E a garota? Ela nada dormira. Ele e Quarrel teriam que se revezar, em quartos de vigilância. E logo chegaria o dia seguinte, quando procurariam ganhar novamente os mangues e vencer lentamente a distância que os separava de sua canoa, através da extremidade oriental da ilha. As coisas correriam daquela forma, segundo era de esperar. Então, tratariam de se fazerem ao mar na noite seguinte. Bond pensou em como haveria de abrir caminho por entre sólidos mangues, na distância de oito quilômetros. Que perspectiva! Continuou se arrastando para a frente, pensando nas “férias ao sol dos trópicos” de M. Muito gostaria que M tivesse que partilhar com ele aquelas “férias”.

O rio foi-se estreitando até que se reduziu a uma simples corrente entre as moitas de bambu. Depois se ampliava num estuário baixo e pantanoso, além do qual as cinco milhas quadradas de lago raso davam vazão para o outro lado da ilha, perdendo-se num agitado espelho líquido azul-cinza. Mais para além estava a brilhante pista aérea e o reflexo da luz solar sobre um único hangar. A jovem disse-lhe que se mantivesse na direção leste, e eles foram lentamente avançando, protegidos pela orla da mata.

Inesperadamente, Quarrel deteve-se, com o rosto esticado como o focinho de um cão para o terreno pantanoso à sua frente. Dois profundos sulcos tinham sido escavados na lama, com um sulco mais raso no centro. Eram a trilha de algo que tinha descido da colina e atravessado o pântano em direção ao lago.

A jovem disse com indiferença: — Por aqui já passou o dragão.

Quarrel arregalou os olhos para ela.

Bond caminhou lentamente pela trilha. As marcas exteriores eram bastante lisas, trazendo a marca de uma linha curva. Poderiam ter sido causadas por rodas, mas eram enormes, pelo menos com sessenta centímetros de largura. A trilha central tinha a mesma forma, mas com apenas três polegadas de largura, ou seja a largura de um pneumático de automóvel. As trilhas não apresentavam nenhum indício de pegadas e eram completamente frescas. Estendiam-se em linha reta, e os arbustos por elas atravessados tinham sido derrubados e esmagados no chão, como se um tanque de guerra tivesse passado por ali. Bond não podia imaginar que espécie de veículo seria aquele. A jovem tocou-o com o cotovelo e murmurou: — Eu lhe tinha dito. Ele apenas pôde responder pensativamente: — Bom, Honey, se não é o dragão, é algo que nunca vi antes.

Mais adiante, ela puxou-o ansiosamente pela manga. “Veja”, sussurrou, e apontou para a frente, indicando um grande cerrado de árvores, ao lado do qual passavam as trilhas. O cerrado estava sem folhas, enegrecido. Ao centro viam-se os restos dos ninhos de pássaros carbonizados. — Ele respirou sobre as árvores, — disse a garota nervosamente.

Bond aproximou-se das árvores e examinou-as. — Certamente que o fez — admitiu. Por que aquele cerrado, em especial, tinha sido queimado? Era muito estranho aquilo.

As trilhas desciam em direção ao lago e desapareciam na água. Bond teria gostado de segui-las, mas não poderia abandonar a cobertura das árvores. Assim, continuaram a marcha, cada um entregue aos próprios pensamentos.

Lentamente o dia começou a morrer, por trás da colina, e por fim a garota apontou para a frente, através dos arbustos; Bond pôde ver uma comprida restinga internando-se no lago. Estava coberta por densas moitas de arbustos e podiam-se ver, a cem metros da praia, os restos de uma cabana incendiada. Aquele parecia um lugar razoavelmente atraente para se passar a noite, e era bem protegido dos dois lados, pela água.

O vento tinha declinado e a água se apresentava suave e convidativa. Que prazer não seria tirarem as suas imundas camisas para um banho no lago e, depois de horas de patinhação através da lama e do lodo do pântano, poderem descansar naquela areia dura e seca!

O sol brilhou com reflexos amarelecidos e desapareceu por trás da montanha. Ainda era dia na extremidade oriental da ilha, mas a sombra negra do monte avançava vagarosamente sobre o lago e acabaria por expulsar completamente os últimos vestígios do sol. Os sapos começaram a coaxar mais barulhentamente que em Jamaica, até que a noite ficou cheia daquele áspero ruído. Do outro lado do lago um grande sapo macho começou a soar o seu tambor. Aquele estranho som era algo entre um tom-tom e um rosnado de macaco. Enviava mensagens que subitamente se interrompiam e logo silenciaram. Com certeza encontrara o que procurava.

Chegaram à garganta da restinga e seguiram por um estreito caminho, até a clareira que encerrava os escombros da cabana de sapé. As grandes e misteriosas trilhas saíam da água, de ambos os lados, atravessavam a clareira e os cerrados próximos. Muitos dos arbustos estavam queimados ou crestados. Podiam-se ver os restos de um fogão feito de pedaços de coral, e algumas panelas e latas vazias. Examinaram os destroços, e Quarrel desenterrou um par de latas intactas de costeletas de porco e ervilhas marca “Heinz”. A jovem encontrou ainda um saco de dormir muito amarrotado, enquanto Bond achou uma pequena bolsa de couro com cinco notas de um dólar, três libras de Jamaica e algumas moedas de prata. Os dois homens certamente tinham abandonado aquele lugar a toda pressa.

Prosseguiram mais para diante, até uma pequena clareira arenosa. Através dos arbustos podiam ver luzes cintilando sobre a água e provenientes da montanha, talvez a mais de três quilômetros de distância. A leste nada mais havia senão. os suaves reflexos escuros da água sob o céu sombrio.

Bond comentou: — Enquanto não acendermos nada, estaremos bem aqui. A primeira coisa a fazer é tomarmos um bom banho, Honey. Você pode ficar com o resto da restinga, que nós ficaremos com a sua garganta. Dentro de meia hora espero vê-la para o jantar.

A garota riu: — Você virá a rigor?

— Sem dúvida — respondeu Bond — e de calças.

Quarrel observou: — Capitão, enquanto ainda há um pouco de luz, vou abrir essas latas e preparar as coisas para a noite. — Remexeu dentro da mochila. — Aqui estão as suas calças e o seu revólver. O pão talvez não esteja muito bom, mas está apenas molhado. Pode-se comê-lo bem, e amanhã estará seco. O melhor talvez fosse comermos das latas esta noite, guardando o queijo e as costeletas. As latas são pesadas e amanhã teremos que andar muito.

Bond respondeu: — Muito bem, Quarrel. Deixarei o cardápio aos seus cuidados.

Em seguida, apanhou o revólver e as calças úmidas e desceu para a água rasa. A água estava acariciante, mas desagradavelmente quente. Bond escavou punhados de areia, com as mãos, e esfregou o corpo com ela, utilizando-a como sabonete. Depois deixou-se ficar gostosamente em meio àquele silêncio e àquela solidão.

As estrelas começaram a brilhar palidamente, as estrelas que os tinham trazido à ilha na noite passada; as estrelas que os tirariam dali no dia seguinte. Que viagem! Mas pelo menos já tinha dado os seus resultados. Agora tinha provas bastantes, e testemunhas, para ir ter com o governador e conseguir dele um inquérito completo acerca das atividades do Dr. No. Ninguém lança mão de metralhadoras contra pessoas, mesmo contra intrusos. E, da mesma forma, o que seria aquilo do Dr. No, que invadira a propriedade da Sociedade Audubon, aquilo que chegara a destruir essa propriedade e provavelmente matara um de seus empregados? Isto também teria que ser investigado. E o que haveria ele de encontrar quando voltasse pela porta da frente, talvez a bordo de um destróier, e com um destacamento de fuzileiros navais? Qual seria a resposta para o mistério do Dr. No? O que estaria ele escondendo? Por que aquele segredo era tão importante, que seria capaz de matar repetidas vezes, para preservá-lo? E quem era esse Dr. No?

Bond ouviu o barulho de alguém espojando-se na água. Pensou na garota. E quem, afinal, era Honeychile Ri-der? Aquilo pelo menos, pensou ele ao sair da água, era algo que deveria esclarecer antes do amanhecer.

Bond enfiou as suas pegajosas calças, sentou-se na areia e desmontou o revólver. Fê-lo pelo tato, utilizando-se de sua camisa para secar cada peça e cada cartucho. Depois, tornou a montar a arma e pressionou o gatilho, fazendo com que o tambor vazio desse uma volta completa. O som era satisfatório. Seriam precisos alguns dias para que o revólver começasse a enferrujar. Carregou-o e meteu-o no coldre, para dentro do cós da calça. Depois, levantou-se e voltou para a clareira.

A sombra de Honey chegou até ele, e a sua voz se fez ouvir: — Venha; estamos morrendo de fome. Apanhei uma das panelas, limpei-a e pusemos as ervilhas nela. Temos pão também. E eu não sinto escrúpulos de comer a sua ração, porque você me fez trabalhar muito mais do que se eu estivesse sozinha. Agora, estique a mão.

Bond achou graça no tom autoritário que havia em sua voz. Ele apenas podia perceber a sua silhueta, no escuro. Sua cabeça parecia mais aflada. Ele se perguntou como seriam os seus cabelos quando secos e penteados. Como seria ela quando estivesse vestindo roupas limpas naquele lindo corpo dourado? Podia vê-la entrando numa sala ou atravessando um vestíbulo em Beau Desert. Ela seria uma linda e encantadora Patinha Feia. Por que nunca procurara endireitar o nariz? Seria uma operação fácil. Depois disso, ela seria a jovem mais bela de Jamaica.

O seu ombro tocou nele. Bond esticou o braço e descansou a mão aberta no colo da jovem. Então Bond sentiu que ela estava enchendo a sua mão com ervilhas.

Subitamente, Bond aspirou o seu cheiro cálido de animal. Foi uma explosão sensual tão aguda que o seu corpo se uniu ao dela, e, por um momento, os seus olhos se fecharam.

Ela deixou escapar um riso curto, no qual havia timidez, satisfação e ternura. E disse, maternalmente: “Lá”, — e empurrou a mão de Bond.

 

CONTINUA

IX - POR UM TRIZ


Dez minutos mais tarde a baía estava vazia e imaculada. Pequenas ondas encrespavam-se preguiçosamente através do espelho das águas, no interior dos recifes e morriam exaustas na areia escura onde as conchas lilás brilhavam como unhas pintadas. O monte de conchas tinha desaparecido e não havia mais vestígios de pegadas. Quarrel cortara galhos de mangues e caminhava de costas procurando apagar as pegadas com aqueles galhos. Onde tinha varrido, a areia apresentava uma limpidez diferente mas não tão diferente a ponto de ser notada de fora do recife. A canoa da jovem tinha sido arrastada para dentro do mar, entre as rochas, e ali ficou coberta com algas e gravetos.

Quarrel tinha voltado ao promontório. Bond e a jovem estavam juntos, sob tufos de folhas, onde Bond dormira, e olhavam silenciosamente para o contorno do promontório, à volta do qual surgira a embarcação.

A lancha estava talvez a uns quinhentos metros de distância. A julgar pelo lento ritmo do motor, Bond concluiu que cada acidente da costa estava sendo cuidadosamente inspecionado para descobrir indícios da presença de estranhos. De qualquer forma, aquilo parecia uma possante embarcação. Talvez uma grande lancha de cabina. Que tripulação teria? Quem estaria no comando? O Dr. No? Improvável. Ele certamente não se daria àquele trabalho de polícia.

Do lado do ocidente apareceu um bando de corvos marinhos, voando baixo sobre o mar, além dos recifes. Bond observou-os. Eram o primeiro indício para ele encontrado daquela colônia de aves, na outra extremidade da ilha. Aquele bando, segundo Pleydell-Smith, seriam batedores à procura do brilho prateado das enchovas, próximas à superfície. Enquanto observava, as aves começaram a dar mergulhos rasos, ferindo o mar superficialmente e levantando respingos de água. Quase que de uma só vez, apareceu outra coluna de aves, vinda do ocidente, e logo outra, e mais outra, fundindo-se todas numa espessa e escura nuvem. Durante minutos, elas sombrearam o céu, e depois atiraram-se à água, cobrindo vários alqueires, piando e lutando, e mergulhando as cabeças no mar, fazendo uma rica colheita naquele sólido campo de anchovas, como piranhas que se banqueteassem num cavalo afogado.

Bond sentiu um suave toque da jovem, que fez um movimento com a cabeça, dizendo:

— As galinhas do chinês estão comendo milho.

