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CAPÍTULO 11
Claro que as possibilidades de fabrico não são o meu interesse principal. Sou acima de tudo um cientista.
Gustave acenou com a cabeça em resposta à declaração tranquilizadora e honesta de Sir Gerome Scot. Scot era um colega cientista e impunha-se gentileza. Era também
Scot quem pagava a refeição que Gustave comia agora num clube privado a convite dele.
No entanto, não queria saber de experiências com químicos. Tinha a mente ocupada com outros problemas.
Já estava atrasado. Tyndale queria que fosse rapidamente preparada uma demonstração da descoberta e até então Gustave não havia feito progresso nenhum nos preparativos.
Teria ajudado se pudesse ter sido uma demonstração pequena, como a experiência que levara a cabo em Paris. Mas não, Tyndale queria saltar essa etapa. Queria uma
coisa maior, que pudesse ser usada para obter uma patente e atrair industriais.
Precisava de comprar materiais e químicos. Precisava de encontrar um edifício, fora de mão, que não suscitasse curiosidade a ninguém. Precisava de se movimentar
por Londres discreta e subtilmente.
Scot papagueava em francês, como era o dever de qualquer homem civilizado e educado. Até os criados deste clube exclusivo
sabiam o suficiente para atender ao conforto de Gustave. Infelizmente, uma vez fora dos patamares mais elevados da sociedade deste país bárbaro, ninguém falava francês,
muito menos latim. E Gustave não sabia inglês.
A situação era impossível. Era necessário que descesse consideravelmente no mundo para fazer as coisas funcionarem, mas não conseguia comunicar com os homens que
precisava de abordar.
Scot lançou-se numa entediante explicação de mais um processo químico. Gustave tentou parecer interessado, mas passados cinco minutos algo lhe chamou a atenção.
Entrara um jovem na divisão, vindo de outra sala, que olhou à volta e se dirigiu a uma mesa onde estava um amigo. Era o seu antigo secretário, Adrian Burchard.
Scot notou a distraçáo. Olhou na direção de Adrian e fez um esgar. - Parece deslocado, não parece?
- Sim. O que faz ele aqui?
- É membro. Não se pode exatamente mandar embora o filho de um conde, pois não? Mesmo sendo óbvio que a paternidade é apenas legal.
A notícia foi surpreendente. Adrian nunca dissera ser filho de um conde quando se candidatara à colocação em Paris. Quem imaginaria tal coisa, com aqueles olhos
escuros mediterrânicos.
- Então, a mãe dele... - Gustave ergueu uma sobrancelha muito eloquente.
- Obvio, não é? Foi nobre da parte de Dincaster ter aceitado sequer o rapaz, é o que digo. Bem, é um filho terceiro, por isso são poucas as hipóteses de ser ele
a herdar, imagino eu. Tem o bom senso de ser discreto, não que seja possível com uns olhos daqueles. Tem estado por conta dele desde que saiu da universidade, foi
o que ouvi. Nem um tostão do conde, que é o que deve ser. Faz alguns trabalhos menores para os Negócios Estrangeiros esporadicamente. Secretário e coisas parecidas,
uma vez ou outra. Há no nosso governo quem não ligue por aí além ao verdadeiro nascimento de uma pessoa, lamento dizer. " ofc
Adrian alegara ter secretariado um diplomata qualquer, ou coisa assim. Fora um pormenor que Gustave presumira ser mentira e descurara generosamente.
- Que interessante. - Que útil, de facto.
Gustave duvidava que Adrian tivesse anunciado a alguma pessoa do clube que por vezes secretariava homens menos ilustres do que embaixadores. Não admirava que raramente
saísse de casa em Paris e que passasse os seroes naquele quarto de sótão.
Ficou de olho em Adrian durante o resto da refeição. Calculou o tempo de terminar a sua refeição para coincidir com a do secretário. Fez por sair do clube ao mesmo
tempo que o filho de conde de aspeto estrangeiro.
A expressão de Adrian registou alguma surpresa quando Gustave se reuniu a ele à espera do chapéu. Não houve, porém, menção da sua associação anterior.
Era tudo o que Gustave tinha necessidade de saber.
Seguiu Adrian para a rua e teve de estugar o passo para o apanhar. - Preferis ser mal-educado com o vosso antigo empregador?
- Fiquei surpreendido por ver-vos, foi tudo. Estais a desfrutar da vossa visita?
- Estou ocupado de mais. Penso que fui precipitado em dispensar-vos. Ser-me-ia útil a ajuda de alguém que conhece esta cidade.
- Há muitos secretários e escriturários disponíveis. Se pedirdes aos vossos amigos, eles arranjam-vos um.
- Preciso de um que fale francês.
- Não deve ser muito difícil.
- Preferia alguém conhecido. - Gustave sorriu. - Como vós. Tinham chegado a uma esquina. Adrian parou e voltou-se para
ele. - Não estou à procura de emprego neste momento.
- Não seria oficial. Não seria público - esclareceu Gustave, mostrando-lhe que sabia quais eram as suas verdadeiras apreensões.
Adrian olhou para todos os lados e finalmente para um edifício no outro lado da rua. - Lamento não poder ajudar-vos.
- Seria muito privado. Eu próprio desejo discrição. A nossa necessidade mútua nesse aspeto assegurará a discrição do acordo.
- Lamento. Não posso.
- Acho que podeis. Acho que deveis.
- Devo?
- Certamente não quereis que procure a ajuda de outros cientistas e confidencie que o meu próprio secretário é orgulhoso de mais para me ajudar.
Adrian olhou de repente para ele, incisivo. A sua irritação desvaneceu lentamente, substituída por resignação. - Suponho que possa ajudar-vos, oficiosamente, claro.
- bom. Não é todos os dias. com efeito, depois de se atender a algumas questões, não precisarei muito mais de vós. O mesmo salário, digamos? Quinze dias?
O queixo de Adrian contraiu-se, como se falar de dinheiro fosse um insulto. Ali em Inglaterra, onde se sabia que era filho de um conde, mesmo que de legitimidade
duvidosa, era mesmo.
- Certo. Agora vou prestar-vos um primeiro auxílio, uma vez que precisais claramente dele. Do outro lado da rua está um homem de barba que vos observa desde que
parámos aqui. Provavelmente é um carteirista que vos identificou como estrangeiro.
Alarmado, Gustave deu meia-volta. Assim que o fez, um homem de barba, mal vestido, de casaca e chapéu gastos, começou a descer
a rua.
- Ficai alerta a estas coisas, msieur. Inglaterra tem os melhores ladrões do mundo.
- Miss Albret?
O chamamento veio de uma carruagem que passava na rua. Diane deparou com os olhos perplexos de Vergil Duclairc à janela.
Ao seu lado, na sombra, vislumbrou o perfil perfeito de Julian Hampton, o amigo e jovem advogado de um seleto punhado de clientes que incluía Daniel e a família
Duclairc. Conhecera Mister
Hampton no jantar da condessa, um homem de pungente beleza, dono de uma reserva cristalina. Ela passara o serão inteiro à espera que ele falasse em poesia, caso
se dignasse de todo falar.
Ela continuou o seu caminho, retomando a descompostura mental que dava a Daniel St. John desde o momento em que o vira sair da casa naquele dia de manhã.
Sentiu uma pequena movimentação de cavalos a bater os cascos e a resfolegar. Subitamente, Vergil caminhava ao lado dela.
- Miss Albret, estais só? Quem vos escoltava perdeu-vos de vista? Ficai comigo e eu encontro o criado de St. John.
- Ninguém me perdeu. Tenho uma coisa para fazer e vou fazê-la. E agora um bom dia para vós.
Ela dobrou uma esquina, deixando-o para trás. Ele apanhou-a. - Estais sozinha? Mas não podeis andar a pé sozinha.
- Claro que posso. É o que tenho estado a fazer no último quarto de hora, mais ou menos.
Uma carruagem colocou-se ao lado deles. O veículo de Mister Hampton dera meia-volta e agora acompanhava-os.
Vergil colocou-se à frente dela, impedindo-a de prosseguir.
- Miss Albret, dar-vos-emos a nossa carruagem. O cocheiro levar-vos-á aonde quer que desejais ir. Devo insistir.
Começava a tornar-se severo e autoritário.
Naquele dia ela não estava na disposição de acatar ordens de ninguém, muito menos de um homem.
- Miss Albret, ou ides de carruagem ou aceitais que vos escolte a pé. Uma ou outra deixar-me-ão em sarilhos com o vosso primo, já que ele me avisou para me afastar,
mas, por favor... - Apontou a carruagem.
- Estou a andar porque quero andar. Não consigo impedir-vos de me acompanhar, se persistirdes. Quanto aos avisos do meu primo, ele não ficará preocupado. Provavelmente
sabe que estais arrebatado por uma certa cantora de ópera e não tendes qualquer interesse em
mim. Não que me importe o que Daniel St. John pensa, ou sabe, ou as preocupações que tem.
Vergil pestanejou de surpresa. Se fora espanto pela sua falta de consideração pela opinião de Daniel ou a prova de que toda a gente sabia da sua cantora de ópera,
ela não percebeu.
- Falais com muita franqueza, não falais?
- As minhas desculpas. Mas tenho andado a falar com tanta delicadeza e sensaboria nestas últimas semanas, que a franqueza acumulada hoje de manhã transbordou.
Ele foi até à carruagem e disse algo pela janela. O veículo acelerou e virou na rua seguinte.
Vergil caminhava ao lado dela, tentando protegê-la dos encontroes. - Onde ides?
- Onde me dissestes para ir, a uma das sociedades que seguram navios. Soube de uma chamada Lloyds, na City1.
- Vai ser uma longa caminhada. Seguramente que St. John vos teria levado.
Ela cerrou os dentes. Daniel prometera levá-la "dentro de alguns dias". Tinha sido há duas semanas.
Claro, ele não via necessidade para pressas. Que lhe importava a ele? Não era ele quem estava à deriva no mundo, sem história, sem família, sem casa. Ele não trazia
um vazio no coração que implorava ser preenchido com alguma coisa, com qualquer coisa. Podia dizer-lhe para esperar até não ter absolutamente mais nada que fazer,
o que seria nunca.
Andavam há meia hora quando o vulto de um cavalo os mergulhou na sombra.
- Levastes o vosso tempo a chegar, St. John - comentou Vergil. Diane estacou. O seu olhar subiu pela figura encorpada do animal até ao rígido cavaleiro que tapava
o sol.
1 Área do centro de Londres onde estão concentradas várias instituições financeiras. (N. da T.)
- Não quis passar por cima de ninguém - disse Daniel. - Hampton vem atrás, e se regressardes pelo mesmo caminho deparareis com a carruagem dele. Obrigada, e a minha
prima pede-vos desculpa pela demora que isto vos causou. Não pedis, Diane?
- Não são necessárias desculpas - disse Vergil, afastando-se. Daniel desmontou. - O que vou eu fazer convosco?
- Sair-me da frente, hoje seria a escolha mais avisada. - Retomou a marcha.
Ele acompanhou-a, com o cavalo pela rédea. A multidão afastava-se como o Mar Vermelho à passagem do enorme corcel.
- Uma mulher não anda sozinha em Londres. A minha irmã não vo-lo explicou?
- Vejo imensas mulheres a andarem sozinhas.
- Mas isso é diferente. São pobres e têm de ir para os empregos.
- Também sou pobre e tenho de ir trabalhar. Ele ignorou a primeira parte. - Trabalhar onde?
- vou à Lloyds.
- Ah! Então esta rebelião é o resultado de um amuo por eu ainda não ter tratado disso.
Ela parou e pôs-se de frente para ele, tão furiosa que os seus olhos lhe doíam. - Não troceis de mim. É por isso que aqui estou. E por isso que saí da escola. Não
foi para vos divertir, nem foi pela vossa irmã, por muito que goste dela. Se esperar que vós atendais a isto, ficarei velha primeiro. Se eu não soubesse que sou
completamente insignificante para vós, suspeitaria que me mentistes no jardim para me empatar.
Rodou nos calcanhares e continuou a andar. Ele foi atrás dela.
- Ide-vos embora.
- Devo insistir em acompanhar-vos. As ruas não são seguras e estamos longe de mais para chamar Paul ou outra pessoa.
Ela ignorou o homem que caminhava ao seu lado, ao contrário de todos os outros transeuntes. Os dois, mais o enorme cavalo que seguia ao lado deles, resfolegando
pela rua, atraíam muitas atenções.
- Estamos a dar espetáculo - advertiu Daniel.
- Da próxima vez visto a minha roupa da escola. Quando fazia isso em Paris ninguém reparava em mim.
- Se estiverdes com as vossas roupas da escola, ninguém responderá às vossas perguntas. Na realidade, hoje também ninguém o faria, não fosse o facto de eu estar
convosco.
Podia ter dito logo explicitamente: "Não sois nada sem mim. Eu fiz-vos."
- E o que achais? - ripostou, com os lábios contraídos para controlar a raiva. - Veremos.
A Lloyds ficava na Royal Exchange, que, com o seu pórtico clássico, lhe fez lembrar uma igreja inglesa. O espaço interior imenso e quadrado, repleto de mercadores
e homens de negócios, estava ladeado de mercadorias. Daniel pegou-lhe no braço para ela não ser engolida pela multidão e fê-la subir alguns degraus até uma sala
cheia de homens.
- É a Lloyds - disse. - Os corretores estão naquela parede. vou apresentar-vos a Thomson. Ele conhece-me.
Ela não se refugiou à sombra de Daniel, por muito que quisesse. Acercou-se da secretária de Mister Thompson com toda a distinção que conseguiu e olhou o empregado
diretamente nos olhos.
O jovem ficou corado, começou a gaguejar e deixou cair a caneta ao chão quando ela lhe sorriu.
Diane olhou de lado para Daniel, deparando-se com Daniel a fazer-lhe o mesmo.
Mister Thompson teve imenso gosto em rever Daniel. Daniel apresentou-a e tentou impor a sua autoridade na entrevista, mas ela exigiu a atenção de Mister Thompson
com mais um sorriso.
Ele deu-lha de bom grado. Por baixo dos esparsos e grisalhos fios de cabelo, o seu couro cabeludo ruborizou-se. Esquecendo a presença impositiva de Daniel St. John,
aguardou o pedido de Diane com um sorriso radiante.
- Procuro informação sobre um parente meu, Jonathan Albret. Esteve nos transportes marítimos há alguns anos, à volta de quinze.
Espero que, se a vossa sociedade tiver segurado algum dos seus navios, possais ter algo que me ajude na minha busca.
- bom, certamente que podemos ver o que temos. Posso pedir aos nossos escriturários que verifiquem e que vos enviem informação.
- Seria possível fazê-lo agora? Ficar-vos-ia muito grata. Há mui-
tos meses que procuro.
Daniel soltou um suspiro. - Mister Thompson está muito ocupado...
- Não tão ocupado que não possa ajudar uma senhora em apuros. - O rosto de Mister Thompson converteu-se numa máscara de simpatia. Deu ordens ao escrevente e uns
enormes tomos encadernados começaram a dar entrada.
Mister Thompson inclinou-se por cima do ombro dela para explicar como eram registadas as entradas. - Sabeis os nomes dos navios ou dos comandantes?
Ela olhou para Daniel, que abanou a cabeça.
- Não, só o nome do dono.
- Ah, isso torna as coisas mais difíceis. Temos de examinar esta coluna, mas assim não há uma ordem. Tomai, ficai com este, e eu ficarei com o outro e o meu empregado
fará o terceiro.
Diane ofereceu um sorriso de gratidão ao seu rosto muito próximo. Até as entradas do homem ficaram vermelhas.
- Mister St. John, se tiverdes outros assuntos a tratar na cidade, tenho a certeza de que Mister Thompson e o seu escriturário me assistirão - disse Diane.
- Não receeis, St. John, vossa prima estará a salvo connosco.
- Ficarei aqui - foi a resposta firme.
Eram só três tomos, por isso ele limitou-se a sentar-se numa cadeira ao pé da janela enquanto Diane e os seus dois deslumbrados assistentes os folheavam.
Duas horas mais tarde, Diane tinha provas irrefutáveis de que o seu pai não segurara navio algum através da Loyds durante os seis anos que precederam o seu desaparecimento.
Entrara na Royal Exchange temerária e confiante, certa de fazer progressos. Agora, ao fechar o pesado volume encadernado, apoderou-se dela um desalento profundo.
Mister Thompson reparou. - Lamento muito. Podemos prócurar mais para trás se quiserdes.
- Não, obrigada.
Os dois homens olhavam para ela com a expressão de quem cortaria uma perna para a poupar àquela infelicidade. O que só a fez sentir-se culpada pela sua pequena sedução.
- Vinde, Diane. - A voz de Daniel estava mesmo por trás dela. Ela não queria olhar para ele. Provavelmente estaria aborrecido
por ela ter causado tantos incómodos para coisa nenhuma.
Forçando-se a engolir a desilusão que sentia, dizendo a si própria que havia outras sociedades de seguros e que isto não ditava o fim da sua esperança, aceitou que
ele a acompanhasse até à rua. Quando ele estava a desatar as rédeas do cavalo, viu-lhe o rosto.
Não era irritação. Era outra coisa, o que lhe endurecia a expressão e lhe ardia nos olhos.
Caminharam para oeste em silêncio. Ela sentiu-se aliviada. Era desilusão a mais para responder a qualquer admoestação com a atitude determinada que tivera duas horas
antes.
De qualquer maneira, conseguia praticamente ouvi-la. Era o tom indiferente das velhas perguntas da escola. Estais satisfeita agora? Bastar-vos-á for uns tempos?
Chega terdes desperdiçado a tarde de três homens na vossa demanda?
À medida que se aproximavam de Temple Bar, o caos e o ritmo das ruas mudaram bruscamente.
As pessoas caminhavam um bocadinho mais depressa. Os pobres e os plebeus iam em massa na direção do rio enquanto as carruagens e as pessoas mais bem vestidas se
apressavam a ir na outra direção. Daniel parou e espreitou pela rua estreita, inclinando a cabeça.
A brisa trazia um burburinho vago.
- Outra manifestação - disse Daniel. - Perto do Parlamento. A sessão de hoje deve ter começado. - Ele pegou no braço dela e
voltou pelo caminho que acabavam de percorrer. - Teremos de ir por outro caminho. Infelizmente, isso quer dizer que passaremos por uma parte da cidade pouco agradável.
Depararam com uma travessa calma, sem ninguém. As lojas tinham fechado as portas.
Daniel conduziu o cavalo até uma pedra de montar. - Não há como prever o que encontraremos. Será melhor se formos a cavalo. Subi para a pedra e eu ajudo-vos a subir,
para trás de mim.
Ela pôs-se em cima da pedra. - Nunca andei a cavalo.
- Então o dia de hoje será o primeiro em muitas coisas, não é verdade? - Ele montou e depois inclinou-se para ela. - A primeira vez que andais a cavalo e a primeira
vez que usais os vossos encantos até terdes dos homens aquilo que quereis. - A expressão dele voltou a endurecer ao dizer a última parte.
O braço dele rodeou-lhe a cintura, numa proximidade desconcertante. - E também a primeira vez que tendes as pernas em exibição para Londres inteira ver. Isto só
funcionará se puxardes a saia para cima, já que tendes de montar com uma perna para cada lado. Fazei-o agora e eu puxo-vos.
Ela obedeceu. Meia-volta e estava atrás dele. A saia subiu-lhe, amarfanhada, até aos joelhos.
- Cobri-vos o melhor que conseguirdes com a vossa capa. Depois segurai-vos a mim para não cairdes.
Ela resistiu à última ordem, preferindo agarrar a parte de trás da sela.
Quase caiu, e o animal ainda mal começara a andar. Hesitante, colocou os braços à volta do corpo de Daniel.
Não era um abraço. Nem por isso. No entanto, a ligação, o calor, inebriaram-na por completo. Tal como o abraço de despedida de Madame Leblanc, na escola, a deixara
sem fôlego, tal como o trato de Daniel na carruagem a deixara vulnerável, estar agarrada a ele, mesmo sem intimidade, provocou uma reação imediata.
O vazio tomou conta dela e depois gritou de alívio, quase gemendo, sentindo o afluxo do mais doce, mais humano, contentamento.
Vede, não estais completamente só, sussurrou o seu coração. Há outras maneiras. Outros lares, e outros amores, para além dos da família.
Fora avisado regressarem a cavalo e não a pé. Passaram por ruas de mau aspeto. As pessoas que nelas perambulavam estavam agitadas pela manifestação na qual nem sequer
tinham participado. Daniel passava a trotar a um ritmo rápido, ignorando os gritos atirados na direção deles.
Subitamente, parou o cavalo. Espreitando por detrás do corpo de Daniel, ela viu que se formara uma multidão na rua à sua frente. Daniel virou a montada, mas também
não paravam de chegar pessoas ao cruzamento que acabavam de atravessar.
Praguejando baixinho, voltou a virar e avançou a trote. - Deve ter havido violência perto do Parlamento. As notícias correm. Agora segurai-vos bem.
Ela agarrou-se muito bem. A fealdade das expressões dos rostos à sua volta convertia a humanidade do grupo na ferocidade de uma multidão. Lembrou-se do ataque à
saída da ópera, em Paris, e preocupou-a que alguns daqueles pobres diabos pudessem ter facas.
Valendo-se da corpulência do cavalo, Daniel abriu caminho. Alguns homens tentaram não se desviar e só saltaram para o lado no último minuto. Choveram pragas e obscenidades.
- Porque estão eles irritados connosco? Não estamos no governo.
- Estão irritados com qualquer pessoa que possa comer sem contar os tostões que lhe sobram.
De repente os rostos que os olhavam com desprezo não pareciam tão falhos de humanidade. - Se estão com fome, imagino que isso desculpe o comportamento deles.
Ele virou para ela uns olhos inflamados. - Não há desculpa.
Nesse preciso momento, um homem agarrou a cabeçada do cavalo. Outro agarrou no tornozelo exposto de Diane, que, horrorizada, o tentou sacudir, conseguindo apenas
que ele começasse a rir-se. "í
Grunhindo, Daniel deu-lhe um pontapé com tanta vontade que o homem voou e caiu de costas na sarjeta.
Diane viu por instantes o rosto de Daniel enquanto ele reagia à ameaça. Por um momento ele pareceu tão duro e cruel, tão primitivo e implacável, que ela quase o
largou e se virou para trás. Depois pestanejou e aquele aspeto desapareceu tão rápido que ela se perguntou se o teria imaginado.
Daniel passou o cavalo para um ritmo mais rápido. A multidão afastou-se. Não houve mais desafios.
Em breve a multidão rarefez-se e desapareceu, juntamente com a pobreza dos edifícios. O ruído surdo e familiar ainda vogava na brisa, mas todas as outras provas
de desassossego tinham cessado.
- Tendes de descer agora - instruiu Daniel, parando o cavalo.
- Outras pessoas não devem ver-vos assim.
Fizeram a pé o resto do caminho até à casa dele. Ele não disse nada, mas ela sentiu que ele queria fazê-lo. Não eram coisas agradáveis, disso tinha a certeza. O
seu silêncio tinha uma nota áspera.
- Vinde ao escritório, por favor.
Ela sentiu-se como se sentia na escola, quando era chamada ao gabinete da diretora. Detestava sentir em si aquela reação. Melindrava-a estar em tão grande desvantagem,
e nem sequer saber porquê, ou o que era que ele esperava dela.
Pelo menos ele não se sentou atrás da escrivaninha e não a examinou como se fosse uma aluna malcomportada. Em vez disso, pôs-se à janela e, como fazia tantas vezes
na presença dela, olhou para fora, em vez de olhar para ela.
O que também não lhe agradava nada.
- Sei que ficastes infeliz com o dia de hoje. Lamento. - Parecia suficientemente sincero. Então porque sentia ela que ele não o lamentava completamente?
- Talvez não devais persistir muito em procurar parentes perdidos, Diane. A desilusão... sois jovem e tendes uma vida a construir. O passado consegue ser uma grilheta,
e vós fostes poupada a isso.
- Vós não compreendeis.
- Penso que sim, melhor do que pensais.
- Se compreendêsseis nunca chamaríeis grilheta ao passado, como se aprisionasse uma pessoa.
- Pode fazê-lo.
- Então eu quero grilhetas dessas. Quero estar presa a uma família, boa ou má. Quero poder dizer que o meu avô viveu nesta cidade e que o meu tio tinha aquele ofício.
- Ela ouvia ressentimento e súplica na sua voz, mas não conseguiu deter nem um nem outro. - Quero saber que alguém se importava comigo quando nasci e que ficou triste
por me deixar e que pensava em mim às vezes. Quero saber que tenho algures um primo ou uma tia que se pergunta o que terá sido feito de mim.
A sua declaração ressoou pela sala. Ecoou durante algum tempo até ser engolida pelo silêncio.
- É tudo? Quero sair.
Ele voltou-se. - Não, não é tudo. Não deveis voltar a sair sozinha.
- Em Paris combinámos que podia continuar a fazer aqui o mesmo que lá.
- Eu não sabia que andáveis sozinha em Paris. No futuro levai escolta.
-Já acabámos?
- Não. Parece-me que nestas últimas semanas haveis descoberto o poder que uma mulher bonita tem. Contudo, a forma como brincastes com Mister Thompson e o empregado
hoje foi ousada de mais.
- Não foi nada ousada. Foi muito subtil. Já vi duquesas fazer bem pior.
- Não sois uma duquesa de quarenta anos.
- Não, sou uma órfã de vinte sem um tostão. Se um sorriso abre os livros dos Mister Thompson do mundo, é um preço pequeno a pagar, com a única moeda que tenho.
- Eu ter-vos-ia aberto os livros.
- Preferi fazê-lo eu própria. Dizei, msieur, o nosso acordo produz os resultados que esperáveis?
- O que quereis dizer?
- Atraio as atenções que esperáveis? Travais conhecimento com os homens que queríeis conhecer? Faz-se negócio nos serões de cartas e clubes? O investimento que fazeis
em mim traz-vos resultados?
- Que coisa para se perguntar. Às vezes espantais-me.
- Prefiro-vos espantado a ter-vos a encher-me os ouvidos. Se tudo se passa como queríeis, não penso que os vossos sermões sejam apropriados. Contai os vossos ganhos
e deixai-me colher os meus.
Ela saiu, e a cada passo aumentava a pequena fúria que sentira quando ele a confrontara na rua. Chegou à escadaria praticamente a tremer de frustração e com uma
sensação inexplicável de ter sido insultada.
Estavam dois vasos orientais colocados no remate dos corrimões. Ao contrário dos que estavam no seu quarto de Paris, estes eram rosa e verdes, cobertos de flores.
Olhou para eles, ali no seu poiso para todos verem, proclamando o gosto urbano do homem que os detinha.
Que a detinha a ela, de certa forma.
Pegou num dos vasos. A fineza da porcelana proclamava a proeza do artífice, a par da sua decoração.
Tomando-lhe o peso, deleitou-se com a sensação.
Caro. Perfeito. Um objeto de singular beleza.
As suas mãos libertaram-no. Desfez-se em pedaços no chão de mármore.
O som ecoou até ao corredor. Abriram-se portas de onde saíram criados boquiabertos. Daniel emergiu da biblioteca, curioso.
Ela estava no meio dos estilhaços, mal conseguindo conter uma euforia insolente.
Os criados desviaram o olhar de Diane para Daniel.
Ele aproximou-se com uma expressão estranhíssima no rosto. Apontou para o vaso partido.
- Era um Ming.
- Dais nomes aos vossos vasos?
- Dinastia Ming. com pelo menos trezentos anos. O par não tinha preço.
- Dissestes-me para partir um. Todos os dias, se quisesse.
- Eram os do vosso quarto.
- Importa?
Ele voltou para a biblioteca com uma expressão de indulgência.
- O simples facto de terdes partido alguma coisa é o que importa. Não me augura nada de bom, pois não?
CAPÍTULO 12
Ainda não terminaram, senhora. Conto que demore pelo menos mais uma hora. - O lacaio falou pela janela do cocheiro e o rosto desapareceu em seguida.
Penelope olhou para Diane, desculpando-se. - Espero que não vos importeis de esperar por eles.
- Claro que não. - Era o que a condessa tinha de mais desconcertante. Apesar de ter tomado como amiga a obscura prima de um armador, agia como se Diane não devesse
estar grata e até tivesse algum direito a importar-se.
- Eu cá importo-me. Mas não com este atraso. Se o meu irmão me pedisse para esperar a tarde inteira, não poderia queixar-me. No entanto, vexa-me ser tão cobarde.
Incomoda-me que o conde tenha o condão de me fazer isto, mas o medo deixa-me paralisada.
- O simples facto de irdes à festa mostra que não sois covarde. Estavam a caminho de uma festa em casa de Lady Pennell, no
Essex. Penelope combinara parar ali em Hampstead, naquela casa antiga, para se encontrar com o seu irmão Vergil e viajarem juntos. Em circunstâncias normais, a condessa
não teria necessidade daquele aparato todo, mas a festa poderia tornar-se muito constrangedora. O seu marido, o conde de Glasbury, estaria lá. A sua família
reunia-se em peso para a apoiar. O irmão mais velho, o visconde Laclere, também planeara ir até lá para estar ao lado da irmã.
- Podíamos assistir - sugeriu Penelope. - É uma academia de esgrima, cujo dono é o chevalier Louis Corbet. Dizem alguns que é a melhor de Inglaterra, apesar da fama
da de Angelo, em Bond Street. Lá é um desporto. Aqui diz-se que o chevalier a ensina como se fosse para combater na guerra ou em duelos. Podíamos dar uma espreitadela.
- É permitido? As mulheres assistem no tal Angelo?
- Claro que não. Descobri, porém, que depois de uma mulher deixar o marido, pouco mais há que possa fazer que realmente choque alguém.
Diane notara há já algum tempo que Penelope considerava que a sua nova liberdade merecia um pouco de censura pública. Não que ela explorasse realmente essa liberdade.
Ao contrário de algumas mulheres, que sem pudor adotavam amantes, os pecados de Penelope eram de natureza diferente. Ela misturava-se com pessoas com que normalmente
uma condessa não se misturaria, e fazia seus amigos outros que tinham caído muito mais baixo do que ela.
Segundo Jeanette, a condessa maculava-se sem redenção possível. As pessoas importantes mais facilmente perdoariam um caso com um homem casado do que perdoariam amizades
democráticas. Era apenas uma questão de tempo até algumas das salas que ainda se abriam para a condessa começarem a fechar.
Tomando a dianteira, Pen encaminhou-se para a entrada da casa e empurrou a porta devagar. Seguiram o barulho de aço sobre aço até uma câmara grande que ficava a
seguir ao vestíbulo. Espreitando pela ombreira da porta, como crianças a espiar no baile, viram três pares de homens em duelo de espadas.
- Parece muito perigoso - sussurrou Penelope, - Nem sequer utilizam camisas acolchoadas. Um movimento em falso e há sangue.
Diane não considerara o perigo que as roupas deixavam adivinhar. Só reparara na falta delas. Não só eles não usavam camisas
acolchoadas, como não usavam camisa de todo. A sala parecia girar com as imagens de seis torsos nus e fortes.
Ela nunca vira nenhum na vida.
- Não pensei que o vosso primo estivesse aqui - desculpou-se Penelope. - O homem grisalho com quem se bate em duelo é chevalier Corbet.
Diane distinguira logo Daniel. Ele estava de frente para elas, mas toda a sua concentração estava no adversário, tal como era devido.
- Ele e o chevalier são claramente os mais capazes. Os movimentos do meu irmão são menos audazes. São mais estudados.
Diane não reparava nos diferentes níveis de perícia. Não conseguia desviar a atenção de Daniel. Ele estava muito atraente. Ao contrário dos rostos dos homens mais
novos, onde o esforço era visível, o dele permanecia calmo, quase frio, ao corresponder ao ataque do chevalier.
Tinha um aspeto magnífico. Forte e confiante, esbelto e musculado e... maravilhoso. Um brilho suavíssimo cobria-lhe a pele e músculos retesados delineavam-lhe os
braços, os ombros e o peito. Não era o homem maior da sala, mas não havia como não reparar que cada centímetro dele estava perfeitamente trabalhado e era potencialmente
perigoso.
O olhar dela deixou-se ir até àqueles músculos, fascinado com a sua solidez esculpida. A forma como o tronco dele se estreitava até às ancas atraía inexoravelmente
a sua atenção. Sentiu uma excitação percorrê-la, e memórias proibidas das suas carícias na carruagem invadiram-lhe a mente.
Qual seria a sensação de pousar a palma da sua mão naquele peito? Parecia tão robusto, mas com certeza que a pele seria quente , e macia...
- Diabos, Pen, que fazeis aqui? - O grito de Vergil Duclairc arrancou Diane às suas vergonhosas especulações.
Tinham reparado nelas.
Os combates cessaram imediatamente. Vergil e três outros homens apressaram-se a ir buscar as camisas.
Daniel não. Olhando para a entrada, baixou a espada. O seu olhar captou o de Diane antes de esta conseguir esconder-se atrás do umbral.
Ela sentiu o rosto aquecer. Algo no olhar dele sugeria que soubera que ela estava lá. Tal como ela vira a reação dele no espelho da modista, ele vira a sua, apesar
de ter a atenção na espada do chevalier.
Ao contrário de Vergil Duclairc, ele deixara-a olhar.
A expressão dele não mostrava nem constrangimento nem choque. Os seus olhos limitavam-se a constatar o que ela via, e o facto de não ter desviado o olhar. Como ainda
não tinha feito.
- Céus, Pen, que tínheis na cabeça? - Vergil apareceu subitamente à frente delas, tapando a vista. A camisa apenas lhe pendia dos ombros, um simples recurso para
esconder a nudez.
Ao lado dele estava um jovem de beleza perfeita de cabelo castanho e sorriso vencedor. Devidamente vestido, estivera comodamente recostado num banco num dos lados
da sala.
- Não fazia ideia de que esgrimíeis sem roupa - justificou Pen.
- Só em jogo de combate defensivo. É para nos acostumarmos à vulnerabilidade. - Mas sois vós quem tem de dar explicações, não eu.
- Apenas estávamos curiosas sobre a prática. Ainda bem que não estáveis completamente nus, como nas métopas gregas de Elgin. E pensar que eu sempre presumira que
se tratara de liberdade artística por parte do escultor.
Vergil suspirou, exasperado. - Sabeis muito bem que devíeis ter saído imediatamente. Além do mais, trazer Miss Albret...
Penelope olhou para Diane. - Oh, Céus, fui descuidada. Vamo-nos embora agora e esperamos na carruagem. Não vos apresseis por nossa causa. Insisto. Terminai como
havíeis planeado.
Pegando em Diane pelo braço, Penelope dirigiu-se para a entrada do edifício. - O Vergil consegue ser um tanto retrógrado.
Sempre fez parte dele, mas piora à medida que vai envelhecendo. Não sei onde foi buscar isso, uma vez que a nossa família não é conhecida por coisas dessas. É mais
o oposto. Ele é bem-intencionado, mas consegue ser cansativo.
- Concordo, Pen. Tendo acabado de ouvir uma repreensão que durou o caminho todo até aqui, devo dizer que essa característica de Vergil se desenvolveu consideravelmente
desde a última vez que o vi. Apesar de ser escandaloso da vossa parte andardes assim a espreitar.
A resposta veio de trás delas. Diane olhou para lá para ver o belo jovem que as seguia. A nota de humor nos seus olhos límpidos sugeria que ele considerava os comportamentos
escandalosos muito divertidos.
No pátio, Pen deu-lhe um abraço e um beijo. - Diane, este é o meu irmão mais novo, Dante. Só tem dezoito anos, mas já viveu uma vida inteira de tribulação. Fiquei
surpreendida por vos ver ali, Dante. Foi gentil da vossa parte sairdes da universidade para virdes até cá apoiar-me.
- E com satisfação que vos apoio, mas confesso que tive pouca escolha no que respeita à parte de vir até cá.
O semblante de Pen mudou. O seu suspiro pareceu tão exasperado como o de Vergil fora. - Estais a dizer que fostes suspenso? Outra vez, Dante? Não admira que Vergil
resmungasse. O que foi desta vez?
- Algo de somenos importância. - Dante indicou Diane com o olhar, para lembrar à irmã que tinham companhia.
- Visto que temos algum tempo antes de irmos embora, vou dar um passeio no parque - anunciou Diane.
Pen estava completamente absorta com o irmão mais novo e não objetou quando Diane se afastou. A última visão que teve deles, ao virar a esquina da casa, foi de Dante
a falar com uma expressão algo envergonhada e Pen a resmungar.
Diane já avançara bem no bosque quando reparou que nunca antes passeara no campo. A escola localizava-se nos arredores de Rouen, mas a sua envolvência dificilmente
se diria rural. As saídas tinham sido para ir à cidade, que não ficava longe. Em Paris, e agora em Londres, ela usufruíra dos parques, mas sem se aventurar para
lá das áreas cultivadas. Esta casa de Hampstead podia não estar rodeada de quintas, mas havia muita terra e tanta vegetação que o cenário parecia rural.
Andou por caminhos, surpreendida por a experiência não a assustar mais. As pessoas falavam da Natureza como sendo um lugar de transformação. A ela, pelo contrário,
parecia-lhe bastante familiar. Talvez por a Natureza ser silenciosa e solitária, e o seu coração estar muito acostumado a ambas as coisas.
Não completamente silenciosa. O estrondo de disparos rasgava o sossego a intervalos regulares. Não muito longe, alguém andava atrás de caça.
O que também não a deixou sobressaltada. Ela soube logo o significado do som. Soube que pertencia àquele sítio e que ela não devia aproximar-se.
Virou por outro caminho e viu uma clareira mais à frente. Ao aproximar-se do intervalo nas árvores, deparou com uma casa rústica.
Parou. A imagem daquela casa, rodeada por aqueles troncos e ramos vacilantes, era-lhe tão familiar que ficou sem respiração. Teve a estranha sensação de já ter vivido
aquele momento.
Não era a primeira vez que tinha aquela sensação inusitada. Ela sabia que todas as pessoas a experimentavam por vezes. Mas esta foi mais distinta do que qualquer
outra. Acreditava que, se lho pedissem, conseguiria descrever completamente a casa sem ver o resto.
Tentou fazê-lo. Quando a sua cabeça lhe falhou, quando não surgiram os pormenores recônditos, ela riu-se de si própria e continuou a andar.
A velha casa de telhado de colmo, de paredes revestidas e vigas de madeira, parecia bem cuidada. Alguém vivia lá.
Como se chamado pela sua curiosidade, a porta abriu-se e saiu de lá um homem de idade. As suas roupas eram simples mas estavam limpas, a sua barba comprida e branca.
Reparou nela.
- O chevalier agora aceita mulheres para as lições? - A ideia fê-lo soltar uma risada, a caminho do poço com um balde na mão.
- Estou apenas de visita. Não estou a aprender a usar a espada.
- Falais como ele. Francesa, certo? Não se vê muito mulheres por aqui.
Ela aproximou-se. A sensação de estar reviver alguma coisa intensificou-se. - Quem sois?
Ele olhou surpreso para ela e depois riu-se. - Sou George. Cuido dos terrenos o melhor que posso com estas pernas. Passei aqui a maior parte da minha vida, ainda
antes de o chevalier vir para cá. Diacho, estava aqui quando passou para aquele marialva antes de Corbet. Perdeu-os ao jogo, sim, e eu já estava a ver. Como vejo
aqueles rapazolas que vêm para os duelos deles a perder, provavelmente, a maior parte do que têm em mulheres e cartas. - Deu à manivela até o balde emergir do poço.
- Uma pergunta arrojada merece outra. Quem sois vós?
Uma profunda desilusão abriu-lhe o peito. - Não sou ninguém.
- Saiu-lhe antes de dar por isso, a resposta nascida do particular desalento que subitamente lhe partiu o coração.
Diane deu meia-volta, para se afastar daquele sítio que a fazia sentir-se tão estranha e perdida.
- Sabeis o caminho de regresso? - perguntou George.
Ela parou. Não prestara muita atenção aos caminhos por onde viera. Fora descuidada.
- Que sorte não vos terdes perdido. Ide pelo primeiro trilho que sai para a direita. Leva-vos ao limite do bosque e é só seguir por ele até à casa. Há outro caminho,
mais rápido, mas esse é o melhor de seguir. Mas ide pelas árvores deste lado do campo. Esses disparos que ouvis é um dos rapazes a praticar com a pistola do outro
lado.
- Pensei que fosse caça.
-Já não se anda muito à caça por estas partes. Demasiada construção. Costumava ser campo, mas a cidade está a tomar o espaço.
Ela agradeceu e seguiu o caminho que ele indicara. Na curva para contornar o campo, o sol dissipou a sensação de déjà vu.
Não conseguia ver a casa, mas ia na sua direção, segundo as indicações de George. Umas poucas flores precoces salpicavam o pequeno campo. Quando chegasse o verão,
cobri-lo-iam por inteiro.
Perguntou-se se conheceria o chevalier. Se sim, talvez ele a convidasse para uma nova visita. Imaginou-se a correr descalça ao sol naquele prado. A fantasia era
tão vívida que ela sentiu a erva e a terra sob os pés.
Os tiros tinham parado, mas subitamente um estalido rompeu o silêncio. Ao mesmo tempo, sentiu um silvo ténue perto da orelha. Um baque à sua esquerda fê-la virar
a cabeça em sobressalto e gritar.
Estacou, aturdida. Precisou de vários instantes para compreender a razão da sua reação.
Acabava de passar por ela uma bala.
Desceu-lhe pelo pescoço um arrepio de medo. A mesma sensação de choque que experimentara a seguir à ópera imobilizava-a agora.
Apareceu um homem do outro lado do campo. Viu-a e desatou a correr. À medida que ele se aproximava, Diane via apenas cabelo louro e um rosto consternado.
- Estais ferida? Acertou-vos? -As perguntas gritadas aproximaram-se com ele.
Não tinha a certeza. Achava que não. Abanou a cabeça.
- Graças a Deus. Uma lebre assustou-me e a minha pontaria falhou. Nunca anda ninguém nestes terrenos, por isso quando vos ouvi o meu coração parou.
Ela recuperou a compostura. - Estou bastante bem. Não acho sequer que tenha passado perto. Gritei porque me assustei, foi tudo.
Ele suspirou de alívio. - Por favor, deixai-me acompanhar-vos até à casa. As apresentações formais terão de aguardar, mas o meu nome é Andrew Tyndale, e nunca me
perdoarei pelo meu descuido.
Ele parecia robusto e honesto, um cavalheiro. Já sem a preocupação no rosto, a sua expressão era contrita e preocupada. Diane calculou que tivesse quarenta e muitos
anos.
Permitir-lhe que a acompanhasse pareceu-lhe uma opção sensata. - Agradeço-vos, sim. Estou um pouco abalada, confesso.
Enquanto caminhavam, silenciosos, ela olhou disfarçadamente para ele algumas vezes. Era um homem atraente, de maxilares fortes e olhos azuis encovados. O seu semblante
dava mostras de abertura, como se não houvesse muito a disfarçar. Pareceu-lhe que deveria ter sido deslumbrante quando era novo. O cabelo louro ao estilo romano
e o corte elegante do casaco sugeriam que ainda considerava sê-lo.
Ela travara conhecimento com muitos homens da idade dele desde que saíra da escola. Alguns ignoravam o correr dos anos e fingiam ser ainda jovens, e passavam por
tolos em vez de inteligentes. Outros resignavam-se tanto ao passar do tempo que bem podiam estar já nos sessenta. Andrew Tyndale parecia ter conseguido um equilíbrio.
Envergava a sua maturidade com franqueza, mas a sua boa forma e elegância anunciavam que ainda não tinha passado o seu tempo.
Ele sorriu-lhe. Era um sorriso caloroso. Conferia ao seu rosto um semblante que inspirava confiança. - Como disse, as apresentações formais terão de aguardar, mas,
uma vez que quase vos matei, posso saber o vosso nome?
- Diane Albret. - Pronunciou o "t", como fazia desde que chegara a Inglaterra. Sempre na expectativa de que alguém reconhecesse o nome se o pronunciasse daquela
maneira. Para reivindicar a sua verdadeira proveniência, também tentava purgar o seu discurso de palavras francesas e do seu sotaque, mesmo sendo um e outro considerados
muito elegantes naquelas partes.
- Sois francesa? - perguntou, indicando, como George antes dele, que o sotaque ainda a denunciava.
- Sou inglesa, mas cresci em França.
- Estáveis longe de casa durante a guerra, então.
Sim, muito longe de casa. Ela não sabia porquê, mas sentiu que ele acolheria de bom grado as suas confidências sobre o assunto. Estaria muito mais interessado no
significado que aquilo tinha tido para ela do que Daniel estivera.
- Sois parente do chevalier?
- Não, estou aqui com Lady Glasbury.
- Ah! Agora sei porque me pareceis familiar. Penso que vos vi com ela no baile de Lady Starbridge, na semana passada. A condessa é amiga do chevalier.
- Não me parece. Estamos à espera que o irmão dela acabe o treino.
- Deveis referir-vos a Vergil Duclairc. Da Sociedade de Duelos de Hampstead. É o nome que deram a eles próprios. Não é sociedade de esgrima, mas sim de duelos. Praticam
para um desafio que nunca há de vir, e fingem ser corsários.
- Não sois membro, parece-me.
- Sou velho de mais para me deixar encantar por fantasias.
- Mas também frequentais a academia do chevalier?
- A sua perícia é insuperável, e usa o sabre militar, que eu prefiro. Gosto que ele treine sem as camisas acolchoadas. Ao contrário dos jovens que lá estão agora,
contudo, não tiro a camisa e trago uma lavada para vestir depois de terminado o treino.
Ele riu com a piada que acabava de dizer. Ela quase o fez também, mas só até se lembrar que assim indicaria que os vira sem as camisas.
- O dia está bonito e o campo muito agradável - disse ele, oferecendo-lhe um sorriso paternal. - Vamos atravessá-lo e ir para a casa pelo caminho do bosque do outro
lado. Há um riacho adorável onde se vêem crocos floridos.
- Não vai começar mais ninguém a atirar, pois não?
- Não, e eu sei como ficar fora de alcance se o fizerem.
Ela sentia-se muito segura com ele, ainda que ele quase a tivesse alvejado. Queria atravessar o campo, por isso anuiu.
com a saia a roçar pela erva seca, concluiu que gostava da companhia de Andrew Tyndale. Poderia um dia ter caminhado assim com o pai se ele não estivesse morto.
Andrew Tyndale não a assustava minimamente, sendo tão velho, nem a deixava perturbada. Tratava-a como trataria uma sobrinha ou uma filha.
Não criava pequenas eternidades nas quais ela se esquecia de como respirar.
- As minhas desculpas pela minha irmã, St. John. O facto de levar uma vida independente fez com que começasse a ter atitudes muito peculiares.
A exasperação de Vergil fez Daniel sorrir. Ter atitudes muito peculiares era uma espécie de tradição dos Duclairc, e Vergil, com o seu respeito pela aparência de
retidão, era o que destoava da família.
- Sendo uma mulher casada, claro, o choque não foi tão grande. A vossa prima, contudo... - Vergil arranjava o lenço no espelho do vestiário. - vou relembrar à Pen
as responsabilidades dela a esse respeito.
- Eu não faria do assunto mais do que aquilo que foi. Estou certo de que se a vossa irmã soubesse nunca teria entrado, muito menos deixado que a minha prima o fizesse.
Vergil assentiu com a cabeça, aliviado por ter recebido absolvição pela irmã. - Muito decente da vossa parte.
Daniel não se sentia de todo decente a propósito do pequeno episódio. O comportamento de Lady Glasbury era desculpável. O seu não.
Ele soubera que elas lá estavam bem antes de Vergil dar o alarme. Tinha reparado nelas ao travar a espada de Louis com a sua. Vira Diane a observá-lo. Tivera plena
consciência da expressão dos seus olhos.
Gozara dissimuladamente cada maldito segundo do que lhe parecera uma hora, emproando-se como um animal que se exibe perante a sua parceira.
Fazia-se ridículo por causa dela.
Saíram para o pátio onde a carruagem da condessa aguardava. Vergil encaminhou-se para lá com uma expressão que indicava que a condessa ia ouvir um sermão, de qualquer
forma.
Acabou por ser curto. Voltou para a beira de Daniel. - A vossa prima não está aqui. Foi dar um passeio, para proporcionar à minha irmã alguma privacidade com Dante,
que lhe contou a história do seu mau comportamento.
- Eu vou procurar por ela.
- Dissestes que tínheis de ir a uma reunião antes de vos juntardes a nós no Essex. Permiti-me, já que de qualquer modo nos demoraremos até ela ser encontrada.
A reunião era de importância vital, mas podia seguramente esperar. Daniel não queria Diane a caminhar naqueles bosques.
Quando se voltou para a casa, deparou com a saída alvoroçada do edifício de dois outros alunos da academia. Subiram para uma carruagem, que se afastou.
A sua ausência revelou um cavalo atado a um poste.
- Não tinha reparado que Tyndale ainda cá estava - comentou Daniel.
- Saiu para o tiro estávamos nós a chegar. Era a pistola dele que ouvíamos quando praticávamos.
Mal acabou de falar, os seus olhos brilharam de preocupação. Daniel também ficou com o coração nas mãos. Era raro alguém caminhar no terreno, e quem praticava pistola
não se preocupava muito com essas coisas.
- Certamente que se lhe tivessem acertado... - começou Vergil.
- Vós e Dante procurais no campo e no bosque à direita comandou Daniel, dirigindo-se a passos largos para as traseiras da casa. - Eu vou para a zona de tiro.
Ela não fora ferida. Daniel soube-o quando ouviu o riso dela. Seguiu o som até a ver sentada num tronco à beira do ribeiro.
Tinham-lhe enfeitado o colo com um montinho de crocos. Um homem oferecia-lhe mais um.
Não tinha sido uma bala a ir ao seu encontro.
Mas sim Andrew Tyndale.
Diane sorriu e aceitou a flor. Daniel não viu aquela desconfiança cautelosa nos seus olhos. Ela não sentia perigo. Claro que não. Daniel não conseguia ver a expressão
de Tyndale, mas conseguia imaginar a sua honestidade franca.
Apenas Daniel testemunhara a ferocidade daqueles olhos quando combatia com Louis.
Nem mais ninguém vira as outras centelhas quando Tyndale observara Diane do outro lado de um salão de baile apinhado. Daniel vira-as, mas só porque as procurara
cuidadosamente.
Tyndale estava sentado ao lado de Diane e apontava para outra flor que tinha na mão. De sobrolho franzido, ela olhava para a flor e recebia uma qualquer lição de
horticultura.
Diane teve de se baixar mais para ver bem a flor. A Daniel não escapou a reaçáo manhosa de Tyndale ao movimento subtil.
O canalha iria tentar agora, aqui? A idade teria tornado o homem assim tão precipitado e descarado?
A flor escorregou da mão de Tyndale e flutuou pelo ribeiro abaixo. Rindo da sua falta de jeito, ele esticou o braço para tirar outra do montinho no colo de Diane.
Daniel observou aquela mão, o braço que roçava o corpo de Diane, e os olhos de Tyndale, e soube com certeza que, dando-lhe tempo suficiente naquele tronco, as coisas
se tornariam muito menos inocentes.
Instintos que ele não sabia que possuía incitaram-no a avançar. Emoções primitivas de proteção e posse aos gritos na sua cabeça, que, surgindo tão súbitas e violentas,
quase tomaram conta dele.
Foram outros instintos que as limitaram. Os instintos do felino perfeitamente imóvel que, sentado, aguarda o movimento da sua presa. Os de um homem que planeia uma
vida em perseguição de um objetivo.
O objetivo esperava-o naquele tronco. Cinco minutos, talvez dez, e estaria terminado. Quase. Os meios para a concretização estariam ao seu alcance, porém.
Contara que levasse semanas. Meses. Afinal, o destino tratara rapidamente disso.
Concluída a explicação sobre a flor, Tyndale aproximou-se e enfiou-a no cabelo de Diane, junto à orelha.
Daniel notou no semblante dela um pouco da cautela que tão bem conhecia. Durante um instante, Diane perscrutou o rosto do homem ao seu lado. Depois descontraiu e
sorriu, tranquilizada.
Daniel imaginou o regresso daquela desconfiança. Viu o horror dela quando Tyndale a atacasse. Ele sabia o quanto teria de deixar as coisas avançarem para ter uma
desculpa para o matar. O grito para a proteger crescia e crescia à medida que a sua cabeça presenciava o desenrolar de tudo.
Rebentou uma tormenta dentro dele. A ânsia que sentia de sair do meio das árvores chocou o homem que ele lutara para ser. Passavam em rajadas pela sua mente imagens
de todas as razões pelas quais devia esperar que aquele canalha se desgraçasse. Invadiram-no memórias que lhe arrepiavam a espinha sempre que assomavam à superfície.
A cabeça num torvelinho, o sangue a ferver, Daniel era dilacerado pelas forças raivosas que se debatiam dentro dele.
Diane curvou-se para apanhar mais um croco. O olhar de Tyndale, com muito pouco de paternal, desceu-lhe pelo corpo.
A lascívia daqueles olhos despoletou relâmpagos na tempestade. Uma decisão que Daniel jamais esperara cristalizou-se de imediato.
Ela já tinha sofrido o bastante com isto. Ele encontraria outra forma de o fazer.
CAPÍTULO 13
Daniel saiu do meio das árvores. Diane viu-o quando se preparava para apanhar um croco violeta. O som do passo dele fê-la erguer a cabeça de rompante. Endireitou-se
rapidamente.
A alcunha de criança que lhe dera surgiu-lhe logo. O Homem Diabo. Há semanas que não pensava nele daquela forma, mas agora sim.
A expressão dele parecia amigável. Caminhava num passo descontraído. Ainda assim, sentia ameaça nele, um perigo retraído. Nos seus olhos viu perfeitamente o brilho
que dizia que nada o distrairia naquele dia.
- Aqui estais vós. Temíamos que vos tivésseis perdido. A condessa aguarda. - O olhar de Daniel foi pousar não sobre ela mas sobre Andrew Tyndale. - Nunca fomos apresentados.
Sou Daniel St. John. Miss Albret é minha prima.
Mister Tyndale ergueu-se. - Devo desculpar-me por não a ter levado imediatamente. O prazer que tem com as flores atrasou-nos.
- Na realidade, perdi-me mesmo e Mister Tyndale teve a bondade de me mostrar o caminho certo. - A mentira saiu-lhe. Por alguma razão pareceu-lhe boa ideia fazê-lo.
- É gentil da vossa parte tentar fazer vista grossa à minha indesculpável negligência, Miss Albret, mas a verdade deve ser dita ou vosso primo considerará a nossa
associação imprópria. Eu estava a atirar e uma bala perdeu-se, St. John. Quando ouvi uma mulher gritar, corri a investigar. A vossa prima não estava ferida, mas
encontrava-se muito abalada. Parar um momento ao pé do ribeiro para ela se recompor pareceu-me uma coisa apropriada para se fazer.
- Agradeço-vos por terdes cuidado dela. Ela não tinha forma de saber que estes bosques podiam ser perigosos. Se eu tivesse dado conta de que ela poderia ter a oportunidade
de os explorar, tê-lo-ia referido. Deveria tê-lo feito, por precaução, ao saber que ela pararia aqui com a condessa. - Aproximou-se de Diane, deixando o caminho
livre. - Tendes a minha gratidão.
Era uma despedida, e por pouco não era rude. Mister Tyndale acatou graciosamente a indicação e seguiu o trilho pelo meio do arvoredo.
- Não deveis ter associação nenhuma com aquele homem no futuro. Jamais.
As costas de Daniel estavam viradas para ela quando emitiu a ordem.
-Acho-o muito simpático, e ficou muito aflito com o acidente com a pistola.
Saiu-lhe mais desafiador do que ela tencionara.
Ele voltou-se. Quando ela viu a expressão dele, ficou com um nó na garganta.
- Não houve acidente nenhum. Ele viu-vos andar sozinha e atirou na vossa direção, para ter uma desculpa para vos conhecer. Não há maneira de alguém que esteja na
zona de tiro conseguir atirar uma bala para o campo.
A acusação dele aumentou-lhe a irritação. Ele tornava-se tão cansativo como Vergil fora para Penelope, só que Daniel St. John não tinha direito a sujeitá-la a estas
lições e recriminações. Não era irmão dela, nem sequer parente. Não lhe agradava a forma como
ele censurava o pobre Mister Tyndale, que ficara tão preocupado e contrito com o seu erro.
- Talvez ele tenha usado uma zona de tiro diferente. Uma lebre
assustou-o e...
- Nem um urso assustaria o homem. Tem fama de ser um dos melhores atiradores de Inglaterra. Valha-nos ao menos isso, já que se atreveu a tal estratagema para vos
conhecer.
- Arengais como um louco. Mister Tyndale foi em tudo um cavalheiro. Para não dizer que tem idade que chegue para ser meu pai.
- Cristo, como sois ignorante. Julgais que a idade de um homem faz alguma diferença em coisas dessas?
- Claro que sim. O comportamento dele comigo foi irrepreensível. Gostei da companhia dele. Acho que me seria um bom amigo.
- Ele quer mais do que amizade, podeis acreditar em mim. Ela riu. - Isso é o que Madame Leblanc disse sobre vós. Quase
as mesmas palavras.
- E ela estava certa, que raio.
Subitamente ele estava mais próximo. Mesmo à frente dela. Ela teve de inclinar a cabeça para lhe ver o rosto.
Novas centelhas avivavam-lhe o olhar. As mais profundas, que vira naquela primeira noite em Paris, quando ele partira o vaso. As de aço que mostrara quando confrontara
Vergil no salão de Margot.
Estava com ciúmes.
Ela não tinha experiência com ciumeira, mas sabia que estava certa. Uma parte estúpida dela sentia-se lisonjeada. Outra parte, maior, estava furiosa.
- Avisai-los a todos para se porem a andar? Passais o vosso tempo nas festas e jantares a seguir-me para todo o lado, a dizer a todos que não tenho um tostão e que
sou órfã e que não mereço a atenção deles?
- Digo-lhes que se não vos tratarem devidamente têm de se haver comigo.
- Mas contais que algum me corteje devidamente porque não tenho fortuna, não é assim?
Ele não respondeu, mas ela aprendera o suficiente sobre o funcionamento do mundo para saber que estava certa.
Diane constatou de forma violenta o caráter absurdo da sua situação. A sua cabeça latejava de indignação.
Indicou as roupas com um gesto e riu amargamente. - Mas vós estragastes-me, St. John. Arruinastes-me. Olhai para a boneca que comprastes. Esperais que fique sentada
na prateleira para sempre, a ser bonita? Quando isto acabar, que escolhas tenho? Devo contentar-me em ser governanta, então? Ou dama de companhia de uma senhora?
Depois destas diversões grandiosas? Eu tenho frequentado duquesas. Já que não há uma forma decente de eu no futuro viver esta vida, penso que devia considerar a
alternativa.
- O que quereis dizer com isso?
- Por esta altura Margot já voltou para Londres com Mister Johnson. Fui descuidada em ainda não ter ido visitá-la.
Deu meia-volta. Conseguiu dar três passos orgulhosos e irritados antes de ele lhe agarrar o braço.
- Ides uma ova! - Fê-la voltar-se para trás. Contra ele.
O abraço dele envolveu-a. Chocou-a. Ela ainda conseguiu contorcer-se uma vez, na tentativa de resistir antes de o calor do corpo dele e a exigência dos seus olhos
começarem a vencer a sua indignação.
Lutou contra a tentadora intimidade, apesar de o seu coração a desejar tanto. Talvez tivesse sido isto a que se referira quando ameaçara converter-se numa Margot.
Quem sabe se o fizesse, o vazio seria encoberto durante algum tempo.
Como Daniel o encobria agora.
- Não deveis ter associação nenhuma com aquele homem no futuro. - Falou com gentileza, desta vez. Falou a sério. Pareceu-lhe mais um aviso do que uma ordem, mas
ainda lhe restava discernimento suficiente, suficiente noção do tempo e do espaço, para não gostar de o ouvir.
- Ele não pensa em mim dessa forma. É um cavalheiro, ele.
- Todos os homens pensam em vós dessa forma.
- Duvido que isso seja verdade. Acho que...
O beijo dele silenciou-a. A sua insistência firme provava que pelo menos um homem pensava nela daquela maneira.
Os beijos foram lentos e duros e implacáveis. Estavam carregados do perigo que ela sentira quando ele surgira das árvores, e do ciúme que ela percebera nas suas
acusações. Eram os beijos de um homem provocado, inobservante de regras e propriedades, fazendo reivindicações que nem sequer pretendia.
Ela sabia aquilo tudo, mas o seu coração e a sua alma não conseguiam resistir. Aquele calor enfraquecia-a, como sempre acontecia. Que ele se importasse o suficiente
e reparasse o bastante para sentir ciúmes era alguma coisa, pelo menos. Até para a luxúria se impunha atenção. Uma fome primária que fosse significava que a queriam
de alguma maneira. A forma como ele excitava o seu corpo só a enfraquecia mais. Carícias lentas recordaram-lhe as alegrias físicas que ele conseguia dar.
Ela sucumbiu ao torpor. Esqueceu onde estavam e que devia detê-lo. O odiado vazio encolheu, morreu, libertando uma felicidade que ela não merecia. Esfomeada, agarrou-se
a ela, mas sabia, mesmo no seu arrebatamento, que era falsa e que não duraria.
A mão dele foi para debaixo da capa dela. Beijos queimavam-lhe o pescoço, entrecortando-lhe a respiração. Uma carícia no seio fê-la arquejar. A sua alma sabia que
ele não pararia, que estava mais retirado do mundo do que ela.
Os dedos dele roçavam-lhe o mamilo, enviando-lhe arrepios de prazer pelo corpo todo.
- Não deveis ter associação nenhuma com ele - voltou a dizer.
- com nenhum deles.
Uma minúscula rebelião quis vencer na sua mente, mas ele obliterou-a com outro beijo. O seu abraço comandava mais do que incitava. Ela perdeu mão da sua fraca resistência,
arrastada pelo poder dele. Devolveu-lhe o beijo, não sabendo porquê, acedendo
apenas sem decidir fazê-lo, fazendo-o apenas porque as reações do seu corpo e coração o exigiam.
O abraço dele vagueava, com arrojadas carícias. Ela ia ao encontro do seu toque mesmo quando o percurso das suas mãos a assustava. Por cima da barriga e das nádegas,
descendo até às coxas, ele agarrava-a e reivindicava-a toda. O seu toque moveu-se de forma mais chocante, provocando-a através do vestido, descendo-lhe pela fenda
entre as nádegas, aventurando-se na direçáo da pulsação que a enlouquecia, fazendo o prazer assentar e latejar.
Uma voz chamou o nome dele, procurando-o. Ela ouviu, mas ele não. Penetrou o torpor dela e reavivou a consciência que ela tinha do mundo envolvente. Assustada,
contorceu o corpo para escapar.
Ele ergueu a cabeça e estacou ao ouvir o som da voz de Vergil a aproximar-se pelo caminho.
Ela libertou-se e afastou-se com um pulo. com a separação, a confusão tomou conta dela.
- Dissestes que não o faríeis. Em Paris, prometestes...
- Não prometi nada.
Subitamente, Vergil estava num dos lados da pequena clareira. Olhou para ela e depois para Daniel.
Ela viu que Vergil parecia saber o que tinha interrompido. Daniel também o viu, claramente. Ele parecia imperturbável, contudo, como se o que tivesse ocorrido merecesse
a expressão de desaprovação que entrevia por baixo das pálpebras baixas do seu jovem amigo.
Vergil tentou esconder o desconforto. - Tyndale disse que a tínheis encontrado. bom. Pen gostaria de partir, porém. Quer chegar à festa antes do conde.
- Claro. Foi rude da minha parte atrasar a condessa. - Diane não tinha ideia de como encontrara voz para falar. Conseguiu reunir compostura suficiente para se afastar
do olhar abrasador de Daniel e aceitar a escolta de Vergil até à carruagem que aguardava.
- Ele está a ser muito cauteloso - disse Adrian, conduzindo-os pela rua. - Se não soubesse o que ele andava a tramar, o mais certo seria não conseguir a mínima pista
daquilo que tem acontecido.
Daniel caminhava ao lado dele pelas travessas silenciosas, próximas ao rio. Não estavam em Londres, mas do outro lado da ponte, em Southwark, numa zona pobre de
edifícios e armazéns a cair aos pedaços.
Tentava prestar atenção à história de Adrian, mas era difícil. Tinha a mente ocupada com Diane. A sua cabeça e o seu corpo ainda estavam no ribeiro, sucumbindo ao
desejo devastador que a sua decisão sobre Tyndale havia despertado. Teve vontade de matar Vergil por ter interferido, mas também estava grato por isso. Se tivesse
ficado entregue a si próprio muito mais tempo teria deitado Diane no chão e...
- Ele precisou de mim para encontrar este sítio, claro. Ninguém que tenha uma propriedade tão insignificante fala a língua dele, e ele não fala a deles. Também me
deu desenhos para levar, para se fazerem os cilindros. Conseguiu obter os químicos sozinho, suspeito, uma vez que não me solicitou nada.
- Sorte ter esbarrado convosco - comentou Daniel, forçando-se a prestar atenção ao assunto do momento.
Adrian deu uma risada. - Passei três vezes mesmo à frente dele antes disso. Ele está sempre a olhar para o chão, remoendo as grandes questões do universo, presume-se.
Nunca esperei que me chantageasse para trabalhar com ele, todavia. Considerei simplesmente que seria mais fácil estar de vigia se ele contasse ver-me por aí. Parou
ao chegar a uma construção, pouco mais do que um abrigo baixo entalado ao fundo entre os vizinhos. - Chegámos.
- Seria de pensar que estão lá dentro as jóias da coroa. - Três cadeados grandes e brilhantes aperaltavam a porta.
- Ponderei dizer ao serralheiro para me fazer umas chaves adicionais, mas não me quis arriscar a que Dupré descobrisse. Não há problema, contudo. Ficai de guarda.
Daniel tapou-o. Olhando para trás, viu Adrian tirar um ponteiro de metal do casaco e começar a tentear a fechadura de cima.
- Onde aprendestes isso?
- com um coronel da guarda da nossa embaixada na Turquia. É uma aptidão útil para um secretário de diplomata.
As duas primeiras fechaduras abriram-se numa sucessão rápida. Daniel lançou o braço para trás. - Esperai. Vejo alguém.
Adrian virou-se e cruzou os braços. Daniel espreitou para as sombras do outro lado da rua onde identificara movimento. - É melhor ir verificar. Não temos hipótese
se Dupré tiver alguém a vigiar o sítio.
- A não ser que ele encontrasse um espião francês, não sei como o conseguiria. Mas ide.
Daniel saiu do pátio de escombros defronte do edifício e foi na direção da sombra.
Logo que o seu destino se tornou claro, um homem saiu disparado pela rua abaixo. No curto instante antes de o homem se virar, Daniel vislumbrou uma barba e cabelo
escuro por baixo do chapéu.
Voltou para Adrian. - Era apenas um vagabundo, curioso e ocioso, como seria de esperar nesta zona.
Adrian atirou-se à última fechadura. Empurrou a porta.
O interior do edifício era tão pobre como o exterior. Há vários anos, alguém rebocara as paredes, mas o tempo abrira-lhes fendas
e escurecera-lhes a cor. Entrava
um pouco de luz por uma janelita alta, apesar das novas portadas e fechadura que a cobriam.
Encostada a uma parede estava uma mesa coberta com uma fila de cilindros de metal, cada qual ligado por fios a uma panela cheia de líquido.
Daniel aproximou-se e espreitou para as panelas. Cada uma delas tinha um pedaço de metal de bom tamanho. - Está operacional?
- Penso que sim. Não enfiei a mão em nenhum para descobrir.
Devem estar umas cem libras de ferro aqui dentro.
- Dado que fui eu quem tratou da compra, posso dizer que é exatamente esse o peso.
Daniel contemplou a notável engenhoca. - Isto deve ter custado uma soma considerável.
- As minhas aquisições chegaram a mais de mil libras. Os químicos têm de ter custado centenas mais. - Adrian apontou para as barras de ferro. - Reparai que têm tamanho
e forma iguais. Acrescentei esse requisito. Não tinha ideia do que tencionáveis fazer, mas caso planeeis algo, lembrei-me de que a estandardização poderia ser conveniente.
- Muito bem - elogiou Daniel, embora também não fizesse ideia do que tencionava fazer, se é que tencionava fazer alguma coisa.
- Não vejo como teve fundos próprios para isto. A casa de Paris era da família e não me parece que tenha havido grande herança para lá disso. Tem poucos rendimentos,
a não ser alguns honorários da universidade de lá. Digamos que custou mil e quinhentas. Pagou a pronto, e eu pressenti que haveria mais se fosse necessário. Aonde
iria buscar tanto dinheiro? - indagou Adrian.
Daniel perscrutou a experiência. Não, não era uma experiência. Era demasiado grande para tal. Demasiado elaborada. Tratava-se mais de um modelo de funcionamento,
para avaliar custos e potencial.
As suas suspeitas estavam corretas. Dupré não o tinha feito para outros cientistas, mas para impressionar homens do mundo da manufatura.
Mil e quinhentas libras a pronto, dissera Adrian. Um custo significativo. Um custo que Dupré não conseguia suportar sozinho, isso era certo.
- Quantas chaves disse ao serralheiro para fazer?
- Dois conjuntos.
- Procurou um sócio - concluiu Daniel. - A pergunta é, quem?
CAPÍTULO 14
- Não tenhais associação nenhuma com ele. Revelou-se impossível, pois Andrew Tyndale também fora convidado para a festa.
E também não era um grupo grande que se reunia na casa de Lady Pennell para o fim de semana. No máximo, seriam trinta os presentes. Sendo uma das mais notáveis senhoras
a moverem-se em círculos alargados, Lady Pennell convidara um grupo diverso, incluindo um ator famoso e um romancista popular, e também membros do Parlamento, um
conde, dois barões e um visconde.
Não contava com a presença de nenhuma mulher dos círculos mais seletos, claro. Lady Pennell não caía nas boas graças das arbitras da sociedade, ainda que os homens
delas considerassem as suas reuniões mais interessantes do que beber ponche em outras reuniões mais adequadas.
- Ainda bem que os meus irmãos aceitaram comparecer - dizia Pen, instalando-se no aposento com Diane. Pen insistira que partilhassem um quarto, mesmo tendo a anfitriã
planeado outras disposições. Visto que tinha uma saleta, dificilmente seria pequeno.
- Não tinha dado fé de que o grupo era tão pequeno. Não há como evitar o conde com discrição, receio. - murmurou Pen.
Diane suspeitava que não havia como evitar ninguém. Nem o
conde. Nem Mister Tyndale. Nem Daniel St. John, quando ele chegasse, à noite.
Não tenhais associação nenhuma com ele. Daniel proferira aquele aviso acerca de Andrew Tyndale, mas o coração dela fazia-o agora a propósito do próprio Daniel. Os
beijos e abraços do bosque tinham-na deixado muito abalada, e os seus pensamentos demoravam-se neles desde então. Suspeitava que o pacto feito em Paris tinha sido
irrevogavelmente desfeito.
As implicações assustavam-na. Como também as suas reações. Não era apenas preocupação que a ocupava desde que se instalara no seu lugar na carruagem de Pen. Invadia-a
também um anseio nostálgico. Admitia miseravelmente estar intrigada e excitada com Daniel, e nenhuma parte dela devia estar assim, nem um pedacinho que fosse. Contrariamente
à ameaça rebelde que ela pronunciara quando estavam no ribeiro, transformar-se numa Margot seria o tipo de vida que ela não conseguiria viver.
Pen ocupava-se com instruções à criada que lhe desfazia a mala. As roupas de Diane seriam atendidas mais tarde.
- Foi gentil da parte de Lady Pennell convidar-me - disse Diane. De todos os convites que recebera, achou este o mais peculiar.
- Ela gosta de se rodear de pessoas interessantes.
- Eu não sou interessante.
- Não é verdade. No entanto, admito que a minha vinda tenha influenciado o convite, assim como a esperança de encorajar a aceitação por parte do vosso primo.
- Então Lady Pennell considera Daniel interessante?
- A maior parte das mulheres considera-o interessante. Não foram só a riqueza e o estilo a abrir-lhe portas na sociedade, mas também o fascínio de mulheres influentes.
A bem dizer, penso que Lady Pennell nutre uma certa ternura por ele agora. É bem-parecido, confiante e misterioso. O seu porte e a sua presença têm dado azo a todo
o tipo de especulações ao longo dos anos.
- Que tipo de especulações?
- Como prima, provavelmente ireis achá-las divertidas. Quando ele chegou vindo do nada há muitos anos corriam rumores de que ele tinha feito fortuna com pirataria
nos altos mares. Outros cochichavam que ele tinha usado os navios em serviços especiais para a marinha. Alguns insistiam que ele era um emigre vindo de França enquanto
rapaz, por causa da revolução, e que tem sangue muito mais rico do que alega. - Pen riu e ergueu uma sobrancelha.
- O que significa, claro, que vós também.
Diane forçou-se a rir igualmente. - Se assim fosse, eu saberia, não é verdade?
- bom, como disse, foi tudo especulação. Ninguém sabe ao certo a história dele, por isso criam-se estórias. - Pen lançou-lhe um olhar inquiridor e matreiro, encorajando-a.
Diane dificilmente poderia satisfazer a curiosidade de Pen a propósito de Daniel, já que ela própria sabia muito pouco da história dele. Admiti-lo revelaria a mentira
do parentesco deles. O que daria seguramente a todos muito sobre o que especular.
Para evitar mais conversas sobre o tópico, deixou Pen a desfazer as malas e foi para a saleta aguardar a sua vez.
Entrou uma criadita com um tabuleiro de refrescos. Ao pousá-lo na mesa, olhou para Diane com manifesta curiosidade.
De regresso à saída, parou. - Corou e fez uma vénia. - As minhas desculpas, Miss Albret, mas posso fazer-vos uma pergunta?
- Claro. O que é?
- Eu sou de Fenwood, e o pároco de lá também se chama Albret. Sois parente dele?
Diane ficou especada a olhar para a bonita rapariga com a sua capa de musselina, pele sedosa e cintilantes olhos azuis. Foi incapaz de lhe dar uma resposta porque
o seu coração começou a bater com tanta força e tão rápido que lhe doía.
- As minhas desculpas - disse a rapariga. - Foi inapropriado da minha parte, é só que achei curioso, por vós serdes francesa e tudo.
- Não tenho conhecimento de parentescos nessa cidade que mencionais, mas se os houver, gostaria de saber. Onde fica esse sítio?
- Ora, não fica a mais de duas horas de carroça. É uma aldeia perto de Brinley. Mister Paul Albret é pastor lá desde sempre, desde antes de eu nascer.
Diane não conseguia acreditar na sua sorte. Se a criadita tivesse sido um nadinha menos audaz...
- Como vos chamais?
- Mary.
- Estou-vos agradecida por me terdes falado, Mary. De outro modo, poderia nunca ter ficado a saber deste possível parente.
- Oh, duvido disso. Estão muitos de nós nesta área, a servir nas casas do condado. Acabaríeis por vos encontrar com um.
- Mary, esse pastor reside lá? Se lhe enviar uma carta, ele irá recebê-la, na vossa opinião?
- Ele vive lá. Sempre viveu.
- Conhecestes os filhos dele?
- Eram de antes do meu tempo. Duas raparigas e um rapaz, acho eu, mas foram todos embora há muitos anos. Nunca ouvi dizer que tivessem voltado. A minha família não
conhece bem o pastor, somos seguidores de Wesley.
Subitamente, a saleta com a sua mobília clássica de mogno tornou-se claustrofóbica. Estar presa naquela casa com aquele grupo pareceu-lhe um transtorno terrível.
A resposta às perguntas da sua alma, que não a deixavam sossegar, podia estar a poucas horas de distância.
- Obrigada, Mary.
Talvez conseguisse arranjar forma de visitar a cidade de que Mary falara. Entretanto, podia pelo menos entrar em contacto com o pastor e ver se ele sabia alguma
coisa.
Enquanto Pen se atarefava com o guarda-roupa no aposento ao lado, Diane sentou-se à escrivaninha e começou a escrever uma carta.
- Dir-se-ia que estamos no Parlamento e que acabou de ser lançada uma votação - comentou Pen. Estava sentada na sala. ao lado de Diane, a seguir ao jantar.
Diane apertou-lhe a mão, para a reconfortar. Apesar de distraída com pensamentos de uma carta parcialmente escrita e memórias, angustiantes de tão insistentes, de
beijos no bosque, Diane não conseguiu evitar reparar no drama social que se desenrolava.
A festa não fora preparada para proporcionar o confronto entre o conde e a condessa de Glasbury, mas a presença dos dois afetou tudo. A expectativa dominava o ambiente.
Durante o jantar, corriam olhares para o fundo da mesa, onde o casal separado estava sentado, tão próximos um do outro que era impossível ignorarem-se.
Bastou os homens reunirem-se às mulheres para se formarem subtilmente dois grupos. Os convidados anunciavam o lado escolhido através da localização e da interação.
Diane reparou no tamanho maior do grupo reunido à volta do conde, e na presença de Andrew Tyndale ao seu lado. Daniel, que chegara pouco antes do jantar, misturava-se
com o grupo que estava próximo de Pen. O advogado de Duclairc, o enigmático Julian Hampton, também estava por perto, observando mas raramente tomando parte.
O visconde Laclere emprestava o seu prestígio como prometera, mas era Vergil que estava literalmente ao lado de Pen.
- Abandonaram-me. Seria de esperar, imagino eu. - Disse Pen num murmúrio enquanto o seu olhar conduzia Diane para o outro lado da câmara. Poucas senhoras se demoravam
no canapé.
A expressão e pose de Pen comunicavam que não se passava nada de inaudito. Diane sentia o constrangimento da amiga, porém. Viu nos olhos de Pen a constatação do
custo total de se ter separado do marido.
De repente, Pen ficou hirta. O conde de Glasbury, um homem esguio de meia idade, de cabelo grisalho, sobrancelhas espessas, e uma boca murcha, atravessara a divisória
e vinha na direção delas.
O círculo de Pen afastou-se um pouco para trás para dar espaço ao confronto privado. Todos davam mostras de não reparar em nada, mesmo se dúzias de olhos se esforçavam
para acompanhar a marcha do homem.
- Pelo menos ninguém está a lamber os lábios de expectativa sussurrou Pen.
- Que comedimento impressionante.
O olhar do conde centrou-se em Pen. A Diane pareceu-lhe ser o tipo de homem que gostava de falar de alto com os outros, como fazia com a mulher agora.
- Como vos encontrais, minha querida?
- Encontro-me bastante bem.
- É certo que sim. A cidade inteira fala nisso. Tornastes-vos na inveja de todas as mulheres desvairadas de pouco discernimento e menor discrição. Tendes a vossa
própria casa e carruagem. Tendes liberdade para vos comportardes escandalosamente. Tendes o prazer de proteger A prima de um mercador.
Diane não foi insensível ao ênfase nem à insinuação. Daniel ouviu, mesmo estando a dez metros. As suas pálpebras semicerraram-se, mas esta foi a sua única reação.
- Olhai lá... - começou Vergil.
- Agradeço-vos, mas eu trato do assunto, Vergil. - Pen encolhera-se quando o conde se aproximara, mas agora a sua coluna endireitava-se. - Não é avisado para um
libertino descarado censurar outro homem de semelhante forma, meu querido.
- Também é perigoso - acrescentou Vergil.
O conde exibiu um sorriso escarninho. - O mundo está perdido nestes últimos anos, com condessas e duquesas tão pouco criteriosas. Como se dinheiro e uma cara bonita
fizessem um homem.
Pen sorriu. - Mais vale dinheiro e uma cara bonita do que carne velha amarga e degenerada.
- Admira que tenhais vindo, se desprezais assim tanto o círculo de Lady Pennell - interveio Vergil.
- Resta esperar que as suas festas sejam mais agradáveis depois desta noite. Além disso, vim para ver a minha mulher. Está na altura de esta separação confrangedora
cessar.
- Então perdestes o vosso tempo. Não voltarei para vós.
- Se eu decidir que sim, não tereis escolha. A lei...
- Fazei o que quer que seja para coagir a condessa e a lei saberá mesmo de tudo. - A ameaça náo viera de Vergil. Julian Hampton aproximara-se para ouvir e interrompia
agora com uma voz muito calma.
O conde fulminou-o com o olhar. - Ela não se atreveria.
Hampton correu a assembleia com os olhos, vendo tudo e náo vendo nada. - Claro que sim. E acreditais nisso, senão nunca teríeis concordado com os termos de separação
que negociei. Ora, eu tinha planeado passar estes dias na cidade, não a aborrecer-me numa festa campestre. Parece-me a mim que esta casa e este grupo são grandes
o bastante para vós e a condessa não precisardes de voltar a falar. Fazei-me esse favor, para amanhã poder retirar-me.
Afastou-se, sem falar com mais ninguém.
Lívido, o conde também se retirou.
- As minhas desculpas pela forma como vos insultou e ao vosso primo - disse Pen. - Assim como por ter falado táo livremente à vossa frente.
Diane sabia que ele tinha falado tão livremente porque a considerava tão insignificante que seria um desperdício de discrição. Da mesma forma que os homens como
ele não notavam a presença de criados, ignorara-a.
Vergil inclinou-se e sussurrou à orelha de Pen, mas Diane ouviu na mesma. - Onde fica o vosso quarto?
- Na ala este. Insisti que Diane o dividisse comigo.
- Muito bem. Far-vos-ei uma visita, de qualquer forma.
A sala esvaziava-se quando Vergil abordou Daniel. - Hampton e eu vamos jogar às cartas. Porque não juntardes-vos a nós?
- Julgo que não. Raramente jogo com amigos.
- Fazei-me a vontade, St. John. Tenho uma noite longa pela frente, e como Hampton nunca fala será insuportável.
Relutante, Daniel concordou. Vergil não estava em condições de perder às cartas, o que significava que Daniel teria de tomar
providências para o deixar ganhar. Ele não se importava, mas o jogo ficava menos interessante.
Acompanhou Vergil, saindo ambos da sala. Não entraram na biblioteca como Daniel previra. Em vez disso, Vergil apontou-lhe a escada. - O quarto de Pen tem uma saleta.
Não há razão para fazermos os criados ficarem acordados para nos atender, e se jogarmos lá, já não será necessário.
Quando subiam a escada, outro homem descia-a. AndrewTyndale saudou-os de passagem.
Daniel deteve Vergil. - Porque não convidá-lo também? com quatro o jogo é mais recreativo.
- É melhor não.
- Duclairc, vamos jogar às cartas naquela sala para proteger a vossa irmã caso o conde se dirija lá hoje à noite com intenções desonrosas, estou certo?
O rosto de Vergil endureceu ao ver-se confrontado com esta formulação tão direta.
- E não é muito melhor se um dos amigos do conde estiver lá sentado connosco? Há menos probabilidade de as coisas se descontrolarem, caso as vossas suspeitas se
confirmem.
Vergil acenou com a cabeça a contragosto. Desceu as escadas atrás de Tyndale, chamando-o.
