VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
CONTINUA
VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
CONTINUA
VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
CONTINUA
VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
CONTINUA
VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
CONTINUA
VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
CONTINUA
VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
CONTINUA
VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
CONTINUA
VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
CONTINUA
VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
CONTINUA
VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
CONTINUA
VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
CONTINUA
VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
CONTINUA
VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
CONTINUA
VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
CONTINUA
VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
CONTINUA
VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
CONTINUA
VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
CONTINUA
VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
CONTINUA
VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
CONTINUA
VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
CONTINUA
VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
CONTINUA
VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
CONTINUA
VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
CONTINUA
VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
CONTINUA
VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
CONTINUA
VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
CONTINUA
VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
CONTINUA
VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
CONTINUA
VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
CONTINUA
VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
CONTINUA
VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
CONTINUA
VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
CONTINUA
VII - TRAVESSIA NOTURNA
— Diga-me uma coisa, Quarrel — Bond passou à frente de um ônibus que trazia as palavras “Bombardeiro Pardo” pintadas no pára-brisa. O ônibus acelerou e foi descendo roncando pela estrada de Kingston, tocando furiosamente um acorde com sua tríplice buzina, para restaurar a dignidade do chofer. — Que é que você sabe sobre as centopéias?
— Centopéias? — Quarrel olhou de soslaio para tentar descobrir o porquê da pergunta. Bond tinha uma expressão da indiferença. — Bem, temos algumas peçonhentas em Jamaica. Oito dez, doze centímetros de comprimento. Matam gente. Vivem principalmente nas casas velhas de Kingston. Gostam de madeira podre e de lugares úmidos. Entram em atividade principalmente à noite. Por que, chefe? O senhor viu alguma?
Bond fingiu não ouvir a pergunta. Não falara também das frutas a Quarrel. Quarrel era um homem rijo, mas não havia necessidade de semear as sementes do medo.
— Você esperaria encontrar uma centopéia numa casa moderna, por exemplo? No seu sapato, ou numa gaveta, ou em sua cama?
— Não, senhor! — A voz de Quarrel era firme. — A menos que alguém a tivesse colocado ali de propósito. Esses insetos gostam de buracos e de frestas. Não gostam de lugares limpos. Vivem na sujeira. O senhor pode talvez encontrá-los no mato, em baixo de troncos caídos e de pedras. Mas nunca em lugares claros e limpos.
— Compreendo. — Bond mudou de assunto. — E afinal, aqueles dois indivíduos? Saíram como o combinado, com o “Sunbeam”?
— Perfeitamente, capitão. Muito satisfeitos com o serviço. E parecem-se bastante com o senhor e comigo. — Quarrel soltou uma gargalhada. Olhou para Bond e prosseguiu, hesitante:
— Acho que não são cidadãos muito respeitáveis, chefe. Eu tinha que achá-los onde se encontrassem. Eu sou um mendigo. Para o senhor, arranjei um pobre diabo branco, imprestável, na Betsy.
— Quem é Betsy?
— Ela administra o bordel mais sórdido da cidade, chefe. — Quarrel cuspiu enfaticamente pela janela. — Esse branco é quem faz a contabilidade para ela.
Bond riu-se.
— O importante é que saibam guiar o carro. Espero que cheguem sem novidades a Montego.
— Não se preocupe. — Quarrel não tinha interpretado bem a preocupação de Bond. — Eu disse que avisaria a polícia que eles tinham roubado o carro, se não chegassem direitinho.
Estavam no alto do espigão, em Stony Hill, no ponto em que Junction Road inicia seu mergulho em direção à costa setentrional, através de cinqüenta curvas em S. Bond pôs em segunda o pequeno “Austin A-30” e o deixou descer. O sol estava surgindo acima do pico da Montanha Azul e lançava setas de poeira dourada no fundo do vale. Havia poucas pessoas na estrada. Um homem descia a encosta, em direção à sua roça dependurada no flanco da montanha, com um facão de mato de cerca de um metro de comprimento a lhe pender da mão direita, enquanto segurava na mão esquerda um talo de cana-de-açúcar que ia mascando à guisa de desjejum. Ou ainda alguma mulher caminhando indolentemente, estrada acima, com um cesto coberto de frutas ou verduras que ia vender na feira de Stony Hill, e carregando na cabeça os sapatos que calçaria pouco antes de entrar na aldeia. Era um cenário agreste, cheio de paz, que, a não ser pelo revestimento da estrada, pouco mudara no decorrer de duzentos anos. Parecia a Bond que poderia sentir o cheiro de estrume do carro puxado a mulas, no qual ele teria viajado de Port Royal a fim de inspecionar a guarnição de Porto Morgan, em 1750.