Bond observou-lhe o rosto belo e feliz. Ela parecia bastante despreocupada com a chegada daqueles homens. Para ela aquilo era apenas o jogo de esconde-esconde que já tinha praticado antes.

A vibração metálica dos motores diesel estava-se tornando mais forte. A lancha deveria estar justamente por trás do promontório. Bond deu mais uma olhada à volta da tranqüila baía, e depois fixou os olhos através da folhagem e do mato, para os lados dos recifes.

A ponta de uma proa branca apareceu, seguida de uns dez metros de tombadilho, e logo o parabrisas de vidro, uma cabina baixa e uma antena de rádio, e o vulto de um homem à volta do leme. Finalmente, o comprido e achatado fosso da popa, e uma flâmula vermelha pendente, Seria uma lancha-torpedeira convertida, um excedente de guerra do governo britânico?

Os olhos de Bond fixaram-se nos dois homens que estavam em pé na popa. Eram negros de pele pálida, envergando roupas caqui de marinheiro, com largos cinturões e chapéus de palha com longas palas. Estavam um ao lado do outro, equilibrando-se sob a lenta elevação da massa líquida. Um deles segurava um alto-falante e o outro manejava uma metralhadora instalada num tripé. Bond teve a impressão de que era uma metralhadora “Spandau”.

O homem com o alto-falante deixou que este caísse, e ele ficou oscilando numa tira, que lhe dava volta ao pescoço. Apanhou um binóculo e começou a vasculhar metro a metro da praia. Indistintos comentários chegavam aos ouvidos de Bond, por entre o ruído dos motores.

Bond percebeu que os olhos do binóculo começavam pelo promontório e depois percorriam a areia. As lentes detiveram-se entre as rochas e continuaram o seu passeio. Depois, voltaram. O murmúrio do comentário elevou-se ganhando animação. O homem passou o binóculo para o metralhador, que observou rapidamente, devolvendo-o logo ao dono. O observador gritou alguma coisa para o timoneiro. A lancha começou a se aproximar da praia. Agora estavam justamente diante dos recifes, em frente a Bond e à jovem. O observador ergueu novamente o binóculo, apontando-o para as rochas onde se encontrava escondida a canoa da jovem. Novamente a fala excitada chegou aos ouvidos de Bond, por sobre as águas. Mais uma vez o binóculo foi passado ao metralhador, que levou algum tempo observando. Dessa vez, ele fez um sinal de assentimento com a cabeça.

Bond pensou: agora vamos ter coisa; esses homens conhecem o ofício. Em seguida, viu que o metralhador se ocupava em carregar a arma. O duplo estalido metálico chegou aos seus ouvidos, por entre o matraquear do motor.

O observador ergueu o alto-falante e ligou-o. O eco produzido pelo amplificador chegou até Bond, conduzido pela superfície da água. A voz do homem ribombou pela baía:

— Alô, pessoal! Saiam daí e não serão feridos. Era uma voz educada, com sotaque americano.

— Agora, pessoal — trovejou a voz — depressa! Nós vimos quando vocês desembarcaram. Já descobrimos o bote sob os paus. Não somos tolos e não estamos brincando. Saiam daí com os braços levantados e não lhes acontecerá nada!

Não se ouviu nenhuma resposta. Apenas as ondas quebravam docemente na praia. Bond podia ouvir a respiração da jovem. Os guinchos agudos dos corvos marinhos chegavam-lhes de uma milha de distância, sobre o mar. O cano de escapamento dos motores diesel produzia um ruído desigual e gorgulhante, quando o intumescimento do mar cobria o orifício de descarga.

Silenciosamente Bond tocou o braço da jovem e disse-lhe:

— Fique mais perto. Alvo menor.

Ele sentiu o calor da jovem mais próximo de seu corpo, e o rosto de Honey raspou pelo seu braço. Bond sussurrou:

— Enterre-se na areia. Encolha-se. Cada polegada a menos ajudará.

Ele começou a se encolher cuidadosamente na depressão que tinham escavado para se abrigarem, e sentiu que ela fazia o mesmo.

O homem estava erguendo o seu alto-falante. A voz ribombou novamente.

— Muito bem, pessoal! Vocês irão ver que isso aqui não é para brincadeira. — Depois, levantou o polegar. O metralhador experimentou a arma fazendo alguns disparos para a copa dos mangues situados por trás da praia. Bond ouviu o rápido matraquear, tão seu conhecido, e do qual se despedira pela última vez diante das linhas alemãs, nas Ardenas. As balas produziam o velho som de pombos assustados, assobiando sobre sua cabeça. Depois fez-se silêncio.

À distância, Bond via a nuvem negra de corvos marinhos elevar-se, começando a fazer os seus amplos círculos. Seus olhos voltaram para a embarcação. O metralhador estava apalpando o cano da metralhadora, para ver se já estava aquecido. Os dois homens trocaram algumas palavras. O observador apanhou novamente o porta-voz.

— Está bem, pessoal. Vocês foram avisados.

Bond viu o cano da “Spandau” levantar-se e abaixar-se. O homem estava querendo começar com a canoa, entre as rochas. Bond sussurrou para a jovem: — Muito bem, Honey. Agüente firme. Mantenha-se abaixada. Não vai durar muito.

Ele sentiu que a mão da jovem apertava o seu braço, e pensou: “Coitada; ela está metida nisso por minha causa.” Ele inclinou-se para a direita a fim de cobrir a cabeça de Honey e afundou o rosto na areia.

Dessa vez o matraquear foi terrível. Balas ricocheteavam no flanco do promontório. Fragmentos de pedra saltavam para todos os lados, sobre a praia. Outras balas ricocheteavam e iam perder-se dentro da mata. Simultaneamente com todo aquele barulho ouvia-se o martelar contínuo da metralhadora.

Houve uma pausa. Nova carga, pensou Bond. Agora será para nós. Pôde sentir a jovem agarrando-se a ele. Seu corpo tremia todo, encostado ao seu flanco. Bond apanhou uma arma e apertou-a de encontro ao corpo. O matraquear da metralhadora recomeçou. As balas vinham zunindo, da linha de maré, em direção a eles. Ouviu-se uma sucessão de rápidas batidas. O tufo, acima deles, estava sendo reduzido a pedaços. “Zuip Zuip Zuip”. Era como se um chicote de aço estivesse retalhando os arbustos. Pedaços de lenha caíam sobre eles, cobrindo-os lentamente. Bond respirou um ar mais fresco, o que significava que eles agora estavam ao ar-livre. Estariam eles escondidos pelas folhas o pelos destroços? As balas continuaram deslocando-se ao longo da linha da costa. Em menos de um minuto a metralhadora parou.

O silêncio tornou a reinar. A jovem lamuriou-se docemente. Bond fê-la calar-se e apertou-a mais forte.

O alto-falante apregoou:

— Está bem, pessoal. Se vocês ainda têm ouvidos, saibam que voltaremos logo para recolher-lhes os pedaços. Vamos trazer os cães. Até à vista, por enquanto.

O ritmo do motor se acelerou, e através das folhas Bond pôde ver a popa da lancha afundar-se mais na água, enquanto a embarcação rumava rapidamente para oeste. Dentro de minutos já não se ouvia mais nada.

Bond ergueu a cabeça cautelosamente. A baía estava serena, e tudo como antes, exceto o cheiro de cordite e as rochas quebradas.

Bond fez a jovem levantar-se. Havia marcas de lágrimas em seu rosto. Ela olhou-o aterrada, e disse:

— Isso foi terrível. Por que eles o fizeram? Podíamos ter sido mortos.

Bond pensou naquela jovem que sempre abrira caminho, na vida, por si mesma, mas apenas contra a natureza. Conhecia o mundo dos animais, dos insetos e dos peixes, e tirava todo o partido desse conhecimento. Mas aquele era um pequeno mundo, limitado pelo sol, pela lua e pelas estações. Ela não conhecia o grande mundo das salas cheias de fumo, dos corredores de negócios, dos corredores e antecâmaras governamentais, dos cautelosos encontros em bancos de praças — numa palavra: ela nada conhecia da luta pelo poder e pelo dinheiro, travada por homens poderosos.

Bond disse:

— É isso mesmo, Honey, eles não passam de uma quadrilha de bandidos assustados conosco. Podemos enfrentá-los.

Bond colocou o braço à volta de seus ombros e continuou:

— E você esteve maravilhosa, brava como ninguém. Agora, vamos ao encontro de Quarrel para traçar os nossos planos. De qualquer forma, já é tempo de comermos alguma coisa. O que é que você costuma comer nessas expedições?

Deram meia-volta e seguiram pela praia em direção ao promontório. Depois de um minuto, ela disse com voz bem controlada:

— Oh, há uma porção de coisas por aí que se podem comer. Ouriços do mar principalmente, mas também bananas silvestres e outras coisas. Eu como e durmo durante dois dias, antes de vir aqui. Não preciso de nada.

Bond apertou-a mais fortemente, mas deixou cair o braço, assim que Quarrel apareceu ao longe. Quarrel vinha saltando sobre as rochas, e, em determinado momento, parou, olhando para baixo. Bond e Honey se aproximaram dele. A canoa da jovem estava cortada ao meio pelas balas. Honey deixou escapar um grito, olhando desesperadamente para Bond:

— A minha canoa! Como poderei voltar?

— Não se preocupe, senhorita, — disse Quarrel, que sentia a perda de uma canoa mais do que Bond. Imaginou ainda que aquela embarcação representasse quase todo o capital da jovem. — O capitão lhe dará outra. E a senhorita voltará conosco. Temos um magnífico bote, entre os mangues, e ele não foi destruído. Já estive lá espiando.

Quarrel olhou para Bond. Agora, o seu rosto denotava preocupação.

— Mas, capitão, o senhor está vendo o que eu disse dessa gente. Eles são duros e não estão brincando. Esses cães que eles vão trazer são policiais — Pinschers, como eles os chamam. Bastardos. Meus amigos disseram-me que são uma matilha de vinte ou mais. É melhor resolvermos logo.

— Está bem, Quarrel. Mas antes de mais nada precisamos comer alguma coisa. — o diabo que me carregue se eu vou ser aterrorizado e expulso da ilha antes de dar uma olhada nisso. Levaremos Honey conosco. — E, voltando-se para a jovem:

— Está bem, Honey? Nada lhe acontecerá. Depois voltaremos juntos.

A jovem olhou-o em dúvida:

— Acho que não há alternativa. Quero dizer. Gostaria de ir com vocês, se não atrapalhasse. Francamente, não quero comer nada. Mas você me levará de volta, assim que puder? Não quero ver mais aquela gente. Durante quanto tempo vocês vão ficar olhando para essas aves?

Bond respondeu evasivamente:

— Pouco tempo. Eu terei apenas que ver o que lhes aconteceu e porquê. Depois, partiremos.

Olhou para o relógio e anunciou:

— Agora são doze horas. Você nos esperará aqui. Tome um banho ou faça o que quiser. Não ande por aí deixando pegadas. Vamos, Quarrel, é melhor escondermos aquele bote.

Só à uma hora eles estavam prontos. Bond e Quarrel encheram a canoa com pedras e areia, até que ela desapareceu sob a água, entre os mangues. Depois, apagaram as suas pegadas. As balas tinham deixado tantos gravetos na orla da praia, que eles podiam caminhar pisando em folhas e ramos quebrados. Comeram parte de suas rações — os homens com avidez, mas Honey com relutância — e depois, passando sobre as rochas, foram ter à lagoa, próxima da costa. Em seguida foram vadeando aquelas águas, em direção à foz do rio, trezentos metros praia abaixo.

Fazia muito calor. Um vento áspero e quente começou a soprar do nordeste. Quarrel informou que aquele vento soprava diariamente, durante todo o ano, e era vital para a guaneira, pois secava o guano. O revérbero do mar e das brilhantes folhas verdes dos mangues cegava-os. Bond deu-se por feliz, já que tivera o cuidado de acostumar sua pele ao sol.

Na foz do rio encontraram um banco de areia e um extenso pântano, profundo e de águas estagnadas. Os dois homens podiam molhar-se ou tirar as roupas. Bond disse à jovem:

— Honey, não podemos ter cerimônia, nesta situação. Vamos ficar apenas com as camisas por causa do sol. Fique apenas com o que for sensato e caminhe atrás de nós.