Daniel ficou a observar enquanto o convite era feito. A noite de cartas poderia revelar-se interessante, afinal. Não gostava de ganhar com amigos, mas não tinha
pruridos desses com inimigos.
Vergil voltou com Tyndale a reboque. Harnpton aguardava no alto do segundo patamar. Os quatro percorreram a ala este até à saleta de Pen.
- Bem, tendes de nos prometer que não vos ides embebedar nem fareis uma barulheira, sem nos deixar dormir toda a noite admoestou Pen enquanto eles colocavam uma
mesa e cadeiras no centro da divisão. Contando com a sua chegada, ela mandara trazer vinho e whisky.
Daniel percebeu que Pen se referia a ela e Diane. Não reparara que elas partilhavam um quarto. Imaginou que ter a sua dama de companhia por perto seria outra tentativa
por parte da condessa de frustrar qualquer tentativa do conde de reivindicar os seus direitos de marido, dado que passavam a noite sob o mesmo teto.
Também significava que Daniel iria ter Diane por perto naquela noite. A câmara não era grande, e a proximidade acentuou imediatamente a tensão que crescia silenciosamente
entre eles desde que ele chegara à casa. Durante o serão inteiro apercebeu-se da consciência que ela tinha da presença dele, e do que acontecera, mesmo que ela fingisse
que ele não existia.
Ela continuava a ignorá-lo agora. Estava sentada à escrivaninha, a arranhar qualquer coisa num papel, não mostrando qualquer interesse pelos homens que se instalavam
para jogar. A condessa estava empoleirada num banco. Parecia que as mulheres iam ficar um pouco antes de se retirarem, para dar aparência de um convívio privado.
Daniel escolheu a cadeira que lhe permitia ver Diane, ainda que ela fosse distraí-lo. Não queria Tyndale naquela posição. Ver Tyndale observar Diane iria distraí-lo
ainda mais.
A sua jogada astuta serviu de pouco. Diane finalizou a sua tarefa e foi para o banco, para junto da condessa. O que a colocou numa localização excelente para Tyndale
lhe sorrir e para ela lhe devolver o sorriso.
Diane também sorria a Vergil e Hampton. A única pessoa a quem não concedia atenção era Daniel. Dava-se a grande trabalho para nem sequer olhar na direçáo dele, como
fizera o serão todo.
Ele não se deixava enganar minimamente. Podiam bem estar sós, abraçando-se, tão intensa era a ligação entre os dois. Ela podia não o querer, podia até estar ressentida
com isso, mas era inegável que estava lá, afetando o ar, o tempo e a luz.
- O vosso jogo está fraco, St. John - disse Hampton quando Daniel perdeu mais dez libras para Andrew Tyndale.
- Talvez não seja o jogo dele que é fraco mas o de Mister Tyndale que é bom - propôs Diane.
Tyndale apreciou o elogio mais do que seria adequado.
Daniel apanhou o olhar de Diane quando este passava inadvertidamente por ele. Prendeu-o e concedeu-se a si próprio uma recordação breve, intensa e expressiva do
envolvimento deles no ribeiro, uma recordação cheia dos suspiros e do anseio dela, do que aconteceu e quase acontecera. Ela começou a corar, como se o olhar dele
comunicasse a imagem e as sensações.
- Porque não aumentamos a aposta? - perguntou Daniel. - Os cavalheiros deviam tirar partido do meu jogo fraco.
- com certeza. Já agora, fazemos render o nosso tempo - aprovou Tyndale.
Hampton não avançou nenhuma opinião, mas o olhar que lançou a Daniel era especulativo. - Talvez as senhoras queiram retirar-se. Podemos continuar sozinhos.
- Credo, não - ripostou a condessa. - Não quando vai começar a diversão a sério. Além disso, devo ficar para arrastar o meu irmão daqui antes que ele se arruine.
Vergil suspirou. - Bolas Pen, eu não sou Dante.
- Por falar em Dante, a última vez que o vi tinha posto Mrs. Thornton a fazer uns barulhinhos parvos enquanto folheavam um livro - comentou a condessa. - Onde está
ele, Vergil?
- Penso que se retirou, madame. - O tom de Hampton sugeria que quanto menos perguntasse acerca das circunstâncias e orientação da retirada de Dante, melhor. Começou
a dar as cartas. - Cinquenta libras, cavalheiros?
Tyndale e Vergil assentiram com a cabeça. Hampton olhou para Daniel, procurando o seu acordo.
A aposta elevada pareceu perturbar Diane, e não seria por ela temer que o seu benfeitor pudesse ficar mal. Daniel ficou com a distinta impressão de que ela se preocupava
apenas com Tyndale.
A sua atitude era provocatória. Cada expressão impassível negava a verdade e rejeitava a forma como se tinham unido tão completamente naqueles abraços e ainda estavam
unidos nesta câmara.
Pior, agora ela encorajava deliberadamente Tyndale, apesar do aviso que recebera.
Sentiu crescer na sua mente uma irritação aguda. Manteve-a controlada, mas não deixava de o afetar. Ele renunciara ao sonho de uma vida pela beldade que agora cobria
de atenções o seu atacante em potência. Ele sacrificara-o por ela e por algo que nem sequer podia acontecer, e ela agia como se ele não significasse nada para ela,
mesmo derretendo com o toque dele.
Voltou a atenção para Tyndale.
- Porque não cem? - disse.
As pálpebras de Tyndale desceram, aquiescentes, mas a sua resposta foi interrompida pela porta da sala, que se entreabriu, rangendo.
Uma nova visita entrou. Primeiro o traseiro. Recuou, de olhos no corredor para se certificar de que não tinha sido visto.
Hampton pousou as cartas e cruzou os braços. Vergil estava tão irado, que parecia capaz de matar alguém, de tal modo que Daniel lhe colocou uma mão firme no braço.
Tyndale sorriu, divertido.
O visitante fechou a porta com grande e silencioso cuidado. Virou-se.
O conde de Glasbury precisou de um momento para compreender que se não enfiara sub-repticiamente numa câmara vazia, mas que interrompera um pequeno convívio. A surpresa
deixou-o especado, a boca flácida aberta de espanto.
- Queríeis alguma coisa, querido? - perguntou a condessa. A sua boca parecia a de um peixe.
Todos aguardaram, deixando-o especado feito espantalho. Até o seu amigo Tyndale aproveitou o momento mais do que um amigo devia.
Foi Hampton que o safou. - Sem dúvida que soubestes do nosso jogo particular por algum criado e vos quisestes juntar.
- Sim, é isso.
Não o safou completamente. - Por sorte a conversa do criado estava correta, ou isto poderia ser mal interpretado e custar-vos muito caro.
O conde ficou muito rosado. Recompondo-se, olhou de alto para a assembleia. - A conversa dele estava incorreta. Disseram-me que a mesa incluía jogadores mais interessantes.
- Desde que haja dinheiro para se perder, não somos esquisitos quanto à estirpe do homem que o perde - declarou Daniel. - Portanto, sois livre de vos juntar a nós.
O conde endireitou-se, indignado com o insulto. A sua mão recuou até ao trinco da porta. - Não me parece. Eu sou muito esquisito quanto à estirpe dos homens aos
quais me associo. Perdoai a minha intrusão.
- Dormi bem, querido - disse-lhe docemente a condessa quando ele virou costas.
Diane parecia muito preocupada com os progressos erráticos de Tyndale no decorrer da última hora. O seu rosto iluminava-se de deleite quando ele ganhava e entristecia-se
quando ele perdia.
O que deixou Daniel fora de si. Como resposta, prolongou a destruição que estava na sua intenção concretizar.
À medida que o jogo se tornava mais imprudente, Hampton, comentando que a noite terminaria com a diminuição acentuada da fortuna de um dos homens, retirou-se completamente,
não fosse caber-lhe ser esse homem.
Às trezentas libras, Vergil também se retirou.
Daniel aproveitou a oportunidade para muito rapidamente perder mil para o único opositor que lhe restava.
- A vossa sorte tinha melhorado consideravelmente, St. John
- disse Tyndale enquanto se distribuíam cartas mais uma vez. Parece que a maré voltou a virar, todavia.
- A minha sorte é sempre inconstante, é o que é. Além disso, a condessa é um fator de distração.
- Como também vossa prima - disse Tyndale jovialmente, oferecendo um sorriso a Diane.
No que respeitava a Daniel, fora-lhe atirada uma luva.
- Se somos tão grandes distrações, está na altura de nos retirarmos. - A condessa levantou-se, e todos os outros também. - Fazei como se estivésseis em casa, cavalheiros.
Obrigada pela vossa companhia.
Diane seguiu-a até à outra câmara. Daniel ouviu os sons indistintos que, do outro lado da parede, revelavam mulheres a prepararem-se para ir para a cama. Permitiu-se
a fantasia de imaginar Diane a despir-se e a lavar-se e a cuidarem-lhe do cabelo, e perdeu mais duas mil libras no seu desenrolar.
Por fim os sons pararam. Uma criada saiu e retirou-se.
Daniel imaginou Diane encolhida do lado dela, pálpebras fechadas e rosto adorável em repouso.
Varreu a imagem da sua mente. Virou cada pedacinho da sua atenção paraTyndale. - Que tal se jogássemos a sério? O que dizeis a duzentas?
CAPÍTULO 15
Diane, sobre que vos debruçais? - perguntou Pen.
- Uma carta. - Diane escrevera duas na noite anterior e não ficara satisfeita com nenhuma delas. A longa, que explicava a sua história toda, certamente não serviria.
Nem aquela que se desfazia em súplicas. Agora, escrevinhava à pressa um simples pedido de informação relativo a um Jonathan Albret, armador, se o pastor de Fenwood
acaso o conhecesse.
Incluiu a sua morada de Londres e selou a carta antes de ter oportunidade de lhe mexer muito. Levou-a para o quarto de dormir, onde a criada acabava de arranjar
o cabelo a Pen.
- Como posso enviar isto? - inquiriu.
Pen pegou na carta e atirou-a à criada. - Dai-a ao mordomo. Ide-vos. Estou pronta.
A mulher saiu. Pen espreitou para o espelho e torceu um dos caracóis soltos que lhe emolduravam o rosto. - Que dia terrível tenho à minha frente. Uma excursão ao
mar, nada menos. Vai estar um vento cortante, por mais bonito que o dia esteja. Os homens saem mais cedo, para pescar, e depois nós vamos ter com eles, mas eu terei
de estar perto dele a maior parte do dia, e depois de ontem à noite ele assusta-me mais do que nunca.
Pen referia-se ao conde, mas as suas palavras retratavam o desconforto de Diane. Depois da noite anterior, Daniel também a assustava mais do que nunca. Ou melhor,
fazia-a ter medo de si própria.
Fora igualmente horrível e maravilhoso, estar sentada na salinha exterior enquanto os homens jogavam às cartas. Ela mal olhara para Daniel, e os olhos dele passavam
por ela de relance, mas as sensações físicas que ele despertara no ribeiro tinham regressado no momento em que ele entrara. As mãos que seguravam as cartas poderiam
estar a acariciar-lhe o corpo, e a boca que bebericava o vinho poderia estar a beijar-lhe o pescoço e o seio.
Ele soubera. Aquele olhar único, quente, dissera-lho. Ele brincara com ela também, mantendo as memórias vivas, tornando tudo pior. Ela vira-se impotente para o deter
e demasiado fraca para alegar uma dor de cabeça e sair como devia ter feito. A agitação física e a consciência viva um do outro eram imperiosas de mais, deliciosas
de mais, para serem negadas.
A ideia de passar o dia em semelhante estado deixava-a desalentada. Precisava de passar tempo longe dele, para compor as suas emoções. Tempo para tentar voltar a
pôr as coisas no sítio.
- Não estou a sentir-me muito bem, Pen. Acho que devia ficar aqui a descansar.
Pen desviou o olhar do espelho com preocupação. - O que vos inquieta, querida? Se vos fiz ficar doente por vos obrigar a ficar de pé até tão tarde...
- Não é nada grave. Apenas estou muito cansada.
- Talvez deva ficar convosco, não vá...
- É atencioso, mas não é necessário. Não estou doente. Penso que vou apanhar um pouco de ar e depois voltar e dormir.
Pen ponderou. Por fim, abanou a cabeça. - Se eu ficar todos dirão que se trata de um estratagema da minha parte, como resposta à noite de ontem. Não, tenho de ser
corajosa e ir para a frente. Manter-me-ei firme apesar do dia prometer ser terrível. - Riu-se, amarga.
- E pensar que não procurei o divórcio para lhe poupar o escândalo
a ele. Bem, Mr. Hampton bem me avisou que é sempre a mulher quem paga.
Andrew Tyndale espiava da janela as carruagens que desciam a rua. O seu olhar fixou-se numa, muito cara. Quatro cavalos pretos puxavam-na, de longe muito melhores
do que os animais que ele próprio detinha. Vexava-o que Daniel St. John pudesse dar-se a tais luxos.
Vexava-o ainda mais que, a partir desta altura, tivesse meios para adquirir muitos mais.
No valor de vinte mil libras.
O que raio acontecera ali?
Era a pergunta que se repetira na sua cabeça desde a madrugada até ao nascer do dia.
Nunca perdia muito nas mesas de jogo. Desprezava homens que não sabiam quando se retirar, homens que arriscavam demasiado e tinham a ruína como resultado. Nem sequer
gostava muito de cartas. Preferia de longe jogos em que a sorte não tinha qualquer papel. Jogos que sabia que ganharia, porque ele fazia as regras.
Tinha sido culpa da rapariga, concluiu. Distraíra-o solenemente enquanto lá estivera. Não podia ter mais de dezassete anos, avaliou, mas ela tinha uma pose, um ar,
que sugeria a existência de uma sensualidade suculenta por baixo daquela postura inocente. Passara muito tempo desde a última rapariga refinada, o que a tornara
mais apelativa. As raparigas que Mrs. P encontrava eram bezerras ignorantes e estúpidas. Ele preferia de longe poldras bem-nascidas.
Sim, distraíra-o solenemente. Pusera-o num estado de excitação enquanto permanecera na sala. A bem ver, andava a ficar muito naquele estado desde a primeira vez
que reparara nela naquele baile.
De alguma forma, a disputa deles passara a ser sobre ela. Na altura não compreendera, mas olhando para trás... Os sorrisos dela quando ele ganhava, a preocupação
quando perdia, o desagrado do primo... Tudo tivera um papel, estava muito certo agora.
Mesmo assim, vinte mil libras? Não havia cara bonita que lhe fizesse aquilo. Estivera a ganhar tantas vezes durante a noite, por largas quantias, que constatar o
quanto perdera, no fim, fora um choque.
Pior, a dívida deste cavalheiro tinha testemunhas das quais ninguém duvidaria.
As carruagens faziam-se pequenas com a distância, em direção à costa. Furtara-se à excursão pesqueira, alegando indisposição, ainda que St. John fosse compreender
bem o que se passava. Não se ralava minimamente. Tinha problemas maiores do que a opinião de um armador.
Sentiu-se tomado por uma fúria raivosa, como tantas outras vezes desde que saíra da saleta da condessa. Viu novamente o brilho de triunfo nos olhos de St. John,
quando Hampton fazia a contagem. O Diabo tinha provavelmente o mesmo aspeto quando arrebatava a alma de algum homem.
Só havia uma explicação, era evidente. O sacana fizera batota. Como, Andrew não estava certo, mas fora isso que ocorrera.
As carruagens tinham desaparecido e a entrada estava deserta.
Um movimento perto da casa, próximo, chamou-lhe a atenção. Um vulto esguio de cabelo cor de avelã em madeixas desarranjadas entrou no seu ângulo de visão.
Olhando Diane Albret, ocorreu-lhe uma saída para o dilema. Tinha um toque de justeza moral, e também iria funcionar. St. John tinha arrogância e orgulho bastantes
para garantir que sim.
Mesmo com aquele verniz todo, a rapariga não era ninguém. St. John também, em rigor. Quando tudo terminasse, as pessoas relevantes concordariam que St. John tinha
sido um parvo e Andrew fora grandemente lesado. Além do mais, as vinte mil libras já não iriam importar.
Afinal, mortos não podem cobrar dívidas particulares.
Depois de ter ido apanhar ar, para espairecer, Diane regressou ao quarto, onde ficou até ouvir atividade no exterior, indicando-lhe que as mulheres saíam para se
juntarem ao grupo que estava na costa.
Só regressariam à tardinha. O que queria dizer que tinha um longo dia só para si.
Já tinha decidido como o passar. Enquanto caminhara, olhara para a sua vida sem contemplações. Não ficara agradada com o que vira.
Admitira para si própria que, mau grado todas as garantias de Daniel, ela não estava a salvo do interesse dele.
Foi até ao guarda-vestidos. Ao enfiar os botins, admitiu que não estava a salvo devido às suas próprias reações. Os beijos dele podiam ser escandalosos, mas não
mais do que a forma como ela os permitia.
Bem, ela não era a mesma rapariga que deixara Madame Leblanc em Rouen. Aprendera alguma coisa sobre o mundo nos últimos meses. Sabia que Daniel tinha tomado alguma
decisão a propósito dela no dia anterior à beira daquele ribeiro, e que da próxima vez aqueles beijos não iriam parar.
E haveria uma próxima vez. Não duvidava disso.
Tirou a capa do guarda-vestidos. Desejou ter levado as suas velhas roupas da escola, e não era só por a ajudarem a estar menos exposta. Incomodava-a levar a cabo
a missão do dia vestida com as coisas que lhe tinham sido compradas por um homem que não era nem seu parente nem seu tutor.
Toda a gente sabia o que isso geralmente queria dizer.
Tinha sido incrivelmente ingénua ao acreditar em Daniel quando ele dizia que, no caso deles, não era isso.
Devidamente vestida para sair, atravessou a casa silenciosa. Era altura de recordar o porquê de estar sequer em Inglaterra. Se descobrisse a vida que tivera antes
de Daniel St. John entrar nela, talvez existisse algo para a ancorar e suster quando cortasse os laços que tinha com ele.
Assim o esperava. Não estava certa de conseguir fazê-lo de outro modo. A própria ideia doía-lhe tanto, deixava-a tão desolada, que
se sentara no jardim, tentando não pensar nela. No entanto, acabara por aceitar aquilo que tinha de fazer.
Precisava de abandonar aquela casa, e a irmã dele, e os presentes e a generosidade dele. Precisava de fugir do calor e dos abraços dele.
Precisava de o deixar.
Prosseguia, resoluta, olhos enevoando-se, o vazio detestável espraiando-se, inchado, omisso e pesado, no seu coração.
Pelos corredores da casa deambulava uma criada ou outra, e ela pediu a uma delas que lhe procurasse Mary. A bonita rapariga foi ter com ela à cozinha.
- Como se dá com a vossa aldeia? - perguntou Diane.
- Estais a pensar lá ir, senhora?
- Um dia, talvez.
- Só sei ir para lá daqui. Ides pela estrada oeste até Witham, e virais para norte, e depois ides outra vez para norte em Brinley.
- Fica a duas horas de distância, dissestes?
- Talvez um bocadinho mais. Os caminhos são só terra depois de se chegar a Witham. Não sei a que distância fica de Londres.
Diane saiu da casa pela porta dos criados, ao pé da cozinha. Pareceu-lhe apropriado fazê-lo, como fazia nos primeiros dias em Paris. Não era a boneca do abastado
Daniel St. John que arrancava dali naquele dia. Era a órfã sem um tostão, de origem tão obscura que não interessava a ninguém.
Duas horas de carroça, dissera Mary.
Uma pessoa conseguia andar mais depressa do que uma carroça.
Foi para oeste pela estrada. Regressaria bem antes de Pen e dos outros voltarem da costa.
Uma hora mais tarde, soube a razão por que as pessoas escolhiam carroças lentas em vez de passos rápidos.
Calçara os seus botins, mas os modelos que se vendiam nas lojas de Paris eram delicados, para não dizer pior. Os que tinha nos pés,
com as suas solas finas, não pareciam capazes de sobreviver a um dia na estrada.
Piorou quando enveredou pelo caminho de terra em Witham. Sentia todos os sulcos e pedras através das solas. Tentou ignorar o desconforto e repreendia-se a si própria
por ser tão mole. Era o que o luxo fazia às pessoas, Madame Leblanc sempre ensinara. Tornava-as moles e fracas e dadas ao pecado.
Como era verdadeiro. Como era tão, tão, verdadeiro.
Viu a imagem de Madame a entoar as suas lições de moral. Tentou aceitar a dor nos pés como castigo por gostar tanto dos beijos de Daniel. Disse para si própria que
cada um dos toques era mau e pecado e era marca de um homem em quem não se podia confiar. Um sedutor. Um predador. Um demónio.
O seu coração não o aceitava. Não sentia que houvesse pecado no que dizia respeito a Daniel.
Meditava sobre aquela nova verdade quando o som de uma carruagem a aproximar-se captou a sua atenção. Desviou-se, para a deixar passar.
Para sua surpresa, a carruagem veio parar ao seu lado. Andrew Tyndale estava sentado num cabriole de dois cavalos, rédeas nas mãos, olhando-a surpreendido.
- Miss Albret, que fazeis aqui?
- Vim só dar um passeio. O que fazeis vós aqui?
- Decidi tirar o dia para ir ao campo visitar um amigo. Deixai-me levar-vos para casa primeiro, no entanto. Temo que estejais mais longe do que pensais.
- Não vos incomodeis. Tendes coisas a fazer. Não poderia permitir que vos atrasásseis por minha causa.
- A demora será pequena, e insignificante, em todo o caso. Por favor permiti que vos auxilie.
- Nunca me perdoaria a mim própria ter-lhe causado algum inconveniente. Ficarei bem. Palavra. Gosto de dar longos passeios. Adoro. Continuai o vosso caminho conforme
planeastes, e eu vou...
Ele apeou-se da carruagem. - Nem pensar nisso. Deixai que vos ajude a subir.
Era de mais. De cada vez que reunia coragem para perseguir o seu objetivo, havia algum homem, determinado a ajudar e proteger, a interferir.
Ignorou a oferta de Mister Tyndale e deixou-se cair em cima de um pedregulho na berma da estrada. Enfiou a cabeça nas mãos e ficou a olhar para a ponta dos sapatos
mutilados.
- Há algum problema, Miss Albret?
- Tudo é um problema.
- Não compreendo.
Diane ergueu o rosto. Os olhos dele não eram fundos e imperscrutáveis e perigosos como os de Daniel. Eram transparentes, meigos e muito solidários. A sua expressão
aberta fê-la sentir-se logo melhor. com este homem não havia mistérios, sombrias confusões, nem taciturnas perturbações.
Preocupara-se um pouco com ele na noite anterior. Vendo-o jogar às cartas com Daniel, teve a impressão de que não estaria à altura do Homem Diabo, e estava condenado
a perder. Como ele parecia estar bem humorado, era óbvio que não tinha sido assim tão mau.
- Não estou a andar só para me distrair - disse ela, deixando sair a confidência sem uma decisão real. - vou a uma aldeia chamada Fenwood. Soube que tenho lá um
familiar e vou visitá-lo.
Preparou-se para que ele lhe lembrasse educadamente que deveria ter dito à dona da casa, ou a Pen, para que uma das duas providenciasse uma carruagem para a levar.
Ela não queria ter de explicar que não queria que ninguém soubesse que estava a fazer aquilo. Iria ter de fingir ser estúpida ao ponto de não se ter lembrado de
tais coisas.
Afinal, a expressão dele aligeirou-se, como se a explicação dela fizesse todo o sentido do mundo. - Este familiar aguarda-vos?
- Não. Só decidi ir hoje de manhã. Nunca cheguei sequer a conhecê-lo. Houve um distanciamento...
- Tendes a certeza de que vos receberá?
Não pensara naquilo. O pastor podia ser parente dela, mas não querer ter nada a ver com a filha de Jonathan Albret. Viu-se especada em frente à residência do pastor
e a fecharem-lhe a porta na cara.
- Não se apoquente, provavelmente correrá como esperais. Havia tanta gentileza no sorriso de Mister Tyndale enquanto a tranquilizava que ela teve de lho devolver.
- A minha visita pode esperar até amanha - disse ele. - Porque não levar-vos até Brinley? Fica perto de Fenwood. Podeis esperar lá e eu levo uma mensagem da vossa
parte ao vosso familiar. Se ele estiver de acordo, podeis ir fazer-lhe a vossa visita. Assim, também não tereis de voltar a pé, e estaremos de regresso à casa antes
dos outros.
Uma nota alegre e cúmplice infiltrou-se na última frase. Ele pensava que ela escondia a visita de Daniel por o afastamento ter sido obra dele.
A interpretação de Mister Tyndale era conveniente, porém. Ela dificilmente poderia explicar que não era prima de Daniel e que a pessoa era apenas parente dela. Além
disso, poderia ser melhor fazê-lo como Mister Tyndale sugeria, e enviar primeiro um pedido ao pastor.
- Mostrais-vos muito amável e generoso, Mister Tyndale.
- De todo, Miss Albret. De todo. É para isso que servem os amigos. - Apontou para o veículo. - Vamos?
- Adoro o mar - disse Hampton. Eram as primeiras palavras que pronunciava numa hora. - É o melhor exemplo do sublime. Posso dizer que estou satisfeito por não ter
regressado hoje à cidade.
- Eu detesto o mar - ripostou Daniel. Nunca compreendera aqueles disparates poéticos sobre o sublime, mas se o mar era exemplo disso, também detestava o sublime.
- Um sentimento inusitado, St. John - prosseguiu Vergil. -A vossa fortuna, fê-la o mar.
Daniel não queria saber que lhe tivesse feito a fortuna. Passara anos a balouçar nas suas ondas, mas não gostava minimamente dele.
Detestava a sua imprevisibilidade e a sua vastidão. Odiava a forma como fazia um homem sentir-se pequeno e à mercê do destino. Incomodava-o que as suas ondas ritmadas
conseguissem trazer à tona verdades das profundezas da alma de uma pessoa.
De todas as coisas que os homens faziam para fingir que conseguiam impor a vontade humana ao mar, a pesca desportiva sempre se lhe afigurara a mais ridícula. Era
uma forma de duelo, só que o opositor era primevo por natureza.
Daniel estava de pé numa rocha entre Vergil e Hampton, mais as suas longas canas de pesca no meio de todo o ridículo arraial. Ele e os outros homens do grupo testavam
as suas débeis capacidades contra a mais eterna força do planeta. Apanharam-se de facto alguns peixes, com grande alarido e excitação.
Vergil apanhara um enorme e escorregadio. Hampton não, mas tanto se perdera em contemplação que não se mostrara minimamente aborrecido.
Apenas o jovem Dante revelava inquietude. Estava sentado no chão ao lado das pernas do irmão, mostrando-se impaciente com o desporto e nem um pouco impressionado
com o sagrado sublime.
- Quando chegarão as senhoras, que achais? - inquiriu.
Sim, quando chegariam elas, que raio? Quando chegaria ela? Daniel forçara-se a não olhar para a estrada, a ver se chegavam, mas os seus ouvidos estavam permanentemente
à escuta de sons de carruagens.
- Seria de pensar que já tivésseis tido a vossa parte - murmurou Vergil, lançando um olhar irritado à cabeça do irmão. - Compreendeis, espero, que se algum marido
alguma vez vos pedir contas, sois um homem morto.
- Por falar nisso, talvez tenha chegado a altura de ele começar a ter lições com o chevalier - sugeriu Hampton. - Tendo em conta o seu gosto por feitos atléticos,
seria dinheiro bem gasto.
Dante ergueu os olhos, subitamente mais rapaz do que homem.
- E julgais mesmo que me desafiariam, a sério? Não é como se algum dos velhadas se importasse, de facto.
- Ser traído por um rapaz que ainda nem sequer saiu da universidade pode despertar o interesse do mais enfadado dos homens
- rematou Vergil.
- Rapaz uma ova. Não sois muito mais velho do que eu...
- Sou o suficiente para saber uma coisa ou duas a propósito de discrição...
Daniel parou de ouvir a querela dos irmãos. Outro som absorveu a sua atenção.
Aproximavam-se carruagens.
Finalmente.
Fez questão de mostrar que verificava a linha em vez de olhar para a estrada como ansiava fazer. Calculou a aproximação apenas pelo som enquanto lutava para dominar
a expectativa crescente, quase demente.
Cerrando os dentes, fixou os olhos no mar, mas isso só fez com que as malditas ondas fossem uma distraçáo, despoletando redemoinhos de memórias de paixão e prazer.
Anseios de posse soltavam-se como chamas das brasas acesas de desejo que há semanas ardiam dentro dele.
Ele fechou os olhos e forçou comedimento às suas reações. Estava a ser mais infantil do que Dante. Mais imprudente. Nem sequer sabia o que dizer quando voltasse
a vê-la. Não sabia ao certo o que queria dizer.
- Ah! As senhoras chegaram - anunciou uma voz ao fundo da fila de homens.
Daniel aguardou que as carruagens parassem para lançar a linha. Criados começaram a esticar panos e a dispor cestos na colina viçosa para lá da estrada.
Reparou no conde, que fixava atentamente uma carruagem. Seguindo a direção do seu olhar, Daniel viu a condessa a sair.
Seguiram-se duas outras senhoras. Daniel aguardou que aparecesse outra cabeça na abertura. Uma bela cabeça, com olhos emotivos que conseguiam fazer um homem esquecer-se
de si próprio.
Em vez disso, o lacaio fechou a porta da carruagem.
Daniel perscrutou o grupo, procurando Diane.
Encaminhou-se na direção da condessa, parada entre três mulheres que estavam a conseguir falar à volta dela, como se ela nem existisse. Desculpando-se como se tivesse
sido incluída, apanhou-o a meio caminho com um sorriso de gratidão.
- Quanta gentileza da vossa parte terdes vindo salvar-me, Mr. St. John.
- Seria uma satisfação acompanhar-vos, mas pergunto-me onde está a minha prima.
- Ela ficou na casa, para dormir. Foi irrefletido da minha parte tê-la deixado ficar a pé até tão tarde ontem à noite, e hoje de manhã estava muito cansada. Confesso
que fiquei tentada a me furtar a vir também, mas... - Indicou o conde com um olhar expressivo, e depois as suas companheiras de carruagem. - Uma pessoa tem de manter
as aparências e ser corajosa e isso tudo.
Daniel teria de longe preferido que a condessa tivesse cedido às suas inclinações para se esconder. A sua bravura significava que Diane fora deixada desacompanhada.
Não havia razão para a condessa se preocupar com aquilo, mas para Daniel sim.
Havia outro membro do grupo que não tinha mostrado a mesma coragem da condessa. Andrew Tyndale também pedira para ser dispensado da excursão.
O que significava que Diane não estava completamente sozinha na casa com os criados.
- Peço desculpa, mas afinal não terei possibilidade de vos fazer companhia. O vosso irmão cuidará de vós, tenho a certeza. Sinto-me obrigado a regressar à casa,
para me certificar de que a minha prima não se encontra doente.
- Estou certa que não. Apenas cansada...
Ele deu meia-volta e estugou o passo até à carruagem, não aguardando pelo outros. Notou que Vergil e Hampton o tinham visto. A expressão que fizeram e a rapidez
com que o intercetaram na carruagem sugeriam que ele não conseguia esconder bem a sua preocupação.
- vou voltar à casa, Duclairc. A vossa irmã precisa da vossa companhia neste momento.
- Ides regressar? Porquê?
- A minha prima ficou para trás. Está doente, e eu devo atendê-la.
- Estou certo de que se fosse sério Pen...
- vou lá verificar, de qualquer forma. - com um gesto, indicou ao cocheiro para partir.
A mão de Vergil travou o braço de Daniel quando este subia para a carruagem. - Parece-me que vou convosco. Jantar ai fresco enfada-me.
Daniel olhou para aquela mão e depois para Vergil. A desaprovação que Vergil mostrara no ribeiro cintilava-lhe nos brilhantes olhos azuis.
- A vossa irmã precisa de vós ao lado dela, e eu não tenho necessidade de auxílio.
- Mesmo assim...
- Permiti-me que seja eu a regressar - propôs Hampton. - A intrusão súbita deste barulho todo estragou-me o resto do dia. Penso que afinal sempre regressarei a Londres.
Não vos importais de me levar até ao meu cavalo, pois não, St. John?
Hampton, que raramente sorria, fazia-o agora com uma firmeza afável que informava que Daniel não regressaria sozinho para a casa e para uma Diane desacompanhada.
Raios. Era pouco provável que Vergil tivesse partilhado as suas suspeitas. Hampton devia ter sentido o que existia entre eles na noite anterior durante a partida.
Quem mais o teria visto? A condessa?
Tyndale? !
Devia dar uma sova a ambos por o insultarem com a insinuação de que ele não podia ser deixado sozinho com a prima.
Só que, claro, tinham razão.
Saltou para a carruagem. - Vinde, se quereis. Como se eu me importasse.
CAPÍTULO 16
Diane aguardava com impaciência, ensaiando o que iria dizer quando se encontrasse com o pastor. Visões de um reencontro banhado em lágrimas sucediam-se na sua mente,
pequenos dramas escritos ao longo dos anos, quando se deitava na cama da escola.
Ela esforçava-se para deter a imaginação. O pastor podia nem sequer aceder a vê-la. Podia não ser seu parente. Podia ser-lhe tão afastado que não tivesse interesse
numa associação.
Apesar de dizer a si própria aquilo tudo, a expectativa continuava a crescer. Durante cerca de meia hora depois de Mister Tyndale sair ainda conseguiu contê-la,
mas com o passar do tempo não parava de se avolumar.
Foi até à janela pela vigésima vez, para espreitar a rua à procura da carruagem. Brinley não era uma aldeia grande e a estalagem era minúscula. Mister Tyndale tivera
a generosidade de pagar um quarto para ela não ter de esperar na sala comum.
Era um quarto humilde mas bonito. Cortinas de musselina enfeitavam a janela e a cama. Umas alegres almofadas amarelas salpicavam a colcha azul e simples. Era o tipo
de quarto que ela presumira que teria quando fora para Paris com Daniel. Em vez disso, ele pusera-a dentro de um vaso de porcelana branco e azul.
Avistou uma carruagem. Mesmo não sendo maior do que um ponto, ela sabia que era de Mister Tyndale. O seu coração disparou. Tentou recuperar a compostura, lutou para
domar a esperança. Não conseguiu, e por fim preparou-se para sair a correr.
Mister Tyndale já estava à porta do quarto quando ela a abriu.
- Ele estava lá? Viste-lo?
- Estava lá.
- O que disse? Recebe-me?
- Lamento ter de vos desapontar, Miss Albret. Ele não sabe nada de vós e está certo de não haver parentesco entre os dois. É um velhote seco que não viu vantagem
nenhuma em ter a reunião que procuráveis.
A excitação desapareceu como que expulsada por um murro. A sua ausência imediata agravou o vazio mais do que nunca. Tornou-se tão grande que poderia tê-la absorvido.
Foi para a janela e olhou para o exterior, para esconder a sua reação. Lágrimas ameaçavam brotar. Acumulavam-se-lhe no peito e na garganta, e ela sentia-se pior
por não poder libertá-las.
- Magoa-me profundamente que isto vos tenha perturbado tanto.
Diane sentiu calor no seu ombro. A mão dele repousava lá, uma pequena mostra de solidariedade. O gesto paternal ajudou um pouquinho.
- Sinto-me culpado. Devia ter advogado melhor o vosso caso.
- Se não há parentesco, não há finalidade na reunião. Agradeço-vos terdes ido, poupando-me o constrangimento de ir importunar um estranho com o qual não tenho quaisquer
laços.
Ela virou-se para ele e a mão dele deixou-se cair. Ele parecia tão preocupado que ela se sentiu culpada. - Não há de ser nada. É só que tenho tão pouca família que
esperava descobrir mais, é tudo.
- bom, continuais a ter o vosso primo.
- Sim. O meu primo.
Só que não era primo coisa nenhuma e ela não queria continuar com ele. Percebeu que, inconscientemente, havia depositado uma
grande quantidade de planos no velho pastor. Sem o admitir, estava na expectativa de ter um sítio para onde ir quando deixasse Daniel. Agora não sabia ao certo para
onde iria nem como viveria.
- Estais perturbada. Receei que isso acontecesse. Antes de sair, dei indicação de que nos preparassem o jantar. Tomei a liberdade de dizer que no-lo trouxessem para
aqui para vós não terdes de comer lá em baixo, onde há outros que ficarão a observar-vos.
- Foi muito atencioso da vossa parte. Confesso que não estou segura de conseguir esconder bem as minhas emoções, e posso bem passar sem a companhia de outras pessoas.
Ele sorriu, gentil. - Aceitais a minha, pelo menos? Pode ser uma ajuda não estardes completamente só. Um pouco de conversa poderá distrair-vos.
- Oh, não me referia a vós. Tendes sido tão atencioso e prestável que eu... bom, aceito com agrado a vossa companhia. Apesar de não estar com muita fome.
- Tendes de comer alguma coisa na mesma. Não ficaria bem levar-vos de volta a desmaiar de fome.
Naquele preciso momento ela não queria nem um pouco voltar. Acabaria por ter de o fazer, claro. Antes disso, contudo, queria algum tempo para se acalmar e avaliar
o significado que esta desilusão tinha para o seu futuro.
O estalajadeiro chegou com a mulher e a filha, carregando tabuleiros de comida. Colocaram a pequena mesa perto da janela e arrastaram para lá outra cadeira. A um
gesto subtil de Mister Tyndale, a mulher desatou o drapeado de musselina da cama, para que a função da divisão ficasse disfarçada.
- Cheira muito bem - comentou Diane, dirigindo-se até lá para inspecionar a refeição depois de todos terem saído. Havia carne de ave com molho, batatas e pão. Uma
garrafa de vinho também os aguardava.
- Comida simples do campo - disse Mister Tyndale. - Prefiro-a aos pratos exóticos que são servidos em algumas festas de Londres.
- Também eu.
Ele indicou-lhe a cadeira dela com um gesto. Ela sentou-se.
- Penso que sois uma das pessoas mais amáveis que já conheci, Mister Tyndale.
Ele deixou escapar um sorriso modesto e serviu o vinho. - Qualquer cavalheiro faria o mesmo, Miss Albret. bom, vamos lá tratar da vossa disposição para vos termos
a sorrir outra vez.
Durante uma hora, ele distraiu-a com as suas conversas. A voz e a consideração dele tinham o efeito de um bálsamo. A desilusão diminuiu até não ser mais do que um
fino véu sobre o seu ânimo.
- Miss Albret, perdoe-me se estiver a intrometer-me, mas os acontecimentos de hoje pareceram afetá-la profundamente. Era importante para vós descobrirdes mais família?
Estais infeliz com a vossa situação?
A pergunta, feita quando ela enfiava o garfo numa tartelete de nata, agitou o véu.
- Não diria que estou infeliz, mas tenho andado a pensar que talvez seja bom procurar mudar as minhas circunstâncias. - Ela não estava certa da razão por que o admitia.
Saiu-lhe da boca, como resultado da familiaridade e à-vontade que o dia fizera crescer entre eles.
- Acho que podeis ter razão.
- O que quereis dizer com isso?
A expressão dele tornou-se séria e ponderada. - Arrisco o vosso desagrado com o que estou prestes a dizer, mas como sou um cavalheiro preocupado com o vosso bem-estar,
não vejo outra escolha. Tem havido rumores, lamento dizê-lo.
- Rumores?
- Não vos assusteis. Coisa pouca, e pura especulação. Bem, tendo em conta que St. John apareceu vindo do nada, sem história, rico como o pecado, com grande probabilidade
de a sua fortuna ter sido gerada por meios ilícitos... Diz-se que foi com sedução e nada mais que abriu as portas dos círculos que agora frequentais. Depois aparece
uma prima, também sem história... a forma como ele corre
com os homens, a forma como dançou convosco no baile... o que posso dizer? Tem havido comentários.
O conde de Glasbury insinuara o mesmo, por isso ela não ficou assim tão chocada. Não obstante, de repente ficou a gostar muito menos de Mister Tyndale.
Ele interpretou mal o silêncio dela. - Miss Albret, por favor perdoai-me se vos pergunto isto, sei que não me compete, realmente, mas vós sois tão inocente e tão
jovem. O vosso primo importunou-vos de alguma forma? Desde ontem à noite que isso me preocupa. Enquanto jogávamos às cartas senti que vós tínheis medo dele, e que
o interesse dele por vós não era totalmente apropriado.
- Estais enganado, asseguro-vos.
A expressão dele ficou imediatamente mais leve. - É um alívio ouvi-lo, e é o que esperava. Quando dissestes que talvez fosse bom mudar a vossa situação...
- Não quis dizer que precisava de fugir do meu primo - mentiu, desconfortável com o rumo que a conversa tomava. Mister Tyndale podia ser amável e paternal, mas não
era o pai dela. - Referia-me a coisas mais práticas. Não tenho fortuna e vejo pouco futuro nos círculos que venho frequentando. Tem sido agradável, mas talvez fosse
avisado procurar um caminho mais realista. Não quero ser uma daquelas parentes pobres, para sempre dependentes.
- Um sentimento admirável. - Ele pousou os cotovelos na mesa, juntou as mãos, apoiou o queixo em cima delas, e olhou para ela muito diretamente. - Quero que saibais,
porém, que se alguma vez precisardes de qualquer ajuda que seja, sentir-me-ei honrado se puder assistir-vos.
Era um comentário muito típico de Mister Tyndale. Atencioso e solícito. E, contudo... Diane não conseguiu reprimir uma pontinha de cautela. Os seus olhos azuis pareciam
tão límpidos e honestos como sempre, incrivelmente interessados, mas durante um instante mínimo ela pensou ter vislumbrado uma centelha minúscula, preocupante.
- Gostaria que pensásseis em mim como vosso amigo - continuou ele. - Admitirei, correndo o risco de vos fazer rir, que espero que um dia penseis em mim como algo
mais do que um amigo.
A mesa pareceu-lhe subitamente muito pequena e o rosto dele muito próximo. Um rosto agradável e sincero ainda, mas surgiram-lhe mais daquelas faúlhas nos olhos,
mudando tudo.
O espanto foi tanto que ficou sem conseguir mexer-se ou falar.
De repente, o braço dele atravessou a mesa e a mão dele segurou-lhe o queixo. - Sei que há uma grande diferença entre as nossas idades, mas isso não é assim tão
invulgar. Admiro-vos desde a primeira vez que nos vimos. Espero que pelo menos considereis o meu afeto, e que o vosso primo não objete se eu me apresentar como pretendente.
Pretendente!
Ela ficou pasmada a olhar.
Ele levantou-se da cadeira e inclinou-se sobre a mesa.
A mente confusa de Diane não compreendia o porquê de ele estar a fazer aquilo.
Ele mostrou-lhe o porquê.
O afável, generoso e sincero Mister Tyndale beijou-a, e contornou a mesa enquanto o fazia.
- Não há prova de que ele a tenha seguido.
Hampton ofereceu o reconforto dentro do coche, que dobrava uma curva da estrada, inclinando-se com a velocidade. - Ele só mandou vir a carruagem dele muito depois
de ela ter saído, e pode ter seguido por um caminho completamente diferente.
- Se assim foi, saberemos dentro em breve e aí podeis dizer-me que fui estúpido.
Tinham chegado à casa e descoberto logo a ausência tanto de Diane como de Tyndale. Levara-lhes um tempo insuportavelmente longo para localizarem alguém que soubesse
para onde Diane tinha ido. Por fim, a caseira apresentara uma rapariga chamada Mary que relatou a informação sobre o pastor de Fenwood.
Daniel não tivera tempo de se perguntar o que teria querido
Diane do pastor. O moço que preparara a carruagem de Tyndale
chegara pouco depois, e a convicção de que Tyndale seguira Diane alojara-se, determinada, na mente de Daniel, não deixando espaço para mais nada.
Ele não tirava os olhos da paisagem campestre, procurando vestígios dela, ou de Tyndale. Ou de ambos.
- Suspeitais disso por causa de ontem à noite? - perguntou Hampton. - Ele parece um sujeito decente. Todos o dizem. Não esperaria que ele procurasse desforrar-se
de vós através dela.
Só que ele não era um sujeito decente. Ficaria encantado por se desforrar de alguém daquela forma, porque tinha um fraquinho por raparigas inocentes de maneiras
refinadas e pele branca e cabelo escuro. Especialmente se elas estivessem impotentes e dependentes dele e sem qualquer proteção.
O coche atravessou Witham a toda a brida e virou para uma rua de terra. E aí teve de abrandar. A demora deixou Daniel furioso.
Hampton mantinha uma calma notável, mas, vendo bem, ele era sempre assim. A Daniel, aborrecia-o que o advogado não percebesse o perigo que eles se apressavam para
evitar.
- Se estais tão seguro da decência de Tyndale, não sei porque insististes em acompanhar-me.
- Já que estamos quase lá, digo-vos porquê. - Hampton indicou com um gesto preguiçoso as pistolas penduradas na parede do coche por cima da cabeça de Daniel. - Estou
aqui para me certificar de que não levais nenhuma das duas convosco quando descerdes desta carruagem.
- Se me sentir inclinado a matar um homem, bastam-me as minhas mãos.
- Não duvido disso. Na verdade, suspeito que o comprovastes. No entanto, hoje não o fareis.
Entraram nos arrabaldes de Brinley. Daniel ordenou ao cocheiro que fosse devagar.
Hampton examinava um lado da rua enquanto Daniel examinava
o outro. Perto da outra ponta da aldeia, Daniel viu uma pequena estalagem à frente da qual estava parado um cabriole conhecido.
Saiu do coche antes de este parar, com Hampton no seu encalço. Lá dentro, procurou o estalajadeiro e perguntou pelo homem a quem pertencia o cabriole.
- Não está. - Foi a resposta do estalajadeiro, que deu meia-volta.
Daniel agarrou-lhe no peitilho da camisa e puxou-o até os dedos dos pés se lhe levantarem do chão. - Onde está ele? Atónito, o estalajadeiro limitou-se a apontar
para cima.
- Está só?
A cabeça sobre a sua mão crispada abanou.
Ele largou o homem e dirigiu-se às escadas.
Hampton agarrou-lhe no braço. - Não façais nada precipitado.
Daniel enxotou-o e subiu os degraus três a três.
Só havia dois quartos no segundo piso. Uma das portas estava aberta, revelando uma divisão vazia.
Abriu de rompante a porta de outro. Foi invadido por uma raiva violenta ao deparar-se com a cena de sedução.
Tyndale estava curvado sobre uma Diane sentada, segurando-lhe o rosto entre as mãos, beijando-a. As costas dela estavam contra a cadeira e os braços dela agarravam
os dele. A resistir-lhe? A abraçá-lo? No segundo antes de a porta bater com um estrondo na parede não era claro. A Daniel também não lhe importava.
Tyndale ergueu a cabeça e afastou-se da mesa. A expressão de Diane registava surpresa, e depois horror. Ela virou-se para trás e cobriu o rosto com as mãos.
Sem pensar, sem se importar com nada, conduzido por emoções sombrias de mais para atentar em custos, Daniel voltou a sua atenção completa para Tyndale e deu um passo
na direção do homem que tencionava desfazer em pedaços.
Uma mão no seu braço deteve-o. Tentou espantá-la, mas esta não se mexeu. Furioso, voltou-se para Hampton, disposto a afastá-lo com um murro se necessário fosse.
- Não esqueçais quem ele é. Vale a forca? - perguntou calmamente Hampton.
Regressou uma pequena centelha de razoabilidade. Tyndale observava, sem mostrar a mínima preocupação. As mãos de Diane deixaram-se cair. Sentada, ali, a olhar para
ninguém, era palpável a sua humilhação. Ficaram todos nos respetivos lugares, num silêncio cortante, um tableau vivant de ruína e comprometimento e raiva.
- Miss Albret, deixai-nos, por favor - disse Hampton com a sua voz de advogado.
Ela começou a falar, mas parou. Daniel não conseguia imaginar o que ela pensava poder dizer. Tentar desculpar Tyndale? Acusá-lo de a ter enganado? Não importava.
A situação falava por si. Não havia homem que levasse uma mulher para um quarto daqueles se as suas intenções fossem honradas.
Ela apressou-se a sair e Hampton fechou a porta.
Tyndale foi até à mesa, sentou-se numa cadeira, e serviu-se de vinho.
- Foi apenas um beijo - disse ele. - Ela não se importou minimamente, porque haveis vós de vos importar?
Daniel queria estrangulá-lo.
Hampton assumiu uma posição de barreira entre os dois. - comprometeste-la com o simples facto de a terdes trazido para este quarto. Ela pode não o ter compreendido,
mas vós certamente que sim. Agora tem de se encontrar uma solução.
- Imagino que possa oferecer alguma compensação, se não for muito alta.
- Não se trata de uma leiteira que possais despachar com um punhado de libras - devolveu Hampton.
- Para todos os efeitos é mesmo. - Tyndale bebeu um gole e pensou. - Não sugeris certamente que eu faça por ela o que deve ser feito? Suponho que pudesse considerá-lo,
se ela tivesse nascimento ou fortuna.
- Diabos me levem se permito tal coisa - rosnou Daniel.
- Não podeis esperar que fique com ela sem dinheiro nenhum, St. John. Certamente que a reputação dela vale algumas
libras.
- Também tendes uma reputação - lembrou Hampton. Tyndale riu. - Por mais prendada que seja, ela não é ninguém.
Por mais rico que seja, esse vosso amigo também não. Penso que a minha reputação consegue sobreviver a este mal-entendido.
- Que tipo de acordo tínheis em mente? - inquiriu Hampton.
- Não a quero amarrada a ele, e com ele a aproveitar...
- A dívida de ontem à noite desaparece, para começar. Isso e mais vinte mil poderiam resolver o assunto.
- Quarenta mil libras é uma soma bastante avultada - respondeu Hampton.
- Penso que é generoso da minha parte considerar sequer o assunto seriamente.
- Penso que é generoso da minha parte deixar-vos viver - prosseguiu Daniel.
Tyndale deu uma dentada num resto de tartelete. - É um desafio?
- Não - assegurou enfaticamente Hampton. - Está irritado, como seria de esperar. A vossa postura só o provoca mais. Não esqueçais que sou testemunha do que se passa,
e eu não sou um zé-ninguém.
Tyndale voltou-se e estudou Daniel. - Ficastes muito perturbado com um simples beijo, St. John. Mostrais-vos tão protetor como se de uma irmã se tratasse.
O quarto desapareceu. Assim como a ideia de qualquer acordo. Exceto um.
Era a única resolução que ele alguma vez quisera com este homem. Planeara-a, vivera para ela e depois, por causa de Diane, descartara-a. Mas agora, mesmo assim,
aqui estava.
Por vezes o destino conspira para forçar uma pessoa afazer o que tem de ser feito.
- Não haverá casamento nem acordo - comunicou, abrindo a porta. - O meu padrinho visitará o vosso amanhã em Londres.
CAPÍTULO 17
Era como se alguém tivesse morrido. Uma sobriedade silenciosa envolvia a casa. Diane sabia o porquê daquela atmosfera carregada. O comportamento dela não manchara
apenas a sua reputação, mas também a de Daniel e da irmã. Toda a casa sofreria por causa da sua estupidez.
Homens visitavam Daniel, com o mesmo rosto que as pessoas envergam nos velórios. Mister Hampton apareceu várias vezes no dia a seguir ao regresso de Diane e Daniel
a Londres, e Vergil Duclairc também esteve de visita. Houve outros homens que ela não conhecia. Finalmente, ao fim da tarde, um homem grisalho de porte nobre foi
conduzido ao escritório de Daniel. Diane viu-o passar pela biblioteca, onde estava a ler um livro.
Foi até à entrada e olhou para a porta do escritório. Daniel passara ali a maior parte do seu tempo desde o regresso deles. Ele mal falara com ela depois de a encontrar
na estalagem. Regressado do confronto com Tyndale, perguntara apenas se ela estava ilesa. As afirmações dela não tinham suavizado a sua expressão e ele não quisera
ouvir as explicações dela.
Ele nem sequer tinha ido na carruagem quando regressaram a Londres. Ficara ao lado do cocheiro, tomando as rédeas nas mãos.
Regressaram imediatamente. Mister Hampton mandou emalar as coisas deles e enviou-as para a cidade na carruagem da condessa.
O homem não ficou no escritório durante muito tempo. Saiu, sério e apagado, parecendo um personagem de uma tragédia.
A porta do escritório ficou entreaberta. Diane passou por lá e espreitou para dentro.
Daniel estava, como tantas outras vezes, perto da janela, a olhar para fora. Parecia muito sozinho. Muito isolado.
Ela entrou sorrateiramente.
- Gostaria de falar convosco - disse ela. - Parece-me que devo voltar para França. O escândalo não vos afetará tanto se eu já cá não estiver.
- Não será necessário. A culpa não foi vossa.
- A culpa, foi minha. Eu devia ter percebido...
- Pessoas mais sensatas e vividas do que vós não se aperceberam.
Ele parecia tão distante. O coração dela sofria por Daniel insistir em não olhar para ela. Ele anulara qualquer familiaridade entre os dois. Fechara uma porta. Ela
voltara a tornar-se uma responsabilidade, nada mais.
Tinha sido a vontade dela. Decidira que esta amizade e esta intimidade tinham de acabar. Agora, experimentar o gelo da sua morte entristecia-a mais do que ela alguma
vez esperara.
- Não foi o que pareceu - disse, ouvindo a sua voz embargada. A verdade não iria fazer diferença, mas de súbito foi de importância vital que ele ouvisse aquilo.
- Ele ajudou-me quando eu estava na estrada, e foi ver se um pastor de Fenwood se encontrava comigo. Eu limitei-me a esperar no quarto que ele regressasse, não que...
Ele virou-se para ela. - E depois ele mandou vir o jantar, e vocês comeram, e para vosso choque vós descobristes que ele não pensava em vós como uma filha ou uma
sobrinha.
- Sim.
- E depois ele aludiu a afeto e amor, até mesmo a casamento.
- Sim. Como sabíeis?
- E depois beijou-vos. E vós permitistes.
- Foi um choque, estava estupefacta. Foi tão inesperado...
- Não interessa.
- Interessa sim. - E interessava. Naquele momento, interessava mais do que qualquer coisa no mundo.
- Não estou certo do que vi quando entrei. Sei sim que se não tivesse chegado, Tyndale não teria parado depois de um beijo e que o vosso consentimento em estar naquele
quarto tê-lo-ia absolvido das piores acusações.
Ela não sabia o que dizer. Tinha sido insuportavelmente ingénua e estúpida. - Certamente, se eu fosse embora, ninguém se importaria com isto. Ninguém viria a saber.
- Oh! Claro que viria a saber-se. Estas coisas arranjam sempre forma de sair por algum lado. Não vos preocupeis demasiado com o assunto, porém. Estou a tratar disso.
Disse a última parte com firmeza. O silêncio da casa e a retirada de Jeanette para os seus aposentos fixaram-se na memória de Diane. Como também a procissão de visitantes
sisudos.
Assolou-a uma suspeita terrível.
- O homem que esteve aqui agora mesmo. Não era o chevalier Corbet? Ele nunca vos visitou.
Daniel foi até à secretária. Estava apinhada de livros-mestre e outros livros. - E um velho amigo e concordou em fazer-me um favor importante.
- Que favor? - Ela foi até à secretária e contemplou a prova de que um homem colocava os seus assuntos em ordem. - Mãe de Deus, o que fizestes? Desafiastes Mister
Tyndale por causa disto?
- É evidente.
- É evidente? Eu nem sequer sou vossa prima de verdade. Não tendes responsabilidade em relação a mim, muito menos a de um gesto tão perigoso. Decerto havia outra
forma de salvaguardar o vosso orgulho, sem que tivésseis de tentar matá-lo.
- Não outra que me fosse aceitável.
- E se ele vos mata a. vóst - A ideia fez-lhe revolver o estômago. Se ele morresse por aquilo, por uma coisa tão pequena, ela nunca se perdoaria. Seria para sempre
perseguida pela culpa.
Ela tinha decidido deixá-lo, mas não assim. Não de uma forma tão permanente. Saber que ele estava algures no mundo teria facilitado tudo. Assim, ela podia sofrer
uma perda que o seu coração sabia já não conseguir absorver.
- Não estejais preocupada. Estareis amparada se eu falhar. Passei a manhã a tratar de obrigações para vós e Paul e mais algumas pessoas. Não ficareis desprovida.
- Não quero o vosso dinheiro. Não quero que este confronto vá para a frente.
É imprudente e desnecessário. Tanto quanto sabeis, as atenções dele agradaram-me. Talvez
ele estivesse a ser sincero ao comunicar as suas intenções como pretendente. Talvez eu tenha gostado do beijo e da oportunidade de agarrar o filho segundo de um
conde.
Daniel aproveitou para compor alguns livros-mestre. - Talvez sim. É o que está a parecer.
Um não imperioso subiu-lhe aos lábios, mas ela reprimiu-o. Proclamar a sua inocência, descrever a repulsa que sentira pelos beijos insistentes de Tyndale, só deitaria
achas para a fogueira.
Partia-lhe o coração que Daniel pudesse pensar que ela desejara aquela cena de sedução, mas o seu orgulho pouca importância tinha naquele momento. Ela não podia
deixá-lo bater-se naquele duelo. Não podia arriscar que ele morresse. Deixá-lo perguntar-se se não estaria a proteger uma mulher que não merecia o seu cavalheirismo.
Poderia conduzir a que ele abdicasse do duelo.
- E não é só imprudente, mas também hipócrita. O vosso próprio comportamento comigo tem sido muito pior do que o de Mister Tyndale.
- Tenho consciência disso. No entanto, a um nível essencial, foi muito diferente, de formas que vós não conseguis compreender.
- Como objeto desse comportamento, não vejo diferença, a não ser que as intenções últimas dele possam ter sido honradas.
- Estou muito certo de que não o eram. Nem as minhas. Em todo o caso, um de nós pagará por vos ter destratado, e talvez por muito mais.
- Para quando está marcado, este duelo?
- Louis está com o padrinho de Tyndale neste preciso momento. Conto que seja para breve.
- Jeanette sabe o que planeais fazer?
- com certeza.
Ele dissera à irmã, mas não à mulher por cuja honra ele lutava.
- Presumo que ela vos tenha suplicado para mudardes de ideias.
- Ao contrário de vós, Jeanette sabe bem que não vale a pena tentar.
- Talvez seja por não saber a história toda.
Ela deu meia-volta, para ir recrutar uma aliada. A voz dele seguiu-a em surdina até à porta. - Na verdade, é por saber mesmo toda a história.
- Tendes de o deter. - Na saleta, de pé em frente a Jeanette, Diane disse-o como uma ordem.
- Ninguém consegue fazê-lo, agora.
Jeanette parecia resignada e frágil. A sua pele branca mostrava rugas ténues em que Diane nunca tinha reparado.
Começou a andar para trás e para diante. Um misto de frustração e preocupação extrema martelava-lhe na cabeça. - A reaçáo de Daniel foi demasiado extrema. Um duelo!
Tinha de haver outra forma...
- Houve. Mister Tyndale ofereceu-se para casar convosco se levásseis um dote.
- O vosso irmão prefere morrer, ou matar, a pagar meia dúzia de libras?
- A soma era muito grande e pretendia ser um insulto tanto para vós como para o meu irmão. No entanto, não foi por isso que Daniel recusou.
- Então porque foi?
Ela alisou as pontas do xaile. - Ele nunca vos colocaria numa situação em que vos sentísseis obrigada a casar com um homem para evitar este confronto.
- Deveria ter sido escolha minha, não dele.
- bom, ele fê-la. Além disso, Daniel nunca teria deixado Tyndale ter-vos de forma alguma, nem mesmo em casamento. Não tenho dúvidas de que mais depressa mataria
o homem do que o permitiria.
Diane pousou a mão no ombro de Jeanette e olhou-a nos olhos.
- Daniel disse algo sobre vós saberdes a história toda. Há mais alguma coisa aqui pelo meio?
- Digo-vos isto. Faço-o na esperança de que não vos culpeis a vós própria. Paul sugeriu que Mister Tyndale podia já ter-vos levado deliberadamente para aquela estalagem,
com a intenção de provocar um duelo com Daniel. Na noite anterior, a jogar às cartas com Daniel, tinha perdido uma soma avultada. A sua obrigação para com a dívida
desapareceria se Daniel morresse.
- É uma forma drástica de acertar uma dívida.
- E uma forma eficaz. Mister Hampton, o advogado, apresentou esta teoria a Daniel. O meu irmão considera-a irrelevante, claro. Contudo, explicaria o porquê de o
dote que Tyndale pediu para casar convosco ser tão escandalosamente elevado. Incluía a dívida, reparai.
Então ela fora um peão. A gentileza, na rua, fora meramente a atitude de um homem que avistara uma oportunidade. Talvez até a tivesse seguido, esperando encontrar
uma forma de a comprometer para que tudo pudesse desenrolar-se como se desenrolou.
Ser a boneca de Daniel tinha sido uma coisa. Ser o joguete de Tyndale era outra. Ela caíra na armadilha como a pateta estúpida e ignorante que era. Pior, Daniel
podia morrer por causa disso.
- Essa teoria só funcionaria se Mister Tyndale estivesse confiante em ganhar o duelo - prosseguiu ela.
- Tem reputação de ser um excelente atirador.
Um dos melhores atiradores de Inglaterra, dissera-lhe Daniel naquele dia junto ao ribeiro.
- Temos de impedir isto, Jeanette.
- Ninguém tem capacidade para o fazer. Acreditai em mim. Conheço o meu irmão como mais ninguém. Ele vai defrontar Tyndale, e fá-lo-á com o intuito de o matar.
Diane aguardou até a casa se fazer silenciosa e levantou-se da cama. Horas de tumulto e culpa haviam redundado numa decisão.
As emoções dos últimos dias tinham-na preparado para aquela escolha. Talvez as dos últimos meses. A desolação de considerar a possível morte de Daniel revelara as
verdades do seu coração.
Tirou do armário um robe que nunca tinha usado. Um modelo frívolo, nada prático, de cetim rosa-escuro e renda bege, que tinha sido feito em Paris por capricho de
Jeanette, apesar de Diane insistir que nunca usaria tal vestimenta.
Imaginou o aspeto com que ficaria com aquilo por cima da sua singela camisa de noite. A imagem que lhe veio à cabeça era cómica e ridícula. Pareceria uma criança
vestida com as roupas da mãe.
Decidindo que não era altura para pudores, despiu a camisa e vestiu a sua nudez com a seda rosa, que a cobria quase como um vestido de noite, só que a frente tinha
uma abertura pronunciada, e o toque sensual do tecido cingia-se-lhe às curvas. O decote redondo, debruado a renda, tocava-lhe os seios.
Sentiu um nó no estômago. Estava prestes a fazer uma coisa que qualquer pessoa com algum juízo consideraria um erro estúpido e escandaloso.
Pior, poderia falhar. No escritório ele tinha-lhe sido tão indiferente que ela não confiava que o seu plano fosse resultar. Mas tinha de tentar. Jeanette dissera
que ninguém conseguiria fazer com que ele anulasse o desafio. Havia uma pequena possibilidade de não ser verdade.
Reunindo toda a coragem, saiu do quarto para ir negociar com o Homem Diabo.
CAPITULO 18
Abriu a porta do quarto de Daniel com cuidado. Um feixe de luz entrou pela frincha.
Sentiu as pernas bambas. Fez uma pausa e um esforço para manter a calma.
Esperou que não fosse horrível de mais. Ele não era um estranho. As suas boas intenções deviam salvaguardá-la de se tornar uma perdida, independentemente da forma
como os outros vissem a sua atitude. Independentemente de como ele a visse.
Empurrou um pouco mais a porta e entrou, sorrateira.
A elegância ampla e esparsa do quarto surpreendeu-a. A mobília possuía um toque oriental. Toda a estrutura da cama era de linhas direitas, com ornamentações em relevo,
e o guarda-fatos tinha embutidos de flores e pássaros. Perto da cama, viu uma cómoda entalhada com três cores de madeira.
Os apontamentos exóticos não tornavam o quarto opressivo. Não era nenhuma fantasia asiática. Pareciam objetos que ele simplesmente tinha trazido das suas viagens
e posto a uso.
Daniel estava sentado numa cadeira perto da lareira vazia, lendo um livro à luz de um candelabro. A cadeira estava virada para ela e ela viu o robe japonês de mangas
compridas que ele envergava,
fechado e atado com uma faixa de pano. Era azul-escuro com um padrão branco e lembrou-lhe o quarto que ela ocupara em Paris.
Reparou nas pernas dele, nuas, que o robe deixava destapadas dos joelhos para baixo. Via-se um profundo V de pele exposta acima do ponto onde as abas do robe lhe
cruzavam o peito.
Parecia que ele não trazia mais nada vestido, o que tornava ainda mais inequívocas as implicações daquilo que ela se propusera fazer. Esperara encontrá-lo de casaca
e botas, ou já adormecido num quarto escuro. Não ali sentado, com aquela luz toda, quase nu.
Tinha um aspeto maravilhoso, um homem de ação temporariamente em repouso. Apesar de relaxado, o magnetismo emanava dele como uma força invisível, afetando-a como
afetava sempre, desassossegando-a e deixando-a mais desperta do que o normal. A luz das velas esculpia-lhe o belo rosto em ângulos severos e os seus olhos escuros
luziam como estrelas negras.
Ele não a ouvira entrar. Ela ficou de pé à frente da porta, com tanto medo e tão nervosa que teve de forçar a voz a sair.
- O que estais a ler?
Ele mal reagiu, mas ela percebeu que o tinha surpreendido.
- Poesia.
Ele ergueu os olhos.
De repente, o seu robe pareceu-lhe muito fino e muito perverso. Não lhe pareceu que a cobrisse nem de perto como cobrira no quarto.
Ela foi alvo de uma inspeção longa e lenta, cheia de interesse masculino. Uma vitalidade tensa, despertada, partiu do outro lado do quarto em direçáo a ela.
- Estais muito bela. Não vejo o vosso cabelo solto desde aquele dia na escola. - Indicou distraidamente o robe. -
É muito bonito.
- Foi Jeanette que mo escolheu, em Paris.
- Ela sugeriu que o usásseis hoje à noite?
- Não. Porque o faria?
Ele fez aquele sorriso jocoso dele. - Então foi ideia vossa vestirdes isso, soltardes o cabelo e virdes até aqui. Porquê?
O rosto dela ardia. Não tinha contado anunciar verbalmente as suas intenções. O robe e a sua presença deviam bastar.
- Viestes tentar-me, Diane?
- Sim.
- Se pensais encantar-me com a vossa beleza e depois sair, quero que saibais agora que náo se passará assim.
- Eu sei disso.
Ele forçou-se a desviar o olhar dela para o fogo brando. Nem sequer compreendeis o que estais a oferecer.
- Náo sou ignorante. Sei o que é esperado.
- Não sabeis o que eu espero. Voltai para o vosso quarto. Ela quase obedeceu.
Em vez disso, caminhou na direção dele.
- Não quero que este duelo aconteça. Quero que recueis.
Ele olhou para ela, e não foi com um ar satisfeito. Ela reparou que, apesar da irritação, ele lhe apreciava as pernas, que espreitavam pela racha do robe a cada
passada.
- Se vierdes até mini assim, deveis querer muito que ele viva. Preferiríeis a outra solução dele? Casar-se convosco?
Ao lado das suas pernas nuas, ela olhou para aqueles olhos escuros, donos de perigosas profundezas. Anos antes, aqueles olhos assustavam-na. Agora enfeitiçavam-na.
- Só me interessa que náo haja duelo.
O olhar dele percorreu-a, breve e exaustivamente. - Não se trata apenas de vós.
- Não, também se trata de vós e do vosso orgulho.
- Sendo assim, procurais salvar um homem sem honra fazendo-me a mim ainda mais indigno do que ele. - Virou o livro que tinha no colo e voltou a debruçar-se sobre
ele. - Permiti-me alguns escrúpulos, além do mais, no que vos diz respeito. E agora, por favor, regressai ao vosso quarto.
Ordenava-lhe que se retirasse, e não era com delicadeza. A coragem dela vacilou. O seu corpo inteiro vacilou. Estar perto dele provocava-lhe aquilo, mais do que
a própria rejeição. O constrangimento
por ter sido rejeitada foi abafado pela desilusão de ele não a querer o bastante.
Se ela soubesse mais sobre estas coisas não teria falhado. Se fosse mais bonita, ou mais vivida, ou mais sedutora, a escolha dele teria sido diferente.
Devia retirar-se com o orgulho que lhe restasse, mas não podia. Poderia não voltar a estar assim perto dele, poderia nunca mais ver a luz das velas a desenhar-lhe
sombras no rosto como naquele momento. Depois de se afastar, a aura dele nunca mais a envolveria como envolvia agora, incitando-a a ficar ainda que ele a repudiasse.
Ele virou uma página. - Ide-vos, já. Quero que vades.
Tremendo, mal conseguindo manter o equilíbrio, ela baixou-se até ficar de joelhos ao lado das pernas dele, inclinou-se e apoiou-se nos calcanhares. Ele ainda lia,
mas conseguia vê-la por cima do livro.
Desapertou o primeiro botão pérola que lhe cobria o seio. Demorou-lhe tempo de mais porque os dedos não mostravam vontade de trabalhar. Não era só o nervosismo que
os tornava desajeitados. Estar a escassos centímetros dele afetava-a.
Finalmente conseguiu. O robe e a sua seda afastaram-se um pouco. Começou rapidamente a desembaraçar-se do botão seguinte.
- Devagar, querida. Seduzir não é algo que se faça à pressa.
Ela ergueu os olhos.
O livro estava na mesa ao lado das velas. O príncipe da tentação observava.
A atenção dele deixou-a enfeitiçada.
Desapertou os outros botões muito lentamente, já que mal reparava no que fazia. Ele parecia também não reparar. Os olhares, unidos, eram tudo o que existia, ligando-os,
dando origem a confissões e expectativas cuja existência nunca devia ter sido reconhecida. Ela sabia que ele a queria, isso era óbvio. Se ele aceitaria a sua proposta
já era menos claro.
Tendo chegado ao último botão, perto da cintura, ela forçou-se a apartar os olhos dos dele e a olhar para baixo. O cetim abria-se, mal lhe cobrindo os mamilos, duros
contra o tecido brilhante.
Olhou de novo para ele. Parecia aguardar alguma coisa.
Engolindo em seco, afastou mais o robe. O cetim brilhava-lhe na pele. Afastou mais o tecido, para mostrar os seios.
A sensação de estar ali ajoelhada, expondo a sua nudez, inundou-a de um arrebatamento erótico. Os seus seios tornaram-se pesados e cheios. Os seus mamilos endureceram
mais, sensíveis agora ao ar, ao olhar dele e até à própria luz. Tremores de excitação obscureciam o seu constrangimento. A carícia do cetim na sua pele tornou-se
uma pequena torrente de sensualidade.
A expressão dele ficou mais tensa. Ela sentiu que travava uma batalha. O ar entre eles ficou carregado daquela tensão.
- Devia deixar que vos despísseis completamente para não haver equívocos sobre o que está a acontecer, e porquê.
- Não haverá equívoco algum.
Desviando o olhar, com medo de ver a reação dele, ela ergueu a mão e, espantada consigo própria, deu por si a pousá-la na perna dele e a subir-lhe até ao joelho
numa carícia.
O mundo girou. com um movimento que a surpreendeu e desnorteou, ele puxou-a para a frente, para os seus braços e o seu colo, e tomou-lhe a boca num beijo selvagem.
O cetim oferecia pouca proteção contra a aspereza quente do seu abraço. A boca dele exigia uma rendição mais completa do que alguma vez os seus beijos haviam exigido.
A pressão da excitação dele na sua coxa provava-lhe que era melhor sedutora do que tinha pensado.
Os beijos dele instigavam a sua paixão a elevar-se ao nível da dele, o que se verificou nas respostas dela às suas exigências possessivas e quentes. O poder das
sensações que percorriam e torturavam o seu corpo assustava-a.
- Disse-vos que partísseis. Não digais que não fostes avisada. A cabeça dele virou-se. O seu cabelo suave roçou-lhe o rosto. A boca dele desceu-lhe pelo pescoço.
Os seios dela, mais volumosos, palpitavam, e um desejo louco de que ele continuasse mais para baixo tomou conta de si. Arqueou-se instintivamente, para o encorajar.
Ele beijou-lhe o volume do seio como resposta. - Alegra-me que o queirais, que não seja um sacrifício assim tão grande.
- Também quero que pareis com o duelo. - Ela mal conseguiu que as palavras saíssem, mal se lembrou de lhe pedir a promessa.
- Pensais mesmo que conseguiríeis ir embora agora se eu recusasse?
Pareceu uma ameaça, mas ele roçou-lhe o mamilo com o dedo para clarificar que ela não iria embora porque não queria fazê-lo. Todo o seu corpo se fletia. A sua respiração
entrecortava-se.
- Dou-vos a vida dele e vós dais-vos a mim. E um acordo diabólico, o que pretendeis, Diane, e ambos o lamentaremos muito em breve, parece-me. - Os seus olhos escuros
conseguiram penetrar os dela. - Neste preciso momento, contudo, não me importo minimamente. Haveis tratado disso.
Ele ergueu-se com ela nos braços. Avançou até à cama e deixou-a cair nela. Agarrando o robe de Diane pelos ombros, puxou-o e pô-lo de lado, deixando-a nua.
Olhando para ela, começou a desatar a faixa do seu robe.
Ali, ela quase mudou de ideias. Os momentos passavam ritmados, demasiado vivos e reais. Face à franqueza sensual do olhar dele era impossível negar o que ia acontecer.
Ali deitada na cama, nua e vulnerável, sem mais nada a cobri-la que não o poder masculino que emanava dele, ela soube que ele estava certo. Ela não compreendera
totalmente o que estava a oferecer.
Ela desviou o olhar quando o robe lhe caiu dos ombros. Era covardia e ele não disse nada, mas segundos depois, extinta a luz da vela, o quarto ficou escuro.
Ela ouviu-o aproximar-se da cama e o seu coração bateu numa fúria de pânico. Ela quase saltou ao sentir o corpo nu que subitamente lhe aquecia o flanco. Os seus
olhos acostumaram-se à escuridão e ela espreitou.
Apoiando num braço, ele olhava para ela. A escuridão fazia da cama um lugar pequeno e misterioso, cheio de uma intimidade de penumbra. Não um sonho, porém, mesmo
se a noite obscurecia o
mundo. Os sonhos nunca eram tão tangíveis e tão definidos. Ela sentia-se mais desperta do que nunca. A vivacidade intensa que ele sempre lhe inspirava tornou-se
um estado de alerta físico.
Curvando-se, ele puxou-a para a envolver nos braços. Acariciou-lhe o corpo como se conseguisse ver melhor do que ela. Ela puxou-o contra si, desajeitada e insegura,
e com toda a consciência de que a sua surpresa ao sentir a pele dele e o toque dele no seu corpo inteiro conseguia perceber-se na sua respiração entrecortada.
Beijando-a com fervor, como se o medo dela o impacientasse, ele acariciou-a mais intimamente. A parte de dentro das coxas. O volume e a fenda das suas nádegas. A
liberdade com que manuseava o seu corpo insinuava posse. O atrevimento dele chocava-a, o que, no entanto, só vinha aumentar a excitação das novas sensações, e as
suas reações alarmavam-na ainda mais.
Ele passou-lhe as pontas dos dedos em círculos pelo seio. Este prazer ela conhecia. Ele já lho ensinara e ela ficava sem defesa. A carícias lentas bem podiam ser
internas, tal era a prontidão com que os toques provocantes lhe enviavam tremores para a parte de baixo do corpo. Algo se avolumou até ela sentir uma palpitação
profunda e insistente entre as coxas.
Ele beijou-lhe o outro seio. A língua dele rodopiava, deixando-a tensa. O seu mamilo ficou tão sensível que ela mal conseguia aguentar. A combinação de carícias
num seio e dos dentes e lábios dele no outro deixou-a atordoada. Agarrou-se aos ombros dele e tentou conservar o pouco e vacilante controlo que lhe restava.
Não conseguiu. O medo desapareceu, como também o choque e a estranheza de estar ali a fazer aquilo. A sua mente ficou toldada e ao mesmo tempo focada. O pulsar no
fundo do seu ventre estava cada vez mais intenso, alimentando-se das sensações da sua pele e do seu corpo, sensações que começaram a possuí-la.
O latejar húmido, o ardor, que sentia entre as pernas tornou-se desconfortável. O que ele fazia só o piorava. As suas ancas balouçavam, para aliviar a estranha fome
que ali crescia. Reprimiu gemidos de frustração.
A mão esquerda dele deixou o seio e acariciou-a até à barriga. Ficou ali, enquanto o corpo dela se erguia e baixava involuntariamente, procurando algo.
- Isso é vós a quererdes-me - disse ele, a sua mão acompanhando o ritmo, adivinhando o desconsolo e embaraço dela. - Mas preciso que me queirais ainda mais.
A mão dele deslizou mais para baixo, até às coxas dela e à sua humidade.
Até ao lugar privado que a torturava.
O choque regressou, veemente. Ela juntou as coxas com força, para o deter.
- Ides permitir - disse ele. - Esta noite sois minha, e eu quero-o. Vós também quereis.
Ele apertou suavemente a coxa dela numa ordem sem palavras e afastou-lhe as pernas.
A carícia dele deixou-a perplexa. Agarrou-se mais a ele e procurou o seu beijo para evitar gritar. As sensações tomaram posse dela, fazendo-a querer mais. Ela tentou
conter o que lhe faziam, mas não conseguia. O prazer era concentrado de mais, direto de mais, de uma intensidade quase dolorosa. A sua reação física espantava-a.
As ânsias primitivas que a dominavam assustavam-na.
Ele colocou-se em cima dela, um vulto forte e escuro que emanava um calor físico, em parte estranho mas completamente masculino. Continuou a tocá-la, instando-a
ao abandono, forçando-a a desejá-lo apesar de isso a aterrorizar.
- Afastai mais as pernas. Dobrai os joelhos.
Foi o que fez. As coxas dela abriram-se às ancas dele e os seus braços agarraram-se aos ombros dele. Ele pressionou o corpo dele contra o dela, preenchendo ligeiramente
o vazio latejante e aliviando o desejo ardente e insaciável. Durante alguns segundos perfeitos ela conheceu a ventura de o ter assim enlaçado nela, nos seus braços
e perto do seu coração. A paixão dele pareceu recuar um pouco, tomando menos dela, permitindo-lhe gozar a intimidade.
Não durou. Uma dor crua cortou-a quando ele pressionou mais. Uma sensação de estar a ser violentada obliterou a ternura. Cerrou os dentes e agarrou-se ferozmente
a ele para não gritar.
Ele parou e não se mexeu. A dor diminuiu mas ainda estava lá. Ela aceitou o beijo dele, mas não conseguiu evitar sentir receio de ter dado uma parte dela que nunca
poderia recuperar. Ela podia correr até aos confins da Terra, mas algo dela seria para sempre dele.
Pareceu-lhe que tinha terminado, mas não. Ele mexeu-se, e ela compreendeu que a união inicial tinha sido só o começo. Erguendo-se acima dela, sobrepondo-se, o corpo
dele dominava o dela com cada investida.
Colocando uma mão na cabeceira da cama para se equilibrar, ele tomou-a numa posse rítmica, cadenciada. O que quer que o ato fosse para além daquilo, ela via que
se tratava de uma primitiva reivindicação de direito. Pior, os movimentos dele tentavam-na e exigiam que ela se rendesse àquela reivindicação.
Ele moveu-se com mais força, tomando tudo, dando significado a cada olhar intenso que lhe dirigira e a cada reação inquieta que ela experimentara. Ela tentou fechar-se
ao poder, à aura que criava e às emoções que evocava. Concentrou-se na dor, para se proteger. De qualquer forma, continuava a afetá-la, provocando assombro, lembrando-a
outra vez do aviso dele de que ela não sabia o que oferecia, nem o que ele esperaria.
A cabeça dele inclinou-se para trás. Uma estocada forte e profunda penetrou-a. Ele ficou bem dentro dela, imóvel por um segundo. A ameaça de perigo que definia a
sua persona recuou. Ela sentiu uma tensão endurecer-lhe os músculos debaixo das suas mãos. Depois, subitamente, ambos se desvaneceram no ar.
Ele não voltou a mexer-se. Desceu os olhos para ela e ficou assim tempo de mais, respirando fundo. Ela não conseguia ver-lhe os olhos, e perguntou-se se conteriam
atenção intensa ou a impassividade distraída que ela conhecia tão bem.
Ele afastou-se para o lado, separando completamente os corpos. Afundou-se na cama, ao lado dela.
Um sentimento de humilhação procurava infiltrar-se nela. Mas não fazia progressos. Ela estava para além de qualquer constrangimento. As suas emoções tinham sido
abalroadas. Tudo era ainda demasiado real, e mudara irreversivelmente.
Ela não experimentava nem arrependimento nem triunfo, apenas um sentido agudo do presente. Seria necessário tempo para absorver e compreender o que estava agora
no seu coração.
O silêncio tornou-se tenso e embaraçoso. Ela concluiu que ele não falava porque não havia nada a dizer. bom, ela soubera para o que ia quando lá fora. Não fingiria
que tinha sido algo diferente do que acontecera, nem esperaria que ele o fizesse.
Saindo da cama, tateou o chão à procura do robe. Vestiu-o e afastou-se, debatendo-se com alguns botões.
- Valeu a pena?
Ela voltou-se. Ele não se mexera. Nem sequer parecia estar a olhar na direção dela.
- Valeu a pena, Diane? Deveis importar-vos mais do que eu me apercebi, para fazerdes uma coisa destas.
Surpreendeu-a que falasse no assunto. A intimidade física provavelmente exigia que se dissesse alguma coisa.
- Valeu a pena. Foi um pequeno preço a pagar para salvar o homem que amo. - Achou espantosamente fácil dizer a palavra, ser sincera sobre os seus sentimentos, mesmo
sabendo que ele não os partilhava. O que acontecera naquela cama despojara-a de mais do que roupas ou da sua inocência. Também afastara todas as razões pelas quais
as pessoas guardam as verdades nos seus corações.
- Ele não é merecedor do vosso sacrifício. - Daniel ergueu-se num cotovelo e olhou para ela. - Não posso deixá-lo ficar convosco, mesmo que vós penseis que o amais.
Principalmente agora. Deveis saber disso.
Ele?
Ela dirigiu-se para a porta. - Equivocais-vos. Não o fiz para salvar Andrew Tyndale.
Ele ficou a ver a porta fechar-se atrás do robe de cetim cor-de-rosa, depois voltou a afundar-se na cama.
Voltou a vê-la, ajoelhada ao lado da cadeira, tão linda que o seu coração parara de bater. com aquele primeiro botão soubera que ela não recuaria. Soubera que perdera.
E ficara contente com isso, e tão ávido dela que nada mais importara. Nada.
Balançou as pernas para fora da cama e pegou no robe. Atou-o e pôs-se à janela.
Aquela noite comprometera tudo. Ela. Ele. A sua vida inteira.
Abriu a janela para a cidade silenciosa, adormecida. Conhecia muito bem a vista que lhe proporcionava. Muitas noites ali se pusera, fazendo planos, aguardando. Arquitetara
uma pequena guerra àquela janela, infiltrando-se no campo inimigo, abatendo os guardas, protegendo a retaguarda enquanto se aproximava do objetivo.
