IV - COMISSÃO DE RECEPÇÃO
As sessenta e oito toneladas de peso morto do "Super Constellation" passaram roncando bem acima do tapete verde e marrom de Cuba. Não tendo mais que cento e sessenta quilômetros a vencer, o aparelho iniciou o seu vôo em suave declive em direção a Jamaica.
Bond via crescer no horizonte a ilha verde, que parecia o casco de uma enorme tartaruga, enquanto as águas passavam do azul escuro das profundezas do estreito de Cuba ao azul claro e branco do mar raso, próximo à costa. Passaram em seguida sobre a Praia do Norte, sobrevoando os seus hotéis para milionários e transpondo as altas montanhas do interior. As casas de pequenos proprietários apareciam, quais dados jogados a esmo, pelas encostas e clareiras da mata, e o sol poente transformava em serpentes douradas os meandros brilhantes dos rios e riachos de correntezas. "Xaimaca", chamavam-na os índios arauaques, "A Terra de Morros e de Rios". O coração de Bond pulsava com mais força ao contemplar a beleza de uma das ilhas mais férteis do mundo.
O outro lado das montanhas estava mergulhado em sombras roxas. Já piscavam luzes ao pé dos morros e as ruas de Kingston estavam brilhantemente iluminadas, mas, ao longe, o último cais do porto e o aeroporto ainda recebiam raios de sol, contra os quais o farol de Port Royal piscava ineficazmente. Agora, o "Constellation" estava descendo numa curva aberta que o levava além do porto. Houve um ligeiro choque quando as três rodas do trem de aterragem desceram e se fixaram em posição. Ouviu-se o gemido agudo do mecanismo hidráulico, quando as abas dos freios deslizaram para fora da borda traseira das asas. O grande avião virou devagar, dirigindo-se novamente para a costa e, durante um momento, o sol poente derramou ouro na cabina. Um instante depois, o grande aparelho estava abaixo do nível das Montanhas Azuis e deslizava em direção norte-sul. Viram a fuga rápida de uma estrada e de fios telefônicos. Finalmente, o concreto, com marcas escuras de derrapagens, estava sob o bojo do aparelho. Houve o suave choque duplo da aterragem perfeita e ouviu-se o ronco da hélice girando em sentido inverso, enquanto rodavam devagar em direção aos baixos edifícios brancos do aeroporto.
Os dedos pegajosos dos trópicos afagaram o rosto de Bond quando ele desceu do avião e se encaminhou para as seções de Saúde e Imigração. Sabia que quando chegasse a hora de passar pela Alfândega estaria suando em bicas. Pouco lhe importava. Depois do frio crestante de Londres, o calor abafado e mole era perfeitamente tolerável.
O passaporte de Bond dava-o como "Exportador e Importador".
— Qual é sua firma?
— Exportações Universais.
— O senhor está aqui a negócios ou a passeio?
— A passeio.
— Espero que o senhor aproveite bem a sua estada.
O funcionário preto da Imigração devolveu-lhe o passaporte com indiferença.
— Muito obrigado.
Bond dirigiu-se para a Alfândega. Notou imediatamente um homem alto e magro, por trás da grade. Estava usando a mesma camisa azul, velha e desbotada e, provavelmente, as mesmas calças de brim caqui que usava quando Bond o conheceu, cinco anos atrás.
— Quarrel!
Por trás da grade, o velho pescador da ilha Cayman sorriu-lhe afetuosamente. Ergueu o antebraço esquerdo diante dos olhos, segundo a antiga saudação dos moradores das índias Ocidentais.
— Como vai, capitão? — exclamou, no auge do contentamento.
— Muito bem — replicou Bond. — Espere até que eu retire a mala. Tem carro?
— Está aí, chefe.
O funcionário da Alfândega que, como a maior parte dos trabalhadores do cais, conhecia Quarrel, marcou com giz a mala de Bond, sem abri-la sequer. Bond apanhou-a e passou a grade. Quarrel pegou a mala e estendeu a mão direita. Bond estreitou a calejada manopla quente e seca, e cravou o olhar nos olhos cinzento-escuros que revelavam a descendência de algum soldado de Cromwell ou de um pirata do tempo de Morgan.
— Você está sempre o mesmo, Quarrel — disse calorosamente. — Como vai a pesca à tartaruga?
— Não vai mal, chefe, nem muito bem. Quase o mesmo de sempre. — Observou Bond atentamente. — O senhor esteve doente, ou o que aconteceu?
Bond ficou surpreso.
— Estive doente, de fato. Mas há semanas que estou restabelecido. Por que pergunta?
Quarrel sentiu-se embaraçado.
— Sinto muito, chefe — disse ele, receoso de ter magoado Bond. — Mas há em seu rosto algumas rugas de sofrimento que não existiam da outra vez.
— Ora, não foi nada — retrucou Bond. — Mas creio que me fariam bem uns dias de treino com você. Não estou tão em forma quanto costumava.
— Às ordens, capitão.
Estavam-se dirigindo para a saída quando foram apanhados de surpresa pelo estalido seco e o relâmpago de uma câmara fotográfica de imprensa. Uma linda chinesa vestida à moda de Jamaica estava abaixando a sua "Speed Graphic". Aproximou-se deles, dizendo com amabilidade artificial:
— Muito obrigada, senhores. Sou do "Daily Gleaner". — Ela correu os olhos por uma lista que tinha na mão. — Sr. Bond, não é? Por quanto tempo o senhor ficará entre nós, sr. Bond?
Bond foi pouco cortês. Aquilo era mau começo para a sua missão.
— Estou em trânsito — respondeu secamente. — Creio que a senhorita poderia ter encontrado no avião pessoas mais interessantes.
— Oh! Tenho certeza de que seria impossível, sr. Bond. O senhor parece muito importante. Em que hotel está hospedado?
"Vá pro inferno!" pensou Bond, e disse em voz alta:
— No Hotel Myrtle Bank — e começou a afastar-se.
— Obrigada, sr. Bond — disse a voz argentina. — Espero que o senhor...
Estavam fora. Enquanto se dirigiam para o estacionamento, Bond perguntou:
— Já tinha visto esta moça, no aeroporto? Quarrel refletiu.
— Creio que não, chefe. Mas o "Gleaner" tem muitas fotógrafas.
Bond estava vagamente aborrecido. Não havia motivo plausível para que a imprensa quisesse a sua fotografia. Haviam decorrido cinco anos desde as suas últimas aventuras' na ilha, e o seu nome nem sequer tinha figurado
nos jornais.
Aproximaram-se do carro. Era um "Sunbeam Alpine" preto. Bond examinou-o com atenção e verificou o número da placa. Era o carro de Strangways. Que idéia seria essa?
— Onde arranjou esse carro, Quarrel?
— Disseram-me, no Palácio do Governo, que eu podia pegá-lo, chefe. Que era o único carro disponível. Por que, chefe? Não serve?
— Oh, é um carro magnífico, Quarrel — respondeu Bond, conformado. — Vamos andando.
Bond sentou-se ao lado de Quarrel. A culpa era toda sua. Deveria ter imaginado a possibilidade de lhe darem esse carro, o que o denunciaria imediatamente, com segurança, e à sua missão, a quem estivesse interessado.
Estavam rodando pela estrada marginada por cactos, em direção às distantes luzes de Kingston. Em condições normais, ele teria apreciado toda a beleza do cenário — o cricrilar dos grilos, o sopro do ar cálido e perfumado, o céu recamado de estrelas, o colar de luzes amareladas que refulgia ao longo do porto. Mas, no momento, Bond estava amaldiçoando sua imprevidência, e percebendo claramente aquilo que não deveria ter feito.
O que ele tinha feito fora mandar uma mensagem ao Governador por intermédio do Ministério das Colônias. Tinha pedido que mandassem chamar Quarrel, nas ilhas Cayman, por um tempo indeterminado, com o salário de dez libras por semana. Quarrel tinha estado com ele por ocasião de sua última aventura em Jamaica. Era um habilíssimo trabalhador manual, dotado ainda de todas as qualidades de homem do mar próprias dos habitantes daquele arquipélago, e servia de passaporte para penetrar nas camadas mais baixas da população de cor, que de outra maneira ficariam fechadas para Bond. Todos gostavam dele e ele era um esplêndido companheiro. Bond sabia que Quarrel tinha importância vital, se quisesse encontrar alguma pista — fosse de um crime, fosse apenas de um escândalo. Bond tinha pedido ainda que reservassem um quarto no Hotel Montes Azuis, que lhe pusessem um carro à disposição, e que Quarrel o fosse esperar no aeroporto. Quase todas as providências que ele solicitara tinham sido inoportunas, representavam até mesmo um erro de tática. Antes de mais nada, Bond deveria ter ido de táxi para o hotel e estabelecido, em seguida, contato com Quarrel. Teria visto o carro, depois, e poderia então ter tido a oportunidade de trocá-lo por outro.
Da maneira como estavam as coisas — pensou Bond — era como se ele tivesse anunciado no "Daily Gleaner" a sua visita e a finalidade desta! Suspirou. Os piores erros eram aqueles que se cometiam de início. Eram esses os irreparáveis, os que faziam entrar com o pé esquerdo num caso e davam ao inimigo as vantagens do primeiro tempo do jogo. Mas haveria realmente algum inimigo? Não estaria ele sendo demasiado cauteloso? Impulsivamente, Bond voltou-se para trás. A uma centena de metros de distância avistava-se a luz fraca de duas lanternas de automóvel. A maior parte dos jamaicanos costuma guiar com os faróis acesos. Bond acomodou-se novamente no assento e disse:
— Quarrel, ao chegar ao fim das Paliçadas, no ponto onde a estrada se bifurca, à esquerda para Kingston e à direita para Morant, quero que você entre rapidamente na estrada de Morant, pare imediatamente e apague todas as luzes. Compreendeu? E agora, dispare à toda.