Sem esperar pela resposta da jovem, os dois homens tiraram as calças. Quarrel enrolou-as e guardou-as na sacola, juntamente com as provisões e o revólver de Bond. Depois começaram a vadear a lagoa, com Quarrel na frente, logo seguido de Bond, e, finalmente a jovem. A água chegou até a cintura de Bond. Um grande peixe prateado deu um salto perto deles e depois caiu ruidosamente na água. Viram-se pequeninas setas riscarem a superfície, quando peixes menores se afastaram precipitadamente.

A lagoa convergia para uma estreita garganta, por sobre a qual as copas dos mangues se tocavam. Durante algum tempo eles vadearam através de um túnel fresco, e depois o rio se alargou num canal profundo, de águas morosas, que serpeava para a frente, entre as gigantescas raízes de sustentação dos mangues. O fundo era lamacento, e a cada passo os pés se enterravam algumas polegadas no lodo. Pequenos peixes ou camarões se encolhiam ou fugiam de baixo de seus pés, e de quando em quando eles tinham que parar para se desembaraçar das sanguessugas, antes que elas se agarrassem firmemente. A não ser isso, aquela caminhada era fácil, sob o frescor das arvores, e, pelo menos para Bond, era uma bênção estar ao abrigo do sol.

Em breve, à medida que se iam afastando do mar, começaram a sentir um cheiro de ovo podre, o cheiro de hidrogênio sulfurado do gás dos pântanos. Os mosquitos começaram a assaltá-los e pareciam gostar do corpo de Bond. Quarrel disse-lhe que mergulhasse na água do rio, pois os mosquitos gostavam de carne salgada. Bond tirou a camisa e fez o que Quarrel lhe aconselhara. Depois disso sentiu-se melhor e o seu olfato chegou mesmo a se acostumar com aquele repugnante cheiro, a não ser quando os pés de Quarrel desfaziam algum bolsão de gás, no fundo da lama, e uma gigantesca bolha atravessava a água para arrebentar na superfície sob as suas narinas.

Os mangues começaram a se tornar mais escassos e mais esparsos, enquanto o rio se ia alargando aos poucos. Ao mesmo tempo, a água tornava-se mais rasa e o fundo mais firme. Logo chegaram a uma volta e saíram para céu aberto, Honey disse:

— É melhor tomarmos cuidado, agora. Eles poderão ver-nos com muita facilidade. Isso vai assim durante uma milha. Depois o rio torna a se estreitar até o lago. E depois se poderá ver a restinga onde os tratadores das aves viviam.

O grupo deteve-se à sombra do túnel de mangues e olhou para fora. O rio serpeava perigosamente, afastando-se deles, em direção ao centro da ilha. As suas barrancas, bordadas de bambus de pequeno porte e de vegetação rala, dar-lhes-íam cobertura reduzida. Partindo de sua margem ocidental, o terreno elevava-se aos poucos, e logo abruptamente até o monte, situado a três quilômetros de distância, que era a guaneira. Na base daquela montanha, viam-se várias cabanas esparsas. Um ziguezague prateado galgava o flanco da colina, até as tendas — trilhos “Decauville”, pensou Bond, destinados a levarem o guano para o moinho e separa-dor. O cume do monte era branco, como se estivesse coberto de neve. De sua parte mais elevada desprendia-se como que uma bandeira de dó de guano. Bond podia ver os pontos negros que eram os corvos marinhos, sobre o fundo branco. Aquelas aves estavam levantando vôo e pousando como abelhas numa colmeia.

Bond deixou-se ficar de pé e contemplou o brilho distante daquela montanha de excrementos de aves. Então aquilo era o reino do Dr. No! Bond pensou que jamais vira um cenário tão escondido e distante, em toda a sua vida.

Examinou o terreno entre o rio e a montanha. Parecia ser principalmente formado com aquela matéria cinzenta de corais mortos. Não havia dúvida de que uma estrada ou trilha corria da falda da montanha até ao lago central e aos pântanos. Bond notou ainda que toda a vegetação se curvava para oeste, e imaginou viver durante todo um ano com aquele vento escaldante castigando a ilha, sem falar do cheiro do guano e do gás dos pântanos. Nenhuma colônia penal poderia encontrar pior localização do que aquela.

Bond olhou para leste, onde os mangues, na área dos charcos, pareciam oferecer mais hospitalidade. Os três puseram-se a caminhar sobre um sólido tapete verde de vegetação. Sobre suas cabeças, aves revoluteavam agitadas, para depois se, acalmarem, e logo tornarem a agitar-se. Seus pios eram carregados pelo vento crestante.

A voz de Quarrel interrompeu os pensamentos de Bond:

— Eles vêm vindo, capitão!

Bond seguiu o olhar de Quarrel. Um grande caminhão descia celeremente das tendas, com uma nuvem de pó levantando-se das rodas. Bond acompanhou-o durante dez minutos, até que o veículo desapareceu entre os mangues, na margem do rio. Bond pôs-se a escutar e ouviu latidos de cães, que eram trazidos pelo vento.

Quarrel comentou:

— Eles vão descer pelo rio, capitão. Sabem que não nos podemos mover, a não ser rio acima, se não estivermos mortos. Certamente que descerão pelo rio, até a praia, e farão um reconhecimento dos destroços. Depois, com toda a certeza, a lancha virá com um pequeno bote e recolherá os homens e os cães. Pelo menos, isso é o que eu faria no lugar deles.

Honey disse: — Isso é, de fato, o que eles fazem quando me procuram. É isso mesmo. Basta que cortemos um pedaço de bambu, e, quando eles estiverem perto, mergulhemos na água, procurando respirar através do bambu, até que eles se afastem.

Bond sorriu para Quarrel, e disse: — Suponhamos que você corte os bambus, enquanto eu procuro um bom esconderijo entre os mangues.

Quarrel aquiesceu hesitante e começou a subir contra a corrente, em direção ao bambuzal, enquanto Bond se encaminhava para o túnel formado pelos mangues.

Bond evitara olhar para a jovem, mas esta disse-lhe com impaciência:

— Não precisa ter tanto cuidado em não olhar para mim. Não adianta se preocupar com tais coisas, numa hora dessas. Você mesmo o disse, ainda há pouco.

Bond virou-se e olhou para a jovem. Sua camisa esfrangalhada descia até a linha d’água. Podia-se ainda ter um vislumbre de pálidas coxas, serpeando sob a superfície. O lindo rosto sorriu para ele. No meio daqueles mangues, o seu nariz quebrado parecia harmonizar-se com o ambiente, pela sua animalidade.

Bond fitou-a descansadamente e ela compreendeu. Depois, ele deu-lhe as costas e desceu pela correnteza, seguido por ela. Logo encontrou o que procurava, isto é, uma fenda naquela parede formada pelas raízes dos mangues. Bond recomendou: — Não quebre nenhum galho. — Depois, baixou a cabeça e meteu-se por aquela brecha. O canal avançava numa distância de dez metros. A lama sob seus pés tornou-se mais mole e espessa. Chegou a uma sólida e intransponível parede de raízes. Aquela água escura fluía vagarosamente através de uma ampla e tranqüila lagoa. Bond deteve-se. A jovem se aproximou dele.

— Isto é mesmo uma brincadeira de esconde-esconde — disse ela, trêmula.

— É verdade — aquiesceu Bond distraidamente, enquanto pensava em seu revólver. Com efeito, ele preocupava-se em saber com que eficiência a arma operaria depois de um banho no rio — quantos cães e homens ele poderia eliminar, se fossem descobertos. Sentiu um estremecimento de inquietação. Tinha sido uma falta de sorte ter encontrado aquela jovem. Em combate, queira-se ou não, uma mulher representa sempre um coração a mais. O inimigo tem dois alvos enquanto apenas oferece um.

Bond lembrou-se de sua sede. Apanhou na concha da mão um pouco de água e bebeu-a. Aquela água era salobra e tinha gosto de terra. Mas servia. Bond bebeu um pouco mais. A jovem agitou a mão e deteve-o, dizendo:

— Não beba demais. Lave a boca e cuspa. Você pode apanhar febre.

Quarrel assobiou de algum ponto situado na corrente principal. Bond respondeu e foi em direção ao amigo. Depois, voltaram juntos, internando-se no canal. Quarrel borrifou as raízes de mangues com água, nos pontos em que os seus corpos talvez as tivessem raspado. “Para tirar o nosso cheiro”, explicou, laconicamente. Em seguida mostrou o seu feixe de bambus e começou a cortá-los e prepará-los. Enquanto isso, Bond se ocupava com seu revólver e a munição. Os três ficaram imóveis, no meio daquele pântano, de modo a não levantarem mais lama.

A luz do sol filtrava-se através do espesso teto de folhas, os camarões agitavam-se sob os pés daqueles três fugitivos. Gradativamente foi-se avolumando uma insuportável tensão, naquele silêncio escaldante e angustioso.

Foi quase um alívio ouvir-se o ladrar dos cães.


X - O RASTRO DO DRAGÃO


O grupo de investigação descia rapidamente pelo rio. Os dois homens, de calções de banho e altas botas impermeáveis, tinham que correr para acompanhar os cães.

Eram grandes negros chineses, que traziam coldres sustentados ao ombro por meio de talabartes cruzados diante dos peitos suados. De quando em quando trocavam gritos que em geral não passavam de imprecações. À frente deles a matilha de cães Dobermann nadava e debatia-se n’água, latindo excitadamente. Tinham farejado uma pista e procuravam segui-la nervosamente, com as orelhas eretas sobre as cabeças afladas.

— Talvez um maldito crocodilo, — gritou o chefe elevando a voz sobre a algazarra. Empunhava um chicote que de vez em quando fazia estalar no campo de caça.

Os outros homens se encaminhavam para ele. O chefe gritou excitadamente: “Aposto que é o gringo inglês! Tenho certeza de que ele está entre os mangues. Cuidado para que o gringo não nos faça cair numa emboscada.” O homem tirou o revólver do coldre e colocou-o sob o sovaco, sem tirar a mão da coronha.

O grupo agora estava deixando a parte do rio, sob céu aberto, e entrando no túnel formado pelos mangues. O primeiro homem tinha um apito, que se projetava de seu largo rosto como um toco de charuto. Fez soar um agudo silvo. Quando os cães avançaram, ele se deixou ficar com o seu chicote junto do chefe. Os animais continuavam farejando, lamuriando-se porque a corrente os obrigava a desobedecer às ordens recebidas. Os dois homens sacaram os revólveres e vadearam lentamente o rio, na mesma direção da corrente, por entre os caules tortuosos dos mangues.

O homem que ia na frente chegou ao estreito canal que Bond tinha encontrado, agarrou um dos cães pela co-leira e lançou-o ao canal. O animal resfolegou ansiosamente e debateu-se para a frente. Os olhos do homem percorreram as raízes dos mangues, de ambos os lados do canal, para ver se apresentavam algum arranhão.

O cão e o homem chegaram ao pequeno lago situado na extremidade do canal. O homem olhou à sua volta, com ar animado. Tornou a agarrar o cão pela coleira e puxou-o para trás. O animal relutava em abandonar o lugar. Então, o homem feriu a água com o chicote.

O segundo homem estivera esperando à entrada do canal. O primeiro saiu daquele pequeno remanso e sacudiu a cabeça, descendo a corrente, com os cães, que agora se mostravam menos excitados, nadando à frente.

Lentamente, a algazarra da perseguição foi diminuindo e desapareceu.

Por mais cinco minutos nada se mexeu na laguna dos mangues; depois, num dos cantos, entre as raízes, apareceu lentamente para fora d’água um fino periscópio de bambu. O rosto de Bond emergiu logo em seguida, com os cabelos molhados colados à testa, como a cara de um cadáver que boiasse. Em sua mão direita, sob a água, o revólver estava pronto. Bond procurou escutar cuidadosamente. O silêncio era completo, não havia o mínimo ruído. Ou haveria? O que seria aquele suave barulho, como se algo deslizasse entre a água, na corrente principal? Viria alguém, muito serenamente, seguindo na esteira daquela caçada? Bond procurou apalpar à sua volta e tocou delicadamente nos dois corpos que estavam cada um em um de seus flancos, entre as raízes, na orla da laguna. Quando os dois rostos aforaram à superfície, ele colocou o seu dedo indicador sobre os lábios, mas já era tarde. Quarrel tinha tossido e cuspido. Bond fez uma careta e fez um sinal na direção da principal corrente. Todos procuravam escutar. O ruído recomeçou. Alguém estava-se dirigindo para o canal lateral. Os tubos de bambu voltaram para as três bocas e as cabeças tornaram a submergir. Debaixo da água Bond descansou a cabeça na lama, apertou as narinas e os lábios à volta do tubo. Sabia que a laguna já fora examinada uma vez, pois sentira a agitação causada na água pelo cão, que passara nadando! Da primeira vez não tinham sido achados, mas conseguiriam escapar desta? Agora haveria menos possibilidades de que a lama revolta se escoasse para fora da laguna. Se esse batedor visse a mancha mais escura, na água, atiraria ou usaria um punhal? Que armas traria? Bond resolveu não correr riscos. Ao primeiro rumor de movimento, ao seu lado, ele se poria de pé e daria logo ao gatilho, esperando pelo melhor.