Naquela noite, uma mulher atraíra-o para a derrota completa sem sequer o saber.
Valeu a pena...
Ela fizera-o para salvar um homem.
Não era Tyndale.
Ele devia ter percebido. Talvez tivesse. Mas se o tivesse admitido, não poderia ter aceitado a proposta dela. Não teria conseguido levá-la para aquela cama e arrebatá-la.
Precisava de estar irritado com ela para o fazer.
E durante o dia inteiro fora essencial que ele não aceitasse que, se o duelo ocorresse, pudesse não ser Tyndale a estar em risco de morte, e a precisar de ser salvo.
Valeu apena...
Contemplou a rua. Um dos candeeiros tinha um poste mais baixo do que os outros. Nunca tinha reparado. Há anos que se punha àquela janela e nunca vira realmente aqueles
postes.
O seu olhar vagueou de um lado para o outro, procurando outras particularidades que lhe tivessem escapado. Um dos telhados tinha uma saliência na cornija, e a janela
do lado mais baixo de outra casa parecia estar entaipada. Naquela noite, todos os pormenores lhe saltavam à vista, detalhes há muito invisíveis que agora exigiam
atenção.
Mais valia concentrar-se neles do que debater os assuntos que tinha entre mãos, mais prementes, tais como saber de que forma este acordo que Diane comprara com o
próprio corpo lhe ataria as mãos no que respeitava a Tyndale.
Tais como as velhas memórias que o tinham invadido, deitado na cama ao lado dela, fazendo com que sentisse nojo de si próprio e fúria em relação a ela.
Tais como o facto de não ter tratado Diane especialmente bem naquela noite. Ela podia ter sido tola e arrojada, e ele ávido e irritado, mas ele podia ter sido mais
cuidadoso com ela. Não conseguiria tê-la poupado ao choque nem à dor, mas podia ter sido mais meigo, mesmo faltando-lhe a força e a honradez para a recusar completamente.
Valeu a pena. Foi um pequeno preço a pagar...
Lá fora, à luz dos candeeiros, mais pormenores ganhavam forma. Uma das casas tinha apenas quatro degraus até à porta, em vez de cinco. Veio-lhe a imagem de visitas
a não repararem na inclinação e a tropeçarem de cada vez que subiam.
Constatou que dois edifícios que sempre presumira serem idênticos na verdade tinham alturas ligeiramente diferentes.
Foi um pequeno preço apagar para salvar o homem que amo.
As palavras dela surgiram-lhe de rompante, gorando as suas tentativas de as manter ao largo. Olhava fixamente para a rua, subitamente sem nada ver face à repetição
contínua das palavras dela, que o imobilizaram. O tom da voz dela, a calma aceitação e resignação, ecoavam nos seus pensamentos, fazendo o seu peito encher-se de
um estranho peso.
Numa coisa ele estivera certo. O homem que ela procurara salvar não era digno do sacrifício dela.
E tinha sido um sacrifício enorme, dado em simples inocência a um homem que nem sequer lhe deu o valor que tinha. Um homem dominado pelo passado, que alimentava
raiva e ódio porque receava não ter nada dentro de si se eles desaparecessem. Um homem que a tentara muito antes de ela o tentar a ele, e que não gostava que ela
usasse a sua própria volúpia para frustrar o objetivo nascido daquele ódio.
Ela era idiota em se importar sequer com um homem assim, quanto mais amá-lo.
A garganta ardia-lhe e ouviu o silêncio cruel de quando se deitaram um ao lado do outro. Viu-a ir-se embora, orgulhosa apesar do seu desalento.
Foi um pequeno preço apagar para salvar o homem que amo.
Céus.
Virou as costas à janela. Encaminhou-se para a porta de um quarto que muitas vezes, na calada da noite, desejara visitar. Entrou e foi até à cama.
Ela estava deitada de lado com os joelhos encolhidos, vestida com uma camisa branca. Parecia sozinha e indefesa, como se se aninhasse debaixo do lençol para se proteger
de um mundo indiferente.
Ele levantou o lençol e deitou-se ao seu lado. Diane sobressaltou-se o bastante para ele perceber que se ela estivera a dormir, agora já não o fazia.
Estavam novamente deitados um ao lado do outro, numa cama diferente, e num silêncio diferente. Havia muito que ele podia dizer-lhe, mas muito pouco que não fosse
magoá-la mais. Ela não merecia mais golpes. Naquela guerra, ela era um prisioneiro inocente, não um soldado.
- Lamento ter-vos magoado, e não ter sido mais atencioso disse, virado para as costas dela.
Os ombros dela encolheram-se um pouco. - Provavelmente não se pode evitar.
- Não totalmente, mas...
- Não foi completamente horrível, não vos sintais mal. Típico dela, preocupar-se com ele. Quase se riu, e também
esteve perto de chorar. - bom, fico contente por saber que não foi completamente horrível.
- Mas se viestes aqui fazê-lo outra vez, não me parece que queira.
- Estou certo que não. Não vim aqui para isso.
- Então porquê?
- Para vos dizer que me sinto honrado por vos terdes importado o bastante para o fazer, e para ficar convosco um bocado, se vós o permitirdes.
Ela ficou muito quieta. Tão quieta que até podia ter parado de respirar.
- Permiti-lo-eis?
Ela assentiu com a cabeça.
Ele tocou-lhe no ombro. - Vindes para perto de mim, para eu poder tomar-vos nos braços?
Deu-se uma pausa, como se ela tivesse de ponderar. Virou-se. Ele puxou-a para si.
- Não vos preocupeis. Irei embora antes de os criados estarem por aí.
Ela aproximou-se mais. Ele envolveu-a com delicadeza e deu-lhe um beijo na face. Os seus lábios tocaram em humidade. Ela chorara depois de regressar ao quarto.
Partiu-lhe o coração. Ele apertou-a mais contra si, protetor.
Soube-lhe bem segurá-la assim enquanto ela adormecia. Nunca o tinha feito com uma mulher. Nunca partilhava o leito com as suas amantes ocasionais.
Acolheu com surpresa o prazer do seu calor e da sua suavidade de mulher, apaziguadores até, e não intrusivos como ele imaginara que dormir com uma mulher seria.
CAPÍTULO 19
Ela acordou só, sentindo os aromas do cacau e de lilases. O cacau estava numa mesa ao lado, como sempre desde que ela o provara pela primeira vez da chávena de Daniel.
Os raminhos de lilases estavam pousados mesmo ao lado do seu nariz, enfiados entre duas almofadas.
Uma criada tinha trazido o cacau. Daniel devia ter deixado as flores.
Ela pegou nelas e cheirou-as. Vinham de um arbusto que crescia num canto ensolarado do jardim. Ela imaginou-o a ir lá a baixo, no escuro, para cortar o pequeno ramo.
Ele ficara com ela a maior parte da noite. Ela sentira o seu abraço todas as vezes que se mexeu.
Tinha sido maravilhoso estar assim nos braços de alguém. O contacto prolongado e reconfortante mexera mais com ela do que aquilo que acontecera na cama dele. Durante
uma noite memorável, o vazio do seu coração tinha desaparecido. Sumido. Até a dormir se maravilhara com a sua ausência.
Chegou uma criada para a ajudar a vestir-se. Quando acabaram, Diane escreveu um bilhete apressado à condessa de Glasbury, levou-o para baixo para ser enviado de
imediato, e em seguida foi procurar Jeanette.
Encontrou-a nos aposentos dela, no mesmo cadeirão onde estava no dia anterior. Jeanette parecia tão desgastada e cansada que Diane se perguntou se ela teria sequer
ido para a cama.
- Está a acontecer agora. Agora mesmo - disse Jeanette. - O que está a acontecer?
- O duelo. Esperei que fosse amanhã, ou depois... não tão cedo.
- Tenho a certeza de que estais enganada.
- O chevalier veio. Daniel saiu com ele. Estão a encontrar-se agora. Sinto-o na alma.
- Não acredito, Jeanette. Ele disse-me que recuaria.
O olhar de Jeanette voou na direçáo dela. Examinou-a, muito à semelhança do que havia feito naquele primeiro dia no quarto de porcelana de Paris. - Quando é que
ele disse isso?
Diane sentiu-se corar. - Ontem à noite. Ele prometeu.
- Ontem à noite? Dizei-me, onde foi feita essa promessa? Quando? O rosto dela aqueceu.
Labaredas de entendimento e raiva arderam nos olhos de Jeanette. - Quando fazia amor convosco? Não fiqueis tão surpreendida. Já tinha percebido o interesse dele
por vós. Vi-o desde o início.
- Abanou a cabeça e murmurou uma praga. - Um homem diz o que quer que seja em alturas dessas. Pior, é sincero. Até que a luz do dia aparece e ele, lamentavelmente,
muda de ideias.
- Ele não voltará atrás com a palavra dada.
- Existem promessas mais antigas que ele é obrigado a manter. O meu irmão nunca deixou mulher nenhuma interferir com aquilo que jura fazer. Não recua face a nada.
Se ele vos seduziu com essa promessa, foi uma atitude desprezível da parte dele, e dir-lhe-ei isso mesmo quando ele regressar. - A sua expressão ríspida desfez-se.
- Se regressar.
- Ele não me seduziu. E também não entrará neste duelo. Disse-o com toda a firmeza que conseguiu, para tranquilizar a mulher sentada à sua frente, que parecia chorar
já a morte dele.
Jeanette estendeu a mão, procurando ser reconfortada. Diane agarrou-a e colocou o outro braço por cima do ombro de Jeanette.
- Ontem à noite foi a primeira vez com ele?
- Sim.
- Ele prometeu-me que não procuraria seduzir-vos. Já a pensar no duelo, deve ter-se agarrado a uma oportunidade de viver. Tenho a certeza de que, se assim não fosse,
não teria agido de forma tão desonrosa para convosco.
Diane não estava convencida daquilo. A forma como ele a beijara no ribeiro implicava que ele já desistira de quaisquer garantias que tivesse dado à irmã.
- Temos de decidir o que fareis agora - retomou, após respirar fundo para se recompor. - Direi a Daniel que tem de pôr alguma coisa no vosso nome. O bastante para
conseguirdes casar. Apareceram homens que se fariam vossos pretendente se tivésseis alguma fortuna.
- Não quero casar com nenhum desses possíveis pretendentes. Jeanette deu-lhe palmadinhas na mão. - Neste momento talvez
não. Pensai com cuidado, porém. Vereis que tenho razão.
- Seja como for, depois do que aconteceu com Mister Tyndale, não penso que seja provável haver pretendentes.
- Se o dote for suficiente, haverá, confiai em mim.
- Se o dote for suficiente, o próprio Mister Tyndale casaria comigo. Não gosto da ideia de ser negociada como um artigo usado.
Jeanette ergueu os olhos. Tristeza e compaixão transbordavam deles. - Não tenhais ilusões de que existe a alternativa de um futuro com o meu irmão. Há muito pouco
espaço no coração e na vida dele para o tipo de afeto que uma mulher espera. Ele está fechado a emoções dessas. Ele sabe disso, percebeis? Escolheu que fosse assim
porque qualquer outra coisa iria enfraquecê-lo.
Diane sabia que não havia lugar para ela na vida dele. Contudo, Daniel era muito mais complicado do que Jeanette julgava. Um homem daqueles não teria ido reconfortá-la
nem ficaria com ela nos braços durante a noite toda.
Ela experimentara uma paz maravilhosa, segurança, naquele abraço adormecido. Suscitara uma intimidade especial, que era diferente
da intimidade física de que tinham gozado na cama dele, mas que também lhe estava ligada. Ela queria preservar aquela aura especial. Queria preencher o vazio tanto
quanto a sua memória lho permitisse.
No fundo da sua alma, porém, ela sabia que só conseguiria preservá-la se não procurasse mais. Não queria arriscar-se a descobrir que ele tinha sido motivado por
pena ou por culpa, e não por afeto.
Não queria certamente arriscar-se a fazer amor com ele outra vez. Não conseguiria suportar que o fizessem e, em vez daquela doce intimidade, deparar novamente com
o silêncio vazio e constrangedor.
- Já decidi o que fazer, Jeanette. Penso que devia ir-me embora desta casa. Não haverá duelo, mas haverá comentários. Não quero continuar a viver esta mentira, que
nós somos primos. Não quero ir a festas em que as pessoas vão estar a sussurrar acerca do que aconteceu com Mister Tyndale, ou a perguntar-se o que existe entre
Daniel e eu.
- Para onde ireis?
- vou pedir à condessa que me permita ficar com ela enquanto trato das coisas. vou pedir-lhe para contactar alguns dos amigos que tem no campo e para me dar referências
como governanta. Ou talvez haja uma escola onde eu possa ensinar, que fique longe de Londres. Se eu desaparecer antes de o escândalo rebentar, talvez não seja tão
grande assim. Serei facilmente esquecida.
Jeanette assentiu com a cabeça. - Eu tenho algum dinheiro. vou dizer a Daniel para vos dar mais.
- Não, não posso aceitar dinheiro dele agora.
- Vireis visitar-me? Enquanto estou aqui, antes de regressar a Paris?
- Claro que sim. - Curvou-se e abraçou-a.
Jeanette beijou-lhe a face. - Se ele não voltar, talvez possais regressar a Paris comigo. Prometei-me que pensareis nisso.
- Ele voltará, vereis. Não foi bater-se em nenhum duelo.
Chegou uma carta de resposta da condessa, convidando Diane para a acompanhar numa visita a Laclere Park, a propriedade da sua família no campo. Penelope explicava
que seria impossível encontrarem onde se refugiar em Londres, e apresentava-lhe aquela proposta como uma solução melhor, acrescentando que ela própria sentia alguma
necessidade de se esconder.
Diane foi para o quarto dela e fez as malas. Era mais difícil de fazer do que ela julgara e dispensou a criada, para as suas reações não serem observadas.
Esteve sempre à escuta de sons que anunciassem o regresso de Daniel. O que veria refletido nos olhos dele quando estivessem novamente frente a frente? Suspeitava
que poderia ser muito estranho.
Como reagiria ele à partida dela? Ficaria surpreendido? Recetivo?
Aliviado?
Ela sabia que ele compreenderia que se ela ficasse ali, dependente dele, a situação acabaria por se tornar desagradável. Nem todos os lilases do mundo, todo o amor
do coração dela, conseguiriam fazer daquilo algo diferente do que seria realmente.
A confiança dela na promessa dele vacilava com o passar das horas. Quando desceu do quarto para ir para a biblioteca, já estava muito abalada.
Abriu uma janela que dava para a rua e pôs-se à espera e à escuta com tanta atenção que a cabeça lhe começou a doer. Quanto mais tempo passava, mais a preocupação
aumentava, fazendo-a sentir-se enjoada e doente de apreensão.
Passavam carruagens e cavalos, e ela ouvia cada um deles. Por fim, quando estava quase a desistir, quando tinha começado a chorar a sua perda, parou um cavalo à
frente da casa.
Ela identificou os sons de um moço a levar o cavalo.
Erguendo-se de um salto, correu pelo corredor até ver a entrada.
Era Daniel.
Claro que era. Quem mais seria?
O alívio que lhe acelerara o coração respondeu à pergunta. Ela temera que fosse o chevctlier, trazendo más notícias.
- Ide lá a cima à vossa irmã - disse ela. - Ela está doente de preocupação. Ide agora. Eu fico na biblioteca.
Ele subiu a escadaria. Ela esperou até ver as suas botas desaparecer e depois voltou para a biblioteca.
Reviu o rosto dele quando reparou nela. Tinha as memórias da noite anterior nos olhos, mas também algo mais. Ela reconhecera laivos da velha distração.
Tornou-se mais difícil olhar para ele quando ele entrou por fim na biblioteca, silenciosamente, e fechou a porta.
Agora não havia distração. Os olhos dele ardiam com toda a atenção que ele conseguia reunir. A sua boca era uma linha direita.
- Jeanette está sossegada? - perguntou ela.
- Sim. Louis e eu encontrámo-nos com Tyndale e o padrinho dele. Foi resolvido de forma honrada.
- Vós retirastes o desafio?
- Disse que o faria.
- Não duvidei.
- Uma ova.
A preocupação devia estar-lhe estampada no rosto quando chegara a correr à entrada. -Jeanette está muito aliviada, tenho a certeza.
- Não penso que seja essa a reação dela, de todo. Está estupefacta, contudo. Há muito tempo que não sou capaz de a surpreender, por isso retiro daqui alguma satisfação.
Mas de nada mais. Ele não gostara de fazer aquilo. Ferira-lhe o orgulho, fazer figura de covarde e desistir. Desagradava-lhe que ela o tivesse forçado a fazê-lo.
- Obrigada.
O que lhe deu direito a um olhar sombrio.
- A minha irmã disse-me que ides visitar a condessa.
- Pensei que seria melhor...
- Onde fostes buscar a ideia de que vos deixaria ir embora agora?
Falou como se, mais do que qualquer outra coisa, a ideia lhe parecesse curiosa. Porém, ela não conseguia ignorar a raiva que emanava dele, muito à semelhança do
que acontecera no ribeiro. Ele refreava-a, mas essa contenção vinha apenas intensificar o efeito que surtia no ar, e nela.
Ele aproximou-se dela. - Acabo de ir ter com um homem que desprezo e renunciei a matá-lo porque vós o exigistes de mim, e enquanto eu o fazia, vós fazíeis as malas.
- Agora não posso ficar. Bem sabeis.
- Não vejo porque não. - Ele aproximou-se mais. - A bem ver, agora tendes de ficar.
- Sabeis porque não posso ficar. Estaria errado.
- A noite passada foi errada?
Ele estava a confundi-la, pondo-se assim tão perto dela. A deixá-la baralhada. - Isso foi diferente.
- Talvez penseis que a noite passada não tenha sido errada porque vos destes por uma causa nobre. Para salvar uma vida. bom, se tendes queda para sacrifícios desses,
deveis ficar. Dizei-vos que desta vez o fazeis para salvar a minha alma. Há uma vida inteira de sacrifício nessa empreitada.
Disse-o com ironia, mas o calor do seu olhar e o tom meigo da sua voz contradiziam a leveza que ele pretendia incutir nas suas palavras.
Ela ficou a olhar para ele, incapaz de pensar numa resposta a semelhante desafio. Veio-lhe à mente que seria uma boa forma de o Diabo seduzir as pessoas. Deveras
eficaz, usar as inclinações de uma pessoa para a conduzir ao Inferno.
- Quando tomastes esta decisão de ir embora? - perguntou ele.
- Ontem à noite? Virdes até mim foi o derradeiro ato de amizade?
Ele perturbava-a mais do que nunca, ali a olhar para ela, alto, à sua frente, e a exigir a sua atenção. Tinha dificuldade em pensar direito. A referência à noite
anterior teve como único resultado pôr-lhe o coração aos pulos.
- Antes - respondeu ela. - Depois do ribeiro, e da partida de cartas.
- Porque compreendestes o quanto vos queria? Isso assustou-vos? Ela desviou o seu olhar do dele e colocou alguns passos entre
eles. Não estava a gostar da conversa, nem da forma como ele persistia em esmiuçar os seus motivos e a sua determinação.
- Não pode ter-vos assustado por de mais, se viestes ter comigo ontem à noite.
- Para ontem à noite eu tinha uma razão. Uma boa razão. Ofereci uma noite, porém, não mais. Não vou ser a vossa Margot. Não consigo. Aprendi isso ontem à noite,
pelo menos. Penso que estas coisas são diferentes para as mulheres do que são para os homens. E agora tenho a minha decisão tomada e vós devíeis ter a gentileza
de a aceitar.
Sentiu-o atrás dela, perto de mais. Em seguida as mãos dele estavam nos seus braços e a respiração dele no seu cabelo. Um beijo leve no alto da cabeça fez-lhe disparar
sensações por todo o corpo.
- Não sou tão gentil quanto isso. Não abro mão facilmente daquilo que quero. Nem estou a pedir-vos que fiqueis aqui a viver como minha amante, Diane.
Ela rodou para escapar ao toque dele e encarou-o. - Não estais? Então não quereis... Claro, provavelmente não foi o que esperáveis.. Quereis que fique aqui como
dantes, apenas como dama de companhia de Jeanette...
A resposta atrapalhada divertiu-o. - Agora nunca poderíeis ser apenas a dama de companhia de Jeanette. Jamais. Tenciono voltar a fazer amor convosco, e essa é definitivamente
uma razão pela qual não posso deixar-vos partir. Visto que não sou homem para importunar convidados nem corromper inocentes, há apenas uma forma de resolver as coisas.
Casaremos.
O comunicado deixou-a sem reação.
- É a única solução, Diane.
- Não é. Ambos sabemos que não é.
- Verdade. Podia ter mandado Hampton mudar a tal obrigação para vós terdes acesso imediato ao rendimento. Foram essas as instruções de Jeanette, mesmo agora.
- Agora não poderia aceitá-lo.
- Porque causei o transtorno de continuar vivo? Desgraçada de vós, eu não ter morrido hoje num duelo. Ter-vos-ia garantido um futuro confortável e seguro. Devíeis
ter dado mais peso aos vossos próprios interesses ontem à noite.
- Parai de distorcer o que eu disse. Eu não...
- Não faço tenção de pôr o que quer que seja no vosso nome, apesar da insistência da minha irmã. Não vos facilitarei a partida. Casaremos.
Ela pensou saber a razão daquela prontidão toda. Era a mesma culpa que provavelmente o levara ao quarto dela na noite anterior. Ela teria preferido não ver mostras
dela. - Estou a ver. Decidistes fazer a coisa certa. Compreendo. No entanto, não é necessário. Não esperei...
- Não esperastes nada. Eu sei disso. Não mostra que tenhais grande opinião de mim. Uma jovem tem o direito de esperar algo do homem que lhe tira a inocência.
- Não foi culpa vossa.
- Já recusei ofertas mais flagrantes.
Um casamento por obrigação era a última coisa que ela queria, e logo com este homem, entre todos os homens. - É amável da vossa parte. Muito decente. No entanto,
não penso que devamos fazê-lo. Vós não quereis realmente fazê-lo, e eu também não estou certa de o querer.
- Diane, existem muitas razões para isto se revelar um erro, e a maior parte delas tem a ver com o meu temperamento. Mas deveis fazê-lo, mesmo sem terdes a certeza.
Calará os rumores sobre Tyndale, e sobre vós e eu.
- Também a minha ausência. O meu desaparecimento.
- Já disse que não posso deixar-vos partir.
Ela não gostava que ele continuasse a insistir naquilo, como se controlasse tudo o que se passava. - Sou eu que tenho a palavra final. É uma escolha minha. Não preciso
de dinheiro nenhum da vossa parte para o fazer, por isso não podeis deter-me se eu estiver determinada.
- É verdade. Só posso dar o meu melhor para me certificar de que a determinação não é assim tanta. - Colocou-lhe a mão na face e olhou-a nos olhos. - Tenho de vos
mostrar que está em meu poder garantir que não? Bastou o toque dele para lho mostrar. Sentiu um calor a descer-lhe do pescoço até aos seios, e o olhar dele forçou
o tempo a abrandar. Ela constatou que ele sempre soubera do efeito que tinha nela. A indiferença dele havia-a protegido, fazendo as vezes de um escudo que ele usava
para bem dela, porque ele sabia que ela seria uma presa fácil.
- Estais apreensiva por causa da noite passada? É frequente a primeira vez não ser agradável para a mulher. De futuro não será assim.
Ela sentiu a face corar por baixo da mão dele. Baixou os olhos e encolheu os ombros. Sim, estava apreensiva por causa da noite anterior, mas não da forma a que ele
se referia. A dor fora a parte fácil. - Nem tudo foi desagradável.
- Assim o dissestes. Não foi completamente horrível. Prometo-vos que da próxima vez não será de todo horrível. - Levantou-lhe : o queixo com o dedo, para ela ter
de olhar para ele. - Aceitais a minha proposta, Diane?
A forma como olhava para ela, tão belo e promissor na sua ternura, tão cativante no seu poder misterioso, convenceu-a a pôr de parte o receio.
O coração dela queria aceitar. O seu amor ansiava a euforia. Ambos estavam desejosos de ser arrebatados por ele e pelo feitiço mágico e estimulante que ele urdia
agora.
O seu bom senso não lhe permitia a capitulação total. Sussurrava-lhe que ela em verdade não sabia o que ele lhe traria. Os avisos
de Jeanette ecoavam-lhe nos ouvidos. Navegava em águas desconhecidas. Havia camadas dele que ela ignorava e possivelmente nunca conheceria.
- Estais muito enganada quanto a uma coisa. Não me limito a fazer o que está certo. Eu quero isto. Espero que tenhais falado verdade ontem à noite e que também o
queirais.
Falou com aspereza, como se as palavras fossem difíceis de pronunciar. Parecia que não gostara de o admitir, de fazer aquela declaração, e que lhe fora arrancada
do coração.
Inclinou a cabeça e beijou-a. Foi o beijo mais meigo que ele alguma vez lhe dera. Oferecia cuidado e apoio e sugeria peripécias futuras. Prometia afeto, quiçá amor.
Preenchia-lhe o coração, tal como o seu longo abraço o havia feito na noite anterior.
O beijo sossegou-a mais do que qualquer outra coisa. As profundezas misteriosas e desconhecidas subitamente não importavam. Nem o perigo que ela pressentira enquanto
faziam amor. Independentemente de como tudo se desenrolasse, ela sabia que naquele momento as intenções dele eram boas.
- Aceitais?
Apesar da sensação de estar a dar um passo arriscado, ela assentiu com a cabeça. No meio do torpor que ele criava, parecia a única coisa certa a fazer.
Ele sorriu como se a decisão dela tivesse sido importante para ele. - vou dizer à minha irmã - disse ele, afastando-se. - Iremos para a Escócia, se concordardes.
O casamento será legal e as nossas histórias ambíguas não interferirão. Gostaria que ela e Paul nos acompanhassem e servissem de testemunhas. É aceitável para vós?
- Claro. Contudo, visto que mal perguntastes se o casamento me era aceitável, a solicitude deste novo tratamento é uma surpresa agradabilíssima.
As palavras dela apanharam-no quando ele se encaminhava para a porta. Parou e olhou para trás. - Lamento dizer que provavelmente não durará.
Acabava de lhe ser dado um aviso cordial e ela sabia-o. - Tenho bastante certeza de que não. As pessoas não mudam assim tão rapidamente.
- Não, imagino que não.
CONTINUA
CAPÍTULO 11
Claro que as possibilidades de fabrico não são o meu interesse principal. Sou acima de tudo um cientista.
Gustave acenou com a cabeça em resposta à declaração tranquilizadora e honesta de Sir Gerome Scot. Scot era um colega cientista e impunha-se gentileza. Era também
Scot quem pagava a refeição que Gustave comia agora num clube privado a convite dele.
No entanto, não queria saber de experiências com químicos. Tinha a mente ocupada com outros problemas.
Já estava atrasado. Tyndale queria que fosse rapidamente preparada uma demonstração da descoberta e até então Gustave não havia feito progresso nenhum nos preparativos.
Teria ajudado se pudesse ter sido uma demonstração pequena, como a experiência que levara a cabo em Paris. Mas não, Tyndale queria saltar essa etapa. Queria uma
coisa maior, que pudesse ser usada para obter uma patente e atrair industriais.
Precisava de comprar materiais e químicos. Precisava de encontrar um edifício, fora de mão, que não suscitasse curiosidade a ninguém. Precisava de se movimentar
por Londres discreta e subtilmente.
Scot papagueava em francês, como era o dever de qualquer homem civilizado e educado. Até os criados deste clube exclusivo
sabiam o suficiente para atender ao conforto de Gustave. Infelizmente, uma vez fora dos patamares mais elevados da sociedade deste país bárbaro, ninguém falava francês,
muito menos latim. E Gustave não sabia inglês.
A situação era impossível. Era necessário que descesse consideravelmente no mundo para fazer as coisas funcionarem, mas não conseguia comunicar com os homens que
precisava de abordar.
Scot lançou-se numa entediante explicação de mais um processo químico. Gustave tentou parecer interessado, mas passados cinco minutos algo lhe chamou a atenção.
Entrara um jovem na divisão, vindo de outra sala, que olhou à volta e se dirigiu a uma mesa onde estava um amigo. Era o seu antigo secretário, Adrian Burchard.
Scot notou a distraçáo. Olhou na direção de Adrian e fez um esgar. - Parece deslocado, não parece?
- Sim. O que faz ele aqui?
- É membro. Não se pode exatamente mandar embora o filho de um conde, pois não? Mesmo sendo óbvio que a paternidade é apenas legal.
A notícia foi surpreendente. Adrian nunca dissera ser filho de um conde quando se candidatara à colocação em Paris. Quem imaginaria tal coisa, com aqueles olhos
escuros mediterrânicos.
- Então, a mãe dele... - Gustave ergueu uma sobrancelha muito eloquente.
- Obvio, não é? Foi nobre da parte de Dincaster ter aceitado sequer o rapaz, é o que digo. Bem, é um filho terceiro, por isso são poucas as hipóteses de ser ele
a herdar, imagino eu. Tem o bom senso de ser discreto, não que seja possível com uns olhos daqueles. Tem estado por conta dele desde que saiu da universidade, foi
o que ouvi. Nem um tostão do conde, que é o que deve ser. Faz alguns trabalhos menores para os Negócios Estrangeiros esporadicamente. Secretário e coisas parecidas,
uma vez ou outra. Há no nosso governo quem não ligue por aí além ao verdadeiro nascimento de uma pessoa, lamento dizer. " ofc
Adrian alegara ter secretariado um diplomata qualquer, ou coisa assim. Fora um pormenor que Gustave presumira ser mentira e descurara generosamente.
- Que interessante. - Que útil, de facto.
Gustave duvidava que Adrian tivesse anunciado a alguma pessoa do clube que por vezes secretariava homens menos ilustres do que embaixadores. Não admirava que raramente
saísse de casa em Paris e que passasse os seroes naquele quarto de sótão.
Ficou de olho em Adrian durante o resto da refeição. Calculou o tempo de terminar a sua refeição para coincidir com a do secretário. Fez por sair do clube ao mesmo
tempo que o filho de conde de aspeto estrangeiro.
A expressão de Adrian registou alguma surpresa quando Gustave se reuniu a ele à espera do chapéu. Não houve, porém, menção da sua associação anterior.
Era tudo o que Gustave tinha necessidade de saber.
Seguiu Adrian para a rua e teve de estugar o passo para o apanhar. - Preferis ser mal-educado com o vosso antigo empregador?
- Fiquei surpreendido por ver-vos, foi tudo. Estais a desfrutar da vossa visita?
- Estou ocupado de mais. Penso que fui precipitado em dispensar-vos. Ser-me-ia útil a ajuda de alguém que conhece esta cidade.
- Há muitos secretários e escriturários disponíveis. Se pedirdes aos vossos amigos, eles arranjam-vos um.
- Preciso de um que fale francês.
- Não deve ser muito difícil.
- Preferia alguém conhecido. - Gustave sorriu. - Como vós. Tinham chegado a uma esquina. Adrian parou e voltou-se para
ele. - Não estou à procura de emprego neste momento.
- Não seria oficial. Não seria público - esclareceu Gustave, mostrando-lhe que sabia quais eram as suas verdadeiras apreensões.
Adrian olhou para todos os lados e finalmente para um edifício no outro lado da rua. - Lamento não poder ajudar-vos.
- Seria muito privado. Eu próprio desejo discrição. A nossa necessidade mútua nesse aspeto assegurará a discrição do acordo.
- Lamento. Não posso.
- Acho que podeis. Acho que deveis.
- Devo?
- Certamente não quereis que procure a ajuda de outros cientistas e confidencie que o meu próprio secretário é orgulhoso de mais para me ajudar.
Adrian olhou de repente para ele, incisivo. A sua irritação desvaneceu lentamente, substituída por resignação. - Suponho que possa ajudar-vos, oficiosamente, claro.
- bom. Não é todos os dias. com efeito, depois de se atender a algumas questões, não precisarei muito mais de vós. O mesmo salário, digamos? Quinze dias?
O queixo de Adrian contraiu-se, como se falar de dinheiro fosse um insulto. Ali em Inglaterra, onde se sabia que era filho de um conde, mesmo que de legitimidade
duvidosa, era mesmo.
- Certo. Agora vou prestar-vos um primeiro auxílio, uma vez que precisais claramente dele. Do outro lado da rua está um homem de barba que vos observa desde que
parámos aqui. Provavelmente é um carteirista que vos identificou como estrangeiro.
Alarmado, Gustave deu meia-volta. Assim que o fez, um homem de barba, mal vestido, de casaca e chapéu gastos, começou a descer
a rua.
- Ficai alerta a estas coisas, msieur. Inglaterra tem os melhores ladrões do mundo.
- Miss Albret?
O chamamento veio de uma carruagem que passava na rua. Diane deparou com os olhos perplexos de Vergil Duclairc à janela.
Ao seu lado, na sombra, vislumbrou o perfil perfeito de Julian Hampton, o amigo e jovem advogado de um seleto punhado de clientes que incluía Daniel e a família
Duclairc. Conhecera Mister
Hampton no jantar da condessa, um homem de pungente beleza, dono de uma reserva cristalina. Ela passara o serão inteiro à espera que ele falasse em poesia, caso
se dignasse de todo falar.
Ela continuou o seu caminho, retomando a descompostura mental que dava a Daniel St. John desde o momento em que o vira sair da casa naquele dia de manhã.
Sentiu uma pequena movimentação de cavalos a bater os cascos e a resfolegar. Subitamente, Vergil caminhava ao lado dela.
- Miss Albret, estais só? Quem vos escoltava perdeu-vos de vista? Ficai comigo e eu encontro o criado de St. John.
- Ninguém me perdeu. Tenho uma coisa para fazer e vou fazê-la. E agora um bom dia para vós.
Ela dobrou uma esquina, deixando-o para trás. Ele apanhou-a. - Estais sozinha? Mas não podeis andar a pé sozinha.
- Claro que posso. É o que tenho estado a fazer no último quarto de hora, mais ou menos.
Uma carruagem colocou-se ao lado deles. O veículo de Mister Hampton dera meia-volta e agora acompanhava-os.
Vergil colocou-se à frente dela, impedindo-a de prosseguir.
- Miss Albret, dar-vos-emos a nossa carruagem. O cocheiro levar-vos-á aonde quer que desejais ir. Devo insistir.
Começava a tornar-se severo e autoritário.
Naquele dia ela não estava na disposição de acatar ordens de ninguém, muito menos de um homem.
- Miss Albret, ou ides de carruagem ou aceitais que vos escolte a pé. Uma ou outra deixar-me-ão em sarilhos com o vosso primo, já que ele me avisou para me afastar,
mas, por favor... - Apontou a carruagem.
- Estou a andar porque quero andar. Não consigo impedir-vos de me acompanhar, se persistirdes. Quanto aos avisos do meu primo, ele não ficará preocupado. Provavelmente
sabe que estais arrebatado por uma certa cantora de ópera e não tendes qualquer interesse em
mim. Não que me importe o que Daniel St. John pensa, ou sabe, ou as preocupações que tem.
Vergil pestanejou de surpresa. Se fora espanto pela sua falta de consideração pela opinião de Daniel ou a prova de que toda a gente sabia da sua cantora de ópera,
ela não percebeu.
- Falais com muita franqueza, não falais?
- As minhas desculpas. Mas tenho andado a falar com tanta delicadeza e sensaboria nestas últimas semanas, que a franqueza acumulada hoje de manhã transbordou.
Ele foi até à carruagem e disse algo pela janela. O veículo acelerou e virou na rua seguinte.
Vergil caminhava ao lado dela, tentando protegê-la dos encontroes. - Onde ides?
- Onde me dissestes para ir, a uma das sociedades que seguram navios. Soube de uma chamada Lloyds, na City1.
- Vai ser uma longa caminhada. Seguramente que St. John vos teria levado.
Ela cerrou os dentes. Daniel prometera levá-la "dentro de alguns dias". Tinha sido há duas semanas.
Claro, ele não via necessidade para pressas. Que lhe importava a ele? Não era ele quem estava à deriva no mundo, sem história, sem família, sem casa. Ele não trazia
um vazio no coração que implorava ser preenchido com alguma coisa, com qualquer coisa. Podia dizer-lhe para esperar até não ter absolutamente mais nada que fazer,
o que seria nunca.
Andavam há meia hora quando o vulto de um cavalo os mergulhou na sombra.
- Levastes o vosso tempo a chegar, St. John - comentou Vergil. Diane estacou. O seu olhar subiu pela figura encorpada do animal até ao rígido cavaleiro que tapava
o sol.
1 Área do centro de Londres onde estão concentradas várias instituições financeiras. (N. da T.)
- Não quis passar por cima de ninguém - disse Daniel. - Hampton vem atrás, e se regressardes pelo mesmo caminho deparareis com a carruagem dele. Obrigada, e a minha
prima pede-vos desculpa pela demora que isto vos causou. Não pedis, Diane?
- Não são necessárias desculpas - disse Vergil, afastando-se. Daniel desmontou. - O que vou eu fazer convosco?
- Sair-me da frente, hoje seria a escolha mais avisada. - Retomou a marcha.
Ele acompanhou-a, com o cavalo pela rédea. A multidão afastava-se como o Mar Vermelho à passagem do enorme corcel.
- Uma mulher não anda sozinha em Londres. A minha irmã não vo-lo explicou?
- Vejo imensas mulheres a andarem sozinhas.
- Mas isso é diferente. São pobres e têm de ir para os empregos.
- Também sou pobre e tenho de ir trabalhar. Ele ignorou a primeira parte. - Trabalhar onde?
- vou à Lloyds.
- Ah! Então esta rebelião é o resultado de um amuo por eu ainda não ter tratado disso.
Ela parou e pôs-se de frente para ele, tão furiosa que os seus olhos lhe doíam. - Não troceis de mim. É por isso que aqui estou. E por isso que saí da escola. Não
foi para vos divertir, nem foi pela vossa irmã, por muito que goste dela. Se esperar que vós atendais a isto, ficarei velha primeiro. Se eu não soubesse que sou
completamente insignificante para vós, suspeitaria que me mentistes no jardim para me empatar.
Rodou nos calcanhares e continuou a andar. Ele foi atrás dela.
- Ide-vos embora.
- Devo insistir em acompanhar-vos. As ruas não são seguras e estamos longe de mais para chamar Paul ou outra pessoa.
Ela ignorou o homem que caminhava ao seu lado, ao contrário de todos os outros transeuntes. Os dois, mais o enorme cavalo que seguia ao lado deles, resfolegando
pela rua, atraíam muitas atenções.
- Estamos a dar espetáculo - advertiu Daniel.
- Da próxima vez visto a minha roupa da escola. Quando fazia isso em Paris ninguém reparava em mim.
- Se estiverdes com as vossas roupas da escola, ninguém responderá às vossas perguntas. Na realidade, hoje também ninguém o faria, não fosse o facto de eu estar
convosco.
Podia ter dito logo explicitamente: "Não sois nada sem mim. Eu fiz-vos."
- E o que achais? - ripostou, com os lábios contraídos para controlar a raiva. - Veremos.
A Lloyds ficava na Royal Exchange, que, com o seu pórtico clássico, lhe fez lembrar uma igreja inglesa. O espaço interior imenso e quadrado, repleto de mercadores
e homens de negócios, estava ladeado de mercadorias. Daniel pegou-lhe no braço para ela não ser engolida pela multidão e fê-la subir alguns degraus até uma sala
cheia de homens.
- É a Lloyds - disse. - Os corretores estão naquela parede. vou apresentar-vos a Thomson. Ele conhece-me.
Ela não se refugiou à sombra de Daniel, por muito que quisesse. Acercou-se da secretária de Mister Thompson com toda a distinção que conseguiu e olhou o empregado
diretamente nos olhos.
O jovem ficou corado, começou a gaguejar e deixou cair a caneta ao chão quando ela lhe sorriu.
Diane olhou de lado para Daniel, deparando-se com Daniel a fazer-lhe o mesmo.
Mister Thompson teve imenso gosto em rever Daniel. Daniel apresentou-a e tentou impor a sua autoridade na entrevista, mas ela exigiu a atenção de Mister Thompson
com mais um sorriso.
Ele deu-lha de bom grado. Por baixo dos esparsos e grisalhos fios de cabelo, o seu couro cabeludo ruborizou-se. Esquecendo a presença impositiva de Daniel St. John,
aguardou o pedido de Diane com um sorriso radiante.
- Procuro informação sobre um parente meu, Jonathan Albret. Esteve nos transportes marítimos há alguns anos, à volta de quinze.
Espero que, se a vossa sociedade tiver segurado algum dos seus navios, possais ter algo que me ajude na minha busca.
- bom, certamente que podemos ver o que temos. Posso pedir aos nossos escriturários que verifiquem e que vos enviem informação.
- Seria possível fazê-lo agora? Ficar-vos-ia muito grata. Há mui-
tos meses que procuro.
Daniel soltou um suspiro. - Mister Thompson está muito ocupado...
- Não tão ocupado que não possa ajudar uma senhora em apuros. - O rosto de Mister Thompson converteu-se numa máscara de simpatia. Deu ordens ao escrevente e uns
enormes tomos encadernados começaram a dar entrada.
Mister Thompson inclinou-se por cima do ombro dela para explicar como eram registadas as entradas. - Sabeis os nomes dos navios ou dos comandantes?
Ela olhou para Daniel, que abanou a cabeça.
- Não, só o nome do dono.
- Ah, isso torna as coisas mais difíceis. Temos de examinar esta coluna, mas assim não há uma ordem. Tomai, ficai com este, e eu ficarei com o outro e o meu empregado
fará o terceiro.
Diane ofereceu um sorriso de gratidão ao seu rosto muito próximo. Até as entradas do homem ficaram vermelhas.
- Mister St. John, se tiverdes outros assuntos a tratar na cidade, tenho a certeza de que Mister Thompson e o seu escriturário me assistirão - disse Diane.
- Não receeis, St. John, vossa prima estará a salvo connosco.
- Ficarei aqui - foi a resposta firme.
Eram só três tomos, por isso ele limitou-se a sentar-se numa cadeira ao pé da janela enquanto Diane e os seus dois deslumbrados assistentes os folheavam.
Duas horas mais tarde, Diane tinha provas irrefutáveis de que o seu pai não segurara navio algum através da Loyds durante os seis anos que precederam o seu desaparecimento.
Entrara na Royal Exchange temerária e confiante, certa de fazer progressos. Agora, ao fechar o pesado volume encadernado, apoderou-se dela um desalento profundo.
Mister Thompson reparou. - Lamento muito. Podemos prócurar mais para trás se quiserdes.
- Não, obrigada.
Os dois homens olhavam para ela com a expressão de quem cortaria uma perna para a poupar àquela infelicidade. O que só a fez sentir-se culpada pela sua pequena sedução.
- Vinde, Diane. - A voz de Daniel estava mesmo por trás dela. Ela não queria olhar para ele. Provavelmente estaria aborrecido
por ela ter causado tantos incómodos para coisa nenhuma.
Forçando-se a engolir a desilusão que sentia, dizendo a si própria que havia outras sociedades de seguros e que isto não ditava o fim da sua esperança, aceitou que
ele a acompanhasse até à rua. Quando ele estava a desatar as rédeas do cavalo, viu-lhe o rosto.
Não era irritação. Era outra coisa, o que lhe endurecia a expressão e lhe ardia nos olhos.
Caminharam para oeste em silêncio. Ela sentiu-se aliviada. Era desilusão a mais para responder a qualquer admoestação com a atitude determinada que tivera duas horas
antes.
De qualquer maneira, conseguia praticamente ouvi-la. Era o tom indiferente das velhas perguntas da escola. Estais satisfeita agora? Bastar-vos-á for uns tempos?
Chega terdes desperdiçado a tarde de três homens na vossa demanda?
À medida que se aproximavam de Temple Bar, o caos e o ritmo das ruas mudaram bruscamente.
As pessoas caminhavam um bocadinho mais depressa. Os pobres e os plebeus iam em massa na direção do rio enquanto as carruagens e as pessoas mais bem vestidas se
apressavam a ir na outra direção. Daniel parou e espreitou pela rua estreita, inclinando a cabeça.
A brisa trazia um burburinho vago.
- Outra manifestação - disse Daniel. - Perto do Parlamento. A sessão de hoje deve ter começado. - Ele pegou no braço dela e
voltou pelo caminho que acabavam de percorrer. - Teremos de ir por outro caminho. Infelizmente, isso quer dizer que passaremos por uma parte da cidade pouco agradável.
Depararam com uma travessa calma, sem ninguém. As lojas tinham fechado as portas.
Daniel conduziu o cavalo até uma pedra de montar. - Não há como prever o que encontraremos. Será melhor se formos a cavalo. Subi para a pedra e eu ajudo-vos a subir,
para trás de mim.
Ela pôs-se em cima da pedra. - Nunca andei a cavalo.
- Então o dia de hoje será o primeiro em muitas coisas, não é verdade? - Ele montou e depois inclinou-se para ela. - A primeira vez que andais a cavalo e a primeira
vez que usais os vossos encantos até terdes dos homens aquilo que quereis. - A expressão dele voltou a endurecer ao dizer a última parte.
O braço dele rodeou-lhe a cintura, numa proximidade desconcertante. - E também a primeira vez que tendes as pernas em exibição para Londres inteira ver. Isto só
funcionará se puxardes a saia para cima, já que tendes de montar com uma perna para cada lado. Fazei-o agora e eu puxo-vos.
Ela obedeceu. Meia-volta e estava atrás dele. A saia subiu-lhe, amarfanhada, até aos joelhos.
- Cobri-vos o melhor que conseguirdes com a vossa capa. Depois segurai-vos a mim para não cairdes.
Ela resistiu à última ordem, preferindo agarrar a parte de trás da sela.
Quase caiu, e o animal ainda mal começara a andar. Hesitante, colocou os braços à volta do corpo de Daniel.
Não era um abraço. Nem por isso. No entanto, a ligação, o calor, inebriaram-na por completo. Tal como o abraço de despedida de Madame Leblanc, na escola, a deixara
sem fôlego, tal como o trato de Daniel na carruagem a deixara vulnerável, estar agarrada a ele, mesmo sem intimidade, provocou uma reação imediata.
O vazio tomou conta dela e depois gritou de alívio, quase gemendo, sentindo o afluxo do mais doce, mais humano, contentamento.
Vede, não estais completamente só, sussurrou o seu coração. Há outras maneiras. Outros lares, e outros amores, para além dos da família.
Fora avisado regressarem a cavalo e não a pé. Passaram por ruas de mau aspeto. As pessoas que nelas perambulavam estavam agitadas pela manifestação na qual nem sequer
tinham participado. Daniel passava a trotar a um ritmo rápido, ignorando os gritos atirados na direção deles.
Subitamente, parou o cavalo. Espreitando por detrás do corpo de Daniel, ela viu que se formara uma multidão na rua à sua frente. Daniel virou a montada, mas também
não paravam de chegar pessoas ao cruzamento que acabavam de atravessar.
Praguejando baixinho, voltou a virar e avançou a trote. - Deve ter havido violência perto do Parlamento. As notícias correm. Agora segurai-vos bem.
Ela agarrou-se muito bem. A fealdade das expressões dos rostos à sua volta convertia a humanidade do grupo na ferocidade de uma multidão. Lembrou-se do ataque à
saída da ópera, em Paris, e preocupou-a que alguns daqueles pobres diabos pudessem ter facas.
Valendo-se da corpulência do cavalo, Daniel abriu caminho. Alguns homens tentaram não se desviar e só saltaram para o lado no último minuto. Choveram pragas e obscenidades.
- Porque estão eles irritados connosco? Não estamos no governo.
- Estão irritados com qualquer pessoa que possa comer sem contar os tostões que lhe sobram.
De repente os rostos que os olhavam com desprezo não pareciam tão falhos de humanidade. - Se estão com fome, imagino que isso desculpe o comportamento deles.
Ele virou para ela uns olhos inflamados. - Não há desculpa.
Nesse preciso momento, um homem agarrou a cabeçada do cavalo. Outro agarrou no tornozelo exposto de Diane, que, horrorizada, o tentou sacudir, conseguindo apenas
que ele começasse a rir-se. "í
Grunhindo, Daniel deu-lhe um pontapé com tanta vontade que o homem voou e caiu de costas na sarjeta.
Diane viu por instantes o rosto de Daniel enquanto ele reagia à ameaça. Por um momento ele pareceu tão duro e cruel, tão primitivo e implacável, que ela quase o
largou e se virou para trás. Depois pestanejou e aquele aspeto desapareceu tão rápido que ela se perguntou se o teria imaginado.
Daniel passou o cavalo para um ritmo mais rápido. A multidão afastou-se. Não houve mais desafios.
Em breve a multidão rarefez-se e desapareceu, juntamente com a pobreza dos edifícios. O ruído surdo e familiar ainda vogava na brisa, mas todas as outras provas
de desassossego tinham cessado.
- Tendes de descer agora - instruiu Daniel, parando o cavalo.
- Outras pessoas não devem ver-vos assim.
Fizeram a pé o resto do caminho até à casa dele. Ele não disse nada, mas ela sentiu que ele queria fazê-lo. Não eram coisas agradáveis, disso tinha a certeza. O
seu silêncio tinha uma nota áspera.
- Vinde ao escritório, por favor.
Ela sentiu-se como se sentia na escola, quando era chamada ao gabinete da diretora. Detestava sentir em si aquela reação. Melindrava-a estar em tão grande desvantagem,
e nem sequer saber porquê, ou o que era que ele esperava dela.
Pelo menos ele não se sentou atrás da escrivaninha e não a examinou como se fosse uma aluna malcomportada. Em vez disso, pôs-se à janela e, como fazia tantas vezes
na presença dela, olhou para fora, em vez de olhar para ela.
O que também não lhe agradava nada.
- Sei que ficastes infeliz com o dia de hoje. Lamento. - Parecia suficientemente sincero. Então porque sentia ela que ele não o lamentava completamente?
- Talvez não devais persistir muito em procurar parentes perdidos, Diane. A desilusão... sois jovem e tendes uma vida a construir. O passado consegue ser uma grilheta,
e vós fostes poupada a isso.
- Vós não compreendeis.
- Penso que sim, melhor do que pensais.
- Se compreendêsseis nunca chamaríeis grilheta ao passado, como se aprisionasse uma pessoa.
- Pode fazê-lo.
- Então eu quero grilhetas dessas. Quero estar presa a uma família, boa ou má. Quero poder dizer que o meu avô viveu nesta cidade e que o meu tio tinha aquele ofício.
- Ela ouvia ressentimento e súplica na sua voz, mas não conseguiu deter nem um nem outro. - Quero saber que alguém se importava comigo quando nasci e que ficou triste
por me deixar e que pensava em mim às vezes. Quero saber que tenho algures um primo ou uma tia que se pergunta o que terá sido feito de mim.
A sua declaração ressoou pela sala. Ecoou durante algum tempo até ser engolida pelo silêncio.
- É tudo? Quero sair.
Ele voltou-se. - Não, não é tudo. Não deveis voltar a sair sozinha.
- Em Paris combinámos que podia continuar a fazer aqui o mesmo que lá.
- Eu não sabia que andáveis sozinha em Paris. No futuro levai escolta.
-Já acabámos?
- Não. Parece-me que nestas últimas semanas haveis descoberto o poder que uma mulher bonita tem. Contudo, a forma como brincastes com Mister Thompson e o empregado
hoje foi ousada de mais.
- Não foi nada ousada. Foi muito subtil. Já vi duquesas fazer bem pior.
- Não sois uma duquesa de quarenta anos.
- Não, sou uma órfã de vinte sem um tostão. Se um sorriso abre os livros dos Mister Thompson do mundo, é um preço pequeno a pagar, com a única moeda que tenho.
- Eu ter-vos-ia aberto os livros.
- Preferi fazê-lo eu própria. Dizei, msieur, o nosso acordo produz os resultados que esperáveis?
- O que quereis dizer?
- Atraio as atenções que esperáveis? Travais conhecimento com os homens que queríeis conhecer? Faz-se negócio nos serões de cartas e clubes? O investimento que fazeis
em mim traz-vos resultados?
- Que coisa para se perguntar. Às vezes espantais-me.
- Prefiro-vos espantado a ter-vos a encher-me os ouvidos. Se tudo se passa como queríeis, não penso que os vossos sermões sejam apropriados. Contai os vossos ganhos
e deixai-me colher os meus.
Ela saiu, e a cada passo aumentava a pequena fúria que sentira quando ele a confrontara na rua. Chegou à escadaria praticamente a tremer de frustração e com uma
sensação inexplicável de ter sido insultada.
Estavam dois vasos orientais colocados no remate dos corrimões. Ao contrário dos que estavam no seu quarto de Paris, estes eram rosa e verdes, cobertos de flores.
Olhou para eles, ali no seu poiso para todos verem, proclamando o gosto urbano do homem que os detinha.
Que a detinha a ela, de certa forma.
Pegou num dos vasos. A fineza da porcelana proclamava a proeza do artífice, a par da sua decoração.
Tomando-lhe o peso, deleitou-se com a sensação.
Caro. Perfeito. Um objeto de singular beleza.
As suas mãos libertaram-no. Desfez-se em pedaços no chão de mármore.
O som ecoou até ao corredor. Abriram-se portas de onde saíram criados boquiabertos. Daniel emergiu da biblioteca, curioso.
Ela estava no meio dos estilhaços, mal conseguindo conter uma euforia insolente.
Os criados desviaram o olhar de Diane para Daniel.
Ele aproximou-se com uma expressão estranhíssima no rosto. Apontou para o vaso partido.
- Era um Ming.
- Dais nomes aos vossos vasos?
- Dinastia Ming. com pelo menos trezentos anos. O par não tinha preço.
- Dissestes-me para partir um. Todos os dias, se quisesse.
- Eram os do vosso quarto.
- Importa?
Ele voltou para a biblioteca com uma expressão de indulgência.
- O simples facto de terdes partido alguma coisa é o que importa. Não me augura nada de bom, pois não?
CAPÍTULO 12
Ainda não terminaram, senhora. Conto que demore pelo menos mais uma hora. - O lacaio falou pela janela do cocheiro e o rosto desapareceu em seguida.
Penelope olhou para Diane, desculpando-se. - Espero que não vos importeis de esperar por eles.
- Claro que não. - Era o que a condessa tinha de mais desconcertante. Apesar de ter tomado como amiga a obscura prima de um armador, agia como se Diane não devesse
estar grata e até tivesse algum direito a importar-se.
- Eu cá importo-me. Mas não com este atraso. Se o meu irmão me pedisse para esperar a tarde inteira, não poderia queixar-me. No entanto, vexa-me ser tão cobarde.
Incomoda-me que o conde tenha o condão de me fazer isto, mas o medo deixa-me paralisada.
- O simples facto de irdes à festa mostra que não sois covarde. Estavam a caminho de uma festa em casa de Lady Pennell, no
Essex. Penelope combinara parar ali em Hampstead, naquela casa antiga, para se encontrar com o seu irmão Vergil e viajarem juntos. Em circunstâncias normais, a condessa
não teria necessidade daquele aparato todo, mas a festa poderia tornar-se muito constrangedora. O seu marido, o conde de Glasbury, estaria lá. A sua família
reunia-se em peso para a apoiar. O irmão mais velho, o visconde Laclere, também planeara ir até lá para estar ao lado da irmã.
- Podíamos assistir - sugeriu Penelope. - É uma academia de esgrima, cujo dono é o chevalier Louis Corbet. Dizem alguns que é a melhor de Inglaterra, apesar da fama
da de Angelo, em Bond Street. Lá é um desporto. Aqui diz-se que o chevalier a ensina como se fosse para combater na guerra ou em duelos. Podíamos dar uma espreitadela.
- É permitido? As mulheres assistem no tal Angelo?
- Claro que não. Descobri, porém, que depois de uma mulher deixar o marido, pouco mais há que possa fazer que realmente choque alguém.
Diane notara há já algum tempo que Penelope considerava que a sua nova liberdade merecia um pouco de censura pública. Não que ela explorasse realmente essa liberdade.
Ao contrário de algumas mulheres, que sem pudor adotavam amantes, os pecados de Penelope eram de natureza diferente. Ela misturava-se com pessoas com que normalmente
uma condessa não se misturaria, e fazia seus amigos outros que tinham caído muito mais baixo do que ela.
Segundo Jeanette, a condessa maculava-se sem redenção possível. As pessoas importantes mais facilmente perdoariam um caso com um homem casado do que perdoariam amizades
democráticas. Era apenas uma questão de tempo até algumas das salas que ainda se abriam para a condessa começarem a fechar.
Tomando a dianteira, Pen encaminhou-se para a entrada da casa e empurrou a porta devagar. Seguiram o barulho de aço sobre aço até uma câmara grande que ficava a
seguir ao vestíbulo. Espreitando pela ombreira da porta, como crianças a espiar no baile, viram três pares de homens em duelo de espadas.
- Parece muito perigoso - sussurrou Penelope, - Nem sequer utilizam camisas acolchoadas. Um movimento em falso e há sangue.
Diane não considerara o perigo que as roupas deixavam adivinhar. Só reparara na falta delas. Não só eles não usavam camisas
acolchoadas, como não usavam camisa de todo. A sala parecia girar com as imagens de seis torsos nus e fortes.
Ela nunca vira nenhum na vida.
- Não pensei que o vosso primo estivesse aqui - desculpou-se Penelope. - O homem grisalho com quem se bate em duelo é chevalier Corbet.
Diane distinguira logo Daniel. Ele estava de frente para elas, mas toda a sua concentração estava no adversário, tal como era devido.
- Ele e o chevalier são claramente os mais capazes. Os movimentos do meu irmão são menos audazes. São mais estudados.
Diane não reparava nos diferentes níveis de perícia. Não conseguia desviar a atenção de Daniel. Ele estava muito atraente. Ao contrário dos rostos dos homens mais
novos, onde o esforço era visível, o dele permanecia calmo, quase frio, ao corresponder ao ataque do chevalier.
Tinha um aspeto magnífico. Forte e confiante, esbelto e musculado e... maravilhoso. Um brilho suavíssimo cobria-lhe a pele e músculos retesados delineavam-lhe os
braços, os ombros e o peito. Não era o homem maior da sala, mas não havia como não reparar que cada centímetro dele estava perfeitamente trabalhado e era potencialmente
perigoso.
O olhar dela deixou-se ir até àqueles músculos, fascinado com a sua solidez esculpida. A forma como o tronco dele se estreitava até às ancas atraía inexoravelmente
a sua atenção. Sentiu uma excitação percorrê-la, e memórias proibidas das suas carícias na carruagem invadiram-lhe a mente.
Qual seria a sensação de pousar a palma da sua mão naquele peito? Parecia tão robusto, mas com certeza que a pele seria quente , e macia...
- Diabos, Pen, que fazeis aqui? - O grito de Vergil Duclairc arrancou Diane às suas vergonhosas especulações.
Tinham reparado nelas.
Os combates cessaram imediatamente. Vergil e três outros homens apressaram-se a ir buscar as camisas.
Daniel não. Olhando para a entrada, baixou a espada. O seu olhar captou o de Diane antes de esta conseguir esconder-se atrás do umbral.
Ela sentiu o rosto aquecer. Algo no olhar dele sugeria que soubera que ela estava lá. Tal como ela vira a reação dele no espelho da modista, ele vira a sua, apesar
de ter a atenção na espada do chevalier.
Ao contrário de Vergil Duclairc, ele deixara-a olhar.
A expressão dele não mostrava nem constrangimento nem choque. Os seus olhos limitavam-se a constatar o que ela via, e o facto de não ter desviado o olhar. Como ainda
não tinha feito.
- Céus, Pen, que tínheis na cabeça? - Vergil apareceu subitamente à frente delas, tapando a vista. A camisa apenas lhe pendia dos ombros, um simples recurso para
esconder a nudez.
Ao lado dele estava um jovem de beleza perfeita de cabelo castanho e sorriso vencedor. Devidamente vestido, estivera comodamente recostado num banco num dos lados
da sala.
- Não fazia ideia de que esgrimíeis sem roupa - justificou Pen.
- Só em jogo de combate defensivo. É para nos acostumarmos à vulnerabilidade. - Mas sois vós quem tem de dar explicações, não eu.
- Apenas estávamos curiosas sobre a prática. Ainda bem que não estáveis completamente nus, como nas métopas gregas de Elgin. E pensar que eu sempre presumira que
se tratara de liberdade artística por parte do escultor.
Vergil suspirou, exasperado. - Sabeis muito bem que devíeis ter saído imediatamente. Além do mais, trazer Miss Albret...
Penelope olhou para Diane. - Oh, Céus, fui descuidada. Vamo-nos embora agora e esperamos na carruagem. Não vos apresseis por nossa causa. Insisto. Terminai como
havíeis planeado.
Pegando em Diane pelo braço, Penelope dirigiu-se para a entrada do edifício. - O Vergil consegue ser um tanto retrógrado.
Sempre fez parte dele, mas piora à medida que vai envelhecendo. Não sei onde foi buscar isso, uma vez que a nossa família não é conhecida por coisas dessas. É mais
o oposto. Ele é bem-intencionado, mas consegue ser cansativo.
- Concordo, Pen. Tendo acabado de ouvir uma repreensão que durou o caminho todo até aqui, devo dizer que essa característica de Vergil se desenvolveu consideravelmente
desde a última vez que o vi. Apesar de ser escandaloso da vossa parte andardes assim a espreitar.
A resposta veio de trás delas. Diane olhou para lá para ver o belo jovem que as seguia. A nota de humor nos seus olhos límpidos sugeria que ele considerava os comportamentos
escandalosos muito divertidos.
No pátio, Pen deu-lhe um abraço e um beijo. - Diane, este é o meu irmão mais novo, Dante. Só tem dezoito anos, mas já viveu uma vida inteira de tribulação. Fiquei
surpreendida por vos ver ali, Dante. Foi gentil da vossa parte sairdes da universidade para virdes até cá apoiar-me.
- E com satisfação que vos apoio, mas confesso que tive pouca escolha no que respeita à parte de vir até cá.
O semblante de Pen mudou. O seu suspiro pareceu tão exasperado como o de Vergil fora. - Estais a dizer que fostes suspenso? Outra vez, Dante? Não admira que Vergil
resmungasse. O que foi desta vez?
- Algo de somenos importância. - Dante indicou Diane com o olhar, para lembrar à irmã que tinham companhia.
- Visto que temos algum tempo antes de irmos embora, vou dar um passeio no parque - anunciou Diane.
Pen estava completamente absorta com o irmão mais novo e não objetou quando Diane se afastou. A última visão que teve deles, ao virar a esquina da casa, foi de Dante
a falar com uma expressão algo envergonhada e Pen a resmungar.
Diane já avançara bem no bosque quando reparou que nunca antes passeara no campo. A escola localizava-se nos arredores de Rouen, mas a sua envolvência dificilmente
se diria rural. As saídas tinham sido para ir à cidade, que não ficava longe. Em Paris, e agora em Londres, ela usufruíra dos parques, mas sem se aventurar para
lá das áreas cultivadas. Esta casa de Hampstead podia não estar rodeada de quintas, mas havia muita terra e tanta vegetação que o cenário parecia rural.
Andou por caminhos, surpreendida por a experiência não a assustar mais. As pessoas falavam da Natureza como sendo um lugar de transformação. A ela, pelo contrário,
parecia-lhe bastante familiar. Talvez por a Natureza ser silenciosa e solitária, e o seu coração estar muito acostumado a ambas as coisas.
Não completamente silenciosa. O estrondo de disparos rasgava o sossego a intervalos regulares. Não muito longe, alguém andava atrás de caça.
O que também não a deixou sobressaltada. Ela soube logo o significado do som. Soube que pertencia àquele sítio e que ela não devia aproximar-se.
Virou por outro caminho e viu uma clareira mais à frente. Ao aproximar-se do intervalo nas árvores, deparou com uma casa rústica.
Parou. A imagem daquela casa, rodeada por aqueles troncos e ramos vacilantes, era-lhe tão familiar que ficou sem respiração. Teve a estranha sensação de já ter vivido
aquele momento.
Não era a primeira vez que tinha aquela sensação inusitada. Ela sabia que todas as pessoas a experimentavam por vezes. Mas esta foi mais distinta do que qualquer
outra. Acreditava que, se lho pedissem, conseguiria descrever completamente a casa sem ver o resto.
Tentou fazê-lo. Quando a sua cabeça lhe falhou, quando não surgiram os pormenores recônditos, ela riu-se de si própria e continuou a andar.
A velha casa de telhado de colmo, de paredes revestidas e vigas de madeira, parecia bem cuidada. Alguém vivia lá.
Como se chamado pela sua curiosidade, a porta abriu-se e saiu de lá um homem de idade. As suas roupas eram simples mas estavam limpas, a sua barba comprida e branca.
Reparou nela.
- O chevalier agora aceita mulheres para as lições? - A ideia fê-lo soltar uma risada, a caminho do poço com um balde na mão.
- Estou apenas de visita. Não estou a aprender a usar a espada.
- Falais como ele. Francesa, certo? Não se vê muito mulheres por aqui.
Ela aproximou-se. A sensação de estar reviver alguma coisa intensificou-se. - Quem sois?
Ele olhou surpreso para ela e depois riu-se. - Sou George. Cuido dos terrenos o melhor que posso com estas pernas. Passei aqui a maior parte da minha vida, ainda
antes de o chevalier vir para cá. Diacho, estava aqui quando passou para aquele marialva antes de Corbet. Perdeu-os ao jogo, sim, e eu já estava a ver. Como vejo
aqueles rapazolas que vêm para os duelos deles a perder, provavelmente, a maior parte do que têm em mulheres e cartas. - Deu à manivela até o balde emergir do poço.
- Uma pergunta arrojada merece outra. Quem sois vós?
Uma profunda desilusão abriu-lhe o peito. - Não sou ninguém.
- Saiu-lhe antes de dar por isso, a resposta nascida do particular desalento que subitamente lhe partiu o coração.
Diane deu meia-volta, para se afastar daquele sítio que a fazia sentir-se tão estranha e perdida.
- Sabeis o caminho de regresso? - perguntou George.
Ela parou. Não prestara muita atenção aos caminhos por onde viera. Fora descuidada.
- Que sorte não vos terdes perdido. Ide pelo primeiro trilho que sai para a direita. Leva-vos ao limite do bosque e é só seguir por ele até à casa. Há outro caminho,
mais rápido, mas esse é o melhor de seguir. Mas ide pelas árvores deste lado do campo. Esses disparos que ouvis é um dos rapazes a praticar com a pistola do outro
lado.
- Pensei que fosse caça.
-Já não se anda muito à caça por estas partes. Demasiada construção. Costumava ser campo, mas a cidade está a tomar o espaço.
Ela agradeceu e seguiu o caminho que ele indicara. Na curva para contornar o campo, o sol dissipou a sensação de déjà vu.
Não conseguia ver a casa, mas ia na sua direção, segundo as indicações de George. Umas poucas flores precoces salpicavam o pequeno campo. Quando chegasse o verão,
cobri-lo-iam por inteiro.
Perguntou-se se conheceria o chevalier. Se sim, talvez ele a convidasse para uma nova visita. Imaginou-se a correr descalça ao sol naquele prado. A fantasia era
tão vívida que ela sentiu a erva e a terra sob os pés.
Os tiros tinham parado, mas subitamente um estalido rompeu o silêncio. Ao mesmo tempo, sentiu um silvo ténue perto da orelha. Um baque à sua esquerda fê-la virar
a cabeça em sobressalto e gritar.
Estacou, aturdida. Precisou de vários instantes para compreender a razão da sua reação.
Acabava de passar por ela uma bala.
Desceu-lhe pelo pescoço um arrepio de medo. A mesma sensação de choque que experimentara a seguir à ópera imobilizava-a agora.
Apareceu um homem do outro lado do campo. Viu-a e desatou a correr. À medida que ele se aproximava, Diane via apenas cabelo louro e um rosto consternado.
- Estais ferida? Acertou-vos? -As perguntas gritadas aproximaram-se com ele.
Não tinha a certeza. Achava que não. Abanou a cabeça.
- Graças a Deus. Uma lebre assustou-me e a minha pontaria falhou. Nunca anda ninguém nestes terrenos, por isso quando vos ouvi o meu coração parou.
Ela recuperou a compostura. - Estou bastante bem. Não acho sequer que tenha passado perto. Gritei porque me assustei, foi tudo.
Ele suspirou de alívio. - Por favor, deixai-me acompanhar-vos até à casa. As apresentações formais terão de aguardar, mas o meu nome é Andrew Tyndale, e nunca me
perdoarei pelo meu descuido.
Ele parecia robusto e honesto, um cavalheiro. Já sem a preocupação no rosto, a sua expressão era contrita e preocupada. Diane calculou que tivesse quarenta e muitos
anos.
Permitir-lhe que a acompanhasse pareceu-lhe uma opção sensata. - Agradeço-vos, sim. Estou um pouco abalada, confesso.
Enquanto caminhavam, silenciosos, ela olhou disfarçadamente para ele algumas vezes. Era um homem atraente, de maxilares fortes e olhos azuis encovados. O seu semblante
dava mostras de abertura, como se não houvesse muito a disfarçar. Pareceu-lhe que deveria ter sido deslumbrante quando era novo. O cabelo louro ao estilo romano
e o corte elegante do casaco sugeriam que ainda considerava sê-lo.
Ela travara conhecimento com muitos homens da idade dele desde que saíra da escola. Alguns ignoravam o correr dos anos e fingiam ser ainda jovens, e passavam por
tolos em vez de inteligentes. Outros resignavam-se tanto ao passar do tempo que bem podiam estar já nos sessenta. Andrew Tyndale parecia ter conseguido um equilíbrio.
Envergava a sua maturidade com franqueza, mas a sua boa forma e elegância anunciavam que ainda não tinha passado o seu tempo.
Ele sorriu-lhe. Era um sorriso caloroso. Conferia ao seu rosto um semblante que inspirava confiança. - Como disse, as apresentações formais terão de aguardar, mas,
uma vez que quase vos matei, posso saber o vosso nome?
- Diane Albret. - Pronunciou o "t", como fazia desde que chegara a Inglaterra. Sempre na expectativa de que alguém reconhecesse o nome se o pronunciasse daquela
maneira. Para reivindicar a sua verdadeira proveniência, também tentava purgar o seu discurso de palavras francesas e do seu sotaque, mesmo sendo um e outro considerados
muito elegantes naquelas partes.
- Sois francesa? - perguntou, indicando, como George antes dele, que o sotaque ainda a denunciava.
- Sou inglesa, mas cresci em França.
- Estáveis longe de casa durante a guerra, então.
Sim, muito longe de casa. Ela não sabia porquê, mas sentiu que ele acolheria de bom grado as suas confidências sobre o assunto. Estaria muito mais interessado no
significado que aquilo tinha tido para ela do que Daniel estivera.
- Sois parente do chevalier?
- Não, estou aqui com Lady Glasbury.
- Ah! Agora sei porque me pareceis familiar. Penso que vos vi com ela no baile de Lady Starbridge, na semana passada. A condessa é amiga do chevalier.
- Não me parece. Estamos à espera que o irmão dela acabe o treino.
- Deveis referir-vos a Vergil Duclairc. Da Sociedade de Duelos de Hampstead. É o nome que deram a eles próprios. Não é sociedade de esgrima, mas sim de duelos. Praticam
para um desafio que nunca há de vir, e fingem ser corsários.
- Não sois membro, parece-me.
- Sou velho de mais para me deixar encantar por fantasias.
- Mas também frequentais a academia do chevalier?
- A sua perícia é insuperável, e usa o sabre militar, que eu prefiro. Gosto que ele treine sem as camisas acolchoadas. Ao contrário dos jovens que lá estão agora,
contudo, não tiro a camisa e trago uma lavada para vestir depois de terminado o treino.
Ele riu com a piada que acabava de dizer. Ela quase o fez também, mas só até se lembrar que assim indicaria que os vira sem as camisas.
- O dia está bonito e o campo muito agradável - disse ele, oferecendo-lhe um sorriso paternal. - Vamos atravessá-lo e ir para a casa pelo caminho do bosque do outro
lado. Há um riacho adorável onde se vêem crocos floridos.
- Não vai começar mais ninguém a atirar, pois não?
- Não, e eu sei como ficar fora de alcance se o fizerem.
Ela sentia-se muito segura com ele, ainda que ele quase a tivesse alvejado. Queria atravessar o campo, por isso anuiu.
com a saia a roçar pela erva seca, concluiu que gostava da companhia de Andrew Tyndale. Poderia um dia ter caminhado assim com o pai se ele não estivesse morto.
Andrew Tyndale não a assustava minimamente, sendo tão velho, nem a deixava perturbada. Tratava-a como trataria uma sobrinha ou uma filha.
Não criava pequenas eternidades nas quais ela se esquecia de como respirar.
- As minhas desculpas pela minha irmã, St. John. O facto de levar uma vida independente fez com que começasse a ter atitudes muito peculiares.
A exasperação de Vergil fez Daniel sorrir. Ter atitudes muito peculiares era uma espécie de tradição dos Duclairc, e Vergil, com o seu respeito pela aparência de
retidão, era o que destoava da família.
- Sendo uma mulher casada, claro, o choque não foi tão grande. A vossa prima, contudo... - Vergil arranjava o lenço no espelho do vestiário. - vou relembrar à Pen
as responsabilidades dela a esse respeito.
- Eu não faria do assunto mais do que aquilo que foi. Estou certo de que se a vossa irmã soubesse nunca teria entrado, muito menos deixado que a minha prima o fizesse.
Vergil assentiu com a cabeça, aliviado por ter recebido absolvição pela irmã. - Muito decente da vossa parte.
Daniel não se sentia de todo decente a propósito do pequeno episódio. O comportamento de Lady Glasbury era desculpável. O seu não.
Ele soubera que elas lá estavam bem antes de Vergil dar o alarme. Tinha reparado nelas ao travar a espada de Louis com a sua. Vira Diane a observá-lo. Tivera plena
consciência da expressão dos seus olhos.
Gozara dissimuladamente cada maldito segundo do que lhe parecera uma hora, emproando-se como um animal que se exibe perante a sua parceira.
Fazia-se ridículo por causa dela.
Saíram para o pátio onde a carruagem da condessa aguardava. Vergil encaminhou-se para lá com uma expressão que indicava que a condessa ia ouvir um sermão, de qualquer
forma.
Acabou por ser curto. Voltou para a beira de Daniel. - A vossa prima não está aqui. Foi dar um passeio, para proporcionar à minha irmã alguma privacidade com Dante,
que lhe contou a história do seu mau comportamento.
- Eu vou procurar por ela.
- Dissestes que tínheis de ir a uma reunião antes de vos juntardes a nós no Essex. Permiti-me, já que de qualquer modo nos demoraremos até ela ser encontrada.
A reunião era de importância vital, mas podia seguramente esperar. Daniel não queria Diane a caminhar naqueles bosques.
Quando se voltou para a casa, deparou com a saída alvoroçada do edifício de dois outros alunos da academia. Subiram para uma carruagem, que se afastou.
A sua ausência revelou um cavalo atado a um poste.
- Não tinha reparado que Tyndale ainda cá estava - comentou Daniel.
- Saiu para o tiro estávamos nós a chegar. Era a pistola dele que ouvíamos quando praticávamos.
Mal acabou de falar, os seus olhos brilharam de preocupação. Daniel também ficou com o coração nas mãos. Era raro alguém caminhar no terreno, e quem praticava pistola
não se preocupava muito com essas coisas.
- Certamente que se lhe tivessem acertado... - começou Vergil.
- Vós e Dante procurais no campo e no bosque à direita comandou Daniel, dirigindo-se a passos largos para as traseiras da casa. - Eu vou para a zona de tiro.
Ela não fora ferida. Daniel soube-o quando ouviu o riso dela. Seguiu o som até a ver sentada num tronco à beira do ribeiro.
Tinham-lhe enfeitado o colo com um montinho de crocos. Um homem oferecia-lhe mais um.
Não tinha sido uma bala a ir ao seu encontro.
Mas sim Andrew Tyndale.
Diane sorriu e aceitou a flor. Daniel não viu aquela desconfiança cautelosa nos seus olhos. Ela não sentia perigo. Claro que não. Daniel não conseguia ver a expressão
de Tyndale, mas conseguia imaginar a sua honestidade franca.
Apenas Daniel testemunhara a ferocidade daqueles olhos quando combatia com Louis.
Nem mais ninguém vira as outras centelhas quando Tyndale observara Diane do outro lado de um salão de baile apinhado. Daniel vira-as, mas só porque as procurara
cuidadosamente.
Tyndale estava sentado ao lado de Diane e apontava para outra flor que tinha na mão. De sobrolho franzido, ela olhava para a flor e recebia uma qualquer lição de
horticultura.
Diane teve de se baixar mais para ver bem a flor. A Daniel não escapou a reaçáo manhosa de Tyndale ao movimento subtil.
O canalha iria tentar agora, aqui? A idade teria tornado o homem assim tão precipitado e descarado?
A flor escorregou da mão de Tyndale e flutuou pelo ribeiro abaixo. Rindo da sua falta de jeito, ele esticou o braço para tirar outra do montinho no colo de Diane.
Daniel observou aquela mão, o braço que roçava o corpo de Diane, e os olhos de Tyndale, e soube com certeza que, dando-lhe tempo suficiente naquele tronco, as coisas
se tornariam muito menos inocentes.
Instintos que ele não sabia que possuía incitaram-no a avançar. Emoções primitivas de proteção e posse aos gritos na sua cabeça, que, surgindo tão súbitas e violentas,
quase tomaram conta dele.
Foram outros instintos que as limitaram. Os instintos do felino perfeitamente imóvel que, sentado, aguarda o movimento da sua presa. Os de um homem que planeia uma
vida em perseguição de um objetivo.
O objetivo esperava-o naquele tronco. Cinco minutos, talvez dez, e estaria terminado. Quase. Os meios para a concretização estariam ao seu alcance, porém.
Contara que levasse semanas. Meses. Afinal, o destino tratara rapidamente disso.
Concluída a explicação sobre a flor, Tyndale aproximou-se e enfiou-a no cabelo de Diane, junto à orelha.
Daniel notou no semblante dela um pouco da cautela que tão bem conhecia. Durante um instante, Diane perscrutou o rosto do homem ao seu lado. Depois descontraiu e
sorriu, tranquilizada.
Daniel imaginou o regresso daquela desconfiança. Viu o horror dela quando Tyndale a atacasse. Ele sabia o quanto teria de deixar as coisas avançarem para ter uma
desculpa para o matar. O grito para a proteger crescia e crescia à medida que a sua cabeça presenciava o desenrolar de tudo.
Rebentou uma tormenta dentro dele. A ânsia que sentia de sair do meio das árvores chocou o homem que ele lutara para ser. Passavam em rajadas pela sua mente imagens
de todas as razões pelas quais devia esperar que aquele canalha se desgraçasse. Invadiram-no memórias que lhe arrepiavam a espinha sempre que assomavam à superfície.
A cabeça num torvelinho, o sangue a ferver, Daniel era dilacerado pelas forças raivosas que se debatiam dentro dele.
Diane curvou-se para apanhar mais um croco. O olhar de Tyndale, com muito pouco de paternal, desceu-lhe pelo corpo.
A lascívia daqueles olhos despoletou relâmpagos na tempestade. Uma decisão que Daniel jamais esperara cristalizou-se de imediato.
Ela já tinha sofrido o bastante com isto. Ele encontraria outra forma de o fazer.
CAPÍTULO 13
Daniel saiu do meio das árvores. Diane viu-o quando se preparava para apanhar um croco violeta. O som do passo dele fê-la erguer a cabeça de rompante. Endireitou-se
rapidamente.
A alcunha de criança que lhe dera surgiu-lhe logo. O Homem Diabo. Há semanas que não pensava nele daquela forma, mas agora sim.
A expressão dele parecia amigável. Caminhava num passo descontraído. Ainda assim, sentia ameaça nele, um perigo retraído. Nos seus olhos viu perfeitamente o brilho
que dizia que nada o distrairia naquele dia.
- Aqui estais vós. Temíamos que vos tivésseis perdido. A condessa aguarda. - O olhar de Daniel foi pousar não sobre ela mas sobre Andrew Tyndale. - Nunca fomos apresentados.
Sou Daniel St. John. Miss Albret é minha prima.
Mister Tyndale ergueu-se. - Devo desculpar-me por não a ter levado imediatamente. O prazer que tem com as flores atrasou-nos.
- Na realidade, perdi-me mesmo e Mister Tyndale teve a bondade de me mostrar o caminho certo. - A mentira saiu-lhe. Por alguma razão pareceu-lhe boa ideia fazê-lo.
- É gentil da vossa parte tentar fazer vista grossa à minha indesculpável negligência, Miss Albret, mas a verdade deve ser dita ou vosso primo considerará a nossa
associação imprópria. Eu estava a atirar e uma bala perdeu-se, St. John. Quando ouvi uma mulher gritar, corri a investigar. A vossa prima não estava ferida, mas
encontrava-se muito abalada. Parar um momento ao pé do ribeiro para ela se recompor pareceu-me uma coisa apropriada para se fazer.
- Agradeço-vos por terdes cuidado dela. Ela não tinha forma de saber que estes bosques podiam ser perigosos. Se eu tivesse dado conta de que ela poderia ter a oportunidade
de os explorar, tê-lo-ia referido. Deveria tê-lo feito, por precaução, ao saber que ela pararia aqui com a condessa. - Aproximou-se de Diane, deixando o caminho
livre. - Tendes a minha gratidão.
Era uma despedida, e por pouco não era rude. Mister Tyndale acatou graciosamente a indicação e seguiu o trilho pelo meio do arvoredo.
- Não deveis ter associação nenhuma com aquele homem no futuro. Jamais.
As costas de Daniel estavam viradas para ela quando emitiu a ordem.
-Acho-o muito simpático, e ficou muito aflito com o acidente com a pistola.
Saiu-lhe mais desafiador do que ela tencionara.
Ele voltou-se. Quando ela viu a expressão dele, ficou com um nó na garganta.
- Não houve acidente nenhum. Ele viu-vos andar sozinha e atirou na vossa direção, para ter uma desculpa para vos conhecer. Não há maneira de alguém que esteja na
zona de tiro conseguir atirar uma bala para o campo.
A acusação dele aumentou-lhe a irritação. Ele tornava-se tão cansativo como Vergil fora para Penelope, só que Daniel St. John não tinha direito a sujeitá-la a estas
lições e recriminações. Não era irmão dela, nem sequer parente. Não lhe agradava a forma como
ele censurava o pobre Mister Tyndale, que ficara tão preocupado e contrito com o seu erro.
- Talvez ele tenha usado uma zona de tiro diferente. Uma lebre
assustou-o e...
- Nem um urso assustaria o homem. Tem fama de ser um dos melhores atiradores de Inglaterra. Valha-nos ao menos isso, já que se atreveu a tal estratagema para vos
conhecer.
- Arengais como um louco. Mister Tyndale foi em tudo um cavalheiro. Para não dizer que tem idade que chegue para ser meu pai.
- Cristo, como sois ignorante. Julgais que a idade de um homem faz alguma diferença em coisas dessas?