— Está bem, chefe.
A voz de Quarrel denotava satisfação. Pisou até à tábua no acelerador. O pequeno automóvel emitiu um ronco abafado e saiu disparado pela estrada branca.
Estavam agora no fim da reta. O carro derrapou numa curva. Quinhentos metros ainda, e eles estariam :ia interseção. Bond olhou para trás. Não havia sinal do outro carro. Tinham chegado ao poste de sinalização. Quarrel fez uma manobra digna de uma corrida de automóveis e mudou subitamente a direção do carro, numa curva fechada. Freou à beira da estrada e apagou as luzes. Bond voltou-se para trás e esperou. Logo ouviu o rugir de um carro possante, em plena velocidade. Brilharam fortes faróis, procurando por eles. No mesmo instante, o carro passou, devorando a distância, em direção a Kingston. Bond teve tempo de notar que era um grande carro de praça americano e que ninguém ia nele, fora o chofer. Instantes depois, tinha desaparecido.
A poeira assentou devagar. Ficaram imóveis durante uns dez minutos, sem trocar palavra. Depois, Bond pediu a Quarrel que fizesse manobra e seguisse pela estrada de Kingston.
— Creio que aquele carro estava interessado em nós, Quarrel — disse ele. — Ninguém vai trazer um carro de praça vazio do aeroporto até a cidade. É uma corrida cara. Fique alerta. Ele pode descobrir que nós o ludibriamos, e estar à nossa espreita.
— Está bem, chefe — respondeu Quarrel, feliz. Era exatamente este o tipo de vida pelo qual estivera esperando, após ter recebido o recado de Bond.
Entraram na corrente do tráfego de Kingston: ônibus, automóveis, carroças de tração animal, burros carregados de cestos, vindos dos morros, e os carrinhos de mão dos vendedores de fortes bebidas de cores vivas. Em meio à confusão do trânsito, era difícil saberem se estavam sendo seguidos. Voltaram à direita e iniciaram a subida dos morros. Vinham muitos carros atrás deles, e talvez entre esses estivesse o táxi americano. Prosseguiram durante quinze minutos, até Halfway Tree, e entraram em seguida na estrada principal que atravessava a ilha. Avistaram pouco depois o anúncio luminoso, que representava uma alta palmeira verde e, embaixo desta, os dizeres: "Hotel Montes Azuis". Entraram pela alameda margeada por pés de primaveras.
A cem metros de distância, estrada acima, o táxi preto fez sinal, dando passagem aos carros que lhe vinham atrás, e colocou-se de lado; aproveitando-se de uma breve interrupção do tráfego, fez uma curva fechada e desceu o morro, dirigindo-se para Kingston.
O "Hotel Montes Azuis" era uma confortável hospedaria à moda antiga, com todas as comodidades modernas. Bond foi recebido com deferência porque fora recomendado pela King's House. Levaram-no a um belo quarto de esquina, com um alpendre de onde se avistava ao longe a curva do porto. Ele tirou com alívio as roupas londrinas, já úmidas de suor, entrou no compartimento envidraçado do chuveiro e abriu a torneira de água fria. Ficou sob o jato gelado durante cinco minutos, lavando-se dos pés à cabeça, a fim de remover os últimos vestígios da poeira da cidade. Enfiou depois um "short" de algodão sedoso e, sentindo com volúpia a carícia macia do ar tépido, tirou suas roupas da mala e tocou a campainha para chamar o camareiro.
Bond pediu uma dose dupla de gim tônico. Levou a bebida para o alpendre e sentou-se, contemplando a vista espetacular. Pensou no quanto era maravilhoso estar longe da sede, e de Londres, e dos hospitais, e encontrar-se ali, naquele momento, fazendo o que estava fazendo, e sabendo, como lho davam a conhecer todos os seus sentidos, que estava de novo metido num bom caso perigoso.
Permaneceu sentado por algum tempo, deixando que a bebida lhe afrouxasse a tensão nervosa. Pediu outra dose, e tomou-a logo. Eram sete e quinze. Tinha combinado com Quarrel que este o viria buscar às sete e meia. Iam jantar juntos. Bond pedira a Quarrel que sugerisse algum restaurante. Depois de breve hesitação, Quarrel respondera que, sempre que queria divertir-se um pouco em Kingston, ia a um restaurante da zona portuária, chamado "O Barco da Alegria".
— Não é de luxo, chefe — dissera em tom de desculpa —, mas tem boa comida, boa bebida, boa música,' e tenho lá um bom amigo. É o proprietário. Chamam-no de "Polvo", porque certa vez lutou contra um polvo gigantesco.
Bond sorriu sozinho ao lembrar-se da fala saborosa de Quarrel, tão característica das índias Ocidentais. Foi para o quarto e vestiu uma camisa branca de mangas curtas, seu velho tropical azul e uma gravata preta de tricô de seda. Verificou no espelho se não se poderia notar a "Walther", sob a axila, por baixo do paletó. Desceu e saiu, dirigindo-se para o carro que estava à espera.
O automóvel corria veloz através do lusco-fusco rumorejante. Entraram em Kingston e dobraram à esquerda, para o lado do porto. Passaram por elegantes restaurantes e clubes noturnos, onde se ouviam os tons agudos e a cadência sincopada de músicas de calipso. Seguiram por uma rua residencial que ia acabar num centro comercial da classe pobre, ao qual se seguiam filas de casebres. De repente, numa curva, surgiu o brilho dourado de um luminoso, que representava um galão espanhol, encimando um letreiro no qual se lia: "O Barco da Alegria". Deixaram o carro no estacionamento e Bond seguiu Quarrel, passando por um portão e entrando num jardim onde nasciam palmeiras fora do gramado. Na outra extremidade, era a praia, era o mar. Espalhavam-se mesinhas ao pé das palmeiras e via-se, no centro, uma pequena área cimentada, reservada às danças, mas deserta no momento, e ao lado da qual uma pequena orquestra de três músicos, que trajavam camisas vermelhas bordadas com lantejoulas, estava improvisando variações sobre a música de calipso "Leve-a a Jamaica, de onde bem o rum".
Metade só das mesas estava ocupada, principalmente por pessoas de cor. Viam-se alguns marinheiros ingleses e americanos, com suas garotas. Um negro imensamente gordo metido num elegante "dinner jacket" branco deixou uma das mesas e veio ao seu encontro.
— Olá, sr. Q.! Há quanto tempo não aparecia por aqui! Uma boa mesa para dois?
— Isso mesmo, Polvo. Mais perto da cozinha que da música.
O homenzarrão riu-se. Levou-os para perto da praia e instalou-os numa mesa retirada, sob uma palmeira que nascera na base do edifício do restaurante.
— Bebidas?
Bond pediu seu gim tônico e Quarrel uma cerveja. Estudaram o cardápio e opinaram ambos por lagosta de forno e bife mal passado, com legumes da terra.
Foram servidas as bebidas. A poucos metros de distância o mar ciciava na areia lisa. O trio de músicos começou a tocar "Kitch". Acima deles, as folhas de palmeira batiam de leve umas nas outras, agitadas pela brisa noturna. Um sapo, em algum canto do jardim, coaxava como se estivesse rindo. Bond lembrou-se de Londres, que deixara havia tão pouco tempo.
— Gosto daqui, Quarrel — disse. Quarrel sentiu-se satisfeito.
— É um bom amigo meu, esse Polvo. Ele sabe de quase tudo o que vai pela cidade, e é só pedir se o senhor precisar de qualquer informação. Ele vem das ilhas Cayman. Tínhamos um barco de sociedade. Um belo dia, ele foi apanhar ovos de pássaros marinhos em Crab Key. Foi a nado até um rochedo, para pegar mais ovos, e aquele tal de polvo o agarrou. Há alguns, por aqui, dos pequenos, mas eles são maiores em Crab Key, que é banhada pelas águas fundas do estreito de Cuba. Meu amigo passou um mau quarto de hora com aquele bicho. Rebentou um pulmão, ao se libertar. Ficou com medo do mar e vendeu-me a sua parte no barco, e depois veio para Kingston. Isso foi antes da guerra. Agora, ele é um ricaço, enquanto eu continuo a pescar. — Quarrel riu-se, divertido com os caprichos da sorte.
— Crab Key — disse Bond. — Que espécie de lugar é esse?
Quarrel atirou-lhe um olhar penetrante.
— Agora, é um lugar azarado, chefe — respondeu secamente. — Um demônio de um chinês comprou-o durante a guerra e trouxe operários, e começaram a cavar o estéreo das aves. Não deixa ninguém desembarcar lá, nem sair. Nós nos mantemos bem à distância.
— Por quê?
— Ele tem uma porção de guardas. E fuzis — até fuzis-metralhadoras. E radar. E um avião de reconhecimento. Um amigo meu desembarcou lá, e nunca mais apareceu por aqui. Aquele chinês mantém a ilha completamente isolada. Para ser franco, chefe, — Quarrel estava como que a pedir desculpas — essa Crab Key me assusta.
Bond disse pensativamente:
— Ora veja! Sim, senhor!
Serviram o jantar. Enquanto comiam, Bond traçou para Quarrel um rápido esboço do caso Strangways. Quarrel ouviu-o atentamente, fazendo uma ou outra pergunta. Mostrou-se especialmente interessado nos pássaros de Crab Key e no que os guardas tinham dito, e como se supunha que tivesse ocorrido o desastre com o "Beechcraft". Finalmente, ele afastou o prato. Limpou a boca com as costas da mão. Puxou um cigarro do bolso e acendeu-o. Debruçou-se na mesa.