Assim ficou ele, submerso, com todos os sentidos atentos. Como era desagradável aquele respirar controlado e insuportáveis as ligeiras mordidelas dos camarões! Por sorte nenhum deles tinha qualquer ferida no corpo, pois do contrário os malditos animalzinhos ter-se-iam atirado contra elas. De qualquer forma, aquela fora uma brilhante idéia da jovem. Sem ela os cães já os teriam alcançado, onde quer que eles se tivessem escondido.

Inesperadamente, Bond encolheu-se. Uma bota de borracha tinha pisado em seu queixo e escorregado. O homem pensaria tratar-se de um galho de árvore? Bond não podia correr aquele risco. Com um só impulso pôs-se de pé, atirando para longe o pedaço de bambu.

Bond teve uma rápida impressão de um gigantesco corpo de pé, quase em cima de si, e duma coronha de rife, em rápido movimento. Levantou o braço esquerdo para proteger a cabeça e recebeu um violento golpe no braço. Ao mesmo tempo, o seu braço direito se esticou para a frente, e, quando o cano tocou no lado direito do peito, sob o mamilo, ele acionou o gatilho.

O coice da arma, quase encostada ao corpo do homem, por pouco não quebrou o pulso de Bond, mas o homem desabou para trás como uma árvore decepada que cai n’água. Antes que o corpo afundasse, Bond ainda pôde perceber-lhe uma grande fenda no flanco. A cabeça, uma cabeça negróide de chinês, veio à superfície, com os olhos revirados para cima e a água a sair de sua boca escancarada e silenciosa. Em seguida a cabeça submergiu novamente e nada mais se pôde ver senão uma lama espumosa e uma mancha vermelha que gradualmente se ia ampliando e lentamente era atraída pela corrente.

Bond se endireitou e voltou-se para o lado. Quarrel e a jovem estavam atrás, em pé, com a água a escorrer-lhes dos corpos. Quarrel tinha um sorriso que ia de orelha a orelha, mas a garota mordia as articulações dos dedos, enquanto seus olhos se escancaravam horrorizados diante da água avermelhada.

Bond disse laconicamente: “Desculpe-me, Honey. Tinha que ser feito. Ele estava bem sobre nós. Venha, vamos indo.” Agarrou-a de qualquer maneira, pelo braço, e arrastou-a para fora da principal corrente, apenas detendo-se quando chegaram a rio aberto, na boca do túnel de mangues.

O cenário estava novamente vazio. Bond olhou para o relógio, e verificou que parara às três horas. Olhou para o sol, já bastante deslocado para o ocidente e concluiu que deveriam ser quatro horas. Quanto ainda teriam que caminhar? Bond inesperadamente sentiu-se cansado. Agora teria de enfrentar a situação. Ainda que o disparo não tivesse sido ouvido — e certamente que ele fora abafado pelo próprio corpo da vítima e pelas árvores — a falta do homem seria sentida quando os outros se reunissem, — se a suposição de Quarrel fosse correta, na embocadura do rio, de onde seriam recolhidos pela lancha. Voltariam eles, subindo o rio, a fim de procurarem o desaparecido? Talvez não. Já estaria muito escuro quando eles tivessem a certeza de que o homem estava realmente desaparecido. O mais certo seria mandarem um grupo de homens pela manhã. Os cães facilmente dariam com o corpo. E o que aconteceria?

A garota puxou-o pela manga e disse com irritação: — Já é tempo de você me dizer o que significa tudo isto! Por que estão todos procurando se matar mutuamente? E quem é você? Não acredito em toda essa história de aves. Ninguém carrega revólveres contra aves.

Bond baixou o olhar, fitando aqueles olhos bem separados e irados. — Desculpe-me, Honey. Receio tê-la arrastado para uma boa encrenca. Eu lhe contarei tudo quando voltarmos à noite para o acampamento. Foi apenas má sorte que você se envolvesse comigo, desta maneira. Tenho uma guerrinha com essa gente. Eles parecem querer matar-me. Agora estou apenas interessado em que todos nós saiamos desta ilha sem que ninguém fique ferido. Já tenho muito do que queria, para da próxima vez voltar pela porta da frente.

— O que você quer dizer? Você é alguma espécie de policial? Está querendo meter esse chinês na cadeia?

— Mais ou menos, — disse Bond, rindo para ela. — Pelo menos você está do lado dos anjos. Agora, diga-me uma coisa. Quanto falta ainda para chegar ao acampamento dos guardas?

— Oh, cerca de uma hora.

— É um lugar bom para nele esconder-se? Eles poderiam achar-nos com facilidade?

— Eles teriam que atravessar o lago ou subir o rio. Tudo estará muito bem se eles não puserem o dragão em nosso encalço. Ele pode muito bem atravessar a água, pois já o vi fazê-lo.

— Bem — disse Bond diplomaticamente — esperemos que ele esteja com a cauda machucada, ou tenha outra coisa qualquer.

A jovem vociferou: — Muito bem, sr. Sabe-Tudo. — E acrescentou irritada: — Espere e verá.

Quarrel deixou o túnel de mangues, agitando ruidosamente a água, tendo na mão o rife do chinês abatido, e dizendo à guisa de quem pede desculpas:

— Não há mal em termos outra arma, chefe. Parece que vamos precisar dela.

Bond apanhou aquela arma. Era uma carabina “Remington”, do exército norte-americano, calibre 300. Não havia dúvida de que aquela gente contava com equipamento apropriado. Bond devolveu a arma a Quarrel, depois de examiná-la.

Quarrel como que fez eco aos seus pensamentos: — Isso é gente astuta, capitão. Aquele homem veio esquadrinhando suavemente, atrás dos outros, a fim de nos surpreender quando deixássemos o esconderijo, depois da passagem dos cães. Esse tal de doutor com certeza é um sujeito muito esperto.

Bond disse pensativamente: — É, ele deve ser um homem incomum. — Depois espantou os pensamentos: — Agora, vamos tocando para a frente. Honey diz que ainda precisamos de uma hora para chegarmos ao acampamento. É melhor irmos pela margem esquerda, de modo a ficarmos ao abrigo da colina. Pelo que já pudemos ver, eles têm lunetas assestadas sobre o rio.

Bond entregou a sua arma a Quarrel, que a guardou na mochila molhada. Puseram-se novamente em marcha, com Quarrel à frente, e Bond e a jovem andando juntos, atrás.

Aproveitavam algumas sombras das árvores e bambus da margem ocidental, mas deviam agora suportar toda a intensidade de um vento crestante. Borrifaram braços e corpos com água, a fim de refrescar as queimaduras. Os olhos de Bond estavam injetados por aquele insuportável revérbero e o seu braço doía intoleràvelmente no ponto em que fora atingido pela coronha. E ele não teria à sua espera o seu jantar de pão embebido, queijo e fiambre. Quanto tempo poderiam dormir? Não dormira muito na véspera, e parece que não iria ter melhor ração de sono. E a garota? Ela nada dormira. Ele e Quarrel teriam que se revezar, em quartos de vigilância. E logo chegaria o dia seguinte, quando procurariam ganhar novamente os mangues e vencer lentamente a distância que os separava de sua canoa, através da extremidade oriental da ilha. As coisas correriam daquela forma, segundo era de esperar. Então, tratariam de se fazerem ao mar na noite seguinte. Bond pensou em como haveria de abrir caminho por entre sólidos mangues, na distância de oito quilômetros. Que perspectiva! Continuou se arrastando para a frente, pensando nas “férias ao sol dos trópicos” de M. Muito gostaria que M tivesse que partilhar com ele aquelas “férias”.

O rio foi-se estreitando até que se reduziu a uma simples corrente entre as moitas de bambu. Depois se ampliava num estuário baixo e pantanoso, além do qual as cinco milhas quadradas de lago raso davam vazão para o outro lado da ilha, perdendo-se num agitado espelho líquido azul-cinza. Mais para além estava a brilhante pista aérea e o reflexo da luz solar sobre um único hangar. A jovem disse-lhe que se mantivesse na direção leste, e eles foram lentamente avançando, protegidos pela orla da mata.

Inesperadamente, Quarrel deteve-se, com o rosto esticado como o focinho de um cão para o terreno pantanoso à sua frente. Dois profundos sulcos tinham sido escavados na lama, com um sulco mais raso no centro. Eram a trilha de algo que tinha descido da colina e atravessado o pântano em direção ao lago.

A jovem disse com indiferença: — Por aqui já passou o dragão.

Quarrel arregalou os olhos para ela.

Bond caminhou lentamente pela trilha. As marcas exteriores eram bastante lisas, trazendo a marca de uma linha curva. Poderiam ter sido causadas por rodas, mas eram enormes, pelo menos com sessenta centímetros de largura. A trilha central tinha a mesma forma, mas com apenas três polegadas de largura, ou seja a largura de um pneumático de automóvel. As trilhas não apresentavam nenhum indício de pegadas e eram completamente frescas. Estendiam-se em linha reta, e os arbustos por elas atravessados tinham sido derrubados e esmagados no chão, como se um tanque de guerra tivesse passado por ali. Bond não podia imaginar que espécie de veículo seria aquele. A jovem tocou-o com o cotovelo e murmurou: — Eu lhe tinha dito. Ele apenas pôde responder pensativamente: — Bom, Honey, se não é o dragão, é algo que nunca vi antes.

Mais adiante, ela puxou-o ansiosamente pela manga. “Veja”, sussurrou, e apontou para a frente, indicando um grande cerrado de árvores, ao lado do qual passavam as trilhas. O cerrado estava sem folhas, enegrecido. Ao centro viam-se os restos dos ninhos de pássaros carbonizados. — Ele respirou sobre as árvores, — disse a garota nervosamente.

Bond aproximou-se das árvores e examinou-as. — Certamente que o fez — admitiu. Por que aquele cerrado, em especial, tinha sido queimado? Era muito estranho aquilo.

As trilhas desciam em direção ao lago e desapareciam na água. Bond teria gostado de segui-las, mas não poderia abandonar a cobertura das árvores. Assim, continuaram a marcha, cada um entregue aos próprios pensamentos.

Lentamente o dia começou a morrer, por trás da colina, e por fim a garota apontou para a frente, através dos arbustos; Bond pôde ver uma comprida restinga internando-se no lago. Estava coberta por densas moitas de arbustos e podiam-se ver, a cem metros da praia, os restos de uma cabana incendiada. Aquele parecia um lugar razoavelmente atraente para se passar a noite, e era bem protegido dos dois lados, pela água.

O vento tinha declinado e a água se apresentava suave e convidativa. Que prazer não seria tirarem as suas imundas camisas para um banho no lago e, depois de horas de patinhação através da lama e do lodo do pântano, poderem descansar naquela areia dura e seca!

O sol brilhou com reflexos amarelecidos e desapareceu por trás da montanha. Ainda era dia na extremidade oriental da ilha, mas a sombra negra do monte avançava vagarosamente sobre o lago e acabaria por expulsar completamente os últimos vestígios do sol. Os sapos começaram a coaxar mais barulhentamente que em Jamaica, até que a noite ficou cheia daquele áspero ruído. Do outro lado do lago um grande sapo macho começou a soar o seu tambor. Aquele estranho som era algo entre um tom-tom e um rosnado de macaco. Enviava mensagens que subitamente se interrompiam e logo silenciaram. Com certeza encontrara o que procurava.

Chegaram à garganta da restinga e seguiram por um estreito caminho, até a clareira que encerrava os escombros da cabana de sapé. As grandes e misteriosas trilhas saíam da água, de ambos os lados, atravessavam a clareira e os cerrados próximos. Muitos dos arbustos estavam queimados ou crestados. Podiam-se ver os restos de um fogão feito de pedaços de coral, e algumas panelas e latas vazias. Examinaram os destroços, e Quarrel desenterrou um par de latas intactas de costeletas de porco e ervilhas marca “Heinz”. A jovem encontrou ainda um saco de dormir muito amarrotado, enquanto Bond achou uma pequena bolsa de couro com cinco notas de um dólar, três libras de Jamaica e algumas moedas de prata. Os dois homens certamente tinham abandonado aquele lugar a toda pressa.