- Claro que sim. O comportamento dele comigo foi irrepreensível. Gostei da companhia dele. Acho que me seria um bom amigo.
- Ele quer mais do que amizade, podeis acreditar em mim. Ela riu. - Isso é o que Madame Leblanc disse sobre vós. Quase
as mesmas palavras.
- E ela estava certa, que raio.
Subitamente ele estava mais próximo. Mesmo à frente dela. Ela teve de inclinar a cabeça para lhe ver o rosto.
Novas centelhas avivavam-lhe o olhar. As mais profundas, que vira naquela primeira noite em Paris, quando ele partira o vaso. As de aço que mostrara quando confrontara
Vergil no salão de Margot.
Estava com ciúmes.
Ela não tinha experiência com ciumeira, mas sabia que estava certa. Uma parte estúpida dela sentia-se lisonjeada. Outra parte, maior, estava furiosa.
- Avisai-los a todos para se porem a andar? Passais o vosso tempo nas festas e jantares a seguir-me para todo o lado, a dizer a todos que não tenho um tostão e que
sou órfã e que não mereço a atenção deles?
- Digo-lhes que se não vos tratarem devidamente têm de se haver comigo.
- Mas contais que algum me corteje devidamente porque não tenho fortuna, não é assim?
Ele não respondeu, mas ela aprendera o suficiente sobre o funcionamento do mundo para saber que estava certa.
Diane constatou de forma violenta o caráter absurdo da sua situação. A sua cabeça latejava de indignação.
Indicou as roupas com um gesto e riu amargamente. - Mas vós estragastes-me, St. John. Arruinastes-me. Olhai para a boneca que comprastes. Esperais que fique sentada
na prateleira para sempre, a ser bonita? Quando isto acabar, que escolhas tenho? Devo contentar-me em ser governanta, então? Ou dama de companhia de uma senhora?
Depois destas diversões grandiosas? Eu tenho frequentado duquesas. Já que não há uma forma decente de eu no futuro viver esta vida, penso que devia considerar a
alternativa.
- O que quereis dizer com isso?
- Por esta altura Margot já voltou para Londres com Mister Johnson. Fui descuidada em ainda não ter ido visitá-la.
Deu meia-volta. Conseguiu dar três passos orgulhosos e irritados antes de ele lhe agarrar o braço.
- Ides uma ova! - Fê-la voltar-se para trás. Contra ele.
O abraço dele envolveu-a. Chocou-a. Ela ainda conseguiu contorcer-se uma vez, na tentativa de resistir antes de o calor do corpo dele e a exigência dos seus olhos
começarem a vencer a sua indignação.
Lutou contra a tentadora intimidade, apesar de o seu coração a desejar tanto. Talvez tivesse sido isto a que se referira quando ameaçara converter-se numa Margot.
Quem sabe se o fizesse, o vazio seria encoberto durante algum tempo.
Como Daniel o encobria agora.
- Não deveis ter associação nenhuma com aquele homem no futuro. - Falou com gentileza, desta vez. Falou a sério. Pareceu-lhe mais um aviso do que uma ordem, mas
ainda lhe restava discernimento suficiente, suficiente noção do tempo e do espaço, para não gostar de o ouvir.
- Ele não pensa em mim dessa forma. É um cavalheiro, ele.
- Todos os homens pensam em vós dessa forma.
- Duvido que isso seja verdade. Acho que...
O beijo dele silenciou-a. A sua insistência firme provava que pelo menos um homem pensava nela daquela maneira.
Os beijos foram lentos e duros e implacáveis. Estavam carregados do perigo que ela sentira quando ele surgira das árvores, e do ciúme que ela percebera nas suas
acusações. Eram os beijos de um homem provocado, inobservante de regras e propriedades, fazendo reivindicações que nem sequer pretendia.
Ela sabia aquilo tudo, mas o seu coração e a sua alma não conseguiam resistir. Aquele calor enfraquecia-a, como sempre acontecia. Que ele se importasse o suficiente
e reparasse o bastante para sentir ciúmes era alguma coisa, pelo menos. Até para a luxúria se impunha atenção. Uma fome primária que fosse significava que a queriam
de alguma maneira. A forma como ele excitava o seu corpo só a enfraquecia mais. Carícias lentas recordaram-lhe as alegrias físicas que ele conseguia dar.
Ela sucumbiu ao torpor. Esqueceu onde estavam e que devia detê-lo. O odiado vazio encolheu, morreu, libertando uma felicidade que ela não merecia. Esfomeada, agarrou-se
a ela, mas sabia, mesmo no seu arrebatamento, que era falsa e que não duraria.
A mão dele foi para debaixo da capa dela. Beijos queimavam-lhe o pescoço, entrecortando-lhe a respiração. Uma carícia no seio fê-la arquejar. A sua alma sabia que
ele não pararia, que estava mais retirado do mundo do que ela.
Os dedos dele roçavam-lhe o mamilo, enviando-lhe arrepios de prazer pelo corpo todo.
- Não deveis ter associação nenhuma com ele - voltou a dizer.
- com nenhum deles.
Uma minúscula rebelião quis vencer na sua mente, mas ele obliterou-a com outro beijo. O seu abraço comandava mais do que incitava. Ela perdeu mão da sua fraca resistência,
arrastada pelo poder dele. Devolveu-lhe o beijo, não sabendo porquê, acedendo
apenas sem decidir fazê-lo, fazendo-o apenas porque as reações do seu corpo e coração o exigiam.
O abraço dele vagueava, com arrojadas carícias. Ela ia ao encontro do seu toque mesmo quando o percurso das suas mãos a assustava. Por cima da barriga e das nádegas,
descendo até às coxas, ele agarrava-a e reivindicava-a toda. O seu toque moveu-se de forma mais chocante, provocando-a através do vestido, descendo-lhe pela fenda
entre as nádegas, aventurando-se na direçáo da pulsação que a enlouquecia, fazendo o prazer assentar e latejar.
Uma voz chamou o nome dele, procurando-o. Ela ouviu, mas ele não. Penetrou o torpor dela e reavivou a consciência que ela tinha do mundo envolvente. Assustada,
contorceu o corpo para escapar.
Ele ergueu a cabeça e estacou ao ouvir o som da voz de Vergil a aproximar-se pelo caminho.
Ela libertou-se e afastou-se com um pulo. com a separação, a confusão tomou conta dela.
- Dissestes que não o faríeis. Em Paris, prometestes...
- Não prometi nada.
Subitamente, Vergil estava num dos lados da pequena clareira. Olhou para ela e depois para Daniel.
Ela viu que Vergil parecia saber o que tinha interrompido. Daniel também o viu, claramente. Ele parecia imperturbável, contudo, como se o que tivesse ocorrido merecesse
a expressão de desaprovação que entrevia por baixo das pálpebras baixas do seu jovem amigo.
Vergil tentou esconder o desconforto. - Tyndale disse que a tínheis encontrado. bom. Pen gostaria de partir, porém. Quer chegar à festa antes do conde.
- Claro. Foi rude da minha parte atrasar a condessa. - Diane não tinha ideia de como encontrara voz para falar. Conseguiu reunir compostura suficiente para se afastar
do olhar abrasador de Daniel e aceitar a escolta de Vergil até à carruagem que aguardava.
- Ele está a ser muito cauteloso - disse Adrian, conduzindo-os pela rua. - Se não soubesse o que ele andava a tramar, o mais certo seria não conseguir a mínima pista
daquilo que tem acontecido.
Daniel caminhava ao lado dele pelas travessas silenciosas, próximas ao rio. Não estavam em Londres, mas do outro lado da ponte, em Southwark, numa zona pobre de
edifícios e armazéns a cair aos pedaços.
Tentava prestar atenção à história de Adrian, mas era difícil. Tinha a mente ocupada com Diane. A sua cabeça e o seu corpo ainda estavam no ribeiro, sucumbindo ao
desejo devastador que a sua decisão sobre Tyndale havia despertado. Teve vontade de matar Vergil por ter interferido, mas também estava grato por isso. Se tivesse
ficado entregue a si próprio muito mais tempo teria deitado Diane no chão e...
- Ele precisou de mim para encontrar este sítio, claro. Ninguém que tenha uma propriedade tão insignificante fala a língua dele, e ele não fala a deles. Também me
deu desenhos para levar, para se fazerem os cilindros. Conseguiu obter os químicos sozinho, suspeito, uma vez que não me solicitou nada.
- Sorte ter esbarrado convosco - comentou Daniel, forçando-se a prestar atenção ao assunto do momento.
Adrian deu uma risada. - Passei três vezes mesmo à frente dele antes disso. Ele está sempre a olhar para o chão, remoendo as grandes questões do universo, presume-se.
Nunca esperei que me chantageasse para trabalhar com ele, todavia. Considerei simplesmente que seria mais fácil estar de vigia se ele contasse ver-me por aí. Parou
ao chegar a uma construção, pouco mais do que um abrigo baixo entalado ao fundo entre os vizinhos. - Chegámos.
- Seria de pensar que estão lá dentro as jóias da coroa. - Três cadeados grandes e brilhantes aperaltavam a porta.
- Ponderei dizer ao serralheiro para me fazer umas chaves adicionais, mas não me quis arriscar a que Dupré descobrisse. Não há problema, contudo. Ficai de guarda.
Daniel tapou-o. Olhando para trás, viu Adrian tirar um ponteiro de metal do casaco e começar a tentear a fechadura de cima.
- Onde aprendestes isso?
- com um coronel da guarda da nossa embaixada na Turquia. É uma aptidão útil para um secretário de diplomata.
As duas primeiras fechaduras abriram-se numa sucessão rápida. Daniel lançou o braço para trás. - Esperai. Vejo alguém.
Adrian virou-se e cruzou os braços. Daniel espreitou para as sombras do outro lado da rua onde identificara movimento. - É melhor ir verificar. Não temos hipótese
se Dupré tiver alguém a vigiar o sítio.
- A não ser que ele encontrasse um espião francês, não sei como o conseguiria. Mas ide.
Daniel saiu do pátio de escombros defronte do edifício e foi na direção da sombra.
Logo que o seu destino se tornou claro, um homem saiu disparado pela rua abaixo. No curto instante antes de o homem se virar, Daniel vislumbrou uma barba e cabelo
escuro por baixo do chapéu.
Voltou para Adrian. - Era apenas um vagabundo, curioso e ocioso, como seria de esperar nesta zona.
Adrian atirou-se à última fechadura. Empurrou a porta.
O interior do edifício era tão pobre como o exterior. Há vários anos, alguém rebocara as paredes, mas o tempo abrira-lhes fendas
e escurecera-lhes a cor. Entrava
um pouco de luz por uma janelita alta, apesar das novas portadas e fechadura que a cobriam.
Encostada a uma parede estava uma mesa coberta com uma fila de cilindros de metal, cada qual ligado por fios a uma panela cheia de líquido.
Daniel aproximou-se e espreitou para as panelas. Cada uma delas tinha um pedaço de metal de bom tamanho. - Está operacional?
- Penso que sim. Não enfiei a mão em nenhum para descobrir.
Devem estar umas cem libras de ferro aqui dentro.
- Dado que fui eu quem tratou da compra, posso dizer que é exatamente esse o peso.
Daniel contemplou a notável engenhoca. - Isto deve ter custado uma soma considerável.
- As minhas aquisições chegaram a mais de mil libras. Os químicos têm de ter custado centenas mais. - Adrian apontou para as barras de ferro. - Reparai que têm tamanho
e forma iguais. Acrescentei esse requisito. Não tinha ideia do que tencionáveis fazer, mas caso planeeis algo, lembrei-me de que a estandardização poderia ser conveniente.
- Muito bem - elogiou Daniel, embora também não fizesse ideia do que tencionava fazer, se é que tencionava fazer alguma coisa.
- Não vejo como teve fundos próprios para isto. A casa de Paris era da família e não me parece que tenha havido grande herança para lá disso. Tem poucos rendimentos,
a não ser alguns honorários da universidade de lá. Digamos que custou mil e quinhentas. Pagou a pronto, e eu pressenti que haveria mais se fosse necessário. Aonde
iria buscar tanto dinheiro? - indagou Adrian.
Daniel perscrutou a experiência. Não, não era uma experiência. Era demasiado grande para tal. Demasiado elaborada. Tratava-se mais de um modelo de funcionamento,
para avaliar custos e potencial.
As suas suspeitas estavam corretas. Dupré não o tinha feito para outros cientistas, mas para impressionar homens do mundo da manufatura.
Mil e quinhentas libras a pronto, dissera Adrian. Um custo significativo. Um custo que Dupré não conseguia suportar sozinho, isso era certo.
- Quantas chaves disse ao serralheiro para fazer?
- Dois conjuntos.
- Procurou um sócio - concluiu Daniel. - A pergunta é, quem?
CAPÍTULO 14
- Não tenhais associação nenhuma com ele. Revelou-se impossível, pois Andrew Tyndale também fora convidado para a festa.
E também não era um grupo grande que se reunia na casa de Lady Pennell para o fim de semana. No máximo, seriam trinta os presentes. Sendo uma das mais notáveis senhoras
a moverem-se em círculos alargados, Lady Pennell convidara um grupo diverso, incluindo um ator famoso e um romancista popular, e também membros do Parlamento, um
conde, dois barões e um visconde.
Não contava com a presença de nenhuma mulher dos círculos mais seletos, claro. Lady Pennell não caía nas boas graças das arbitras da sociedade, ainda que os homens
delas considerassem as suas reuniões mais interessantes do que beber ponche em outras reuniões mais adequadas.
- Ainda bem que os meus irmãos aceitaram comparecer - dizia Pen, instalando-se no aposento com Diane. Pen insistira que partilhassem um quarto, mesmo tendo a anfitriã
planeado outras disposições. Visto que tinha uma saleta, dificilmente seria pequeno.
- Não tinha dado fé de que o grupo era tão pequeno. Não há como evitar o conde com discrição, receio. - murmurou Pen.
Diane suspeitava que não havia como evitar ninguém. Nem o
conde. Nem Mister Tyndale. Nem Daniel St. John, quando ele chegasse, à noite.
Não tenhais associação nenhuma com ele. Daniel proferira aquele aviso acerca de Andrew Tyndale, mas o coração dela fazia-o agora a propósito do próprio Daniel. Os
beijos e abraços do bosque tinham-na deixado muito abalada, e os seus pensamentos demoravam-se neles desde então. Suspeitava que o pacto feito em Paris tinha sido
irrevogavelmente desfeito.
As implicações assustavam-na. Como também as suas reações. Não era apenas preocupação que a ocupava desde que se instalara no seu lugar na carruagem de Pen. Invadia-a
também um anseio nostálgico. Admitia miseravelmente estar intrigada e excitada com Daniel, e nenhuma parte dela devia estar assim, nem um pedacinho que fosse. Contrariamente
à ameaça rebelde que ela pronunciara quando estavam no ribeiro, transformar-se numa Margot seria o tipo de vida que ela não conseguiria viver.
Pen ocupava-se com instruções à criada que lhe desfazia a mala. As roupas de Diane seriam atendidas mais tarde.
- Foi gentil da parte de Lady Pennell convidar-me - disse Diane. De todos os convites que recebera, achou este o mais peculiar.
- Ela gosta de se rodear de pessoas interessantes.
- Eu não sou interessante.
- Não é verdade. No entanto, admito que a minha vinda tenha influenciado o convite, assim como a esperança de encorajar a aceitação por parte do vosso primo.
- Então Lady Pennell considera Daniel interessante?
- A maior parte das mulheres considera-o interessante. Não foram só a riqueza e o estilo a abrir-lhe portas na sociedade, mas também o fascínio de mulheres influentes.
A bem dizer, penso que Lady Pennell nutre uma certa ternura por ele agora. É bem-parecido, confiante e misterioso. O seu porte e a sua presença têm dado azo a todo
o tipo de especulações ao longo dos anos.
- Que tipo de especulações?
- Como prima, provavelmente ireis achá-las divertidas. Quando ele chegou vindo do nada há muitos anos corriam rumores de que ele tinha feito fortuna com pirataria
nos altos mares. Outros cochichavam que ele tinha usado os navios em serviços especiais para a marinha. Alguns insistiam que ele era um emigre vindo de França enquanto
rapaz, por causa da revolução, e que tem sangue muito mais rico do que alega. - Pen riu e ergueu uma sobrancelha.
- O que significa, claro, que vós também.
Diane forçou-se a rir igualmente. - Se assim fosse, eu saberia, não é verdade?
- bom, como disse, foi tudo especulação. Ninguém sabe ao certo a história dele, por isso criam-se estórias. - Pen lançou-lhe um olhar inquiridor e matreiro, encorajando-a.
Diane dificilmente poderia satisfazer a curiosidade de Pen a propósito de Daniel, já que ela própria sabia muito pouco da história dele. Admiti-lo revelaria a mentira
do parentesco deles. O que daria seguramente a todos muito sobre o que especular.
Para evitar mais conversas sobre o tópico, deixou Pen a desfazer as malas e foi para a saleta aguardar a sua vez.
Entrou uma criadita com um tabuleiro de refrescos. Ao pousá-lo na mesa, olhou para Diane com manifesta curiosidade.
De regresso à saída, parou. - Corou e fez uma vénia. - As minhas desculpas, Miss Albret, mas posso fazer-vos uma pergunta?
- Claro. O que é?
- Eu sou de Fenwood, e o pároco de lá também se chama Albret. Sois parente dele?
Diane ficou especada a olhar para a bonita rapariga com a sua capa de musselina, pele sedosa e cintilantes olhos azuis. Foi incapaz de lhe dar uma resposta porque
o seu coração começou a bater com tanta força e tão rápido que lhe doía.
- As minhas desculpas - disse a rapariga. - Foi inapropriado da minha parte, é só que achei curioso, por vós serdes francesa e tudo.
- Não tenho conhecimento de parentescos nessa cidade que mencionais, mas se os houver, gostaria de saber. Onde fica esse sítio?
- Ora, não fica a mais de duas horas de carroça. É uma aldeia perto de Brinley. Mister Paul Albret é pastor lá desde sempre, desde antes de eu nascer.
Diane não conseguia acreditar na sua sorte. Se a criadita tivesse sido um nadinha menos audaz...
- Como vos chamais?
- Mary.
- Estou-vos agradecida por me terdes falado, Mary. De outro modo, poderia nunca ter ficado a saber deste possível parente.
- Oh, duvido disso. Estão muitos de nós nesta área, a servir nas casas do condado. Acabaríeis por vos encontrar com um.
- Mary, esse pastor reside lá? Se lhe enviar uma carta, ele irá recebê-la, na vossa opinião?
- Ele vive lá. Sempre viveu.
- Conhecestes os filhos dele?
- Eram de antes do meu tempo. Duas raparigas e um rapaz, acho eu, mas foram todos embora há muitos anos. Nunca ouvi dizer que tivessem voltado. A minha família não
conhece bem o pastor, somos seguidores de Wesley.
Subitamente, a saleta com a sua mobília clássica de mogno tornou-se claustrofóbica. Estar presa naquela casa com aquele grupo pareceu-lhe um transtorno terrível.
A resposta às perguntas da sua alma, que não a deixavam sossegar, podia estar a poucas horas de distância.
- Obrigada, Mary.
Talvez conseguisse arranjar forma de visitar a cidade de que Mary falara. Entretanto, podia pelo menos entrar em contacto com o pastor e ver se ele sabia alguma
coisa.
Enquanto Pen se atarefava com o guarda-roupa no aposento ao lado, Diane sentou-se à escrivaninha e começou a escrever uma carta.
- Dir-se-ia que estamos no Parlamento e que acabou de ser lançada uma votação - comentou Pen. Estava sentada na sala. ao lado de Diane, a seguir ao jantar.
Diane apertou-lhe a mão, para a reconfortar. Apesar de distraída com pensamentos de uma carta parcialmente escrita e memórias, angustiantes de tão insistentes, de
beijos no bosque, Diane não conseguiu evitar reparar no drama social que se desenrolava.
A festa não fora preparada para proporcionar o confronto entre o conde e a condessa de Glasbury, mas a presença dos dois afetou tudo. A expectativa dominava o ambiente.
Durante o jantar, corriam olhares para o fundo da mesa, onde o casal separado estava sentado, tão próximos um do outro que era impossível ignorarem-se.
Bastou os homens reunirem-se às mulheres para se formarem subtilmente dois grupos. Os convidados anunciavam o lado escolhido através da localização e da interação.
Diane reparou no tamanho maior do grupo reunido à volta do conde, e na presença de Andrew Tyndale ao seu lado. Daniel, que chegara pouco antes do jantar, misturava-se
com o grupo que estava próximo de Pen. O advogado de Duclairc, o enigmático Julian Hampton, também estava por perto, observando mas raramente tomando parte.
O visconde Laclere emprestava o seu prestígio como prometera, mas era Vergil que estava literalmente ao lado de Pen.
- Abandonaram-me. Seria de esperar, imagino eu. - Disse Pen num murmúrio enquanto o seu olhar conduzia Diane para o outro lado da câmara. Poucas senhoras se demoravam
no canapé.
A expressão e pose de Pen comunicavam que não se passava nada de inaudito. Diane sentia o constrangimento da amiga, porém. Viu nos olhos de Pen a constatação do
custo total de se ter separado do marido.
De repente, Pen ficou hirta. O conde de Glasbury, um homem esguio de meia idade, de cabelo grisalho, sobrancelhas espessas, e uma boca murcha, atravessara a divisória
e vinha na direção delas.
O círculo de Pen afastou-se um pouco para trás para dar espaço ao confronto privado. Todos davam mostras de não reparar em nada, mesmo se dúzias de olhos se esforçavam
para acompanhar a marcha do homem.
- Pelo menos ninguém está a lamber os lábios de expectativa sussurrou Pen.
- Que comedimento impressionante.
O olhar do conde centrou-se em Pen. A Diane pareceu-lhe ser o tipo de homem que gostava de falar de alto com os outros, como fazia com a mulher agora.
- Como vos encontrais, minha querida?
- Encontro-me bastante bem.
- É certo que sim. A cidade inteira fala nisso. Tornastes-vos na inveja de todas as mulheres desvairadas de pouco discernimento e menor discrição. Tendes a vossa
própria casa e carruagem. Tendes liberdade para vos comportardes escandalosamente. Tendes o prazer de proteger A prima de um mercador.
Diane não foi insensível ao ênfase nem à insinuação. Daniel ouviu, mesmo estando a dez metros. As suas pálpebras semicerraram-se, mas esta foi a sua única reação.
- Olhai lá... - começou Vergil.
- Agradeço-vos, mas eu trato do assunto, Vergil. - Pen encolhera-se quando o conde se aproximara, mas agora a sua coluna endireitava-se. - Não é avisado para um
libertino descarado censurar outro homem de semelhante forma, meu querido.
- Também é perigoso - acrescentou Vergil.
O conde exibiu um sorriso escarninho. - O mundo está perdido nestes últimos anos, com condessas e duquesas tão pouco criteriosas. Como se dinheiro e uma cara bonita
fizessem um homem.
Pen sorriu. - Mais vale dinheiro e uma cara bonita do que carne velha amarga e degenerada.
- Admira que tenhais vindo, se desprezais assim tanto o círculo de Lady Pennell - interveio Vergil.
- Resta esperar que as suas festas sejam mais agradáveis depois desta noite. Além disso, vim para ver a minha mulher. Está na altura de esta separação confrangedora
cessar.
- Então perdestes o vosso tempo. Não voltarei para vós.
- Se eu decidir que sim, não tereis escolha. A lei...
- Fazei o que quer que seja para coagir a condessa e a lei saberá mesmo de tudo. - A ameaça náo viera de Vergil. Julian Hampton aproximara-se para ouvir e interrompia
agora com uma voz muito calma.
O conde fulminou-o com o olhar. - Ela não se atreveria.
Hampton correu a assembleia com os olhos, vendo tudo e náo vendo nada. - Claro que sim. E acreditais nisso, senão nunca teríeis concordado com os termos de separação
que negociei. Ora, eu tinha planeado passar estes dias na cidade, não a aborrecer-me numa festa campestre. Parece-me a mim que esta casa e este grupo são grandes
o bastante para vós e a condessa não precisardes de voltar a falar. Fazei-me esse favor, para amanhã poder retirar-me.
Afastou-se, sem falar com mais ninguém.
Lívido, o conde também se retirou.
- As minhas desculpas pela forma como vos insultou e ao vosso primo - disse Pen. - Assim como por ter falado táo livremente à vossa frente.
Diane sabia que ele tinha falado tão livremente porque a considerava tão insignificante que seria um desperdício de discrição. Da mesma forma que os homens como
ele não notavam a presença de criados, ignorara-a.
Vergil inclinou-se e sussurrou à orelha de Pen, mas Diane ouviu na mesma. - Onde fica o vosso quarto?
- Na ala este. Insisti que Diane o dividisse comigo.
- Muito bem. Far-vos-ei uma visita, de qualquer forma.
A sala esvaziava-se quando Vergil abordou Daniel. - Hampton e eu vamos jogar às cartas. Porque não juntardes-vos a nós?
- Julgo que não. Raramente jogo com amigos.
- Fazei-me a vontade, St. John. Tenho uma noite longa pela frente, e como Hampton nunca fala será insuportável.
Relutante, Daniel concordou. Vergil não estava em condições de perder às cartas, o que significava que Daniel teria de tomar
providências para o deixar ganhar. Ele não se importava, mas o jogo ficava menos interessante.
Acompanhou Vergil, saindo ambos da sala. Não entraram na biblioteca como Daniel previra. Em vez disso, Vergil apontou-lhe a escada. - O quarto de Pen tem uma saleta.
Não há razão para fazermos os criados ficarem acordados para nos atender, e se jogarmos lá, já não será necessário.
Quando subiam a escada, outro homem descia-a. AndrewTyndale saudou-os de passagem.
Daniel deteve Vergil. - Porque não convidá-lo também? com quatro o jogo é mais recreativo.
- É melhor não.
- Duclairc, vamos jogar às cartas naquela sala para proteger a vossa irmã caso o conde se dirija lá hoje à noite com intenções desonrosas, estou certo?
O rosto de Vergil endureceu ao ver-se confrontado com esta formulação tão direta.
- E não é muito melhor se um dos amigos do conde estiver lá sentado connosco? Há menos probabilidade de as coisas se descontrolarem, caso as vossas suspeitas se
confirmem.
Vergil acenou com a cabeça a contragosto. Desceu as escadas atrás de Tyndale, chamando-o.
Daniel ficou a observar enquanto o convite era feito. A noite de cartas poderia revelar-se interessante, afinal. Não gostava de ganhar com amigos, mas não tinha
pruridos desses com inimigos.
Vergil voltou com Tyndale a reboque. Harnpton aguardava no alto do segundo patamar. Os quatro percorreram a ala este até à saleta de Pen.
- Bem, tendes de nos prometer que não vos ides embebedar nem fareis uma barulheira, sem nos deixar dormir toda a noite admoestou Pen enquanto eles colocavam uma
mesa e cadeiras no centro da divisão. Contando com a sua chegada, ela mandara trazer vinho e whisky.
Daniel percebeu que Pen se referia a ela e Diane. Não reparara que elas partilhavam um quarto. Imaginou que ter a sua dama de companhia por perto seria outra tentativa
por parte da condessa de frustrar qualquer tentativa do conde de reivindicar os seus direitos de marido, dado que passavam a noite sob o mesmo teto.
Também significava que Daniel iria ter Diane por perto naquela noite. A câmara não era grande, e a proximidade acentuou imediatamente a tensão que crescia silenciosamente
entre eles desde que ele chegara à casa. Durante o serão inteiro apercebeu-se da consciência que ela tinha da presença dele, e do que acontecera, mesmo que ela fingisse
que ele não existia.
Ela continuava a ignorá-lo agora. Estava sentada à escrivaninha, a arranhar qualquer coisa num papel, não mostrando qualquer interesse pelos homens que se instalavam
para jogar. A condessa estava empoleirada num banco. Parecia que as mulheres iam ficar um pouco antes de se retirarem, para dar aparência de um convívio privado.
Daniel escolheu a cadeira que lhe permitia ver Diane, ainda que ela fosse distraí-lo. Não queria Tyndale naquela posição. Ver Tyndale observar Diane iria distraí-lo
ainda mais.
A sua jogada astuta serviu de pouco. Diane finalizou a sua tarefa e foi para o banco, para junto da condessa. O que a colocou numa localização excelente para Tyndale
lhe sorrir e para ela lhe devolver o sorriso.
Diane também sorria a Vergil e Hampton. A única pessoa a quem não concedia atenção era Daniel. Dava-se a grande trabalho para nem sequer olhar na direçáo dele, como
fizera o serão todo.
Ele não se deixava enganar minimamente. Podiam bem estar sós, abraçando-se, tão intensa era a ligação entre os dois. Ela podia não o querer, podia até estar ressentida
com isso, mas era inegável que estava lá, afetando o ar, o tempo e a luz.
- O vosso jogo está fraco, St. John - disse Hampton quando Daniel perdeu mais dez libras para Andrew Tyndale.
- Talvez não seja o jogo dele que é fraco mas o de Mister Tyndale que é bom - propôs Diane.
Tyndale apreciou o elogio mais do que seria adequado.
Daniel apanhou o olhar de Diane quando este passava inadvertidamente por ele. Prendeu-o e concedeu-se a si próprio uma recordação breve, intensa e expressiva do
envolvimento deles no ribeiro, uma recordação cheia dos suspiros e do anseio dela, do que aconteceu e quase acontecera. Ela começou a corar, como se o olhar dele
comunicasse a imagem e as sensações.
- Porque não aumentamos a aposta? - perguntou Daniel. - Os cavalheiros deviam tirar partido do meu jogo fraco.
- com certeza. Já agora, fazemos render o nosso tempo - aprovou Tyndale.
Hampton não avançou nenhuma opinião, mas o olhar que lançou a Daniel era especulativo. - Talvez as senhoras queiram retirar-se. Podemos continuar sozinhos.
- Credo, não - ripostou a condessa. - Não quando vai começar a diversão a sério. Além disso, devo ficar para arrastar o meu irmão daqui antes que ele se arruine.
Vergil suspirou. - Bolas Pen, eu não sou Dante.
- Por falar em Dante, a última vez que o vi tinha posto Mrs. Thornton a fazer uns barulhinhos parvos enquanto folheavam um livro - comentou a condessa. - Onde está
ele, Vergil?
- Penso que se retirou, madame. - O tom de Hampton sugeria que quanto menos perguntasse acerca das circunstâncias e orientação da retirada de Dante, melhor. Começou
a dar as cartas. - Cinquenta libras, cavalheiros?
Tyndale e Vergil assentiram com a cabeça. Hampton olhou para Daniel, procurando o seu acordo.
A aposta elevada pareceu perturbar Diane, e não seria por ela temer que o seu benfeitor pudesse ficar mal. Daniel ficou com a distinta impressão de que ela se preocupava
apenas com Tyndale.
A sua atitude era provocatória. Cada expressão impassível negava a verdade e rejeitava a forma como se tinham unido tão completamente naqueles abraços e ainda estavam
unidos nesta câmara.
Pior, agora ela encorajava deliberadamente Tyndale, apesar do aviso que recebera.
Sentiu crescer na sua mente uma irritação aguda. Manteve-a controlada, mas não deixava de o afetar. Ele renunciara ao sonho de uma vida pela beldade que agora cobria
de atenções o seu atacante em potência. Ele sacrificara-o por ela e por algo que nem sequer podia acontecer, e ela agia como se ele não significasse nada para ela,
mesmo derretendo com o toque dele.
Voltou a atenção para Tyndale.
- Porque não cem? - disse.
As pálpebras de Tyndale desceram, aquiescentes, mas a sua resposta foi interrompida pela porta da sala, que se entreabriu, rangendo.
Uma nova visita entrou. Primeiro o traseiro. Recuou, de olhos no corredor para se certificar de que não tinha sido visto.
Hampton pousou as cartas e cruzou os braços. Vergil estava tão irado, que parecia capaz de matar alguém, de tal modo que Daniel lhe colocou uma mão firme no braço.
Tyndale sorriu, divertido.
O visitante fechou a porta com grande e silencioso cuidado. Virou-se.
O conde de Glasbury precisou de um momento para compreender que se não enfiara sub-repticiamente numa câmara vazia, mas que interrompera um pequeno convívio. A surpresa
deixou-o especado, a boca flácida aberta de espanto.
- Queríeis alguma coisa, querido? - perguntou a condessa. A sua boca parecia a de um peixe.
Todos aguardaram, deixando-o especado feito espantalho. Até o seu amigo Tyndale aproveitou o momento mais do que um amigo devia.
Foi Hampton que o safou. - Sem dúvida que soubestes do nosso jogo particular por algum criado e vos quisestes juntar.
- Sim, é isso.
Não o safou completamente. - Por sorte a conversa do criado estava correta, ou isto poderia ser mal interpretado e custar-vos muito caro.
O conde ficou muito rosado. Recompondo-se, olhou de alto para a assembleia. - A conversa dele estava incorreta. Disseram-me que a mesa incluía jogadores mais interessantes.
- Desde que haja dinheiro para se perder, não somos esquisitos quanto à estirpe do homem que o perde - declarou Daniel. - Portanto, sois livre de vos juntar a nós.
O conde endireitou-se, indignado com o insulto. A sua mão recuou até ao trinco da porta. - Não me parece. Eu sou muito esquisito quanto à estirpe dos homens aos
quais me associo. Perdoai a minha intrusão.
- Dormi bem, querido - disse-lhe docemente a condessa quando ele virou costas.
Diane parecia muito preocupada com os progressos erráticos de Tyndale no decorrer da última hora. O seu rosto iluminava-se de deleite quando ele ganhava e entristecia-se
quando ele perdia.
O que deixou Daniel fora de si. Como resposta, prolongou a destruição que estava na sua intenção concretizar.
À medida que o jogo se tornava mais imprudente, Hampton, comentando que a noite terminaria com a diminuição acentuada da fortuna de um dos homens, retirou-se completamente,
não fosse caber-lhe ser esse homem.
Às trezentas libras, Vergil também se retirou.
Daniel aproveitou a oportunidade para muito rapidamente perder mil para o único opositor que lhe restava.
- A vossa sorte tinha melhorado consideravelmente, St. John
- disse Tyndale enquanto se distribuíam cartas mais uma vez. Parece que a maré voltou a virar, todavia.
- A minha sorte é sempre inconstante, é o que é. Além disso, a condessa é um fator de distração.
- Como também vossa prima - disse Tyndale jovialmente, oferecendo um sorriso a Diane.
No que respeitava a Daniel, fora-lhe atirada uma luva.
- Se somos tão grandes distrações, está na altura de nos retirarmos. - A condessa levantou-se, e todos os outros também. - Fazei como se estivésseis em casa, cavalheiros.
Obrigada pela vossa companhia.
Diane seguiu-a até à outra câmara. Daniel ouviu os sons indistintos que, do outro lado da parede, revelavam mulheres a prepararem-se para ir para a cama. Permitiu-se
a fantasia de imaginar Diane a despir-se e a lavar-se e a cuidarem-lhe do cabelo, e perdeu mais duas mil libras no seu desenrolar.
Por fim os sons pararam. Uma criada saiu e retirou-se.
Daniel imaginou Diane encolhida do lado dela, pálpebras fechadas e rosto adorável em repouso.
Varreu a imagem da sua mente. Virou cada pedacinho da sua atenção paraTyndale. - Que tal se jogássemos a sério? O que dizeis a duzentas?
CAPÍTULO 15
Diane, sobre que vos debruçais? - perguntou Pen.
- Uma carta. - Diane escrevera duas na noite anterior e não ficara satisfeita com nenhuma delas. A longa, que explicava a sua história toda, certamente não serviria.
Nem aquela que se desfazia em súplicas. Agora, escrevinhava à pressa um simples pedido de informação relativo a um Jonathan Albret, armador, se o pastor de Fenwood
acaso o conhecesse.
Incluiu a sua morada de Londres e selou a carta antes de ter oportunidade de lhe mexer muito. Levou-a para o quarto de dormir, onde a criada acabava de arranjar
o cabelo a Pen.
- Como posso enviar isto? - inquiriu.
Pen pegou na carta e atirou-a à criada. - Dai-a ao mordomo. Ide-vos. Estou pronta.
A mulher saiu. Pen espreitou para o espelho e torceu um dos caracóis soltos que lhe emolduravam o rosto. - Que dia terrível tenho à minha frente. Uma excursão ao
mar, nada menos. Vai estar um vento cortante, por mais bonito que o dia esteja. Os homens saem mais cedo, para pescar, e depois nós vamos ter com eles, mas eu terei
de estar perto dele a maior parte do dia, e depois de ontem à noite ele assusta-me mais do que nunca.
Pen referia-se ao conde, mas as suas palavras retratavam o desconforto de Diane. Depois da noite anterior, Daniel também a assustava mais do que nunca. Ou melhor,
fazia-a ter medo de si própria.
Fora igualmente horrível e maravilhoso, estar sentada na salinha exterior enquanto os homens jogavam às cartas. Ela mal olhara para Daniel, e os olhos dele passavam
por ela de relance, mas as sensações físicas que ele despertara no ribeiro tinham regressado no momento em que ele entrara. As mãos que seguravam as cartas poderiam
estar a acariciar-lhe o corpo, e a boca que bebericava o vinho poderia estar a beijar-lhe o pescoço e o seio.
Ele soubera. Aquele olhar único, quente, dissera-lho. Ele brincara com ela também, mantendo as memórias vivas, tornando tudo pior. Ela vira-se impotente para o deter
e demasiado fraca para alegar uma dor de cabeça e sair como devia ter feito. A agitação física e a consciência viva um do outro eram imperiosas de mais, deliciosas
de mais, para serem negadas.
A ideia de passar o dia em semelhante estado deixava-a desalentada. Precisava de passar tempo longe dele, para compor as suas emoções. Tempo para tentar voltar a
pôr as coisas no sítio.
- Não estou a sentir-me muito bem, Pen. Acho que devia ficar aqui a descansar.
Pen desviou o olhar do espelho com preocupação. - O que vos inquieta, querida? Se vos fiz ficar doente por vos obrigar a ficar de pé até tão tarde...
- Não é nada grave. Apenas estou muito cansada.
- Talvez deva ficar convosco, não vá...
- É atencioso, mas não é necessário. Não estou doente. Penso que vou apanhar um pouco de ar e depois voltar e dormir.
Pen ponderou. Por fim, abanou a cabeça. - Se eu ficar todos dirão que se trata de um estratagema da minha parte, como resposta à noite de ontem. Não, tenho de ser
corajosa e ir para a frente. Manter-me-ei firme apesar do dia prometer ser terrível. - Riu-se, amarga.
- E pensar que não procurei o divórcio para lhe poupar o escândalo
a ele. Bem, Mr. Hampton bem me avisou que é sempre a mulher quem paga.
Andrew Tyndale espiava da janela as carruagens que desciam a rua. O seu olhar fixou-se numa, muito cara. Quatro cavalos pretos puxavam-na, de longe muito melhores
do que os animais que ele próprio detinha. Vexava-o que Daniel St. John pudesse dar-se a tais luxos.
Vexava-o ainda mais que, a partir desta altura, tivesse meios para adquirir muitos mais.
No valor de vinte mil libras.
O que raio acontecera ali?
Era a pergunta que se repetira na sua cabeça desde a madrugada até ao nascer do dia.
Nunca perdia muito nas mesas de jogo. Desprezava homens que não sabiam quando se retirar, homens que arriscavam demasiado e tinham a ruína como resultado. Nem sequer
gostava muito de cartas. Preferia de longe jogos em que a sorte não tinha qualquer papel. Jogos que sabia que ganharia, porque ele fazia as regras.
Tinha sido culpa da rapariga, concluiu. Distraíra-o solenemente enquanto lá estivera. Não podia ter mais de dezassete anos, avaliou, mas ela tinha uma pose, um ar,
que sugeria a existência de uma sensualidade suculenta por baixo daquela postura inocente. Passara muito tempo desde a última rapariga refinada, o que a tornara
mais apelativa. As raparigas que Mrs. P encontrava eram bezerras ignorantes e estúpidas. Ele preferia de longe poldras bem-nascidas.
Sim, distraíra-o solenemente. Pusera-o num estado de excitação enquanto permanecera na sala. A bem ver, andava a ficar muito naquele estado desde a primeira vez
que reparara nela naquele baile.
De alguma forma, a disputa deles passara a ser sobre ela. Na altura não compreendera, mas olhando para trás... Os sorrisos dela quando ele ganhava, a preocupação
quando perdia, o desagrado do primo... Tudo tivera um papel, estava muito certo agora.
Mesmo assim, vinte mil libras? Não havia cara bonita que lhe fizesse aquilo. Estivera a ganhar tantas vezes durante a noite, por largas quantias, que constatar o
quanto perdera, no fim, fora um choque.
Pior, a dívida deste cavalheiro tinha testemunhas das quais ninguém duvidaria.
As carruagens faziam-se pequenas com a distância, em direção à costa. Furtara-se à excursão pesqueira, alegando indisposição, ainda que St. John fosse compreender
bem o que se passava. Não se ralava minimamente. Tinha problemas maiores do que a opinião de um armador.
Sentiu-se tomado por uma fúria raivosa, como tantas outras vezes desde que saíra da saleta da condessa. Viu novamente o brilho de triunfo nos olhos de St. John,
quando Hampton fazia a contagem. O Diabo tinha provavelmente o mesmo aspeto quando arrebatava a alma de algum homem.
Só havia uma explicação, era evidente. O sacana fizera batota. Como, Andrew não estava certo, mas fora isso que ocorrera.
As carruagens tinham desaparecido e a entrada estava deserta.
Um movimento perto da casa, próximo, chamou-lhe a atenção. Um vulto esguio de cabelo cor de avelã em madeixas desarranjadas entrou no seu ângulo de visão.
Olhando Diane Albret, ocorreu-lhe uma saída para o dilema. Tinha um toque de justeza moral, e também iria funcionar. St. John tinha arrogância e orgulho bastantes
para garantir que sim.
Mesmo com aquele verniz todo, a rapariga não era ninguém. St. John também, em rigor. Quando tudo terminasse, as pessoas relevantes concordariam que St. John tinha
sido um parvo e Andrew fora grandemente lesado. Além do mais, as vinte mil libras já não iriam importar.
Afinal, mortos não podem cobrar dívidas particulares.
Depois de ter ido apanhar ar, para espairecer, Diane regressou ao quarto, onde ficou até ouvir atividade no exterior, indicando-lhe que as mulheres saíam para se
juntarem ao grupo que estava na costa.
Só regressariam à tardinha. O que queria dizer que tinha um longo dia só para si.
Já tinha decidido como o passar. Enquanto caminhara, olhara para a sua vida sem contemplações. Não ficara agradada com o que vira.
Admitira para si própria que, mau grado todas as garantias de Daniel, ela não estava a salvo do interesse dele.
Foi até ao guarda-vestidos. Ao enfiar os botins, admitiu que não estava a salvo devido às suas próprias reações. Os beijos dele podiam ser escandalosos, mas não
mais do que a forma como ela os permitia.
Bem, ela não era a mesma rapariga que deixara Madame Leblanc em Rouen. Aprendera alguma coisa sobre o mundo nos últimos meses. Sabia que Daniel tinha tomado alguma
decisão a propósito dela no dia anterior à beira daquele ribeiro, e que da próxima vez aqueles beijos não iriam parar.
E haveria uma próxima vez. Não duvidava disso.
Tirou a capa do guarda-vestidos. Desejou ter levado as suas velhas roupas da escola, e não era só por a ajudarem a estar menos exposta. Incomodava-a levar a cabo
a missão do dia vestida com as coisas que lhe tinham sido compradas por um homem que não era nem seu parente nem seu tutor.
Toda a gente sabia o que isso geralmente queria dizer.
Tinha sido incrivelmente ingénua ao acreditar em Daniel quando ele dizia que, no caso deles, não era isso.
Devidamente vestida para sair, atravessou a casa silenciosa. Era altura de recordar o porquê de estar sequer em Inglaterra. Se descobrisse a vida que tivera antes
de Daniel St. John entrar nela, talvez existisse algo para a ancorar e suster quando cortasse os laços que tinha com ele.
Assim o esperava. Não estava certa de conseguir fazê-lo de outro modo. A própria ideia doía-lhe tanto, deixava-a tão desolada, que
se sentara no jardim, tentando não pensar nela. No entanto, acabara por aceitar aquilo que tinha de fazer.
Precisava de abandonar aquela casa, e a irmã dele, e os presentes e a generosidade dele. Precisava de fugir do calor e dos abraços dele.
Precisava de o deixar.
Prosseguia, resoluta, olhos enevoando-se, o vazio detestável espraiando-se, inchado, omisso e pesado, no seu coração.
Pelos corredores da casa deambulava uma criada ou outra, e ela pediu a uma delas que lhe procurasse Mary. A bonita rapariga foi ter com ela à cozinha.
- Como se dá com a vossa aldeia? - perguntou Diane.
- Estais a pensar lá ir, senhora?
- Um dia, talvez.
- Só sei ir para lá daqui. Ides pela estrada oeste até Witham, e virais para norte, e depois ides outra vez para norte em Brinley.
- Fica a duas horas de distância, dissestes?
- Talvez um bocadinho mais. Os caminhos são só terra depois de se chegar a Witham. Não sei a que distância fica de Londres.
Diane saiu da casa pela porta dos criados, ao pé da cozinha. Pareceu-lhe apropriado fazê-lo, como fazia nos primeiros dias em Paris. Não era a boneca do abastado
Daniel St. John que arrancava dali naquele dia. Era a órfã sem um tostão, de origem tão obscura que não interessava a ninguém.
Duas horas de carroça, dissera Mary.
Uma pessoa conseguia andar mais depressa do que uma carroça.
Foi para oeste pela estrada. Regressaria bem antes de Pen e dos outros voltarem da costa.
Uma hora mais tarde, soube a razão por que as pessoas escolhiam carroças lentas em vez de passos rápidos.
Calçara os seus botins, mas os modelos que se vendiam nas lojas de Paris eram delicados, para não dizer pior. Os que tinha nos pés,
com as suas solas finas, não pareciam capazes de sobreviver a um dia na estrada.
Piorou quando enveredou pelo caminho de terra em Witham. Sentia todos os sulcos e pedras através das solas. Tentou ignorar o desconforto e repreendia-se a si própria
por ser tão mole. Era o que o luxo fazia às pessoas, Madame Leblanc sempre ensinara. Tornava-as moles e fracas e dadas ao pecado.
Como era verdadeiro. Como era tão, tão, verdadeiro.
Viu a imagem de Madame a entoar as suas lições de moral. Tentou aceitar a dor nos pés como castigo por gostar tanto dos beijos de Daniel. Disse para si própria que
cada um dos toques era mau e pecado e era marca de um homem em quem não se podia confiar. Um sedutor. Um predador. Um demónio.
O seu coração não o aceitava. Não sentia que houvesse pecado no que dizia respeito a Daniel.
Meditava sobre aquela nova verdade quando o som de uma carruagem a aproximar-se captou a sua atenção. Desviou-se, para a deixar passar.
Para sua surpresa, a carruagem veio parar ao seu lado. Andrew Tyndale estava sentado num cabriole de dois cavalos, rédeas nas mãos, olhando-a surpreendido.
- Miss Albret, que fazeis aqui?
- Vim só dar um passeio. O que fazeis vós aqui?
- Decidi tirar o dia para ir ao campo visitar um amigo. Deixai-me levar-vos para casa primeiro, no entanto. Temo que estejais mais longe do que pensais.
- Não vos incomodeis. Tendes coisas a fazer. Não poderia permitir que vos atrasásseis por minha causa.
- A demora será pequena, e insignificante, em todo o caso. Por favor permiti que vos auxilie.
- Nunca me perdoaria a mim própria ter-lhe causado algum inconveniente. Ficarei bem. Palavra. Gosto de dar longos passeios. Adoro. Continuai o vosso caminho conforme
planeastes, e eu vou...
Ele apeou-se da carruagem. - Nem pensar nisso. Deixai que vos ajude a subir.
Era de mais. De cada vez que reunia coragem para perseguir o seu objetivo, havia algum homem, determinado a ajudar e proteger, a interferir.
Ignorou a oferta de Mister Tyndale e deixou-se cair em cima de um pedregulho na berma da estrada. Enfiou a cabeça nas mãos e ficou a olhar para a ponta dos sapatos
mutilados.
- Há algum problema, Miss Albret?
- Tudo é um problema.
- Não compreendo.
Diane ergueu o rosto. Os olhos dele não eram fundos e imperscrutáveis e perigosos como os de Daniel. Eram transparentes, meigos e muito solidários. A sua expressão
aberta fê-la sentir-se logo melhor. com este homem não havia mistérios, sombrias confusões, nem taciturnas perturbações.
Preocupara-se um pouco com ele na noite anterior. Vendo-o jogar às cartas com Daniel, teve a impressão de que não estaria à altura do Homem Diabo, e estava condenado
a perder. Como ele parecia estar bem humorado, era óbvio que não tinha sido assim tão mau.
- Não estou a andar só para me distrair - disse ela, deixando sair a confidência sem uma decisão real. - vou a uma aldeia chamada Fenwood. Soube que tenho lá um
familiar e vou visitá-lo.
Preparou-se para que ele lhe lembrasse educadamente que deveria ter dito à dona da casa, ou a Pen, para que uma das duas providenciasse uma carruagem para a levar.
Ela não queria ter de explicar que não queria que ninguém soubesse que estava a fazer aquilo. Iria ter de fingir ser estúpida ao ponto de não se ter lembrado de
tais coisas.
Afinal, a expressão dele aligeirou-se, como se a explicação dela fizesse todo o sentido do mundo. - Este familiar aguarda-vos?
- Não. Só decidi ir hoje de manhã. Nunca cheguei sequer a conhecê-lo. Houve um distanciamento...
- Tendes a certeza de que vos receberá?
Não pensara naquilo. O pastor podia ser parente dela, mas não querer ter nada a ver com a filha de Jonathan Albret. Viu-se especada em frente à residência do pastor
e a fecharem-lhe a porta na cara.
- Não se apoquente, provavelmente correrá como esperais. Havia tanta gentileza no sorriso de Mister Tyndale enquanto a tranquilizava que ela teve de lho devolver.
- A minha visita pode esperar até amanha - disse ele. - Porque não levar-vos até Brinley? Fica perto de Fenwood. Podeis esperar lá e eu levo uma mensagem da vossa
parte ao vosso familiar. Se ele estiver de acordo, podeis ir fazer-lhe a vossa visita. Assim, também não tereis de voltar a pé, e estaremos de regresso à casa antes
dos outros.
Uma nota alegre e cúmplice infiltrou-se na última frase. Ele pensava que ela escondia a visita de Daniel por o afastamento ter sido obra dele.
A interpretação de Mister Tyndale era conveniente, porém. Ela dificilmente poderia explicar que não era prima de Daniel e que a pessoa era apenas parente dela. Além
disso, poderia ser melhor fazê-lo como Mister Tyndale sugeria, e enviar primeiro um pedido ao pastor.
- Mostrais-vos muito amável e generoso, Mister Tyndale.
- De todo, Miss Albret. De todo. É para isso que servem os amigos. - Apontou para o veículo. - Vamos?
- Adoro o mar - disse Hampton. Eram as primeiras palavras que pronunciava numa hora. - É o melhor exemplo do sublime. Posso dizer que estou satisfeito por não ter
regressado hoje à cidade.
- Eu detesto o mar - ripostou Daniel. Nunca compreendera aqueles disparates poéticos sobre o sublime, mas se o mar era exemplo disso, também detestava o sublime.
- Um sentimento inusitado, St. John - prosseguiu Vergil. -A vossa fortuna, fê-la o mar.
Daniel não queria saber que lhe tivesse feito a fortuna. Passara anos a balouçar nas suas ondas, mas não gostava minimamente dele.
Detestava a sua imprevisibilidade e a sua vastidão. Odiava a forma como fazia um homem sentir-se pequeno e à mercê do destino. Incomodava-o que as suas ondas ritmadas
conseguissem trazer à tona verdades das profundezas da alma de uma pessoa.
De todas as coisas que os homens faziam para fingir que conseguiam impor a vontade humana ao mar, a pesca desportiva sempre se lhe afigurara a mais ridícula. Era
uma forma de duelo, só que o opositor era primevo por natureza.
Daniel estava de pé numa rocha entre Vergil e Hampton, mais as suas longas canas de pesca no meio de todo o ridículo arraial. Ele e os outros homens do grupo testavam
as suas débeis capacidades contra a mais eterna força do planeta. Apanharam-se de facto alguns peixes, com grande alarido e excitação.
Vergil apanhara um enorme e escorregadio. Hampton não, mas tanto se perdera em contemplação que não se mostrara minimamente aborrecido.
Apenas o jovem Dante revelava inquietude. Estava sentado no chão ao lado das pernas do irmão, mostrando-se impaciente com o desporto e nem um pouco impressionado
com o sagrado sublime.
- Quando chegarão as senhoras, que achais? - inquiriu.
Sim, quando chegariam elas, que raio? Quando chegaria ela? Daniel forçara-se a não olhar para a estrada, a ver se chegavam, mas os seus ouvidos estavam permanentemente
à escuta de sons de carruagens.
- Seria de pensar que já tivésseis tido a vossa parte - murmurou Vergil, lançando um olhar irritado à cabeça do irmão. - Compreendeis, espero, que se algum marido
alguma vez vos pedir contas, sois um homem morto.
- Por falar nisso, talvez tenha chegado a altura de ele começar a ter lições com o chevalier - sugeriu Hampton. - Tendo em conta o seu gosto por feitos atléticos,
seria dinheiro bem gasto.
Dante ergueu os olhos, subitamente mais rapaz do que homem.
- E julgais mesmo que me desafiariam, a sério? Não é como se algum dos velhadas se importasse, de facto.
- Ser traído por um rapaz que ainda nem sequer saiu da universidade pode despertar o interesse do mais enfadado dos homens
- rematou Vergil.
- Rapaz uma ova. Não sois muito mais velho do que eu...
- Sou o suficiente para saber uma coisa ou duas a propósito de discrição...
Daniel parou de ouvir a querela dos irmãos. Outro som absorveu a sua atenção.
Aproximavam-se carruagens.
Finalmente.
Fez questão de mostrar que verificava a linha em vez de olhar para a estrada como ansiava fazer. Calculou a aproximação apenas pelo som enquanto lutava para dominar
a expectativa crescente, quase demente.
Cerrando os dentes, fixou os olhos no mar, mas isso só fez com que as malditas ondas fossem uma distraçáo, despoletando redemoinhos de memórias de paixão e prazer.
Anseios de posse soltavam-se como chamas das brasas acesas de desejo que há semanas ardiam dentro dele.
Ele fechou os olhos e forçou comedimento às suas reações. Estava a ser mais infantil do que Dante. Mais imprudente. Nem sequer sabia o que dizer quando voltasse
a vê-la. Não sabia ao certo o que queria dizer.
- Ah! As senhoras chegaram - anunciou uma voz ao fundo da fila de homens.
Daniel aguardou que as carruagens parassem para lançar a linha. Criados começaram a esticar panos e a dispor cestos na colina viçosa para lá da estrada.
Reparou no conde, que fixava atentamente uma carruagem. Seguindo a direção do seu olhar, Daniel viu a condessa a sair.
Seguiram-se duas outras senhoras. Daniel aguardou que aparecesse outra cabeça na abertura. Uma bela cabeça, com olhos emotivos que conseguiam fazer um homem esquecer-se
de si próprio.
Em vez disso, o lacaio fechou a porta da carruagem.
Daniel perscrutou o grupo, procurando Diane.
Encaminhou-se na direção da condessa, parada entre três mulheres que estavam a conseguir falar à volta dela, como se ela nem existisse. Desculpando-se como se tivesse
sido incluída, apanhou-o a meio caminho com um sorriso de gratidão.
- Quanta gentileza da vossa parte terdes vindo salvar-me, Mr. St. John.
- Seria uma satisfação acompanhar-vos, mas pergunto-me onde está a minha prima.
- Ela ficou na casa, para dormir. Foi irrefletido da minha parte tê-la deixado ficar a pé até tão tarde ontem à noite, e hoje de manhã estava muito cansada. Confesso
que fiquei tentada a me furtar a vir também, mas... - Indicou o conde com um olhar expressivo, e depois as suas companheiras de carruagem. - Uma pessoa tem de manter
as aparências e ser corajosa e isso tudo.
Daniel teria de longe preferido que a condessa tivesse cedido às suas inclinações para se esconder. A sua bravura significava que Diane fora deixada desacompanhada.
Não havia razão para a condessa se preocupar com aquilo, mas para Daniel sim.
Havia outro membro do grupo que não tinha mostrado a mesma coragem da condessa. Andrew Tyndale também pedira para ser dispensado da excursão.
O que significava que Diane não estava completamente sozinha na casa com os criados.
- Peço desculpa, mas afinal não terei possibilidade de vos fazer companhia. O vosso irmão cuidará de vós, tenho a certeza. Sinto-me obrigado a regressar à casa,
para me certificar de que a minha prima não se encontra doente.
- Estou certa que não. Apenas cansada...
Ele deu meia-volta e estugou o passo até à carruagem, não aguardando pelo outros. Notou que Vergil e Hampton o tinham visto. A expressão que fizeram e a rapidez
com que o intercetaram na carruagem sugeriam que ele não conseguia esconder bem a sua preocupação.
- vou voltar à casa, Duclairc. A vossa irmã precisa da vossa companhia neste momento.
- Ides regressar? Porquê?
- A minha prima ficou para trás. Está doente, e eu devo atendê-la.
- Estou certo de que se fosse sério Pen...
- vou lá verificar, de qualquer forma. - com um gesto, indicou ao cocheiro para partir.
A mão de Vergil travou o braço de Daniel quando este subia para a carruagem. - Parece-me que vou convosco. Jantar ai fresco enfada-me.
Daniel olhou para aquela mão e depois para Vergil. A desaprovação que Vergil mostrara no ribeiro cintilava-lhe nos brilhantes olhos azuis.
- A vossa irmã precisa de vós ao lado dela, e eu não tenho necessidade de auxílio.
- Mesmo assim...
- Permiti-me que seja eu a regressar - propôs Hampton. - A intrusão súbita deste barulho todo estragou-me o resto do dia. Penso que afinal sempre regressarei a Londres.
Não vos importais de me levar até ao meu cavalo, pois não, St. John?
Hampton, que raramente sorria, fazia-o agora com uma firmeza afável que informava que Daniel não regressaria sozinho para a casa e para uma Diane desacompanhada.
Raios. Era pouco provável que Vergil tivesse partilhado as suas suspeitas. Hampton devia ter sentido o que existia entre eles na noite anterior durante a partida.
Quem mais o teria visto? A condessa?
Tyndale? !
Devia dar uma sova a ambos por o insultarem com a insinuação de que ele não podia ser deixado sozinho com a prima.
Só que, claro, tinham razão.
Saltou para a carruagem. - Vinde, se quereis. Como se eu me importasse.
CAPÍTULO 16
Diane aguardava com impaciência, ensaiando o que iria dizer quando se encontrasse com o pastor. Visões de um reencontro banhado em lágrimas sucediam-se na sua mente,
pequenos dramas escritos ao longo dos anos, quando se deitava na cama da escola.
Ela esforçava-se para deter a imaginação. O pastor podia nem sequer aceder a vê-la. Podia não ser seu parente. Podia ser-lhe tão afastado que não tivesse interesse
numa associação.
Apesar de dizer a si própria aquilo tudo, a expectativa continuava a crescer. Durante cerca de meia hora depois de Mister Tyndale sair ainda conseguiu contê-la,
mas com o passar do tempo não parava de se avolumar.
Foi até à janela pela vigésima vez, para espreitar a rua à procura da carruagem. Brinley não era uma aldeia grande e a estalagem era minúscula. Mister Tyndale tivera
a generosidade de pagar um quarto para ela não ter de esperar na sala comum.
Era um quarto humilde mas bonito. Cortinas de musselina enfeitavam a janela e a cama. Umas alegres almofadas amarelas salpicavam a colcha azul e simples. Era o tipo
de quarto que ela presumira que teria quando fora para Paris com Daniel. Em vez disso, ele pusera-a dentro de um vaso de porcelana branco e azul.
Avistou uma carruagem. Mesmo não sendo maior do que um ponto, ela sabia que era de Mister Tyndale. O seu coração disparou. Tentou recuperar a compostura, lutou para
domar a esperança. Não conseguiu, e por fim preparou-se para sair a correr.
Mister Tyndale já estava à porta do quarto quando ela a abriu.
- Ele estava lá? Viste-lo?
- Estava lá.
- O que disse? Recebe-me?
- Lamento ter de vos desapontar, Miss Albret. Ele não sabe nada de vós e está certo de não haver parentesco entre os dois. É um velhote seco que não viu vantagem
nenhuma em ter a reunião que procuráveis.
A excitação desapareceu como que expulsada por um murro. A sua ausência imediata agravou o vazio mais do que nunca. Tornou-se tão grande que poderia tê-la absorvido.
Foi para a janela e olhou para o exterior, para esconder a sua reação. Lágrimas ameaçavam brotar. Acumulavam-se-lhe no peito e na garganta, e ela sentia-se pior
por não poder libertá-las.
- Magoa-me profundamente que isto vos tenha perturbado tanto.
Diane sentiu calor no seu ombro. A mão dele repousava lá, uma pequena mostra de solidariedade. O gesto paternal ajudou um pouquinho.
- Sinto-me culpado. Devia ter advogado melhor o vosso caso.
- Se não há parentesco, não há finalidade na reunião. Agradeço-vos terdes ido, poupando-me o constrangimento de ir importunar um estranho com o qual não tenho quaisquer
laços.
Ela virou-se para ele e a mão dele deixou-se cair. Ele parecia tão preocupado que ela se sentiu culpada. - Não há de ser nada. É só que tenho tão pouca família que
esperava descobrir mais, é tudo.
- bom, continuais a ter o vosso primo.
- Sim. O meu primo.
Só que não era primo coisa nenhuma e ela não queria continuar com ele. Percebeu que, inconscientemente, havia depositado uma
grande quantidade de planos no velho pastor. Sem o admitir, estava na expectativa de ter um sítio para onde ir quando deixasse Daniel. Agora não sabia ao certo para
onde iria nem como viveria.
- Estais perturbada. Receei que isso acontecesse. Antes de sair, dei indicação de que nos preparassem o jantar. Tomei a liberdade de dizer que no-lo trouxessem para
aqui para vós não terdes de comer lá em baixo, onde há outros que ficarão a observar-vos.
- Foi muito atencioso da vossa parte. Confesso que não estou segura de conseguir esconder bem as minhas emoções, e posso bem passar sem a companhia de outras pessoas.
Ele sorriu, gentil. - Aceitais a minha, pelo menos? Pode ser uma ajuda não estardes completamente só. Um pouco de conversa poderá distrair-vos.
- Oh, não me referia a vós. Tendes sido tão atencioso e prestável que eu... bom, aceito com agrado a vossa companhia. Apesar de não estar com muita fome.
- Tendes de comer alguma coisa na mesma. Não ficaria bem levar-vos de volta a desmaiar de fome.
Naquele preciso momento ela não queria nem um pouco voltar. Acabaria por ter de o fazer, claro. Antes disso, contudo, queria algum tempo para se acalmar e avaliar
o significado que esta desilusão tinha para o seu futuro.
O estalajadeiro chegou com a mulher e a filha, carregando tabuleiros de comida. Colocaram a pequena mesa perto da janela e arrastaram para lá outra cadeira. A um
gesto subtil de Mister Tyndale, a mulher desatou o drapeado de musselina da cama, para que a função da divisão ficasse disfarçada.
- Cheira muito bem - comentou Diane, dirigindo-se até lá para inspecionar a refeição depois de todos terem saído. Havia carne de ave com molho, batatas e pão. Uma
garrafa de vinho também os aguardava.
- Comida simples do campo - disse Mister Tyndale. - Prefiro-a aos pratos exóticos que são servidos em algumas festas de Londres.
- Também eu.
Ele indicou-lhe a cadeira dela com um gesto. Ela sentou-se.
- Penso que sois uma das pessoas mais amáveis que já conheci, Mister Tyndale.
Ele deixou escapar um sorriso modesto e serviu o vinho. - Qualquer cavalheiro faria o mesmo, Miss Albret. bom, vamos lá tratar da vossa disposição para vos termos
a sorrir outra vez.
Durante uma hora, ele distraiu-a com as suas conversas. A voz e a consideração dele tinham o efeito de um bálsamo. A desilusão diminuiu até não ser mais do que um
fino véu sobre o seu ânimo.
- Miss Albret, perdoe-me se estiver a intrometer-me, mas os acontecimentos de hoje pareceram afetá-la profundamente. Era importante para vós descobrirdes mais família?
Estais infeliz com a vossa situação?
A pergunta, feita quando ela enfiava o garfo numa tartelete de nata, agitou o véu.
- Não diria que estou infeliz, mas tenho andado a pensar que talvez seja bom procurar mudar as minhas circunstâncias. - Ela não estava certa da razão por que o admitia.
Saiu-lhe da boca, como resultado da familiaridade e à-vontade que o dia fizera crescer entre eles.
- Acho que podeis ter razão.
- O que quereis dizer com isso?
A expressão dele tornou-se séria e ponderada. - Arrisco o vosso desagrado com o que estou prestes a dizer, mas como sou um cavalheiro preocupado com o vosso bem-estar,
não vejo outra escolha. Tem havido rumores, lamento dizê-lo.
- Rumores?
- Não vos assusteis. Coisa pouca, e pura especulação. Bem, tendo em conta que St. John apareceu vindo do nada, sem história, rico como o pecado, com grande probabilidade
de a sua fortuna ter sido gerada por meios ilícitos... Diz-se que foi com sedução e nada mais que abriu as portas dos círculos que agora frequentais. Depois aparece
uma prima, também sem história... a forma como ele corre
com os homens, a forma como dançou convosco no baile... o que posso dizer? Tem havido comentários.
O conde de Glasbury insinuara o mesmo, por isso ela não ficou assim tão chocada. Não obstante, de repente ficou a gostar muito menos de Mister Tyndale.
Ele interpretou mal o silêncio dela. - Miss Albret, por favor perdoai-me se vos pergunto isto, sei que não me compete, realmente, mas vós sois tão inocente e tão
jovem. O vosso primo importunou-vos de alguma forma? Desde ontem à noite que isso me preocupa. Enquanto jogávamos às cartas senti que vós tínheis medo dele, e que
o interesse dele por vós não era totalmente apropriado.
- Estais enganado, asseguro-vos.
A expressão dele ficou imediatamente mais leve. - É um alívio ouvi-lo, e é o que esperava. Quando dissestes que talvez fosse bom mudar a vossa situação...
- Não quis dizer que precisava de fugir do meu primo - mentiu, desconfortável com o rumo que a conversa tomava. Mister Tyndale podia ser amável e paternal, mas não
era o pai dela. - Referia-me a coisas mais práticas. Não tenho fortuna e vejo pouco futuro nos círculos que venho frequentando. Tem sido agradável, mas talvez fosse
avisado procurar um caminho mais realista. Não quero ser uma daquelas parentes pobres, para sempre dependentes.
- Um sentimento admirável. - Ele pousou os cotovelos na mesa, juntou as mãos, apoiou o queixo em cima delas, e olhou para ela muito diretamente. - Quero que saibais,
porém, que se alguma vez precisardes de qualquer ajuda que seja, sentir-me-ei honrado se puder assistir-vos.
Era um comentário muito típico de Mister Tyndale. Atencioso e solícito. E, contudo... Diane não conseguiu reprimir uma pontinha de cautela. Os seus olhos azuis pareciam
tão límpidos e honestos como sempre, incrivelmente interessados, mas durante um instante mínimo ela pensou ter vislumbrado uma centelha minúscula, preocupante.
- Gostaria que pensásseis em mim como vosso amigo - continuou ele. - Admitirei, correndo o risco de vos fazer rir, que espero que um dia penseis em mim como algo
mais do que um amigo.
A mesa pareceu-lhe subitamente muito pequena e o rosto dele muito próximo. Um rosto agradável e sincero ainda, mas surgiram-lhe mais daquelas faúlhas nos olhos,
mudando tudo.
O espanto foi tanto que ficou sem conseguir mexer-se ou falar.
De repente, o braço dele atravessou a mesa e a mão dele segurou-lhe o queixo. - Sei que há uma grande diferença entre as nossas idades, mas isso não é assim tão
invulgar. Admiro-vos desde a primeira vez que nos vimos. Espero que pelo menos considereis o meu afeto, e que o vosso primo não objete se eu me apresentar como pretendente.
Pretendente!
Ela ficou pasmada a olhar.
Ele levantou-se da cadeira e inclinou-se sobre a mesa.
A mente confusa de Diane não compreendia o porquê de ele estar a fazer aquilo.
Ele mostrou-lhe o porquê.
O afável, generoso e sincero Mister Tyndale beijou-a, e contornou a mesa enquanto o fazia.
- Não há prova de que ele a tenha seguido.
Hampton ofereceu o reconforto dentro do coche, que dobrava uma curva da estrada, inclinando-se com a velocidade. - Ele só mandou vir a carruagem dele muito depois
de ela ter saído, e pode ter seguido por um caminho completamente diferente.
- Se assim foi, saberemos dentro em breve e aí podeis dizer-me que fui estúpido.
Tinham chegado à casa e descoberto logo a ausência tanto de Diane como de Tyndale. Levara-lhes um tempo insuportavelmente longo para localizarem alguém que soubesse
para onde Diane tinha ido. Por fim, a caseira apresentara uma rapariga chamada Mary que relatou a informação sobre o pastor de Fenwood.
Daniel não tivera tempo de se perguntar o que teria querido
Diane do pastor. O moço que preparara a carruagem de Tyndale
chegara pouco depois, e a convicção de que Tyndale seguira Diane alojara-se, determinada, na mente de Daniel, não deixando espaço para mais nada.
Ele não tirava os olhos da paisagem campestre, procurando vestígios dela, ou de Tyndale. Ou de ambos.
- Suspeitais disso por causa de ontem à noite? - perguntou Hampton. - Ele parece um sujeito decente. Todos o dizem. Não esperaria que ele procurasse desforrar-se
de vós através dela.
Só que ele não era um sujeito decente. Ficaria encantado por se desforrar de alguém daquela forma, porque tinha um fraquinho por raparigas inocentes de maneiras
refinadas e pele branca e cabelo escuro. Especialmente se elas estivessem impotentes e dependentes dele e sem qualquer proteção.
O coche atravessou Witham a toda a brida e virou para uma rua de terra. E aí teve de abrandar. A demora deixou Daniel furioso.
Hampton mantinha uma calma notável, mas, vendo bem, ele era sempre assim. A Daniel, aborrecia-o que o advogado não percebesse o perigo que eles se apressavam para
evitar.
- Se estais tão seguro da decência de Tyndale, não sei porque insististes em acompanhar-me.
- Já que estamos quase lá, digo-vos porquê. - Hampton indicou com um gesto preguiçoso as pistolas penduradas na parede do coche por cima da cabeça de Daniel. - Estou
aqui para me certificar de que não levais nenhuma das duas convosco quando descerdes desta carruagem.
- Se me sentir inclinado a matar um homem, bastam-me as minhas mãos.
- Não duvido disso. Na verdade, suspeito que o comprovastes. No entanto, hoje não o fareis.
Entraram nos arrabaldes de Brinley. Daniel ordenou ao cocheiro que fosse devagar.
Hampton examinava um lado da rua enquanto Daniel examinava
o outro. Perto da outra ponta da aldeia, Daniel viu uma pequena estalagem à frente da qual estava parado um cabriole conhecido.
Saiu do coche antes de este parar, com Hampton no seu encalço. Lá dentro, procurou o estalajadeiro e perguntou pelo homem a quem pertencia o cabriole.
- Não está. - Foi a resposta do estalajadeiro, que deu meia-volta.
Daniel agarrou-lhe no peitilho da camisa e puxou-o até os dedos dos pés se lhe levantarem do chão. - Onde está ele? Atónito, o estalajadeiro limitou-se a apontar
para cima.
- Está só?
A cabeça sobre a sua mão crispada abanou.
Ele largou o homem e dirigiu-se às escadas.
Hampton agarrou-lhe no braço. - Não façais nada precipitado.
Daniel enxotou-o e subiu os degraus três a três.
Só havia dois quartos no segundo piso. Uma das portas estava aberta, revelando uma divisão vazia.
Abriu de rompante a porta de outro. Foi invadido por uma raiva violenta ao deparar-se com a cena de sedução.
Tyndale estava curvado sobre uma Diane sentada, segurando-lhe o rosto entre as mãos, beijando-a. As costas dela estavam contra a cadeira e os braços dela agarravam
os dele. A resistir-lhe? A abraçá-lo? No segundo antes de a porta bater com um estrondo na parede não era claro. A Daniel também não lhe importava.
Tyndale ergueu a cabeça e afastou-se da mesa. A expressão de Diane registava surpresa, e depois horror. Ela virou-se para trás e cobriu o rosto com as mãos.
Sem pensar, sem se importar com nada, conduzido por emoções sombrias de mais para atentar em custos, Daniel voltou a sua atenção completa para Tyndale e deu um passo
na direção do homem que tencionava desfazer em pedaços.
Uma mão no seu braço deteve-o. Tentou espantá-la, mas esta não se mexeu. Furioso, voltou-se para Hampton, disposto a afastá-lo com um murro se necessário fosse.
- Não esqueçais quem ele é. Vale a forca? - perguntou calmamente Hampton.
Regressou uma pequena centelha de razoabilidade. Tyndale observava, sem mostrar a mínima preocupação. As mãos de Diane deixaram-se cair. Sentada, ali, a olhar para
ninguém, era palpável a sua humilhação. Ficaram todos nos respetivos lugares, num silêncio cortante, um tableau vivant de ruína e comprometimento e raiva.
- Miss Albret, deixai-nos, por favor - disse Hampton com a sua voz de advogado.
Ela começou a falar, mas parou. Daniel não conseguia imaginar o que ela pensava poder dizer. Tentar desculpar Tyndale? Acusá-lo de a ter enganado? Não importava.
A situação falava por si. Não havia homem que levasse uma mulher para um quarto daqueles se as suas intenções fossem honradas.
Ela apressou-se a sair e Hampton fechou a porta.
Tyndale foi até à mesa, sentou-se numa cadeira, e serviu-se de vinho.
- Foi apenas um beijo - disse ele. - Ela não se importou minimamente, porque haveis vós de vos importar?
Daniel queria estrangulá-lo.
Hampton assumiu uma posição de barreira entre os dois. - comprometeste-la com o simples facto de a terdes trazido para este quarto. Ela pode não o ter compreendido,
mas vós certamente que sim. Agora tem de se encontrar uma solução.
- Imagino que possa oferecer alguma compensação, se não for muito alta.
- Não se trata de uma leiteira que possais despachar com um punhado de libras - devolveu Hampton.
- Para todos os efeitos é mesmo. - Tyndale bebeu um gole e pensou. - Não sugeris certamente que eu faça por ela o que deve ser feito? Suponho que pudesse considerá-lo,
se ela tivesse nascimento ou fortuna.
- Diabos me levem se permito tal coisa - rosnou Daniel.
- Não podeis esperar que fique com ela sem dinheiro nenhum, St. John. Certamente que a reputação dela vale algumas
libras.
- Também tendes uma reputação - lembrou Hampton. Tyndale riu. - Por mais prendada que seja, ela não é ninguém.
Por mais rico que seja, esse vosso amigo também não. Penso que a minha reputação consegue sobreviver a este mal-entendido.
- Que tipo de acordo tínheis em mente? - inquiriu Hampton.
- Não a quero amarrada a ele, e com ele a aproveitar...
- A dívida de ontem à noite desaparece, para começar. Isso e mais vinte mil poderiam resolver o assunto.
- Quarenta mil libras é uma soma bastante avultada - respondeu Hampton.
- Penso que é generoso da minha parte considerar sequer o assunto seriamente.
- Penso que é generoso da minha parte deixar-vos viver - prosseguiu Daniel.
Tyndale deu uma dentada num resto de tartelete. - É um desafio?
- Não - assegurou enfaticamente Hampton. - Está irritado, como seria de esperar. A vossa postura só o provoca mais. Não esqueçais que sou testemunha do que se passa,
e eu não sou um zé-ninguém.
Tyndale voltou-se e estudou Daniel. - Ficastes muito perturbado com um simples beijo, St. John. Mostrais-vos tão protetor como se de uma irmã se tratasse.
O quarto desapareceu. Assim como a ideia de qualquer acordo. Exceto um.
Era a única resolução que ele alguma vez quisera com este homem. Planeara-a, vivera para ela e depois, por causa de Diane, descartara-a. Mas agora, mesmo assim,
aqui estava.
Por vezes o destino conspira para forçar uma pessoa afazer o que tem de ser feito.
- Não haverá casamento nem acordo - comunicou, abrindo a porta. - O meu padrinho visitará o vosso amanhã em Londres.
CAPÍTULO 17
Era como se alguém tivesse morrido. Uma sobriedade silenciosa envolvia a casa. Diane sabia o porquê daquela atmosfera carregada. O comportamento dela não manchara
apenas a sua reputação, mas também a de Daniel e da irmã. Toda a casa sofreria por causa da sua estupidez.
Homens visitavam Daniel, com o mesmo rosto que as pessoas envergam nos velórios. Mister Hampton apareceu várias vezes no dia a seguir ao regresso de Diane e Daniel
a Londres, e Vergil Duclairc também esteve de visita. Houve outros homens que ela não conhecia. Finalmente, ao fim da tarde, um homem grisalho de porte nobre foi
conduzido ao escritório de Daniel. Diane viu-o passar pela biblioteca, onde estava a ler um livro.
Foi até à entrada e olhou para a porta do escritório. Daniel passara ali a maior parte do seu tempo desde o regresso deles. Ele mal falara com ela depois de a encontrar
na estalagem. Regressado do confronto com Tyndale, perguntara apenas se ela estava ilesa. As afirmações dela não tinham suavizado a sua expressão e ele não quisera
ouvir as explicações dela.
Ele nem sequer tinha ido na carruagem quando regressaram a Londres. Ficara ao lado do cocheiro, tomando as rédeas nas mãos.
Regressaram imediatamente. Mister Hampton mandou emalar as coisas deles e enviou-as para a cidade na carruagem da condessa.
O homem não ficou no escritório durante muito tempo. Saiu, sério e apagado, parecendo um personagem de uma tragédia.
A porta do escritório ficou entreaberta. Diane passou por lá e espreitou para dentro.
Daniel estava, como tantas outras vezes, perto da janela, a olhar para fora. Parecia muito sozinho. Muito isolado.
Ela entrou sorrateiramente.
- Gostaria de falar convosco - disse ela. - Parece-me que devo voltar para França. O escândalo não vos afetará tanto se eu já cá não estiver.
- Não será necessário. A culpa não foi vossa.
- A culpa, foi minha. Eu devia ter percebido...
- Pessoas mais sensatas e vividas do que vós não se aperceberam.
Ele parecia tão distante. O coração dela sofria por Daniel insistir em não olhar para ela. Ele anulara qualquer familiaridade entre os dois. Fechara uma porta. Ela
voltara a tornar-se uma responsabilidade, nada mais.
Tinha sido a vontade dela. Decidira que esta amizade e esta intimidade tinham de acabar. Agora, experimentar o gelo da sua morte entristecia-a mais do que ela alguma
vez esperara.
- Não foi o que pareceu - disse, ouvindo a sua voz embargada. A verdade não iria fazer diferença, mas de súbito foi de importância vital que ele ouvisse aquilo.
- Ele ajudou-me quando eu estava na estrada, e foi ver se um pastor de Fenwood se encontrava comigo. Eu limitei-me a esperar no quarto que ele regressasse, não que...
Ele virou-se para ela. - E depois ele mandou vir o jantar, e vocês comeram, e para vosso choque vós descobristes que ele não pensava em vós como uma filha ou uma
sobrinha.
- Sim.
- E depois ele aludiu a afeto e amor, até mesmo a casamento.
- Sim. Como sabíeis?
- E depois beijou-vos. E vós permitistes.
- Foi um choque, estava estupefacta. Foi tão inesperado...
- Não interessa.
- Interessa sim. - E interessava. Naquele momento, interessava mais do que qualquer coisa no mundo.
- Não estou certo do que vi quando entrei. Sei sim que se não tivesse chegado, Tyndale não teria parado depois de um beijo e que o vosso consentimento em estar naquele
quarto tê-lo-ia absolvido das piores acusações.
Ela não sabia o que dizer. Tinha sido insuportavelmente ingénua e estúpida. - Certamente, se eu fosse embora, ninguém se importaria com isto. Ninguém viria a saber.
- Oh! Claro que viria a saber-se. Estas coisas arranjam sempre forma de sair por algum lado. Não vos preocupeis demasiado com o assunto, porém. Estou a tratar disso.
Disse a última parte com firmeza. O silêncio da casa e a retirada de Jeanette para os seus aposentos fixaram-se na memória de Diane. Como também a procissão de visitantes
sisudos.
Assolou-a uma suspeita terrível.
- O homem que esteve aqui agora mesmo. Não era o chevalier Corbet? Ele nunca vos visitou.
Daniel foi até à secretária. Estava apinhada de livros-mestre e outros livros. - E um velho amigo e concordou em fazer-me um favor importante.
- Que favor? - Ela foi até à secretária e contemplou a prova de que um homem colocava os seus assuntos em ordem. - Mãe de Deus, o que fizestes? Desafiastes Mister
Tyndale por causa disto?
- É evidente.
- É evidente? Eu nem sequer sou vossa prima de verdade. Não tendes responsabilidade em relação a mim, muito menos a de um gesto tão perigoso. Decerto havia outra
forma de salvaguardar o vosso orgulho, sem que tivésseis de tentar matá-lo.
- Não outra que me fosse aceitável.
- E se ele vos mata a. vóst - A ideia fez-lhe revolver o estômago. Se ele morresse por aquilo, por uma coisa tão pequena, ela nunca se perdoaria. Seria para sempre
perseguida pela culpa.
Ela tinha decidido deixá-lo, mas não assim. Não de uma forma tão permanente. Saber que ele estava algures no mundo teria facilitado tudo. Assim, ela podia sofrer
uma perda que o seu coração sabia já não conseguir absorver.
- Não estejais preocupada. Estareis amparada se eu falhar. Passei a manhã a tratar de obrigações para vós e Paul e mais algumas pessoas. Não ficareis desprovida.
- Não quero o vosso dinheiro. Não quero que este confronto vá para a frente.
É imprudente e desnecessário. Tanto quanto sabeis, as atenções dele agradaram-me. Talvez
ele estivesse a ser sincero ao comunicar as suas intenções como pretendente. Talvez eu tenha gostado do beijo e da oportunidade de agarrar o filho segundo de um
conde.
Daniel aproveitou para compor alguns livros-mestre. - Talvez sim. É o que está a parecer.
Um não imperioso subiu-lhe aos lábios, mas ela reprimiu-o. Proclamar a sua inocência, descrever a repulsa que sentira pelos beijos insistentes de Tyndale, só deitaria
achas para a fogueira.