— Chefe, — disse em voz baixa —, eu não me importaria se fossem passarinhos, ou borboletas, ou abelhas. Se eles estavam em Crab Key, e se aquele seu colega foi meter o nariz nos negócios daquela gente, o senhor pode apostar todo o seu ordenado como ele seria reduzido a pó, ele e a sua garota. Aquele chinês os eliminou, não tenha dúvida.
Bond fitou atentamente aqueles olhos cinzentos, cheios de vivacidade e interesse.
— Como pode ter tanta certeza?
Quarrel espalmou as mãos. A explicação, para ele, era muito simples.
— Esse chinês gosta de sossego. Quer que o deixem em paz. Sei que ele eliminou meu amigo, para que ninguém tente chegar perto de Crab Key. É um homem poderoso. Mata qualquer um que interfira em seus negócios.
— Por quê?
— Não sei bem porquê — respondeu Quarrel. — Há gente que quer coisas diferentes neste mundo. E aquilo que querem com bastante força de vontade, eles alcançam.
Bond percebeu pelo canto do olho um reflexo de luz. A moça chinesa do aeroporto estava em pé, na sombra, perto "deles. Trajava agora um vestido colante de cetim preto, aberto do lado até o alto da coxa. Tinha uma "Leica" com dispositivo para "flash" em uma das mãos. A outra mão estava remexendo numa bolsa de couro a tiracolo. Essa mão apareceu, segurando uma lâmpada. A jovem introduziu em sua boca a base da lâmpada, a fim de umedecê-la e melhorar o contato, e preparou-se para colocá-la no soquete do refletor.
— Apanhe essa pequena — disse rapidamente Bond. Com dois passos, Quarrel estava ao lado dela. Estendeu-lhe a mão.
— Boa-noite, senhorita — disse gentilmente.
A jovem sorriu. Deixou que a "Leica" pendesse da fina correia que lhe cingia o pescoço e apertou a mão de Quarrel. Este fê-la rodopiar como uma bailarina. Um instante mais tarde, segurava-lhe uma das mãos por trás das costas, imobilizando-a.
Ela olhou zangada para Quarrel.
Quarrel sorriu para os olhos escuros que brilhavam no rosto amendoado.
— O chefe quer que você tome um drinque conosco — disse ele à guisa de consolo. Voltou para a mesa, arrastando a moça. Puxou uma cadeira com o pé e fê-la sentar-se ao seu lado, segurando sempre uma das mãos dela por trás das costas. Ambos estavam sentados muito eretos, como namorados que tivessem discutido.
Bond fitou o lindo rostinho zangado.
— Boa-noite. O que está fazendo aqui? Por que quer outra fotografia minha?
— Estou fazendo os clubes noturnos, — e a boca em forma de arco de cupido entreabriu-se num sorriso persuasivo. — A primeira fotografia sua não saiu bem. Diga a esse homem que me deixe em paz.
— Então trabalha para o "Gleaner"? Como se chama?
— Isso eu não digo.
Bond levantou uma sobrancelha para Quarrel.
Quarrel apertou os olhos. Foi torcendo devagar a mão que mantinha por trás da jovem. A chinesa debatia-se como uma enguia enquanto mordia o lábio inferior. Quarrel continuou a torcer. Ela, de repente, exclamou: — Ai!
— com voz aguda e disse ofegante: — Vou dizer, — Quarrel afrouxou a torção. A jovem olhou furiosa para Bond:
— Annabel Chung! Bond disse a Quarrel:
— Chame o Polvo.
Quarrel pegou um garfo e, com a mão livre, fê-lo tinir de encontro a um copo.
O enorme negro veio correndo. Bond perguntou-lhe:
— Já viu essa moça?
— Já, sim, senhor. Ela vem às vezes aqui. Está aborrecendo-o? Quer que eu a mande embora?
— Não — respondeu Bond, amàvelmente. — Nós estamos gostando dela. Mas ela quer tirar uma fotografia minha, de estúdio, e eu não sei se o trabalho dela compensará a despesa. Quer telefonar para o "Gleaner" e perguntar se eles têm uma fotógrafa chamada Annabel Chung? Se ela pertencer realmente ao jornal, deve trabalhar bem.
— Às ordens, meu senhor. — O Polvo retirou-se sem perder tempo.
Bond sorriu para a jovem.
— Por que não pediu a esse homem que a socorresse? A moça deitou-lhe um olhar fuzilante.
— Sinto muito ter que agir desta forma — disse Bond — mas meu gerente de exportação, de Londres, avisou-me de que Kingston estava cheia de gente duvidosa. Estou certa de que a senhorita não se enquadra nesta categoria, mas não posso realmente compreender porque faz; tanta questão de tirar uma fotografia minha. Conte-me por quê.
— Já disse — respondeu ela obstinadamente. — É meu ofício.
Bond tentou fazer outras perguntas. Ela nem sequer respondeu.
O Polvo voltou.
— Está certo, chefe. Annabel Chung. Uma de suas fotógrafas que trabalham por conta própria. Disseram-me que ela faz boas fotografias. O senhor ficará satisfeito com ela.
Sua amabilidade era um pouco irônica. Retrato de estúdio! Cama no estúdio era o mais provável.
— Obrigado, — disse Bond.
O preto retirou-se. Bond dirigiu-se para a moça.
— Trabalhando por conta própria... — repetiu devagar. — Isso ainda não me revela quem quer o meu retrato. — Sua fisionomia tornou-se dura. — Diga, agora!
— Não! — retrucou a chinesinha com obstinação.
— Como queira! Vamos, Quarrel, prossiga!
Bond recostou-se na cadeira. Dizia-lhe o instinto que esta era a pergunta crucial deste programa de "Tudo ou Nada". Se conseguisse obter a resposta, ser-lhe-iam poupadas semanas de andanças.
O ombro direito de Quarrel começou a abaixar-se. A jovem procurava chegar-se a ele, a fim de aliviar a pressão, mas ele, com a mão livre, mantinha-lhe o corpo afastado. O rosto da chinesa esticava-se para Quarrel. Cuspiu-lhe nos olhos. Quarrel sorriu e aumentou a torção. A chinesinha dava pontapés furiosos por baixo da mesa. Sibilava palavras em chinês. O suor começou a gotejar-lhe na testa.
— Diga o que eu quero saber — disse Bond com doçura — e tudo isto estará acabado, e nós seremos amigos e tomaremos um drinque juntos.
Ele estava ficando aborrecido. O braço da jovem devia estar prestes a partir-se.
"Seu...! — De repente, a mão esquerda da moça alcançou o rosto de Quarrel. Bond não chegou a tempo para impedi-lo. Qualquer coisa brilhou, e deu-se uma explosão seca. Bond agarrou-lhe o braço e puxou-o para trás. Escorria sangue pela face de Quarrel. Tiniram na mesa estilhaços de vidro e de metal. Ela esmagara a lâmpada do "flash" no rosto de Quarrel. Se tivesse acertado nos olhos, ele estaria cego.
Quarrel ergueu a mão livre e apalpou o rosto. Colocou-a diante dos olhos e viu o sangue. — Ah! — não havia senão admiração e prazer felino em sua voz. E disse calmamente e Bond:
— Não vamos tirar nada dessa pequena, chefe. Ela é rija. Quer que eu lhe quebre o braço?
— Deus me livre! — Bond largou o braço que estava segurando. — Deixe-a.
Ele se sentia descontente consigo mesmo por ter machucado a moça e, ainda assim, nada ter conseguido. Mas aprendera algo. Quem quer que estivesse por trás dela segurava seus agentes com guante de ferro.
Quarrel trouxe para a frente o braço que mantivera nas costas dela. Ainda lhe segurava o pulso. Abriu-lhe a mão, e fitou-a nos olhos. Os dele eram cruéis. — Você me marcou, menina. Agora, eu vou marcá-la. — Levantou a outra mão e apertou, entre o polegar e o indicador, o Monte de Vênus, o macio losango de carne que se estendia na palma da mãozinha frágil, abaixo do polegar. Começou a espremê-lo. Bond podia ver as juntas da mão de Quarrel ficarem brancas com o esforço. A jovem soltou um grito agudo. Martelou com o punho a mão de Quarrel e depois o rosto. Quarrel sorriu e apertou com mais força ainda. De repente, largou-a. A moça pôs-se em pé e afastou-se da mesa, com a mão machucada encostada à boca. Abaixou a mão e vociferou enfurecida: — Ele há-de pegá-los, seus bastardos! — e, com a "Leica" a balançar-se na correia, desapareceu correndo por entre as palmeiras.
Quarrel riu secamente. Esfregou um guardanapo no rosto, atirou-o no chão e pegou outro. Disse a Bond:
— O Monte de Vênus dela há-de estar doído muito tempo ainda depois de ter sarado esse talho que ela me fez! É um pedaço interessante, na mulher, esse Monte de Vênus. Quando é bem cheio, como o daquela pequena, pode-se apostar que ela é boa na cama. O senhor sabia disso?
— Não, — respondeu Bond, — é novidade para mim.
— Pois é coisa certa. Esse pedaço da mão é o melhor indício. Não se preocupe com ela, — acrescentou Quarrel, notando a expressão de Bond. — Ela só vai ter uma equimose na mão. Mas que Monte de Vênus bem gordo! Vou dar em cima dessa pequena, qualquer dia, para verificar se minha teoria dá certo!
Muito a propósito, a orquestra começou a tocar "Não toque no meu tomate".
— Quarrel, — disse Bond, — é tempo de você casar e sossegar. E deixe essa pequena em paz, senão você acaba com uma faca entre duas costelas. Agora, vamos pedir a conta e sair daqui. São três da madrugada em Londres, onde eu estava ainda ontem. Preciso de uma noite bem dormida. Você tem que iniciar meu treino. Creio que vou precisar disso. E é tempo também que você faça um curativo no rosto. Ela escreveu nele o nome e endereço.