Quarrel interrompeu seu devaneio.
— Chefe — disse em tom de desculpa — o senhor me perdoe, mas poderia dizer-me o que vamos fazer? Tenho quebrado a cabeça, mas não consigo compreender a sua tática.
— Eu mesmo ainda não sei bem, Quarrel. — Bond engrenou a primeira e foram rodando devagar pelas magníficas clareiras dos Jardins de Castleton.
— Já disse a você que vim para cá porque o comandante Strangways e sua secretária desapareceram. Muita gente pensa que eles fugiram juntos. Eu penso que eles foram assassinados.
— Ah, sim? — disse Quarrel, sem manifestar emoção. — E quem pensa o senhor que os mandou matar?
— Acabei por concordar com você. Creio que quem os mandou matar foi o Doutor, o chinês de Crab Key. Strangways estava metendo o nariz nos negócios desse homem — por causa de uma investigação que dizia respeito ao santuário das aves. O Doutor No tem aquela mania de isolamento. Você mesmo me disse. Parece que ele será capaz de tudo para que seus vizinhos não espiem por cima do muro. Note bem que é apenas um palpite. Mas têm acontecido coisas estranhas nestas últimas vinte e quatro horas. Foi por isso que mandei o “Sunbeam” para Montego, a fim de criar uma pista falsa. E é por isso que vamos ficar na moita, em Beau Desert. durante alguns dias.
— E então, chefe?
— Em primeiro lugar, conto com você para me pôr perfeitamente em forma, da mesma maneira como você o fez da última vez que estive aqui. Lembra-se?
— De certo, chefe. Isso é uma coisa que eu posso fazer.
— Depois, eu estava pensando que você e eu bem poderíamos ir dar uma olhada em Crab Key.
Quarrel assobiou. O assobio terminou numa nota descendente.
— Apenas espiar. Não precisaremos chegar muito perto da propriedade do Doutor No. Quero dar uma olhada naquele santuário das aves. Ver por mim mesmo o que aconteceu no acampamento dos guardas. Se acharmos qualquer coisa suspeita, voltaremos, mas desta vez pela porta da frente. E com alguns soldados para nos ajudar. Será um inquérito em regra. Mas não podemos fazê-lo enquanto não tivermos base sobre a qual nos apoiar. Qual é a sua opinião?
Quarrel enfiou a mão no bolso, em busca de um cigarro. Acendê-lo foi uma operação complicada. Ele soprou uma nuvem de fumaça pelas narinas e observou-a, enquanto desaparecia pela janela. Disse finalmente:
— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.
Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:
— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?
Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.
— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?
— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?
— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.
Quarrel grunhiu sem entusiasmo.
— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.
— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.
— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.
Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.
Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.
Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.
Depois do café, iniciaram o programa.
Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.
Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.
No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:
CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.
Bond queimou também o telegrama.
Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.
— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.
O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.
Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.
O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.
Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?
Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.
As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?
Quarrel veio da praia.
— Está na hora, chefe.
Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.
A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.
Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?
— Dez minutos. Mas não responderei a nenhuma pergunta mais, enquanto não me disser quem a senhorita é.
— Não sou ninguém importante. Venho de Jamaica. Coleciono conchas.
— Eu vim de canoa.Você também?
— Também. Onde está a sua canoa?
— Um amigo veio comigo. Nós a escondemos nos mangues.
— Mas não se vêem traços de canoa na praia.
— Somos cuidadosos. Limpamos os vestígios. Você, não. — Bond apontou para as pedras. — Você deveria ter mais cuidado. Usou a vela? Até perto da barra?