Partia-lhe o coração que Daniel pudesse pensar que ela desejara aquela cena de sedução, mas o seu orgulho pouca importância tinha naquele momento. Ela não podia
deixá-lo bater-se naquele duelo. Não podia arriscar que ele morresse. Deixá-lo perguntar-se se não estaria a proteger uma mulher que não merecia o seu cavalheirismo.
Poderia conduzir a que ele abdicasse do duelo.
- E não é só imprudente, mas também hipócrita. O vosso próprio comportamento comigo tem sido muito pior do que o de Mister Tyndale.
- Tenho consciência disso. No entanto, a um nível essencial, foi muito diferente, de formas que vós não conseguis compreender.
- Como objeto desse comportamento, não vejo diferença, a não ser que as intenções últimas dele possam ter sido honradas.
- Estou muito certo de que não o eram. Nem as minhas. Em todo o caso, um de nós pagará por vos ter destratado, e talvez por muito mais.
- Para quando está marcado, este duelo?
- Louis está com o padrinho de Tyndale neste preciso momento. Conto que seja para breve.
- Jeanette sabe o que planeais fazer?
- com certeza.
Ele dissera à irmã, mas não à mulher por cuja honra ele lutava.
- Presumo que ela vos tenha suplicado para mudardes de ideias.
- Ao contrário de vós, Jeanette sabe bem que não vale a pena tentar.
- Talvez seja por não saber a história toda.
Ela deu meia-volta, para ir recrutar uma aliada. A voz dele seguiu-a em surdina até à porta. - Na verdade, é por saber mesmo toda a história.
- Tendes de o deter. - Na saleta, de pé em frente a Jeanette, Diane disse-o como uma ordem.
- Ninguém consegue fazê-lo, agora.
Jeanette parecia resignada e frágil. A sua pele branca mostrava rugas ténues em que Diane nunca tinha reparado.
Começou a andar para trás e para diante. Um misto de frustração e preocupação extrema martelava-lhe na cabeça. - A reaçáo de Daniel foi demasiado extrema. Um duelo!
Tinha de haver outra forma...
- Houve. Mister Tyndale ofereceu-se para casar convosco se levásseis um dote.
- O vosso irmão prefere morrer, ou matar, a pagar meia dúzia de libras?
- A soma era muito grande e pretendia ser um insulto tanto para vós como para o meu irmão. No entanto, não foi por isso que Daniel recusou.
- Então porque foi?
Ela alisou as pontas do xaile. - Ele nunca vos colocaria numa situação em que vos sentísseis obrigada a casar com um homem para evitar este confronto.
- Deveria ter sido escolha minha, não dele.
- bom, ele fê-la. Além disso, Daniel nunca teria deixado Tyndale ter-vos de forma alguma, nem mesmo em casamento. Não tenho dúvidas de que mais depressa mataria
o homem do que o permitiria.
Diane pousou a mão no ombro de Jeanette e olhou-a nos olhos.
- Daniel disse algo sobre vós saberdes a história toda. Há mais alguma coisa aqui pelo meio?
- Digo-vos isto. Faço-o na esperança de que não vos culpeis a vós própria. Paul sugeriu que Mister Tyndale podia já ter-vos levado deliberadamente para aquela estalagem,
com a intenção de provocar um duelo com Daniel. Na noite anterior, a jogar às cartas com Daniel, tinha perdido uma soma avultada. A sua obrigação para com a dívida
desapareceria se Daniel morresse.
- É uma forma drástica de acertar uma dívida.
- E uma forma eficaz. Mister Hampton, o advogado, apresentou esta teoria a Daniel. O meu irmão considera-a irrelevante, claro. Contudo, explicaria o porquê de o
dote que Tyndale pediu para casar convosco ser tão escandalosamente elevado. Incluía a dívida, reparai.
Então ela fora um peão. A gentileza, na rua, fora meramente a atitude de um homem que avistara uma oportunidade. Talvez até a tivesse seguido, esperando encontrar
uma forma de a comprometer para que tudo pudesse desenrolar-se como se desenrolou.
Ser a boneca de Daniel tinha sido uma coisa. Ser o joguete de Tyndale era outra. Ela caíra na armadilha como a pateta estúpida e ignorante que era. Pior, Daniel
podia morrer por causa disso.
- Essa teoria só funcionaria se Mister Tyndale estivesse confiante em ganhar o duelo - prosseguiu ela.
- Tem reputação de ser um excelente atirador.
Um dos melhores atiradores de Inglaterra, dissera-lhe Daniel naquele dia junto ao ribeiro.
- Temos de impedir isto, Jeanette.
- Ninguém tem capacidade para o fazer. Acreditai em mim. Conheço o meu irmão como mais ninguém. Ele vai defrontar Tyndale, e fá-lo-á com o intuito de o matar.
Diane aguardou até a casa se fazer silenciosa e levantou-se da cama. Horas de tumulto e culpa haviam redundado numa decisão.
As emoções dos últimos dias tinham-na preparado para aquela escolha. Talvez as dos últimos meses. A desolação de considerar a possível morte de Daniel revelara as
verdades do seu coração.
Tirou do armário um robe que nunca tinha usado. Um modelo frívolo, nada prático, de cetim rosa-escuro e renda bege, que tinha sido feito em Paris por capricho de
Jeanette, apesar de Diane insistir que nunca usaria tal vestimenta.
Imaginou o aspeto com que ficaria com aquilo por cima da sua singela camisa de noite. A imagem que lhe veio à cabeça era cómica e ridícula. Pareceria uma criança
vestida com as roupas da mãe.
Decidindo que não era altura para pudores, despiu a camisa e vestiu a sua nudez com a seda rosa, que a cobria quase como um vestido de noite, só que a frente tinha
uma abertura pronunciada, e o toque sensual do tecido cingia-se-lhe às curvas. O decote redondo, debruado a renda, tocava-lhe os seios.
Sentiu um nó no estômago. Estava prestes a fazer uma coisa que qualquer pessoa com algum juízo consideraria um erro estúpido e escandaloso.
Pior, poderia falhar. No escritório ele tinha-lhe sido tão indiferente que ela não confiava que o seu plano fosse resultar. Mas tinha de tentar. Jeanette dissera
que ninguém conseguiria fazer com que ele anulasse o desafio. Havia uma pequena possibilidade de não ser verdade.
Reunindo toda a coragem, saiu do quarto para ir negociar com o Homem Diabo.
CAPITULO 18
Abriu a porta do quarto de Daniel com cuidado. Um feixe de luz entrou pela frincha.
Sentiu as pernas bambas. Fez uma pausa e um esforço para manter a calma.
Esperou que não fosse horrível de mais. Ele não era um estranho. As suas boas intenções deviam salvaguardá-la de se tornar uma perdida, independentemente da forma
como os outros vissem a sua atitude. Independentemente de como ele a visse.
Empurrou um pouco mais a porta e entrou, sorrateira.
A elegância ampla e esparsa do quarto surpreendeu-a. A mobília possuía um toque oriental. Toda a estrutura da cama era de linhas direitas, com ornamentações em relevo,
e o guarda-fatos tinha embutidos de flores e pássaros. Perto da cama, viu uma cómoda entalhada com três cores de madeira.
Os apontamentos exóticos não tornavam o quarto opressivo. Não era nenhuma fantasia asiática. Pareciam objetos que ele simplesmente tinha trazido das suas viagens
e posto a uso.
Daniel estava sentado numa cadeira perto da lareira vazia, lendo um livro à luz de um candelabro. A cadeira estava virada para ela e ela viu o robe japonês de mangas
compridas que ele envergava,
fechado e atado com uma faixa de pano. Era azul-escuro com um padrão branco e lembrou-lhe o quarto que ela ocupara em Paris.
Reparou nas pernas dele, nuas, que o robe deixava destapadas dos joelhos para baixo. Via-se um profundo V de pele exposta acima do ponto onde as abas do robe lhe
cruzavam o peito.
Parecia que ele não trazia mais nada vestido, o que tornava ainda mais inequívocas as implicações daquilo que ela se propusera fazer. Esperara encontrá-lo de casaca
e botas, ou já adormecido num quarto escuro. Não ali sentado, com aquela luz toda, quase nu.
Tinha um aspeto maravilhoso, um homem de ação temporariamente em repouso. Apesar de relaxado, o magnetismo emanava dele como uma força invisível, afetando-a como
afetava sempre, desassossegando-a e deixando-a mais desperta do que o normal. A luz das velas esculpia-lhe o belo rosto em ângulos severos e os seus olhos escuros
luziam como estrelas negras.
Ele não a ouvira entrar. Ela ficou de pé à frente da porta, com tanto medo e tão nervosa que teve de forçar a voz a sair.
- O que estais a ler?
Ele mal reagiu, mas ela percebeu que o tinha surpreendido.
- Poesia.
Ele ergueu os olhos.
De repente, o seu robe pareceu-lhe muito fino e muito perverso. Não lhe pareceu que a cobrisse nem de perto como cobrira no quarto.
Ela foi alvo de uma inspeção longa e lenta, cheia de interesse masculino. Uma vitalidade tensa, despertada, partiu do outro lado do quarto em direçáo a ela.
- Estais muito bela. Não vejo o vosso cabelo solto desde aquele dia na escola. - Indicou distraidamente o robe. -
É muito bonito.
- Foi Jeanette que mo escolheu, em Paris.
- Ela sugeriu que o usásseis hoje à noite?
- Não. Porque o faria?
Ele fez aquele sorriso jocoso dele. - Então foi ideia vossa vestirdes isso, soltardes o cabelo e virdes até aqui. Porquê?
O rosto dela ardia. Não tinha contado anunciar verbalmente as suas intenções. O robe e a sua presença deviam bastar.
- Viestes tentar-me, Diane?
- Sim.
- Se pensais encantar-me com a vossa beleza e depois sair, quero que saibais agora que náo se passará assim.
- Eu sei disso.
Ele forçou-se a desviar o olhar dela para o fogo brando. Nem sequer compreendeis o que estais a oferecer.
- Náo sou ignorante. Sei o que é esperado.
- Não sabeis o que eu espero. Voltai para o vosso quarto. Ela quase obedeceu.
Em vez disso, caminhou na direção dele.
- Não quero que este duelo aconteça. Quero que recueis.
Ele olhou para ela, e não foi com um ar satisfeito. Ela reparou que, apesar da irritação, ele lhe apreciava as pernas, que espreitavam pela racha do robe a cada
passada.
- Se vierdes até mini assim, deveis querer muito que ele viva. Preferiríeis a outra solução dele? Casar-se convosco?
Ao lado das suas pernas nuas, ela olhou para aqueles olhos escuros, donos de perigosas profundezas. Anos antes, aqueles olhos assustavam-na. Agora enfeitiçavam-na.
- Só me interessa que náo haja duelo.
O olhar dele percorreu-a, breve e exaustivamente. - Não se trata apenas de vós.
- Não, também se trata de vós e do vosso orgulho.
- Sendo assim, procurais salvar um homem sem honra fazendo-me a mim ainda mais indigno do que ele. - Virou o livro que tinha no colo e voltou a debruçar-se sobre
ele. - Permiti-me alguns escrúpulos, além do mais, no que vos diz respeito. E agora, por favor, regressai ao vosso quarto.
Ordenava-lhe que se retirasse, e não era com delicadeza. A coragem dela vacilou. O seu corpo inteiro vacilou. Estar perto dele provocava-lhe aquilo, mais do que
a própria rejeição. O constrangimento
por ter sido rejeitada foi abafado pela desilusão de ele não a querer o bastante.
Se ela soubesse mais sobre estas coisas não teria falhado. Se fosse mais bonita, ou mais vivida, ou mais sedutora, a escolha dele teria sido diferente.
Devia retirar-se com o orgulho que lhe restasse, mas não podia. Poderia não voltar a estar assim perto dele, poderia nunca mais ver a luz das velas a desenhar-lhe
sombras no rosto como naquele momento. Depois de se afastar, a aura dele nunca mais a envolveria como envolvia agora, incitando-a a ficar ainda que ele a repudiasse.
Ele virou uma página. - Ide-vos, já. Quero que vades.
Tremendo, mal conseguindo manter o equilíbrio, ela baixou-se até ficar de joelhos ao lado das pernas dele, inclinou-se e apoiou-se nos calcanhares. Ele ainda lia,
mas conseguia vê-la por cima do livro.
Desapertou o primeiro botão pérola que lhe cobria o seio. Demorou-lhe tempo de mais porque os dedos não mostravam vontade de trabalhar. Não era só o nervosismo que
os tornava desajeitados. Estar a escassos centímetros dele afetava-a.
Finalmente conseguiu. O robe e a sua seda afastaram-se um pouco. Começou rapidamente a desembaraçar-se do botão seguinte.
- Devagar, querida. Seduzir não é algo que se faça à pressa.
Ela ergueu os olhos.
O livro estava na mesa ao lado das velas. O príncipe da tentação observava.
A atenção dele deixou-a enfeitiçada.
Desapertou os outros botões muito lentamente, já que mal reparava no que fazia. Ele parecia também não reparar. Os olhares, unidos, eram tudo o que existia, ligando-os,
dando origem a confissões e expectativas cuja existência nunca devia ter sido reconhecida. Ela sabia que ele a queria, isso era óbvio. Se ele aceitaria a sua proposta
já era menos claro.
Tendo chegado ao último botão, perto da cintura, ela forçou-se a apartar os olhos dos dele e a olhar para baixo. O cetim abria-se, mal lhe cobrindo os mamilos, duros
contra o tecido brilhante.
Olhou de novo para ele. Parecia aguardar alguma coisa.
Engolindo em seco, afastou mais o robe. O cetim brilhava-lhe na pele. Afastou mais o tecido, para mostrar os seios.
A sensação de estar ali ajoelhada, expondo a sua nudez, inundou-a de um arrebatamento erótico. Os seus seios tornaram-se pesados e cheios. Os seus mamilos endureceram
mais, sensíveis agora ao ar, ao olhar dele e até à própria luz. Tremores de excitação obscureciam o seu constrangimento. A carícia do cetim na sua pele tornou-se
uma pequena torrente de sensualidade.
A expressão dele ficou mais tensa. Ela sentiu que travava uma batalha. O ar entre eles ficou carregado daquela tensão.
- Devia deixar que vos despísseis completamente para não haver equívocos sobre o que está a acontecer, e porquê.
- Não haverá equívoco algum.
Desviando o olhar, com medo de ver a reação dele, ela ergueu a mão e, espantada consigo própria, deu por si a pousá-la na perna dele e a subir-lhe até ao joelho
numa carícia.
O mundo girou. com um movimento que a surpreendeu e desnorteou, ele puxou-a para a frente, para os seus braços e o seu colo, e tomou-lhe a boca num beijo selvagem.
O cetim oferecia pouca proteção contra a aspereza quente do seu abraço. A boca dele exigia uma rendição mais completa do que alguma vez os seus beijos haviam exigido.
A pressão da excitação dele na sua coxa provava-lhe que era melhor sedutora do que tinha pensado.
Os beijos dele instigavam a sua paixão a elevar-se ao nível da dele, o que se verificou nas respostas dela às suas exigências possessivas e quentes. O poder das
sensações que percorriam e torturavam o seu corpo assustava-a.
- Disse-vos que partísseis. Não digais que não fostes avisada. A cabeça dele virou-se. O seu cabelo suave roçou-lhe o rosto. A boca dele desceu-lhe pelo pescoço.
Os seios dela, mais volumosos, palpitavam, e um desejo louco de que ele continuasse mais para baixo tomou conta de si. Arqueou-se instintivamente, para o encorajar.
Ele beijou-lhe o volume do seio como resposta. - Alegra-me que o queirais, que não seja um sacrifício assim tão grande.
- Também quero que pareis com o duelo. - Ela mal conseguiu que as palavras saíssem, mal se lembrou de lhe pedir a promessa.
- Pensais mesmo que conseguiríeis ir embora agora se eu recusasse?
Pareceu uma ameaça, mas ele roçou-lhe o mamilo com o dedo para clarificar que ela não iria embora porque não queria fazê-lo. Todo o seu corpo se fletia. A sua respiração
entrecortava-se.
- Dou-vos a vida dele e vós dais-vos a mim. E um acordo diabólico, o que pretendeis, Diane, e ambos o lamentaremos muito em breve, parece-me. - Os seus olhos escuros
conseguiram penetrar os dela. - Neste preciso momento, contudo, não me importo minimamente. Haveis tratado disso.
Ele ergueu-se com ela nos braços. Avançou até à cama e deixou-a cair nela. Agarrando o robe de Diane pelos ombros, puxou-o e pô-lo de lado, deixando-a nua.
Olhando para ela, começou a desatar a faixa do seu robe.
Ali, ela quase mudou de ideias. Os momentos passavam ritmados, demasiado vivos e reais. Face à franqueza sensual do olhar dele era impossível negar o que ia acontecer.
Ali deitada na cama, nua e vulnerável, sem mais nada a cobri-la que não o poder masculino que emanava dele, ela soube que ele estava certo. Ela não compreendera
totalmente o que estava a oferecer.
Ela desviou o olhar quando o robe lhe caiu dos ombros. Era covardia e ele não disse nada, mas segundos depois, extinta a luz da vela, o quarto ficou escuro.
Ela ouviu-o aproximar-se da cama e o seu coração bateu numa fúria de pânico. Ela quase saltou ao sentir o corpo nu que subitamente lhe aquecia o flanco. Os seus
olhos acostumaram-se à escuridão e ela espreitou.
Apoiando num braço, ele olhava para ela. A escuridão fazia da cama um lugar pequeno e misterioso, cheio de uma intimidade de penumbra. Não um sonho, porém, mesmo
se a noite obscurecia o
mundo. Os sonhos nunca eram tão tangíveis e tão definidos. Ela sentia-se mais desperta do que nunca. A vivacidade intensa que ele sempre lhe inspirava tornou-se
um estado de alerta físico.
Curvando-se, ele puxou-a para a envolver nos braços. Acariciou-lhe o corpo como se conseguisse ver melhor do que ela. Ela puxou-o contra si, desajeitada e insegura,
e com toda a consciência de que a sua surpresa ao sentir a pele dele e o toque dele no seu corpo inteiro conseguia perceber-se na sua respiração entrecortada.
Beijando-a com fervor, como se o medo dela o impacientasse, ele acariciou-a mais intimamente. A parte de dentro das coxas. O volume e a fenda das suas nádegas. A
liberdade com que manuseava o seu corpo insinuava posse. O atrevimento dele chocava-a, o que, no entanto, só vinha aumentar a excitação das novas sensações, e as
suas reações alarmavam-na ainda mais.
Ele passou-lhe as pontas dos dedos em círculos pelo seio. Este prazer ela conhecia. Ele já lho ensinara e ela ficava sem defesa. A carícias lentas bem podiam ser
internas, tal era a prontidão com que os toques provocantes lhe enviavam tremores para a parte de baixo do corpo. Algo se avolumou até ela sentir uma palpitação
profunda e insistente entre as coxas.
Ele beijou-lhe o outro seio. A língua dele rodopiava, deixando-a tensa. O seu mamilo ficou tão sensível que ela mal conseguia aguentar. A combinação de carícias
num seio e dos dentes e lábios dele no outro deixou-a atordoada. Agarrou-se aos ombros dele e tentou conservar o pouco e vacilante controlo que lhe restava.
Não conseguiu. O medo desapareceu, como também o choque e a estranheza de estar ali a fazer aquilo. A sua mente ficou toldada e ao mesmo tempo focada. O pulsar no
fundo do seu ventre estava cada vez mais intenso, alimentando-se das sensações da sua pele e do seu corpo, sensações que começaram a possuí-la.
O latejar húmido, o ardor, que sentia entre as pernas tornou-se desconfortável. O que ele fazia só o piorava. As suas ancas balouçavam, para aliviar a estranha fome
que ali crescia. Reprimiu gemidos de frustração.
A mão esquerda dele deixou o seio e acariciou-a até à barriga. Ficou ali, enquanto o corpo dela se erguia e baixava involuntariamente, procurando algo.
- Isso é vós a quererdes-me - disse ele, a sua mão acompanhando o ritmo, adivinhando o desconsolo e embaraço dela. - Mas preciso que me queirais ainda mais.
A mão dele deslizou mais para baixo, até às coxas dela e à sua humidade.
Até ao lugar privado que a torturava.
O choque regressou, veemente. Ela juntou as coxas com força, para o deter.
- Ides permitir - disse ele. - Esta noite sois minha, e eu quero-o. Vós também quereis.
Ele apertou suavemente a coxa dela numa ordem sem palavras e afastou-lhe as pernas.
A carícia dele deixou-a perplexa. Agarrou-se mais a ele e procurou o seu beijo para evitar gritar. As sensações tomaram posse dela, fazendo-a querer mais. Ela tentou
conter o que lhe faziam, mas não conseguia. O prazer era concentrado de mais, direto de mais, de uma intensidade quase dolorosa. A sua reação física espantava-a.
As ânsias primitivas que a dominavam assustavam-na.
Ele colocou-se em cima dela, um vulto forte e escuro que emanava um calor físico, em parte estranho mas completamente masculino. Continuou a tocá-la, instando-a
ao abandono, forçando-a a desejá-lo apesar de isso a aterrorizar.
- Afastai mais as pernas. Dobrai os joelhos.
Foi o que fez. As coxas dela abriram-se às ancas dele e os seus braços agarraram-se aos ombros dele. Ele pressionou o corpo dele contra o dela, preenchendo ligeiramente
o vazio latejante e aliviando o desejo ardente e insaciável. Durante alguns segundos perfeitos ela conheceu a ventura de o ter assim enlaçado nela, nos seus braços
e perto do seu coração. A paixão dele pareceu recuar um pouco, tomando menos dela, permitindo-lhe gozar a intimidade.
Não durou. Uma dor crua cortou-a quando ele pressionou mais. Uma sensação de estar a ser violentada obliterou a ternura. Cerrou os dentes e agarrou-se ferozmente
a ele para não gritar.
Ele parou e não se mexeu. A dor diminuiu mas ainda estava lá. Ela aceitou o beijo dele, mas não conseguiu evitar sentir receio de ter dado uma parte dela que nunca
poderia recuperar. Ela podia correr até aos confins da Terra, mas algo dela seria para sempre dele.
Pareceu-lhe que tinha terminado, mas não. Ele mexeu-se, e ela compreendeu que a união inicial tinha sido só o começo. Erguendo-se acima dela, sobrepondo-se, o corpo
dele dominava o dela com cada investida.
Colocando uma mão na cabeceira da cama para se equilibrar, ele tomou-a numa posse rítmica, cadenciada. O que quer que o ato fosse para além daquilo, ela via que
se tratava de uma primitiva reivindicação de direito. Pior, os movimentos dele tentavam-na e exigiam que ela se rendesse àquela reivindicação.
Ele moveu-se com mais força, tomando tudo, dando significado a cada olhar intenso que lhe dirigira e a cada reação inquieta que ela experimentara. Ela tentou fechar-se
ao poder, à aura que criava e às emoções que evocava. Concentrou-se na dor, para se proteger. De qualquer forma, continuava a afetá-la, provocando assombro, lembrando-a
outra vez do aviso dele de que ela não sabia o que oferecia, nem o que ele esperaria.
A cabeça dele inclinou-se para trás. Uma estocada forte e profunda penetrou-a. Ele ficou bem dentro dela, imóvel por um segundo. A ameaça de perigo que definia a
sua persona recuou. Ela sentiu uma tensão endurecer-lhe os músculos debaixo das suas mãos. Depois, subitamente, ambos se desvaneceram no ar.
Ele não voltou a mexer-se. Desceu os olhos para ela e ficou assim tempo de mais, respirando fundo. Ela não conseguia ver-lhe os olhos, e perguntou-se se conteriam
atenção intensa ou a impassividade distraída que ela conhecia tão bem.
Ele afastou-se para o lado, separando completamente os corpos. Afundou-se na cama, ao lado dela.
Um sentimento de humilhação procurava infiltrar-se nela. Mas não fazia progressos. Ela estava para além de qualquer constrangimento. As suas emoções tinham sido
abalroadas. Tudo era ainda demasiado real, e mudara irreversivelmente.
Ela não experimentava nem arrependimento nem triunfo, apenas um sentido agudo do presente. Seria necessário tempo para absorver e compreender o que estava agora
no seu coração.
O silêncio tornou-se tenso e embaraçoso. Ela concluiu que ele não falava porque não havia nada a dizer. bom, ela soubera para o que ia quando lá fora. Não fingiria
que tinha sido algo diferente do que acontecera, nem esperaria que ele o fizesse.
Saindo da cama, tateou o chão à procura do robe. Vestiu-o e afastou-se, debatendo-se com alguns botões.
- Valeu a pena?
Ela voltou-se. Ele não se mexera. Nem sequer parecia estar a olhar na direção dela.
- Valeu a pena, Diane? Deveis importar-vos mais do que eu me apercebi, para fazerdes uma coisa destas.
Surpreendeu-a que falasse no assunto. A intimidade física provavelmente exigia que se dissesse alguma coisa.
- Valeu a pena. Foi um pequeno preço a pagar para salvar o homem que amo. - Achou espantosamente fácil dizer a palavra, ser sincera sobre os seus sentimentos, mesmo
sabendo que ele não os partilhava. O que acontecera naquela cama despojara-a de mais do que roupas ou da sua inocência. Também afastara todas as razões pelas quais
as pessoas guardam as verdades nos seus corações.
- Ele não é merecedor do vosso sacrifício. - Daniel ergueu-se num cotovelo e olhou para ela. - Não posso deixá-lo ficar convosco, mesmo que vós penseis que o amais.
Principalmente agora. Deveis saber disso.
Ele?
Ela dirigiu-se para a porta. - Equivocais-vos. Não o fiz para salvar Andrew Tyndale.
Ele ficou a ver a porta fechar-se atrás do robe de cetim cor-de-rosa, depois voltou a afundar-se na cama.
Voltou a vê-la, ajoelhada ao lado da cadeira, tão linda que o seu coração parara de bater. com aquele primeiro botão soubera que ela não recuaria. Soubera que perdera.
E ficara contente com isso, e tão ávido dela que nada mais importara. Nada.
Balançou as pernas para fora da cama e pegou no robe. Atou-o e pôs-se à janela.
Aquela noite comprometera tudo. Ela. Ele. A sua vida inteira.
Abriu a janela para a cidade silenciosa, adormecida. Conhecia muito bem a vista que lhe proporcionava. Muitas noites ali se pusera, fazendo planos, aguardando. Arquitetara
uma pequena guerra àquela janela, infiltrando-se no campo inimigo, abatendo os guardas, protegendo a retaguarda enquanto se aproximava do objetivo.
Naquela noite, uma mulher atraíra-o para a derrota completa sem sequer o saber.
Valeu a pena...
Ela fizera-o para salvar um homem.
Não era Tyndale.
Ele devia ter percebido. Talvez tivesse. Mas se o tivesse admitido, não poderia ter aceitado a proposta dela. Não teria conseguido levá-la para aquela cama e arrebatá-la.
Precisava de estar irritado com ela para o fazer.
E durante o dia inteiro fora essencial que ele não aceitasse que, se o duelo ocorresse, pudesse não ser Tyndale a estar em risco de morte, e a precisar de ser salvo.
Valeu apena...
Contemplou a rua. Um dos candeeiros tinha um poste mais baixo do que os outros. Nunca tinha reparado. Há anos que se punha àquela janela e nunca vira realmente aqueles
postes.
O seu olhar vagueou de um lado para o outro, procurando outras particularidades que lhe tivessem escapado. Um dos telhados tinha uma saliência na cornija, e a janela
do lado mais baixo de outra casa parecia estar entaipada. Naquela noite, todos os pormenores lhe saltavam à vista, detalhes há muito invisíveis que agora exigiam
atenção.
Mais valia concentrar-se neles do que debater os assuntos que tinha entre mãos, mais prementes, tais como saber de que forma este acordo que Diane comprara com o
próprio corpo lhe ataria as mãos no que respeitava a Tyndale.
Tais como as velhas memórias que o tinham invadido, deitado na cama ao lado dela, fazendo com que sentisse nojo de si próprio e fúria em relação a ela.
Tais como o facto de não ter tratado Diane especialmente bem naquela noite. Ela podia ter sido tola e arrojada, e ele ávido e irritado, mas ele podia ter sido mais
cuidadoso com ela. Não conseguiria tê-la poupado ao choque nem à dor, mas podia ter sido mais meigo, mesmo faltando-lhe a força e a honradez para a recusar completamente.
Valeu a pena. Foi um pequeno preço a pagar...
Lá fora, à luz dos candeeiros, mais pormenores ganhavam forma. Uma das casas tinha apenas quatro degraus até à porta, em vez de cinco. Veio-lhe a imagem de visitas
a não repararem na inclinação e a tropeçarem de cada vez que subiam.
Constatou que dois edifícios que sempre presumira serem idênticos na verdade tinham alturas ligeiramente diferentes.
Foi um pequeno preço apagar para salvar o homem que amo.
As palavras dela surgiram-lhe de rompante, gorando as suas tentativas de as manter ao largo. Olhava fixamente para a rua, subitamente sem nada ver face à repetição
contínua das palavras dela, que o imobilizaram. O tom da voz dela, a calma aceitação e resignação, ecoavam nos seus pensamentos, fazendo o seu peito encher-se de
um estranho peso.
Numa coisa ele estivera certo. O homem que ela procurara salvar não era digno do sacrifício dela.
E tinha sido um sacrifício enorme, dado em simples inocência a um homem que nem sequer lhe deu o valor que tinha. Um homem dominado pelo passado, que alimentava
raiva e ódio porque receava não ter nada dentro de si se eles desaparecessem. Um homem que a tentara muito antes de ela o tentar a ele, e que não gostava que ela
usasse a sua própria volúpia para frustrar o objetivo nascido daquele ódio.
Ela era idiota em se importar sequer com um homem assim, quanto mais amá-lo.
A garganta ardia-lhe e ouviu o silêncio cruel de quando se deitaram um ao lado do outro. Viu-a ir-se embora, orgulhosa apesar do seu desalento.
Foi um pequeno preço apagar para salvar o homem que amo.
Céus.
Virou as costas à janela. Encaminhou-se para a porta de um quarto que muitas vezes, na calada da noite, desejara visitar. Entrou e foi até à cama.
Ela estava deitada de lado com os joelhos encolhidos, vestida com uma camisa branca. Parecia sozinha e indefesa, como se se aninhasse debaixo do lençol para se proteger
de um mundo indiferente.
Ele levantou o lençol e deitou-se ao seu lado. Diane sobressaltou-se o bastante para ele perceber que se ela estivera a dormir, agora já não o fazia.
Estavam novamente deitados um ao lado do outro, numa cama diferente, e num silêncio diferente. Havia muito que ele podia dizer-lhe, mas muito pouco que não fosse
magoá-la mais. Ela não merecia mais golpes. Naquela guerra, ela era um prisioneiro inocente, não um soldado.
- Lamento ter-vos magoado, e não ter sido mais atencioso disse, virado para as costas dela.
Os ombros dela encolheram-se um pouco. - Provavelmente não se pode evitar.
- Não totalmente, mas...
- Não foi completamente horrível, não vos sintais mal. Típico dela, preocupar-se com ele. Quase se riu, e também
esteve perto de chorar. - bom, fico contente por saber que não foi completamente horrível.
- Mas se viestes aqui fazê-lo outra vez, não me parece que queira.
- Estou certo que não. Não vim aqui para isso.
- Então porquê?
- Para vos dizer que me sinto honrado por vos terdes importado o bastante para o fazer, e para ficar convosco um bocado, se vós o permitirdes.
Ela ficou muito quieta. Tão quieta que até podia ter parado de respirar.
- Permiti-lo-eis?
Ela assentiu com a cabeça.
Ele tocou-lhe no ombro. - Vindes para perto de mim, para eu poder tomar-vos nos braços?
Deu-se uma pausa, como se ela tivesse de ponderar. Virou-se. Ele puxou-a para si.
- Não vos preocupeis. Irei embora antes de os criados estarem por aí.
Ela aproximou-se mais. Ele envolveu-a com delicadeza e deu-lhe um beijo na face. Os seus lábios tocaram em humidade. Ela chorara depois de regressar ao quarto.
Partiu-lhe o coração. Ele apertou-a mais contra si, protetor.
Soube-lhe bem segurá-la assim enquanto ela adormecia. Nunca o tinha feito com uma mulher. Nunca partilhava o leito com as suas amantes ocasionais.
Acolheu com surpresa o prazer do seu calor e da sua suavidade de mulher, apaziguadores até, e não intrusivos como ele imaginara que dormir com uma mulher seria.
CAPÍTULO 19
Ela acordou só, sentindo os aromas do cacau e de lilases. O cacau estava numa mesa ao lado, como sempre desde que ela o provara pela primeira vez da chávena de Daniel.
Os raminhos de lilases estavam pousados mesmo ao lado do seu nariz, enfiados entre duas almofadas.
Uma criada tinha trazido o cacau. Daniel devia ter deixado as flores.
Ela pegou nelas e cheirou-as. Vinham de um arbusto que crescia num canto ensolarado do jardim. Ela imaginou-o a ir lá a baixo, no escuro, para cortar o pequeno ramo.
Ele ficara com ela a maior parte da noite. Ela sentira o seu abraço todas as vezes que se mexeu.
Tinha sido maravilhoso estar assim nos braços de alguém. O contacto prolongado e reconfortante mexera mais com ela do que aquilo que acontecera na cama dele. Durante
uma noite memorável, o vazio do seu coração tinha desaparecido. Sumido. Até a dormir se maravilhara com a sua ausência.
Chegou uma criada para a ajudar a vestir-se. Quando acabaram, Diane escreveu um bilhete apressado à condessa de Glasbury, levou-o para baixo para ser enviado de
imediato, e em seguida foi procurar Jeanette.
Encontrou-a nos aposentos dela, no mesmo cadeirão onde estava no dia anterior. Jeanette parecia tão desgastada e cansada que Diane se perguntou se ela teria sequer
ido para a cama.
- Está a acontecer agora. Agora mesmo - disse Jeanette. - O que está a acontecer?
- O duelo. Esperei que fosse amanhã, ou depois... não tão cedo.
- Tenho a certeza de que estais enganada.
- O chevalier veio. Daniel saiu com ele. Estão a encontrar-se agora. Sinto-o na alma.
- Não acredito, Jeanette. Ele disse-me que recuaria.
O olhar de Jeanette voou na direçáo dela. Examinou-a, muito à semelhança do que havia feito naquele primeiro dia no quarto de porcelana de Paris. - Quando é que
ele disse isso?
Diane sentiu-se corar. - Ontem à noite. Ele prometeu.
- Ontem à noite? Dizei-me, onde foi feita essa promessa? Quando? O rosto dela aqueceu.
Labaredas de entendimento e raiva arderam nos olhos de Jeanette. - Quando fazia amor convosco? Não fiqueis tão surpreendida. Já tinha percebido o interesse dele
por vós. Vi-o desde o início.
- Abanou a cabeça e murmurou uma praga. - Um homem diz o que quer que seja em alturas dessas. Pior, é sincero. Até que a luz do dia aparece e ele, lamentavelmente,
muda de ideias.
- Ele não voltará atrás com a palavra dada.
- Existem promessas mais antigas que ele é obrigado a manter. O meu irmão nunca deixou mulher nenhuma interferir com aquilo que jura fazer. Não recua face a nada.
Se ele vos seduziu com essa promessa, foi uma atitude desprezível da parte dele, e dir-lhe-ei isso mesmo quando ele regressar. - A sua expressão ríspida desfez-se.
- Se regressar.
- Ele não me seduziu. E também não entrará neste duelo. Disse-o com toda a firmeza que conseguiu, para tranquilizar a mulher sentada à sua frente, que parecia chorar
já a morte dele.
Jeanette estendeu a mão, procurando ser reconfortada. Diane agarrou-a e colocou o outro braço por cima do ombro de Jeanette.
- Ontem à noite foi a primeira vez com ele?
- Sim.
- Ele prometeu-me que não procuraria seduzir-vos. Já a pensar no duelo, deve ter-se agarrado a uma oportunidade de viver. Tenho a certeza de que, se assim não fosse,
não teria agido de forma tão desonrosa para convosco.
Diane não estava convencida daquilo. A forma como ele a beijara no ribeiro implicava que ele já desistira de quaisquer garantias que tivesse dado à irmã.
- Temos de decidir o que fareis agora - retomou, após respirar fundo para se recompor. - Direi a Daniel que tem de pôr alguma coisa no vosso nome. O bastante para
conseguirdes casar. Apareceram homens que se fariam vossos pretendente se tivésseis alguma fortuna.
- Não quero casar com nenhum desses possíveis pretendentes. Jeanette deu-lhe palmadinhas na mão. - Neste momento talvez
não. Pensai com cuidado, porém. Vereis que tenho razão.
- Seja como for, depois do que aconteceu com Mister Tyndale, não penso que seja provável haver pretendentes.
- Se o dote for suficiente, haverá, confiai em mim.
- Se o dote for suficiente, o próprio Mister Tyndale casaria comigo. Não gosto da ideia de ser negociada como um artigo usado.
Jeanette ergueu os olhos. Tristeza e compaixão transbordavam deles. - Não tenhais ilusões de que existe a alternativa de um futuro com o meu irmão. Há muito pouco
espaço no coração e na vida dele para o tipo de afeto que uma mulher espera. Ele está fechado a emoções dessas. Ele sabe disso, percebeis? Escolheu que fosse assim
porque qualquer outra coisa iria enfraquecê-lo.
Diane sabia que não havia lugar para ela na vida dele. Contudo, Daniel era muito mais complicado do que Jeanette julgava. Um homem daqueles não teria ido reconfortá-la
nem ficaria com ela nos braços durante a noite toda.
Ela experimentara uma paz maravilhosa, segurança, naquele abraço adormecido. Suscitara uma intimidade especial, que era diferente
da intimidade física de que tinham gozado na cama dele, mas que também lhe estava ligada. Ela queria preservar aquela aura especial. Queria preencher o vazio tanto
quanto a sua memória lho permitisse.
No fundo da sua alma, porém, ela sabia que só conseguiria preservá-la se não procurasse mais. Não queria arriscar-se a descobrir que ele tinha sido motivado por
pena ou por culpa, e não por afeto.
Não queria certamente arriscar-se a fazer amor com ele outra vez. Não conseguiria suportar que o fizessem e, em vez daquela doce intimidade, deparar novamente com
o silêncio vazio e constrangedor.
- Já decidi o que fazer, Jeanette. Penso que devia ir-me embora desta casa. Não haverá duelo, mas haverá comentários. Não quero continuar a viver esta mentira, que
nós somos primos. Não quero ir a festas em que as pessoas vão estar a sussurrar acerca do que aconteceu com Mister Tyndale, ou a perguntar-se o que existe entre
Daniel e eu.
- Para onde ireis?
- vou pedir à condessa que me permita ficar com ela enquanto trato das coisas. vou pedir-lhe para contactar alguns dos amigos que tem no campo e para me dar referências
como governanta. Ou talvez haja uma escola onde eu possa ensinar, que fique longe de Londres. Se eu desaparecer antes de o escândalo rebentar, talvez não seja tão
grande assim. Serei facilmente esquecida.
Jeanette assentiu com a cabeça. - Eu tenho algum dinheiro. vou dizer a Daniel para vos dar mais.
- Não, não posso aceitar dinheiro dele agora.
- Vireis visitar-me? Enquanto estou aqui, antes de regressar a Paris?
- Claro que sim. - Curvou-se e abraçou-a.
Jeanette beijou-lhe a face. - Se ele não voltar, talvez possais regressar a Paris comigo. Prometei-me que pensareis nisso.
- Ele voltará, vereis. Não foi bater-se em nenhum duelo.
Chegou uma carta de resposta da condessa, convidando Diane para a acompanhar numa visita a Laclere Park, a propriedade da sua família no campo. Penelope explicava
que seria impossível encontrarem onde se refugiar em Londres, e apresentava-lhe aquela proposta como uma solução melhor, acrescentando que ela própria sentia alguma
necessidade de se esconder.
Diane foi para o quarto dela e fez as malas. Era mais difícil de fazer do que ela julgara e dispensou a criada, para as suas reações não serem observadas.
Esteve sempre à escuta de sons que anunciassem o regresso de Daniel. O que veria refletido nos olhos dele quando estivessem novamente frente a frente? Suspeitava
que poderia ser muito estranho.
Como reagiria ele à partida dela? Ficaria surpreendido? Recetivo?
Aliviado?
Ela sabia que ele compreenderia que se ela ficasse ali, dependente dele, a situação acabaria por se tornar desagradável. Nem todos os lilases do mundo, todo o amor
do coração dela, conseguiriam fazer daquilo algo diferente do que seria realmente.
A confiança dela na promessa dele vacilava com o passar das horas. Quando desceu do quarto para ir para a biblioteca, já estava muito abalada.
Abriu uma janela que dava para a rua e pôs-se à espera e à escuta com tanta atenção que a cabeça lhe começou a doer. Quanto mais tempo passava, mais a preocupação
aumentava, fazendo-a sentir-se enjoada e doente de apreensão.
Passavam carruagens e cavalos, e ela ouvia cada um deles. Por fim, quando estava quase a desistir, quando tinha começado a chorar a sua perda, parou um cavalo à
frente da casa.
Ela identificou os sons de um moço a levar o cavalo.
Erguendo-se de um salto, correu pelo corredor até ver a entrada.
Era Daniel.
Claro que era. Quem mais seria?
O alívio que lhe acelerara o coração respondeu à pergunta. Ela temera que fosse o chevctlier, trazendo más notícias.
- Ide lá a cima à vossa irmã - disse ela. - Ela está doente de preocupação. Ide agora. Eu fico na biblioteca.
Ele subiu a escadaria. Ela esperou até ver as suas botas desaparecer e depois voltou para a biblioteca.
Reviu o rosto dele quando reparou nela. Tinha as memórias da noite anterior nos olhos, mas também algo mais. Ela reconhecera laivos da velha distração.
Tornou-se mais difícil olhar para ele quando ele entrou por fim na biblioteca, silenciosamente, e fechou a porta.
Agora não havia distração. Os olhos dele ardiam com toda a atenção que ele conseguia reunir. A sua boca era uma linha direita.
- Jeanette está sossegada? - perguntou ela.
- Sim. Louis e eu encontrámo-nos com Tyndale e o padrinho dele. Foi resolvido de forma honrada.
- Vós retirastes o desafio?
- Disse que o faria.
- Não duvidei.
- Uma ova.
A preocupação devia estar-lhe estampada no rosto quando chegara a correr à entrada. -Jeanette está muito aliviada, tenho a certeza.
- Não penso que seja essa a reação dela, de todo. Está estupefacta, contudo. Há muito tempo que não sou capaz de a surpreender, por isso retiro daqui alguma satisfação.
Mas de nada mais. Ele não gostara de fazer aquilo. Ferira-lhe o orgulho, fazer figura de covarde e desistir. Desagradava-lhe que ela o tivesse forçado a fazê-lo.
- Obrigada.
O que lhe deu direito a um olhar sombrio.
- A minha irmã disse-me que ides visitar a condessa.
- Pensei que seria melhor...
- Onde fostes buscar a ideia de que vos deixaria ir embora agora?
Falou como se, mais do que qualquer outra coisa, a ideia lhe parecesse curiosa. Porém, ela não conseguia ignorar a raiva que emanava dele, muito à semelhança do
que acontecera no ribeiro. Ele refreava-a, mas essa contenção vinha apenas intensificar o efeito que surtia no ar, e nela.
Ele aproximou-se dela. - Acabo de ir ter com um homem que desprezo e renunciei a matá-lo porque vós o exigistes de mim, e enquanto eu o fazia, vós fazíeis as malas.
- Agora não posso ficar. Bem sabeis.
- Não vejo porque não. - Ele aproximou-se mais. - A bem ver, agora tendes de ficar.
- Sabeis porque não posso ficar. Estaria errado.
- A noite passada foi errada?
Ele estava a confundi-la, pondo-se assim tão perto dela. A deixá-la baralhada. - Isso foi diferente.
- Talvez penseis que a noite passada não tenha sido errada porque vos destes por uma causa nobre. Para salvar uma vida. bom, se tendes queda para sacrifícios desses,
deveis ficar. Dizei-vos que desta vez o fazeis para salvar a minha alma. Há uma vida inteira de sacrifício nessa empreitada.
Disse-o com ironia, mas o calor do seu olhar e o tom meigo da sua voz contradiziam a leveza que ele pretendia incutir nas suas palavras.
Ela ficou a olhar para ele, incapaz de pensar numa resposta a semelhante desafio. Veio-lhe à mente que seria uma boa forma de o Diabo seduzir as pessoas. Deveras
eficaz, usar as inclinações de uma pessoa para a conduzir ao Inferno.
- Quando tomastes esta decisão de ir embora? - perguntou ele.
- Ontem à noite? Virdes até mim foi o derradeiro ato de amizade?
Ele perturbava-a mais do que nunca, ali a olhar para ela, alto, à sua frente, e a exigir a sua atenção. Tinha dificuldade em pensar direito. A referência à noite
anterior teve como único resultado pôr-lhe o coração aos pulos.
- Antes - respondeu ela. - Depois do ribeiro, e da partida de cartas.
- Porque compreendestes o quanto vos queria? Isso assustou-vos? Ela desviou o seu olhar do dele e colocou alguns passos entre
eles. Não estava a gostar da conversa, nem da forma como ele persistia em esmiuçar os seus motivos e a sua determinação.
- Não pode ter-vos assustado por de mais, se viestes ter comigo ontem à noite.
- Para ontem à noite eu tinha uma razão. Uma boa razão. Ofereci uma noite, porém, não mais. Não vou ser a vossa Margot. Não consigo. Aprendi isso ontem à noite,
pelo menos. Penso que estas coisas são diferentes para as mulheres do que são para os homens. E agora tenho a minha decisão tomada e vós devíeis ter a gentileza
de a aceitar.
Sentiu-o atrás dela, perto de mais. Em seguida as mãos dele estavam nos seus braços e a respiração dele no seu cabelo. Um beijo leve no alto da cabeça fez-lhe disparar
sensações por todo o corpo.
- Não sou tão gentil quanto isso. Não abro mão facilmente daquilo que quero. Nem estou a pedir-vos que fiqueis aqui a viver como minha amante, Diane.
Ela rodou para escapar ao toque dele e encarou-o. - Não estais? Então não quereis... Claro, provavelmente não foi o que esperáveis.. Quereis que fique aqui como
dantes, apenas como dama de companhia de Jeanette...
A resposta atrapalhada divertiu-o. - Agora nunca poderíeis ser apenas a dama de companhia de Jeanette. Jamais. Tenciono voltar a fazer amor convosco, e essa é definitivamente
uma razão pela qual não posso deixar-vos partir. Visto que não sou homem para importunar convidados nem corromper inocentes, há apenas uma forma de resolver as coisas.
Casaremos.
O comunicado deixou-a sem reação.
- É a única solução, Diane.
- Não é. Ambos sabemos que não é.
- Verdade. Podia ter mandado Hampton mudar a tal obrigação para vós terdes acesso imediato ao rendimento. Foram essas as instruções de Jeanette, mesmo agora.
- Agora não poderia aceitá-lo.
- Porque causei o transtorno de continuar vivo? Desgraçada de vós, eu não ter morrido hoje num duelo. Ter-vos-ia garantido um futuro confortável e seguro. Devíeis
ter dado mais peso aos vossos próprios interesses ontem à noite.
- Parai de distorcer o que eu disse. Eu não...
- Não faço tenção de pôr o que quer que seja no vosso nome, apesar da insistência da minha irmã. Não vos facilitarei a partida. Casaremos.
Ela pensou saber a razão daquela prontidão toda. Era a mesma culpa que provavelmente o levara ao quarto dela na noite anterior. Ela teria preferido não ver mostras
dela. - Estou a ver. Decidistes fazer a coisa certa. Compreendo. No entanto, não é necessário. Não esperei...
- Não esperastes nada. Eu sei disso. Não mostra que tenhais grande opinião de mim. Uma jovem tem o direito de esperar algo do homem que lhe tira a inocência.
- Não foi culpa vossa.
- Já recusei ofertas mais flagrantes.
Um casamento por obrigação era a última coisa que ela queria, e logo com este homem, entre todos os homens. - É amável da vossa parte. Muito decente. No entanto,
não penso que devamos fazê-lo. Vós não quereis realmente fazê-lo, e eu também não estou certa de o querer.
- Diane, existem muitas razões para isto se revelar um erro, e a maior parte delas tem a ver com o meu temperamento. Mas deveis fazê-lo, mesmo sem terdes a certeza.
Calará os rumores sobre Tyndale, e sobre vós e eu.
- Também a minha ausência. O meu desaparecimento.
- Já disse que não posso deixar-vos partir.
Ela não gostava que ele continuasse a insistir naquilo, como se controlasse tudo o que se passava. - Sou eu que tenho a palavra final. É uma escolha minha. Não preciso
de dinheiro nenhum da vossa parte para o fazer, por isso não podeis deter-me se eu estiver determinada.
- É verdade. Só posso dar o meu melhor para me certificar de que a determinação não é assim tanta. - Colocou-lhe a mão na face e olhou-a nos olhos. - Tenho de vos
mostrar que está em meu poder garantir que não? Bastou o toque dele para lho mostrar. Sentiu um calor a descer-lhe do pescoço até aos seios, e o olhar dele forçou
o tempo a abrandar. Ela constatou que ele sempre soubera do efeito que tinha nela. A indiferença dele havia-a protegido, fazendo as vezes de um escudo que ele usava
para bem dela, porque ele sabia que ela seria uma presa fácil.
- Estais apreensiva por causa da noite passada? É frequente a primeira vez não ser agradável para a mulher. De futuro não será assim.
Ela sentiu a face corar por baixo da mão dele. Baixou os olhos e encolheu os ombros. Sim, estava apreensiva por causa da noite anterior, mas não da forma a que ele
se referia. A dor fora a parte fácil. - Nem tudo foi desagradável.
- Assim o dissestes. Não foi completamente horrível. Prometo-vos que da próxima vez não será de todo horrível. - Levantou-lhe : o queixo com o dedo, para ela ter
de olhar para ele. - Aceitais a minha proposta, Diane?
A forma como olhava para ela, tão belo e promissor na sua ternura, tão cativante no seu poder misterioso, convenceu-a a pôr de parte o receio.
O coração dela queria aceitar. O seu amor ansiava a euforia. Ambos estavam desejosos de ser arrebatados por ele e pelo feitiço mágico e estimulante que ele urdia
agora.
O seu bom senso não lhe permitia a capitulação total. Sussurrava-lhe que ela em verdade não sabia o que ele lhe traria. Os avisos
de Jeanette ecoavam-lhe nos ouvidos. Navegava em águas desconhecidas. Havia camadas dele que ela ignorava e possivelmente nunca conheceria.
- Estais muito enganada quanto a uma coisa. Não me limito a fazer o que está certo. Eu quero isto. Espero que tenhais falado verdade ontem à noite e que também o
queirais.
Falou com aspereza, como se as palavras fossem difíceis de pronunciar. Parecia que não gostara de o admitir, de fazer aquela declaração, e que lhe fora arrancada
do coração.
Inclinou a cabeça e beijou-a. Foi o beijo mais meigo que ele alguma vez lhe dera. Oferecia cuidado e apoio e sugeria peripécias futuras. Prometia afeto, quiçá amor.
Preenchia-lhe o coração, tal como o seu longo abraço o havia feito na noite anterior.
O beijo sossegou-a mais do que qualquer outra coisa. As profundezas misteriosas e desconhecidas subitamente não importavam. Nem o perigo que ela pressentira enquanto
faziam amor. Independentemente de como tudo se desenrolasse, ela sabia que naquele momento as intenções dele eram boas.
- Aceitais?
Apesar da sensação de estar a dar um passo arriscado, ela assentiu com a cabeça. No meio do torpor que ele criava, parecia a única coisa certa a fazer.
Ele sorriu como se a decisão dela tivesse sido importante para ele. - vou dizer à minha irmã - disse ele, afastando-se. - Iremos para a Escócia, se concordardes.
O casamento será legal e as nossas histórias ambíguas não interferirão. Gostaria que ela e Paul nos acompanhassem e servissem de testemunhas. É aceitável para vós?
- Claro. Contudo, visto que mal perguntastes se o casamento me era aceitável, a solicitude deste novo tratamento é uma surpresa agradabilíssima.
As palavras dela apanharam-no quando ele se encaminhava para a porta. Parou e olhou para trás. - Lamento dizer que provavelmente não durará.
Acabava de lhe ser dado um aviso cordial e ela sabia-o. - Tenho bastante certeza de que não. As pessoas não mudam assim tão rapidamente.
- Não, imagino que não.
CONTINUA
CAPÍTULO 11
Claro que as possibilidades de fabrico não são o meu interesse principal. Sou acima de tudo um cientista.
Gustave acenou com a cabeça em resposta à declaração tranquilizadora e honesta de Sir Gerome Scot. Scot era um colega cientista e impunha-se gentileza. Era também
Scot quem pagava a refeição que Gustave comia agora num clube privado a convite dele.
No entanto, não queria saber de experiências com químicos. Tinha a mente ocupada com outros problemas.
Já estava atrasado. Tyndale queria que fosse rapidamente preparada uma demonstração da descoberta e até então Gustave não havia feito progresso nenhum nos preparativos.
Teria ajudado se pudesse ter sido uma demonstração pequena, como a experiência que levara a cabo em Paris. Mas não, Tyndale queria saltar essa etapa. Queria uma
coisa maior, que pudesse ser usada para obter uma patente e atrair industriais.
Precisava de comprar materiais e químicos. Precisava de encontrar um edifício, fora de mão, que não suscitasse curiosidade a ninguém. Precisava de se movimentar
por Londres discreta e subtilmente.
Scot papagueava em francês, como era o dever de qualquer homem civilizado e educado. Até os criados deste clube exclusivo
sabiam o suficiente para atender ao conforto de Gustave. Infelizmente, uma vez fora dos patamares mais elevados da sociedade deste país bárbaro, ninguém falava francês,
muito menos latim. E Gustave não sabia inglês.
A situação era impossível. Era necessário que descesse consideravelmente no mundo para fazer as coisas funcionarem, mas não conseguia comunicar com os homens que
precisava de abordar.
Scot lançou-se numa entediante explicação de mais um processo químico. Gustave tentou parecer interessado, mas passados cinco minutos algo lhe chamou a atenção.
Entrara um jovem na divisão, vindo de outra sala, que olhou à volta e se dirigiu a uma mesa onde estava um amigo. Era o seu antigo secretário, Adrian Burchard.
Scot notou a distraçáo. Olhou na direção de Adrian e fez um esgar. - Parece deslocado, não parece?
- Sim. O que faz ele aqui?
- É membro. Não se pode exatamente mandar embora o filho de um conde, pois não? Mesmo sendo óbvio que a paternidade é apenas legal.
A notícia foi surpreendente. Adrian nunca dissera ser filho de um conde quando se candidatara à colocação em Paris. Quem imaginaria tal coisa, com aqueles olhos
escuros mediterrânicos.
- Então, a mãe dele... - Gustave ergueu uma sobrancelha muito eloquente.
- Obvio, não é? Foi nobre da parte de Dincaster ter aceitado sequer o rapaz, é o que digo. Bem, é um filho terceiro, por isso são poucas as hipóteses de ser ele
a herdar, imagino eu. Tem o bom senso de ser discreto, não que seja possível com uns olhos daqueles. Tem estado por conta dele desde que saiu da universidade, foi
o que ouvi. Nem um tostão do conde, que é o que deve ser. Faz alguns trabalhos menores para os Negócios Estrangeiros esporadicamente. Secretário e coisas parecidas,
uma vez ou outra. Há no nosso governo quem não ligue por aí além ao verdadeiro nascimento de uma pessoa, lamento dizer. " ofc
Adrian alegara ter secretariado um diplomata qualquer, ou coisa assim. Fora um pormenor que Gustave presumira ser mentira e descurara generosamente.
- Que interessante. - Que útil, de facto.
Gustave duvidava que Adrian tivesse anunciado a alguma pessoa do clube que por vezes secretariava homens menos ilustres do que embaixadores. Não admirava que raramente
saísse de casa em Paris e que passasse os seroes naquele quarto de sótão.
Ficou de olho em Adrian durante o resto da refeição. Calculou o tempo de terminar a sua refeição para coincidir com a do secretário. Fez por sair do clube ao mesmo
tempo que o filho de conde de aspeto estrangeiro.
A expressão de Adrian registou alguma surpresa quando Gustave se reuniu a ele à espera do chapéu. Não houve, porém, menção da sua associação anterior.
Era tudo o que Gustave tinha necessidade de saber.
Seguiu Adrian para a rua e teve de estugar o passo para o apanhar. - Preferis ser mal-educado com o vosso antigo empregador?
- Fiquei surpreendido por ver-vos, foi tudo. Estais a desfrutar da vossa visita?
- Estou ocupado de mais. Penso que fui precipitado em dispensar-vos. Ser-me-ia útil a ajuda de alguém que conhece esta cidade.
- Há muitos secretários e escriturários disponíveis. Se pedirdes aos vossos amigos, eles arranjam-vos um.
- Preciso de um que fale francês.
- Não deve ser muito difícil.
- Preferia alguém conhecido. - Gustave sorriu. - Como vós. Tinham chegado a uma esquina. Adrian parou e voltou-se para
ele. - Não estou à procura de emprego neste momento.
- Não seria oficial. Não seria público - esclareceu Gustave, mostrando-lhe que sabia quais eram as suas verdadeiras apreensões.
Adrian olhou para todos os lados e finalmente para um edifício no outro lado da rua. - Lamento não poder ajudar-vos.
- Seria muito privado. Eu próprio desejo discrição. A nossa necessidade mútua nesse aspeto assegurará a discrição do acordo.
- Lamento. Não posso.
- Acho que podeis. Acho que deveis.
- Devo?
- Certamente não quereis que procure a ajuda de outros cientistas e confidencie que o meu próprio secretário é orgulhoso de mais para me ajudar.
Adrian olhou de repente para ele, incisivo. A sua irritação desvaneceu lentamente, substituída por resignação. - Suponho que possa ajudar-vos, oficiosamente, claro.
- bom. Não é todos os dias. com efeito, depois de se atender a algumas questões, não precisarei muito mais de vós. O mesmo salário, digamos? Quinze dias?
O queixo de Adrian contraiu-se, como se falar de dinheiro fosse um insulto. Ali em Inglaterra, onde se sabia que era filho de um conde, mesmo que de legitimidade
duvidosa, era mesmo.
- Certo. Agora vou prestar-vos um primeiro auxílio, uma vez que precisais claramente dele. Do outro lado da rua está um homem de barba que vos observa desde que
parámos aqui. Provavelmente é um carteirista que vos identificou como estrangeiro.
Alarmado, Gustave deu meia-volta. Assim que o fez, um homem de barba, mal vestido, de casaca e chapéu gastos, começou a descer
a rua.
- Ficai alerta a estas coisas, msieur. Inglaterra tem os melhores ladrões do mundo.
- Miss Albret?
O chamamento veio de uma carruagem que passava na rua. Diane deparou com os olhos perplexos de Vergil Duclairc à janela.
Ao seu lado, na sombra, vislumbrou o perfil perfeito de Julian Hampton, o amigo e jovem advogado de um seleto punhado de clientes que incluía Daniel e a família
Duclairc. Conhecera Mister
Hampton no jantar da condessa, um homem de pungente beleza, dono de uma reserva cristalina. Ela passara o serão inteiro à espera que ele falasse em poesia, caso
se dignasse de todo falar.
Ela continuou o seu caminho, retomando a descompostura mental que dava a Daniel St. John desde o momento em que o vira sair da casa naquele dia de manhã.
Sentiu uma pequena movimentação de cavalos a bater os cascos e a resfolegar. Subitamente, Vergil caminhava ao lado dela.
- Miss Albret, estais só? Quem vos escoltava perdeu-vos de vista? Ficai comigo e eu encontro o criado de St. John.
- Ninguém me perdeu. Tenho uma coisa para fazer e vou fazê-la. E agora um bom dia para vós.
Ela dobrou uma esquina, deixando-o para trás. Ele apanhou-a. - Estais sozinha? Mas não podeis andar a pé sozinha.
- Claro que posso. É o que tenho estado a fazer no último quarto de hora, mais ou menos.
Uma carruagem colocou-se ao lado deles. O veículo de Mister Hampton dera meia-volta e agora acompanhava-os.
Vergil colocou-se à frente dela, impedindo-a de prosseguir.
- Miss Albret, dar-vos-emos a nossa carruagem. O cocheiro levar-vos-á aonde quer que desejais ir. Devo insistir.
Começava a tornar-se severo e autoritário.
Naquele dia ela não estava na disposição de acatar ordens de ninguém, muito menos de um homem.
- Miss Albret, ou ides de carruagem ou aceitais que vos escolte a pé. Uma ou outra deixar-me-ão em sarilhos com o vosso primo, já que ele me avisou para me afastar,
mas, por favor... - Apontou a carruagem.
- Estou a andar porque quero andar. Não consigo impedir-vos de me acompanhar, se persistirdes. Quanto aos avisos do meu primo, ele não ficará preocupado. Provavelmente
sabe que estais arrebatado por uma certa cantora de ópera e não tendes qualquer interesse em
mim. Não que me importe o que Daniel St. John pensa, ou sabe, ou as preocupações que tem.
Vergil pestanejou de surpresa. Se fora espanto pela sua falta de consideração pela opinião de Daniel ou a prova de que toda a gente sabia da sua cantora de ópera,
ela não percebeu.
- Falais com muita franqueza, não falais?
- As minhas desculpas. Mas tenho andado a falar com tanta delicadeza e sensaboria nestas últimas semanas, que a franqueza acumulada hoje de manhã transbordou.
Ele foi até à carruagem e disse algo pela janela. O veículo acelerou e virou na rua seguinte.
Vergil caminhava ao lado dela, tentando protegê-la dos encontroes. - Onde ides?
- Onde me dissestes para ir, a uma das sociedades que seguram navios. Soube de uma chamada Lloyds, na City1.
- Vai ser uma longa caminhada. Seguramente que St. John vos teria levado.
Ela cerrou os dentes. Daniel prometera levá-la "dentro de alguns dias". Tinha sido há duas semanas.
Claro, ele não via necessidade para pressas. Que lhe importava a ele? Não era ele quem estava à deriva no mundo, sem história, sem família, sem casa. Ele não trazia
um vazio no coração que implorava ser preenchido com alguma coisa, com qualquer coisa. Podia dizer-lhe para esperar até não ter absolutamente mais nada que fazer,
o que seria nunca.
Andavam há meia hora quando o vulto de um cavalo os mergulhou na sombra.
- Levastes o vosso tempo a chegar, St. John - comentou Vergil. Diane estacou. O seu olhar subiu pela figura encorpada do animal até ao rígido cavaleiro que tapava
o sol.
1 Área do centro de Londres onde estão concentradas várias instituições financeiras. (N. da T.)
- Não quis passar por cima de ninguém - disse Daniel. - Hampton vem atrás, e se regressardes pelo mesmo caminho deparareis com a carruagem dele. Obrigada, e a minha
prima pede-vos desculpa pela demora que isto vos causou. Não pedis, Diane?
- Não são necessárias desculpas - disse Vergil, afastando-se. Daniel desmontou. - O que vou eu fazer convosco?
- Sair-me da frente, hoje seria a escolha mais avisada. - Retomou a marcha.
Ele acompanhou-a, com o cavalo pela rédea. A multidão afastava-se como o Mar Vermelho à passagem do enorme corcel.
- Uma mulher não anda sozinha em Londres. A minha irmã não vo-lo explicou?
- Vejo imensas mulheres a andarem sozinhas.
- Mas isso é diferente. São pobres e têm de ir para os empregos.
- Também sou pobre e tenho de ir trabalhar. Ele ignorou a primeira parte. - Trabalhar onde?
- vou à Lloyds.
- Ah! Então esta rebelião é o resultado de um amuo por eu ainda não ter tratado disso.
Ela parou e pôs-se de frente para ele, tão furiosa que os seus olhos lhe doíam. - Não troceis de mim. É por isso que aqui estou. E por isso que saí da escola. Não
foi para vos divertir, nem foi pela vossa irmã, por muito que goste dela. Se esperar que vós atendais a isto, ficarei velha primeiro. Se eu não soubesse que sou
completamente insignificante para vós, suspeitaria que me mentistes no jardim para me empatar.
Rodou nos calcanhares e continuou a andar. Ele foi atrás dela.
- Ide-vos embora.
- Devo insistir em acompanhar-vos. As ruas não são seguras e estamos longe de mais para chamar Paul ou outra pessoa.
Ela ignorou o homem que caminhava ao seu lado, ao contrário de todos os outros transeuntes. Os dois, mais o enorme cavalo que seguia ao lado deles, resfolegando
pela rua, atraíam muitas atenções.
- Estamos a dar espetáculo - advertiu Daniel.
- Da próxima vez visto a minha roupa da escola. Quando fazia isso em Paris ninguém reparava em mim.
- Se estiverdes com as vossas roupas da escola, ninguém responderá às vossas perguntas. Na realidade, hoje também ninguém o faria, não fosse o facto de eu estar
convosco.
Podia ter dito logo explicitamente: "Não sois nada sem mim. Eu fiz-vos."
- E o que achais? - ripostou, com os lábios contraídos para controlar a raiva. - Veremos.
A Lloyds ficava na Royal Exchange, que, com o seu pórtico clássico, lhe fez lembrar uma igreja inglesa. O espaço interior imenso e quadrado, repleto de mercadores
e homens de negócios, estava ladeado de mercadorias. Daniel pegou-lhe no braço para ela não ser engolida pela multidão e fê-la subir alguns degraus até uma sala
cheia de homens.
- É a Lloyds - disse. - Os corretores estão naquela parede. vou apresentar-vos a Thomson. Ele conhece-me.
Ela não se refugiou à sombra de Daniel, por muito que quisesse. Acercou-se da secretária de Mister Thompson com toda a distinção que conseguiu e olhou o empregado
diretamente nos olhos.
O jovem ficou corado, começou a gaguejar e deixou cair a caneta ao chão quando ela lhe sorriu.
Diane olhou de lado para Daniel, deparando-se com Daniel a fazer-lhe o mesmo.
Mister Thompson teve imenso gosto em rever Daniel. Daniel apresentou-a e tentou impor a sua autoridade na entrevista, mas ela exigiu a atenção de Mister Thompson
com mais um sorriso.
Ele deu-lha de bom grado. Por baixo dos esparsos e grisalhos fios de cabelo, o seu couro cabeludo ruborizou-se. Esquecendo a presença impositiva de Daniel St. John,
aguardou o pedido de Diane com um sorriso radiante.
- Procuro informação sobre um parente meu, Jonathan Albret. Esteve nos transportes marítimos há alguns anos, à volta de quinze.
Espero que, se a vossa sociedade tiver segurado algum dos seus navios, possais ter algo que me ajude na minha busca.
- bom, certamente que podemos ver o que temos. Posso pedir aos nossos escriturários que verifiquem e que vos enviem informação.
- Seria possível fazê-lo agora? Ficar-vos-ia muito grata. Há mui-
tos meses que procuro.
Daniel soltou um suspiro. - Mister Thompson está muito ocupado...
- Não tão ocupado que não possa ajudar uma senhora em apuros. - O rosto de Mister Thompson converteu-se numa máscara de simpatia. Deu ordens ao escrevente e uns
enormes tomos encadernados começaram a dar entrada.
Mister Thompson inclinou-se por cima do ombro dela para explicar como eram registadas as entradas. - Sabeis os nomes dos navios ou dos comandantes?
Ela olhou para Daniel, que abanou a cabeça.
- Não, só o nome do dono.
- Ah, isso torna as coisas mais difíceis. Temos de examinar esta coluna, mas assim não há uma ordem. Tomai, ficai com este, e eu ficarei com o outro e o meu empregado
fará o terceiro.
Diane ofereceu um sorriso de gratidão ao seu rosto muito próximo. Até as entradas do homem ficaram vermelhas.
- Mister St. John, se tiverdes outros assuntos a tratar na cidade, tenho a certeza de que Mister Thompson e o seu escriturário me assistirão - disse Diane.
- Não receeis, St. John, vossa prima estará a salvo connosco.
- Ficarei aqui - foi a resposta firme.
Eram só três tomos, por isso ele limitou-se a sentar-se numa cadeira ao pé da janela enquanto Diane e os seus dois deslumbrados assistentes os folheavam.
Duas horas mais tarde, Diane tinha provas irrefutáveis de que o seu pai não segurara navio algum através da Loyds durante os seis anos que precederam o seu desaparecimento.
Entrara na Royal Exchange temerária e confiante, certa de fazer progressos. Agora, ao fechar o pesado volume encadernado, apoderou-se dela um desalento profundo.
Mister Thompson reparou. - Lamento muito. Podemos prócurar mais para trás se quiserdes.
- Não, obrigada.
Os dois homens olhavam para ela com a expressão de quem cortaria uma perna para a poupar àquela infelicidade. O que só a fez sentir-se culpada pela sua pequena sedução.
- Vinde, Diane. - A voz de Daniel estava mesmo por trás dela. Ela não queria olhar para ele. Provavelmente estaria aborrecido
por ela ter causado tantos incómodos para coisa nenhuma.
Forçando-se a engolir a desilusão que sentia, dizendo a si própria que havia outras sociedades de seguros e que isto não ditava o fim da sua esperança, aceitou que
ele a acompanhasse até à rua. Quando ele estava a desatar as rédeas do cavalo, viu-lhe o rosto.
Não era irritação. Era outra coisa, o que lhe endurecia a expressão e lhe ardia nos olhos.
Caminharam para oeste em silêncio. Ela sentiu-se aliviada. Era desilusão a mais para responder a qualquer admoestação com a atitude determinada que tivera duas horas
antes.
De qualquer maneira, conseguia praticamente ouvi-la. Era o tom indiferente das velhas perguntas da escola. Estais satisfeita agora? Bastar-vos-á for uns tempos?
Chega terdes desperdiçado a tarde de três homens na vossa demanda?
À medida que se aproximavam de Temple Bar, o caos e o ritmo das ruas mudaram bruscamente.
As pessoas caminhavam um bocadinho mais depressa. Os pobres e os plebeus iam em massa na direção do rio enquanto as carruagens e as pessoas mais bem vestidas se
apressavam a ir na outra direção. Daniel parou e espreitou pela rua estreita, inclinando a cabeça.
A brisa trazia um burburinho vago.
- Outra manifestação - disse Daniel. - Perto do Parlamento. A sessão de hoje deve ter começado. - Ele pegou no braço dela e
voltou pelo caminho que acabavam de percorrer. - Teremos de ir por outro caminho. Infelizmente, isso quer dizer que passaremos por uma parte da cidade pouco agradável.
Depararam com uma travessa calma, sem ninguém. As lojas tinham fechado as portas.
Daniel conduziu o cavalo até uma pedra de montar. - Não há como prever o que encontraremos. Será melhor se formos a cavalo. Subi para a pedra e eu ajudo-vos a subir,
para trás de mim.
Ela pôs-se em cima da pedra. - Nunca andei a cavalo.
- Então o dia de hoje será o primeiro em muitas coisas, não é verdade? - Ele montou e depois inclinou-se para ela. - A primeira vez que andais a cavalo e a primeira
vez que usais os vossos encantos até terdes dos homens aquilo que quereis. - A expressão dele voltou a endurecer ao dizer a última parte.
O braço dele rodeou-lhe a cintura, numa proximidade desconcertante. - E também a primeira vez que tendes as pernas em exibição para Londres inteira ver. Isto só
funcionará se puxardes a saia para cima, já que tendes de montar com uma perna para cada lado. Fazei-o agora e eu puxo-vos.
Ela obedeceu. Meia-volta e estava atrás dele. A saia subiu-lhe, amarfanhada, até aos joelhos.
- Cobri-vos o melhor que conseguirdes com a vossa capa. Depois segurai-vos a mim para não cairdes.
Ela resistiu à última ordem, preferindo agarrar a parte de trás da sela.
Quase caiu, e o animal ainda mal começara a andar. Hesitante, colocou os braços à volta do corpo de Daniel.
Não era um abraço. Nem por isso. No entanto, a ligação, o calor, inebriaram-na por completo. Tal como o abraço de despedida de Madame Leblanc, na escola, a deixara
sem fôlego, tal como o trato de Daniel na carruagem a deixara vulnerável, estar agarrada a ele, mesmo sem intimidade, provocou uma reação imediata.
O vazio tomou conta dela e depois gritou de alívio, quase gemendo, sentindo o afluxo do mais doce, mais humano, contentamento.
Vede, não estais completamente só, sussurrou o seu coração. Há outras maneiras. Outros lares, e outros amores, para além dos da família.
Fora avisado regressarem a cavalo e não a pé. Passaram por ruas de mau aspeto. As pessoas que nelas perambulavam estavam agitadas pela manifestação na qual nem sequer
tinham participado. Daniel passava a trotar a um ritmo rápido, ignorando os gritos atirados na direção deles.
Subitamente, parou o cavalo. Espreitando por detrás do corpo de Daniel, ela viu que se formara uma multidão na rua à sua frente. Daniel virou a montada, mas também
não paravam de chegar pessoas ao cruzamento que acabavam de atravessar.
Praguejando baixinho, voltou a virar e avançou a trote. - Deve ter havido violência perto do Parlamento. As notícias correm. Agora segurai-vos bem.
Ela agarrou-se muito bem. A fealdade das expressões dos rostos à sua volta convertia a humanidade do grupo na ferocidade de uma multidão. Lembrou-se do ataque à
saída da ópera, em Paris, e preocupou-a que alguns daqueles pobres diabos pudessem ter facas.
Valendo-se da corpulência do cavalo, Daniel abriu caminho. Alguns homens tentaram não se desviar e só saltaram para o lado no último minuto. Choveram pragas e obscenidades.
- Porque estão eles irritados connosco? Não estamos no governo.
- Estão irritados com qualquer pessoa que possa comer sem contar os tostões que lhe sobram.
De repente os rostos que os olhavam com desprezo não pareciam tão falhos de humanidade. - Se estão com fome, imagino que isso desculpe o comportamento deles.
Ele virou para ela uns olhos inflamados. - Não há desculpa.
Nesse preciso momento, um homem agarrou a cabeçada do cavalo. Outro agarrou no tornozelo exposto de Diane, que, horrorizada, o tentou sacudir, conseguindo apenas
que ele começasse a rir-se. "í
Grunhindo, Daniel deu-lhe um pontapé com tanta vontade que o homem voou e caiu de costas na sarjeta.
Diane viu por instantes o rosto de Daniel enquanto ele reagia à ameaça. Por um momento ele pareceu tão duro e cruel, tão primitivo e implacável, que ela quase o
largou e se virou para trás. Depois pestanejou e aquele aspeto desapareceu tão rápido que ela se perguntou se o teria imaginado.
Daniel passou o cavalo para um ritmo mais rápido. A multidão afastou-se. Não houve mais desafios.
Em breve a multidão rarefez-se e desapareceu, juntamente com a pobreza dos edifícios. O ruído surdo e familiar ainda vogava na brisa, mas todas as outras provas
de desassossego tinham cessado.
- Tendes de descer agora - instruiu Daniel, parando o cavalo.
- Outras pessoas não devem ver-vos assim.
Fizeram a pé o resto do caminho até à casa dele. Ele não disse nada, mas ela sentiu que ele queria fazê-lo. Não eram coisas agradáveis, disso tinha a certeza. O
seu silêncio tinha uma nota áspera.
- Vinde ao escritório, por favor.
Ela sentiu-se como se sentia na escola, quando era chamada ao gabinete da diretora. Detestava sentir em si aquela reação. Melindrava-a estar em tão grande desvantagem,
e nem sequer saber porquê, ou o que era que ele esperava dela.
Pelo menos ele não se sentou atrás da escrivaninha e não a examinou como se fosse uma aluna malcomportada. Em vez disso, pôs-se à janela e, como fazia tantas vezes
na presença dela, olhou para fora, em vez de olhar para ela.
O que também não lhe agradava nada.
- Sei que ficastes infeliz com o dia de hoje. Lamento. - Parecia suficientemente sincero. Então porque sentia ela que ele não o lamentava completamente?
- Talvez não devais persistir muito em procurar parentes perdidos, Diane. A desilusão... sois jovem e tendes uma vida a construir. O passado consegue ser uma grilheta,
e vós fostes poupada a isso.
- Vós não compreendeis.
- Penso que sim, melhor do que pensais.
- Se compreendêsseis nunca chamaríeis grilheta ao passado, como se aprisionasse uma pessoa.
- Pode fazê-lo.
- Então eu quero grilhetas dessas. Quero estar presa a uma família, boa ou má. Quero poder dizer que o meu avô viveu nesta cidade e que o meu tio tinha aquele ofício.
- Ela ouvia ressentimento e súplica na sua voz, mas não conseguiu deter nem um nem outro. - Quero saber que alguém se importava comigo quando nasci e que ficou triste
por me deixar e que pensava em mim às vezes. Quero saber que tenho algures um primo ou uma tia que se pergunta o que terá sido feito de mim.
A sua declaração ressoou pela sala. Ecoou durante algum tempo até ser engolida pelo silêncio.
- É tudo? Quero sair.
Ele voltou-se. - Não, não é tudo. Não deveis voltar a sair sozinha.
- Em Paris combinámos que podia continuar a fazer aqui o mesmo que lá.
- Eu não sabia que andáveis sozinha em Paris. No futuro levai escolta.
-Já acabámos?
- Não. Parece-me que nestas últimas semanas haveis descoberto o poder que uma mulher bonita tem. Contudo, a forma como brincastes com Mister Thompson e o empregado
hoje foi ousada de mais.
- Não foi nada ousada. Foi muito subtil. Já vi duquesas fazer bem pior.
- Não sois uma duquesa de quarenta anos.
- Não, sou uma órfã de vinte sem um tostão. Se um sorriso abre os livros dos Mister Thompson do mundo, é um preço pequeno a pagar, com a única moeda que tenho.
- Eu ter-vos-ia aberto os livros.
- Preferi fazê-lo eu própria. Dizei, msieur, o nosso acordo produz os resultados que esperáveis?
- O que quereis dizer?
- Atraio as atenções que esperáveis? Travais conhecimento com os homens que queríeis conhecer? Faz-se negócio nos serões de cartas e clubes? O investimento que fazeis
em mim traz-vos resultados?
- Que coisa para se perguntar. Às vezes espantais-me.
- Prefiro-vos espantado a ter-vos a encher-me os ouvidos. Se tudo se passa como queríeis, não penso que os vossos sermões sejam apropriados. Contai os vossos ganhos
e deixai-me colher os meus.
Ela saiu, e a cada passo aumentava a pequena fúria que sentira quando ele a confrontara na rua. Chegou à escadaria praticamente a tremer de frustração e com uma
sensação inexplicável de ter sido insultada.
Estavam dois vasos orientais colocados no remate dos corrimões. Ao contrário dos que estavam no seu quarto de Paris, estes eram rosa e verdes, cobertos de flores.
Olhou para eles, ali no seu poiso para todos verem, proclamando o gosto urbano do homem que os detinha.
Que a detinha a ela, de certa forma.
Pegou num dos vasos. A fineza da porcelana proclamava a proeza do artífice, a par da sua decoração.
Tomando-lhe o peso, deleitou-se com a sensação.
Caro. Perfeito. Um objeto de singular beleza.
As suas mãos libertaram-no. Desfez-se em pedaços no chão de mármore.
O som ecoou até ao corredor. Abriram-se portas de onde saíram criados boquiabertos. Daniel emergiu da biblioteca, curioso.
Ela estava no meio dos estilhaços, mal conseguindo conter uma euforia insolente.
Os criados desviaram o olhar de Diane para Daniel.
Ele aproximou-se com uma expressão estranhíssima no rosto. Apontou para o vaso partido.
- Era um Ming.
- Dais nomes aos vossos vasos?
- Dinastia Ming. com pelo menos trezentos anos. O par não tinha preço.
- Dissestes-me para partir um. Todos os dias, se quisesse.
- Eram os do vosso quarto.
- Importa?
Ele voltou para a biblioteca com uma expressão de indulgência.
- O simples facto de terdes partido alguma coisa é o que importa. Não me augura nada de bom, pois não?
CAPÍTULO 12
Ainda não terminaram, senhora. Conto que demore pelo menos mais uma hora. - O lacaio falou pela janela do cocheiro e o rosto desapareceu em seguida.
Penelope olhou para Diane, desculpando-se. - Espero que não vos importeis de esperar por eles.
- Claro que não. - Era o que a condessa tinha de mais desconcertante. Apesar de ter tomado como amiga a obscura prima de um armador, agia como se Diane não devesse
estar grata e até tivesse algum direito a importar-se.
- Eu cá importo-me. Mas não com este atraso. Se o meu irmão me pedisse para esperar a tarde inteira, não poderia queixar-me. No entanto, vexa-me ser tão cobarde.
Incomoda-me que o conde tenha o condão de me fazer isto, mas o medo deixa-me paralisada.
- O simples facto de irdes à festa mostra que não sois covarde. Estavam a caminho de uma festa em casa de Lady Pennell, no
Essex. Penelope combinara parar ali em Hampstead, naquela casa antiga, para se encontrar com o seu irmão Vergil e viajarem juntos. Em circunstâncias normais, a condessa
não teria necessidade daquele aparato todo, mas a festa poderia tornar-se muito constrangedora. O seu marido, o conde de Glasbury, estaria lá. A sua família
reunia-se em peso para a apoiar. O irmão mais velho, o visconde Laclere, também planeara ir até lá para estar ao lado da irmã.
- Podíamos assistir - sugeriu Penelope. - É uma academia de esgrima, cujo dono é o chevalier Louis Corbet. Dizem alguns que é a melhor de Inglaterra, apesar da fama
da de Angelo, em Bond Street. Lá é um desporto. Aqui diz-se que o chevalier a ensina como se fosse para combater na guerra ou em duelos. Podíamos dar uma espreitadela.
- É permitido? As mulheres assistem no tal Angelo?
- Claro que não. Descobri, porém, que depois de uma mulher deixar o marido, pouco mais há que possa fazer que realmente choque alguém.
Diane notara há já algum tempo que Penelope considerava que a sua nova liberdade merecia um pouco de censura pública. Não que ela explorasse realmente essa liberdade.
Ao contrário de algumas mulheres, que sem pudor adotavam amantes, os pecados de Penelope eram de natureza diferente. Ela misturava-se com pessoas com que normalmente
uma condessa não se misturaria, e fazia seus amigos outros que tinham caído muito mais baixo do que ela.
Segundo Jeanette, a condessa maculava-se sem redenção possível. As pessoas importantes mais facilmente perdoariam um caso com um homem casado do que perdoariam amizades
democráticas. Era apenas uma questão de tempo até algumas das salas que ainda se abriam para a condessa começarem a fechar.
Tomando a dianteira, Pen encaminhou-se para a entrada da casa e empurrou a porta devagar. Seguiram o barulho de aço sobre aço até uma câmara grande que ficava a
seguir ao vestíbulo. Espreitando pela ombreira da porta, como crianças a espiar no baile, viram três pares de homens em duelo de espadas.
- Parece muito perigoso - sussurrou Penelope, - Nem sequer utilizam camisas acolchoadas. Um movimento em falso e há sangue.