Quarrel grunhiu com expressão de saudade. Disse, com calma satisfação:
— Que pequena rija! , Pegou um garfo e fê-lo tinir contra um copo.
V - FATOS E NÚMEROS
"Ele há de pegá-los... Ele há de pegá-los... Ele há de pegá-los, seus bastardos!"
Essas palavras tiniam ainda no cérebro de Bond, no dia seguinte, enquanto estava sentado no alpendre, comendo um delicioso desjejum e olhando, além dos luxuriantes jardins tropicais, para Kingston, a oito quilômetros de distância.
Estava convencido, agora, de que Strangways e a moça tinham sido mortos. Alguém tivera necessidade de não permitir que eles se metessem em seus negócios, de sorte que os matara e destruíra os arquivos atinentes àquilo que eles estavam a investigar. Essa mesma pessoa sabia, ou supunha, que o Serviço Secreto procuraria esclarecer o mistério do desaparecimento de Strangways. Soubera, fosse como fosse, que Bond tinha sido encarregado dessa tarefa. Quisera ter em mãos uma fotografia de Bond e saber onde ele estava hospedado. Deveria estar mantendo Bond sob vigilância, a fim de saber se ele tinha alguma pista que revelasse a morte de Strangways. Se Bond o conseguisse, ele também teria que ser eliminado. Haveria um encontro de carros, ou uma briga de rua, ou qualquer outra morte que não despertaria suspeitas. E — perguntava Bond a si mesmo — qual teria sido a reação daquela pessoa, ao saber do tratamento que ele e Quarrel tinham dispensado à moça Ching? Se era tão implacável quanto o supunha' Bond, aquilo seria o bastante. Talvez Strangways tivesse mandado um relatório preliminar a Londres, antes de sua morte. Talvez alguém tivesse cometido uma indiscrição. O inimigo seria louco em se arriscar. Se tivesse um pouco de bom senso, depois do incidente com a pequena Chung, ele procuraria sem delongas tomar conta de Bond e, talvez, também de Quarrel.
Bond acendeu o primeiro cigarro do dia — o primeiro "Royal Blend" que estava fumando depois de muitos anos ;— e deixou que a fumaça escapasse por entre os dentes com um assobio de satisfação. Esta era sua "apreciação do inimigo". Mas quem seria esse inimigo?
Ora, havia um só candidato, mas bastante importante, o Doutor No, Doutor Julius No, o sino-alemão que tinha adquirido Crab Key e tirava a sua fortuna do guano. Nada existia contra esse indivíduo nos arquivos da polícia, e um pedido de informações feito ao FBI dos Estados Unidos tinha-se revelado negativo. O caso das espátulas rosadas e as complicações com a Sociedade Audubon não tinham nenhuma significação precisa, salvo, como o dissera M, que um bando de gente que não tinha o que fazer ficara nervosa por causa de umas poucas cegonhas vermelhas. Contudo, quatro pessoas tinham morrido por causa daquelas cegonhas, e, o que era muito significativo para Bond, Quarrel tinha medo do Doutor No e de sua ilha. Isso era, realmente, muito estranho. Os pescadores das ilhas Cayman, e especialmente Quarrel, não se assustavam com facilidade. E por que tinha o Doutor No aquela mania de isolamento? Por que gastava ele tanto, e se dava a tanto trabalho, a fim de manter todos afastados de sua ilha de guano? Guano — excrementos de aves marinhas. Quem havia de querer esse material? Qual era o seu valor? Bond devia fazer uma visita ao Governador às dez horas. Satisfeitas as exigências do protocolo, ele procuraria o secretário para a Colônia e procuraria descobrir tudo sobre o guano e Crab Key, e, se fosse possível, sobre o Doutor No. Ouviu duas pancadas à porta. Bond levantou-se e abriu. Era Quarrel, com a face esquerda decorada com uma cruz de esparadrapo que bem poderia ter enfeitado o rosto de algum pirata.
— Bom-dia, chefe. O senhor tinha dito oito e meia.
— Sim, entre, Quarrel. Temos um dia cheio à nossa frente. Já comeu qualquer coisa?
— Já obrigado, chefe. Peixe salgado e um trago de rum.
— Arre! — disse Bond; — é coisa forte, logo assim de manhã!
— Refresca muito, — respondeu Quarrel, imperturbável.
Sentaram-se no alpendre. Bond ofereceu um cigarro a Quarrel, e também acendeu um.
— Hoje — disse ele — vou passar a maior parte do dia em King's House e talvez no Instituto de Jamaica. Não precisarei de você até amanhã de manhã, mas precisaria que você fizesse umas coisas na cidade. Está bem?
— Às ordens, chefe, vá dizendo.
— Primeiro, este nosso carro está "manjado". Temos que nos livrar dele. Vá ao Motta, ou qualquer outra garagem de aluguel, e escolha o mais novo e o melhor dos carros, sem chofer, que possa encontrar. Um carro fechado. Alugue-o por um mês. Está certo? Depois, procure pelas imediações do porto dois homens que se pareçam conosco. Um deles deverá ser capaz de guiar um carro. Compre roupas para eles, semelhantes às nossas, pelo menos da cintura para cima. E o tipo de chapéus que nós poderíamos usar. Diga que nós precisamos que eles levem um carro a Montego amanhã de manhã, pela estrada de Ocho Rios e Spanish Town. Deverão deixá-lo na garagem "Levy". Telefone ao Levy e diga-lhe que o guarde para nós. Compreendeu?
Quarrel sorriu.
— O senhor está querendo tapear alguém...
— Acertou. Você dará dez libras a cada um daqueles homens. Diga que eu sou um ricaço americano e que quero o meu carro levado para Montego por gente respeitável. Dê a entender que sou um pouco pancada. Eles deverão estar aqui às seis e meia, amanhã cedo. Você já estará, então, com o outro carro. Dê um jeito de eles desempenharem bem o seu papel, e mande-os com o "Sunbean", de capota arriada. Ouviu?
— Está bem, chefe.
— Que foi feito daquela casa da Praia Norte em que estivemos da última vez, Beau Desert, no Porto Morgan? Você sabe se está alugada?
— Não saberia dizê-lo, chefe. Fica longe dos lugares freqüentados por turistas, e pedem muito por ela.
— Bem. Vá ao Escritório Granham e veja se pode alugá-la por um mês, ou qualquer outro bangalô na mesma zona. Não se preocupe com o preço. Diga que é para um ricaço americano, Mr. James. Apanhe as chaves, pague o aluguel e diga que eu escreverei para confirmar. Posso telefonar-lhes, se quiserem mais informações. — Bond remexeu no bolso de trás e tirou um grosso maço de notas. Deu metade a Quarrel. — Aqui estão duzentas libras. Creio que dá para tudo. Procure-me, se precisar mais. Você sabe onde me poderá encontrar.
— Obrigado, chefe — disse Quarrel, aturdido pela elevada quantia. Enfiou-a em sua camisa azul e abotoou-a até o pescoço.
— Mais alguma coisa?
— Nada, mas tome cuidado para que não o sigam. Deixe o carro em qualquer lugar, na cidade, e vá a pé a todos esses lugares. E tenha especial cuidado com qualquer chinês que se aproxime de você. — Bond levantou-se e foi até a porta. — Espero você às seis e meia, amanhã. Iremos para a Praia Norte. Pelo que posso imaginar, será essa a nossa base durante algum tempo.
Quarrel assentiu com a cabeça. Sua expressão era enigmática. Disse: "Está bem, chefe," e foi-se pelo corredor.
Meia hora mais tarde, Bond desceu e tomou um táxi até King's House. Não assinou o livro de visitas do Governador no fresco vestíbulo de entrada. Deixaram-no numa antecâmara durante quinze minutos, o tempo suficiente para provar-lhe que ele carecia de importância. Um ajudante de ordens veio então buscá-lo e levou-o ao escritório do Governador, no primeiro andar.
Era uma sala ampla e fresca recendendo a fumaça de charuto. O governador em exercício, num terno creme de tussor, colarinho duro e laço borboleta totalmente inadequados, estava sentado a uma grande escrivaninha de mogno, na qual nada mais havia senão o "Daily Gleaner", o "Times Weekly" e um vaso de botões de hibisco. Suas mãos estavam pousadas à frente. Era um homem de seus sessenta anos, fisionomia vermelha, bastante petulante e viva, e olhos azuis penetrantes. Não sorriu nem se levantou. Disse apenas:
— Bom-dia, senhor... hum!... Bond. Queira sentar-se.
Bond sentou-se na cadeira em frente do Governador e respondeu:
— Bom-dia, Excelência, — e esperou. Um amigo dele, funcionário do Ministério das Colônias, tinha-o avisado de que a recepção seria glacial.
— Ele está quase em idade de se aposentar, — explicara-lhe o amigo. — É um cargo interino. Tínhamos que achar alguém que pudesse assumir as funções de Governador interino, dentro de um prazo muito curto, quando Sir Hugh Foot foi promovido. Foot era um tipo magnífico. Esse nem procura competir com ele. Sabe que tem o cargo por alguns meses, até acharmos quem substitua Foot. Foi preterido quando do preenchimento do cargo de governador-geral da Rodésia. A única coisa que ele quer agora é aposentar-se e arrumar algum cargo de diretor na City. O que ele menos deseja é que surja alguma encrenca em Jamaica. Obstina-se em querer dar por encerrado esse seu caso Strangways. Não vai gostar de ver você fuçando por lá.
O Governador pigarreou. Reconhecia que Bond não era nenhum tipo de homem servil.
— O senhor desejava ver-me?
— Apenas a fim de apresentar-me, Excelência — disse Bond calmamente. — Estou aqui para tratar do caso Strangways. Pensei que o senhor tivesse recebido uma comunicação do Secretário de Estado. — Isto era para lembrá-lo de que por trás de Bond havia gente poderosa. Bond não apreciava tentativas que visassem diminuir a ele ou ao seu Serviço.