— Lógico. Por que não? Sempre faço assim.
— Então, eles sabem que você está aqui. Eles têm radar.
— Ainda não me apanharam.
A jovem largou da faca. Levantou a mão e arrancou a máscara de mergulhador, que ficou balançando pela alça de borracha. Parecia estar pensando que já podia avaliar a personalidade de Bond. Disse, com voz menos seca:
— Como se chama?
— Bond. James Bond. E você? Ela pensou um pouco. — Rider.
— E o primeiro nome?
— Honeychile.
Bond sorriu.
— Que está achando de engraçado nisso?
— Nada. Honeychile Rider. É um nome bonito.
Ela transigiu um pouco.
— Chamam-me Honey.
— Pois bem, muito prazer em conhecê-la.
A frase prosaica pareceu fazê-la lembrar-se de que estava nua. Corou. Disse com hesitação:
— Preciso vestir-me.
Olhava para as conchas espalhadas na areia, a seus pés. Era evidente que desejava apanhá-las. Talvez compreendesse que o movimento poderia ser ainda mais revelador que a sua pose atual. Disse secamente:
— Você não deve tocar nessas coisas enquanto eu não estiver aqui.
Bond sorriu ao desafio pueril.
— Não se preocupe. Eu tomarei conta delas.
A jovem fitou-o com ar de dúvida e em seguida voltou-se e caminhou, muito tesa, até as rochas, por trás das quais desapareceu.
Bond caminhou poucos passos até a praia, inclinou-se e apanhou uma das conchas. O molusco estava vivo e as duas metades hermèticamente fechadas. Parecia ser uma espécie de molusco comestível, com sulcos bastantes fundos, e de cor-de-rosa arroxeado. Dos dois lados da juntura, ao longo dos bordos, podia-se distinguir uma meia-dúzia de chifres delgados. Essa concha não pareceu muito interessante a Bond. Tornou a colocá-la cuidadosamente ao lado das outras.
Deixou-se ficar a contemplar as conchas, intrigado. Estaria ela verdadeiramente colecionando conchas? Parecia que sim. Mas quanto era arriscado vir apanhá-las: a travessia sozinha de canoa, ida e volta! E ela parecia compreender que aquele era um lugar perigoso. “Ainda não me apanharam.” Que pequena extraordinária! Aquecia-se o coração de Bond e excitavam-se os seus sentidos ao pensar nela. Assim como já lhe acontecera tantas vezes, com relação às pessoas que têm alguma deformidade, ele já tinha quase esquecido o nariz quebrado. Tinha como que desaparecido diante da recordação que guardava de seus olhos, de sua boca e de seu corpo tão maravilhosamente belo. Eram estimulantes a sua atitude imperiosa e a sua agressividade. O modo pelo qual ela tinha procurado a faca para defender-se! Parecia um animal cujos filhotes são ameaçados. Onde vivia ela? Quem eram seus pais? Havia um quê de negligenciado nela — como um cachorro a quem ninguém faz afagos. Quem era ela?
Bond ouviu seus passos sobre a areia. Virou-se para fitá-la. Estava vestida quase que com farrapos — uma blusa marrom desbotada, uma saia marrom de algodão, curta pelos joelhos, toda remendada e presa pelo cinto de couro com a faca. Trazia a tiracolo uma sacola de lona. Parecia a atriz principal de uma pantomima, caracterizada como o criado de Robinson Crusoe.
Ela veio para perto dele, e imediatamente se ajoelhou e começou a pegar os moluscos vivos, pondo-os na sacola.
— São raros? — perguntou Bond.
Ela sentou-se de cócoras e levantou os olhos para ele. Analisou-lhe o rosto. A sua impressão devia ter sido satisfatória. — Você promete que não vai contar a ninguém? Jura?
— Palavra! — disse Bond.