Diane não considerara o perigo que as roupas deixavam adivinhar. Só reparara na falta delas. Não só eles não usavam camisas
acolchoadas, como não usavam camisa de todo. A sala parecia girar com as imagens de seis torsos nus e fortes.
Ela nunca vira nenhum na vida.
- Não pensei que o vosso primo estivesse aqui - desculpou-se Penelope. - O homem grisalho com quem se bate em duelo é chevalier Corbet.
Diane distinguira logo Daniel. Ele estava de frente para elas, mas toda a sua concentração estava no adversário, tal como era devido.
- Ele e o chevalier são claramente os mais capazes. Os movimentos do meu irmão são menos audazes. São mais estudados.
Diane não reparava nos diferentes níveis de perícia. Não conseguia desviar a atenção de Daniel. Ele estava muito atraente. Ao contrário dos rostos dos homens mais
novos, onde o esforço era visível, o dele permanecia calmo, quase frio, ao corresponder ao ataque do chevalier.
Tinha um aspeto magnífico. Forte e confiante, esbelto e musculado e... maravilhoso. Um brilho suavíssimo cobria-lhe a pele e músculos retesados delineavam-lhe os
braços, os ombros e o peito. Não era o homem maior da sala, mas não havia como não reparar que cada centímetro dele estava perfeitamente trabalhado e era potencialmente
perigoso.
O olhar dela deixou-se ir até àqueles músculos, fascinado com a sua solidez esculpida. A forma como o tronco dele se estreitava até às ancas atraía inexoravelmente
a sua atenção. Sentiu uma excitação percorrê-la, e memórias proibidas das suas carícias na carruagem invadiram-lhe a mente.
Qual seria a sensação de pousar a palma da sua mão naquele peito? Parecia tão robusto, mas com certeza que a pele seria quente , e macia...
- Diabos, Pen, que fazeis aqui? - O grito de Vergil Duclairc arrancou Diane às suas vergonhosas especulações.
Tinham reparado nelas.
Os combates cessaram imediatamente. Vergil e três outros homens apressaram-se a ir buscar as camisas.
Daniel não. Olhando para a entrada, baixou a espada. O seu olhar captou o de Diane antes de esta conseguir esconder-se atrás do umbral.
Ela sentiu o rosto aquecer. Algo no olhar dele sugeria que soubera que ela estava lá. Tal como ela vira a reação dele no espelho da modista, ele vira a sua, apesar
de ter a atenção na espada do chevalier.
Ao contrário de Vergil Duclairc, ele deixara-a olhar.
A expressão dele não mostrava nem constrangimento nem choque. Os seus olhos limitavam-se a constatar o que ela via, e o facto de não ter desviado o olhar. Como ainda
não tinha feito.
- Céus, Pen, que tínheis na cabeça? - Vergil apareceu subitamente à frente delas, tapando a vista. A camisa apenas lhe pendia dos ombros, um simples recurso para
esconder a nudez.
Ao lado dele estava um jovem de beleza perfeita de cabelo castanho e sorriso vencedor. Devidamente vestido, estivera comodamente recostado num banco num dos lados
da sala.
- Não fazia ideia de que esgrimíeis sem roupa - justificou Pen.
- Só em jogo de combate defensivo. É para nos acostumarmos à vulnerabilidade. - Mas sois vós quem tem de dar explicações, não eu.
- Apenas estávamos curiosas sobre a prática. Ainda bem que não estáveis completamente nus, como nas métopas gregas de Elgin. E pensar que eu sempre presumira que
se tratara de liberdade artística por parte do escultor.
Vergil suspirou, exasperado. - Sabeis muito bem que devíeis ter saído imediatamente. Além do mais, trazer Miss Albret...
Penelope olhou para Diane. - Oh, Céus, fui descuidada. Vamo-nos embora agora e esperamos na carruagem. Não vos apresseis por nossa causa. Insisto. Terminai como
havíeis planeado.
Pegando em Diane pelo braço, Penelope dirigiu-se para a entrada do edifício. - O Vergil consegue ser um tanto retrógrado.
Sempre fez parte dele, mas piora à medida que vai envelhecendo. Não sei onde foi buscar isso, uma vez que a nossa família não é conhecida por coisas dessas. É mais
o oposto. Ele é bem-intencionado, mas consegue ser cansativo.
- Concordo, Pen. Tendo acabado de ouvir uma repreensão que durou o caminho todo até aqui, devo dizer que essa característica de Vergil se desenvolveu consideravelmente
desde a última vez que o vi. Apesar de ser escandaloso da vossa parte andardes assim a espreitar.
A resposta veio de trás delas. Diane olhou para lá para ver o belo jovem que as seguia. A nota de humor nos seus olhos límpidos sugeria que ele considerava os comportamentos
escandalosos muito divertidos.
No pátio, Pen deu-lhe um abraço e um beijo. - Diane, este é o meu irmão mais novo, Dante. Só tem dezoito anos, mas já viveu uma vida inteira de tribulação. Fiquei
surpreendida por vos ver ali, Dante. Foi gentil da vossa parte sairdes da universidade para virdes até cá apoiar-me.
- E com satisfação que vos apoio, mas confesso que tive pouca escolha no que respeita à parte de vir até cá.
O semblante de Pen mudou. O seu suspiro pareceu tão exasperado como o de Vergil fora. - Estais a dizer que fostes suspenso? Outra vez, Dante? Não admira que Vergil
resmungasse. O que foi desta vez?
- Algo de somenos importância. - Dante indicou Diane com o olhar, para lembrar à irmã que tinham companhia.
- Visto que temos algum tempo antes de irmos embora, vou dar um passeio no parque - anunciou Diane.
Pen estava completamente absorta com o irmão mais novo e não objetou quando Diane se afastou. A última visão que teve deles, ao virar a esquina da casa, foi de Dante
a falar com uma expressão algo envergonhada e Pen a resmungar.
Diane já avançara bem no bosque quando reparou que nunca antes passeara no campo. A escola localizava-se nos arredores de Rouen, mas a sua envolvência dificilmente
se diria rural. As saídas tinham sido para ir à cidade, que não ficava longe. Em Paris, e agora em Londres, ela usufruíra dos parques, mas sem se aventurar para
lá das áreas cultivadas. Esta casa de Hampstead podia não estar rodeada de quintas, mas havia muita terra e tanta vegetação que o cenário parecia rural.
Andou por caminhos, surpreendida por a experiência não a assustar mais. As pessoas falavam da Natureza como sendo um lugar de transformação. A ela, pelo contrário,
parecia-lhe bastante familiar. Talvez por a Natureza ser silenciosa e solitária, e o seu coração estar muito acostumado a ambas as coisas.
Não completamente silenciosa. O estrondo de disparos rasgava o sossego a intervalos regulares. Não muito longe, alguém andava atrás de caça.
O que também não a deixou sobressaltada. Ela soube logo o significado do som. Soube que pertencia àquele sítio e que ela não devia aproximar-se.
Virou por outro caminho e viu uma clareira mais à frente. Ao aproximar-se do intervalo nas árvores, deparou com uma casa rústica.
Parou. A imagem daquela casa, rodeada por aqueles troncos e ramos vacilantes, era-lhe tão familiar que ficou sem respiração. Teve a estranha sensação de já ter vivido
aquele momento.
Não era a primeira vez que tinha aquela sensação inusitada. Ela sabia que todas as pessoas a experimentavam por vezes. Mas esta foi mais distinta do que qualquer
outra. Acreditava que, se lho pedissem, conseguiria descrever completamente a casa sem ver o resto.
Tentou fazê-lo. Quando a sua cabeça lhe falhou, quando não surgiram os pormenores recônditos, ela riu-se de si própria e continuou a andar.
A velha casa de telhado de colmo, de paredes revestidas e vigas de madeira, parecia bem cuidada. Alguém vivia lá.
Como se chamado pela sua curiosidade, a porta abriu-se e saiu de lá um homem de idade. As suas roupas eram simples mas estavam limpas, a sua barba comprida e branca.
Reparou nela.
- O chevalier agora aceita mulheres para as lições? - A ideia fê-lo soltar uma risada, a caminho do poço com um balde na mão.
- Estou apenas de visita. Não estou a aprender a usar a espada.
- Falais como ele. Francesa, certo? Não se vê muito mulheres por aqui.
Ela aproximou-se. A sensação de estar reviver alguma coisa intensificou-se. - Quem sois?
Ele olhou surpreso para ela e depois riu-se. - Sou George. Cuido dos terrenos o melhor que posso com estas pernas. Passei aqui a maior parte da minha vida, ainda
antes de o chevalier vir para cá. Diacho, estava aqui quando passou para aquele marialva antes de Corbet. Perdeu-os ao jogo, sim, e eu já estava a ver. Como vejo
aqueles rapazolas que vêm para os duelos deles a perder, provavelmente, a maior parte do que têm em mulheres e cartas. - Deu à manivela até o balde emergir do poço.
- Uma pergunta arrojada merece outra. Quem sois vós?
Uma profunda desilusão abriu-lhe o peito. - Não sou ninguém.
- Saiu-lhe antes de dar por isso, a resposta nascida do particular desalento que subitamente lhe partiu o coração.
Diane deu meia-volta, para se afastar daquele sítio que a fazia sentir-se tão estranha e perdida.
- Sabeis o caminho de regresso? - perguntou George.
Ela parou. Não prestara muita atenção aos caminhos por onde viera. Fora descuidada.
- Que sorte não vos terdes perdido. Ide pelo primeiro trilho que sai para a direita. Leva-vos ao limite do bosque e é só seguir por ele até à casa. Há outro caminho,
mais rápido, mas esse é o melhor de seguir. Mas ide pelas árvores deste lado do campo. Esses disparos que ouvis é um dos rapazes a praticar com a pistola do outro
lado.
- Pensei que fosse caça.
-Já não se anda muito à caça por estas partes. Demasiada construção. Costumava ser campo, mas a cidade está a tomar o espaço.
Ela agradeceu e seguiu o caminho que ele indicara. Na curva para contornar o campo, o sol dissipou a sensação de déjà vu.
Não conseguia ver a casa, mas ia na sua direção, segundo as indicações de George. Umas poucas flores precoces salpicavam o pequeno campo. Quando chegasse o verão,
cobri-lo-iam por inteiro.
Perguntou-se se conheceria o chevalier. Se sim, talvez ele a convidasse para uma nova visita. Imaginou-se a correr descalça ao sol naquele prado. A fantasia era
tão vívida que ela sentiu a erva e a terra sob os pés.
Os tiros tinham parado, mas subitamente um estalido rompeu o silêncio. Ao mesmo tempo, sentiu um silvo ténue perto da orelha. Um baque à sua esquerda fê-la virar
a cabeça em sobressalto e gritar.
Estacou, aturdida. Precisou de vários instantes para compreender a razão da sua reação.
Acabava de passar por ela uma bala.
Desceu-lhe pelo pescoço um arrepio de medo. A mesma sensação de choque que experimentara a seguir à ópera imobilizava-a agora.
Apareceu um homem do outro lado do campo. Viu-a e desatou a correr. À medida que ele se aproximava, Diane via apenas cabelo louro e um rosto consternado.
- Estais ferida? Acertou-vos? -As perguntas gritadas aproximaram-se com ele.
Não tinha a certeza. Achava que não. Abanou a cabeça.
- Graças a Deus. Uma lebre assustou-me e a minha pontaria falhou. Nunca anda ninguém nestes terrenos, por isso quando vos ouvi o meu coração parou.
Ela recuperou a compostura. - Estou bastante bem. Não acho sequer que tenha passado perto. Gritei porque me assustei, foi tudo.
Ele suspirou de alívio. - Por favor, deixai-me acompanhar-vos até à casa. As apresentações formais terão de aguardar, mas o meu nome é Andrew Tyndale, e nunca me
perdoarei pelo meu descuido.
Ele parecia robusto e honesto, um cavalheiro. Já sem a preocupação no rosto, a sua expressão era contrita e preocupada. Diane calculou que tivesse quarenta e muitos
anos.
Permitir-lhe que a acompanhasse pareceu-lhe uma opção sensata. - Agradeço-vos, sim. Estou um pouco abalada, confesso.
Enquanto caminhavam, silenciosos, ela olhou disfarçadamente para ele algumas vezes. Era um homem atraente, de maxilares fortes e olhos azuis encovados. O seu semblante
dava mostras de abertura, como se não houvesse muito a disfarçar. Pareceu-lhe que deveria ter sido deslumbrante quando era novo. O cabelo louro ao estilo romano
e o corte elegante do casaco sugeriam que ainda considerava sê-lo.
Ela travara conhecimento com muitos homens da idade dele desde que saíra da escola. Alguns ignoravam o correr dos anos e fingiam ser ainda jovens, e passavam por
tolos em vez de inteligentes. Outros resignavam-se tanto ao passar do tempo que bem podiam estar já nos sessenta. Andrew Tyndale parecia ter conseguido um equilíbrio.
Envergava a sua maturidade com franqueza, mas a sua boa forma e elegância anunciavam que ainda não tinha passado o seu tempo.
Ele sorriu-lhe. Era um sorriso caloroso. Conferia ao seu rosto um semblante que inspirava confiança. - Como disse, as apresentações formais terão de aguardar, mas,
uma vez que quase vos matei, posso saber o vosso nome?
- Diane Albret. - Pronunciou o "t", como fazia desde que chegara a Inglaterra. Sempre na expectativa de que alguém reconhecesse o nome se o pronunciasse daquela
maneira. Para reivindicar a sua verdadeira proveniência, também tentava purgar o seu discurso de palavras francesas e do seu sotaque, mesmo sendo um e outro considerados
muito elegantes naquelas partes.
- Sois francesa? - perguntou, indicando, como George antes dele, que o sotaque ainda a denunciava.
- Sou inglesa, mas cresci em França.
- Estáveis longe de casa durante a guerra, então.
Sim, muito longe de casa. Ela não sabia porquê, mas sentiu que ele acolheria de bom grado as suas confidências sobre o assunto. Estaria muito mais interessado no
significado que aquilo tinha tido para ela do que Daniel estivera.
- Sois parente do chevalier?
- Não, estou aqui com Lady Glasbury.
- Ah! Agora sei porque me pareceis familiar. Penso que vos vi com ela no baile de Lady Starbridge, na semana passada. A condessa é amiga do chevalier.
- Não me parece. Estamos à espera que o irmão dela acabe o treino.
- Deveis referir-vos a Vergil Duclairc. Da Sociedade de Duelos de Hampstead. É o nome que deram a eles próprios. Não é sociedade de esgrima, mas sim de duelos. Praticam
para um desafio que nunca há de vir, e fingem ser corsários.
- Não sois membro, parece-me.
- Sou velho de mais para me deixar encantar por fantasias.
- Mas também frequentais a academia do chevalier?
- A sua perícia é insuperável, e usa o sabre militar, que eu prefiro. Gosto que ele treine sem as camisas acolchoadas. Ao contrário dos jovens que lá estão agora,
contudo, não tiro a camisa e trago uma lavada para vestir depois de terminado o treino.
Ele riu com a piada que acabava de dizer. Ela quase o fez também, mas só até se lembrar que assim indicaria que os vira sem as camisas.
- O dia está bonito e o campo muito agradável - disse ele, oferecendo-lhe um sorriso paternal. - Vamos atravessá-lo e ir para a casa pelo caminho do bosque do outro
lado. Há um riacho adorável onde se vêem crocos floridos.
- Não vai começar mais ninguém a atirar, pois não?
- Não, e eu sei como ficar fora de alcance se o fizerem.
Ela sentia-se muito segura com ele, ainda que ele quase a tivesse alvejado. Queria atravessar o campo, por isso anuiu.
com a saia a roçar pela erva seca, concluiu que gostava da companhia de Andrew Tyndale. Poderia um dia ter caminhado assim com o pai se ele não estivesse morto.
Andrew Tyndale não a assustava minimamente, sendo tão velho, nem a deixava perturbada. Tratava-a como trataria uma sobrinha ou uma filha.
Não criava pequenas eternidades nas quais ela se esquecia de como respirar.
- As minhas desculpas pela minha irmã, St. John. O facto de levar uma vida independente fez com que começasse a ter atitudes muito peculiares.
A exasperação de Vergil fez Daniel sorrir. Ter atitudes muito peculiares era uma espécie de tradição dos Duclairc, e Vergil, com o seu respeito pela aparência de
retidão, era o que destoava da família.
- Sendo uma mulher casada, claro, o choque não foi tão grande. A vossa prima, contudo... - Vergil arranjava o lenço no espelho do vestiário. - vou relembrar à Pen
as responsabilidades dela a esse respeito.
- Eu não faria do assunto mais do que aquilo que foi. Estou certo de que se a vossa irmã soubesse nunca teria entrado, muito menos deixado que a minha prima o fizesse.
Vergil assentiu com a cabeça, aliviado por ter recebido absolvição pela irmã. - Muito decente da vossa parte.
Daniel não se sentia de todo decente a propósito do pequeno episódio. O comportamento de Lady Glasbury era desculpável. O seu não.
Ele soubera que elas lá estavam bem antes de Vergil dar o alarme. Tinha reparado nelas ao travar a espada de Louis com a sua. Vira Diane a observá-lo. Tivera plena
consciência da expressão dos seus olhos.
Gozara dissimuladamente cada maldito segundo do que lhe parecera uma hora, emproando-se como um animal que se exibe perante a sua parceira.
Fazia-se ridículo por causa dela.
Saíram para o pátio onde a carruagem da condessa aguardava. Vergil encaminhou-se para lá com uma expressão que indicava que a condessa ia ouvir um sermão, de qualquer
forma.
Acabou por ser curto. Voltou para a beira de Daniel. - A vossa prima não está aqui. Foi dar um passeio, para proporcionar à minha irmã alguma privacidade com Dante,
que lhe contou a história do seu mau comportamento.
- Eu vou procurar por ela.
- Dissestes que tínheis de ir a uma reunião antes de vos juntardes a nós no Essex. Permiti-me, já que de qualquer modo nos demoraremos até ela ser encontrada.
A reunião era de importância vital, mas podia seguramente esperar. Daniel não queria Diane a caminhar naqueles bosques.
Quando se voltou para a casa, deparou com a saída alvoroçada do edifício de dois outros alunos da academia. Subiram para uma carruagem, que se afastou.
A sua ausência revelou um cavalo atado a um poste.
- Não tinha reparado que Tyndale ainda cá estava - comentou Daniel.
- Saiu para o tiro estávamos nós a chegar. Era a pistola dele que ouvíamos quando praticávamos.
Mal acabou de falar, os seus olhos brilharam de preocupação. Daniel também ficou com o coração nas mãos. Era raro alguém caminhar no terreno, e quem praticava pistola
não se preocupava muito com essas coisas.
- Certamente que se lhe tivessem acertado... - começou Vergil.
- Vós e Dante procurais no campo e no bosque à direita comandou Daniel, dirigindo-se a passos largos para as traseiras da casa. - Eu vou para a zona de tiro.
Ela não fora ferida. Daniel soube-o quando ouviu o riso dela. Seguiu o som até a ver sentada num tronco à beira do ribeiro.
Tinham-lhe enfeitado o colo com um montinho de crocos. Um homem oferecia-lhe mais um.
Não tinha sido uma bala a ir ao seu encontro.
Mas sim Andrew Tyndale.
Diane sorriu e aceitou a flor. Daniel não viu aquela desconfiança cautelosa nos seus olhos. Ela não sentia perigo. Claro que não. Daniel não conseguia ver a expressão
de Tyndale, mas conseguia imaginar a sua honestidade franca.
Apenas Daniel testemunhara a ferocidade daqueles olhos quando combatia com Louis.
Nem mais ninguém vira as outras centelhas quando Tyndale observara Diane do outro lado de um salão de baile apinhado. Daniel vira-as, mas só porque as procurara
cuidadosamente.
Tyndale estava sentado ao lado de Diane e apontava para outra flor que tinha na mão. De sobrolho franzido, ela olhava para a flor e recebia uma qualquer lição de
horticultura.
Diane teve de se baixar mais para ver bem a flor. A Daniel não escapou a reaçáo manhosa de Tyndale ao movimento subtil.
O canalha iria tentar agora, aqui? A idade teria tornado o homem assim tão precipitado e descarado?
A flor escorregou da mão de Tyndale e flutuou pelo ribeiro abaixo. Rindo da sua falta de jeito, ele esticou o braço para tirar outra do montinho no colo de Diane.
Daniel observou aquela mão, o braço que roçava o corpo de Diane, e os olhos de Tyndale, e soube com certeza que, dando-lhe tempo suficiente naquele tronco, as coisas
se tornariam muito menos inocentes.
Instintos que ele não sabia que possuía incitaram-no a avançar. Emoções primitivas de proteção e posse aos gritos na sua cabeça, que, surgindo tão súbitas e violentas,
quase tomaram conta dele.
Foram outros instintos que as limitaram. Os instintos do felino perfeitamente imóvel que, sentado, aguarda o movimento da sua presa. Os de um homem que planeia uma
vida em perseguição de um objetivo.
O objetivo esperava-o naquele tronco. Cinco minutos, talvez dez, e estaria terminado. Quase. Os meios para a concretização estariam ao seu alcance, porém.
Contara que levasse semanas. Meses. Afinal, o destino tratara rapidamente disso.
Concluída a explicação sobre a flor, Tyndale aproximou-se e enfiou-a no cabelo de Diane, junto à orelha.
Daniel notou no semblante dela um pouco da cautela que tão bem conhecia. Durante um instante, Diane perscrutou o rosto do homem ao seu lado. Depois descontraiu e
sorriu, tranquilizada.
Daniel imaginou o regresso daquela desconfiança. Viu o horror dela quando Tyndale a atacasse. Ele sabia o quanto teria de deixar as coisas avançarem para ter uma
desculpa para o matar. O grito para a proteger crescia e crescia à medida que a sua cabeça presenciava o desenrolar de tudo.
Rebentou uma tormenta dentro dele. A ânsia que sentia de sair do meio das árvores chocou o homem que ele lutara para ser. Passavam em rajadas pela sua mente imagens
de todas as razões pelas quais devia esperar que aquele canalha se desgraçasse. Invadiram-no memórias que lhe arrepiavam a espinha sempre que assomavam à superfície.
A cabeça num torvelinho, o sangue a ferver, Daniel era dilacerado pelas forças raivosas que se debatiam dentro dele.
Diane curvou-se para apanhar mais um croco. O olhar de Tyndale, com muito pouco de paternal, desceu-lhe pelo corpo.
A lascívia daqueles olhos despoletou relâmpagos na tempestade. Uma decisão que Daniel jamais esperara cristalizou-se de imediato.
Ela já tinha sofrido o bastante com isto. Ele encontraria outra forma de o fazer.
CAPÍTULO 13
Daniel saiu do meio das árvores. Diane viu-o quando se preparava para apanhar um croco violeta. O som do passo dele fê-la erguer a cabeça de rompante. Endireitou-se
rapidamente.
A alcunha de criança que lhe dera surgiu-lhe logo. O Homem Diabo. Há semanas que não pensava nele daquela forma, mas agora sim.
A expressão dele parecia amigável. Caminhava num passo descontraído. Ainda assim, sentia ameaça nele, um perigo retraído. Nos seus olhos viu perfeitamente o brilho
que dizia que nada o distrairia naquele dia.
- Aqui estais vós. Temíamos que vos tivésseis perdido. A condessa aguarda. - O olhar de Daniel foi pousar não sobre ela mas sobre Andrew Tyndale. - Nunca fomos apresentados.
Sou Daniel St. John. Miss Albret é minha prima.
Mister Tyndale ergueu-se. - Devo desculpar-me por não a ter levado imediatamente. O prazer que tem com as flores atrasou-nos.
- Na realidade, perdi-me mesmo e Mister Tyndale teve a bondade de me mostrar o caminho certo. - A mentira saiu-lhe. Por alguma razão pareceu-lhe boa ideia fazê-lo.
- É gentil da vossa parte tentar fazer vista grossa à minha indesculpável negligência, Miss Albret, mas a verdade deve ser dita ou vosso primo considerará a nossa
associação imprópria. Eu estava a atirar e uma bala perdeu-se, St. John. Quando ouvi uma mulher gritar, corri a investigar. A vossa prima não estava ferida, mas
encontrava-se muito abalada. Parar um momento ao pé do ribeiro para ela se recompor pareceu-me uma coisa apropriada para se fazer.
- Agradeço-vos por terdes cuidado dela. Ela não tinha forma de saber que estes bosques podiam ser perigosos. Se eu tivesse dado conta de que ela poderia ter a oportunidade
de os explorar, tê-lo-ia referido. Deveria tê-lo feito, por precaução, ao saber que ela pararia aqui com a condessa. - Aproximou-se de Diane, deixando o caminho
livre. - Tendes a minha gratidão.
Era uma despedida, e por pouco não era rude. Mister Tyndale acatou graciosamente a indicação e seguiu o trilho pelo meio do arvoredo.
- Não deveis ter associação nenhuma com aquele homem no futuro. Jamais.
As costas de Daniel estavam viradas para ela quando emitiu a ordem.
-Acho-o muito simpático, e ficou muito aflito com o acidente com a pistola.
Saiu-lhe mais desafiador do que ela tencionara.
Ele voltou-se. Quando ela viu a expressão dele, ficou com um nó na garganta.
- Não houve acidente nenhum. Ele viu-vos andar sozinha e atirou na vossa direção, para ter uma desculpa para vos conhecer. Não há maneira de alguém que esteja na
zona de tiro conseguir atirar uma bala para o campo.
A acusação dele aumentou-lhe a irritação. Ele tornava-se tão cansativo como Vergil fora para Penelope, só que Daniel St. John não tinha direito a sujeitá-la a estas
lições e recriminações. Não era irmão dela, nem sequer parente. Não lhe agradava a forma como
ele censurava o pobre Mister Tyndale, que ficara tão preocupado e contrito com o seu erro.
- Talvez ele tenha usado uma zona de tiro diferente. Uma lebre
assustou-o e...
- Nem um urso assustaria o homem. Tem fama de ser um dos melhores atiradores de Inglaterra. Valha-nos ao menos isso, já que se atreveu a tal estratagema para vos
conhecer.
- Arengais como um louco. Mister Tyndale foi em tudo um cavalheiro. Para não dizer que tem idade que chegue para ser meu pai.
- Cristo, como sois ignorante. Julgais que a idade de um homem faz alguma diferença em coisas dessas?
- Claro que sim. O comportamento dele comigo foi irrepreensível. Gostei da companhia dele. Acho que me seria um bom amigo.
- Ele quer mais do que amizade, podeis acreditar em mim. Ela riu. - Isso é o que Madame Leblanc disse sobre vós. Quase
as mesmas palavras.
- E ela estava certa, que raio.
Subitamente ele estava mais próximo. Mesmo à frente dela. Ela teve de inclinar a cabeça para lhe ver o rosto.
Novas centelhas avivavam-lhe o olhar. As mais profundas, que vira naquela primeira noite em Paris, quando ele partira o vaso. As de aço que mostrara quando confrontara
Vergil no salão de Margot.
Estava com ciúmes.
Ela não tinha experiência com ciumeira, mas sabia que estava certa. Uma parte estúpida dela sentia-se lisonjeada. Outra parte, maior, estava furiosa.
- Avisai-los a todos para se porem a andar? Passais o vosso tempo nas festas e jantares a seguir-me para todo o lado, a dizer a todos que não tenho um tostão e que
sou órfã e que não mereço a atenção deles?
- Digo-lhes que se não vos tratarem devidamente têm de se haver comigo.
- Mas contais que algum me corteje devidamente porque não tenho fortuna, não é assim?
Ele não respondeu, mas ela aprendera o suficiente sobre o funcionamento do mundo para saber que estava certa.
Diane constatou de forma violenta o caráter absurdo da sua situação. A sua cabeça latejava de indignação.
Indicou as roupas com um gesto e riu amargamente. - Mas vós estragastes-me, St. John. Arruinastes-me. Olhai para a boneca que comprastes. Esperais que fique sentada
na prateleira para sempre, a ser bonita? Quando isto acabar, que escolhas tenho? Devo contentar-me em ser governanta, então? Ou dama de companhia de uma senhora?
Depois destas diversões grandiosas? Eu tenho frequentado duquesas. Já que não há uma forma decente de eu no futuro viver esta vida, penso que devia considerar a
alternativa.
- O que quereis dizer com isso?
- Por esta altura Margot já voltou para Londres com Mister Johnson. Fui descuidada em ainda não ter ido visitá-la.
Deu meia-volta. Conseguiu dar três passos orgulhosos e irritados antes de ele lhe agarrar o braço.
- Ides uma ova! - Fê-la voltar-se para trás. Contra ele.
O abraço dele envolveu-a. Chocou-a. Ela ainda conseguiu contorcer-se uma vez, na tentativa de resistir antes de o calor do corpo dele e a exigência dos seus olhos
começarem a vencer a sua indignação.
Lutou contra a tentadora intimidade, apesar de o seu coração a desejar tanto. Talvez tivesse sido isto a que se referira quando ameaçara converter-se numa Margot.
Quem sabe se o fizesse, o vazio seria encoberto durante algum tempo.
Como Daniel o encobria agora.
- Não deveis ter associação nenhuma com aquele homem no futuro. - Falou com gentileza, desta vez. Falou a sério. Pareceu-lhe mais um aviso do que uma ordem, mas
ainda lhe restava discernimento suficiente, suficiente noção do tempo e do espaço, para não gostar de o ouvir.
- Ele não pensa em mim dessa forma. É um cavalheiro, ele.
- Todos os homens pensam em vós dessa forma.
- Duvido que isso seja verdade. Acho que...
O beijo dele silenciou-a. A sua insistência firme provava que pelo menos um homem pensava nela daquela maneira.
Os beijos foram lentos e duros e implacáveis. Estavam carregados do perigo que ela sentira quando ele surgira das árvores, e do ciúme que ela percebera nas suas
acusações. Eram os beijos de um homem provocado, inobservante de regras e propriedades, fazendo reivindicações que nem sequer pretendia.
Ela sabia aquilo tudo, mas o seu coração e a sua alma não conseguiam resistir. Aquele calor enfraquecia-a, como sempre acontecia. Que ele se importasse o suficiente
e reparasse o bastante para sentir ciúmes era alguma coisa, pelo menos. Até para a luxúria se impunha atenção. Uma fome primária que fosse significava que a queriam
de alguma maneira. A forma como ele excitava o seu corpo só a enfraquecia mais. Carícias lentas recordaram-lhe as alegrias físicas que ele conseguia dar.
Ela sucumbiu ao torpor. Esqueceu onde estavam e que devia detê-lo. O odiado vazio encolheu, morreu, libertando uma felicidade que ela não merecia. Esfomeada, agarrou-se
a ela, mas sabia, mesmo no seu arrebatamento, que era falsa e que não duraria.
A mão dele foi para debaixo da capa dela. Beijos queimavam-lhe o pescoço, entrecortando-lhe a respiração. Uma carícia no seio fê-la arquejar. A sua alma sabia que
ele não pararia, que estava mais retirado do mundo do que ela.
Os dedos dele roçavam-lhe o mamilo, enviando-lhe arrepios de prazer pelo corpo todo.
- Não deveis ter associação nenhuma com ele - voltou a dizer.
- com nenhum deles.
Uma minúscula rebelião quis vencer na sua mente, mas ele obliterou-a com outro beijo. O seu abraço comandava mais do que incitava. Ela perdeu mão da sua fraca resistência,
arrastada pelo poder dele. Devolveu-lhe o beijo, não sabendo porquê, acedendo
apenas sem decidir fazê-lo, fazendo-o apenas porque as reações do seu corpo e coração o exigiam.
O abraço dele vagueava, com arrojadas carícias. Ela ia ao encontro do seu toque mesmo quando o percurso das suas mãos a assustava. Por cima da barriga e das nádegas,
descendo até às coxas, ele agarrava-a e reivindicava-a toda. O seu toque moveu-se de forma mais chocante, provocando-a através do vestido, descendo-lhe pela fenda
entre as nádegas, aventurando-se na direçáo da pulsação que a enlouquecia, fazendo o prazer assentar e latejar.
Uma voz chamou o nome dele, procurando-o. Ela ouviu, mas ele não. Penetrou o torpor dela e reavivou a consciência que ela tinha do mundo envolvente. Assustada,
contorceu o corpo para escapar.
Ele ergueu a cabeça e estacou ao ouvir o som da voz de Vergil a aproximar-se pelo caminho.
Ela libertou-se e afastou-se com um pulo. com a separação, a confusão tomou conta dela.
- Dissestes que não o faríeis. Em Paris, prometestes...
- Não prometi nada.
Subitamente, Vergil estava num dos lados da pequena clareira. Olhou para ela e depois para Daniel.
Ela viu que Vergil parecia saber o que tinha interrompido. Daniel também o viu, claramente. Ele parecia imperturbável, contudo, como se o que tivesse ocorrido merecesse
a expressão de desaprovação que entrevia por baixo das pálpebras baixas do seu jovem amigo.
Vergil tentou esconder o desconforto. - Tyndale disse que a tínheis encontrado. bom. Pen gostaria de partir, porém. Quer chegar à festa antes do conde.
- Claro. Foi rude da minha parte atrasar a condessa. - Diane não tinha ideia de como encontrara voz para falar. Conseguiu reunir compostura suficiente para se afastar
do olhar abrasador de Daniel e aceitar a escolta de Vergil até à carruagem que aguardava.
- Ele está a ser muito cauteloso - disse Adrian, conduzindo-os pela rua. - Se não soubesse o que ele andava a tramar, o mais certo seria não conseguir a mínima pista
daquilo que tem acontecido.
Daniel caminhava ao lado dele pelas travessas silenciosas, próximas ao rio. Não estavam em Londres, mas do outro lado da ponte, em Southwark, numa zona pobre de
edifícios e armazéns a cair aos pedaços.
Tentava prestar atenção à história de Adrian, mas era difícil. Tinha a mente ocupada com Diane. A sua cabeça e o seu corpo ainda estavam no ribeiro, sucumbindo ao
desejo devastador que a sua decisão sobre Tyndale havia despertado. Teve vontade de matar Vergil por ter interferido, mas também estava grato por isso. Se tivesse
ficado entregue a si próprio muito mais tempo teria deitado Diane no chão e...
- Ele precisou de mim para encontrar este sítio, claro. Ninguém que tenha uma propriedade tão insignificante fala a língua dele, e ele não fala a deles. Também me
deu desenhos para levar, para se fazerem os cilindros. Conseguiu obter os químicos sozinho, suspeito, uma vez que não me solicitou nada.
- Sorte ter esbarrado convosco - comentou Daniel, forçando-se a prestar atenção ao assunto do momento.
Adrian deu uma risada. - Passei três vezes mesmo à frente dele antes disso. Ele está sempre a olhar para o chão, remoendo as grandes questões do universo, presume-se.
Nunca esperei que me chantageasse para trabalhar com ele, todavia. Considerei simplesmente que seria mais fácil estar de vigia se ele contasse ver-me por aí. Parou
ao chegar a uma construção, pouco mais do que um abrigo baixo entalado ao fundo entre os vizinhos. - Chegámos.
- Seria de pensar que estão lá dentro as jóias da coroa. - Três cadeados grandes e brilhantes aperaltavam a porta.
- Ponderei dizer ao serralheiro para me fazer umas chaves adicionais, mas não me quis arriscar a que Dupré descobrisse. Não há problema, contudo. Ficai de guarda.
Daniel tapou-o. Olhando para trás, viu Adrian tirar um ponteiro de metal do casaco e começar a tentear a fechadura de cima.
- Onde aprendestes isso?
- com um coronel da guarda da nossa embaixada na Turquia. É uma aptidão útil para um secretário de diplomata.
As duas primeiras fechaduras abriram-se numa sucessão rápida. Daniel lançou o braço para trás. - Esperai. Vejo alguém.
Adrian virou-se e cruzou os braços. Daniel espreitou para as sombras do outro lado da rua onde identificara movimento. - É melhor ir verificar. Não temos hipótese
se Dupré tiver alguém a vigiar o sítio.
- A não ser que ele encontrasse um espião francês, não sei como o conseguiria. Mas ide.
Daniel saiu do pátio de escombros defronte do edifício e foi na direção da sombra.
Logo que o seu destino se tornou claro, um homem saiu disparado pela rua abaixo. No curto instante antes de o homem se virar, Daniel vislumbrou uma barba e cabelo
escuro por baixo do chapéu.
Voltou para Adrian. - Era apenas um vagabundo, curioso e ocioso, como seria de esperar nesta zona.
Adrian atirou-se à última fechadura. Empurrou a porta.
O interior do edifício era tão pobre como o exterior. Há vários anos, alguém rebocara as paredes, mas o tempo abrira-lhes fendas
e escurecera-lhes a cor. Entrava
um pouco de luz por uma janelita alta, apesar das novas portadas e fechadura que a cobriam.
Encostada a uma parede estava uma mesa coberta com uma fila de cilindros de metal, cada qual ligado por fios a uma panela cheia de líquido.
Daniel aproximou-se e espreitou para as panelas. Cada uma delas tinha um pedaço de metal de bom tamanho. - Está operacional?
- Penso que sim. Não enfiei a mão em nenhum para descobrir.
Devem estar umas cem libras de ferro aqui dentro.
- Dado que fui eu quem tratou da compra, posso dizer que é exatamente esse o peso.
Daniel contemplou a notável engenhoca. - Isto deve ter custado uma soma considerável.
- As minhas aquisições chegaram a mais de mil libras. Os químicos têm de ter custado centenas mais. - Adrian apontou para as barras de ferro. - Reparai que têm tamanho
e forma iguais. Acrescentei esse requisito. Não tinha ideia do que tencionáveis fazer, mas caso planeeis algo, lembrei-me de que a estandardização poderia ser conveniente.
- Muito bem - elogiou Daniel, embora também não fizesse ideia do que tencionava fazer, se é que tencionava fazer alguma coisa.
- Não vejo como teve fundos próprios para isto. A casa de Paris era da família e não me parece que tenha havido grande herança para lá disso. Tem poucos rendimentos,
a não ser alguns honorários da universidade de lá. Digamos que custou mil e quinhentas. Pagou a pronto, e eu pressenti que haveria mais se fosse necessário. Aonde
iria buscar tanto dinheiro? - indagou Adrian.
Daniel perscrutou a experiência. Não, não era uma experiência. Era demasiado grande para tal. Demasiado elaborada. Tratava-se mais de um modelo de funcionamento,
para avaliar custos e potencial.
As suas suspeitas estavam corretas. Dupré não o tinha feito para outros cientistas, mas para impressionar homens do mundo da manufatura.
Mil e quinhentas libras a pronto, dissera Adrian. Um custo significativo. Um custo que Dupré não conseguia suportar sozinho, isso era certo.
- Quantas chaves disse ao serralheiro para fazer?
- Dois conjuntos.
- Procurou um sócio - concluiu Daniel. - A pergunta é, quem?
CAPÍTULO 14
- Não tenhais associação nenhuma com ele. Revelou-se impossível, pois Andrew Tyndale também fora convidado para a festa.
E também não era um grupo grande que se reunia na casa de Lady Pennell para o fim de semana. No máximo, seriam trinta os presentes. Sendo uma das mais notáveis senhoras
a moverem-se em círculos alargados, Lady Pennell convidara um grupo diverso, incluindo um ator famoso e um romancista popular, e também membros do Parlamento, um
conde, dois barões e um visconde.
Não contava com a presença de nenhuma mulher dos círculos mais seletos, claro. Lady Pennell não caía nas boas graças das arbitras da sociedade, ainda que os homens
delas considerassem as suas reuniões mais interessantes do que beber ponche em outras reuniões mais adequadas.
- Ainda bem que os meus irmãos aceitaram comparecer - dizia Pen, instalando-se no aposento com Diane. Pen insistira que partilhassem um quarto, mesmo tendo a anfitriã
planeado outras disposições. Visto que tinha uma saleta, dificilmente seria pequeno.
- Não tinha dado fé de que o grupo era tão pequeno. Não há como evitar o conde com discrição, receio. - murmurou Pen.
Diane suspeitava que não havia como evitar ninguém. Nem o
conde. Nem Mister Tyndale. Nem Daniel St. John, quando ele chegasse, à noite.
Não tenhais associação nenhuma com ele. Daniel proferira aquele aviso acerca de Andrew Tyndale, mas o coração dela fazia-o agora a propósito do próprio Daniel. Os
beijos e abraços do bosque tinham-na deixado muito abalada, e os seus pensamentos demoravam-se neles desde então. Suspeitava que o pacto feito em Paris tinha sido
irrevogavelmente desfeito.
As implicações assustavam-na. Como também as suas reações. Não era apenas preocupação que a ocupava desde que se instalara no seu lugar na carruagem de Pen. Invadia-a
também um anseio nostálgico. Admitia miseravelmente estar intrigada e excitada com Daniel, e nenhuma parte dela devia estar assim, nem um pedacinho que fosse. Contrariamente
à ameaça rebelde que ela pronunciara quando estavam no ribeiro, transformar-se numa Margot seria o tipo de vida que ela não conseguiria viver.
Pen ocupava-se com instruções à criada que lhe desfazia a mala. As roupas de Diane seriam atendidas mais tarde.
- Foi gentil da parte de Lady Pennell convidar-me - disse Diane. De todos os convites que recebera, achou este o mais peculiar.
- Ela gosta de se rodear de pessoas interessantes.
- Eu não sou interessante.
- Não é verdade. No entanto, admito que a minha vinda tenha influenciado o convite, assim como a esperança de encorajar a aceitação por parte do vosso primo.
- Então Lady Pennell considera Daniel interessante?
- A maior parte das mulheres considera-o interessante. Não foram só a riqueza e o estilo a abrir-lhe portas na sociedade, mas também o fascínio de mulheres influentes.
A bem dizer, penso que Lady Pennell nutre uma certa ternura por ele agora. É bem-parecido, confiante e misterioso. O seu porte e a sua presença têm dado azo a todo
o tipo de especulações ao longo dos anos.
- Que tipo de especulações?
- Como prima, provavelmente ireis achá-las divertidas. Quando ele chegou vindo do nada há muitos anos corriam rumores de que ele tinha feito fortuna com pirataria
nos altos mares. Outros cochichavam que ele tinha usado os navios em serviços especiais para a marinha. Alguns insistiam que ele era um emigre vindo de França enquanto
rapaz, por causa da revolução, e que tem sangue muito mais rico do que alega. - Pen riu e ergueu uma sobrancelha.
- O que significa, claro, que vós também.
Diane forçou-se a rir igualmente. - Se assim fosse, eu saberia, não é verdade?
- bom, como disse, foi tudo especulação. Ninguém sabe ao certo a história dele, por isso criam-se estórias. - Pen lançou-lhe um olhar inquiridor e matreiro, encorajando-a.
Diane dificilmente poderia satisfazer a curiosidade de Pen a propósito de Daniel, já que ela própria sabia muito pouco da história dele. Admiti-lo revelaria a mentira
do parentesco deles. O que daria seguramente a todos muito sobre o que especular.
Para evitar mais conversas sobre o tópico, deixou Pen a desfazer as malas e foi para a saleta aguardar a sua vez.
Entrou uma criadita com um tabuleiro de refrescos. Ao pousá-lo na mesa, olhou para Diane com manifesta curiosidade.
De regresso à saída, parou. - Corou e fez uma vénia. - As minhas desculpas, Miss Albret, mas posso fazer-vos uma pergunta?
- Claro. O que é?
- Eu sou de Fenwood, e o pároco de lá também se chama Albret. Sois parente dele?
Diane ficou especada a olhar para a bonita rapariga com a sua capa de musselina, pele sedosa e cintilantes olhos azuis. Foi incapaz de lhe dar uma resposta porque
o seu coração começou a bater com tanta força e tão rápido que lhe doía.
- As minhas desculpas - disse a rapariga. - Foi inapropriado da minha parte, é só que achei curioso, por vós serdes francesa e tudo.
- Não tenho conhecimento de parentescos nessa cidade que mencionais, mas se os houver, gostaria de saber. Onde fica esse sítio?
- Ora, não fica a mais de duas horas de carroça. É uma aldeia perto de Brinley. Mister Paul Albret é pastor lá desde sempre, desde antes de eu nascer.
Diane não conseguia acreditar na sua sorte. Se a criadita tivesse sido um nadinha menos audaz...
- Como vos chamais?
- Mary.
- Estou-vos agradecida por me terdes falado, Mary. De outro modo, poderia nunca ter ficado a saber deste possível parente.
- Oh, duvido disso. Estão muitos de nós nesta área, a servir nas casas do condado. Acabaríeis por vos encontrar com um.
- Mary, esse pastor reside lá? Se lhe enviar uma carta, ele irá recebê-la, na vossa opinião?
- Ele vive lá. Sempre viveu.
- Conhecestes os filhos dele?
- Eram de antes do meu tempo. Duas raparigas e um rapaz, acho eu, mas foram todos embora há muitos anos. Nunca ouvi dizer que tivessem voltado. A minha família não
conhece bem o pastor, somos seguidores de Wesley.
Subitamente, a saleta com a sua mobília clássica de mogno tornou-se claustrofóbica. Estar presa naquela casa com aquele grupo pareceu-lhe um transtorno terrível.
A resposta às perguntas da sua alma, que não a deixavam sossegar, podia estar a poucas horas de distância.
- Obrigada, Mary.
Talvez conseguisse arranjar forma de visitar a cidade de que Mary falara. Entretanto, podia pelo menos entrar em contacto com o pastor e ver se ele sabia alguma
coisa.
Enquanto Pen se atarefava com o guarda-roupa no aposento ao lado, Diane sentou-se à escrivaninha e começou a escrever uma carta.
- Dir-se-ia que estamos no Parlamento e que acabou de ser lançada uma votação - comentou Pen. Estava sentada na sala. ao lado de Diane, a seguir ao jantar.
Diane apertou-lhe a mão, para a reconfortar. Apesar de distraída com pensamentos de uma carta parcialmente escrita e memórias, angustiantes de tão insistentes, de
beijos no bosque, Diane não conseguiu evitar reparar no drama social que se desenrolava.
A festa não fora preparada para proporcionar o confronto entre o conde e a condessa de Glasbury, mas a presença dos dois afetou tudo. A expectativa dominava o ambiente.
Durante o jantar, corriam olhares para o fundo da mesa, onde o casal separado estava sentado, tão próximos um do outro que era impossível ignorarem-se.
Bastou os homens reunirem-se às mulheres para se formarem subtilmente dois grupos. Os convidados anunciavam o lado escolhido através da localização e da interação.
Diane reparou no tamanho maior do grupo reunido à volta do conde, e na presença de Andrew Tyndale ao seu lado. Daniel, que chegara pouco antes do jantar, misturava-se
com o grupo que estava próximo de Pen. O advogado de Duclairc, o enigmático Julian Hampton, também estava por perto, observando mas raramente tomando parte.
O visconde Laclere emprestava o seu prestígio como prometera, mas era Vergil que estava literalmente ao lado de Pen.
- Abandonaram-me. Seria de esperar, imagino eu. - Disse Pen num murmúrio enquanto o seu olhar conduzia Diane para o outro lado da câmara. Poucas senhoras se demoravam
no canapé.
A expressão e pose de Pen comunicavam que não se passava nada de inaudito. Diane sentia o constrangimento da amiga, porém. Viu nos olhos de Pen a constatação do
custo total de se ter separado do marido.
De repente, Pen ficou hirta. O conde de Glasbury, um homem esguio de meia idade, de cabelo grisalho, sobrancelhas espessas, e uma boca murcha, atravessara a divisória
e vinha na direção delas.
O círculo de Pen afastou-se um pouco para trás para dar espaço ao confronto privado. Todos davam mostras de não reparar em nada, mesmo se dúzias de olhos se esforçavam
para acompanhar a marcha do homem.
- Pelo menos ninguém está a lamber os lábios de expectativa sussurrou Pen.
- Que comedimento impressionante.
O olhar do conde centrou-se em Pen. A Diane pareceu-lhe ser o tipo de homem que gostava de falar de alto com os outros, como fazia com a mulher agora.
- Como vos encontrais, minha querida?
- Encontro-me bastante bem.
- É certo que sim. A cidade inteira fala nisso. Tornastes-vos na inveja de todas as mulheres desvairadas de pouco discernimento e menor discrição. Tendes a vossa
própria casa e carruagem. Tendes liberdade para vos comportardes escandalosamente. Tendes o prazer de proteger A prima de um mercador.
Diane não foi insensível ao ênfase nem à insinuação. Daniel ouviu, mesmo estando a dez metros. As suas pálpebras semicerraram-se, mas esta foi a sua única reação.
- Olhai lá... - começou Vergil.
- Agradeço-vos, mas eu trato do assunto, Vergil. - Pen encolhera-se quando o conde se aproximara, mas agora a sua coluna endireitava-se. - Não é avisado para um
libertino descarado censurar outro homem de semelhante forma, meu querido.
- Também é perigoso - acrescentou Vergil.
O conde exibiu um sorriso escarninho. - O mundo está perdido nestes últimos anos, com condessas e duquesas tão pouco criteriosas. Como se dinheiro e uma cara bonita
fizessem um homem.
Pen sorriu. - Mais vale dinheiro e uma cara bonita do que carne velha amarga e degenerada.
- Admira que tenhais vindo, se desprezais assim tanto o círculo de Lady Pennell - interveio Vergil.
- Resta esperar que as suas festas sejam mais agradáveis depois desta noite. Além disso, vim para ver a minha mulher. Está na altura de esta separação confrangedora
cessar.
- Então perdestes o vosso tempo. Não voltarei para vós.
- Se eu decidir que sim, não tereis escolha. A lei...
- Fazei o que quer que seja para coagir a condessa e a lei saberá mesmo de tudo. - A ameaça náo viera de Vergil. Julian Hampton aproximara-se para ouvir e interrompia
agora com uma voz muito calma.
O conde fulminou-o com o olhar. - Ela não se atreveria.
Hampton correu a assembleia com os olhos, vendo tudo e náo vendo nada. - Claro que sim. E acreditais nisso, senão nunca teríeis concordado com os termos de separação
que negociei. Ora, eu tinha planeado passar estes dias na cidade, não a aborrecer-me numa festa campestre. Parece-me a mim que esta casa e este grupo são grandes
o bastante para vós e a condessa não precisardes de voltar a falar. Fazei-me esse favor, para amanhã poder retirar-me.
Afastou-se, sem falar com mais ninguém.
Lívido, o conde também se retirou.
- As minhas desculpas pela forma como vos insultou e ao vosso primo - disse Pen. - Assim como por ter falado táo livremente à vossa frente.
Diane sabia que ele tinha falado tão livremente porque a considerava tão insignificante que seria um desperdício de discrição. Da mesma forma que os homens como
ele não notavam a presença de criados, ignorara-a.
Vergil inclinou-se e sussurrou à orelha de Pen, mas Diane ouviu na mesma. - Onde fica o vosso quarto?
- Na ala este. Insisti que Diane o dividisse comigo.
- Muito bem. Far-vos-ei uma visita, de qualquer forma.
A sala esvaziava-se quando Vergil abordou Daniel. - Hampton e eu vamos jogar às cartas. Porque não juntardes-vos a nós?
- Julgo que não. Raramente jogo com amigos.
- Fazei-me a vontade, St. John. Tenho uma noite longa pela frente, e como Hampton nunca fala será insuportável.
Relutante, Daniel concordou. Vergil não estava em condições de perder às cartas, o que significava que Daniel teria de tomar
providências para o deixar ganhar. Ele não se importava, mas o jogo ficava menos interessante.
Acompanhou Vergil, saindo ambos da sala. Não entraram na biblioteca como Daniel previra. Em vez disso, Vergil apontou-lhe a escada. - O quarto de Pen tem uma saleta.
Não há razão para fazermos os criados ficarem acordados para nos atender, e se jogarmos lá, já não será necessário.
Quando subiam a escada, outro homem descia-a. AndrewTyndale saudou-os de passagem.
Daniel deteve Vergil. - Porque não convidá-lo também? com quatro o jogo é mais recreativo.
- É melhor não.
- Duclairc, vamos jogar às cartas naquela sala para proteger a vossa irmã caso o conde se dirija lá hoje à noite com intenções desonrosas, estou certo?
O rosto de Vergil endureceu ao ver-se confrontado com esta formulação tão direta.
- E não é muito melhor se um dos amigos do conde estiver lá sentado connosco? Há menos probabilidade de as coisas se descontrolarem, caso as vossas suspeitas se
confirmem.
Vergil acenou com a cabeça a contragosto. Desceu as escadas atrás de Tyndale, chamando-o.
Daniel ficou a observar enquanto o convite era feito. A noite de cartas poderia revelar-se interessante, afinal. Não gostava de ganhar com amigos, mas não tinha
pruridos desses com inimigos.
Vergil voltou com Tyndale a reboque. Harnpton aguardava no alto do segundo patamar. Os quatro percorreram a ala este até à saleta de Pen.
- Bem, tendes de nos prometer que não vos ides embebedar nem fareis uma barulheira, sem nos deixar dormir toda a noite admoestou Pen enquanto eles colocavam uma
mesa e cadeiras no centro da divisão. Contando com a sua chegada, ela mandara trazer vinho e whisky.
Daniel percebeu que Pen se referia a ela e Diane. Não reparara que elas partilhavam um quarto. Imaginou que ter a sua dama de companhia por perto seria outra tentativa
por parte da condessa de frustrar qualquer tentativa do conde de reivindicar os seus direitos de marido, dado que passavam a noite sob o mesmo teto.
Também significava que Daniel iria ter Diane por perto naquela noite. A câmara não era grande, e a proximidade acentuou imediatamente a tensão que crescia silenciosamente
entre eles desde que ele chegara à casa. Durante o serão inteiro apercebeu-se da consciência que ela tinha da presença dele, e do que acontecera, mesmo que ela fingisse
que ele não existia.
Ela continuava a ignorá-lo agora. Estava sentada à escrivaninha, a arranhar qualquer coisa num papel, não mostrando qualquer interesse pelos homens que se instalavam
para jogar. A condessa estava empoleirada num banco. Parecia que as mulheres iam ficar um pouco antes de se retirarem, para dar aparência de um convívio privado.
Daniel escolheu a cadeira que lhe permitia ver Diane, ainda que ela fosse distraí-lo. Não queria Tyndale naquela posição. Ver Tyndale observar Diane iria distraí-lo
ainda mais.
A sua jogada astuta serviu de pouco. Diane finalizou a sua tarefa e foi para o banco, para junto da condessa. O que a colocou numa localização excelente para Tyndale
lhe sorrir e para ela lhe devolver o sorriso.
Diane também sorria a Vergil e Hampton. A única pessoa a quem não concedia atenção era Daniel. Dava-se a grande trabalho para nem sequer olhar na direçáo dele, como
fizera o serão todo.
Ele não se deixava enganar minimamente. Podiam bem estar sós, abraçando-se, tão intensa era a ligação entre os dois. Ela podia não o querer, podia até estar ressentida
com isso, mas era inegável que estava lá, afetando o ar, o tempo e a luz.
- O vosso jogo está fraco, St. John - disse Hampton quando Daniel perdeu mais dez libras para Andrew Tyndale.
- Talvez não seja o jogo dele que é fraco mas o de Mister Tyndale que é bom - propôs Diane.
Tyndale apreciou o elogio mais do que seria adequado.
Daniel apanhou o olhar de Diane quando este passava inadvertidamente por ele. Prendeu-o e concedeu-se a si próprio uma recordação breve, intensa e expressiva do
envolvimento deles no ribeiro, uma recordação cheia dos suspiros e do anseio dela, do que aconteceu e quase acontecera. Ela começou a corar, como se o olhar dele
comunicasse a imagem e as sensações.
- Porque não aumentamos a aposta? - perguntou Daniel. - Os cavalheiros deviam tirar partido do meu jogo fraco.
- com certeza. Já agora, fazemos render o nosso tempo - aprovou Tyndale.
Hampton não avançou nenhuma opinião, mas o olhar que lançou a Daniel era especulativo. - Talvez as senhoras queiram retirar-se. Podemos continuar sozinhos.
- Credo, não - ripostou a condessa. - Não quando vai começar a diversão a sério. Além disso, devo ficar para arrastar o meu irmão daqui antes que ele se arruine.
Vergil suspirou. - Bolas Pen, eu não sou Dante.
- Por falar em Dante, a última vez que o vi tinha posto Mrs. Thornton a fazer uns barulhinhos parvos enquanto folheavam um livro - comentou a condessa. - Onde está
ele, Vergil?
- Penso que se retirou, madame. - O tom de Hampton sugeria que quanto menos perguntasse acerca das circunstâncias e orientação da retirada de Dante, melhor. Começou
a dar as cartas. - Cinquenta libras, cavalheiros?
Tyndale e Vergil assentiram com a cabeça. Hampton olhou para Daniel, procurando o seu acordo.
A aposta elevada pareceu perturbar Diane, e não seria por ela temer que o seu benfeitor pudesse ficar mal. Daniel ficou com a distinta impressão de que ela se preocupava
apenas com Tyndale.
A sua atitude era provocatória. Cada expressão impassível negava a verdade e rejeitava a forma como se tinham unido tão completamente naqueles abraços e ainda estavam
unidos nesta câmara.
Pior, agora ela encorajava deliberadamente Tyndale, apesar do aviso que recebera.
Sentiu crescer na sua mente uma irritação aguda. Manteve-a controlada, mas não deixava de o afetar. Ele renunciara ao sonho de uma vida pela beldade que agora cobria
de atenções o seu atacante em potência. Ele sacrificara-o por ela e por algo que nem sequer podia acontecer, e ela agia como se ele não significasse nada para ela,
mesmo derretendo com o toque dele.
Voltou a atenção para Tyndale.
- Porque não cem? - disse.
As pálpebras de Tyndale desceram, aquiescentes, mas a sua resposta foi interrompida pela porta da sala, que se entreabriu, rangendo.
Uma nova visita entrou. Primeiro o traseiro. Recuou, de olhos no corredor para se certificar de que não tinha sido visto.
Hampton pousou as cartas e cruzou os braços. Vergil estava tão irado, que parecia capaz de matar alguém, de tal modo que Daniel lhe colocou uma mão firme no braço.
Tyndale sorriu, divertido.
O visitante fechou a porta com grande e silencioso cuidado. Virou-se.
O conde de Glasbury precisou de um momento para compreender que se não enfiara sub-repticiamente numa câmara vazia, mas que interrompera um pequeno convívio. A surpresa
deixou-o especado, a boca flácida aberta de espanto.
- Queríeis alguma coisa, querido? - perguntou a condessa. A sua boca parecia a de um peixe.
Todos aguardaram, deixando-o especado feito espantalho. Até o seu amigo Tyndale aproveitou o momento mais do que um amigo devia.
Foi Hampton que o safou. - Sem dúvida que soubestes do nosso jogo particular por algum criado e vos quisestes juntar.
- Sim, é isso.
Não o safou completamente. - Por sorte a conversa do criado estava correta, ou isto poderia ser mal interpretado e custar-vos muito caro.
O conde ficou muito rosado. Recompondo-se, olhou de alto para a assembleia. - A conversa dele estava incorreta. Disseram-me que a mesa incluía jogadores mais interessantes.
- Desde que haja dinheiro para se perder, não somos esquisitos quanto à estirpe do homem que o perde - declarou Daniel. - Portanto, sois livre de vos juntar a nós.
O conde endireitou-se, indignado com o insulto. A sua mão recuou até ao trinco da porta. - Não me parece. Eu sou muito esquisito quanto à estirpe dos homens aos
quais me associo. Perdoai a minha intrusão.
- Dormi bem, querido - disse-lhe docemente a condessa quando ele virou costas.
Diane parecia muito preocupada com os progressos erráticos de Tyndale no decorrer da última hora. O seu rosto iluminava-se de deleite quando ele ganhava e entristecia-se
quando ele perdia.
O que deixou Daniel fora de si. Como resposta, prolongou a destruição que estava na sua intenção concretizar.
À medida que o jogo se tornava mais imprudente, Hampton, comentando que a noite terminaria com a diminuição acentuada da fortuna de um dos homens, retirou-se completamente,
não fosse caber-lhe ser esse homem.
Às trezentas libras, Vergil também se retirou.
Daniel aproveitou a oportunidade para muito rapidamente perder mil para o único opositor que lhe restava.
- A vossa sorte tinha melhorado consideravelmente, St. John
- disse Tyndale enquanto se distribuíam cartas mais uma vez. Parece que a maré voltou a virar, todavia.
- A minha sorte é sempre inconstante, é o que é. Além disso, a condessa é um fator de distração.
- Como também vossa prima - disse Tyndale jovialmente, oferecendo um sorriso a Diane.
No que respeitava a Daniel, fora-lhe atirada uma luva.
- Se somos tão grandes distrações, está na altura de nos retirarmos. - A condessa levantou-se, e todos os outros também. - Fazei como se estivésseis em casa, cavalheiros.
Obrigada pela vossa companhia.
Diane seguiu-a até à outra câmara. Daniel ouviu os sons indistintos que, do outro lado da parede, revelavam mulheres a prepararem-se para ir para a cama. Permitiu-se
a fantasia de imaginar Diane a despir-se e a lavar-se e a cuidarem-lhe do cabelo, e perdeu mais duas mil libras no seu desenrolar.
Por fim os sons pararam. Uma criada saiu e retirou-se.
Daniel imaginou Diane encolhida do lado dela, pálpebras fechadas e rosto adorável em repouso.
Varreu a imagem da sua mente. Virou cada pedacinho da sua atenção paraTyndale. - Que tal se jogássemos a sério? O que dizeis a duzentas?
CAPÍTULO 15
Diane, sobre que vos debruçais? - perguntou Pen.
- Uma carta. - Diane escrevera duas na noite anterior e não ficara satisfeita com nenhuma delas. A longa, que explicava a sua história toda, certamente não serviria.
Nem aquela que se desfazia em súplicas. Agora, escrevinhava à pressa um simples pedido de informação relativo a um Jonathan Albret, armador, se o pastor de Fenwood
acaso o conhecesse.
Incluiu a sua morada de Londres e selou a carta antes de ter oportunidade de lhe mexer muito. Levou-a para o quarto de dormir, onde a criada acabava de arranjar
o cabelo a Pen.
- Como posso enviar isto? - inquiriu.
Pen pegou na carta e atirou-a à criada. - Dai-a ao mordomo. Ide-vos. Estou pronta.
A mulher saiu. Pen espreitou para o espelho e torceu um dos caracóis soltos que lhe emolduravam o rosto. - Que dia terrível tenho à minha frente. Uma excursão ao
mar, nada menos. Vai estar um vento cortante, por mais bonito que o dia esteja. Os homens saem mais cedo, para pescar, e depois nós vamos ter com eles, mas eu terei
de estar perto dele a maior parte do dia, e depois de ontem à noite ele assusta-me mais do que nunca.
Pen referia-se ao conde, mas as suas palavras retratavam o desconforto de Diane. Depois da noite anterior, Daniel também a assustava mais do que nunca. Ou melhor,
fazia-a ter medo de si própria.
Fora igualmente horrível e maravilhoso, estar sentada na salinha exterior enquanto os homens jogavam às cartas. Ela mal olhara para Daniel, e os olhos dele passavam
por ela de relance, mas as sensações físicas que ele despertara no ribeiro tinham regressado no momento em que ele entrara. As mãos que seguravam as cartas poderiam
estar a acariciar-lhe o corpo, e a boca que bebericava o vinho poderia estar a beijar-lhe o pescoço e o seio.
Ele soubera. Aquele olhar único, quente, dissera-lho. Ele brincara com ela também, mantendo as memórias vivas, tornando tudo pior. Ela vira-se impotente para o deter
e demasiado fraca para alegar uma dor de cabeça e sair como devia ter feito. A agitação física e a consciência viva um do outro eram imperiosas de mais, deliciosas
de mais, para serem negadas.
A ideia de passar o dia em semelhante estado deixava-a desalentada. Precisava de passar tempo longe dele, para compor as suas emoções. Tempo para tentar voltar a
pôr as coisas no sítio.
- Não estou a sentir-me muito bem, Pen. Acho que devia ficar aqui a descansar.
Pen desviou o olhar do espelho com preocupação. - O que vos inquieta, querida? Se vos fiz ficar doente por vos obrigar a ficar de pé até tão tarde...
- Não é nada grave. Apenas estou muito cansada.
- Talvez deva ficar convosco, não vá...
- É atencioso, mas não é necessário. Não estou doente. Penso que vou apanhar um pouco de ar e depois voltar e dormir.
Pen ponderou. Por fim, abanou a cabeça. - Se eu ficar todos dirão que se trata de um estratagema da minha parte, como resposta à noite de ontem. Não, tenho de ser
corajosa e ir para a frente. Manter-me-ei firme apesar do dia prometer ser terrível. - Riu-se, amarga.
- E pensar que não procurei o divórcio para lhe poupar o escândalo
a ele. Bem, Mr. Hampton bem me avisou que é sempre a mulher quem paga.
Andrew Tyndale espiava da janela as carruagens que desciam a rua. O seu olhar fixou-se numa, muito cara. Quatro cavalos pretos puxavam-na, de longe muito melhores
do que os animais que ele próprio detinha. Vexava-o que Daniel St. John pudesse dar-se a tais luxos.
Vexava-o ainda mais que, a partir desta altura, tivesse meios para adquirir muitos mais.
No valor de vinte mil libras.
O que raio acontecera ali?
Era a pergunta que se repetira na sua cabeça desde a madrugada até ao nascer do dia.
Nunca perdia muito nas mesas de jogo. Desprezava homens que não sabiam quando se retirar, homens que arriscavam demasiado e tinham a ruína como resultado. Nem sequer
gostava muito de cartas. Preferia de longe jogos em que a sorte não tinha qualquer papel. Jogos que sabia que ganharia, porque ele fazia as regras.
Tinha sido culpa da rapariga, concluiu. Distraíra-o solenemente enquanto lá estivera. Não podia ter mais de dezassete anos, avaliou, mas ela tinha uma pose, um ar,
que sugeria a existência de uma sensualidade suculenta por baixo daquela postura inocente. Passara muito tempo desde a última rapariga refinada, o que a tornara
mais apelativa. As raparigas que Mrs. P encontrava eram bezerras ignorantes e estúpidas. Ele preferia de longe poldras bem-nascidas.
Sim, distraíra-o solenemente. Pusera-o num estado de excitação enquanto permanecera na sala. A bem ver, andava a ficar muito naquele estado desde a primeira vez
que reparara nela naquele baile.
De alguma forma, a disputa deles passara a ser sobre ela. Na altura não compreendera, mas olhando para trás... Os sorrisos dela quando ele ganhava, a preocupação
quando perdia, o desagrado do primo... Tudo tivera um papel, estava muito certo agora.
Mesmo assim, vinte mil libras? Não havia cara bonita que lhe fizesse aquilo. Estivera a ganhar tantas vezes durante a noite, por largas quantias, que constatar o
quanto perdera, no fim, fora um choque.
Pior, a dívida deste cavalheiro tinha testemunhas das quais ninguém duvidaria.
As carruagens faziam-se pequenas com a distância, em direção à costa. Furtara-se à excursão pesqueira, alegando indisposição, ainda que St. John fosse compreender
bem o que se passava. Não se ralava minimamente. Tinha problemas maiores do que a opinião de um armador.
Sentiu-se tomado por uma fúria raivosa, como tantas outras vezes desde que saíra da saleta da condessa. Viu novamente o brilho de triunfo nos olhos de St. John,
quando Hampton fazia a contagem. O Diabo tinha provavelmente o mesmo aspeto quando arrebatava a alma de algum homem.
Só havia uma explicação, era evidente. O sacana fizera batota. Como, Andrew não estava certo, mas fora isso que ocorrera.
As carruagens tinham desaparecido e a entrada estava deserta.
Um movimento perto da casa, próximo, chamou-lhe a atenção. Um vulto esguio de cabelo cor de avelã em madeixas desarranjadas entrou no seu ângulo de visão.
Olhando Diane Albret, ocorreu-lhe uma saída para o dilema. Tinha um toque de justeza moral, e também iria funcionar. St. John tinha arrogância e orgulho bastantes
para garantir que sim.
Mesmo com aquele verniz todo, a rapariga não era ninguém. St. John também, em rigor. Quando tudo terminasse, as pessoas relevantes concordariam que St. John tinha
sido um parvo e Andrew fora grandemente lesado. Além do mais, as vinte mil libras já não iriam importar.
Afinal, mortos não podem cobrar dívidas particulares.
Depois de ter ido apanhar ar, para espairecer, Diane regressou ao quarto, onde ficou até ouvir atividade no exterior, indicando-lhe que as mulheres saíam para se
juntarem ao grupo que estava na costa.
Só regressariam à tardinha. O que queria dizer que tinha um longo dia só para si.
Já tinha decidido como o passar. Enquanto caminhara, olhara para a sua vida sem contemplações. Não ficara agradada com o que vira.
Admitira para si própria que, mau grado todas as garantias de Daniel, ela não estava a salvo do interesse dele.
Foi até ao guarda-vestidos. Ao enfiar os botins, admitiu que não estava a salvo devido às suas próprias reações. Os beijos dele podiam ser escandalosos, mas não
mais do que a forma como ela os permitia.
Bem, ela não era a mesma rapariga que deixara Madame Leblanc em Rouen. Aprendera alguma coisa sobre o mundo nos últimos meses. Sabia que Daniel tinha tomado alguma
decisão a propósito dela no dia anterior à beira daquele ribeiro, e que da próxima vez aqueles beijos não iriam parar.
E haveria uma próxima vez. Não duvidava disso.
Tirou a capa do guarda-vestidos. Desejou ter levado as suas velhas roupas da escola, e não era só por a ajudarem a estar menos exposta. Incomodava-a levar a cabo
a missão do dia vestida com as coisas que lhe tinham sido compradas por um homem que não era nem seu parente nem seu tutor.
Toda a gente sabia o que isso geralmente queria dizer.
Tinha sido incrivelmente ingénua ao acreditar em Daniel quando ele dizia que, no caso deles, não era isso.
Devidamente vestida para sair, atravessou a casa silenciosa. Era altura de recordar o porquê de estar sequer em Inglaterra. Se descobrisse a vida que tivera antes
de Daniel St. John entrar nela, talvez existisse algo para a ancorar e suster quando cortasse os laços que tinha com ele.
Assim o esperava. Não estava certa de conseguir fazê-lo de outro modo. A própria ideia doía-lhe tanto, deixava-a tão desolada, que
se sentara no jardim, tentando não pensar nela. No entanto, acabara por aceitar aquilo que tinha de fazer.
Precisava de abandonar aquela casa, e a irmã dele, e os presentes e a generosidade dele. Precisava de fugir do calor e dos abraços dele.
Precisava de o deixar.
Prosseguia, resoluta, olhos enevoando-se, o vazio detestável espraiando-se, inchado, omisso e pesado, no seu coração.
Pelos corredores da casa deambulava uma criada ou outra, e ela pediu a uma delas que lhe procurasse Mary. A bonita rapariga foi ter com ela à cozinha.
- Como se dá com a vossa aldeia? - perguntou Diane.
- Estais a pensar lá ir, senhora?
- Um dia, talvez.
- Só sei ir para lá daqui. Ides pela estrada oeste até Witham, e virais para norte, e depois ides outra vez para norte em Brinley.
- Fica a duas horas de distância, dissestes?
- Talvez um bocadinho mais. Os caminhos são só terra depois de se chegar a Witham. Não sei a que distância fica de Londres.
Diane saiu da casa pela porta dos criados, ao pé da cozinha. Pareceu-lhe apropriado fazê-lo, como fazia nos primeiros dias em Paris. Não era a boneca do abastado
Daniel St. John que arrancava dali naquele dia. Era a órfã sem um tostão, de origem tão obscura que não interessava a ninguém.
Duas horas de carroça, dissera Mary.
Uma pessoa conseguia andar mais depressa do que uma carroça.
Foi para oeste pela estrada. Regressaria bem antes de Pen e dos outros voltarem da costa.
Uma hora mais tarde, soube a razão por que as pessoas escolhiam carroças lentas em vez de passos rápidos.
Calçara os seus botins, mas os modelos que se vendiam nas lojas de Paris eram delicados, para não dizer pior. Os que tinha nos pés,
com as suas solas finas, não pareciam capazes de sobreviver a um dia na estrada.
Piorou quando enveredou pelo caminho de terra em Witham. Sentia todos os sulcos e pedras através das solas. Tentou ignorar o desconforto e repreendia-se a si própria
por ser tão mole. Era o que o luxo fazia às pessoas, Madame Leblanc sempre ensinara. Tornava-as moles e fracas e dadas ao pecado.
Como era verdadeiro. Como era tão, tão, verdadeiro.
Viu a imagem de Madame a entoar as suas lições de moral. Tentou aceitar a dor nos pés como castigo por gostar tanto dos beijos de Daniel. Disse para si própria que
cada um dos toques era mau e pecado e era marca de um homem em quem não se podia confiar. Um sedutor. Um predador. Um demónio.
O seu coração não o aceitava. Não sentia que houvesse pecado no que dizia respeito a Daniel.
Meditava sobre aquela nova verdade quando o som de uma carruagem a aproximar-se captou a sua atenção. Desviou-se, para a deixar passar.
Para sua surpresa, a carruagem veio parar ao seu lado. Andrew Tyndale estava sentado num cabriole de dois cavalos, rédeas nas mãos, olhando-a surpreendido.
- Miss Albret, que fazeis aqui?
- Vim só dar um passeio. O que fazeis vós aqui?
- Decidi tirar o dia para ir ao campo visitar um amigo. Deixai-me levar-vos para casa primeiro, no entanto. Temo que estejais mais longe do que pensais.
- Não vos incomodeis. Tendes coisas a fazer. Não poderia permitir que vos atrasásseis por minha causa.
- A demora será pequena, e insignificante, em todo o caso. Por favor permiti que vos auxilie.
- Nunca me perdoaria a mim própria ter-lhe causado algum inconveniente. Ficarei bem. Palavra. Gosto de dar longos passeios. Adoro. Continuai o vosso caminho conforme
planeastes, e eu vou...
Ele apeou-se da carruagem. - Nem pensar nisso. Deixai que vos ajude a subir.
Era de mais. De cada vez que reunia coragem para perseguir o seu objetivo, havia algum homem, determinado a ajudar e proteger, a interferir.
Ignorou a oferta de Mister Tyndale e deixou-se cair em cima de um pedregulho na berma da estrada. Enfiou a cabeça nas mãos e ficou a olhar para a ponta dos sapatos
mutilados.
- Há algum problema, Miss Albret?
- Tudo é um problema.
- Não compreendo.
Diane ergueu o rosto. Os olhos dele não eram fundos e imperscrutáveis e perigosos como os de Daniel. Eram transparentes, meigos e muito solidários. A sua expressão
aberta fê-la sentir-se logo melhor. com este homem não havia mistérios, sombrias confusões, nem taciturnas perturbações.
Preocupara-se um pouco com ele na noite anterior. Vendo-o jogar às cartas com Daniel, teve a impressão de que não estaria à altura do Homem Diabo, e estava condenado
a perder. Como ele parecia estar bem humorado, era óbvio que não tinha sido assim tão mau.
- Não estou a andar só para me distrair - disse ela, deixando sair a confidência sem uma decisão real. - vou a uma aldeia chamada Fenwood. Soube que tenho lá um
familiar e vou visitá-lo.
Preparou-se para que ele lhe lembrasse educadamente que deveria ter dito à dona da casa, ou a Pen, para que uma das duas providenciasse uma carruagem para a levar.
Ela não queria ter de explicar que não queria que ninguém soubesse que estava a fazer aquilo. Iria ter de fingir ser estúpida ao ponto de não se ter lembrado de
tais coisas.
Afinal, a expressão dele aligeirou-se, como se a explicação dela fizesse todo o sentido do mundo. - Este familiar aguarda-vos?
- Não. Só decidi ir hoje de manhã. Nunca cheguei sequer a conhecê-lo. Houve um distanciamento...
- Tendes a certeza de que vos receberá?
Não pensara naquilo. O pastor podia ser parente dela, mas não querer ter nada a ver com a filha de Jonathan Albret. Viu-se especada em frente à residência do pastor
e a fecharem-lhe a porta na cara.
- Não se apoquente, provavelmente correrá como esperais. Havia tanta gentileza no sorriso de Mister Tyndale enquanto a tranquilizava que ela teve de lho devolver.
- A minha visita pode esperar até amanha - disse ele. - Porque não levar-vos até Brinley? Fica perto de Fenwood. Podeis esperar lá e eu levo uma mensagem da vossa
parte ao vosso familiar. Se ele estiver de acordo, podeis ir fazer-lhe a vossa visita. Assim, também não tereis de voltar a pé, e estaremos de regresso à casa antes
dos outros.
Uma nota alegre e cúmplice infiltrou-se na última frase. Ele pensava que ela escondia a visita de Daniel por o afastamento ter sido obra dele.
A interpretação de Mister Tyndale era conveniente, porém. Ela dificilmente poderia explicar que não era prima de Daniel e que a pessoa era apenas parente dela. Além
disso, poderia ser melhor fazê-lo como Mister Tyndale sugeria, e enviar primeiro um pedido ao pastor.
- Mostrais-vos muito amável e generoso, Mister Tyndale.
- De todo, Miss Albret. De todo. É para isso que servem os amigos. - Apontou para o veículo. - Vamos?
- Adoro o mar - disse Hampton. Eram as primeiras palavras que pronunciava numa hora. - É o melhor exemplo do sublime. Posso dizer que estou satisfeito por não ter
regressado hoje à cidade.
- Eu detesto o mar - ripostou Daniel. Nunca compreendera aqueles disparates poéticos sobre o sublime, mas se o mar era exemplo disso, também detestava o sublime.
- Um sentimento inusitado, St. John - prosseguiu Vergil. -A vossa fortuna, fê-la o mar.
Daniel não queria saber que lhe tivesse feito a fortuna. Passara anos a balouçar nas suas ondas, mas não gostava minimamente dele.
Detestava a sua imprevisibilidade e a sua vastidão. Odiava a forma como fazia um homem sentir-se pequeno e à mercê do destino. Incomodava-o que as suas ondas ritmadas
conseguissem trazer à tona verdades das profundezas da alma de uma pessoa.
De todas as coisas que os homens faziam para fingir que conseguiam impor a vontade humana ao mar, a pesca desportiva sempre se lhe afigurara a mais ridícula. Era
uma forma de duelo, só que o opositor era primevo por natureza.
Daniel estava de pé numa rocha entre Vergil e Hampton, mais as suas longas canas de pesca no meio de todo o ridículo arraial. Ele e os outros homens do grupo testavam
as suas débeis capacidades contra a mais eterna força do planeta. Apanharam-se de facto alguns peixes, com grande alarido e excitação.
Vergil apanhara um enorme e escorregadio. Hampton não, mas tanto se perdera em contemplação que não se mostrara minimamente aborrecido.
Apenas o jovem Dante revelava inquietude. Estava sentado no chão ao lado das pernas do irmão, mostrando-se impaciente com o desporto e nem um pouco impressionado
com o sagrado sublime.
- Quando chegarão as senhoras, que achais? - inquiriu.
Sim, quando chegariam elas, que raio? Quando chegaria ela? Daniel forçara-se a não olhar para a estrada, a ver se chegavam, mas os seus ouvidos estavam permanentemente
à escuta de sons de carruagens.
- Seria de pensar que já tivésseis tido a vossa parte - murmurou Vergil, lançando um olhar irritado à cabeça do irmão. - Compreendeis, espero, que se algum marido
alguma vez vos pedir contas, sois um homem morto.
- Por falar nisso, talvez tenha chegado a altura de ele começar a ter lições com o chevalier - sugeriu Hampton. - Tendo em conta o seu gosto por feitos atléticos,
seria dinheiro bem gasto.
Dante ergueu os olhos, subitamente mais rapaz do que homem.
- E julgais mesmo que me desafiariam, a sério? Não é como se algum dos velhadas se importasse, de facto.
- Ser traído por um rapaz que ainda nem sequer saiu da universidade pode despertar o interesse do mais enfadado dos homens
- rematou Vergil.
- Rapaz uma ova. Não sois muito mais velho do que eu...
- Sou o suficiente para saber uma coisa ou duas a propósito de discrição...
Daniel parou de ouvir a querela dos irmãos. Outro som absorveu a sua atenção.
Aproximavam-se carruagens.
Finalmente.
Fez questão de mostrar que verificava a linha em vez de olhar para a estrada como ansiava fazer. Calculou a aproximação apenas pelo som enquanto lutava para dominar
a expectativa crescente, quase demente.
Cerrando os dentes, fixou os olhos no mar, mas isso só fez com que as malditas ondas fossem uma distraçáo, despoletando redemoinhos de memórias de paixão e prazer.
Anseios de posse soltavam-se como chamas das brasas acesas de desejo que há semanas ardiam dentro dele.
Ele fechou os olhos e forçou comedimento às suas reações. Estava a ser mais infantil do que Dante. Mais imprudente. Nem sequer sabia o que dizer quando voltasse
a vê-la. Não sabia ao certo o que queria dizer.
- Ah! As senhoras chegaram - anunciou uma voz ao fundo da fila de homens.
Daniel aguardou que as carruagens parassem para lançar a linha. Criados começaram a esticar panos e a dispor cestos na colina viçosa para lá da estrada.
Reparou no conde, que fixava atentamente uma carruagem. Seguindo a direção do seu olhar, Daniel viu a condessa a sair.
Seguiram-se duas outras senhoras. Daniel aguardou que aparecesse outra cabeça na abertura. Uma bela cabeça, com olhos emotivos que conseguiam fazer um homem esquecer-se
de si próprio.
Em vez disso, o lacaio fechou a porta da carruagem.
Daniel perscrutou o grupo, procurando Diane.
Encaminhou-se na direção da condessa, parada entre três mulheres que estavam a conseguir falar à volta dela, como se ela nem existisse. Desculpando-se como se tivesse
sido incluída, apanhou-o a meio caminho com um sorriso de gratidão.
- Quanta gentileza da vossa parte terdes vindo salvar-me, Mr. St. John.
- Seria uma satisfação acompanhar-vos, mas pergunto-me onde está a minha prima.
- Ela ficou na casa, para dormir. Foi irrefletido da minha parte tê-la deixado ficar a pé até tão tarde ontem à noite, e hoje de manhã estava muito cansada. Confesso
que fiquei tentada a me furtar a vir também, mas... - Indicou o conde com um olhar expressivo, e depois as suas companheiras de carruagem. - Uma pessoa tem de manter
as aparências e ser corajosa e isso tudo.
Daniel teria de longe preferido que a condessa tivesse cedido às suas inclinações para se esconder. A sua bravura significava que Diane fora deixada desacompanhada.
Não havia razão para a condessa se preocupar com aquilo, mas para Daniel sim.
Havia outro membro do grupo que não tinha mostrado a mesma coragem da condessa. Andrew Tyndale também pedira para ser dispensado da excursão.
O que significava que Diane não estava completamente sozinha na casa com os criados.
- Peço desculpa, mas afinal não terei possibilidade de vos fazer companhia. O vosso irmão cuidará de vós, tenho a certeza. Sinto-me obrigado a regressar à casa,
para me certificar de que a minha prima não se encontra doente.