— Lembro-me da comunicação. E que posso fazer pelo senhor? Para nós o caso está encerrado.
— De que maneira encerrado, sr. Governador? O Governador respondeu abruptamente:
— É evidente que Strangways fugiu com a moça. Era na maior parte do tempo um sujeito desequilibrado. Alguns de seus... hum!... colegas... não parecem ser capazes de deixar as mulheres em paz. — Era visível que o Governador incluía Bond entre esses. — Tive que pagar fiança pelo rapaz, diversas vezes, por outros escândalos, antes dessa ocasião. Isso não é nada bom para a fama da Colônia, sr. — hum!... Bond. Espero que seus chefes nos mandem gente melhor para preencher o cargo desse homem. Isto é — acrescentou ele secamente — se um funcionário de Controle Regional for realmente necessário. De minha parte, tenho toda a confiança em nossa polícia.
Bond sorriu com simpatia.
— Darei conhecimento do seu ponto de vista em meu relatório, sr. Governador. Penso que meu Chefe estará disposto a discuti-lo com o Ministro da Defesa e o Secretário de Estado. Naturalmente, se o senhor estiver disposto a assumir essas tarefas suplementares, isso representaria para o meu Serviço muita economia de pessoal. Tenho certeza de que a polícia jamaicana é extremamente eficaz.
O Governador olhou desconfiado para Bond. Talvez fosse melhor tratar esse sujeito com mais cuidado.
— Isso tudo não passa de uma troca de palavras sem caráter oficial, sr. Bond. Quando eu chegar a uma conclusão definitiva, comunicarei eu mesmo o meu ponto de vista ao Secretário de Estado. Entrementes, há alguém, dos meus subordinados, com quem o senhor desejaria avistar-se?
— Gostaria de falar com o Secretário para a Colônia, sr. Governador.
— Ah, deveras? E posso saber por quê?
— Tem havido complicações em Crab Key. Qualquer coisa a respeito de um santuário para aves. O caso foi passado ao meu Serviço pelo Ministério das Colônias. Meu Chefe pediu-me que fizesse uma investigação enquanto estiver por aqui.
O Governador demonstrou alívio.
— Pois não, pois não. Vou providenciar a fim de que o sr. Pleydell-Smith o atenda imediatamente. Então, o senhor pensa que nós podemos deixar que o caso Strangways se esclareça por si mesmo? Os responsáveis aparecerão dentro de menos tempo do que o senhor pensa, pode estar certo. I
Estendeu o braço e tocou a campainha. Um ajudante de ordens entrou.
— Este senhor deseja falar com o Secretário para a Colônia. Quer conduzi-lo, por favor? Vou telefonar ao sr. Pleydell-Smith e pedir-lhe que o atenda imediatamente.
Levantou-se e, adiantando-se até a frente da escrivaninha, estendeu a mão.
— Até a vista, então, sr. Bond. Folgo em ver que somos da mesma opinião. Crab Key, hein? Nunca estive lá, mas penso que uma visita deve valer a pena.
Bond apertou a mão estendida.
— É o que eu estava pensando. Até à vista, sr. Governador.
— Passe bem, passe bem.
O Governador olhou para as costas de Bond que transpunha a porta e voltou com ar satisfeito a sua escrivaninha. "Metido a sebo!" disse, para as quatro paredes. Sentou-se e disse umas poucas palavras ao Secretário para a Colônia, por telefone. Em seguida, apanhou o "Times Weekly" e passou a analisar as cotações do mercado de títulos.
O Secretário para a Colônia era um homem ainda jovem, com o cabelo em desalinho e olhos brilhantes de menino. Era desses fumantes de cachimbo nervosos, que vivem a apalpar os bolsos em busca de fósforos, sacodem a caixa para ver quantos há nela, ou batem o cachimbo para fazer cair os restos de tabaco. Depois de tê-lo visto executar essas manobras rotineiras por três ou quatro vezes no decorrer dos primeiros dez minutos de sua palestra, Bond perguntou a si mesmo se ele algum dia teria realmente aspirado fumaça de seu cachimbo.
Tendo dado ao braço de Bond sacudidelas suficientes para acionar uma bomba de poço, e tendo-lhe indicado uma cadeira com um gesto vago, Pleydell-Smith pôs-se a andar de um lado para outro, cocando a testa com o cano do cachimbo.
— Bond. Bond. Bond. Esse nome está a evocar qualquer coisa. Deixe-me ver. Já sei! O senhor é o sujeito que esteve metido naquela história de tesouro. Diabo, é isso mesmo! Há quatro ou cinco anos. Encontrei isso no arquivo por aí faz poucos dias. Magnífico! Que coisa estupenda! Ouça, gostaria que o senhor ateasse fogo a outra fogueira dessas. Para animar um pouco o ambiente. Atualmente, a única coisa em que pensam é na Federação e a sua danada importância autônoma. Autodeterminação, meu caro! Não são capazes nem sequer de administrar uma empresa de ônibus! E o preconceito de cor! Meu caro amigo, há muito maior número de problemas de cor entre os jamaicanos de cabelos lisos e os jamaicanos de carapinha, do que entre mim e minha cozinheira preta. Todavia — Pleydell-Smith parou perto da escrivaninha, sentou-se em frente de Bond, passou uma perna por cima do braço da poltrona, pegou num pote para fumo que trazia o brasão de King's College, em Cambridge, e pôs-se a encher o cachimbo, — o que quero dizer é que não desejo aborrecê-lo com esses pormenores. O senhor é que me deve aborrecer com suas perguntas. Qual é o seu problema? Terei prazer em ajudá-lo. Garanto que há-de ser mais interessante que esse ramerrão. — E apontou para a pilha de documentos que enchia a bandeja dos papéis a despachar.
Bond sorriu para ele. Era o que ele queria. Encontrara um aliado e, o que era mais, um aliado inteligente.
— Pois bem — disse ele, muito sério — estou aqui para investigar o caso Strangways. Mas, antes de mais nada, quero fazer-lhe uma pergunta que talvez lhe pareça estranha. Pode dizer-me exatamente como foi que o senhor veio a saber daquele outro caso em que estive metido? O senhor disse-me que encontrou a pasta "por aí". Como foi? Alguém tinha pedido para consultá-la? Não quero ser indiscreto. Portanto, não responda, se o senhor julga que não deve fazê-lo. Estou apenas sendo curioso.
Pleydell-Smith arqueou uma sobrancelha. — Suponho que isso faça parte do seu ofício. Refletiu olhando para cima.
— Bem, agora que o senhor me faz pensar nisso, lembro-me de que a vi na escrivaninha de minha secretária. É uma funcionária nova. Disse-me que estava querendo pôr-se a par dos arquivos. Note bem — o Secretário para a Colônia apressou-se em isentar a moça de qualquer suspeita, — havia muitas outras pastas em sua escrivaninha. Foi apenas esta que me chamou a atenção.
—Ah, compreendo! — disse Bond. — Então, foi assim.
Ele sorriu, desculpando-se:
— Sinto tê-lo importunado, mas é que diversas pessoas parecem estar bastante curiosas com a minha presença aqui. Mas o que eu desejava, realmente, era que o senhor me desse informações sobre Crab Key. Qualquer coisa que o senhor saiba sobre essa propriedade. E sobre aquele chinês, o Doutor No, que a comprou. E qualquer coisa ainda que me possa contar a respeito desse negócio de exploração de guano. Estou pedindo muito, bem o sei, mas qualquer fragmento de informação me ajudará.
Pleydell-Smith deu uma risadinha através do cano do cachimbo. Arrancou-o da boca e falou, enquanto calcava o fumo com a caixa de fósforos.
— Acontece que sei mais do que lhe possa interessar em matéria de guano. Poderia discursar durante horas sobre este assunto. Eu tinha entrado na carreira diplomática, antes de me transferir para o Ministério das Colônias. Meu primeiro posto de cônsul foi no Peru. Tive muitas relações com os que administram todo esse negócio — Companhia Administradora del Guano. Gente direita.
O cachimbo estava em funcionamento, agora, e Pleydell-Smith atirou a caixa de fósforos na mesa.
— Quanto ao resto, é só mandar vir a pasta com os papéis sobre o assunto.
Tocou a campainha e poucos instantes depois abriu-se a porta que ficava atrás de Bond.
— Senhorita Taro, a pasta sobre Crab Key, por favor. Aquela onde estão arquivados os documentos sobre a venda das terras, e também aquela relativa ao guarda que veio de lá, pouco antes do Natal. A senhorita Longfellow sabe onde estão.
— Sim, senhor — respondeu uma voz macia, e Bond ouviu fechar-se a porta.
— Agora, quanto ao guano... — Pleydell-Smith inclinou a cadeira para trás. Bond preparou-se para ouvir uma preleção maçante.
— Como o senhor sabe, são excrementos de aves. O guano é produzido por dois pássaros, o andorinhão e o guanai, conhecido também por corvo-marinho verde, que é a mesma ave que existe na, Inglaterra. No tocante a Crab Key, o que se encontra é o corvo-marinho. É uma verdadeira máquina para transformar peixe em guano. Essas aves comem principalmente anchovas. Para o senhor ter uma idéia de quantos peixes podem comer, saiba que já foram encontradas até setenta anchovas no estômago de uma ave! — Pleydell-Smith tirou o cachimbo da boca e apontou-o com autoridade para Bond. — A população inteira do Peru consome quatro mil toneladas de peixes por ano. As aves marinhas desse país comem quinhentas mil toneladas!
Bond assobiou para demonstrar o seu assombro.
— Deveras?
— Pois bem — prosseguiu o Secretário para a Colônia — todos os dias, cada um desses milhares de corvos-marinhos come mais ou menos meio-quilo de peixe e deposita umas trinta gramas de guano na guaneira, isto é na ilha de guano.