Prosseguiram mais para diante, até uma pequena clareira arenosa. Através dos arbustos podiam ver luzes cintilando sobre a água e provenientes da montanha, talvez a mais de três quilômetros de distância. A leste nada mais havia senão. os suaves reflexos escuros da água sob o céu sombrio.

Bond comentou: — Enquanto não acendermos nada, estaremos bem aqui. A primeira coisa a fazer é tomarmos um bom banho, Honey. Você pode ficar com o resto da restinga, que nós ficaremos com a sua garganta. Dentro de meia hora espero vê-la para o jantar.

A garota riu: — Você virá a rigor?

— Sem dúvida — respondeu Bond — e de calças.

Quarrel observou: — Capitão, enquanto ainda há um pouco de luz, vou abrir essas latas e preparar as coisas para a noite. — Remexeu dentro da mochila. — Aqui estão as suas calças e o seu revólver. O pão talvez não esteja muito bom, mas está apenas molhado. Pode-se comê-lo bem, e amanhã estará seco. O melhor talvez fosse comermos das latas esta noite, guardando o queijo e as costeletas. As latas são pesadas e amanhã teremos que andar muito.

Bond respondeu: — Muito bem, Quarrel. Deixarei o cardápio aos seus cuidados.

Em seguida, apanhou o revólver e as calças úmidas e desceu para a água rasa. A água estava acariciante, mas desagradavelmente quente. Bond escavou punhados de areia, com as mãos, e esfregou o corpo com ela, utilizando-a como sabonete. Depois deixou-se ficar gostosamente em meio àquele silêncio e àquela solidão.

As estrelas começaram a brilhar palidamente, as estrelas que os tinham trazido à ilha na noite passada; as estrelas que os tirariam dali no dia seguinte. Que viagem! Mas pelo menos já tinha dado os seus resultados. Agora tinha provas bastantes, e testemunhas, para ir ter com o governador e conseguir dele um inquérito completo acerca das atividades do Dr. No. Ninguém lança mão de metralhadoras contra pessoas, mesmo contra intrusos. E, da mesma forma, o que seria aquilo do Dr. No, que invadira a propriedade da Sociedade Audubon, aquilo que chegara a destruir essa propriedade e provavelmente matara um de seus empregados? Isto também teria que ser investigado. E o que haveria ele de encontrar quando voltasse pela porta da frente, talvez a bordo de um destróier, e com um destacamento de fuzileiros navais? Qual seria a resposta para o mistério do Dr. No? O que estaria ele escondendo? Por que aquele segredo era tão importante, que seria capaz de matar repetidas vezes, para preservá-lo? E quem era esse Dr. No?

Bond ouviu o barulho de alguém espojando-se na água. Pensou na garota. E quem, afinal, era Honeychile Ri-der? Aquilo pelo menos, pensou ele ao sair da água, era algo que deveria esclarecer antes do amanhecer.

Bond enfiou as suas pegajosas calças, sentou-se na areia e desmontou o revólver. Fê-lo pelo tato, utilizando-se de sua camisa para secar cada peça e cada cartucho. Depois, tornou a montar a arma e pressionou o gatilho, fazendo com que o tambor vazio desse uma volta completa. O som era satisfatório. Seriam precisos alguns dias para que o revólver começasse a enferrujar. Carregou-o e meteu-o no coldre, para dentro do cós da calça. Depois, levantou-se e voltou para a clareira.

A sombra de Honey chegou até ele, e a sua voz se fez ouvir: — Venha; estamos morrendo de fome. Apanhei uma das panelas, limpei-a e pusemos as ervilhas nela. Temos pão também. E eu não sinto escrúpulos de comer a sua ração, porque você me fez trabalhar muito mais do que se eu estivesse sozinha. Agora, estique a mão.

Bond achou graça no tom autoritário que havia em sua voz. Ele apenas podia perceber a sua silhueta, no escuro. Sua cabeça parecia mais aflada. Ele se perguntou como seriam os seus cabelos quando secos e penteados. Como seria ela quando estivesse vestindo roupas limpas naquele lindo corpo dourado? Podia vê-la entrando numa sala ou atravessando um vestíbulo em Beau Desert. Ela seria uma linda e encantadora Patinha Feia. Por que nunca procurara endireitar o nariz? Seria uma operação fácil. Depois disso, ela seria a jovem mais bela de Jamaica.

O seu ombro tocou nele. Bond esticou o braço e descansou a mão aberta no colo da jovem. Então Bond sentiu que ela estava enchendo a sua mão com ervilhas.

Subitamente, Bond aspirou o seu cheiro cálido de animal. Foi uma explosão sensual tão aguda que o seu corpo se uniu ao dela, e, por um momento, os seus olhos se fecharam.

Ela deixou escapar um riso curto, no qual havia timidez, satisfação e ternura. E disse, maternalmente: “Lá”, — e empurrou a mão de Bond.

 

CONTINUA

IX - POR UM TRIZ


Dez minutos mais tarde a baía estava vazia e imaculada. Pequenas ondas encrespavam-se preguiçosamente através do espelho das águas, no interior dos recifes e morriam exaustas na areia escura onde as conchas lilás brilhavam como unhas pintadas. O monte de conchas tinha desaparecido e não havia mais vestígios de pegadas. Quarrel cortara galhos de mangues e caminhava de costas procurando apagar as pegadas com aqueles galhos. Onde tinha varrido, a areia apresentava uma limpidez diferente mas não tão diferente a ponto de ser notada de fora do recife. A canoa da jovem tinha sido arrastada para dentro do mar, entre as rochas, e ali ficou coberta com algas e gravetos.

Quarrel tinha voltado ao promontório. Bond e a jovem estavam juntos, sob tufos de folhas, onde Bond dormira, e olhavam silenciosamente para o contorno do promontório, à volta do qual surgira a embarcação.

A lancha estava talvez a uns quinhentos metros de distância. A julgar pelo lento ritmo do motor, Bond concluiu que cada acidente da costa estava sendo cuidadosamente inspecionado para descobrir indícios da presença de estranhos. De qualquer forma, aquilo parecia uma possante embarcação. Talvez uma grande lancha de cabina. Que tripulação teria? Quem estaria no comando? O Dr. No? Improvável. Ele certamente não se daria àquele trabalho de polícia.

Do lado do ocidente apareceu um bando de corvos marinhos, voando baixo sobre o mar, além dos recifes. Bond observou-os. Eram o primeiro indício para ele encontrado daquela colônia de aves, na outra extremidade da ilha. Aquele bando, segundo Pleydell-Smith, seriam batedores à procura do brilho prateado das enchovas, próximas à superfície. Enquanto observava, as aves começaram a dar mergulhos rasos, ferindo o mar superficialmente e levantando respingos de água. Quase que de uma só vez, apareceu outra coluna de aves, vinda do ocidente, e logo outra, e mais outra, fundindo-se todas numa espessa e escura nuvem. Durante minutos, elas sombrearam o céu, e depois atiraram-se à água, cobrindo vários alqueires, piando e lutando, e mergulhando as cabeças no mar, fazendo uma rica colheita naquele sólido campo de anchovas, como piranhas que se banqueteassem num cavalo afogado.

Bond sentiu um suave toque da jovem, que fez um movimento com a cabeça, dizendo:

— As galinhas do chinês estão comendo milho.

Bond observou-lhe o rosto belo e feliz. Ela parecia bastante despreocupada com a chegada daqueles homens. Para ela aquilo era apenas o jogo de esconde-esconde que já tinha praticado antes.

A vibração metálica dos motores diesel estava-se tornando mais forte. A lancha deveria estar justamente por trás do promontório. Bond deu mais uma olhada à volta da tranqüila baía, e depois fixou os olhos através da folhagem e do mato, para os lados dos recifes.

A ponta de uma proa branca apareceu, seguida de uns dez metros de tombadilho, e logo o parabrisas de vidro, uma cabina baixa e uma antena de rádio, e o vulto de um homem à volta do leme. Finalmente, o comprido e achatado fosso da popa, e uma flâmula vermelha pendente, Seria uma lancha-torpedeira convertida, um excedente de guerra do governo britânico?

Os olhos de Bond fixaram-se nos dois homens que estavam em pé na popa. Eram negros de pele pálida, envergando roupas caqui de marinheiro, com largos cinturões e chapéus de palha com longas palas. Estavam um ao lado do outro, equilibrando-se sob a lenta elevação da massa líquida. Um deles segurava um alto-falante e o outro manejava uma metralhadora instalada num tripé. Bond teve a impressão de que era uma metralhadora “Spandau”.

O homem com o alto-falante deixou que este caísse, e ele ficou oscilando numa tira, que lhe dava volta ao pescoço. Apanhou um binóculo e começou a vasculhar metro a metro da praia. Indistintos comentários chegavam aos ouvidos de Bond, por entre o ruído dos motores.

Bond percebeu que os olhos do binóculo começavam pelo promontório e depois percorriam a areia. As lentes detiveram-se entre as rochas e continuaram o seu passeio. Depois, voltaram. O murmúrio do comentário elevou-se ganhando animação. O homem passou o binóculo para o metralhador, que observou rapidamente, devolvendo-o logo ao dono. O observador gritou alguma coisa para o timoneiro. A lancha começou a se aproximar da praia. Agora estavam justamente diante dos recifes, em frente a Bond e à jovem. O observador ergueu novamente o binóculo, apontando-o para as rochas onde se encontrava escondida a canoa da jovem. Novamente a fala excitada chegou aos ouvidos de Bond, por sobre as águas. Mais uma vez o binóculo foi passado ao metralhador, que levou algum tempo observando. Dessa vez, ele fez um sinal de assentimento com a cabeça.

Bond pensou: agora vamos ter coisa; esses homens conhecem o ofício. Em seguida, viu que o metralhador se ocupava em carregar a arma. O duplo estalido metálico chegou aos seus ouvidos, por entre o matraquear do motor.

O observador ergueu o alto-falante e ligou-o. O eco produzido pelo amplificador chegou até Bond, conduzido pela superfície da água. A voz do homem ribombou pela baía:

— Alô, pessoal! Saiam daí e não serão feridos. Era uma voz educada, com sotaque americano.

— Agora, pessoal — trovejou a voz — depressa! Nós vimos quando vocês desembarcaram. Já descobrimos o bote sob os paus. Não somos tolos e não estamos brincando. Saiam daí com os braços levantados e não lhes acontecerá nada!

Não se ouviu nenhuma resposta. Apenas as ondas quebravam docemente na praia. Bond podia ouvir a respiração da jovem. Os guinchos agudos dos corvos marinhos chegavam-lhes de uma milha de distância, sobre o mar. O cano de escapamento dos motores diesel produzia um ruído desigual e gorgulhante, quando o intumescimento do mar cobria o orifício de descarga.

Silenciosamente Bond tocou o braço da jovem e disse-lhe:

— Fique mais perto. Alvo menor.

Ele sentiu o calor da jovem mais próximo de seu corpo, e o rosto de Honey raspou pelo seu braço. Bond sussurrou:

— Enterre-se na areia. Encolha-se. Cada polegada a menos ajudará.

Ele começou a se encolher cuidadosamente na depressão que tinham escavado para se abrigarem, e sentiu que ela fazia o mesmo.

O homem estava erguendo o seu alto-falante. A voz ribombou novamente.

— Muito bem, pessoal! Vocês irão ver que isso aqui não é para brincadeira. — Depois, levantou o polegar. O metralhador experimentou a arma fazendo alguns disparos para a copa dos mangues situados por trás da praia. Bond ouviu o rápido matraquear, tão seu conhecido, e do qual se despedira pela última vez diante das linhas alemãs, nas Ardenas. As balas produziam o velho som de pombos assustados, assobiando sobre sua cabeça. Depois fez-se silêncio.

À distância, Bond via a nuvem negra de corvos marinhos elevar-se, começando a fazer os seus amplos círculos. Seus olhos voltaram para a embarcação. O metralhador estava apalpando o cano da metralhadora, para ver se já estava aquecido. Os dois homens trocaram algumas palavras. O observador apanhou novamente o porta-voz.

— Está bem, pessoal. Vocês foram avisados.

Bond viu o cano da “Spandau” levantar-se e abaixar-se. O homem estava querendo começar com a canoa, entre as rochas. Bond sussurrou para a jovem: — Muito bem, Honey. Agüente firme. Mantenha-se abaixada. Não vai durar muito.