- Estou certa que não. Apenas cansada...
Ele deu meia-volta e estugou o passo até à carruagem, não aguardando pelo outros. Notou que Vergil e Hampton o tinham visto. A expressão que fizeram e a rapidez
com que o intercetaram na carruagem sugeriam que ele não conseguia esconder bem a sua preocupação.
- vou voltar à casa, Duclairc. A vossa irmã precisa da vossa companhia neste momento.
- Ides regressar? Porquê?
- A minha prima ficou para trás. Está doente, e eu devo atendê-la.
- Estou certo de que se fosse sério Pen...
- vou lá verificar, de qualquer forma. - com um gesto, indicou ao cocheiro para partir.
A mão de Vergil travou o braço de Daniel quando este subia para a carruagem. - Parece-me que vou convosco. Jantar ai fresco enfada-me.
Daniel olhou para aquela mão e depois para Vergil. A desaprovação que Vergil mostrara no ribeiro cintilava-lhe nos brilhantes olhos azuis.
- A vossa irmã precisa de vós ao lado dela, e eu não tenho necessidade de auxílio.
- Mesmo assim...
- Permiti-me que seja eu a regressar - propôs Hampton. - A intrusão súbita deste barulho todo estragou-me o resto do dia. Penso que afinal sempre regressarei a Londres.
Não vos importais de me levar até ao meu cavalo, pois não, St. John?
Hampton, que raramente sorria, fazia-o agora com uma firmeza afável que informava que Daniel não regressaria sozinho para a casa e para uma Diane desacompanhada.
Raios. Era pouco provável que Vergil tivesse partilhado as suas suspeitas. Hampton devia ter sentido o que existia entre eles na noite anterior durante a partida.
Quem mais o teria visto? A condessa?
Tyndale? !
Devia dar uma sova a ambos por o insultarem com a insinuação de que ele não podia ser deixado sozinho com a prima.
Só que, claro, tinham razão.
Saltou para a carruagem. - Vinde, se quereis. Como se eu me importasse.
CAPÍTULO 16
Diane aguardava com impaciência, ensaiando o que iria dizer quando se encontrasse com o pastor. Visões de um reencontro banhado em lágrimas sucediam-se na sua mente,
pequenos dramas escritos ao longo dos anos, quando se deitava na cama da escola.
Ela esforçava-se para deter a imaginação. O pastor podia nem sequer aceder a vê-la. Podia não ser seu parente. Podia ser-lhe tão afastado que não tivesse interesse
numa associação.
Apesar de dizer a si própria aquilo tudo, a expectativa continuava a crescer. Durante cerca de meia hora depois de Mister Tyndale sair ainda conseguiu contê-la,
mas com o passar do tempo não parava de se avolumar.
Foi até à janela pela vigésima vez, para espreitar a rua à procura da carruagem. Brinley não era uma aldeia grande e a estalagem era minúscula. Mister Tyndale tivera
a generosidade de pagar um quarto para ela não ter de esperar na sala comum.
Era um quarto humilde mas bonito. Cortinas de musselina enfeitavam a janela e a cama. Umas alegres almofadas amarelas salpicavam a colcha azul e simples. Era o tipo
de quarto que ela presumira que teria quando fora para Paris com Daniel. Em vez disso, ele pusera-a dentro de um vaso de porcelana branco e azul.
Avistou uma carruagem. Mesmo não sendo maior do que um ponto, ela sabia que era de Mister Tyndale. O seu coração disparou. Tentou recuperar a compostura, lutou para
domar a esperança. Não conseguiu, e por fim preparou-se para sair a correr.
Mister Tyndale já estava à porta do quarto quando ela a abriu.
- Ele estava lá? Viste-lo?
- Estava lá.
- O que disse? Recebe-me?
- Lamento ter de vos desapontar, Miss Albret. Ele não sabe nada de vós e está certo de não haver parentesco entre os dois. É um velhote seco que não viu vantagem
nenhuma em ter a reunião que procuráveis.
A excitação desapareceu como que expulsada por um murro. A sua ausência imediata agravou o vazio mais do que nunca. Tornou-se tão grande que poderia tê-la absorvido.
Foi para a janela e olhou para o exterior, para esconder a sua reação. Lágrimas ameaçavam brotar. Acumulavam-se-lhe no peito e na garganta, e ela sentia-se pior
por não poder libertá-las.
- Magoa-me profundamente que isto vos tenha perturbado tanto.
Diane sentiu calor no seu ombro. A mão dele repousava lá, uma pequena mostra de solidariedade. O gesto paternal ajudou um pouquinho.
- Sinto-me culpado. Devia ter advogado melhor o vosso caso.
- Se não há parentesco, não há finalidade na reunião. Agradeço-vos terdes ido, poupando-me o constrangimento de ir importunar um estranho com o qual não tenho quaisquer
laços.
Ela virou-se para ele e a mão dele deixou-se cair. Ele parecia tão preocupado que ela se sentiu culpada. - Não há de ser nada. É só que tenho tão pouca família que
esperava descobrir mais, é tudo.
- bom, continuais a ter o vosso primo.
- Sim. O meu primo.
Só que não era primo coisa nenhuma e ela não queria continuar com ele. Percebeu que, inconscientemente, havia depositado uma
grande quantidade de planos no velho pastor. Sem o admitir, estava na expectativa de ter um sítio para onde ir quando deixasse Daniel. Agora não sabia ao certo para
onde iria nem como viveria.
- Estais perturbada. Receei que isso acontecesse. Antes de sair, dei indicação de que nos preparassem o jantar. Tomei a liberdade de dizer que no-lo trouxessem para
aqui para vós não terdes de comer lá em baixo, onde há outros que ficarão a observar-vos.
- Foi muito atencioso da vossa parte. Confesso que não estou segura de conseguir esconder bem as minhas emoções, e posso bem passar sem a companhia de outras pessoas.
Ele sorriu, gentil. - Aceitais a minha, pelo menos? Pode ser uma ajuda não estardes completamente só. Um pouco de conversa poderá distrair-vos.
- Oh, não me referia a vós. Tendes sido tão atencioso e prestável que eu... bom, aceito com agrado a vossa companhia. Apesar de não estar com muita fome.
- Tendes de comer alguma coisa na mesma. Não ficaria bem levar-vos de volta a desmaiar de fome.
Naquele preciso momento ela não queria nem um pouco voltar. Acabaria por ter de o fazer, claro. Antes disso, contudo, queria algum tempo para se acalmar e avaliar
o significado que esta desilusão tinha para o seu futuro.
O estalajadeiro chegou com a mulher e a filha, carregando tabuleiros de comida. Colocaram a pequena mesa perto da janela e arrastaram para lá outra cadeira. A um
gesto subtil de Mister Tyndale, a mulher desatou o drapeado de musselina da cama, para que a função da divisão ficasse disfarçada.
- Cheira muito bem - comentou Diane, dirigindo-se até lá para inspecionar a refeição depois de todos terem saído. Havia carne de ave com molho, batatas e pão. Uma
garrafa de vinho também os aguardava.
- Comida simples do campo - disse Mister Tyndale. - Prefiro-a aos pratos exóticos que são servidos em algumas festas de Londres.
- Também eu.
Ele indicou-lhe a cadeira dela com um gesto. Ela sentou-se.
- Penso que sois uma das pessoas mais amáveis que já conheci, Mister Tyndale.
Ele deixou escapar um sorriso modesto e serviu o vinho. - Qualquer cavalheiro faria o mesmo, Miss Albret. bom, vamos lá tratar da vossa disposição para vos termos
a sorrir outra vez.
Durante uma hora, ele distraiu-a com as suas conversas. A voz e a consideração dele tinham o efeito de um bálsamo. A desilusão diminuiu até não ser mais do que um
fino véu sobre o seu ânimo.
- Miss Albret, perdoe-me se estiver a intrometer-me, mas os acontecimentos de hoje pareceram afetá-la profundamente. Era importante para vós descobrirdes mais família?
Estais infeliz com a vossa situação?
A pergunta, feita quando ela enfiava o garfo numa tartelete de nata, agitou o véu.
- Não diria que estou infeliz, mas tenho andado a pensar que talvez seja bom procurar mudar as minhas circunstâncias. - Ela não estava certa da razão por que o admitia.
Saiu-lhe da boca, como resultado da familiaridade e à-vontade que o dia fizera crescer entre eles.
- Acho que podeis ter razão.
- O que quereis dizer com isso?
A expressão dele tornou-se séria e ponderada. - Arrisco o vosso desagrado com o que estou prestes a dizer, mas como sou um cavalheiro preocupado com o vosso bem-estar,
não vejo outra escolha. Tem havido rumores, lamento dizê-lo.
- Rumores?
- Não vos assusteis. Coisa pouca, e pura especulação. Bem, tendo em conta que St. John apareceu vindo do nada, sem história, rico como o pecado, com grande probabilidade
de a sua fortuna ter sido gerada por meios ilícitos... Diz-se que foi com sedução e nada mais que abriu as portas dos círculos que agora frequentais. Depois aparece
uma prima, também sem história... a forma como ele corre
com os homens, a forma como dançou convosco no baile... o que posso dizer? Tem havido comentários.
O conde de Glasbury insinuara o mesmo, por isso ela não ficou assim tão chocada. Não obstante, de repente ficou a gostar muito menos de Mister Tyndale.
Ele interpretou mal o silêncio dela. - Miss Albret, por favor perdoai-me se vos pergunto isto, sei que não me compete, realmente, mas vós sois tão inocente e tão
jovem. O vosso primo importunou-vos de alguma forma? Desde ontem à noite que isso me preocupa. Enquanto jogávamos às cartas senti que vós tínheis medo dele, e que
o interesse dele por vós não era totalmente apropriado.
- Estais enganado, asseguro-vos.
A expressão dele ficou imediatamente mais leve. - É um alívio ouvi-lo, e é o que esperava. Quando dissestes que talvez fosse bom mudar a vossa situação...
- Não quis dizer que precisava de fugir do meu primo - mentiu, desconfortável com o rumo que a conversa tomava. Mister Tyndale podia ser amável e paternal, mas não
era o pai dela. - Referia-me a coisas mais práticas. Não tenho fortuna e vejo pouco futuro nos círculos que venho frequentando. Tem sido agradável, mas talvez fosse
avisado procurar um caminho mais realista. Não quero ser uma daquelas parentes pobres, para sempre dependentes.
- Um sentimento admirável. - Ele pousou os cotovelos na mesa, juntou as mãos, apoiou o queixo em cima delas, e olhou para ela muito diretamente. - Quero que saibais,
porém, que se alguma vez precisardes de qualquer ajuda que seja, sentir-me-ei honrado se puder assistir-vos.
Era um comentário muito típico de Mister Tyndale. Atencioso e solícito. E, contudo... Diane não conseguiu reprimir uma pontinha de cautela. Os seus olhos azuis pareciam
tão límpidos e honestos como sempre, incrivelmente interessados, mas durante um instante mínimo ela pensou ter vislumbrado uma centelha minúscula, preocupante.
- Gostaria que pensásseis em mim como vosso amigo - continuou ele. - Admitirei, correndo o risco de vos fazer rir, que espero que um dia penseis em mim como algo
mais do que um amigo.
A mesa pareceu-lhe subitamente muito pequena e o rosto dele muito próximo. Um rosto agradável e sincero ainda, mas surgiram-lhe mais daquelas faúlhas nos olhos,
mudando tudo.
O espanto foi tanto que ficou sem conseguir mexer-se ou falar.
De repente, o braço dele atravessou a mesa e a mão dele segurou-lhe o queixo. - Sei que há uma grande diferença entre as nossas idades, mas isso não é assim tão
invulgar. Admiro-vos desde a primeira vez que nos vimos. Espero que pelo menos considereis o meu afeto, e que o vosso primo não objete se eu me apresentar como pretendente.
Pretendente!
Ela ficou pasmada a olhar.
Ele levantou-se da cadeira e inclinou-se sobre a mesa.
A mente confusa de Diane não compreendia o porquê de ele estar a fazer aquilo.
Ele mostrou-lhe o porquê.
O afável, generoso e sincero Mister Tyndale beijou-a, e contornou a mesa enquanto o fazia.
- Não há prova de que ele a tenha seguido.
Hampton ofereceu o reconforto dentro do coche, que dobrava uma curva da estrada, inclinando-se com a velocidade. - Ele só mandou vir a carruagem dele muito depois
de ela ter saído, e pode ter seguido por um caminho completamente diferente.
- Se assim foi, saberemos dentro em breve e aí podeis dizer-me que fui estúpido.
Tinham chegado à casa e descoberto logo a ausência tanto de Diane como de Tyndale. Levara-lhes um tempo insuportavelmente longo para localizarem alguém que soubesse
para onde Diane tinha ido. Por fim, a caseira apresentara uma rapariga chamada Mary que relatou a informação sobre o pastor de Fenwood.
Daniel não tivera tempo de se perguntar o que teria querido
Diane do pastor. O moço que preparara a carruagem de Tyndale
chegara pouco depois, e a convicção de que Tyndale seguira Diane alojara-se, determinada, na mente de Daniel, não deixando espaço para mais nada.
Ele não tirava os olhos da paisagem campestre, procurando vestígios dela, ou de Tyndale. Ou de ambos.
- Suspeitais disso por causa de ontem à noite? - perguntou Hampton. - Ele parece um sujeito decente. Todos o dizem. Não esperaria que ele procurasse desforrar-se
de vós através dela.
Só que ele não era um sujeito decente. Ficaria encantado por se desforrar de alguém daquela forma, porque tinha um fraquinho por raparigas inocentes de maneiras
refinadas e pele branca e cabelo escuro. Especialmente se elas estivessem impotentes e dependentes dele e sem qualquer proteção.
O coche atravessou Witham a toda a brida e virou para uma rua de terra. E aí teve de abrandar. A demora deixou Daniel furioso.
Hampton mantinha uma calma notável, mas, vendo bem, ele era sempre assim. A Daniel, aborrecia-o que o advogado não percebesse o perigo que eles se apressavam para
evitar.
- Se estais tão seguro da decência de Tyndale, não sei porque insististes em acompanhar-me.
- Já que estamos quase lá, digo-vos porquê. - Hampton indicou com um gesto preguiçoso as pistolas penduradas na parede do coche por cima da cabeça de Daniel. - Estou
aqui para me certificar de que não levais nenhuma das duas convosco quando descerdes desta carruagem.
- Se me sentir inclinado a matar um homem, bastam-me as minhas mãos.
- Não duvido disso. Na verdade, suspeito que o comprovastes. No entanto, hoje não o fareis.
Entraram nos arrabaldes de Brinley. Daniel ordenou ao cocheiro que fosse devagar.
Hampton examinava um lado da rua enquanto Daniel examinava
o outro. Perto da outra ponta da aldeia, Daniel viu uma pequena estalagem à frente da qual estava parado um cabriole conhecido.
Saiu do coche antes de este parar, com Hampton no seu encalço. Lá dentro, procurou o estalajadeiro e perguntou pelo homem a quem pertencia o cabriole.
- Não está. - Foi a resposta do estalajadeiro, que deu meia-volta.
Daniel agarrou-lhe no peitilho da camisa e puxou-o até os dedos dos pés se lhe levantarem do chão. - Onde está ele? Atónito, o estalajadeiro limitou-se a apontar
para cima.
- Está só?
A cabeça sobre a sua mão crispada abanou.
Ele largou o homem e dirigiu-se às escadas.
Hampton agarrou-lhe no braço. - Não façais nada precipitado.
Daniel enxotou-o e subiu os degraus três a três.
Só havia dois quartos no segundo piso. Uma das portas estava aberta, revelando uma divisão vazia.
Abriu de rompante a porta de outro. Foi invadido por uma raiva violenta ao deparar-se com a cena de sedução.
Tyndale estava curvado sobre uma Diane sentada, segurando-lhe o rosto entre as mãos, beijando-a. As costas dela estavam contra a cadeira e os braços dela agarravam
os dele. A resistir-lhe? A abraçá-lo? No segundo antes de a porta bater com um estrondo na parede não era claro. A Daniel também não lhe importava.
Tyndale ergueu a cabeça e afastou-se da mesa. A expressão de Diane registava surpresa, e depois horror. Ela virou-se para trás e cobriu o rosto com as mãos.
Sem pensar, sem se importar com nada, conduzido por emoções sombrias de mais para atentar em custos, Daniel voltou a sua atenção completa para Tyndale e deu um passo
na direção do homem que tencionava desfazer em pedaços.
Uma mão no seu braço deteve-o. Tentou espantá-la, mas esta não se mexeu. Furioso, voltou-se para Hampton, disposto a afastá-lo com um murro se necessário fosse.
- Não esqueçais quem ele é. Vale a forca? - perguntou calmamente Hampton.
Regressou uma pequena centelha de razoabilidade. Tyndale observava, sem mostrar a mínima preocupação. As mãos de Diane deixaram-se cair. Sentada, ali, a olhar para
ninguém, era palpável a sua humilhação. Ficaram todos nos respetivos lugares, num silêncio cortante, um tableau vivant de ruína e comprometimento e raiva.
- Miss Albret, deixai-nos, por favor - disse Hampton com a sua voz de advogado.
Ela começou a falar, mas parou. Daniel não conseguia imaginar o que ela pensava poder dizer. Tentar desculpar Tyndale? Acusá-lo de a ter enganado? Não importava.
A situação falava por si. Não havia homem que levasse uma mulher para um quarto daqueles se as suas intenções fossem honradas.
Ela apressou-se a sair e Hampton fechou a porta.
Tyndale foi até à mesa, sentou-se numa cadeira, e serviu-se de vinho.
- Foi apenas um beijo - disse ele. - Ela não se importou minimamente, porque haveis vós de vos importar?
Daniel queria estrangulá-lo.
Hampton assumiu uma posição de barreira entre os dois. - comprometeste-la com o simples facto de a terdes trazido para este quarto. Ela pode não o ter compreendido,
mas vós certamente que sim. Agora tem de se encontrar uma solução.
- Imagino que possa oferecer alguma compensação, se não for muito alta.
- Não se trata de uma leiteira que possais despachar com um punhado de libras - devolveu Hampton.
- Para todos os efeitos é mesmo. - Tyndale bebeu um gole e pensou. - Não sugeris certamente que eu faça por ela o que deve ser feito? Suponho que pudesse considerá-lo,
se ela tivesse nascimento ou fortuna.
- Diabos me levem se permito tal coisa - rosnou Daniel.
- Não podeis esperar que fique com ela sem dinheiro nenhum, St. John. Certamente que a reputação dela vale algumas
libras.
- Também tendes uma reputação - lembrou Hampton. Tyndale riu. - Por mais prendada que seja, ela não é ninguém.
Por mais rico que seja, esse vosso amigo também não. Penso que a minha reputação consegue sobreviver a este mal-entendido.
- Que tipo de acordo tínheis em mente? - inquiriu Hampton.
- Não a quero amarrada a ele, e com ele a aproveitar...
- A dívida de ontem à noite desaparece, para começar. Isso e mais vinte mil poderiam resolver o assunto.
- Quarenta mil libras é uma soma bastante avultada - respondeu Hampton.
- Penso que é generoso da minha parte considerar sequer o assunto seriamente.
- Penso que é generoso da minha parte deixar-vos viver - prosseguiu Daniel.
Tyndale deu uma dentada num resto de tartelete. - É um desafio?
- Não - assegurou enfaticamente Hampton. - Está irritado, como seria de esperar. A vossa postura só o provoca mais. Não esqueçais que sou testemunha do que se passa,
e eu não sou um zé-ninguém.
Tyndale voltou-se e estudou Daniel. - Ficastes muito perturbado com um simples beijo, St. John. Mostrais-vos tão protetor como se de uma irmã se tratasse.
O quarto desapareceu. Assim como a ideia de qualquer acordo. Exceto um.
Era a única resolução que ele alguma vez quisera com este homem. Planeara-a, vivera para ela e depois, por causa de Diane, descartara-a. Mas agora, mesmo assim,
aqui estava.
Por vezes o destino conspira para forçar uma pessoa afazer o que tem de ser feito.
- Não haverá casamento nem acordo - comunicou, abrindo a porta. - O meu padrinho visitará o vosso amanhã em Londres.
CAPÍTULO 17
Era como se alguém tivesse morrido. Uma sobriedade silenciosa envolvia a casa. Diane sabia o porquê daquela atmosfera carregada. O comportamento dela não manchara
apenas a sua reputação, mas também a de Daniel e da irmã. Toda a casa sofreria por causa da sua estupidez.
Homens visitavam Daniel, com o mesmo rosto que as pessoas envergam nos velórios. Mister Hampton apareceu várias vezes no dia a seguir ao regresso de Diane e Daniel
a Londres, e Vergil Duclairc também esteve de visita. Houve outros homens que ela não conhecia. Finalmente, ao fim da tarde, um homem grisalho de porte nobre foi
conduzido ao escritório de Daniel. Diane viu-o passar pela biblioteca, onde estava a ler um livro.
Foi até à entrada e olhou para a porta do escritório. Daniel passara ali a maior parte do seu tempo desde o regresso deles. Ele mal falara com ela depois de a encontrar
na estalagem. Regressado do confronto com Tyndale, perguntara apenas se ela estava ilesa. As afirmações dela não tinham suavizado a sua expressão e ele não quisera
ouvir as explicações dela.
Ele nem sequer tinha ido na carruagem quando regressaram a Londres. Ficara ao lado do cocheiro, tomando as rédeas nas mãos.
Regressaram imediatamente. Mister Hampton mandou emalar as coisas deles e enviou-as para a cidade na carruagem da condessa.
O homem não ficou no escritório durante muito tempo. Saiu, sério e apagado, parecendo um personagem de uma tragédia.
A porta do escritório ficou entreaberta. Diane passou por lá e espreitou para dentro.
Daniel estava, como tantas outras vezes, perto da janela, a olhar para fora. Parecia muito sozinho. Muito isolado.
Ela entrou sorrateiramente.
- Gostaria de falar convosco - disse ela. - Parece-me que devo voltar para França. O escândalo não vos afetará tanto se eu já cá não estiver.
- Não será necessário. A culpa não foi vossa.
- A culpa, foi minha. Eu devia ter percebido...
- Pessoas mais sensatas e vividas do que vós não se aperceberam.
Ele parecia tão distante. O coração dela sofria por Daniel insistir em não olhar para ela. Ele anulara qualquer familiaridade entre os dois. Fechara uma porta. Ela
voltara a tornar-se uma responsabilidade, nada mais.
Tinha sido a vontade dela. Decidira que esta amizade e esta intimidade tinham de acabar. Agora, experimentar o gelo da sua morte entristecia-a mais do que ela alguma
vez esperara.
- Não foi o que pareceu - disse, ouvindo a sua voz embargada. A verdade não iria fazer diferença, mas de súbito foi de importância vital que ele ouvisse aquilo.
- Ele ajudou-me quando eu estava na estrada, e foi ver se um pastor de Fenwood se encontrava comigo. Eu limitei-me a esperar no quarto que ele regressasse, não que...
Ele virou-se para ela. - E depois ele mandou vir o jantar, e vocês comeram, e para vosso choque vós descobristes que ele não pensava em vós como uma filha ou uma
sobrinha.
- Sim.
- E depois ele aludiu a afeto e amor, até mesmo a casamento.
- Sim. Como sabíeis?
- E depois beijou-vos. E vós permitistes.
- Foi um choque, estava estupefacta. Foi tão inesperado...
- Não interessa.
- Interessa sim. - E interessava. Naquele momento, interessava mais do que qualquer coisa no mundo.
- Não estou certo do que vi quando entrei. Sei sim que se não tivesse chegado, Tyndale não teria parado depois de um beijo e que o vosso consentimento em estar naquele
quarto tê-lo-ia absolvido das piores acusações.
Ela não sabia o que dizer. Tinha sido insuportavelmente ingénua e estúpida. - Certamente, se eu fosse embora, ninguém se importaria com isto. Ninguém viria a saber.
- Oh! Claro que viria a saber-se. Estas coisas arranjam sempre forma de sair por algum lado. Não vos preocupeis demasiado com o assunto, porém. Estou a tratar disso.
Disse a última parte com firmeza. O silêncio da casa e a retirada de Jeanette para os seus aposentos fixaram-se na memória de Diane. Como também a procissão de visitantes
sisudos.
Assolou-a uma suspeita terrível.
- O homem que esteve aqui agora mesmo. Não era o chevalier Corbet? Ele nunca vos visitou.
Daniel foi até à secretária. Estava apinhada de livros-mestre e outros livros. - E um velho amigo e concordou em fazer-me um favor importante.
- Que favor? - Ela foi até à secretária e contemplou a prova de que um homem colocava os seus assuntos em ordem. - Mãe de Deus, o que fizestes? Desafiastes Mister
Tyndale por causa disto?
- É evidente.
- É evidente? Eu nem sequer sou vossa prima de verdade. Não tendes responsabilidade em relação a mim, muito menos a de um gesto tão perigoso. Decerto havia outra
forma de salvaguardar o vosso orgulho, sem que tivésseis de tentar matá-lo.
- Não outra que me fosse aceitável.
- E se ele vos mata a. vóst - A ideia fez-lhe revolver o estômago. Se ele morresse por aquilo, por uma coisa tão pequena, ela nunca se perdoaria. Seria para sempre
perseguida pela culpa.
Ela tinha decidido deixá-lo, mas não assim. Não de uma forma tão permanente. Saber que ele estava algures no mundo teria facilitado tudo. Assim, ela podia sofrer
uma perda que o seu coração sabia já não conseguir absorver.
- Não estejais preocupada. Estareis amparada se eu falhar. Passei a manhã a tratar de obrigações para vós e Paul e mais algumas pessoas. Não ficareis desprovida.
- Não quero o vosso dinheiro. Não quero que este confronto vá para a frente.
É imprudente e desnecessário. Tanto quanto sabeis, as atenções dele agradaram-me. Talvez
ele estivesse a ser sincero ao comunicar as suas intenções como pretendente. Talvez eu tenha gostado do beijo e da oportunidade de agarrar o filho segundo de um
conde.
Daniel aproveitou para compor alguns livros-mestre. - Talvez sim. É o que está a parecer.
Um não imperioso subiu-lhe aos lábios, mas ela reprimiu-o. Proclamar a sua inocência, descrever a repulsa que sentira pelos beijos insistentes de Tyndale, só deitaria
achas para a fogueira.
Partia-lhe o coração que Daniel pudesse pensar que ela desejara aquela cena de sedução, mas o seu orgulho pouca importância tinha naquele momento. Ela não podia
deixá-lo bater-se naquele duelo. Não podia arriscar que ele morresse. Deixá-lo perguntar-se se não estaria a proteger uma mulher que não merecia o seu cavalheirismo.
Poderia conduzir a que ele abdicasse do duelo.
- E não é só imprudente, mas também hipócrita. O vosso próprio comportamento comigo tem sido muito pior do que o de Mister Tyndale.
- Tenho consciência disso. No entanto, a um nível essencial, foi muito diferente, de formas que vós não conseguis compreender.
- Como objeto desse comportamento, não vejo diferença, a não ser que as intenções últimas dele possam ter sido honradas.
- Estou muito certo de que não o eram. Nem as minhas. Em todo o caso, um de nós pagará por vos ter destratado, e talvez por muito mais.
- Para quando está marcado, este duelo?
- Louis está com o padrinho de Tyndale neste preciso momento. Conto que seja para breve.
- Jeanette sabe o que planeais fazer?
- com certeza.
Ele dissera à irmã, mas não à mulher por cuja honra ele lutava.
- Presumo que ela vos tenha suplicado para mudardes de ideias.
- Ao contrário de vós, Jeanette sabe bem que não vale a pena tentar.
- Talvez seja por não saber a história toda.
Ela deu meia-volta, para ir recrutar uma aliada. A voz dele seguiu-a em surdina até à porta. - Na verdade, é por saber mesmo toda a história.
- Tendes de o deter. - Na saleta, de pé em frente a Jeanette, Diane disse-o como uma ordem.
- Ninguém consegue fazê-lo, agora.
Jeanette parecia resignada e frágil. A sua pele branca mostrava rugas ténues em que Diane nunca tinha reparado.
Começou a andar para trás e para diante. Um misto de frustração e preocupação extrema martelava-lhe na cabeça. - A reaçáo de Daniel foi demasiado extrema. Um duelo!
Tinha de haver outra forma...
- Houve. Mister Tyndale ofereceu-se para casar convosco se levásseis um dote.
- O vosso irmão prefere morrer, ou matar, a pagar meia dúzia de libras?
- A soma era muito grande e pretendia ser um insulto tanto para vós como para o meu irmão. No entanto, não foi por isso que Daniel recusou.
- Então porque foi?
Ela alisou as pontas do xaile. - Ele nunca vos colocaria numa situação em que vos sentísseis obrigada a casar com um homem para evitar este confronto.
- Deveria ter sido escolha minha, não dele.
- bom, ele fê-la. Além disso, Daniel nunca teria deixado Tyndale ter-vos de forma alguma, nem mesmo em casamento. Não tenho dúvidas de que mais depressa mataria
o homem do que o permitiria.
Diane pousou a mão no ombro de Jeanette e olhou-a nos olhos.
- Daniel disse algo sobre vós saberdes a história toda. Há mais alguma coisa aqui pelo meio?
- Digo-vos isto. Faço-o na esperança de que não vos culpeis a vós própria. Paul sugeriu que Mister Tyndale podia já ter-vos levado deliberadamente para aquela estalagem,
com a intenção de provocar um duelo com Daniel. Na noite anterior, a jogar às cartas com Daniel, tinha perdido uma soma avultada. A sua obrigação para com a dívida
desapareceria se Daniel morresse.
- É uma forma drástica de acertar uma dívida.
- E uma forma eficaz. Mister Hampton, o advogado, apresentou esta teoria a Daniel. O meu irmão considera-a irrelevante, claro. Contudo, explicaria o porquê de o
dote que Tyndale pediu para casar convosco ser tão escandalosamente elevado. Incluía a dívida, reparai.
Então ela fora um peão. A gentileza, na rua, fora meramente a atitude de um homem que avistara uma oportunidade. Talvez até a tivesse seguido, esperando encontrar
uma forma de a comprometer para que tudo pudesse desenrolar-se como se desenrolou.
Ser a boneca de Daniel tinha sido uma coisa. Ser o joguete de Tyndale era outra. Ela caíra na armadilha como a pateta estúpida e ignorante que era. Pior, Daniel
podia morrer por causa disso.
- Essa teoria só funcionaria se Mister Tyndale estivesse confiante em ganhar o duelo - prosseguiu ela.
- Tem reputação de ser um excelente atirador.
Um dos melhores atiradores de Inglaterra, dissera-lhe Daniel naquele dia junto ao ribeiro.
- Temos de impedir isto, Jeanette.
- Ninguém tem capacidade para o fazer. Acreditai em mim. Conheço o meu irmão como mais ninguém. Ele vai defrontar Tyndale, e fá-lo-á com o intuito de o matar.
Diane aguardou até a casa se fazer silenciosa e levantou-se da cama. Horas de tumulto e culpa haviam redundado numa decisão.
As emoções dos últimos dias tinham-na preparado para aquela escolha. Talvez as dos últimos meses. A desolação de considerar a possível morte de Daniel revelara as
verdades do seu coração.
Tirou do armário um robe que nunca tinha usado. Um modelo frívolo, nada prático, de cetim rosa-escuro e renda bege, que tinha sido feito em Paris por capricho de
Jeanette, apesar de Diane insistir que nunca usaria tal vestimenta.
Imaginou o aspeto com que ficaria com aquilo por cima da sua singela camisa de noite. A imagem que lhe veio à cabeça era cómica e ridícula. Pareceria uma criança
vestida com as roupas da mãe.
Decidindo que não era altura para pudores, despiu a camisa e vestiu a sua nudez com a seda rosa, que a cobria quase como um vestido de noite, só que a frente tinha
uma abertura pronunciada, e o toque sensual do tecido cingia-se-lhe às curvas. O decote redondo, debruado a renda, tocava-lhe os seios.
Sentiu um nó no estômago. Estava prestes a fazer uma coisa que qualquer pessoa com algum juízo consideraria um erro estúpido e escandaloso.
Pior, poderia falhar. No escritório ele tinha-lhe sido tão indiferente que ela não confiava que o seu plano fosse resultar. Mas tinha de tentar. Jeanette dissera
que ninguém conseguiria fazer com que ele anulasse o desafio. Havia uma pequena possibilidade de não ser verdade.
Reunindo toda a coragem, saiu do quarto para ir negociar com o Homem Diabo.
CAPITULO 18
Abriu a porta do quarto de Daniel com cuidado. Um feixe de luz entrou pela frincha.
Sentiu as pernas bambas. Fez uma pausa e um esforço para manter a calma.
Esperou que não fosse horrível de mais. Ele não era um estranho. As suas boas intenções deviam salvaguardá-la de se tornar uma perdida, independentemente da forma
como os outros vissem a sua atitude. Independentemente de como ele a visse.
Empurrou um pouco mais a porta e entrou, sorrateira.
A elegância ampla e esparsa do quarto surpreendeu-a. A mobília possuía um toque oriental. Toda a estrutura da cama era de linhas direitas, com ornamentações em relevo,
e o guarda-fatos tinha embutidos de flores e pássaros. Perto da cama, viu uma cómoda entalhada com três cores de madeira.
Os apontamentos exóticos não tornavam o quarto opressivo. Não era nenhuma fantasia asiática. Pareciam objetos que ele simplesmente tinha trazido das suas viagens
e posto a uso.
Daniel estava sentado numa cadeira perto da lareira vazia, lendo um livro à luz de um candelabro. A cadeira estava virada para ela e ela viu o robe japonês de mangas
compridas que ele envergava,
fechado e atado com uma faixa de pano. Era azul-escuro com um padrão branco e lembrou-lhe o quarto que ela ocupara em Paris.
Reparou nas pernas dele, nuas, que o robe deixava destapadas dos joelhos para baixo. Via-se um profundo V de pele exposta acima do ponto onde as abas do robe lhe
cruzavam o peito.
Parecia que ele não trazia mais nada vestido, o que tornava ainda mais inequívocas as implicações daquilo que ela se propusera fazer. Esperara encontrá-lo de casaca
e botas, ou já adormecido num quarto escuro. Não ali sentado, com aquela luz toda, quase nu.
Tinha um aspeto maravilhoso, um homem de ação temporariamente em repouso. Apesar de relaxado, o magnetismo emanava dele como uma força invisível, afetando-a como
afetava sempre, desassossegando-a e deixando-a mais desperta do que o normal. A luz das velas esculpia-lhe o belo rosto em ângulos severos e os seus olhos escuros
luziam como estrelas negras.
Ele não a ouvira entrar. Ela ficou de pé à frente da porta, com tanto medo e tão nervosa que teve de forçar a voz a sair.
- O que estais a ler?
Ele mal reagiu, mas ela percebeu que o tinha surpreendido.
- Poesia.
Ele ergueu os olhos.
De repente, o seu robe pareceu-lhe muito fino e muito perverso. Não lhe pareceu que a cobrisse nem de perto como cobrira no quarto.
Ela foi alvo de uma inspeção longa e lenta, cheia de interesse masculino. Uma vitalidade tensa, despertada, partiu do outro lado do quarto em direçáo a ela.
- Estais muito bela. Não vejo o vosso cabelo solto desde aquele dia na escola. - Indicou distraidamente o robe. -
É muito bonito.
- Foi Jeanette que mo escolheu, em Paris.
- Ela sugeriu que o usásseis hoje à noite?
- Não. Porque o faria?
Ele fez aquele sorriso jocoso dele. - Então foi ideia vossa vestirdes isso, soltardes o cabelo e virdes até aqui. Porquê?
O rosto dela ardia. Não tinha contado anunciar verbalmente as suas intenções. O robe e a sua presença deviam bastar.
- Viestes tentar-me, Diane?
- Sim.
- Se pensais encantar-me com a vossa beleza e depois sair, quero que saibais agora que náo se passará assim.
- Eu sei disso.
Ele forçou-se a desviar o olhar dela para o fogo brando. Nem sequer compreendeis o que estais a oferecer.
- Náo sou ignorante. Sei o que é esperado.
- Não sabeis o que eu espero. Voltai para o vosso quarto. Ela quase obedeceu.
Em vez disso, caminhou na direção dele.
- Não quero que este duelo aconteça. Quero que recueis.
Ele olhou para ela, e não foi com um ar satisfeito. Ela reparou que, apesar da irritação, ele lhe apreciava as pernas, que espreitavam pela racha do robe a cada
passada.
- Se vierdes até mini assim, deveis querer muito que ele viva. Preferiríeis a outra solução dele? Casar-se convosco?
Ao lado das suas pernas nuas, ela olhou para aqueles olhos escuros, donos de perigosas profundezas. Anos antes, aqueles olhos assustavam-na. Agora enfeitiçavam-na.
- Só me interessa que náo haja duelo.
O olhar dele percorreu-a, breve e exaustivamente. - Não se trata apenas de vós.
- Não, também se trata de vós e do vosso orgulho.
- Sendo assim, procurais salvar um homem sem honra fazendo-me a mim ainda mais indigno do que ele. - Virou o livro que tinha no colo e voltou a debruçar-se sobre
ele. - Permiti-me alguns escrúpulos, além do mais, no que vos diz respeito. E agora, por favor, regressai ao vosso quarto.
Ordenava-lhe que se retirasse, e não era com delicadeza. A coragem dela vacilou. O seu corpo inteiro vacilou. Estar perto dele provocava-lhe aquilo, mais do que
a própria rejeição. O constrangimento
por ter sido rejeitada foi abafado pela desilusão de ele não a querer o bastante.
Se ela soubesse mais sobre estas coisas não teria falhado. Se fosse mais bonita, ou mais vivida, ou mais sedutora, a escolha dele teria sido diferente.
Devia retirar-se com o orgulho que lhe restasse, mas não podia. Poderia não voltar a estar assim perto dele, poderia nunca mais ver a luz das velas a desenhar-lhe
sombras no rosto como naquele momento. Depois de se afastar, a aura dele nunca mais a envolveria como envolvia agora, incitando-a a ficar ainda que ele a repudiasse.
Ele virou uma página. - Ide-vos, já. Quero que vades.
Tremendo, mal conseguindo manter o equilíbrio, ela baixou-se até ficar de joelhos ao lado das pernas dele, inclinou-se e apoiou-se nos calcanhares. Ele ainda lia,
mas conseguia vê-la por cima do livro.
Desapertou o primeiro botão pérola que lhe cobria o seio. Demorou-lhe tempo de mais porque os dedos não mostravam vontade de trabalhar. Não era só o nervosismo que
os tornava desajeitados. Estar a escassos centímetros dele afetava-a.
Finalmente conseguiu. O robe e a sua seda afastaram-se um pouco. Começou rapidamente a desembaraçar-se do botão seguinte.
- Devagar, querida. Seduzir não é algo que se faça à pressa.
Ela ergueu os olhos.
O livro estava na mesa ao lado das velas. O príncipe da tentação observava.
A atenção dele deixou-a enfeitiçada.
Desapertou os outros botões muito lentamente, já que mal reparava no que fazia. Ele parecia também não reparar. Os olhares, unidos, eram tudo o que existia, ligando-os,
dando origem a confissões e expectativas cuja existência nunca devia ter sido reconhecida. Ela sabia que ele a queria, isso era óbvio. Se ele aceitaria a sua proposta
já era menos claro.
Tendo chegado ao último botão, perto da cintura, ela forçou-se a apartar os olhos dos dele e a olhar para baixo. O cetim abria-se, mal lhe cobrindo os mamilos, duros
contra o tecido brilhante.
Olhou de novo para ele. Parecia aguardar alguma coisa.
Engolindo em seco, afastou mais o robe. O cetim brilhava-lhe na pele. Afastou mais o tecido, para mostrar os seios.
A sensação de estar ali ajoelhada, expondo a sua nudez, inundou-a de um arrebatamento erótico. Os seus seios tornaram-se pesados e cheios. Os seus mamilos endureceram
mais, sensíveis agora ao ar, ao olhar dele e até à própria luz. Tremores de excitação obscureciam o seu constrangimento. A carícia do cetim na sua pele tornou-se
uma pequena torrente de sensualidade.
A expressão dele ficou mais tensa. Ela sentiu que travava uma batalha. O ar entre eles ficou carregado daquela tensão.
- Devia deixar que vos despísseis completamente para não haver equívocos sobre o que está a acontecer, e porquê.
- Não haverá equívoco algum.
Desviando o olhar, com medo de ver a reação dele, ela ergueu a mão e, espantada consigo própria, deu por si a pousá-la na perna dele e a subir-lhe até ao joelho
numa carícia.
O mundo girou. com um movimento que a surpreendeu e desnorteou, ele puxou-a para a frente, para os seus braços e o seu colo, e tomou-lhe a boca num beijo selvagem.
O cetim oferecia pouca proteção contra a aspereza quente do seu abraço. A boca dele exigia uma rendição mais completa do que alguma vez os seus beijos haviam exigido.
A pressão da excitação dele na sua coxa provava-lhe que era melhor sedutora do que tinha pensado.
Os beijos dele instigavam a sua paixão a elevar-se ao nível da dele, o que se verificou nas respostas dela às suas exigências possessivas e quentes. O poder das
sensações que percorriam e torturavam o seu corpo assustava-a.
- Disse-vos que partísseis. Não digais que não fostes avisada. A cabeça dele virou-se. O seu cabelo suave roçou-lhe o rosto. A boca dele desceu-lhe pelo pescoço.
Os seios dela, mais volumosos, palpitavam, e um desejo louco de que ele continuasse mais para baixo tomou conta de si. Arqueou-se instintivamente, para o encorajar.
Ele beijou-lhe o volume do seio como resposta. - Alegra-me que o queirais, que não seja um sacrifício assim tão grande.
- Também quero que pareis com o duelo. - Ela mal conseguiu que as palavras saíssem, mal se lembrou de lhe pedir a promessa.
- Pensais mesmo que conseguiríeis ir embora agora se eu recusasse?
Pareceu uma ameaça, mas ele roçou-lhe o mamilo com o dedo para clarificar que ela não iria embora porque não queria fazê-lo. Todo o seu corpo se fletia. A sua respiração
entrecortava-se.
- Dou-vos a vida dele e vós dais-vos a mim. E um acordo diabólico, o que pretendeis, Diane, e ambos o lamentaremos muito em breve, parece-me. - Os seus olhos escuros
conseguiram penetrar os dela. - Neste preciso momento, contudo, não me importo minimamente. Haveis tratado disso.
Ele ergueu-se com ela nos braços. Avançou até à cama e deixou-a cair nela. Agarrando o robe de Diane pelos ombros, puxou-o e pô-lo de lado, deixando-a nua.
Olhando para ela, começou a desatar a faixa do seu robe.
Ali, ela quase mudou de ideias. Os momentos passavam ritmados, demasiado vivos e reais. Face à franqueza sensual do olhar dele era impossível negar o que ia acontecer.
Ali deitada na cama, nua e vulnerável, sem mais nada a cobri-la que não o poder masculino que emanava dele, ela soube que ele estava certo. Ela não compreendera
totalmente o que estava a oferecer.
Ela desviou o olhar quando o robe lhe caiu dos ombros. Era covardia e ele não disse nada, mas segundos depois, extinta a luz da vela, o quarto ficou escuro.
Ela ouviu-o aproximar-se da cama e o seu coração bateu numa fúria de pânico. Ela quase saltou ao sentir o corpo nu que subitamente lhe aquecia o flanco. Os seus
olhos acostumaram-se à escuridão e ela espreitou.
Apoiando num braço, ele olhava para ela. A escuridão fazia da cama um lugar pequeno e misterioso, cheio de uma intimidade de penumbra. Não um sonho, porém, mesmo
se a noite obscurecia o
mundo. Os sonhos nunca eram tão tangíveis e tão definidos. Ela sentia-se mais desperta do que nunca. A vivacidade intensa que ele sempre lhe inspirava tornou-se
um estado de alerta físico.
Curvando-se, ele puxou-a para a envolver nos braços. Acariciou-lhe o corpo como se conseguisse ver melhor do que ela. Ela puxou-o contra si, desajeitada e insegura,
e com toda a consciência de que a sua surpresa ao sentir a pele dele e o toque dele no seu corpo inteiro conseguia perceber-se na sua respiração entrecortada.
Beijando-a com fervor, como se o medo dela o impacientasse, ele acariciou-a mais intimamente. A parte de dentro das coxas. O volume e a fenda das suas nádegas. A
liberdade com que manuseava o seu corpo insinuava posse. O atrevimento dele chocava-a, o que, no entanto, só vinha aumentar a excitação das novas sensações, e as
suas reações alarmavam-na ainda mais.
Ele passou-lhe as pontas dos dedos em círculos pelo seio. Este prazer ela conhecia. Ele já lho ensinara e ela ficava sem defesa. A carícias lentas bem podiam ser
internas, tal era a prontidão com que os toques provocantes lhe enviavam tremores para a parte de baixo do corpo. Algo se avolumou até ela sentir uma palpitação
profunda e insistente entre as coxas.
Ele beijou-lhe o outro seio. A língua dele rodopiava, deixando-a tensa. O seu mamilo ficou tão sensível que ela mal conseguia aguentar. A combinação de carícias
num seio e dos dentes e lábios dele no outro deixou-a atordoada. Agarrou-se aos ombros dele e tentou conservar o pouco e vacilante controlo que lhe restava.
Não conseguiu. O medo desapareceu, como também o choque e a estranheza de estar ali a fazer aquilo. A sua mente ficou toldada e ao mesmo tempo focada. O pulsar no
fundo do seu ventre estava cada vez mais intenso, alimentando-se das sensações da sua pele e do seu corpo, sensações que começaram a possuí-la.
O latejar húmido, o ardor, que sentia entre as pernas tornou-se desconfortável. O que ele fazia só o piorava. As suas ancas balouçavam, para aliviar a estranha fome
que ali crescia. Reprimiu gemidos de frustração.
A mão esquerda dele deixou o seio e acariciou-a até à barriga. Ficou ali, enquanto o corpo dela se erguia e baixava involuntariamente, procurando algo.
- Isso é vós a quererdes-me - disse ele, a sua mão acompanhando o ritmo, adivinhando o desconsolo e embaraço dela. - Mas preciso que me queirais ainda mais.
A mão dele deslizou mais para baixo, até às coxas dela e à sua humidade.
Até ao lugar privado que a torturava.
O choque regressou, veemente. Ela juntou as coxas com força, para o deter.
- Ides permitir - disse ele. - Esta noite sois minha, e eu quero-o. Vós também quereis.
Ele apertou suavemente a coxa dela numa ordem sem palavras e afastou-lhe as pernas.
A carícia dele deixou-a perplexa. Agarrou-se mais a ele e procurou o seu beijo para evitar gritar. As sensações tomaram posse dela, fazendo-a querer mais. Ela tentou
conter o que lhe faziam, mas não conseguia. O prazer era concentrado de mais, direto de mais, de uma intensidade quase dolorosa. A sua reação física espantava-a.
As ânsias primitivas que a dominavam assustavam-na.
Ele colocou-se em cima dela, um vulto forte e escuro que emanava um calor físico, em parte estranho mas completamente masculino. Continuou a tocá-la, instando-a
ao abandono, forçando-a a desejá-lo apesar de isso a aterrorizar.
- Afastai mais as pernas. Dobrai os joelhos.
Foi o que fez. As coxas dela abriram-se às ancas dele e os seus braços agarraram-se aos ombros dele. Ele pressionou o corpo dele contra o dela, preenchendo ligeiramente
o vazio latejante e aliviando o desejo ardente e insaciável. Durante alguns segundos perfeitos ela conheceu a ventura de o ter assim enlaçado nela, nos seus braços
e perto do seu coração. A paixão dele pareceu recuar um pouco, tomando menos dela, permitindo-lhe gozar a intimidade.
Não durou. Uma dor crua cortou-a quando ele pressionou mais. Uma sensação de estar a ser violentada obliterou a ternura. Cerrou os dentes e agarrou-se ferozmente
a ele para não gritar.
Ele parou e não se mexeu. A dor diminuiu mas ainda estava lá. Ela aceitou o beijo dele, mas não conseguiu evitar sentir receio de ter dado uma parte dela que nunca
poderia recuperar. Ela podia correr até aos confins da Terra, mas algo dela seria para sempre dele.
Pareceu-lhe que tinha terminado, mas não. Ele mexeu-se, e ela compreendeu que a união inicial tinha sido só o começo. Erguendo-se acima dela, sobrepondo-se, o corpo
dele dominava o dela com cada investida.
Colocando uma mão na cabeceira da cama para se equilibrar, ele tomou-a numa posse rítmica, cadenciada. O que quer que o ato fosse para além daquilo, ela via que
se tratava de uma primitiva reivindicação de direito. Pior, os movimentos dele tentavam-na e exigiam que ela se rendesse àquela reivindicação.
Ele moveu-se com mais força, tomando tudo, dando significado a cada olhar intenso que lhe dirigira e a cada reação inquieta que ela experimentara. Ela tentou fechar-se
ao poder, à aura que criava e às emoções que evocava. Concentrou-se na dor, para se proteger. De qualquer forma, continuava a afetá-la, provocando assombro, lembrando-a
outra vez do aviso dele de que ela não sabia o que oferecia, nem o que ele esperaria.
A cabeça dele inclinou-se para trás. Uma estocada forte e profunda penetrou-a. Ele ficou bem dentro dela, imóvel por um segundo. A ameaça de perigo que definia a
sua persona recuou. Ela sentiu uma tensão endurecer-lhe os músculos debaixo das suas mãos. Depois, subitamente, ambos se desvaneceram no ar.
Ele não voltou a mexer-se. Desceu os olhos para ela e ficou assim tempo de mais, respirando fundo. Ela não conseguia ver-lhe os olhos, e perguntou-se se conteriam
atenção intensa ou a impassividade distraída que ela conhecia tão bem.
Ele afastou-se para o lado, separando completamente os corpos. Afundou-se na cama, ao lado dela.
Um sentimento de humilhação procurava infiltrar-se nela. Mas não fazia progressos. Ela estava para além de qualquer constrangimento. As suas emoções tinham sido
abalroadas. Tudo era ainda demasiado real, e mudara irreversivelmente.
Ela não experimentava nem arrependimento nem triunfo, apenas um sentido agudo do presente. Seria necessário tempo para absorver e compreender o que estava agora
no seu coração.
O silêncio tornou-se tenso e embaraçoso. Ela concluiu que ele não falava porque não havia nada a dizer. bom, ela soubera para o que ia quando lá fora. Não fingiria
que tinha sido algo diferente do que acontecera, nem esperaria que ele o fizesse.
Saindo da cama, tateou o chão à procura do robe. Vestiu-o e afastou-se, debatendo-se com alguns botões.
- Valeu a pena?
Ela voltou-se. Ele não se mexera. Nem sequer parecia estar a olhar na direção dela.
- Valeu a pena, Diane? Deveis importar-vos mais do que eu me apercebi, para fazerdes uma coisa destas.
Surpreendeu-a que falasse no assunto. A intimidade física provavelmente exigia que se dissesse alguma coisa.
- Valeu a pena. Foi um pequeno preço a pagar para salvar o homem que amo. - Achou espantosamente fácil dizer a palavra, ser sincera sobre os seus sentimentos, mesmo
sabendo que ele não os partilhava. O que acontecera naquela cama despojara-a de mais do que roupas ou da sua inocência. Também afastara todas as razões pelas quais
as pessoas guardam as verdades nos seus corações.
- Ele não é merecedor do vosso sacrifício. - Daniel ergueu-se num cotovelo e olhou para ela. - Não posso deixá-lo ficar convosco, mesmo que vós penseis que o amais.
Principalmente agora. Deveis saber disso.
Ele?
Ela dirigiu-se para a porta. - Equivocais-vos. Não o fiz para salvar Andrew Tyndale.
Ele ficou a ver a porta fechar-se atrás do robe de cetim cor-de-rosa, depois voltou a afundar-se na cama.
Voltou a vê-la, ajoelhada ao lado da cadeira, tão linda que o seu coração parara de bater. com aquele primeiro botão soubera que ela não recuaria. Soubera que perdera.
E ficara contente com isso, e tão ávido dela que nada mais importara. Nada.
Balançou as pernas para fora da cama e pegou no robe. Atou-o e pôs-se à janela.
Aquela noite comprometera tudo. Ela. Ele. A sua vida inteira.
Abriu a janela para a cidade silenciosa, adormecida. Conhecia muito bem a vista que lhe proporcionava. Muitas noites ali se pusera, fazendo planos, aguardando. Arquitetara
uma pequena guerra àquela janela, infiltrando-se no campo inimigo, abatendo os guardas, protegendo a retaguarda enquanto se aproximava do objetivo.
Naquela noite, uma mulher atraíra-o para a derrota completa sem sequer o saber.
Valeu a pena...
Ela fizera-o para salvar um homem.
Não era Tyndale.
Ele devia ter percebido. Talvez tivesse. Mas se o tivesse admitido, não poderia ter aceitado a proposta dela. Não teria conseguido levá-la para aquela cama e arrebatá-la.
Precisava de estar irritado com ela para o fazer.
E durante o dia inteiro fora essencial que ele não aceitasse que, se o duelo ocorresse, pudesse não ser Tyndale a estar em risco de morte, e a precisar de ser salvo.
Valeu apena...
Contemplou a rua. Um dos candeeiros tinha um poste mais baixo do que os outros. Nunca tinha reparado. Há anos que se punha àquela janela e nunca vira realmente aqueles
postes.
O seu olhar vagueou de um lado para o outro, procurando outras particularidades que lhe tivessem escapado. Um dos telhados tinha uma saliência na cornija, e a janela
do lado mais baixo de outra casa parecia estar entaipada. Naquela noite, todos os pormenores lhe saltavam à vista, detalhes há muito invisíveis que agora exigiam
atenção.
Mais valia concentrar-se neles do que debater os assuntos que tinha entre mãos, mais prementes, tais como saber de que forma este acordo que Diane comprara com o
próprio corpo lhe ataria as mãos no que respeitava a Tyndale.
Tais como as velhas memórias que o tinham invadido, deitado na cama ao lado dela, fazendo com que sentisse nojo de si próprio e fúria em relação a ela.
Tais como o facto de não ter tratado Diane especialmente bem naquela noite. Ela podia ter sido tola e arrojada, e ele ávido e irritado, mas ele podia ter sido mais
cuidadoso com ela. Não conseguiria tê-la poupado ao choque nem à dor, mas podia ter sido mais meigo, mesmo faltando-lhe a força e a honradez para a recusar completamente.
Valeu a pena. Foi um pequeno preço a pagar...
Lá fora, à luz dos candeeiros, mais pormenores ganhavam forma. Uma das casas tinha apenas quatro degraus até à porta, em vez de cinco. Veio-lhe a imagem de visitas
a não repararem na inclinação e a tropeçarem de cada vez que subiam.
Constatou que dois edifícios que sempre presumira serem idênticos na verdade tinham alturas ligeiramente diferentes.
Foi um pequeno preço apagar para salvar o homem que amo.
As palavras dela surgiram-lhe de rompante, gorando as suas tentativas de as manter ao largo. Olhava fixamente para a rua, subitamente sem nada ver face à repetição
contínua das palavras dela, que o imobilizaram. O tom da voz dela, a calma aceitação e resignação, ecoavam nos seus pensamentos, fazendo o seu peito encher-se de
um estranho peso.
Numa coisa ele estivera certo. O homem que ela procurara salvar não era digno do sacrifício dela.
E tinha sido um sacrifício enorme, dado em simples inocência a um homem que nem sequer lhe deu o valor que tinha. Um homem dominado pelo passado, que alimentava
raiva e ódio porque receava não ter nada dentro de si se eles desaparecessem. Um homem que a tentara muito antes de ela o tentar a ele, e que não gostava que ela
usasse a sua própria volúpia para frustrar o objetivo nascido daquele ódio.
Ela era idiota em se importar sequer com um homem assim, quanto mais amá-lo.
A garganta ardia-lhe e ouviu o silêncio cruel de quando se deitaram um ao lado do outro. Viu-a ir-se embora, orgulhosa apesar do seu desalento.
Foi um pequeno preço apagar para salvar o homem que amo.
Céus.
Virou as costas à janela. Encaminhou-se para a porta de um quarto que muitas vezes, na calada da noite, desejara visitar. Entrou e foi até à cama.
Ela estava deitada de lado com os joelhos encolhidos, vestida com uma camisa branca. Parecia sozinha e indefesa, como se se aninhasse debaixo do lençol para se proteger
de um mundo indiferente.
Ele levantou o lençol e deitou-se ao seu lado. Diane sobressaltou-se o bastante para ele perceber que se ela estivera a dormir, agora já não o fazia.
Estavam novamente deitados um ao lado do outro, numa cama diferente, e num silêncio diferente. Havia muito que ele podia dizer-lhe, mas muito pouco que não fosse
magoá-la mais. Ela não merecia mais golpes. Naquela guerra, ela era um prisioneiro inocente, não um soldado.
- Lamento ter-vos magoado, e não ter sido mais atencioso disse, virado para as costas dela.
Os ombros dela encolheram-se um pouco. - Provavelmente não se pode evitar.
- Não totalmente, mas...
- Não foi completamente horrível, não vos sintais mal. Típico dela, preocupar-se com ele. Quase se riu, e também
esteve perto de chorar. - bom, fico contente por saber que não foi completamente horrível.
- Mas se viestes aqui fazê-lo outra vez, não me parece que queira.
- Estou certo que não. Não vim aqui para isso.
- Então porquê?
- Para vos dizer que me sinto honrado por vos terdes importado o bastante para o fazer, e para ficar convosco um bocado, se vós o permitirdes.
Ela ficou muito quieta. Tão quieta que até podia ter parado de respirar.
- Permiti-lo-eis?
Ela assentiu com a cabeça.
Ele tocou-lhe no ombro. - Vindes para perto de mim, para eu poder tomar-vos nos braços?
Deu-se uma pausa, como se ela tivesse de ponderar. Virou-se. Ele puxou-a para si.
- Não vos preocupeis. Irei embora antes de os criados estarem por aí.
Ela aproximou-se mais. Ele envolveu-a com delicadeza e deu-lhe um beijo na face. Os seus lábios tocaram em humidade. Ela chorara depois de regressar ao quarto.
Partiu-lhe o coração. Ele apertou-a mais contra si, protetor.
Soube-lhe bem segurá-la assim enquanto ela adormecia. Nunca o tinha feito com uma mulher. Nunca partilhava o leito com as suas amantes ocasionais.
Acolheu com surpresa o prazer do seu calor e da sua suavidade de mulher, apaziguadores até, e não intrusivos como ele imaginara que dormir com uma mulher seria.
CAPÍTULO 19
Ela acordou só, sentindo os aromas do cacau e de lilases. O cacau estava numa mesa ao lado, como sempre desde que ela o provara pela primeira vez da chávena de Daniel.
Os raminhos de lilases estavam pousados mesmo ao lado do seu nariz, enfiados entre duas almofadas.
Uma criada tinha trazido o cacau. Daniel devia ter deixado as flores.
Ela pegou nelas e cheirou-as. Vinham de um arbusto que crescia num canto ensolarado do jardim. Ela imaginou-o a ir lá a baixo, no escuro, para cortar o pequeno ramo.
Ele ficara com ela a maior parte da noite. Ela sentira o seu abraço todas as vezes que se mexeu.
Tinha sido maravilhoso estar assim nos braços de alguém. O contacto prolongado e reconfortante mexera mais com ela do que aquilo que acontecera na cama dele. Durante
uma noite memorável, o vazio do seu coração tinha desaparecido. Sumido. Até a dormir se maravilhara com a sua ausência.
Chegou uma criada para a ajudar a vestir-se. Quando acabaram, Diane escreveu um bilhete apressado à condessa de Glasbury, levou-o para baixo para ser enviado de
imediato, e em seguida foi procurar Jeanette.
Encontrou-a nos aposentos dela, no mesmo cadeirão onde estava no dia anterior. Jeanette parecia tão desgastada e cansada que Diane se perguntou se ela teria sequer
ido para a cama.
- Está a acontecer agora. Agora mesmo - disse Jeanette. - O que está a acontecer?
- O duelo. Esperei que fosse amanhã, ou depois... não tão cedo.
- Tenho a certeza de que estais enganada.
- O chevalier veio. Daniel saiu com ele. Estão a encontrar-se agora. Sinto-o na alma.
- Não acredito, Jeanette. Ele disse-me que recuaria.
O olhar de Jeanette voou na direçáo dela. Examinou-a, muito à semelhança do que havia feito naquele primeiro dia no quarto de porcelana de Paris. - Quando é que
ele disse isso?
Diane sentiu-se corar. - Ontem à noite. Ele prometeu.
- Ontem à noite? Dizei-me, onde foi feita essa promessa? Quando? O rosto dela aqueceu.
Labaredas de entendimento e raiva arderam nos olhos de Jeanette. - Quando fazia amor convosco? Não fiqueis tão surpreendida. Já tinha percebido o interesse dele
por vós. Vi-o desde o início.
- Abanou a cabeça e murmurou uma praga. - Um homem diz o que quer que seja em alturas dessas. Pior, é sincero. Até que a luz do dia aparece e ele, lamentavelmente,
muda de ideias.
- Ele não voltará atrás com a palavra dada.
- Existem promessas mais antigas que ele é obrigado a manter. O meu irmão nunca deixou mulher nenhuma interferir com aquilo que jura fazer. Não recua face a nada.
Se ele vos seduziu com essa promessa, foi uma atitude desprezível da parte dele, e dir-lhe-ei isso mesmo quando ele regressar. - A sua expressão ríspida desfez-se.
- Se regressar.
- Ele não me seduziu. E também não entrará neste duelo. Disse-o com toda a firmeza que conseguiu, para tranquilizar a mulher sentada à sua frente, que parecia chorar
já a morte dele.
Jeanette estendeu a mão, procurando ser reconfortada. Diane agarrou-a e colocou o outro braço por cima do ombro de Jeanette.
- Ontem à noite foi a primeira vez com ele?
- Sim.
- Ele prometeu-me que não procuraria seduzir-vos. Já a pensar no duelo, deve ter-se agarrado a uma oportunidade de viver. Tenho a certeza de que, se assim não fosse,
não teria agido de forma tão desonrosa para convosco.
Diane não estava convencida daquilo. A forma como ele a beijara no ribeiro implicava que ele já desistira de quaisquer garantias que tivesse dado à irmã.
- Temos de decidir o que fareis agora - retomou, após respirar fundo para se recompor. - Direi a Daniel que tem de pôr alguma coisa no vosso nome. O bastante para
conseguirdes casar. Apareceram homens que se fariam vossos pretendente se tivésseis alguma fortuna.
- Não quero casar com nenhum desses possíveis pretendentes. Jeanette deu-lhe palmadinhas na mão. - Neste momento talvez
não. Pensai com cuidado, porém. Vereis que tenho razão.
- Seja como for, depois do que aconteceu com Mister Tyndale, não penso que seja provável haver pretendentes.
- Se o dote for suficiente, haverá, confiai em mim.
- Se o dote for suficiente, o próprio Mister Tyndale casaria comigo. Não gosto da ideia de ser negociada como um artigo usado.
Jeanette ergueu os olhos. Tristeza e compaixão transbordavam deles. - Não tenhais ilusões de que existe a alternativa de um futuro com o meu irmão. Há muito pouco
espaço no coração e na vida dele para o tipo de afeto que uma mulher espera. Ele está fechado a emoções dessas. Ele sabe disso, percebeis? Escolheu que fosse assim
porque qualquer outra coisa iria enfraquecê-lo.
Diane sabia que não havia lugar para ela na vida dele. Contudo, Daniel era muito mais complicado do que Jeanette julgava. Um homem daqueles não teria ido reconfortá-la
nem ficaria com ela nos braços durante a noite toda.
Ela experimentara uma paz maravilhosa, segurança, naquele abraço adormecido. Suscitara uma intimidade especial, que era diferente
da intimidade física de que tinham gozado na cama dele, mas que também lhe estava ligada. Ela queria preservar aquela aura especial. Queria preencher o vazio tanto
quanto a sua memória lho permitisse.
No fundo da sua alma, porém, ela sabia que só conseguiria preservá-la se não procurasse mais. Não queria arriscar-se a descobrir que ele tinha sido motivado por
pena ou por culpa, e não por afeto.
Não queria certamente arriscar-se a fazer amor com ele outra vez. Não conseguiria suportar que o fizessem e, em vez daquela doce intimidade, deparar novamente com
o silêncio vazio e constrangedor.
- Já decidi o que fazer, Jeanette. Penso que devia ir-me embora desta casa. Não haverá duelo, mas haverá comentários. Não quero continuar a viver esta mentira, que
nós somos primos. Não quero ir a festas em que as pessoas vão estar a sussurrar acerca do que aconteceu com Mister Tyndale, ou a perguntar-se o que existe entre
Daniel e eu.
- Para onde ireis?
- vou pedir à condessa que me permita ficar com ela enquanto trato das coisas. vou pedir-lhe para contactar alguns dos amigos que tem no campo e para me dar referências
como governanta. Ou talvez haja uma escola onde eu possa ensinar, que fique longe de Londres. Se eu desaparecer antes de o escândalo rebentar, talvez não seja tão
grande assim. Serei facilmente esquecida.
Jeanette assentiu com a cabeça. - Eu tenho algum dinheiro. vou dizer a Daniel para vos dar mais.
- Não, não posso aceitar dinheiro dele agora.
- Vireis visitar-me? Enquanto estou aqui, antes de regressar a Paris?
- Claro que sim. - Curvou-se e abraçou-a.
Jeanette beijou-lhe a face. - Se ele não voltar, talvez possais regressar a Paris comigo. Prometei-me que pensareis nisso.
- Ele voltará, vereis. Não foi bater-se em nenhum duelo.
Chegou uma carta de resposta da condessa, convidando Diane para a acompanhar numa visita a Laclere Park, a propriedade da sua família no campo. Penelope explicava
que seria impossível encontrarem onde se refugiar em Londres, e apresentava-lhe aquela proposta como uma solução melhor, acrescentando que ela própria sentia alguma
necessidade de se esconder.
Diane foi para o quarto dela e fez as malas. Era mais difícil de fazer do que ela julgara e dispensou a criada, para as suas reações não serem observadas.
Esteve sempre à escuta de sons que anunciassem o regresso de Daniel. O que veria refletido nos olhos dele quando estivessem novamente frente a frente? Suspeitava
que poderia ser muito estranho.
Como reagiria ele à partida dela? Ficaria surpreendido? Recetivo?
Aliviado?
Ela sabia que ele compreenderia que se ela ficasse ali, dependente dele, a situação acabaria por se tornar desagradável. Nem todos os lilases do mundo, todo o amor
do coração dela, conseguiriam fazer daquilo algo diferente do que seria realmente.
A confiança dela na promessa dele vacilava com o passar das horas. Quando desceu do quarto para ir para a biblioteca, já estava muito abalada.
Abriu uma janela que dava para a rua e pôs-se à espera e à escuta com tanta atenção que a cabeça lhe começou a doer. Quanto mais tempo passava, mais a preocupação
aumentava, fazendo-a sentir-se enjoada e doente de apreensão.
Passavam carruagens e cavalos, e ela ouvia cada um deles. Por fim, quando estava quase a desistir, quando tinha começado a chorar a sua perda, parou um cavalo à
frente da casa.
Ela identificou os sons de um moço a levar o cavalo.
Erguendo-se de um salto, correu pelo corredor até ver a entrada.
Era Daniel.
Claro que era. Quem mais seria?
O alívio que lhe acelerara o coração respondeu à pergunta. Ela temera que fosse o chevctlier, trazendo más notícias.
- Ide lá a cima à vossa irmã - disse ela. - Ela está doente de preocupação. Ide agora. Eu fico na biblioteca.
Ele subiu a escadaria. Ela esperou até ver as suas botas desaparecer e depois voltou para a biblioteca.
Reviu o rosto dele quando reparou nela. Tinha as memórias da noite anterior nos olhos, mas também algo mais. Ela reconhecera laivos da velha distração.
Tornou-se mais difícil olhar para ele quando ele entrou por fim na biblioteca, silenciosamente, e fechou a porta.
Agora não havia distração. Os olhos dele ardiam com toda a atenção que ele conseguia reunir. A sua boca era uma linha direita.
- Jeanette está sossegada? - perguntou ela.
- Sim. Louis e eu encontrámo-nos com Tyndale e o padrinho dele. Foi resolvido de forma honrada.
- Vós retirastes o desafio?
- Disse que o faria.
- Não duvidei.
- Uma ova.
A preocupação devia estar-lhe estampada no rosto quando chegara a correr à entrada. -Jeanette está muito aliviada, tenho a certeza.
- Não penso que seja essa a reação dela, de todo. Está estupefacta, contudo. Há muito tempo que não sou capaz de a surpreender, por isso retiro daqui alguma satisfação.
Mas de nada mais. Ele não gostara de fazer aquilo. Ferira-lhe o orgulho, fazer figura de covarde e desistir. Desagradava-lhe que ela o tivesse forçado a fazê-lo.
- Obrigada.
O que lhe deu direito a um olhar sombrio.
- A minha irmã disse-me que ides visitar a condessa.
- Pensei que seria melhor...
- Onde fostes buscar a ideia de que vos deixaria ir embora agora?
Falou como se, mais do que qualquer outra coisa, a ideia lhe parecesse curiosa. Porém, ela não conseguia ignorar a raiva que emanava dele, muito à semelhança do
que acontecera no ribeiro. Ele refreava-a, mas essa contenção vinha apenas intensificar o efeito que surtia no ar, e nela.
Ele aproximou-se dela. - Acabo de ir ter com um homem que desprezo e renunciei a matá-lo porque vós o exigistes de mim, e enquanto eu o fazia, vós fazíeis as malas.
- Agora não posso ficar. Bem sabeis.
- Não vejo porque não. - Ele aproximou-se mais. - A bem ver, agora tendes de ficar.
- Sabeis porque não posso ficar. Estaria errado.
- A noite passada foi errada?
Ele estava a confundi-la, pondo-se assim tão perto dela. A deixá-la baralhada. - Isso foi diferente.
- Talvez penseis que a noite passada não tenha sido errada porque vos destes por uma causa nobre. Para salvar uma vida. bom, se tendes queda para sacrifícios desses,
deveis ficar. Dizei-vos que desta vez o fazeis para salvar a minha alma. Há uma vida inteira de sacrifício nessa empreitada.
Disse-o com ironia, mas o calor do seu olhar e o tom meigo da sua voz contradiziam a leveza que ele pretendia incutir nas suas palavras.
Ela ficou a olhar para ele, incapaz de pensar numa resposta a semelhante desafio. Veio-lhe à mente que seria uma boa forma de o Diabo seduzir as pessoas. Deveras
eficaz, usar as inclinações de uma pessoa para a conduzir ao Inferno.
- Quando tomastes esta decisão de ir embora? - perguntou ele.
- Ontem à noite? Virdes até mim foi o derradeiro ato de amizade?
Ele perturbava-a mais do que nunca, ali a olhar para ela, alto, à sua frente, e a exigir a sua atenção. Tinha dificuldade em pensar direito. A referência à noite
anterior teve como único resultado pôr-lhe o coração aos pulos.
- Antes - respondeu ela. - Depois do ribeiro, e da partida de cartas.
- Porque compreendestes o quanto vos queria? Isso assustou-vos? Ela desviou o seu olhar do dele e colocou alguns passos entre
eles. Não estava a gostar da conversa, nem da forma como ele persistia em esmiuçar os seus motivos e a sua determinação.
- Não pode ter-vos assustado por de mais, se viestes ter comigo ontem à noite.
- Para ontem à noite eu tinha uma razão. Uma boa razão. Ofereci uma noite, porém, não mais. Não vou ser a vossa Margot. Não consigo. Aprendi isso ontem à noite,
pelo menos. Penso que estas coisas são diferentes para as mulheres do que são para os homens. E agora tenho a minha decisão tomada e vós devíeis ter a gentileza
de a aceitar.
Sentiu-o atrás dela, perto de mais. Em seguida as mãos dele estavam nos seus braços e a respiração dele no seu cabelo. Um beijo leve no alto da cabeça fez-lhe disparar
sensações por todo o corpo.
- Não sou tão gentil quanto isso. Não abro mão facilmente daquilo que quero. Nem estou a pedir-vos que fiqueis aqui a viver como minha amante, Diane.
Ela rodou para escapar ao toque dele e encarou-o. - Não estais? Então não quereis... Claro, provavelmente não foi o que esperáveis.. Quereis que fique aqui como
dantes, apenas como dama de companhia de Jeanette...
A resposta atrapalhada divertiu-o. - Agora nunca poderíeis ser apenas a dama de companhia de Jeanette. Jamais. Tenciono voltar a fazer amor convosco, e essa é definitivamente
uma razão pela qual não posso deixar-vos partir. Visto que não sou homem para importunar convidados nem corromper inocentes, há apenas uma forma de resolver as coisas.
Casaremos.
O comunicado deixou-a sem reação.
- É a única solução, Diane.
- Não é. Ambos sabemos que não é.
- Verdade. Podia ter mandado Hampton mudar a tal obrigação para vós terdes acesso imediato ao rendimento. Foram essas as instruções de Jeanette, mesmo agora.
- Agora não poderia aceitá-lo.
- Porque causei o transtorno de continuar vivo? Desgraçada de vós, eu não ter morrido hoje num duelo. Ter-vos-ia garantido um futuro confortável e seguro. Devíeis
ter dado mais peso aos vossos próprios interesses ontem à noite.
- Parai de distorcer o que eu disse. Eu não...
- Não faço tenção de pôr o que quer que seja no vosso nome, apesar da insistência da minha irmã. Não vos facilitarei a partida. Casaremos.
Ela pensou saber a razão daquela prontidão toda. Era a mesma culpa que provavelmente o levara ao quarto dela na noite anterior. Ela teria preferido não ver mostras
dela. - Estou a ver. Decidistes fazer a coisa certa. Compreendo. No entanto, não é necessário. Não esperei...
- Não esperastes nada. Eu sei disso. Não mostra que tenhais grande opinião de mim. Uma jovem tem o direito de esperar algo do homem que lhe tira a inocência.
- Não foi culpa vossa.
- Já recusei ofertas mais flagrantes.
Um casamento por obrigação era a última coisa que ela queria, e logo com este homem, entre todos os homens. - É amável da vossa parte. Muito decente. No entanto,
não penso que devamos fazê-lo. Vós não quereis realmente fazê-lo, e eu também não estou certa de o querer.
- Diane, existem muitas razões para isto se revelar um erro, e a maior parte delas tem a ver com o meu temperamento. Mas deveis fazê-lo, mesmo sem terdes a certeza.
Calará os rumores sobre Tyndale, e sobre vós e eu.
- Também a minha ausência. O meu desaparecimento.
- Já disse que não posso deixar-vos partir.
Ela não gostava que ele continuasse a insistir naquilo, como se controlasse tudo o que se passava. - Sou eu que tenho a palavra final. É uma escolha minha. Não preciso
de dinheiro nenhum da vossa parte para o fazer, por isso não podeis deter-me se eu estiver determinada.
- É verdade. Só posso dar o meu melhor para me certificar de que a determinação não é assim tanta. - Colocou-lhe a mão na face e olhou-a nos olhos. - Tenho de vos
mostrar que está em meu poder garantir que não? Bastou o toque dele para lho mostrar. Sentiu um calor a descer-lhe do pescoço até aos seios, e o olhar dele forçou
o tempo a abrandar. Ela constatou que ele sempre soubera do efeito que tinha nela. A indiferença dele havia-a protegido, fazendo as vezes de um escudo que ele usava
para bem dela, porque ele sabia que ela seria uma presa fácil.
- Estais apreensiva por causa da noite passada? É frequente a primeira vez não ser agradável para a mulher. De futuro não será assim.
Ela sentiu a face corar por baixo da mão dele. Baixou os olhos e encolheu os ombros. Sim, estava apreensiva por causa da noite anterior, mas não da forma a que ele
se referia. A dor fora a parte fácil. - Nem tudo foi desagradável.
- Assim o dissestes. Não foi completamente horrível. Prometo-vos que da próxima vez não será de todo horrível. - Levantou-lhe : o queixo com o dedo, para ela ter
de olhar para ele. - Aceitais a minha proposta, Diane?
A forma como olhava para ela, tão belo e promissor na sua ternura, tão cativante no seu poder misterioso, convenceu-a a pôr de parte o receio.
O coração dela queria aceitar. O seu amor ansiava a euforia. Ambos estavam desejosos de ser arrebatados por ele e pelo feitiço mágico e estimulante que ele urdia
agora.
O seu bom senso não lhe permitia a capitulação total. Sussurrava-lhe que ela em verdade não sabia o que ele lhe traria. Os avisos
de Jeanette ecoavam-lhe nos ouvidos. Navegava em águas desconhecidas. Havia camadas dele que ela ignorava e possivelmente nunca conheceria.
- Estais muito enganada quanto a uma coisa. Não me limito a fazer o que está certo. Eu quero isto. Espero que tenhais falado verdade ontem à noite e que também o
queirais.
Falou com aspereza, como se as palavras fossem difíceis de pronunciar. Parecia que não gostara de o admitir, de fazer aquela declaração, e que lhe fora arrancada
do coração.
Inclinou a cabeça e beijou-a. Foi o beijo mais meigo que ele alguma vez lhe dera. Oferecia cuidado e apoio e sugeria peripécias futuras. Prometia afeto, quiçá amor.
Preenchia-lhe o coração, tal como o seu longo abraço o havia feito na noite anterior.
O beijo sossegou-a mais do que qualquer outra coisa. As profundezas misteriosas e desconhecidas subitamente não importavam. Nem o perigo que ela pressentira enquanto
faziam amor. Independentemente de como tudo se desenrolasse, ela sabia que naquele momento as intenções dele eram boas.
- Aceitais?
Apesar da sensação de estar a dar um passo arriscado, ela assentiu com a cabeça. No meio do torpor que ele criava, parecia a única coisa certa a fazer.
Ele sorriu como se a decisão dela tivesse sido importante para ele. - vou dizer à minha irmã - disse ele, afastando-se. - Iremos para a Escócia, se concordardes.
O casamento será legal e as nossas histórias ambíguas não interferirão. Gostaria que ela e Paul nos acompanhassem e servissem de testemunhas. É aceitável para vós?
- Claro. Contudo, visto que mal perguntastes se o casamento me era aceitável, a solicitude deste novo tratamento é uma surpresa agradabilíssima.
As palavras dela apanharam-no quando ele se encaminhava para a porta. Parou e olhou para trás. - Lamento dizer que provavelmente não durará.
Acabava de lhe ser dado um aviso cordial e ela sabia-o. - Tenho bastante certeza de que não. As pessoas não mudam assim tão rapidamente.
- Não, imagino que não.
CONTINUA
CAPÍTULO 11
Claro que as possibilidades de fabrico não são o meu interesse principal. Sou acima de tudo um cientista.
Gustave acenou com a cabeça em resposta à declaração tranquilizadora e honesta de Sir Gerome Scot. Scot era um colega cientista e impunha-se gentileza. Era também
Scot quem pagava a refeição que Gustave comia agora num clube privado a convite dele.
No entanto, não queria saber de experiências com químicos. Tinha a mente ocupada com outros problemas.
Já estava atrasado. Tyndale queria que fosse rapidamente preparada uma demonstração da descoberta e até então Gustave não havia feito progresso nenhum nos preparativos.
Teria ajudado se pudesse ter sido uma demonstração pequena, como a experiência que levara a cabo em Paris. Mas não, Tyndale queria saltar essa etapa. Queria uma
coisa maior, que pudesse ser usada para obter uma patente e atrair industriais.
Precisava de comprar materiais e químicos. Precisava de encontrar um edifício, fora de mão, que não suscitasse curiosidade a ninguém. Precisava de se movimentar
por Londres discreta e subtilmente.
Scot papagueava em francês, como era o dever de qualquer homem civilizado e educado. Até os criados deste clube exclusivo
sabiam o suficiente para atender ao conforto de Gustave. Infelizmente, uma vez fora dos patamares mais elevados da sociedade deste país bárbaro, ninguém falava francês,
muito menos latim. E Gustave não sabia inglês.
A situação era impossível. Era necessário que descesse consideravelmente no mundo para fazer as coisas funcionarem, mas não conseguia comunicar com os homens que
precisava de abordar.
Scot lançou-se numa entediante explicação de mais um processo químico. Gustave tentou parecer interessado, mas passados cinco minutos algo lhe chamou a atenção.
Entrara um jovem na divisão, vindo de outra sala, que olhou à volta e se dirigiu a uma mesa onde estava um amigo. Era o seu antigo secretário, Adrian Burchard.
Scot notou a distraçáo. Olhou na direção de Adrian e fez um esgar. - Parece deslocado, não parece?
- Sim. O que faz ele aqui?
- É membro. Não se pode exatamente mandar embora o filho de um conde, pois não? Mesmo sendo óbvio que a paternidade é apenas legal.
A notícia foi surpreendente. Adrian nunca dissera ser filho de um conde quando se candidatara à colocação em Paris. Quem imaginaria tal coisa, com aqueles olhos
escuros mediterrânicos.
- Então, a mãe dele... - Gustave ergueu uma sobrancelha muito eloquente.
- Obvio, não é? Foi nobre da parte de Dincaster ter aceitado sequer o rapaz, é o que digo. Bem, é um filho terceiro, por isso são poucas as hipóteses de ser ele
a herdar, imagino eu. Tem o bom senso de ser discreto, não que seja possível com uns olhos daqueles. Tem estado por conta dele desde que saiu da universidade, foi
o que ouvi. Nem um tostão do conde, que é o que deve ser. Faz alguns trabalhos menores para os Negócios Estrangeiros esporadicamente. Secretário e coisas parecidas,
uma vez ou outra. Há no nosso governo quem não ligue por aí além ao verdadeiro nascimento de uma pessoa, lamento dizer. " ofc
Adrian alegara ter secretariado um diplomata qualquer, ou coisa assim. Fora um pormenor que Gustave presumira ser mentira e descurara generosamente.
- Que interessante. - Que útil, de facto.
Gustave duvidava que Adrian tivesse anunciado a alguma pessoa do clube que por vezes secretariava homens menos ilustres do que embaixadores. Não admirava que raramente
saísse de casa em Paris e que passasse os seroes naquele quarto de sótão.
Ficou de olho em Adrian durante o resto da refeição. Calculou o tempo de terminar a sua refeição para coincidir com a do secretário. Fez por sair do clube ao mesmo
tempo que o filho de conde de aspeto estrangeiro.
A expressão de Adrian registou alguma surpresa quando Gustave se reuniu a ele à espera do chapéu. Não houve, porém, menção da sua associação anterior.
Era tudo o que Gustave tinha necessidade de saber.
Seguiu Adrian para a rua e teve de estugar o passo para o apanhar. - Preferis ser mal-educado com o vosso antigo empregador?
- Fiquei surpreendido por ver-vos, foi tudo. Estais a desfrutar da vossa visita?
- Estou ocupado de mais. Penso que fui precipitado em dispensar-vos. Ser-me-ia útil a ajuda de alguém que conhece esta cidade.