— Por que não fazem isso no mar? — interrompeu Bond.
— Não sei. — Pleydell-Smith como que agarrou a pergunta e a virou e revirou em sua mente. — Nunca me lembrei de investigar. O fato é que não o fazem. Fazem-no no solo, e assim tem sido desde o começo do mundo. Isso representa um despropósito de estéreo de aves — milhões de toneladas. Ora, alguém descobriu, por volta de 1850, que o guano era o melhor adubo natural do mundo — cheio de nitratos e fosfatos, e tudo mais quanto se queira. E os navios e os homens chegaram aos depósitos de guano e saquearam-nos, literalmente, durante vinte anos ou mais. É uma época chamada "Saturnalia" no Peru. Foi como o Klondyke para o ouro. Travaram-se combates sobre aqueles monturos, atacavam-se os navios dos concorrentes, atirava-se nos trabalhadores, venderam-se pretensos mapas de ilhas secretas de guano — fez-se de tudo. E muitos enriqueceram com esse material.
— Que lugar ocupava Crab Key nesse quadro? — Bond queria fatos concretos.
— Era o único depósito de guano comercialmente explorável em latitude tão setentrional. Também foi explorado, só Deus sabe por quem. Mas aí, o guano tinha baixo teor de nitratos. As águas, por aqui, não são tão ricas quanto nas proximidades da corrente de Humboldt. Por isso, os peixes são mais pobres em elementos químicos. Em conseqüência, o guano também é mais pobre. Crab Key foi explorado esporadicamente, quando os preços eram altos, mas toda a indústria foi à glória, juntamente com Crab Key e demais depósitos menos ricos, quando os alemães inventaram fertilizantes sintéticos. Foi então que o governo peruano compreendeu que tinha sido dilapidado capital fantástico, e começou a reorganizar os remanescentes daquela indústria e a proteger os depósitos. O Peru nacionalizou a extração do guano e protegeu as aves, e devagar, bem devagar, as reservas começaram a crescer novamente. Descobriu-se então que o produto sintético tinha seus inconvenientes, que empobrecia o solo, o que não acontece com o guano, e o preço do material pôs-se a subir gradativamente, e a indústria extrativa reergueu-se aos poucos. Agora, está florescente, mas o Peru guarda a maior parte do guano para a sua agricultura. E é nesse ponto que Crab Key entra outra vez em cena.
— Ah!
— Pois é, — disse Pleydell-Smith, apalpando os bolsos em busca de fósforos. No começo da guerra, esse chinês, que deve ser um diabo inteligente, achou que poderia obter bons resultados com o antigo depósito de Crab Key. O preço era de cerca de cinqüenta dólares por tonelada, deste lado do Atlântico, e ele nos comprou a ilha por mais ou menos dez mil libras esterlinas, se estou bem lembrado; trouxe operários e pôs-se a trabalhar. A exploração tem prosseguido desde aquela época. Ele deve ter feito fortuna. Embarca diretamente para a Europa, para Antuérpia. Mandam-lhe um cargueiro uma vez por mês. Ele instalou os mais modernos moinhos e separadores. Explora os seus operários, segundo dizem. Não pode fazer de outra forma, se quiser ter lucro satisfatório. Mormente agora. Ouvi dizer, no ano passado, que ele estava recebendo apenas de trinta e oito a quarenta dólares por tonelada. Só Deus sabe o quanto ele está pagando aos operários, para ter lucros com tão baixo preço. Nunca pude descobri-lo. Ele administra essa propriedade como se fosse uma praça de guerra — uma espécie de campo de trabalhos forçados. Ninguém sai de lá. Correram boatos estranhos, mas nunca vieram dar queixa. A ilha é dele, afinal, e ele pode fazer nela o que bem entender.
Bond começou a procurar pistas.
— Essa propriedade tem realmente muito valor? Quanto pensa o senhor que possa valer?
— O corvo-marinho — disse Pleydell-Smith, — é a ave mais valiosa do mundo. Cada casal produz cerca de dois dólares de guano por ano, sem despesa alguma para o proprietário. Cada fêmea põe em média três ovos e cria dois filhotes. Pode-se calcular em quinze dólares o valor de cada casal, e em cem mil o número das aves de Crab Key, o que é uma estimativa razoável, baseada em dados antigos. Seus pássaros representariam nessas condições um milhão e meio de dólares. É, portanto, uma propriedade bastante valiosa. Acrescentemos o valor das instalações, ou seja, digamos, mais um milhão de dólares, e o senhor terá uma boa fortunazinha nesse lugar horroroso. Isso me faz lembrar... — Pleydell-Smith tocou a campainha — que diabo foi feito daquelas pastas? O senhor encontrará nelas todas as informações necessárias.
Abriu-se a porta atrás de Bond.
Pleydell-Smith perguntou, irritado:
— Francamente, senhorita Taro! Que fim levaram as pastas?
— Sinto muito — respondeu a voz macia — mas não conseguimos encontrá-las em parte alguma.
— O que significa "não conseguimos encontrá-las"? Quem as teve em mãos por último?
— O comandante Strangways.
— Ora, mas eu me lembro muito bem quando ele as devolveu, nesta sala. Que aconteceu, desde então?
— Não saberia dizê-lo, sr. Secretário. — A voz não traía a menor emoção. — As capas estão no lugar, mas não há nada dentro.
Bond voltou-se para trás. Lançou um rápido olhar para a moça e tornou a acomodar-se na poltrona. Sorriu amargamente. Sabia onde tinham ido parar as pastas. Sabia também porque a velha pasta relativa à sua atuação passada tinha estado na escrivaninha da secretária de Pleydell-Smith. Compreendia como a significação verdadeira de "James Bond, Importador e Exportador" parecia ter transpirado de King's House, o único lugar onde era conhecida.
Assim como o Doutor No, assim como Annabel Chung, a secretariazinha de óculos de aro de chifre, de aparência séria e eficiente, era chinesa.
VI - O DEDO NO GATILHO
O Secretário para a Colônia convidou Bond para almoçar no Clube da Rainha. Sentaram-se num canto da elegante sala de jantar revestida de painéis de mogno, com quatro grandes ventiladores no teto, e conversaram sobre Jamaica. Quando serviram o café, Pleydell-Smith estava fazendo uma exploração por galerias subterrâneas, muito abaixo da superfície da ilha, próspera e pacífica, que o mundo inteiro conhece.
— O caso é este. — Ele recomeçou suas manobras com o cachimbo. — O jamaicano é um indivíduo preguiçoso e bonachão, que tem as qualidades e os defeitos de uma criança. Vive numa ilha riquíssima, mas não tira riqueza dela. Não sabe fazê-lo, e é demasiado preguiçoso. Os ingleses vêm e vão-se, levando quireras fáceis de se apanharem, mas há dois séculos que nenhum inglês enriquece verdadeiramente aqui. Não ficam o tempo suficiente. Tiram um bom naco e vão-se embora. São os judeus portugueses os que tiram o maior proveito. Eles vieram para cá com os ingleses e ficaram. Mas são esnobes e gastam demais com a construção de belas vivendas e com bailes e festas. São os seus nomes que enchem a coluna social do "Gleaner", depois que os turistas se foram. Negociam com rum e fumo, e representam grandes firmas inglesas: automóveis, seguros etc. Depois, vêm os sírios, muito ricos também, mas que não são tão bons negociantes. Têm em suas mãos a maioria das lojas e bazares, e alguns dos melhores hotéis. Seus negócios nem sempre são muito seguros. Às vezes, acumulam estoques em excesso e têm de recorrer a um incêndio para se porem de novo em dia. Em seguida, temos os índios, com seu comércio de miudezas vistosas, tapetes, almofadas, mantas etc. Não são muitos. Finalmente, vêm os chineses, que constituem um conjunto sólido, compacto, discreto, a sociedade fechada mais poderosa de toda Jamaica. São donos das padarias e lavanderias, e das melhores mercearias. Mantêm-se isolados e conservam sua raça pura. — Pleydell-Smith riu-se.
— Não que fujam das moças de cor quando as desejam. 0 senhor pode ver o resultado por toda Kingston: os "chigros", mestiços das raças negra e chinesa. Os "chigros" constituem uma minoria racial forte e esquecida. Desprezam os negros e são desprezados pelos chineses. Qualquer dia, vão dar o que fazer. Têm um pouco da inteligência dos chineses e muitos dos vícios dos negros. A polícia tem bastante trabalho com eles.
— Aquela sua secretária — disse Bond — não será uma deles?
— É, sim. Moça inteligente e muito capaz. Está comigo há cerca de seis meses. Era, sem favor algum, a melhor de todas quantas responderam a nosso anúncio.
— Parece inteligente, — disse Bond, com indiferença.
— Essa gente está bem organizada? A comunidade de negros chineses tem algum chefe?
— Ainda não. Mas qualquer dia alguém vai querer pôr-se à testa deles. Poderiam representar um pequeno grupo bem útil para pressões políticas. — Pleydell-Smith consultou o relógio. — Isso me faz lembrar... Tenho que ir. Vou fazer o diabo a respeito daquelas pastas. Não posso imaginar o que foi feito delas. Lembro-me perfeitamente... — Interrompeu-se. — Em todo caso, o pior é que não lhe pude fornecer muitas informações sobre Crab Key e aquele doutor. Mas garanto-lhe que o senhor não teria encontrado muito mais nos arquivos. Parece que era um camarada de conversa agradável. Muito hábil para negócios. Depois, houve a encrenca com a Sociedade Audubon. Penso que o senhor está a par. Quanto ao local em si, nada havia nas pastas, a não ser um relatório de antes da guerra e uma cópia do último levantamento do Serviço Topográfico. Parece que é um lugar pouco favorecido. Nada mais que quilômetros de pântanos cobertos de mangues, e um morro enorme de estéreo de aves numa das extremidades. Mas o senhor falou em ir ao Instituto. Eu poderia levá-lo até lá, a fim de apresentá-lo ao encarregado da Seção de Cartografia, não acha?