Ele sentiu que a mão da jovem apertava o seu braço, e pensou: “Coitada; ela está metida nisso por minha causa.” Ele inclinou-se para a direita a fim de cobrir a cabeça de Honey e afundou o rosto na areia.

Dessa vez o matraquear foi terrível. Balas ricocheteavam no flanco do promontório. Fragmentos de pedra saltavam para todos os lados, sobre a praia. Outras balas ricocheteavam e iam perder-se dentro da mata. Simultaneamente com todo aquele barulho ouvia-se o martelar contínuo da metralhadora.

Houve uma pausa. Nova carga, pensou Bond. Agora será para nós. Pôde sentir a jovem agarrando-se a ele. Seu corpo tremia todo, encostado ao seu flanco. Bond apanhou uma arma e apertou-a de encontro ao corpo. O matraquear da metralhadora recomeçou. As balas vinham zunindo, da linha de maré, em direção a eles. Ouviu-se uma sucessão de rápidas batidas. O tufo, acima deles, estava sendo reduzido a pedaços. “Zuip Zuip Zuip”. Era como se um chicote de aço estivesse retalhando os arbustos. Pedaços de lenha caíam sobre eles, cobrindo-os lentamente. Bond respirou um ar mais fresco, o que significava que eles agora estavam ao ar-livre. Estariam eles escondidos pelas folhas o pelos destroços? As balas continuaram deslocando-se ao longo da linha da costa. Em menos de um minuto a metralhadora parou.

O silêncio tornou a reinar. A jovem lamuriou-se docemente. Bond fê-la calar-se e apertou-a mais forte.

O alto-falante apregoou:

— Está bem, pessoal. Se vocês ainda têm ouvidos, saibam que voltaremos logo para recolher-lhes os pedaços. Vamos trazer os cães. Até à vista, por enquanto.

O ritmo do motor se acelerou, e através das folhas Bond pôde ver a popa da lancha afundar-se mais na água, enquanto a embarcação rumava rapidamente para oeste. Dentro de minutos já não se ouvia mais nada.

Bond ergueu a cabeça cautelosamente. A baía estava serena, e tudo como antes, exceto o cheiro de cordite e as rochas quebradas.

Bond fez a jovem levantar-se. Havia marcas de lágrimas em seu rosto. Ela olhou-o aterrada, e disse:

— Isso foi terrível. Por que eles o fizeram? Podíamos ter sido mortos.

Bond pensou naquela jovem que sempre abrira caminho, na vida, por si mesma, mas apenas contra a natureza. Conhecia o mundo dos animais, dos insetos e dos peixes, e tirava todo o partido desse conhecimento. Mas aquele era um pequeno mundo, limitado pelo sol, pela lua e pelas estações. Ela não conhecia o grande mundo das salas cheias de fumo, dos corredores de negócios, dos corredores e antecâmaras governamentais, dos cautelosos encontros em bancos de praças — numa palavra: ela nada conhecia da luta pelo poder e pelo dinheiro, travada por homens poderosos.

Bond disse:

— É isso mesmo, Honey, eles não passam de uma quadrilha de bandidos assustados conosco. Podemos enfrentá-los.

Bond colocou o braço à volta de seus ombros e continuou:

— E você esteve maravilhosa, brava como ninguém. Agora, vamos ao encontro de Quarrel para traçar os nossos planos. De qualquer forma, já é tempo de comermos alguma coisa. O que é que você costuma comer nessas expedições?

Deram meia-volta e seguiram pela praia em direção ao promontório. Depois de um minuto, ela disse com voz bem controlada:

— Oh, há uma porção de coisas por aí que se podem comer. Ouriços do mar principalmente, mas também bananas silvestres e outras coisas. Eu como e durmo durante dois dias, antes de vir aqui. Não preciso de nada.

Bond apertou-a mais fortemente, mas deixou cair o braço, assim que Quarrel apareceu ao longe. Quarrel vinha saltando sobre as rochas, e, em determinado momento, parou, olhando para baixo. Bond e Honey se aproximaram dele. A canoa da jovem estava cortada ao meio pelas balas. Honey deixou escapar um grito, olhando desesperadamente para Bond:

— A minha canoa! Como poderei voltar?

— Não se preocupe, senhorita, — disse Quarrel, que sentia a perda de uma canoa mais do que Bond. Imaginou ainda que aquela embarcação representasse quase todo o capital da jovem. — O capitão lhe dará outra. E a senhorita voltará conosco. Temos um magnífico bote, entre os mangues, e ele não foi destruído. Já estive lá espiando.

Quarrel olhou para Bond. Agora, o seu rosto denotava preocupação.

— Mas, capitão, o senhor está vendo o que eu disse dessa gente. Eles são duros e não estão brincando. Esses cães que eles vão trazer são policiais — Pinschers, como eles os chamam. Bastardos. Meus amigos disseram-me que são uma matilha de vinte ou mais. É melhor resolvermos logo.

— Está bem, Quarrel. Mas antes de mais nada precisamos comer alguma coisa. — o diabo que me carregue se eu vou ser aterrorizado e expulso da ilha antes de dar uma olhada nisso. Levaremos Honey conosco. — E, voltando-se para a jovem:

— Está bem, Honey? Nada lhe acontecerá. Depois voltaremos juntos.

A jovem olhou-o em dúvida:

— Acho que não há alternativa. Quero dizer. Gostaria de ir com vocês, se não atrapalhasse. Francamente, não quero comer nada. Mas você me levará de volta, assim que puder? Não quero ver mais aquela gente. Durante quanto tempo vocês vão ficar olhando para essas aves?

Bond respondeu evasivamente:

— Pouco tempo. Eu terei apenas que ver o que lhes aconteceu e porquê. Depois, partiremos.

Olhou para o relógio e anunciou:

— Agora são doze horas. Você nos esperará aqui. Tome um banho ou faça o que quiser. Não ande por aí deixando pegadas. Vamos, Quarrel, é melhor escondermos aquele bote.

Só à uma hora eles estavam prontos. Bond e Quarrel encheram a canoa com pedras e areia, até que ela desapareceu sob a água, entre os mangues. Depois, apagaram as suas pegadas. As balas tinham deixado tantos gravetos na orla da praia, que eles podiam caminhar pisando em folhas e ramos quebrados. Comeram parte de suas rações — os homens com avidez, mas Honey com relutância — e depois, passando sobre as rochas, foram ter à lagoa, próxima da costa. Em seguida foram vadeando aquelas águas, em direção à foz do rio, trezentos metros praia abaixo.

Fazia muito calor. Um vento áspero e quente começou a soprar do nordeste. Quarrel informou que aquele vento soprava diariamente, durante todo o ano, e era vital para a guaneira, pois secava o guano. O revérbero do mar e das brilhantes folhas verdes dos mangues cegava-os. Bond deu-se por feliz, já que tivera o cuidado de acostumar sua pele ao sol.

Na foz do rio encontraram um banco de areia e um extenso pântano, profundo e de águas estagnadas. Os dois homens podiam molhar-se ou tirar as roupas. Bond disse à jovem:

— Honey, não podemos ter cerimônia, nesta situação. Vamos ficar apenas com as camisas por causa do sol. Fique apenas com o que for sensato e caminhe atrás de nós.

Sem esperar pela resposta da jovem, os dois homens tiraram as calças. Quarrel enrolou-as e guardou-as na sacola, juntamente com as provisões e o revólver de Bond. Depois começaram a vadear a lagoa, com Quarrel na frente, logo seguido de Bond, e, finalmente a jovem. A água chegou até a cintura de Bond. Um grande peixe prateado deu um salto perto deles e depois caiu ruidosamente na água. Viram-se pequeninas setas riscarem a superfície, quando peixes menores se afastaram precipitadamente.

A lagoa convergia para uma estreita garganta, por sobre a qual as copas dos mangues se tocavam. Durante algum tempo eles vadearam através de um túnel fresco, e depois o rio se alargou num canal profundo, de águas morosas, que serpeava para a frente, entre as gigantescas raízes de sustentação dos mangues. O fundo era lamacento, e a cada passo os pés se enterravam algumas polegadas no lodo. Pequenos peixes ou camarões se encolhiam ou fugiam de baixo de seus pés, e de quando em quando eles tinham que parar para se desembaraçar das sanguessugas, antes que elas se agarrassem firmemente. A não ser isso, aquela caminhada era fácil, sob o frescor das arvores, e, pelo menos para Bond, era uma bênção estar ao abrigo do sol.

Em breve, à medida que se iam afastando do mar, começaram a sentir um cheiro de ovo podre, o cheiro de hidrogênio sulfurado do gás dos pântanos. Os mosquitos começaram a assaltá-los e pareciam gostar do corpo de Bond. Quarrel disse-lhe que mergulhasse na água do rio, pois os mosquitos gostavam de carne salgada. Bond tirou a camisa e fez o que Quarrel lhe aconselhara. Depois disso sentiu-se melhor e o seu olfato chegou mesmo a se acostumar com aquele repugnante cheiro, a não ser quando os pés de Quarrel desfaziam algum bolsão de gás, no fundo da lama, e uma gigantesca bolha atravessava a água para arrebentar na superfície sob as suas narinas.

Os mangues começaram a se tornar mais escassos e mais esparsos, enquanto o rio se ia alargando aos poucos. Ao mesmo tempo, a água tornava-se mais rasa e o fundo mais firme. Logo chegaram a uma volta e saíram para céu aberto, Honey disse:

— É melhor tomarmos cuidado, agora. Eles poderão ver-nos com muita facilidade. Isso vai assim durante uma milha. Depois o rio torna a se estreitar até o lago. E depois se poderá ver a restinga onde os tratadores das aves viviam.

O grupo deteve-se à sombra do túnel de mangues e olhou para fora. O rio serpeava perigosamente, afastando-se deles, em direção ao centro da ilha. As suas barrancas, bordadas de bambus de pequeno porte e de vegetação rala, dar-lhes-íam cobertura reduzida. Partindo de sua margem ocidental, o terreno elevava-se aos poucos, e logo abruptamente até o monte, situado a três quilômetros de distância, que era a guaneira. Na base daquela montanha, viam-se várias cabanas esparsas. Um ziguezague prateado galgava o flanco da colina, até as tendas — trilhos “Decauville”, pensou Bond, destinados a levarem o guano para o moinho e separa-dor. O cume do monte era branco, como se estivesse coberto de neve. De sua parte mais elevada desprendia-se como que uma bandeira de dó de guano. Bond podia ver os pontos negros que eram os corvos marinhos, sobre o fundo branco. Aquelas aves estavam levantando vôo e pousando como abelhas numa colmeia.

Bond deixou-se ficar de pé e contemplou o brilho distante daquela montanha de excrementos de aves. Então aquilo era o reino do Dr. No! Bond pensou que jamais vira um cenário tão escondido e distante, em toda a sua vida.

Examinou o terreno entre o rio e a montanha. Parecia ser principalmente formado com aquela matéria cinzenta de corais mortos. Não havia dúvida de que uma estrada ou trilha corria da falda da montanha até ao lago central e aos pântanos. Bond notou ainda que toda a vegetação se curvava para oeste, e imaginou viver durante todo um ano com aquele vento escaldante castigando a ilha, sem falar do cheiro do guano e do gás dos pântanos. Nenhuma colônia penal poderia encontrar pior localização do que aquela.

Bond olhou para leste, onde os mangues, na área dos charcos, pareciam oferecer mais hospitalidade. Os três puseram-se a caminhar sobre um sólido tapete verde de vegetação. Sobre suas cabeças, aves revoluteavam agitadas, para depois se, acalmarem, e logo tornarem a agitar-se. Seus pios eram carregados pelo vento crestante.

A voz de Quarrel interrompeu os pensamentos de Bond:

— Eles vêm vindo, capitão!

Bond seguiu o olhar de Quarrel. Um grande caminhão descia celeremente das tendas, com uma nuvem de pó levantando-se das rodas. Bond acompanhou-o durante dez minutos, até que o veículo desapareceu entre os mangues, na margem do rio. Bond pôs-se a escutar e ouviu latidos de cães, que eram trazidos pelo vento.

Quarrel comentou:

— Eles vão descer pelo rio, capitão. Sabem que não nos podemos mover, a não ser rio acima, se não estivermos mortos. Certamente que descerão pelo rio, até a praia, e farão um reconhecimento dos destroços. Depois, com toda a certeza, a lancha virá com um pequeno bote e recolherá os homens e os cães. Pelo menos, isso é o que eu faria no lugar deles.