— Pois bem, vou explicar-lhe, então. São raros, sim. Muito raros. Você pode receber cinco dólares por um espécime perfeito. Em Miami. É lá que os vendo. Chamam-se Venus elegans — Vênus elegante. — Seus olhos brilhavam de contentamento. — Esta manhã achei o que estava procurando. O banco onde elas vivem. — Ela apontou para o mar. — Você não seria capaz de encontrá-lo, — acrescentou, com súbita cautela. — É muito fundo e bem escondido. Duvido que você possa mergulhar àquela profundidade. E além disso, — ela teve uma expressão de felicidade, — tenciono limpar todo o banco hoje mesmo. Você só encontrará as conchas defeituosas, se voltar aqui.
Bond riu-se. — Prometo-lhe que não roubarei nenhuma. Na verdade, eu não entendo nada de conchas. Posso jurar por tudo quanto é sagrado!
Ela ergueu-se, depois de completar a sua tarefa.
— E a respeito de suas aves? De que espécie são? Têm valor, também? Também não direi nada a ninguém do que você me contar. Eu coleciono somente conchas.
— São chamadas espátulas rosadas — disse Bond. — Uma espécie de cegonha cor-de-rosa com bico achatado. Já viu algum?
— Ah! esses! — respondeu ela, com certo desdém. — Antigamente, havia milhares deles nesta ilha. Mas você não encontrará muitos, agora. Eles os espantaram todos daqui.
Sentou-se na areia e colocou os braços à volta dos joelhos, orgulhosa da superioridade de seus conhecimentos, e certa, agora, de que nada tinha a recear desse homem.
Bond sentou-se a um metro de distância. Estirou-se na areia e voltou-se para ela, erguendo-se sobre o cotovelo. Ele queria conservar a atmosfera de piquenique e procurar saber mais coisas a respeito dessa moça estranha e linda. Disse, como que sem dar importância:
— Ah! É? O que aconteceu? Quem fez isso? Ela deu de ombros com impaciência.
— O pessoal daqui foi quem fez. Não sei quem são. Há um chinês. Ele não gosta de aves, ou qualquer coisa assim. Ele tem um dragão. Mandou o dragão perseguir as aves, e com isso elas se assustaram e fugiram. O dragão queimou o lugar onde elas costumavam fazer os ninhos. Havia dois homens, que viviam perto dos pássaros e tomavam conta deles. Fugiram também ou foram mortos.
Tudo para ela era muito natural. Ela enunciava os fatos com indiferença, olhando para o mar.
— Esse dragão — disse Bond. — Que espécie de dragão será? Você já o viu?
— Vi, sim. — Ela apertou os olhos e fez uma careta, como se estivesse engolindo um remédio amargo. Olhava ansiosamente para Bond, a fim de fazer que ele partilhasse seus sentimentos.
— Há um ano que venho aqui procurar conchas e fazer explorações. Só encontrei essas, — ela indicou a praia com um aceno de mão — há cerca de um mês. Na minha última viagem. Mas tenho achado grande quantidade de outras espécies, muito boas. Pouco antes do Natal lembrei-me de explorar o rio. Fui até as cabeceiras, onde os homens que tomavam conta dos pássaros tinham seu acampamento. Estava completamente destruído. Como já era tarde, resolvi passar a noite lá. Fui acordada no meio da noite. O dragão estava-se aproximando, estava a menos de cinqüenta metros. Tinha dois enormes olhos brilhantes e uma tromba comprida. Tinha uma espécie de asas curtas e uma cauda pontuda. Era todo preto e cor-de-ouro. — Ela franziu as sobrancelhas ao ver a expressão estampada na fisionomia de Bond. — Era noite de lua cheia. Podia vê-lo perfeitamente. Passou por mim. Fazia como que um ronco forte. Foi pelo pântano e chegou diante de uns mangues densos, e simplesmente subiu por cima das moitas e prosseguiu. Um bando de aves estava à sua frente, e de repente ele lançou um jato de fogo pela boca, e queimou uma porção delas, e todas as árvores onde tinham feito seus ninhos. Foi horrível. A coisa mais horrível que eu já vi.
A moça inclinou-se para um lado e olhou para o rosto de Bond. Endireitou-se novamente e pôs-se a fitar obstinadamente o mar.
— Bem vejo que não me acredita — disse numa voz contida, furiosa. — Você é daquela gente da cidade. Não acredita em nada. Que horror! — ela estremeceu.
Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.