Uma hora mais tarde, Bond estava acomodado no canto de uma sala escura, tendo à frente, numa mesa, um mapa aberto de Crab Key, feito pelo Serviço de Levantamento Topográfico e datado de 1910. Tinha ao seu lado uma folha de papel do Instituto, onde traçara um esboço ligeiro do mapa, e estava anotando os pormenores mais importantes.
A área total da ilha era de cerca de cento e trinta quilômetros quadrados. Três quartos desta área, a leste, eram ocupados por pântanos e por um lago de pouca profundidade. Saía do lago um rio que traçava seus meandros até o mar e desembocava no meio da costa sul, numa pequena enseada arenosa. Bond imaginou que em algum ponto próximo às cabeceiras do rio se encontraria o local mais provável do acampamento dos guardas da Sociedade Audubon. A oeste, o terreno elevava-se abruptamente, formando uma coluna cuja altura era dada como sendo de trinta metros, e descia não menos abruptamente, formando como que um paredão banhado pelo mar. Saía dessa colina uma linha pontilhada que ia ter a um canto do mapa, onde se podia ler: "Depósito de guano. última exploração, 1880".
Não havia indicação de estradas, nem sequer de alguma picada, nem sinal de habitações. Segundo o mapa do relevo, a ilha lembrava um rato d'água a nadar, de costas achatadas, com a súbita protuberância da cabeça dirigida para oeste. Parecia estar situada a cerca de.cinqüenta quilômetros ao norte da Ponta Galina, na costa setentrional de Jamaica, e a noventa quilômetros de Cuba.
Pouco mais se poderia aprender com o estudo do mapa. Crab Key era circundada por águas pouco profundas, com exceção do paredão da costa oeste, onde a sondagem mais próxima indicava quinhentas braças. Depois disso, era o mergulho no abismo do estreito de Cuba. Bond dobrou o mapa e devolveu-o ao bibliotecário.
Sentia-se subitamente exausto. Eram apenas quatro horas da tarde, mas o calor era abrasador em Kingston e ele tinha a roupa grudada no corpo. Bond saiu do Instituto e tomou um táxi, que o levou de volta pelas colinas frescas, até o hotel. Estava satisfeito com o seu dia, mas nada mais poderia ser feito deste lado da ilha. Passaria uma noite sossegada no hotel e aprontar-se-ia para levantar cedo e sair, na manhã seguinte.
Bond foi à portaria para indagar se havia algum recado de Quarrel.
— Nenhum recado — disse a recepcionista. — Mas chegou um cesto de frutas de King's House. Logo depois do almoço. O mensageiro levou-o para o seu quarto.
— Que espécie de mensageiro?
— Um homem de cor. Disse que vinha do escritório do ajudante de ordens.
Bond apanhou a chave e subiu pela escada até o primeiro andar. Aquilo era ridiculamente improvável. Com a mão no revólver que trazia por baixo do paletó, Bond aproximou-se sem ruído de seu quarto. Virou a chave na fechadura e deu um pontapé na porta. O quarto vazio parecia estar bocejando. Bond fechou a porta, dando volta à chave. Em cima da penteadeira havia um cesto grande e todo enfeitado, cheio de frutas — tangerinas, "grapefruits", bananas, frutas-do-conde e até mesmo dois pêssegos crescidos em estufa. Um envelope branco pendia de uma fita larga, presa na asa. Bond destacou-o e examinou-o contra a luz. Abriu-o. Numa folha sem cabeçalho, de papel de luxo, estavam datilografadas as seguintes palavras: "Com os cumprimentos de Sua Excelência o Governador."
Bond fungou. Deteve-se a examinar as frutas. Inclinou-se e chegou o ouvido ao cesto. Pegou-o pela asa e virou o seu conteúdo no chão. As frutas rolaram pelo tapete de fibras de coco. Nada mais havia no cesto, a não ser frutas. Bond riu sarcàsticamente de suas precauções. Restava ainda uma possibilidade. Pegou um dos pêssegos, a fruta que um homem guloso provavelmente escolheria em primeiro lugar, e levou-o para o banheiro. Jogou-o na pia e voltou para o quarto. Abriu o guarda-roupa, depois de ter examinado a fechadura, e pegou a mala, colocando-a no meio do quarto. Ajoelhou-se e examinou as marcas do talco que ele tinha esfregado em volta das fechaduras. Estavam borradas, e havia pequeninos arranhões à volta dos buracos de chave. Bond olhou com ar crítico para esses sinais. Essa gente não era tão cuidadosa quanto outros inimigos que tivera de enfrentar. Abriu as fechaduras e colocou a mala em pé. Havia quatro inocentes tachas de metal no reforço do canto direito da tampa. Bond forçou com a unha a tacha de cima e ela soltou-se. Agarrou-a e puxou para fora cerca de um metro de grosso arame de aço, que colocou no chão, ao lado. Esse arame passava por pequenas argolas de metal presas por dentro da tampa e mantinha a mala fechada, como que costurada. Bond levantou a tampa e verificou que não tinham tocado em nada. Tirou de sua "caixa de ferramentas" uma lente de joalheiro e voltou para o banheiro. Acendeu a luz acima do espelho. Colocou a lente na órbita e pegou delicadamente o pêssego, revolvendo-o cautelosamente entre o polegar e o indicador.
Bond parou de virar o pêssego. Tinha descoberto uma diminuta picada de agulha, com os bordos ligeiramente escuros. Ficava numa das dobras da fruta, invisível para quem não dispusesse de lupa. Colocou novamente o pêssego na pia. Ficou parado por um momento, cravando o olhar pensativo em seus próprios olhos refletidos no espelho. !j Então, era mesmo a guerra! Muito bem. Muito interessante. Bond sentiu um ligeiro repuxão da pele na base do estômago. Sorriu de leve para a sua imagem no espelho. Seu instinto e seu raciocínio estavam certos! Strangways e a moça tinham sido assassinados e seus arquivos destruídos, porque eles tinham chegado muito perto da pista certa. E Bond entrara em cena e, graças à senhorita Taro, estavam à sua espera. A senhorita Chung e talvez o chofer do táxi americano tinham-lhe seguido o rastro até o Hotel Montes Azuis. O primeiro tiro acabava de ser disparado. Outros viriam. E de quem era o dedo que premia o gatilho? Quem o tinha tão acuradamente sob pontaria? Bond já chegara a uma conclusão. Não existiam provas, mas ele tinha certeza. Era tiro de longo alcance, de Crab Key. O homem que dirigia o tiro era o Doutor No.
Tornou a entrar no quarto. Apanhou as frutas, uma por uma, e levou-as para o banheiro, examinando-as com a lente. Em cada uma delas, lá estava a picada de agulha dissimulada numa dobra ou perto do cabo. Bond telefonou para a portaria e pediu uma caixa de papelão, papel e barbante. Acondicionou cuidadosamente as frutas, e pediu uma ligação telefônica para King's House. Mandou chamar ao aparelho o Secretário para a Colônia.
— É Pleydell-Smith? Aqui fala James Bond. Sinto muito ter que importuná-lo, mas tenho um problema a resolver. Existe um laboratório oficial de análises, em Kingston? Compreendo. Bem, tenho aqui uma coisa que queria mandar analisar. Se eu mandar a caixa para o senhor, poderia fazer-me o favor de entregá-la a essa pessoa? Não quero que meu nome seja mencionado. Está bem? Explicarei tudo depois. Quando tiver o laudo, quer passar-me um telegrama muito conciso, relatando-me o resultado? Estarei em Beau Desert, perto de Porto Morgan, durante a próxima semana. Gostaria também que o senhor não passasse adiante esta informação. Desculpe tanto mistério. Explicarei tudo na próxima vez que estivermos juntos. Penso que o senhor compreenderá, quando souber do resultado da análise. E diga ao analista que tome cuidado ao manipular as amostras, sim? Avise-o de que deve existir nelas mais do que se possa imaginar. Muitíssimo obrigado por tudo. Tive sorte em conhecê-lo hoje. Até à vista.
Bond pôs o endereço no embrulho, desceu e pagou uma corrida de táxi, a fim de mandá-lo entregar imediatamente em King’s House. Eram seis horas. Voltou para o quarto, tomou um banho de chuveiro, trocou de roupa e pediu sua primeira bebida. Ia levando o copo para o alpendre, quando o telefone tocou. Era Quarrel.
— Tudo em ordem, chefe.
— Tudo? Formidável! A casa também?
— Tudo está arranjado. — Quarrel falou cautelosamente. — Vê-lo-ei à hora que o senhor marcou.
— Muito bem! — respondeu Bond. Estava impressionado com a eficácia de Quarrel, que lhe dava uma sensação de segurança. Desligou o telefone e foi para o alpendre.
O sol estava começando a se pôr. Uma sombra roxa ia-se alastrando sobre o porto e a cidade. Quando alcançar a cidade — pensou Bond — as luzes se acenderão. Tudo se passou como ele esperava. Acima dele, roncou um avião. Tornou-se visível. Era um “Super Constellation”, no mesmo horário pelo qual tinha chegado na véspera. Bond acompanhou-o com o olhar, enquanto o aparelho descrevia uma curva acima do mar e voltava em seguida, aterrando no aeroporto das Paliçadas. Que longo caminho tinha ele percorrido, desde o momento, distante apenas vinte e quatro horas, em que a porta do avião se abrira e o alto-falante dissera: “Estamos em Kingston, Jamaica. Senhores passageiros, queiram permanecer em seus lugares enquanto aguardamos a vistoria das autoridades sanitárias.”