Honey disse: — Isso é, de fato, o que eles fazem quando me procuram. É isso mesmo. Basta que cortemos um pedaço de bambu, e, quando eles estiverem perto, mergulhemos na água, procurando respirar através do bambu, até que eles se afastem.

Bond sorriu para Quarrel, e disse: — Suponhamos que você corte os bambus, enquanto eu procuro um bom esconderijo entre os mangues.

Quarrel aquiesceu hesitante e começou a subir contra a corrente, em direção ao bambuzal, enquanto Bond se encaminhava para o túnel formado pelos mangues.

Bond evitara olhar para a jovem, mas esta disse-lhe com impaciência:

— Não precisa ter tanto cuidado em não olhar para mim. Não adianta se preocupar com tais coisas, numa hora dessas. Você mesmo o disse, ainda há pouco.

Bond virou-se e olhou para a jovem. Sua camisa esfrangalhada descia até a linha d’água. Podia-se ainda ter um vislumbre de pálidas coxas, serpeando sob a superfície. O lindo rosto sorriu para ele. No meio daqueles mangues, o seu nariz quebrado parecia harmonizar-se com o ambiente, pela sua animalidade.

Bond fitou-a descansadamente e ela compreendeu. Depois, ele deu-lhe as costas e desceu pela correnteza, seguido por ela. Logo encontrou o que procurava, isto é, uma fenda naquela parede formada pelas raízes dos mangues. Bond recomendou: — Não quebre nenhum galho. — Depois, baixou a cabeça e meteu-se por aquela brecha. O canal avançava numa distância de dez metros. A lama sob seus pés tornou-se mais mole e espessa. Chegou a uma sólida e intransponível parede de raízes. Aquela água escura fluía vagarosamente através de uma ampla e tranqüila lagoa. Bond deteve-se. A jovem se aproximou dele.

— Isto é mesmo uma brincadeira de esconde-esconde — disse ela, trêmula.

— É verdade — aquiesceu Bond distraidamente, enquanto pensava em seu revólver. Com efeito, ele preocupava-se em saber com que eficiência a arma operaria depois de um banho no rio — quantos cães e homens ele poderia eliminar, se fossem descobertos. Sentiu um estremecimento de inquietação. Tinha sido uma falta de sorte ter encontrado aquela jovem. Em combate, queira-se ou não, uma mulher representa sempre um coração a mais. O inimigo tem dois alvos enquanto apenas oferece um.

Bond lembrou-se de sua sede. Apanhou na concha da mão um pouco de água e bebeu-a. Aquela água era salobra e tinha gosto de terra. Mas servia. Bond bebeu um pouco mais. A jovem agitou a mão e deteve-o, dizendo:

— Não beba demais. Lave a boca e cuspa. Você pode apanhar febre.

Quarrel assobiou de algum ponto situado na corrente principal. Bond respondeu e foi em direção ao amigo. Depois, voltaram juntos, internando-se no canal. Quarrel borrifou as raízes de mangues com água, nos pontos em que os seus corpos talvez as tivessem raspado. “Para tirar o nosso cheiro”, explicou, laconicamente. Em seguida mostrou o seu feixe de bambus e começou a cortá-los e prepará-los. Enquanto isso, Bond se ocupava com seu revólver e a munição. Os três ficaram imóveis, no meio daquele pântano, de modo a não levantarem mais lama.

A luz do sol filtrava-se através do espesso teto de folhas, os camarões agitavam-se sob os pés daqueles três fugitivos. Gradativamente foi-se avolumando uma insuportável tensão, naquele silêncio escaldante e angustioso.

Foi quase um alívio ouvir-se o ladrar dos cães.


X - O RASTRO DO DRAGÃO


O grupo de investigação descia rapidamente pelo rio. Os dois homens, de calções de banho e altas botas impermeáveis, tinham que correr para acompanhar os cães.

Eram grandes negros chineses, que traziam coldres sustentados ao ombro por meio de talabartes cruzados diante dos peitos suados. De quando em quando trocavam gritos que em geral não passavam de imprecações. À frente deles a matilha de cães Dobermann nadava e debatia-se n’água, latindo excitadamente. Tinham farejado uma pista e procuravam segui-la nervosamente, com as orelhas eretas sobre as cabeças afladas.

— Talvez um maldito crocodilo, — gritou o chefe elevando a voz sobre a algazarra. Empunhava um chicote que de vez em quando fazia estalar no campo de caça.

Os outros homens se encaminhavam para ele. O chefe gritou excitadamente: “Aposto que é o gringo inglês! Tenho certeza de que ele está entre os mangues. Cuidado para que o gringo não nos faça cair numa emboscada.” O homem tirou o revólver do coldre e colocou-o sob o sovaco, sem tirar a mão da coronha.

O grupo agora estava deixando a parte do rio, sob céu aberto, e entrando no túnel formado pelos mangues. O primeiro homem tinha um apito, que se projetava de seu largo rosto como um toco de charuto. Fez soar um agudo silvo. Quando os cães avançaram, ele se deixou ficar com o seu chicote junto do chefe. Os animais continuavam farejando, lamuriando-se porque a corrente os obrigava a desobedecer às ordens recebidas. Os dois homens sacaram os revólveres e vadearam lentamente o rio, na mesma direção da corrente, por entre os caules tortuosos dos mangues.

O homem que ia na frente chegou ao estreito canal que Bond tinha encontrado, agarrou um dos cães pela co-leira e lançou-o ao canal. O animal resfolegou ansiosamente e debateu-se para a frente. Os olhos do homem percorreram as raízes dos mangues, de ambos os lados do canal, para ver se apresentavam algum arranhão.

O cão e o homem chegaram ao pequeno lago situado na extremidade do canal. O homem olhou à sua volta, com ar animado. Tornou a agarrar o cão pela coleira e puxou-o para trás. O animal relutava em abandonar o lugar. Então, o homem feriu a água com o chicote.

O segundo homem estivera esperando à entrada do canal. O primeiro saiu daquele pequeno remanso e sacudiu a cabeça, descendo a corrente, com os cães, que agora se mostravam menos excitados, nadando à frente.

Lentamente, a algazarra da perseguição foi diminuindo e desapareceu.

Por mais cinco minutos nada se mexeu na laguna dos mangues; depois, num dos cantos, entre as raízes, apareceu lentamente para fora d’água um fino periscópio de bambu. O rosto de Bond emergiu logo em seguida, com os cabelos molhados colados à testa, como a cara de um cadáver que boiasse. Em sua mão direita, sob a água, o revólver estava pronto. Bond procurou escutar cuidadosamente. O silêncio era completo, não havia o mínimo ruído. Ou haveria? O que seria aquele suave barulho, como se algo deslizasse entre a água, na corrente principal? Viria alguém, muito serenamente, seguindo na esteira daquela caçada? Bond procurou apalpar à sua volta e tocou delicadamente nos dois corpos que estavam cada um em um de seus flancos, entre as raízes, na orla da laguna. Quando os dois rostos aforaram à superfície, ele colocou o seu dedo indicador sobre os lábios, mas já era tarde. Quarrel tinha tossido e cuspido. Bond fez uma careta e fez um sinal na direção da principal corrente. Todos procuravam escutar. O ruído recomeçou. Alguém estava-se dirigindo para o canal lateral. Os tubos de bambu voltaram para as três bocas e as cabeças tornaram a submergir. Debaixo da água Bond descansou a cabeça na lama, apertou as narinas e os lábios à volta do tubo. Sabia que a laguna já fora examinada uma vez, pois sentira a agitação causada na água pelo cão, que passara nadando! Da primeira vez não tinham sido achados, mas conseguiriam escapar desta? Agora haveria menos possibilidades de que a lama revolta se escoasse para fora da laguna. Se esse batedor visse a mancha mais escura, na água, atiraria ou usaria um punhal? Que armas traria? Bond resolveu não correr riscos. Ao primeiro rumor de movimento, ao seu lado, ele se poria de pé e daria logo ao gatilho, esperando pelo melhor.

Assim ficou ele, submerso, com todos os sentidos atentos. Como era desagradável aquele respirar controlado e insuportáveis as ligeiras mordidelas dos camarões! Por sorte nenhum deles tinha qualquer ferida no corpo, pois do contrário os malditos animalzinhos ter-se-iam atirado contra elas. De qualquer forma, aquela fora uma brilhante idéia da jovem. Sem ela os cães já os teriam alcançado, onde quer que eles se tivessem escondido.

Inesperadamente, Bond encolheu-se. Uma bota de borracha tinha pisado em seu queixo e escorregado. O homem pensaria tratar-se de um galho de árvore? Bond não podia correr aquele risco. Com um só impulso pôs-se de pé, atirando para longe o pedaço de bambu.

Bond teve uma rápida impressão de um gigantesco corpo de pé, quase em cima de si, e duma coronha de rife, em rápido movimento. Levantou o braço esquerdo para proteger a cabeça e recebeu um violento golpe no braço. Ao mesmo tempo, o seu braço direito se esticou para a frente, e, quando o cano tocou no lado direito do peito, sob o mamilo, ele acionou o gatilho.

O coice da arma, quase encostada ao corpo do homem, por pouco não quebrou o pulso de Bond, mas o homem desabou para trás como uma árvore decepada que cai n’água. Antes que o corpo afundasse, Bond ainda pôde perceber-lhe uma grande fenda no flanco. A cabeça, uma cabeça negróide de chinês, veio à superfície, com os olhos revirados para cima e a água a sair de sua boca escancarada e silenciosa. Em seguida a cabeça submergiu novamente e nada mais se pôde ver senão uma lama espumosa e uma mancha vermelha que gradualmente se ia ampliando e lentamente era atraída pela corrente.

Bond se endireitou e voltou-se para o lado. Quarrel e a jovem estavam atrás, em pé, com a água a escorrer-lhes dos corpos. Quarrel tinha um sorriso que ia de orelha a orelha, mas a garota mordia as articulações dos dedos, enquanto seus olhos se escancaravam horrorizados diante da água avermelhada.

Bond disse laconicamente: “Desculpe-me, Honey. Tinha que ser feito. Ele estava bem sobre nós. Venha, vamos indo.” Agarrou-a de qualquer maneira, pelo braço, e arrastou-a para fora da principal corrente, apenas detendo-se quando chegaram a rio aberto, na boca do túnel de mangues.

O cenário estava novamente vazio. Bond olhou para o relógio, e verificou que parara às três horas. Olhou para o sol, já bastante deslocado para o ocidente e concluiu que deveriam ser quatro horas. Quanto ainda teriam que caminhar? Bond inesperadamente sentiu-se cansado. Agora teria de enfrentar a situação. Ainda que o disparo não tivesse sido ouvido — e certamente que ele fora abafado pelo próprio corpo da vítima e pelas árvores — a falta do homem seria sentida quando os outros se reunissem, — se a suposição de Quarrel fosse correta, na embocadura do rio, de onde seriam recolhidos pela lancha. Voltariam eles, subindo o rio, a fim de procurarem o desaparecido? Talvez não. Já estaria muito escuro quando eles tivessem a certeza de que o homem estava realmente desaparecido. O mais certo seria mandarem um grupo de homens pela manhã. Os cães facilmente dariam com o corpo. E o que aconteceria?

A garota puxou-o pela manga e disse com irritação: — Já é tempo de você me dizer o que significa tudo isto! Por que estão todos procurando se matar mutuamente? E quem é você? Não acredito em toda essa história de aves. Ninguém carrega revólveres contra aves.

Bond baixou o olhar, fitando aqueles olhos bem separados e irados. — Desculpe-me, Honey. Receio tê-la arrastado para uma boa encrenca. Eu lhe contarei tudo quando voltarmos à noite para o acampamento. Foi apenas má sorte que você se envolvesse comigo, desta maneira. Tenho uma guerrinha com essa gente. Eles parecem querer matar-me. Agora estou apenas interessado em que todos nós saiamos desta ilha sem que ninguém fique ferido. Já tenho muito do que queria, para da próxima vez voltar pela porta da frente.

— O que você quer dizer? Você é alguma espécie de policial? Está querendo meter esse chinês na cadeia?

— Mais ou menos, — disse Bond, rindo para ela. — Pelo menos você está do lado dos anjos. Agora, diga-me uma coisa. Quanto falta ainda para chegar ao acampamento dos guardas?

— Oh, cerca de uma hora.