Deveria comunicar a M as modificações havidas? Deveria mandar um relatório ao Governador? Bond lembrou-se do Governador e pôs essa idéia de lado. Poderia facilmente mandar uma mensagem a M, por intermédio do Ministério das Colônias. Mas que diria? Que o Doutor No o presenteara com frutas envenenadas? Mas nem ele tinha certeza de que estavam envenenadas., nem que tinham sido mandadas pelo Doutor No. Bond podia imaginar a expressão de M ao ler a mensagem. Via-o apertando o botão de intercomunicação: “Chefe do Pessoal, o agente 007 ficou louco. Diz que alguém tentou fazê-lo comer uma banana envenenada. Perdeu a cabeça. Esteve muito tempo no hospital. É melhor chamá-lo de volta.”
Bond sorriu. Ergueu-se e pediu outra dose de bebida. As coisas não se passariam exatamente assim, naturalmente, mas enfim... Não, ele esperaria ter algo mais a contar. Naturalmente, se qualquer coisa realmente grave acontecesse sem que ele tivesse dado algum aviso, estaria em situação difícil. Tinha que ser cauteloso, a fim de que nada andasse verdadeiramente mal.
Bond sorveu o segundo drinque e meditou sobre todos os pormenores de seu plano. Desceu e jantou no salão de refeições, quase deserto, e leu o “Manual das Índias Ocidentais”. Às nove horas, estava meio adormecido. Voltou para o quarto e aprontou a mala para o dia seguinte. Telefonou à portaria, pedindo que o chamassem às cinco e meia. Trancou a porta e fechou as venezianas. Isso significaria uma noite quente e abafada, mas era inevitável. Bond deitou-se completamente nu entre os leves lençóis de algodão, voltou-se para o lado esquerdo e colocou a mão no cabo do revólver “Walther PPK”, escondido sob o travesseiro. Cinco minutos depois, dormia profundamente.
A primeira coisa de que teve conhecimento foi que eram três horas da madrugada. Sabia, a hora, porque o mostrador luminoso do relógio estava perto de seu rosto. Ele estava completamente imóvel. Não se ouvia um único som no quarto. Lá fora, também, reinava um silêncio tumular. Ao longe, um cão pôs-se a latir. Outros responderam, e logo se ouviu um coro enervante, que cessou tão repentinamente quanto começara. Depois, novamente, o silêncio. O luar coava pelas frestas das venezianas, projetando listas pretas e brancas no quarto. Era como se Bond estivesse deitado numa jaula. O que o teria despertado? Bond moveu-se silenciosamente, preparando-se para deslizar para fora dos lençóis.
Deixou de fazer qualquer movimento. Parou, tão rígido quanto possível.
Qualquer coisa tinha mexido junto ao seu tornozelo. Agora, estava-se movendo pelo lado de dentro da perna. Bond sentia que os pêlos de suas pernas estavam sendo separados. Era um inseto qualquer. Um inseto muito grande. Era comprido, devia medir doze ou quinze centímetros — o comprimento de sua mão. Podia sentir dúzias de pezinhos tocando-lhe de leve na pele. Que seria?
Foi então que Bond ouviu algo que nunca tinha ouvido — o ruído do seu cabelo roçando pelo travesseiro. Analisou o som. Não podia ser! Não era possível, em absoluto! Mas não havia dúvida. Seu cabelo estava-se eriçando na cabeça. Bond podia até sentir no couro cabeludo a frescura do ar passando entre os cabelos hirtos! Que coisa extraordinária! Sempre tinha pensado que aquilo era modo de falar. Mas por quê? O que estaria acontecendo?
A coisa que estava em sua perna moveu-se. Subitamente, Bond percebeu que estava assustado, aterrorizado. Seu instinto, antes mesmo de ter entrado em comunicação com o cérebro, informara ao corpo que uma centopéia estava andando nele.
Bond ficou enregelado. Já vira, certa vez, uma centopéia dos trópicos, num vidro com álcool, em algum museu. Era parda e muito chata, e media de doze a quinze centímetros de comprimento — mais ou menos o comprimento dessa coisa. De cada lado da cabeça arredondada viam-se os dois ganchos recurvados pelos quais instalava a peçonha. O rótulo colado no vidro dizia que o veneno era mortal quando penetrava por uma artéria. Bond examinara curiosamente a tira de cutícula morta enrolada como um saca-rolhas e passara adiante.
A centopéia tinha alcançado o joelho. Estava começando a subir-lhe pela coxa. Acontecesse o que acontecesse, ele não devia fazer um só movimento, nem ao menos estremecer. Todo o ser consciente de Bond estava-se concentrando em duas carreiras de pés que se deslocavam vagarosamente. Agora, tinham-lhe chegado ao flanco. Céus! aquilo estava descendo outra vez! Bond cerrou os dentes. E se a centopéia gostasse do calor? Se tentasse abrigar-se nas cavidades? Poderia ele agüentar? E se ela escolhesse aquele lugar para morder? Bond sentia-a tateando por entre os pêlos. Fazia-lhe cócegas. A pele de seu ventre pôs-se a vibrar. Ele não podia fazer nada para impedi-lo. Mas agora, a coisa estava subindo pelo ventre, sobre o seu estômago. Os pezinhos estavam-se firmando melhor, para evitar uma queda. Estava agora passando sobre o coração. Se mordesse, matá-lo-ia, com toda certeza. A centopéia arrastava-se tranqüilamente, por entre os finos pêlos que revestiam o peito de Bond, até a clavícula direita. Parou. Que estaria fazendo? Bond sentia aquela cabeça quase informe, a procurar cegamente aqui e acolá. Que estava buscando? Haveria espaço suficiente, entre o lençol e sua pele, para que o bicho pudesse sair? Deveria ele ajudá-lo, levantando ligeiramente o lençol? Não! Nunca! A centopéia estava na base da jugular. Intrigada, talvez, pela pulsação. Oh Deus! Se ele pudesse controlar a circulação do sangue!Maldito bicho! Bond tentou comunicar-se mentalmente com a centopéia: Não é nada; essa pulsação não é perigosa. Não lhe quer fazer mal. Vá respirar um pouco de ar fresco!
Como se tivesse ouvido, o animal subiu pela coluna do pescoço e passou pela covinha do queixo. Agora, estava no canto da boca, fazendo cócegas intoleráveis. Foi subindo ao longo do nariz. Bond sentia todo o peso e comprimento do ser maldito. Fechou os olhos. Dois a dois, os pés iam-se movendo aos pares, passando por cima da pálpebra direita. Quando tivesse ultrapassado o nariz, deveria Bond arriscar-se e sacudir a centopéia, confiando em que resvalaria pela pele coberta de suor? Não, pelo amor de Deus! Aqueles pés eram muitos. Poderia sacudir uma parte deles, mas não todos.
Com incrível deliberação, o enorme inseto passeou pela testa de Bond. Parou junto ao cabelo. Que diabo estaria fazendo nesse momento? Bond sentia-a farejando-lhe a pele. Estava bebendo! Bebendo os bagos de suor salgado. Bond estava certo disso. A centopéia quase não se moveu durante alguns minutos. Bond estava-se sentindo mal sob aquela tensão nervosa. Dentro de alguns minutos, seus membros se poriam a tremer. Percebia-o claramente. Um acesso de medo o sacudiria todo. Poderia controlar-se? Bond permaneceu estendido, à espera, exalando vagarosamente a respiração pela boca aberta, contorcida.
A centopéia recomeçou a mover-se. Caminhou pela floresta dos cabelos. Bond sentia as raízes serem repuxadas para os lados, à medida em que a lacraia venenosa ia abrindo caminho. Gostaria desse refúgio? Instalar-se-ia ali para dormir? Como dormiam as centopéias? Enrascadas ou deitadas de comprido? Os pequeninos miriápodes que ele vira em criança, aqueles que sempre pareciam achar um caminho para subir pelo cano do ladrão até a banheira, enrolavam-se completamente quando a gente os tocava. Agora, a centopéia tinha chegado ao lugar onde sua cabeça repousava, contra o lençol. Desceria ela sobre o travesseiro, ou ficaria na floresta quente dos cabelos? A centopéia parou. Fora! FORA! berravam os nervos de Bond.
A centopéia mexeu-se. Saiu devagar do meio dos cabelos e foi para o travesseiro.
Bond esperou um instante. Podia agora ouvir os pares de pé arranhando devagarzinho a fazenda de algodão da fronha. Era um ruído fraco, como que de unhas macias.
Com um estrondo que abalou o quarto, o corpo de Bond projetou-se fora da cama e caiu no chão.
No mesmo momento, Bond estava em pé e perto da porta. Acendeu a luz. Percebeu que estava tremendo sem poder conter-se. Cambaleou até a cama. Aí estava ela, arrastando-se para se esconder debaixo do travesseiro. O primeiro ímpeto de Bond foi atirar o travesseiro no chão. Dominou-se, esperando que seus nervos se acalmassem. Então, silenciosa e deliberadamente, agarrou o travesseiro por uma ponta, foi até o meio do quarto e deixou-o cair. A centopéia saiu de baixo do travesseiro e começou a arrastar-se rapidamente sobre o tapete. Bond tinha perdido o interesse em seus movimentos. Procurou algo com que matá-la. Foi calmamente apanhar um sapato e voltou. O perigo tinha passado. Sua mente estava procurando descobrir como a centopéia teria chegado até a sua cama. Ergueu o sapato e, devagar, quase negligentemente, esmagou o animal. Ouviu o estalo da dura carapaça.
Levantou o sapato.
A centopéia estava entregue às contorções da agonia. Eram doze centímetros de morte brilhante, de um cinza pardacento. Bond desferiu outra pancada. A centopéia rebentou, numa massa amarelada. Bond largou o sapato e correu para o banheiro, vomitando com violência.