— É um lugar bom para nele esconder-se? Eles poderiam achar-nos com facilidade?

— Eles teriam que atravessar o lago ou subir o rio. Tudo estará muito bem se eles não puserem o dragão em nosso encalço. Ele pode muito bem atravessar a água, pois já o vi fazê-lo.

— Bem — disse Bond diplomaticamente — esperemos que ele esteja com a cauda machucada, ou tenha outra coisa qualquer.

A jovem vociferou: — Muito bem, sr. Sabe-Tudo. — E acrescentou irritada: — Espere e verá.

Quarrel deixou o túnel de mangues, agitando ruidosamente a água, tendo na mão o rife do chinês abatido, e dizendo à guisa de quem pede desculpas:

— Não há mal em termos outra arma, chefe. Parece que vamos precisar dela.

Bond apanhou aquela arma. Era uma carabina “Remington”, do exército norte-americano, calibre 300. Não havia dúvida de que aquela gente contava com equipamento apropriado. Bond devolveu a arma a Quarrel, depois de examiná-la.

Quarrel como que fez eco aos seus pensamentos: — Isso é gente astuta, capitão. Aquele homem veio esquadrinhando suavemente, atrás dos outros, a fim de nos surpreender quando deixássemos o esconderijo, depois da passagem dos cães. Esse tal de doutor com certeza é um sujeito muito esperto.

Bond disse pensativamente: — É, ele deve ser um homem incomum. — Depois espantou os pensamentos: — Agora, vamos tocando para a frente. Honey diz que ainda precisamos de uma hora para chegarmos ao acampamento. É melhor irmos pela margem esquerda, de modo a ficarmos ao abrigo da colina. Pelo que já pudemos ver, eles têm lunetas assestadas sobre o rio.

Bond entregou a sua arma a Quarrel, que a guardou na mochila molhada. Puseram-se novamente em marcha, com Quarrel à frente, e Bond e a jovem andando juntos, atrás.

Aproveitavam algumas sombras das árvores e bambus da margem ocidental, mas deviam agora suportar toda a intensidade de um vento crestante. Borrifaram braços e corpos com água, a fim de refrescar as queimaduras. Os olhos de Bond estavam injetados por aquele insuportável revérbero e o seu braço doía intoleràvelmente no ponto em que fora atingido pela coronha. E ele não teria à sua espera o seu jantar de pão embebido, queijo e fiambre. Quanto tempo poderiam dormir? Não dormira muito na véspera, e parece que não iria ter melhor ração de sono. E a garota? Ela nada dormira. Ele e Quarrel teriam que se revezar, em quartos de vigilância. E logo chegaria o dia seguinte, quando procurariam ganhar novamente os mangues e vencer lentamente a distância que os separava de sua canoa, através da extremidade oriental da ilha. As coisas correriam daquela forma, segundo era de esperar. Então, tratariam de se fazerem ao mar na noite seguinte. Bond pensou em como haveria de abrir caminho por entre sólidos mangues, na distância de oito quilômetros. Que perspectiva! Continuou se arrastando para a frente, pensando nas “férias ao sol dos trópicos” de M. Muito gostaria que M tivesse que partilhar com ele aquelas “férias”.

O rio foi-se estreitando até que se reduziu a uma simples corrente entre as moitas de bambu. Depois se ampliava num estuário baixo e pantanoso, além do qual as cinco milhas quadradas de lago raso davam vazão para o outro lado da ilha, perdendo-se num agitado espelho líquido azul-cinza. Mais para além estava a brilhante pista aérea e o reflexo da luz solar sobre um único hangar. A jovem disse-lhe que se mantivesse na direção leste, e eles foram lentamente avançando, protegidos pela orla da mata.

Inesperadamente, Quarrel deteve-se, com o rosto esticado como o focinho de um cão para o terreno pantanoso à sua frente. Dois profundos sulcos tinham sido escavados na lama, com um sulco mais raso no centro. Eram a trilha de algo que tinha descido da colina e atravessado o pântano em direção ao lago.

A jovem disse com indiferença: — Por aqui já passou o dragão.

Quarrel arregalou os olhos para ela.

Bond caminhou lentamente pela trilha. As marcas exteriores eram bastante lisas, trazendo a marca de uma linha curva. Poderiam ter sido causadas por rodas, mas eram enormes, pelo menos com sessenta centímetros de largura. A trilha central tinha a mesma forma, mas com apenas três polegadas de largura, ou seja a largura de um pneumático de automóvel. As trilhas não apresentavam nenhum indício de pegadas e eram completamente frescas. Estendiam-se em linha reta, e os arbustos por elas atravessados tinham sido derrubados e esmagados no chão, como se um tanque de guerra tivesse passado por ali. Bond não podia imaginar que espécie de veículo seria aquele. A jovem tocou-o com o cotovelo e murmurou: — Eu lhe tinha dito. Ele apenas pôde responder pensativamente: — Bom, Honey, se não é o dragão, é algo que nunca vi antes.

Mais adiante, ela puxou-o ansiosamente pela manga. “Veja”, sussurrou, e apontou para a frente, indicando um grande cerrado de árvores, ao lado do qual passavam as trilhas. O cerrado estava sem folhas, enegrecido. Ao centro viam-se os restos dos ninhos de pássaros carbonizados. — Ele respirou sobre as árvores, — disse a garota nervosamente.

Bond aproximou-se das árvores e examinou-as. — Certamente que o fez — admitiu. Por que aquele cerrado, em especial, tinha sido queimado? Era muito estranho aquilo.

As trilhas desciam em direção ao lago e desapareciam na água. Bond teria gostado de segui-las, mas não poderia abandonar a cobertura das árvores. Assim, continuaram a marcha, cada um entregue aos próprios pensamentos.

Lentamente o dia começou a morrer, por trás da colina, e por fim a garota apontou para a frente, através dos arbustos; Bond pôde ver uma comprida restinga internando-se no lago. Estava coberta por densas moitas de arbustos e podiam-se ver, a cem metros da praia, os restos de uma cabana incendiada. Aquele parecia um lugar razoavelmente atraente para se passar a noite, e era bem protegido dos dois lados, pela água.

O vento tinha declinado e a água se apresentava suave e convidativa. Que prazer não seria tirarem as suas imundas camisas para um banho no lago e, depois de horas de patinhação através da lama e do lodo do pântano, poderem descansar naquela areia dura e seca!

O sol brilhou com reflexos amarelecidos e desapareceu por trás da montanha. Ainda era dia na extremidade oriental da ilha, mas a sombra negra do monte avançava vagarosamente sobre o lago e acabaria por expulsar completamente os últimos vestígios do sol. Os sapos começaram a coaxar mais barulhentamente que em Jamaica, até que a noite ficou cheia daquele áspero ruído. Do outro lado do lago um grande sapo macho começou a soar o seu tambor. Aquele estranho som era algo entre um tom-tom e um rosnado de macaco. Enviava mensagens que subitamente se interrompiam e logo silenciaram. Com certeza encontrara o que procurava.

Chegaram à garganta da restinga e seguiram por um estreito caminho, até a clareira que encerrava os escombros da cabana de sapé. As grandes e misteriosas trilhas saíam da água, de ambos os lados, atravessavam a clareira e os cerrados próximos. Muitos dos arbustos estavam queimados ou crestados. Podiam-se ver os restos de um fogão feito de pedaços de coral, e algumas panelas e latas vazias. Examinaram os destroços, e Quarrel desenterrou um par de latas intactas de costeletas de porco e ervilhas marca “Heinz”. A jovem encontrou ainda um saco de dormir muito amarrotado, enquanto Bond achou uma pequena bolsa de couro com cinco notas de um dólar, três libras de Jamaica e algumas moedas de prata. Os dois homens certamente tinham abandonado aquele lugar a toda pressa.

Prosseguiram mais para diante, até uma pequena clareira arenosa. Através dos arbustos podiam ver luzes cintilando sobre a água e provenientes da montanha, talvez a mais de três quilômetros de distância. A leste nada mais havia senão. os suaves reflexos escuros da água sob o céu sombrio.

Bond comentou: — Enquanto não acendermos nada, estaremos bem aqui. A primeira coisa a fazer é tomarmos um bom banho, Honey. Você pode ficar com o resto da restinga, que nós ficaremos com a sua garganta. Dentro de meia hora espero vê-la para o jantar.

A garota riu: — Você virá a rigor?

— Sem dúvida — respondeu Bond — e de calças.

Quarrel observou: — Capitão, enquanto ainda há um pouco de luz, vou abrir essas latas e preparar as coisas para a noite. — Remexeu dentro da mochila. — Aqui estão as suas calças e o seu revólver. O pão talvez não esteja muito bom, mas está apenas molhado. Pode-se comê-lo bem, e amanhã estará seco. O melhor talvez fosse comermos das latas esta noite, guardando o queijo e as costeletas. As latas são pesadas e amanhã teremos que andar muito.

Bond respondeu: — Muito bem, Quarrel. Deixarei o cardápio aos seus cuidados.

Em seguida, apanhou o revólver e as calças úmidas e desceu para a água rasa. A água estava acariciante, mas desagradavelmente quente. Bond escavou punhados de areia, com as mãos, e esfregou o corpo com ela, utilizando-a como sabonete. Depois deixou-se ficar gostosamente em meio àquele silêncio e àquela solidão.

As estrelas começaram a brilhar palidamente, as estrelas que os tinham trazido à ilha na noite passada; as estrelas que os tirariam dali no dia seguinte. Que viagem! Mas pelo menos já tinha dado os seus resultados. Agora tinha provas bastantes, e testemunhas, para ir ter com o governador e conseguir dele um inquérito completo acerca das atividades do Dr. No. Ninguém lança mão de metralhadoras contra pessoas, mesmo contra intrusos. E, da mesma forma, o que seria aquilo do Dr. No, que invadira a propriedade da Sociedade Audubon, aquilo que chegara a destruir essa propriedade e provavelmente matara um de seus empregados? Isto também teria que ser investigado. E o que haveria ele de encontrar quando voltasse pela porta da frente, talvez a bordo de um destróier, e com um destacamento de fuzileiros navais? Qual seria a resposta para o mistério do Dr. No? O que estaria ele escondendo? Por que aquele segredo era tão importante, que seria capaz de matar repetidas vezes, para preservá-lo? E quem era esse Dr. No?

Bond ouviu o barulho de alguém espojando-se na água. Pensou na garota. E quem, afinal, era Honeychile Ri-der? Aquilo pelo menos, pensou ele ao sair da água, era algo que deveria esclarecer antes do amanhecer.

Bond enfiou as suas pegajosas calças, sentou-se na areia e desmontou o revólver. Fê-lo pelo tato, utilizando-se de sua camisa para secar cada peça e cada cartucho. Depois, tornou a montar a arma e pressionou o gatilho, fazendo com que o tambor vazio desse uma volta completa. O som era satisfatório. Seriam precisos alguns dias para que o revólver começasse a enferrujar. Carregou-o e meteu-o no coldre, para dentro do cós da calça. Depois, levantou-se e voltou para a clareira.

A sombra de Honey chegou até ele, e a sua voz se fez ouvir: — Venha; estamos morrendo de fome. Apanhei uma das panelas, limpei-a e pusemos as ervilhas nela. Temos pão também. E eu não sinto escrúpulos de comer a sua ração, porque você me fez trabalhar muito mais do que se eu estivesse sozinha. Agora, estique a mão.

Bond achou graça no tom autoritário que havia em sua voz. Ele apenas podia perceber a sua silhueta, no escuro. Sua cabeça parecia mais aflada. Ele se perguntou como seriam os seus cabelos quando secos e penteados. Como seria ela quando estivesse vestindo roupas limpas naquele lindo corpo dourado? Podia vê-la entrando numa sala ou atravessando um vestíbulo em Beau Desert. Ela seria uma linda e encantadora Patinha Feia. Por que nunca procurara endireitar o nariz? Seria uma operação fácil. Depois disso, ela seria a jovem mais bela de Jamaica.

O seu ombro tocou nele. Bond esticou o braço e descansou a mão aberta no colo da jovem. Então Bond sentiu que ela estava enchendo a sua mão com ervilhas.

Subitamente, Bond aspirou o seu cheiro cálido de animal. Foi uma explosão sensual tão aguda que o seu corpo se uniu ao dela, e, por um momento, os seus olhos se fecharam.

Ela deixou escapar um riso curto, no qual havia timidez, satisfação e ternura. E disse, maternalmente: “Lá”, — e empurrou a mão de Bond.

 

 

                                   CONTINUA