- Há muitos secretários e escriturários disponíveis. Se pedirdes aos vossos amigos, eles arranjam-vos um.
- Preciso de um que fale francês.
- Não deve ser muito difícil.
- Preferia alguém conhecido. - Gustave sorriu. - Como vós. Tinham chegado a uma esquina. Adrian parou e voltou-se para
ele. - Não estou à procura de emprego neste momento.
- Não seria oficial. Não seria público - esclareceu Gustave, mostrando-lhe que sabia quais eram as suas verdadeiras apreensões.
Adrian olhou para todos os lados e finalmente para um edifício no outro lado da rua. - Lamento não poder ajudar-vos.
- Seria muito privado. Eu próprio desejo discrição. A nossa necessidade mútua nesse aspeto assegurará a discrição do acordo.
- Lamento. Não posso.
- Acho que podeis. Acho que deveis.
- Devo?
- Certamente não quereis que procure a ajuda de outros cientistas e confidencie que o meu próprio secretário é orgulhoso de mais para me ajudar.
Adrian olhou de repente para ele, incisivo. A sua irritação desvaneceu lentamente, substituída por resignação. - Suponho que possa ajudar-vos, oficiosamente, claro.
- bom. Não é todos os dias. com efeito, depois de se atender a algumas questões, não precisarei muito mais de vós. O mesmo salário, digamos? Quinze dias?
O queixo de Adrian contraiu-se, como se falar de dinheiro fosse um insulto. Ali em Inglaterra, onde se sabia que era filho de um conde, mesmo que de legitimidade
duvidosa, era mesmo.
- Certo. Agora vou prestar-vos um primeiro auxílio, uma vez que precisais claramente dele. Do outro lado da rua está um homem de barba que vos observa desde que
parámos aqui. Provavelmente é um carteirista que vos identificou como estrangeiro.
Alarmado, Gustave deu meia-volta. Assim que o fez, um homem de barba, mal vestido, de casaca e chapéu gastos, começou a descer
a rua.
- Ficai alerta a estas coisas, msieur. Inglaterra tem os melhores ladrões do mundo.
- Miss Albret?
O chamamento veio de uma carruagem que passava na rua. Diane deparou com os olhos perplexos de Vergil Duclairc à janela.
Ao seu lado, na sombra, vislumbrou o perfil perfeito de Julian Hampton, o amigo e jovem advogado de um seleto punhado de clientes que incluía Daniel e a família
Duclairc. Conhecera Mister
Hampton no jantar da condessa, um homem de pungente beleza, dono de uma reserva cristalina. Ela passara o serão inteiro à espera que ele falasse em poesia, caso
se dignasse de todo falar.
Ela continuou o seu caminho, retomando a descompostura mental que dava a Daniel St. John desde o momento em que o vira sair da casa naquele dia de manhã.
Sentiu uma pequena movimentação de cavalos a bater os cascos e a resfolegar. Subitamente, Vergil caminhava ao lado dela.
- Miss Albret, estais só? Quem vos escoltava perdeu-vos de vista? Ficai comigo e eu encontro o criado de St. John.
- Ninguém me perdeu. Tenho uma coisa para fazer e vou fazê-la. E agora um bom dia para vós.
Ela dobrou uma esquina, deixando-o para trás. Ele apanhou-a. - Estais sozinha? Mas não podeis andar a pé sozinha.
- Claro que posso. É o que tenho estado a fazer no último quarto de hora, mais ou menos.
Uma carruagem colocou-se ao lado deles. O veículo de Mister Hampton dera meia-volta e agora acompanhava-os.
Vergil colocou-se à frente dela, impedindo-a de prosseguir.
- Miss Albret, dar-vos-emos a nossa carruagem. O cocheiro levar-vos-á aonde quer que desejais ir. Devo insistir.
Começava a tornar-se severo e autoritário.
Naquele dia ela não estava na disposição de acatar ordens de ninguém, muito menos de um homem.
- Miss Albret, ou ides de carruagem ou aceitais que vos escolte a pé. Uma ou outra deixar-me-ão em sarilhos com o vosso primo, já que ele me avisou para me afastar,
mas, por favor... - Apontou a carruagem.
- Estou a andar porque quero andar. Não consigo impedir-vos de me acompanhar, se persistirdes. Quanto aos avisos do meu primo, ele não ficará preocupado. Provavelmente
sabe que estais arrebatado por uma certa cantora de ópera e não tendes qualquer interesse em
mim. Não que me importe o que Daniel St. John pensa, ou sabe, ou as preocupações que tem.
Vergil pestanejou de surpresa. Se fora espanto pela sua falta de consideração pela opinião de Daniel ou a prova de que toda a gente sabia da sua cantora de ópera,
ela não percebeu.
- Falais com muita franqueza, não falais?
- As minhas desculpas. Mas tenho andado a falar com tanta delicadeza e sensaboria nestas últimas semanas, que a franqueza acumulada hoje de manhã transbordou.
Ele foi até à carruagem e disse algo pela janela. O veículo acelerou e virou na rua seguinte.
Vergil caminhava ao lado dela, tentando protegê-la dos encontroes. - Onde ides?
- Onde me dissestes para ir, a uma das sociedades que seguram navios. Soube de uma chamada Lloyds, na City1.
- Vai ser uma longa caminhada. Seguramente que St. John vos teria levado.
Ela cerrou os dentes. Daniel prometera levá-la "dentro de alguns dias". Tinha sido há duas semanas.
Claro, ele não via necessidade para pressas. Que lhe importava a ele? Não era ele quem estava à deriva no mundo, sem história, sem família, sem casa. Ele não trazia
um vazio no coração que implorava ser preenchido com alguma coisa, com qualquer coisa. Podia dizer-lhe para esperar até não ter absolutamente mais nada que fazer,
o que seria nunca.
Andavam há meia hora quando o vulto de um cavalo os mergulhou na sombra.
- Levastes o vosso tempo a chegar, St. John - comentou Vergil. Diane estacou. O seu olhar subiu pela figura encorpada do animal até ao rígido cavaleiro que tapava
o sol.
1 Área do centro de Londres onde estão concentradas várias instituições financeiras. (N. da T.)
- Não quis passar por cima de ninguém - disse Daniel. - Hampton vem atrás, e se regressardes pelo mesmo caminho deparareis com a carruagem dele. Obrigada, e a minha
prima pede-vos desculpa pela demora que isto vos causou. Não pedis, Diane?
- Não são necessárias desculpas - disse Vergil, afastando-se. Daniel desmontou. - O que vou eu fazer convosco?
- Sair-me da frente, hoje seria a escolha mais avisada. - Retomou a marcha.
Ele acompanhou-a, com o cavalo pela rédea. A multidão afastava-se como o Mar Vermelho à passagem do enorme corcel.
- Uma mulher não anda sozinha em Londres. A minha irmã não vo-lo explicou?
- Vejo imensas mulheres a andarem sozinhas.
- Mas isso é diferente. São pobres e têm de ir para os empregos.
- Também sou pobre e tenho de ir trabalhar. Ele ignorou a primeira parte. - Trabalhar onde?
- vou à Lloyds.
- Ah! Então esta rebelião é o resultado de um amuo por eu ainda não ter tratado disso.
Ela parou e pôs-se de frente para ele, tão furiosa que os seus olhos lhe doíam. - Não troceis de mim. É por isso que aqui estou. E por isso que saí da escola. Não
foi para vos divertir, nem foi pela vossa irmã, por muito que goste dela. Se esperar que vós atendais a isto, ficarei velha primeiro. Se eu não soubesse que sou
completamente insignificante para vós, suspeitaria que me mentistes no jardim para me empatar.
Rodou nos calcanhares e continuou a andar. Ele foi atrás dela.
- Ide-vos embora.
- Devo insistir em acompanhar-vos. As ruas não são seguras e estamos longe de mais para chamar Paul ou outra pessoa.
Ela ignorou o homem que caminhava ao seu lado, ao contrário de todos os outros transeuntes. Os dois, mais o enorme cavalo que seguia ao lado deles, resfolegando
pela rua, atraíam muitas atenções.
- Estamos a dar espetáculo - advertiu Daniel.
- Da próxima vez visto a minha roupa da escola. Quando fazia isso em Paris ninguém reparava em mim.
- Se estiverdes com as vossas roupas da escola, ninguém responderá às vossas perguntas. Na realidade, hoje também ninguém o faria, não fosse o facto de eu estar
convosco.
Podia ter dito logo explicitamente: "Não sois nada sem mim. Eu fiz-vos."
- E o que achais? - ripostou, com os lábios contraídos para controlar a raiva. - Veremos.
A Lloyds ficava na Royal Exchange, que, com o seu pórtico clássico, lhe fez lembrar uma igreja inglesa. O espaço interior imenso e quadrado, repleto de mercadores
e homens de negócios, estava ladeado de mercadorias. Daniel pegou-lhe no braço para ela não ser engolida pela multidão e fê-la subir alguns degraus até uma sala
cheia de homens.
- É a Lloyds - disse. - Os corretores estão naquela parede. vou apresentar-vos a Thomson. Ele conhece-me.
Ela não se refugiou à sombra de Daniel, por muito que quisesse. Acercou-se da secretária de Mister Thompson com toda a distinção que conseguiu e olhou o empregado
diretamente nos olhos.
O jovem ficou corado, começou a gaguejar e deixou cair a caneta ao chão quando ela lhe sorriu.
Diane olhou de lado para Daniel, deparando-se com Daniel a fazer-lhe o mesmo.
Mister Thompson teve imenso gosto em rever Daniel. Daniel apresentou-a e tentou impor a sua autoridade na entrevista, mas ela exigiu a atenção de Mister Thompson
com mais um sorriso.
Ele deu-lha de bom grado. Por baixo dos esparsos e grisalhos fios de cabelo, o seu couro cabeludo ruborizou-se. Esquecendo a presença impositiva de Daniel St. John,
aguardou o pedido de Diane com um sorriso radiante.
- Procuro informação sobre um parente meu, Jonathan Albret. Esteve nos transportes marítimos há alguns anos, à volta de quinze.
Espero que, se a vossa sociedade tiver segurado algum dos seus navios, possais ter algo que me ajude na minha busca.
- bom, certamente que podemos ver o que temos. Posso pedir aos nossos escriturários que verifiquem e que vos enviem informação.
- Seria possível fazê-lo agora? Ficar-vos-ia muito grata. Há mui-
tos meses que procuro.
Daniel soltou um suspiro. - Mister Thompson está muito ocupado...
- Não tão ocupado que não possa ajudar uma senhora em apuros. - O rosto de Mister Thompson converteu-se numa máscara de simpatia. Deu ordens ao escrevente e uns
enormes tomos encadernados começaram a dar entrada.
Mister Thompson inclinou-se por cima do ombro dela para explicar como eram registadas as entradas. - Sabeis os nomes dos navios ou dos comandantes?
Ela olhou para Daniel, que abanou a cabeça.
- Não, só o nome do dono.
- Ah, isso torna as coisas mais difíceis. Temos de examinar esta coluna, mas assim não há uma ordem. Tomai, ficai com este, e eu ficarei com o outro e o meu empregado
fará o terceiro.
Diane ofereceu um sorriso de gratidão ao seu rosto muito próximo. Até as entradas do homem ficaram vermelhas.
- Mister St. John, se tiverdes outros assuntos a tratar na cidade, tenho a certeza de que Mister Thompson e o seu escriturário me assistirão - disse Diane.
- Não receeis, St. John, vossa prima estará a salvo connosco.
- Ficarei aqui - foi a resposta firme.
Eram só três tomos, por isso ele limitou-se a sentar-se numa cadeira ao pé da janela enquanto Diane e os seus dois deslumbrados assistentes os folheavam.
Duas horas mais tarde, Diane tinha provas irrefutáveis de que o seu pai não segurara navio algum através da Loyds durante os seis anos que precederam o seu desaparecimento.
Entrara na Royal Exchange temerária e confiante, certa de fazer progressos. Agora, ao fechar o pesado volume encadernado, apoderou-se dela um desalento profundo.
Mister Thompson reparou. - Lamento muito. Podemos prócurar mais para trás se quiserdes.
- Não, obrigada.
Os dois homens olhavam para ela com a expressão de quem cortaria uma perna para a poupar àquela infelicidade. O que só a fez sentir-se culpada pela sua pequena sedução.
- Vinde, Diane. - A voz de Daniel estava mesmo por trás dela. Ela não queria olhar para ele. Provavelmente estaria aborrecido
por ela ter causado tantos incómodos para coisa nenhuma.
Forçando-se a engolir a desilusão que sentia, dizendo a si própria que havia outras sociedades de seguros e que isto não ditava o fim da sua esperança, aceitou que
ele a acompanhasse até à rua. Quando ele estava a desatar as rédeas do cavalo, viu-lhe o rosto.
Não era irritação. Era outra coisa, o que lhe endurecia a expressão e lhe ardia nos olhos.
Caminharam para oeste em silêncio. Ela sentiu-se aliviada. Era desilusão a mais para responder a qualquer admoestação com a atitude determinada que tivera duas horas
antes.
De qualquer maneira, conseguia praticamente ouvi-la. Era o tom indiferente das velhas perguntas da escola. Estais satisfeita agora? Bastar-vos-á for uns tempos?
Chega terdes desperdiçado a tarde de três homens na vossa demanda?
À medida que se aproximavam de Temple Bar, o caos e o ritmo das ruas mudaram bruscamente.
As pessoas caminhavam um bocadinho mais depressa. Os pobres e os plebeus iam em massa na direção do rio enquanto as carruagens e as pessoas mais bem vestidas se
apressavam a ir na outra direção. Daniel parou e espreitou pela rua estreita, inclinando a cabeça.
A brisa trazia um burburinho vago.
- Outra manifestação - disse Daniel. - Perto do Parlamento. A sessão de hoje deve ter começado. - Ele pegou no braço dela e
voltou pelo caminho que acabavam de percorrer. - Teremos de ir por outro caminho. Infelizmente, isso quer dizer que passaremos por uma parte da cidade pouco agradável.
Depararam com uma travessa calma, sem ninguém. As lojas tinham fechado as portas.
Daniel conduziu o cavalo até uma pedra de montar. - Não há como prever o que encontraremos. Será melhor se formos a cavalo. Subi para a pedra e eu ajudo-vos a subir,
para trás de mim.
Ela pôs-se em cima da pedra. - Nunca andei a cavalo.
- Então o dia de hoje será o primeiro em muitas coisas, não é verdade? - Ele montou e depois inclinou-se para ela. - A primeira vez que andais a cavalo e a primeira
vez que usais os vossos encantos até terdes dos homens aquilo que quereis. - A expressão dele voltou a endurecer ao dizer a última parte.
O braço dele rodeou-lhe a cintura, numa proximidade desconcertante. - E também a primeira vez que tendes as pernas em exibição para Londres inteira ver. Isto só
funcionará se puxardes a saia para cima, já que tendes de montar com uma perna para cada lado. Fazei-o agora e eu puxo-vos.
Ela obedeceu. Meia-volta e estava atrás dele. A saia subiu-lhe, amarfanhada, até aos joelhos.
- Cobri-vos o melhor que conseguirdes com a vossa capa. Depois segurai-vos a mim para não cairdes.
Ela resistiu à última ordem, preferindo agarrar a parte de trás da sela.
Quase caiu, e o animal ainda mal começara a andar. Hesitante, colocou os braços à volta do corpo de Daniel.
Não era um abraço. Nem por isso. No entanto, a ligação, o calor, inebriaram-na por completo. Tal como o abraço de despedida de Madame Leblanc, na escola, a deixara
sem fôlego, tal como o trato de Daniel na carruagem a deixara vulnerável, estar agarrada a ele, mesmo sem intimidade, provocou uma reação imediata.
O vazio tomou conta dela e depois gritou de alívio, quase gemendo, sentindo o afluxo do mais doce, mais humano, contentamento.
Vede, não estais completamente só, sussurrou o seu coração. Há outras maneiras. Outros lares, e outros amores, para além dos da família.
Fora avisado regressarem a cavalo e não a pé. Passaram por ruas de mau aspeto. As pessoas que nelas perambulavam estavam agitadas pela manifestação na qual nem sequer
tinham participado. Daniel passava a trotar a um ritmo rápido, ignorando os gritos atirados na direção deles.
Subitamente, parou o cavalo. Espreitando por detrás do corpo de Daniel, ela viu que se formara uma multidão na rua à sua frente. Daniel virou a montada, mas também
não paravam de chegar pessoas ao cruzamento que acabavam de atravessar.
Praguejando baixinho, voltou a virar e avançou a trote. - Deve ter havido violência perto do Parlamento. As notícias correm. Agora segurai-vos bem.
Ela agarrou-se muito bem. A fealdade das expressões dos rostos à sua volta convertia a humanidade do grupo na ferocidade de uma multidão. Lembrou-se do ataque à
saída da ópera, em Paris, e preocupou-a que alguns daqueles pobres diabos pudessem ter facas.
Valendo-se da corpulência do cavalo, Daniel abriu caminho. Alguns homens tentaram não se desviar e só saltaram para o lado no último minuto. Choveram pragas e obscenidades.
- Porque estão eles irritados connosco? Não estamos no governo.
- Estão irritados com qualquer pessoa que possa comer sem contar os tostões que lhe sobram.
De repente os rostos que os olhavam com desprezo não pareciam tão falhos de humanidade. - Se estão com fome, imagino que isso desculpe o comportamento deles.
Ele virou para ela uns olhos inflamados. - Não há desculpa.
Nesse preciso momento, um homem agarrou a cabeçada do cavalo. Outro agarrou no tornozelo exposto de Diane, que, horrorizada, o tentou sacudir, conseguindo apenas
que ele começasse a rir-se. "í
Grunhindo, Daniel deu-lhe um pontapé com tanta vontade que o homem voou e caiu de costas na sarjeta.
Diane viu por instantes o rosto de Daniel enquanto ele reagia à ameaça. Por um momento ele pareceu tão duro e cruel, tão primitivo e implacável, que ela quase o
largou e se virou para trás. Depois pestanejou e aquele aspeto desapareceu tão rápido que ela se perguntou se o teria imaginado.
Daniel passou o cavalo para um ritmo mais rápido. A multidão afastou-se. Não houve mais desafios.
Em breve a multidão rarefez-se e desapareceu, juntamente com a pobreza dos edifícios. O ruído surdo e familiar ainda vogava na brisa, mas todas as outras provas
de desassossego tinham cessado.
- Tendes de descer agora - instruiu Daniel, parando o cavalo.
- Outras pessoas não devem ver-vos assim.
Fizeram a pé o resto do caminho até à casa dele. Ele não disse nada, mas ela sentiu que ele queria fazê-lo. Não eram coisas agradáveis, disso tinha a certeza. O
seu silêncio tinha uma nota áspera.
- Vinde ao escritório, por favor.
Ela sentiu-se como se sentia na escola, quando era chamada ao gabinete da diretora. Detestava sentir em si aquela reação. Melindrava-a estar em tão grande desvantagem,
e nem sequer saber porquê, ou o que era que ele esperava dela.
Pelo menos ele não se sentou atrás da escrivaninha e não a examinou como se fosse uma aluna malcomportada. Em vez disso, pôs-se à janela e, como fazia tantas vezes
na presença dela, olhou para fora, em vez de olhar para ela.
O que também não lhe agradava nada.
- Sei que ficastes infeliz com o dia de hoje. Lamento. - Parecia suficientemente sincero. Então porque sentia ela que ele não o lamentava completamente?
- Talvez não devais persistir muito em procurar parentes perdidos, Diane. A desilusão... sois jovem e tendes uma vida a construir. O passado consegue ser uma grilheta,
e vós fostes poupada a isso.
- Vós não compreendeis.
- Penso que sim, melhor do que pensais.
- Se compreendêsseis nunca chamaríeis grilheta ao passado, como se aprisionasse uma pessoa.
- Pode fazê-lo.
- Então eu quero grilhetas dessas. Quero estar presa a uma família, boa ou má. Quero poder dizer que o meu avô viveu nesta cidade e que o meu tio tinha aquele ofício.
- Ela ouvia ressentimento e súplica na sua voz, mas não conseguiu deter nem um nem outro. - Quero saber que alguém se importava comigo quando nasci e que ficou triste
por me deixar e que pensava em mim às vezes. Quero saber que tenho algures um primo ou uma tia que se pergunta o que terá sido feito de mim.
A sua declaração ressoou pela sala. Ecoou durante algum tempo até ser engolida pelo silêncio.
- É tudo? Quero sair.
Ele voltou-se. - Não, não é tudo. Não deveis voltar a sair sozinha.
- Em Paris combinámos que podia continuar a fazer aqui o mesmo que lá.
- Eu não sabia que andáveis sozinha em Paris. No futuro levai escolta.
-Já acabámos?
- Não. Parece-me que nestas últimas semanas haveis descoberto o poder que uma mulher bonita tem. Contudo, a forma como brincastes com Mister Thompson e o empregado
hoje foi ousada de mais.
- Não foi nada ousada. Foi muito subtil. Já vi duquesas fazer bem pior.
- Não sois uma duquesa de quarenta anos.
- Não, sou uma órfã de vinte sem um tostão. Se um sorriso abre os livros dos Mister Thompson do mundo, é um preço pequeno a pagar, com a única moeda que tenho.
- Eu ter-vos-ia aberto os livros.
- Preferi fazê-lo eu própria. Dizei, msieur, o nosso acordo produz os resultados que esperáveis?
- O que quereis dizer?
- Atraio as atenções que esperáveis? Travais conhecimento com os homens que queríeis conhecer? Faz-se negócio nos serões de cartas e clubes? O investimento que fazeis
em mim traz-vos resultados?
- Que coisa para se perguntar. Às vezes espantais-me.
- Prefiro-vos espantado a ter-vos a encher-me os ouvidos. Se tudo se passa como queríeis, não penso que os vossos sermões sejam apropriados. Contai os vossos ganhos
e deixai-me colher os meus.
Ela saiu, e a cada passo aumentava a pequena fúria que sentira quando ele a confrontara na rua. Chegou à escadaria praticamente a tremer de frustração e com uma
sensação inexplicável de ter sido insultada.
Estavam dois vasos orientais colocados no remate dos corrimões. Ao contrário dos que estavam no seu quarto de Paris, estes eram rosa e verdes, cobertos de flores.
Olhou para eles, ali no seu poiso para todos verem, proclamando o gosto urbano do homem que os detinha.
Que a detinha a ela, de certa forma.
Pegou num dos vasos. A fineza da porcelana proclamava a proeza do artífice, a par da sua decoração.
Tomando-lhe o peso, deleitou-se com a sensação.
Caro. Perfeito. Um objeto de singular beleza.
As suas mãos libertaram-no. Desfez-se em pedaços no chão de mármore.
O som ecoou até ao corredor. Abriram-se portas de onde saíram criados boquiabertos. Daniel emergiu da biblioteca, curioso.
Ela estava no meio dos estilhaços, mal conseguindo conter uma euforia insolente.
Os criados desviaram o olhar de Diane para Daniel.
Ele aproximou-se com uma expressão estranhíssima no rosto. Apontou para o vaso partido.
- Era um Ming.
- Dais nomes aos vossos vasos?
- Dinastia Ming. com pelo menos trezentos anos. O par não tinha preço.
- Dissestes-me para partir um. Todos os dias, se quisesse.
- Eram os do vosso quarto.
- Importa?
Ele voltou para a biblioteca com uma expressão de indulgência.
- O simples facto de terdes partido alguma coisa é o que importa. Não me augura nada de bom, pois não?
CAPÍTULO 12
Ainda não terminaram, senhora. Conto que demore pelo menos mais uma hora. - O lacaio falou pela janela do cocheiro e o rosto desapareceu em seguida.
Penelope olhou para Diane, desculpando-se. - Espero que não vos importeis de esperar por eles.
- Claro que não. - Era o que a condessa tinha de mais desconcertante. Apesar de ter tomado como amiga a obscura prima de um armador, agia como se Diane não devesse
estar grata e até tivesse algum direito a importar-se.
- Eu cá importo-me. Mas não com este atraso. Se o meu irmão me pedisse para esperar a tarde inteira, não poderia queixar-me. No entanto, vexa-me ser tão cobarde.
Incomoda-me que o conde tenha o condão de me fazer isto, mas o medo deixa-me paralisada.
- O simples facto de irdes à festa mostra que não sois covarde. Estavam a caminho de uma festa em casa de Lady Pennell, no
Essex. Penelope combinara parar ali em Hampstead, naquela casa antiga, para se encontrar com o seu irmão Vergil e viajarem juntos. Em circunstâncias normais, a condessa
não teria necessidade daquele aparato todo, mas a festa poderia tornar-se muito constrangedora. O seu marido, o conde de Glasbury, estaria lá. A sua família
reunia-se em peso para a apoiar. O irmão mais velho, o visconde Laclere, também planeara ir até lá para estar ao lado da irmã.
- Podíamos assistir - sugeriu Penelope. - É uma academia de esgrima, cujo dono é o chevalier Louis Corbet. Dizem alguns que é a melhor de Inglaterra, apesar da fama
da de Angelo, em Bond Street. Lá é um desporto. Aqui diz-se que o chevalier a ensina como se fosse para combater na guerra ou em duelos. Podíamos dar uma espreitadela.
- É permitido? As mulheres assistem no tal Angelo?
- Claro que não. Descobri, porém, que depois de uma mulher deixar o marido, pouco mais há que possa fazer que realmente choque alguém.
Diane notara há já algum tempo que Penelope considerava que a sua nova liberdade merecia um pouco de censura pública. Não que ela explorasse realmente essa liberdade.
Ao contrário de algumas mulheres, que sem pudor adotavam amantes, os pecados de Penelope eram de natureza diferente. Ela misturava-se com pessoas com que normalmente
uma condessa não se misturaria, e fazia seus amigos outros que tinham caído muito mais baixo do que ela.
Segundo Jeanette, a condessa maculava-se sem redenção possível. As pessoas importantes mais facilmente perdoariam um caso com um homem casado do que perdoariam amizades
democráticas. Era apenas uma questão de tempo até algumas das salas que ainda se abriam para a condessa começarem a fechar.
Tomando a dianteira, Pen encaminhou-se para a entrada da casa e empurrou a porta devagar. Seguiram o barulho de aço sobre aço até uma câmara grande que ficava a
seguir ao vestíbulo. Espreitando pela ombreira da porta, como crianças a espiar no baile, viram três pares de homens em duelo de espadas.
- Parece muito perigoso - sussurrou Penelope, - Nem sequer utilizam camisas acolchoadas. Um movimento em falso e há sangue.
Diane não considerara o perigo que as roupas deixavam adivinhar. Só reparara na falta delas. Não só eles não usavam camisas
acolchoadas, como não usavam camisa de todo. A sala parecia girar com as imagens de seis torsos nus e fortes.
Ela nunca vira nenhum na vida.
- Não pensei que o vosso primo estivesse aqui - desculpou-se Penelope. - O homem grisalho com quem se bate em duelo é chevalier Corbet.
Diane distinguira logo Daniel. Ele estava de frente para elas, mas toda a sua concentração estava no adversário, tal como era devido.
- Ele e o chevalier são claramente os mais capazes. Os movimentos do meu irmão são menos audazes. São mais estudados.
Diane não reparava nos diferentes níveis de perícia. Não conseguia desviar a atenção de Daniel. Ele estava muito atraente. Ao contrário dos rostos dos homens mais
novos, onde o esforço era visível, o dele permanecia calmo, quase frio, ao corresponder ao ataque do chevalier.
Tinha um aspeto magnífico. Forte e confiante, esbelto e musculado e... maravilhoso. Um brilho suavíssimo cobria-lhe a pele e músculos retesados delineavam-lhe os
braços, os ombros e o peito. Não era o homem maior da sala, mas não havia como não reparar que cada centímetro dele estava perfeitamente trabalhado e era potencialmente
perigoso.
O olhar dela deixou-se ir até àqueles músculos, fascinado com a sua solidez esculpida. A forma como o tronco dele se estreitava até às ancas atraía inexoravelmente
a sua atenção. Sentiu uma excitação percorrê-la, e memórias proibidas das suas carícias na carruagem invadiram-lhe a mente.
Qual seria a sensação de pousar a palma da sua mão naquele peito? Parecia tão robusto, mas com certeza que a pele seria quente , e macia...
- Diabos, Pen, que fazeis aqui? - O grito de Vergil Duclairc arrancou Diane às suas vergonhosas especulações.
Tinham reparado nelas.
Os combates cessaram imediatamente. Vergil e três outros homens apressaram-se a ir buscar as camisas.
Daniel não. Olhando para a entrada, baixou a espada. O seu olhar captou o de Diane antes de esta conseguir esconder-se atrás do umbral.
Ela sentiu o rosto aquecer. Algo no olhar dele sugeria que soubera que ela estava lá. Tal como ela vira a reação dele no espelho da modista, ele vira a sua, apesar
de ter a atenção na espada do chevalier.
Ao contrário de Vergil Duclairc, ele deixara-a olhar.
A expressão dele não mostrava nem constrangimento nem choque. Os seus olhos limitavam-se a constatar o que ela via, e o facto de não ter desviado o olhar. Como ainda
não tinha feito.
- Céus, Pen, que tínheis na cabeça? - Vergil apareceu subitamente à frente delas, tapando a vista. A camisa apenas lhe pendia dos ombros, um simples recurso para
esconder a nudez.
Ao lado dele estava um jovem de beleza perfeita de cabelo castanho e sorriso vencedor. Devidamente vestido, estivera comodamente recostado num banco num dos lados
da sala.
- Não fazia ideia de que esgrimíeis sem roupa - justificou Pen.
- Só em jogo de combate defensivo. É para nos acostumarmos à vulnerabilidade. - Mas sois vós quem tem de dar explicações, não eu.
- Apenas estávamos curiosas sobre a prática. Ainda bem que não estáveis completamente nus, como nas métopas gregas de Elgin. E pensar que eu sempre presumira que
se tratara de liberdade artística por parte do escultor.
Vergil suspirou, exasperado. - Sabeis muito bem que devíeis ter saído imediatamente. Além do mais, trazer Miss Albret...
Penelope olhou para Diane. - Oh, Céus, fui descuidada. Vamo-nos embora agora e esperamos na carruagem. Não vos apresseis por nossa causa. Insisto. Terminai como
havíeis planeado.
Pegando em Diane pelo braço, Penelope dirigiu-se para a entrada do edifício. - O Vergil consegue ser um tanto retrógrado.
Sempre fez parte dele, mas piora à medida que vai envelhecendo. Não sei onde foi buscar isso, uma vez que a nossa família não é conhecida por coisas dessas. É mais
o oposto. Ele é bem-intencionado, mas consegue ser cansativo.
- Concordo, Pen. Tendo acabado de ouvir uma repreensão que durou o caminho todo até aqui, devo dizer que essa característica de Vergil se desenvolveu consideravelmente
desde a última vez que o vi. Apesar de ser escandaloso da vossa parte andardes assim a espreitar.
A resposta veio de trás delas. Diane olhou para lá para ver o belo jovem que as seguia. A nota de humor nos seus olhos límpidos sugeria que ele considerava os comportamentos
escandalosos muito divertidos.
No pátio, Pen deu-lhe um abraço e um beijo. - Diane, este é o meu irmão mais novo, Dante. Só tem dezoito anos, mas já viveu uma vida inteira de tribulação. Fiquei
surpreendida por vos ver ali, Dante. Foi gentil da vossa parte sairdes da universidade para virdes até cá apoiar-me.
- E com satisfação que vos apoio, mas confesso que tive pouca escolha no que respeita à parte de vir até cá.
O semblante de Pen mudou. O seu suspiro pareceu tão exasperado como o de Vergil fora. - Estais a dizer que fostes suspenso? Outra vez, Dante? Não admira que Vergil
resmungasse. O que foi desta vez?
- Algo de somenos importância. - Dante indicou Diane com o olhar, para lembrar à irmã que tinham companhia.
- Visto que temos algum tempo antes de irmos embora, vou dar um passeio no parque - anunciou Diane.
Pen estava completamente absorta com o irmão mais novo e não objetou quando Diane se afastou. A última visão que teve deles, ao virar a esquina da casa, foi de Dante
a falar com uma expressão algo envergonhada e Pen a resmungar.
Diane já avançara bem no bosque quando reparou que nunca antes passeara no campo. A escola localizava-se nos arredores de Rouen, mas a sua envolvência dificilmente
se diria rural. As saídas tinham sido para ir à cidade, que não ficava longe. Em Paris, e agora em Londres, ela usufruíra dos parques, mas sem se aventurar para
lá das áreas cultivadas. Esta casa de Hampstead podia não estar rodeada de quintas, mas havia muita terra e tanta vegetação que o cenário parecia rural.
Andou por caminhos, surpreendida por a experiência não a assustar mais. As pessoas falavam da Natureza como sendo um lugar de transformação. A ela, pelo contrário,
parecia-lhe bastante familiar. Talvez por a Natureza ser silenciosa e solitária, e o seu coração estar muito acostumado a ambas as coisas.
Não completamente silenciosa. O estrondo de disparos rasgava o sossego a intervalos regulares. Não muito longe, alguém andava atrás de caça.
O que também não a deixou sobressaltada. Ela soube logo o significado do som. Soube que pertencia àquele sítio e que ela não devia aproximar-se.
Virou por outro caminho e viu uma clareira mais à frente. Ao aproximar-se do intervalo nas árvores, deparou com uma casa rústica.
Parou. A imagem daquela casa, rodeada por aqueles troncos e ramos vacilantes, era-lhe tão familiar que ficou sem respiração. Teve a estranha sensação de já ter vivido
aquele momento.
Não era a primeira vez que tinha aquela sensação inusitada. Ela sabia que todas as pessoas a experimentavam por vezes. Mas esta foi mais distinta do que qualquer
outra. Acreditava que, se lho pedissem, conseguiria descrever completamente a casa sem ver o resto.
Tentou fazê-lo. Quando a sua cabeça lhe falhou, quando não surgiram os pormenores recônditos, ela riu-se de si própria e continuou a andar.
A velha casa de telhado de colmo, de paredes revestidas e vigas de madeira, parecia bem cuidada. Alguém vivia lá.
Como se chamado pela sua curiosidade, a porta abriu-se e saiu de lá um homem de idade. As suas roupas eram simples mas estavam limpas, a sua barba comprida e branca.
Reparou nela.
- O chevalier agora aceita mulheres para as lições? - A ideia fê-lo soltar uma risada, a caminho do poço com um balde na mão.
- Estou apenas de visita. Não estou a aprender a usar a espada.
- Falais como ele. Francesa, certo? Não se vê muito mulheres por aqui.
Ela aproximou-se. A sensação de estar reviver alguma coisa intensificou-se. - Quem sois?
Ele olhou surpreso para ela e depois riu-se. - Sou George. Cuido dos terrenos o melhor que posso com estas pernas. Passei aqui a maior parte da minha vida, ainda
antes de o chevalier vir para cá. Diacho, estava aqui quando passou para aquele marialva antes de Corbet. Perdeu-os ao jogo, sim, e eu já estava a ver. Como vejo
aqueles rapazolas que vêm para os duelos deles a perder, provavelmente, a maior parte do que têm em mulheres e cartas. - Deu à manivela até o balde emergir do poço.
- Uma pergunta arrojada merece outra. Quem sois vós?
Uma profunda desilusão abriu-lhe o peito. - Não sou ninguém.
- Saiu-lhe antes de dar por isso, a resposta nascida do particular desalento que subitamente lhe partiu o coração.
Diane deu meia-volta, para se afastar daquele sítio que a fazia sentir-se tão estranha e perdida.
- Sabeis o caminho de regresso? - perguntou George.
Ela parou. Não prestara muita atenção aos caminhos por onde viera. Fora descuidada.
- Que sorte não vos terdes perdido. Ide pelo primeiro trilho que sai para a direita. Leva-vos ao limite do bosque e é só seguir por ele até à casa. Há outro caminho,
mais rápido, mas esse é o melhor de seguir. Mas ide pelas árvores deste lado do campo. Esses disparos que ouvis é um dos rapazes a praticar com a pistola do outro
lado.
- Pensei que fosse caça.
-Já não se anda muito à caça por estas partes. Demasiada construção. Costumava ser campo, mas a cidade está a tomar o espaço.
Ela agradeceu e seguiu o caminho que ele indicara. Na curva para contornar o campo, o sol dissipou a sensação de déjà vu.
Não conseguia ver a casa, mas ia na sua direção, segundo as indicações de George. Umas poucas flores precoces salpicavam o pequeno campo. Quando chegasse o verão,
cobri-lo-iam por inteiro.
Perguntou-se se conheceria o chevalier. Se sim, talvez ele a convidasse para uma nova visita. Imaginou-se a correr descalça ao sol naquele prado. A fantasia era
tão vívida que ela sentiu a erva e a terra sob os pés.
Os tiros tinham parado, mas subitamente um estalido rompeu o silêncio. Ao mesmo tempo, sentiu um silvo ténue perto da orelha. Um baque à sua esquerda fê-la virar
a cabeça em sobressalto e gritar.
Estacou, aturdida. Precisou de vários instantes para compreender a razão da sua reação.
Acabava de passar por ela uma bala.
Desceu-lhe pelo pescoço um arrepio de medo. A mesma sensação de choque que experimentara a seguir à ópera imobilizava-a agora.
Apareceu um homem do outro lado do campo. Viu-a e desatou a correr. À medida que ele se aproximava, Diane via apenas cabelo louro e um rosto consternado.
- Estais ferida? Acertou-vos? -As perguntas gritadas aproximaram-se com ele.
Não tinha a certeza. Achava que não. Abanou a cabeça.
- Graças a Deus. Uma lebre assustou-me e a minha pontaria falhou. Nunca anda ninguém nestes terrenos, por isso quando vos ouvi o meu coração parou.
Ela recuperou a compostura. - Estou bastante bem. Não acho sequer que tenha passado perto. Gritei porque me assustei, foi tudo.
Ele suspirou de alívio. - Por favor, deixai-me acompanhar-vos até à casa. As apresentações formais terão de aguardar, mas o meu nome é Andrew Tyndale, e nunca me
perdoarei pelo meu descuido.
Ele parecia robusto e honesto, um cavalheiro. Já sem a preocupação no rosto, a sua expressão era contrita e preocupada. Diane calculou que tivesse quarenta e muitos
anos.
Permitir-lhe que a acompanhasse pareceu-lhe uma opção sensata. - Agradeço-vos, sim. Estou um pouco abalada, confesso.
Enquanto caminhavam, silenciosos, ela olhou disfarçadamente para ele algumas vezes. Era um homem atraente, de maxilares fortes e olhos azuis encovados. O seu semblante
dava mostras de abertura, como se não houvesse muito a disfarçar. Pareceu-lhe que deveria ter sido deslumbrante quando era novo. O cabelo louro ao estilo romano
e o corte elegante do casaco sugeriam que ainda considerava sê-lo.
Ela travara conhecimento com muitos homens da idade dele desde que saíra da escola. Alguns ignoravam o correr dos anos e fingiam ser ainda jovens, e passavam por
tolos em vez de inteligentes. Outros resignavam-se tanto ao passar do tempo que bem podiam estar já nos sessenta. Andrew Tyndale parecia ter conseguido um equilíbrio.
Envergava a sua maturidade com franqueza, mas a sua boa forma e elegância anunciavam que ainda não tinha passado o seu tempo.
Ele sorriu-lhe. Era um sorriso caloroso. Conferia ao seu rosto um semblante que inspirava confiança. - Como disse, as apresentações formais terão de aguardar, mas,
uma vez que quase vos matei, posso saber o vosso nome?
- Diane Albret. - Pronunciou o "t", como fazia desde que chegara a Inglaterra. Sempre na expectativa de que alguém reconhecesse o nome se o pronunciasse daquela
maneira. Para reivindicar a sua verdadeira proveniência, também tentava purgar o seu discurso de palavras francesas e do seu sotaque, mesmo sendo um e outro considerados
muito elegantes naquelas partes.
- Sois francesa? - perguntou, indicando, como George antes dele, que o sotaque ainda a denunciava.
- Sou inglesa, mas cresci em França.
- Estáveis longe de casa durante a guerra, então.
Sim, muito longe de casa. Ela não sabia porquê, mas sentiu que ele acolheria de bom grado as suas confidências sobre o assunto. Estaria muito mais interessado no
significado que aquilo tinha tido para ela do que Daniel estivera.
- Sois parente do chevalier?
- Não, estou aqui com Lady Glasbury.
- Ah! Agora sei porque me pareceis familiar. Penso que vos vi com ela no baile de Lady Starbridge, na semana passada. A condessa é amiga do chevalier.
- Não me parece. Estamos à espera que o irmão dela acabe o treino.
- Deveis referir-vos a Vergil Duclairc. Da Sociedade de Duelos de Hampstead. É o nome que deram a eles próprios. Não é sociedade de esgrima, mas sim de duelos. Praticam
para um desafio que nunca há de vir, e fingem ser corsários.
- Não sois membro, parece-me.
- Sou velho de mais para me deixar encantar por fantasias.
- Mas também frequentais a academia do chevalier?
- A sua perícia é insuperável, e usa o sabre militar, que eu prefiro. Gosto que ele treine sem as camisas acolchoadas. Ao contrário dos jovens que lá estão agora,
contudo, não tiro a camisa e trago uma lavada para vestir depois de terminado o treino.
Ele riu com a piada que acabava de dizer. Ela quase o fez também, mas só até se lembrar que assim indicaria que os vira sem as camisas.
- O dia está bonito e o campo muito agradável - disse ele, oferecendo-lhe um sorriso paternal. - Vamos atravessá-lo e ir para a casa pelo caminho do bosque do outro
lado. Há um riacho adorável onde se vêem crocos floridos.
- Não vai começar mais ninguém a atirar, pois não?
- Não, e eu sei como ficar fora de alcance se o fizerem.
Ela sentia-se muito segura com ele, ainda que ele quase a tivesse alvejado. Queria atravessar o campo, por isso anuiu.
com a saia a roçar pela erva seca, concluiu que gostava da companhia de Andrew Tyndale. Poderia um dia ter caminhado assim com o pai se ele não estivesse morto.
Andrew Tyndale não a assustava minimamente, sendo tão velho, nem a deixava perturbada. Tratava-a como trataria uma sobrinha ou uma filha.
Não criava pequenas eternidades nas quais ela se esquecia de como respirar.
- As minhas desculpas pela minha irmã, St. John. O facto de levar uma vida independente fez com que começasse a ter atitudes muito peculiares.
A exasperação de Vergil fez Daniel sorrir. Ter atitudes muito peculiares era uma espécie de tradição dos Duclairc, e Vergil, com o seu respeito pela aparência de
retidão, era o que destoava da família.
- Sendo uma mulher casada, claro, o choque não foi tão grande. A vossa prima, contudo... - Vergil arranjava o lenço no espelho do vestiário. - vou relembrar à Pen
as responsabilidades dela a esse respeito.
- Eu não faria do assunto mais do que aquilo que foi. Estou certo de que se a vossa irmã soubesse nunca teria entrado, muito menos deixado que a minha prima o fizesse.
Vergil assentiu com a cabeça, aliviado por ter recebido absolvição pela irmã. - Muito decente da vossa parte.
Daniel não se sentia de todo decente a propósito do pequeno episódio. O comportamento de Lady Glasbury era desculpável. O seu não.
Ele soubera que elas lá estavam bem antes de Vergil dar o alarme. Tinha reparado nelas ao travar a espada de Louis com a sua. Vira Diane a observá-lo. Tivera plena
consciência da expressão dos seus olhos.
Gozara dissimuladamente cada maldito segundo do que lhe parecera uma hora, emproando-se como um animal que se exibe perante a sua parceira.
Fazia-se ridículo por causa dela.
Saíram para o pátio onde a carruagem da condessa aguardava. Vergil encaminhou-se para lá com uma expressão que indicava que a condessa ia ouvir um sermão, de qualquer
forma.
Acabou por ser curto. Voltou para a beira de Daniel. - A vossa prima não está aqui. Foi dar um passeio, para proporcionar à minha irmã alguma privacidade com Dante,
que lhe contou a história do seu mau comportamento.
- Eu vou procurar por ela.
- Dissestes que tínheis de ir a uma reunião antes de vos juntardes a nós no Essex. Permiti-me, já que de qualquer modo nos demoraremos até ela ser encontrada.
A reunião era de importância vital, mas podia seguramente esperar. Daniel não queria Diane a caminhar naqueles bosques.
Quando se voltou para a casa, deparou com a saída alvoroçada do edifício de dois outros alunos da academia. Subiram para uma carruagem, que se afastou.
A sua ausência revelou um cavalo atado a um poste.
- Não tinha reparado que Tyndale ainda cá estava - comentou Daniel.
- Saiu para o tiro estávamos nós a chegar. Era a pistola dele que ouvíamos quando praticávamos.
Mal acabou de falar, os seus olhos brilharam de preocupação. Daniel também ficou com o coração nas mãos. Era raro alguém caminhar no terreno, e quem praticava pistola
não se preocupava muito com essas coisas.
- Certamente que se lhe tivessem acertado... - começou Vergil.
- Vós e Dante procurais no campo e no bosque à direita comandou Daniel, dirigindo-se a passos largos para as traseiras da casa. - Eu vou para a zona de tiro.
Ela não fora ferida. Daniel soube-o quando ouviu o riso dela. Seguiu o som até a ver sentada num tronco à beira do ribeiro.
Tinham-lhe enfeitado o colo com um montinho de crocos. Um homem oferecia-lhe mais um.
Não tinha sido uma bala a ir ao seu encontro.
Mas sim Andrew Tyndale.
Diane sorriu e aceitou a flor. Daniel não viu aquela desconfiança cautelosa nos seus olhos. Ela não sentia perigo. Claro que não. Daniel não conseguia ver a expressão
de Tyndale, mas conseguia imaginar a sua honestidade franca.
Apenas Daniel testemunhara a ferocidade daqueles olhos quando combatia com Louis.
Nem mais ninguém vira as outras centelhas quando Tyndale observara Diane do outro lado de um salão de baile apinhado. Daniel vira-as, mas só porque as procurara
cuidadosamente.
Tyndale estava sentado ao lado de Diane e apontava para outra flor que tinha na mão. De sobrolho franzido, ela olhava para a flor e recebia uma qualquer lição de
horticultura.
Diane teve de se baixar mais para ver bem a flor. A Daniel não escapou a reaçáo manhosa de Tyndale ao movimento subtil.
O canalha iria tentar agora, aqui? A idade teria tornado o homem assim tão precipitado e descarado?
A flor escorregou da mão de Tyndale e flutuou pelo ribeiro abaixo. Rindo da sua falta de jeito, ele esticou o braço para tirar outra do montinho no colo de Diane.
Daniel observou aquela mão, o braço que roçava o corpo de Diane, e os olhos de Tyndale, e soube com certeza que, dando-lhe tempo suficiente naquele tronco, as coisas
se tornariam muito menos inocentes.
Instintos que ele não sabia que possuía incitaram-no a avançar. Emoções primitivas de proteção e posse aos gritos na sua cabeça, que, surgindo tão súbitas e violentas,
quase tomaram conta dele.
Foram outros instintos que as limitaram. Os instintos do felino perfeitamente imóvel que, sentado, aguarda o movimento da sua presa. Os de um homem que planeia uma
vida em perseguição de um objetivo.
O objetivo esperava-o naquele tronco. Cinco minutos, talvez dez, e estaria terminado. Quase. Os meios para a concretização estariam ao seu alcance, porém.
Contara que levasse semanas. Meses. Afinal, o destino tratara rapidamente disso.
Concluída a explicação sobre a flor, Tyndale aproximou-se e enfiou-a no cabelo de Diane, junto à orelha.
Daniel notou no semblante dela um pouco da cautela que tão bem conhecia. Durante um instante, Diane perscrutou o rosto do homem ao seu lado. Depois descontraiu e
sorriu, tranquilizada.
Daniel imaginou o regresso daquela desconfiança. Viu o horror dela quando Tyndale a atacasse. Ele sabia o quanto teria de deixar as coisas avançarem para ter uma
desculpa para o matar. O grito para a proteger crescia e crescia à medida que a sua cabeça presenciava o desenrolar de tudo.
Rebentou uma tormenta dentro dele. A ânsia que sentia de sair do meio das árvores chocou o homem que ele lutara para ser. Passavam em rajadas pela sua mente imagens
de todas as razões pelas quais devia esperar que aquele canalha se desgraçasse. Invadiram-no memórias que lhe arrepiavam a espinha sempre que assomavam à superfície.
A cabeça num torvelinho, o sangue a ferver, Daniel era dilacerado pelas forças raivosas que se debatiam dentro dele.
Diane curvou-se para apanhar mais um croco. O olhar de Tyndale, com muito pouco de paternal, desceu-lhe pelo corpo.
A lascívia daqueles olhos despoletou relâmpagos na tempestade. Uma decisão que Daniel jamais esperara cristalizou-se de imediato.
Ela já tinha sofrido o bastante com isto. Ele encontraria outra forma de o fazer.
CAPÍTULO 13
Daniel saiu do meio das árvores. Diane viu-o quando se preparava para apanhar um croco violeta. O som do passo dele fê-la erguer a cabeça de rompante. Endireitou-se
rapidamente.
A alcunha de criança que lhe dera surgiu-lhe logo. O Homem Diabo. Há semanas que não pensava nele daquela forma, mas agora sim.
A expressão dele parecia amigável. Caminhava num passo descontraído. Ainda assim, sentia ameaça nele, um perigo retraído. Nos seus olhos viu perfeitamente o brilho
que dizia que nada o distrairia naquele dia.
- Aqui estais vós. Temíamos que vos tivésseis perdido. A condessa aguarda. - O olhar de Daniel foi pousar não sobre ela mas sobre Andrew Tyndale. - Nunca fomos apresentados.
Sou Daniel St. John. Miss Albret é minha prima.
Mister Tyndale ergueu-se. - Devo desculpar-me por não a ter levado imediatamente. O prazer que tem com as flores atrasou-nos.
- Na realidade, perdi-me mesmo e Mister Tyndale teve a bondade de me mostrar o caminho certo. - A mentira saiu-lhe. Por alguma razão pareceu-lhe boa ideia fazê-lo.
- É gentil da vossa parte tentar fazer vista grossa à minha indesculpável negligência, Miss Albret, mas a verdade deve ser dita ou vosso primo considerará a nossa
associação imprópria. Eu estava a atirar e uma bala perdeu-se, St. John. Quando ouvi uma mulher gritar, corri a investigar. A vossa prima não estava ferida, mas
encontrava-se muito abalada. Parar um momento ao pé do ribeiro para ela se recompor pareceu-me uma coisa apropriada para se fazer.
- Agradeço-vos por terdes cuidado dela. Ela não tinha forma de saber que estes bosques podiam ser perigosos. Se eu tivesse dado conta de que ela poderia ter a oportunidade
de os explorar, tê-lo-ia referido. Deveria tê-lo feito, por precaução, ao saber que ela pararia aqui com a condessa. - Aproximou-se de Diane, deixando o caminho
livre. - Tendes a minha gratidão.
Era uma despedida, e por pouco não era rude. Mister Tyndale acatou graciosamente a indicação e seguiu o trilho pelo meio do arvoredo.
- Não deveis ter associação nenhuma com aquele homem no futuro. Jamais.
As costas de Daniel estavam viradas para ela quando emitiu a ordem.
-Acho-o muito simpático, e ficou muito aflito com o acidente com a pistola.
Saiu-lhe mais desafiador do que ela tencionara.
Ele voltou-se. Quando ela viu a expressão dele, ficou com um nó na garganta.
- Não houve acidente nenhum. Ele viu-vos andar sozinha e atirou na vossa direção, para ter uma desculpa para vos conhecer. Não há maneira de alguém que esteja na
zona de tiro conseguir atirar uma bala para o campo.
A acusação dele aumentou-lhe a irritação. Ele tornava-se tão cansativo como Vergil fora para Penelope, só que Daniel St. John não tinha direito a sujeitá-la a estas
lições e recriminações. Não era irmão dela, nem sequer parente. Não lhe agradava a forma como
ele censurava o pobre Mister Tyndale, que ficara tão preocupado e contrito com o seu erro.
- Talvez ele tenha usado uma zona de tiro diferente. Uma lebre
assustou-o e...
- Nem um urso assustaria o homem. Tem fama de ser um dos melhores atiradores de Inglaterra. Valha-nos ao menos isso, já que se atreveu a tal estratagema para vos
conhecer.
- Arengais como um louco. Mister Tyndale foi em tudo um cavalheiro. Para não dizer que tem idade que chegue para ser meu pai.
- Cristo, como sois ignorante. Julgais que a idade de um homem faz alguma diferença em coisas dessas?
- Claro que sim. O comportamento dele comigo foi irrepreensível. Gostei da companhia dele. Acho que me seria um bom amigo.
- Ele quer mais do que amizade, podeis acreditar em mim. Ela riu. - Isso é o que Madame Leblanc disse sobre vós. Quase
as mesmas palavras.
- E ela estava certa, que raio.
Subitamente ele estava mais próximo. Mesmo à frente dela. Ela teve de inclinar a cabeça para lhe ver o rosto.
Novas centelhas avivavam-lhe o olhar. As mais profundas, que vira naquela primeira noite em Paris, quando ele partira o vaso. As de aço que mostrara quando confrontara
Vergil no salão de Margot.
Estava com ciúmes.
Ela não tinha experiência com ciumeira, mas sabia que estava certa. Uma parte estúpida dela sentia-se lisonjeada. Outra parte, maior, estava furiosa.
- Avisai-los a todos para se porem a andar? Passais o vosso tempo nas festas e jantares a seguir-me para todo o lado, a dizer a todos que não tenho um tostão e que
sou órfã e que não mereço a atenção deles?
- Digo-lhes que se não vos tratarem devidamente têm de se haver comigo.
- Mas contais que algum me corteje devidamente porque não tenho fortuna, não é assim?
Ele não respondeu, mas ela aprendera o suficiente sobre o funcionamento do mundo para saber que estava certa.
Diane constatou de forma violenta o caráter absurdo da sua situação. A sua cabeça latejava de indignação.
Indicou as roupas com um gesto e riu amargamente. - Mas vós estragastes-me, St. John. Arruinastes-me. Olhai para a boneca que comprastes. Esperais que fique sentada
na prateleira para sempre, a ser bonita? Quando isto acabar, que escolhas tenho? Devo contentar-me em ser governanta, então? Ou dama de companhia de uma senhora?
Depois destas diversões grandiosas? Eu tenho frequentado duquesas. Já que não há uma forma decente de eu no futuro viver esta vida, penso que devia considerar a
alternativa.
- O que quereis dizer com isso?
- Por esta altura Margot já voltou para Londres com Mister Johnson. Fui descuidada em ainda não ter ido visitá-la.
Deu meia-volta. Conseguiu dar três passos orgulhosos e irritados antes de ele lhe agarrar o braço.
- Ides uma ova! - Fê-la voltar-se para trás. Contra ele.
O abraço dele envolveu-a. Chocou-a. Ela ainda conseguiu contorcer-se uma vez, na tentativa de resistir antes de o calor do corpo dele e a exigência dos seus olhos
começarem a vencer a sua indignação.
Lutou contra a tentadora intimidade, apesar de o seu coração a desejar tanto. Talvez tivesse sido isto a que se referira quando ameaçara converter-se numa Margot.
Quem sabe se o fizesse, o vazio seria encoberto durante algum tempo.
Como Daniel o encobria agora.
- Não deveis ter associação nenhuma com aquele homem no futuro. - Falou com gentileza, desta vez. Falou a sério. Pareceu-lhe mais um aviso do que uma ordem, mas
ainda lhe restava discernimento suficiente, suficiente noção do tempo e do espaço, para não gostar de o ouvir.
- Ele não pensa em mim dessa forma. É um cavalheiro, ele.
- Todos os homens pensam em vós dessa forma.
- Duvido que isso seja verdade. Acho que...
O beijo dele silenciou-a. A sua insistência firme provava que pelo menos um homem pensava nela daquela maneira.
Os beijos foram lentos e duros e implacáveis. Estavam carregados do perigo que ela sentira quando ele surgira das árvores, e do ciúme que ela percebera nas suas
acusações. Eram os beijos de um homem provocado, inobservante de regras e propriedades, fazendo reivindicações que nem sequer pretendia.
Ela sabia aquilo tudo, mas o seu coração e a sua alma não conseguiam resistir. Aquele calor enfraquecia-a, como sempre acontecia. Que ele se importasse o suficiente
e reparasse o bastante para sentir ciúmes era alguma coisa, pelo menos. Até para a luxúria se impunha atenção. Uma fome primária que fosse significava que a queriam
de alguma maneira. A forma como ele excitava o seu corpo só a enfraquecia mais. Carícias lentas recordaram-lhe as alegrias físicas que ele conseguia dar.
Ela sucumbiu ao torpor. Esqueceu onde estavam e que devia detê-lo. O odiado vazio encolheu, morreu, libertando uma felicidade que ela não merecia. Esfomeada, agarrou-se
a ela, mas sabia, mesmo no seu arrebatamento, que era falsa e que não duraria.
A mão dele foi para debaixo da capa dela. Beijos queimavam-lhe o pescoço, entrecortando-lhe a respiração. Uma carícia no seio fê-la arquejar. A sua alma sabia que
ele não pararia, que estava mais retirado do mundo do que ela.
Os dedos dele roçavam-lhe o mamilo, enviando-lhe arrepios de prazer pelo corpo todo.
- Não deveis ter associação nenhuma com ele - voltou a dizer.
- com nenhum deles.
Uma minúscula rebelião quis vencer na sua mente, mas ele obliterou-a com outro beijo. O seu abraço comandava mais do que incitava. Ela perdeu mão da sua fraca resistência,
arrastada pelo poder dele. Devolveu-lhe o beijo, não sabendo porquê, acedendo
apenas sem decidir fazê-lo, fazendo-o apenas porque as reações do seu corpo e coração o exigiam.
O abraço dele vagueava, com arrojadas carícias. Ela ia ao encontro do seu toque mesmo quando o percurso das suas mãos a assustava. Por cima da barriga e das nádegas,
descendo até às coxas, ele agarrava-a e reivindicava-a toda. O seu toque moveu-se de forma mais chocante, provocando-a através do vestido, descendo-lhe pela fenda
entre as nádegas, aventurando-se na direçáo da pulsação que a enlouquecia, fazendo o prazer assentar e latejar.
Uma voz chamou o nome dele, procurando-o. Ela ouviu, mas ele não. Penetrou o torpor dela e reavivou a consciência que ela tinha do mundo envolvente. Assustada,
contorceu o corpo para escapar.
Ele ergueu a cabeça e estacou ao ouvir o som da voz de Vergil a aproximar-se pelo caminho.
Ela libertou-se e afastou-se com um pulo. com a separação, a confusão tomou conta dela.
- Dissestes que não o faríeis. Em Paris, prometestes...
- Não prometi nada.
Subitamente, Vergil estava num dos lados da pequena clareira. Olhou para ela e depois para Daniel.
Ela viu que Vergil parecia saber o que tinha interrompido. Daniel também o viu, claramente. Ele parecia imperturbável, contudo, como se o que tivesse ocorrido merecesse
a expressão de desaprovação que entrevia por baixo das pálpebras baixas do seu jovem amigo.
Vergil tentou esconder o desconforto. - Tyndale disse que a tínheis encontrado. bom. Pen gostaria de partir, porém. Quer chegar à festa antes do conde.
- Claro. Foi rude da minha parte atrasar a condessa. - Diane não tinha ideia de como encontrara voz para falar. Conseguiu reunir compostura suficiente para se afastar
do olhar abrasador de Daniel e aceitar a escolta de Vergil até à carruagem que aguardava.
- Ele está a ser muito cauteloso - disse Adrian, conduzindo-os pela rua. - Se não soubesse o que ele andava a tramar, o mais certo seria não conseguir a mínima pista
daquilo que tem acontecido.
Daniel caminhava ao lado dele pelas travessas silenciosas, próximas ao rio. Não estavam em Londres, mas do outro lado da ponte, em Southwark, numa zona pobre de
edifícios e armazéns a cair aos pedaços.
Tentava prestar atenção à história de Adrian, mas era difícil. Tinha a mente ocupada com Diane. A sua cabeça e o seu corpo ainda estavam no ribeiro, sucumbindo ao
desejo devastador que a sua decisão sobre Tyndale havia despertado. Teve vontade de matar Vergil por ter interferido, mas também estava grato por isso. Se tivesse
ficado entregue a si próprio muito mais tempo teria deitado Diane no chão e...
- Ele precisou de mim para encontrar este sítio, claro. Ninguém que tenha uma propriedade tão insignificante fala a língua dele, e ele não fala a deles. Também me
deu desenhos para levar, para se fazerem os cilindros. Conseguiu obter os químicos sozinho, suspeito, uma vez que não me solicitou nada.
- Sorte ter esbarrado convosco - comentou Daniel, forçando-se a prestar atenção ao assunto do momento.
Adrian deu uma risada. - Passei três vezes mesmo à frente dele antes disso. Ele está sempre a olhar para o chão, remoendo as grandes questões do universo, presume-se.
Nunca esperei que me chantageasse para trabalhar com ele, todavia. Considerei simplesmente que seria mais fácil estar de vigia se ele contasse ver-me por aí. Parou
ao chegar a uma construção, pouco mais do que um abrigo baixo entalado ao fundo entre os vizinhos. - Chegámos.
- Seria de pensar que estão lá dentro as jóias da coroa. - Três cadeados grandes e brilhantes aperaltavam a porta.
- Ponderei dizer ao serralheiro para me fazer umas chaves adicionais, mas não me quis arriscar a que Dupré descobrisse. Não há problema, contudo. Ficai de guarda.
Daniel tapou-o. Olhando para trás, viu Adrian tirar um ponteiro de metal do casaco e começar a tentear a fechadura de cima.
- Onde aprendestes isso?
- com um coronel da guarda da nossa embaixada na Turquia. É uma aptidão útil para um secretário de diplomata.
As duas primeiras fechaduras abriram-se numa sucessão rápida. Daniel lançou o braço para trás. - Esperai. Vejo alguém.
Adrian virou-se e cruzou os braços. Daniel espreitou para as sombras do outro lado da rua onde identificara movimento. - É melhor ir verificar. Não temos hipótese
se Dupré tiver alguém a vigiar o sítio.
- A não ser que ele encontrasse um espião francês, não sei como o conseguiria. Mas ide.
Daniel saiu do pátio de escombros defronte do edifício e foi na direção da sombra.
Logo que o seu destino se tornou claro, um homem saiu disparado pela rua abaixo. No curto instante antes de o homem se virar, Daniel vislumbrou uma barba e cabelo
escuro por baixo do chapéu.
Voltou para Adrian. - Era apenas um vagabundo, curioso e ocioso, como seria de esperar nesta zona.
Adrian atirou-se à última fechadura. Empurrou a porta.
O interior do edifício era tão pobre como o exterior. Há vários anos, alguém rebocara as paredes, mas o tempo abrira-lhes fendas
e escurecera-lhes a cor. Entrava
um pouco de luz por uma janelita alta, apesar das novas portadas e fechadura que a cobriam.
Encostada a uma parede estava uma mesa coberta com uma fila de cilindros de metal, cada qual ligado por fios a uma panela cheia de líquido.
Daniel aproximou-se e espreitou para as panelas. Cada uma delas tinha um pedaço de metal de bom tamanho. - Está operacional?
- Penso que sim. Não enfiei a mão em nenhum para descobrir.
Devem estar umas cem libras de ferro aqui dentro.
- Dado que fui eu quem tratou da compra, posso dizer que é exatamente esse o peso.
Daniel contemplou a notável engenhoca. - Isto deve ter custado uma soma considerável.
- As minhas aquisições chegaram a mais de mil libras. Os químicos têm de ter custado centenas mais. - Adrian apontou para as barras de ferro. - Reparai que têm tamanho
e forma iguais. Acrescentei esse requisito. Não tinha ideia do que tencionáveis fazer, mas caso planeeis algo, lembrei-me de que a estandardização poderia ser conveniente.
- Muito bem - elogiou Daniel, embora também não fizesse ideia do que tencionava fazer, se é que tencionava fazer alguma coisa.
- Não vejo como teve fundos próprios para isto. A casa de Paris era da família e não me parece que tenha havido grande herança para lá disso. Tem poucos rendimentos,
a não ser alguns honorários da universidade de lá. Digamos que custou mil e quinhentas. Pagou a pronto, e eu pressenti que haveria mais se fosse necessário. Aonde
iria buscar tanto dinheiro? - indagou Adrian.
Daniel perscrutou a experiência. Não, não era uma experiência. Era demasiado grande para tal. Demasiado elaborada. Tratava-se mais de um modelo de funcionamento,
para avaliar custos e potencial.
As suas suspeitas estavam corretas. Dupré não o tinha feito para outros cientistas, mas para impressionar homens do mundo da manufatura.
Mil e quinhentas libras a pronto, dissera Adrian. Um custo significativo. Um custo que Dupré não conseguia suportar sozinho, isso era certo.
- Quantas chaves disse ao serralheiro para fazer?
- Dois conjuntos.
- Procurou um sócio - concluiu Daniel. - A pergunta é, quem?
CAPÍTULO 14
- Não tenhais associação nenhuma com ele. Revelou-se impossível, pois Andrew Tyndale também fora convidado para a festa.
E também não era um grupo grande que se reunia na casa de Lady Pennell para o fim de semana. No máximo, seriam trinta os presentes. Sendo uma das mais notáveis senhoras
a moverem-se em círculos alargados, Lady Pennell convidara um grupo diverso, incluindo um ator famoso e um romancista popular, e também membros do Parlamento, um
conde, dois barões e um visconde.
Não contava com a presença de nenhuma mulher dos círculos mais seletos, claro. Lady Pennell não caía nas boas graças das arbitras da sociedade, ainda que os homens
delas considerassem as suas reuniões mais interessantes do que beber ponche em outras reuniões mais adequadas.
- Ainda bem que os meus irmãos aceitaram comparecer - dizia Pen, instalando-se no aposento com Diane. Pen insistira que partilhassem um quarto, mesmo tendo a anfitriã
planeado outras disposições. Visto que tinha uma saleta, dificilmente seria pequeno.
- Não tinha dado fé de que o grupo era tão pequeno. Não há como evitar o conde com discrição, receio. - murmurou Pen.
Diane suspeitava que não havia como evitar ninguém. Nem o
conde. Nem Mister Tyndale. Nem Daniel St. John, quando ele chegasse, à noite.
Não tenhais associação nenhuma com ele. Daniel proferira aquele aviso acerca de Andrew Tyndale, mas o coração dela fazia-o agora a propósito do próprio Daniel. Os
beijos e abraços do bosque tinham-na deixado muito abalada, e os seus pensamentos demoravam-se neles desde então. Suspeitava que o pacto feito em Paris tinha sido
irrevogavelmente desfeito.
As implicações assustavam-na. Como também as suas reações. Não era apenas preocupação que a ocupava desde que se instalara no seu lugar na carruagem de Pen. Invadia-a
também um anseio nostálgico. Admitia miseravelmente estar intrigada e excitada com Daniel, e nenhuma parte dela devia estar assim, nem um pedacinho que fosse. Contrariamente
à ameaça rebelde que ela pronunciara quando estavam no ribeiro, transformar-se numa Margot seria o tipo de vida que ela não conseguiria viver.
Pen ocupava-se com instruções à criada que lhe desfazia a mala. As roupas de Diane seriam atendidas mais tarde.
- Foi gentil da parte de Lady Pennell convidar-me - disse Diane. De todos os convites que recebera, achou este o mais peculiar.
- Ela gosta de se rodear de pessoas interessantes.
- Eu não sou interessante.
- Não é verdade. No entanto, admito que a minha vinda tenha influenciado o convite, assim como a esperança de encorajar a aceitação por parte do vosso primo.
- Então Lady Pennell considera Daniel interessante?
- A maior parte das mulheres considera-o interessante. Não foram só a riqueza e o estilo a abrir-lhe portas na sociedade, mas também o fascínio de mulheres influentes.
A bem dizer, penso que Lady Pennell nutre uma certa ternura por ele agora. É bem-parecido, confiante e misterioso. O seu porte e a sua presença têm dado azo a todo
o tipo de especulações ao longo dos anos.
- Que tipo de especulações?
- Como prima, provavelmente ireis achá-las divertidas. Quando ele chegou vindo do nada há muitos anos corriam rumores de que ele tinha feito fortuna com pirataria
nos altos mares. Outros cochichavam que ele tinha usado os navios em serviços especiais para a marinha. Alguns insistiam que ele era um emigre vindo de França enquanto
rapaz, por causa da revolução, e que tem sangue muito mais rico do que alega. - Pen riu e ergueu uma sobrancelha.
- O que significa, claro, que vós também.
Diane forçou-se a rir igualmente. - Se assim fosse, eu saberia, não é verdade?
- bom, como disse, foi tudo especulação. Ninguém sabe ao certo a história dele, por isso criam-se estórias. - Pen lançou-lhe um olhar inquiridor e matreiro, encorajando-a.
Diane dificilmente poderia satisfazer a curiosidade de Pen a propósito de Daniel, já que ela própria sabia muito pouco da história dele. Admiti-lo revelaria a mentira
do parentesco deles. O que daria seguramente a todos muito sobre o que especular.
Para evitar mais conversas sobre o tópico, deixou Pen a desfazer as malas e foi para a saleta aguardar a sua vez.
Entrou uma criadita com um tabuleiro de refrescos. Ao pousá-lo na mesa, olhou para Diane com manifesta curiosidade.
De regresso à saída, parou. - Corou e fez uma vénia. - As minhas desculpas, Miss Albret, mas posso fazer-vos uma pergunta?
- Claro. O que é?
- Eu sou de Fenwood, e o pároco de lá também se chama Albret. Sois parente dele?
Diane ficou especada a olhar para a bonita rapariga com a sua capa de musselina, pele sedosa e cintilantes olhos azuis. Foi incapaz de lhe dar uma resposta porque
o seu coração começou a bater com tanta força e tão rápido que lhe doía.
- As minhas desculpas - disse a rapariga. - Foi inapropriado da minha parte, é só que achei curioso, por vós serdes francesa e tudo.
- Não tenho conhecimento de parentescos nessa cidade que mencionais, mas se os houver, gostaria de saber. Onde fica esse sítio?
- Ora, não fica a mais de duas horas de carroça. É uma aldeia perto de Brinley. Mister Paul Albret é pastor lá desde sempre, desde antes de eu nascer.
Diane não conseguia acreditar na sua sorte. Se a criadita tivesse sido um nadinha menos audaz...
- Como vos chamais?
- Mary.
- Estou-vos agradecida por me terdes falado, Mary. De outro modo, poderia nunca ter ficado a saber deste possível parente.
- Oh, duvido disso. Estão muitos de nós nesta área, a servir nas casas do condado. Acabaríeis por vos encontrar com um.
- Mary, esse pastor reside lá? Se lhe enviar uma carta, ele irá recebê-la, na vossa opinião?
- Ele vive lá. Sempre viveu.
- Conhecestes os filhos dele?
- Eram de antes do meu tempo. Duas raparigas e um rapaz, acho eu, mas foram todos embora há muitos anos. Nunca ouvi dizer que tivessem voltado. A minha família não
conhece bem o pastor, somos seguidores de Wesley.
Subitamente, a saleta com a sua mobília clássica de mogno tornou-se claustrofóbica. Estar presa naquela casa com aquele grupo pareceu-lhe um transtorno terrível.
A resposta às perguntas da sua alma, que não a deixavam sossegar, podia estar a poucas horas de distância.
- Obrigada, Mary.
Talvez conseguisse arranjar forma de visitar a cidade de que Mary falara. Entretanto, podia pelo menos entrar em contacto com o pastor e ver se ele sabia alguma
coisa.
Enquanto Pen se atarefava com o guarda-roupa no aposento ao lado, Diane sentou-se à escrivaninha e começou a escrever uma carta.
- Dir-se-ia que estamos no Parlamento e que acabou de ser lançada uma votação - comentou Pen. Estava sentada na sala. ao lado de Diane, a seguir ao jantar.
Diane apertou-lhe a mão, para a reconfortar. Apesar de distraída com pensamentos de uma carta parcialmente escrita e memórias, angustiantes de tão insistentes, de
beijos no bosque, Diane não conseguiu evitar reparar no drama social que se desenrolava.
A festa não fora preparada para proporcionar o confronto entre o conde e a condessa de Glasbury, mas a presença dos dois afetou tudo. A expectativa dominava o ambiente.
Durante o jantar, corriam olhares para o fundo da mesa, onde o casal separado estava sentado, tão próximos um do outro que era impossível ignorarem-se.
Bastou os homens reunirem-se às mulheres para se formarem subtilmente dois grupos. Os convidados anunciavam o lado escolhido através da localização e da interação.
Diane reparou no tamanho maior do grupo reunido à volta do conde, e na presença de Andrew Tyndale ao seu lado. Daniel, que chegara pouco antes do jantar, misturava-se
com o grupo que estava próximo de Pen. O advogado de Duclairc, o enigmático Julian Hampton, também estava por perto, observando mas raramente tomando parte.
O visconde Laclere emprestava o seu prestígio como prometera, mas era Vergil que estava literalmente ao lado de Pen.
- Abandonaram-me. Seria de esperar, imagino eu. - Disse Pen num murmúrio enquanto o seu olhar conduzia Diane para o outro lado da câmara. Poucas senhoras se demoravam
no canapé.
A expressão e pose de Pen comunicavam que não se passava nada de inaudito. Diane sentia o constrangimento da amiga, porém. Viu nos olhos de Pen a constatação do
custo total de se ter separado do marido.
De repente, Pen ficou hirta. O conde de Glasbury, um homem esguio de meia idade, de cabelo grisalho, sobrancelhas espessas, e uma boca murcha, atravessara a divisória
e vinha na direção delas.
O círculo de Pen afastou-se um pouco para trás para dar espaço ao confronto privado. Todos davam mostras de não reparar em nada, mesmo se dúzias de olhos se esforçavam
para acompanhar a marcha do homem.
- Pelo menos ninguém está a lamber os lábios de expectativa sussurrou Pen.
- Que comedimento impressionante.
O olhar do conde centrou-se em Pen. A Diane pareceu-lhe ser o tipo de homem que gostava de falar de alto com os outros, como fazia com a mulher agora.
- Como vos encontrais, minha querida?
- Encontro-me bastante bem.
- É certo que sim. A cidade inteira fala nisso. Tornastes-vos na inveja de todas as mulheres desvairadas de pouco discernimento e menor discrição. Tendes a vossa
própria casa e carruagem. Tendes liberdade para vos comportardes escandalosamente. Tendes o prazer de proteger A prima de um mercador.
Diane não foi insensível ao ênfase nem à insinuação. Daniel ouviu, mesmo estando a dez metros. As suas pálpebras semicerraram-se, mas esta foi a sua única reação.
- Olhai lá... - começou Vergil.
- Agradeço-vos, mas eu trato do assunto, Vergil. - Pen encolhera-se quando o conde se aproximara, mas agora a sua coluna endireitava-se. - Não é avisado para um
libertino descarado censurar outro homem de semelhante forma, meu querido.
- Também é perigoso - acrescentou Vergil.
O conde exibiu um sorriso escarninho. - O mundo está perdido nestes últimos anos, com condessas e duquesas tão pouco criteriosas. Como se dinheiro e uma cara bonita
fizessem um homem.
Pen sorriu. - Mais vale dinheiro e uma cara bonita do que carne velha amarga e degenerada.
- Admira que tenhais vindo, se desprezais assim tanto o círculo de Lady Pennell - interveio Vergil.
- Resta esperar que as suas festas sejam mais agradáveis depois desta noite. Além disso, vim para ver a minha mulher. Está na altura de esta separação confrangedora
cessar.
- Então perdestes o vosso tempo. Não voltarei para vós.
- Se eu decidir que sim, não tereis escolha. A lei...
- Fazei o que quer que seja para coagir a condessa e a lei saberá mesmo de tudo. - A ameaça náo viera de Vergil. Julian Hampton aproximara-se para ouvir e interrompia
agora com uma voz muito calma.
O conde fulminou-o com o olhar. - Ela não se atreveria.
Hampton correu a assembleia com os olhos, vendo tudo e náo vendo nada. - Claro que sim. E acreditais nisso, senão nunca teríeis concordado com os termos de separação
que negociei. Ora, eu tinha planeado passar estes dias na cidade, não a aborrecer-me numa festa campestre. Parece-me a mim que esta casa e este grupo são grandes
o bastante para vós e a condessa não precisardes de voltar a falar. Fazei-me esse favor, para amanhã poder retirar-me.
Afastou-se, sem falar com mais ninguém.
Lívido, o conde também se retirou.
- As minhas desculpas pela forma como vos insultou e ao vosso primo - disse Pen. - Assim como por ter falado táo livremente à vossa frente.
Diane sabia que ele tinha falado tão livremente porque a considerava tão insignificante que seria um desperdício de discrição. Da mesma forma que os homens como
ele não notavam a presença de criados, ignorara-a.
Vergil inclinou-se e sussurrou à orelha de Pen, mas Diane ouviu na mesma. - Onde fica o vosso quarto?
- Na ala este. Insisti que Diane o dividisse comigo.
- Muito bem. Far-vos-ei uma visita, de qualquer forma.
A sala esvaziava-se quando Vergil abordou Daniel. - Hampton e eu vamos jogar às cartas. Porque não juntardes-vos a nós?
- Julgo que não. Raramente jogo com amigos.
- Fazei-me a vontade, St. John. Tenho uma noite longa pela frente, e como Hampton nunca fala será insuportável.
Relutante, Daniel concordou. Vergil não estava em condições de perder às cartas, o que significava que Daniel teria de tomar
providências para o deixar ganhar. Ele não se importava, mas o jogo ficava menos interessante.
Acompanhou Vergil, saindo ambos da sala. Não entraram na biblioteca como Daniel previra. Em vez disso, Vergil apontou-lhe a escada. - O quarto de Pen tem uma saleta.
Não há razão para fazermos os criados ficarem acordados para nos atender, e se jogarmos lá, já não será necessário.
Quando subiam a escada, outro homem descia-a. AndrewTyndale saudou-os de passagem.
Daniel deteve Vergil. - Porque não convidá-lo também? com quatro o jogo é mais recreativo.
- É melhor não.
- Duclairc, vamos jogar às cartas naquela sala para proteger a vossa irmã caso o conde se dirija lá hoje à noite com intenções desonrosas, estou certo?
O rosto de Vergil endureceu ao ver-se confrontado com esta formulação tão direta.
- E não é muito melhor se um dos amigos do conde estiver lá sentado connosco? Há menos probabilidade de as coisas se descontrolarem, caso as vossas suspeitas se
confirmem.
Vergil acenou com a cabeça a contragosto. Desceu as escadas atrás de Tyndale, chamando-o.
Daniel ficou a observar enquanto o convite era feito. A noite de cartas poderia revelar-se interessante, afinal. Não gostava de ganhar com amigos, mas não tinha
pruridos desses com inimigos.
Vergil voltou com Tyndale a reboque. Harnpton aguardava no alto do segundo patamar. Os quatro percorreram a ala este até à saleta de Pen.
- Bem, tendes de nos prometer que não vos ides embebedar nem fareis uma barulheira, sem nos deixar dormir toda a noite admoestou Pen enquanto eles colocavam uma
mesa e cadeiras no centro da divisão. Contando com a sua chegada, ela mandara trazer vinho e whisky.
Daniel percebeu que Pen se referia a ela e Diane. Não reparara que elas partilhavam um quarto. Imaginou que ter a sua dama de companhia por perto seria outra tentativa
por parte da condessa de frustrar qualquer tentativa do conde de reivindicar os seus direitos de marido, dado que passavam a noite sob o mesmo teto.
Também significava que Daniel iria ter Diane por perto naquela noite. A câmara não era grande, e a proximidade acentuou imediatamente a tensão que crescia silenciosamente
entre eles desde que ele chegara à casa. Durante o serão inteiro apercebeu-se da consciência que ela tinha da presença dele, e do que acontecera, mesmo que ela fingisse
que ele não existia.
Ela continuava a ignorá-lo agora. Estava sentada à escrivaninha, a arranhar qualquer coisa num papel, não mostrando qualquer interesse pelos homens que se instalavam
para jogar. A condessa estava empoleirada num banco. Parecia que as mulheres iam ficar um pouco antes de se retirarem, para dar aparência de um convívio privado.
Daniel escolheu a cadeira que lhe permitia ver Diane, ainda que ela fosse distraí-lo. Não queria Tyndale naquela posição. Ver Tyndale observar Diane iria distraí-lo
ainda mais.
A sua jogada astuta serviu de pouco. Diane finalizou a sua tarefa e foi para o banco, para junto da condessa. O que a colocou numa localização excelente para Tyndale
lhe sorrir e para ela lhe devolver o sorriso.
Diane também sorria a Vergil e Hampton. A única pessoa a quem não concedia atenção era Daniel. Dava-se a grande trabalho para nem sequer olhar na direçáo dele, como
fizera o serão todo.
Ele não se deixava enganar minimamente. Podiam bem estar sós, abraçando-se, tão intensa era a ligação entre os dois. Ela podia não o querer, podia até estar ressentida
com isso, mas era inegável que estava lá, afetando o ar, o tempo e a luz.
- O vosso jogo está fraco, St. John - disse Hampton quando Daniel perdeu mais dez libras para Andrew Tyndale.
- Talvez não seja o jogo dele que é fraco mas o de Mister Tyndale que é bom - propôs Diane.
Tyndale apreciou o elogio mais do que seria adequado.
Daniel apanhou o olhar de Diane quando este passava inadvertidamente por ele. Prendeu-o e concedeu-se a si próprio uma recordação breve, intensa e expressiva do
envolvimento deles no ribeiro, uma recordação cheia dos suspiros e do anseio dela, do que aconteceu e quase acontecera. Ela começou a corar, como se o olhar dele
comunicasse a imagem e as sensações.
- Porque não aumentamos a aposta? - perguntou Daniel. - Os cavalheiros deviam tirar partido do meu jogo fraco.
- com certeza. Já agora, fazemos render o nosso tempo - aprovou Tyndale.
Hampton não avançou nenhuma opinião, mas o olhar que lançou a Daniel era especulativo. - Talvez as senhoras queiram retirar-se. Podemos continuar sozinhos.
- Credo, não - ripostou a condessa. - Não quando vai começar a diversão a sério. Além disso, devo ficar para arrastar o meu irmão daqui antes que ele se arruine.
Vergil suspirou. - Bolas Pen, eu não sou Dante.
- Por falar em Dante, a última vez que o vi tinha posto Mrs. Thornton a fazer uns barulhinhos parvos enquanto folheavam um livro - comentou a condessa. - Onde está
ele, Vergil?
- Penso que se retirou, madame. - O tom de Hampton sugeria que quanto menos perguntasse acerca das circunstâncias e orientação da retirada de Dante, melhor. Começou
a dar as cartas. - Cinquenta libras, cavalheiros?
Tyndale e Vergil assentiram com a cabeça. Hampton olhou para Daniel, procurando o seu acordo.
A aposta elevada pareceu perturbar Diane, e não seria por ela temer que o seu benfeitor pudesse ficar mal. Daniel ficou com a distinta impressão de que ela se preocupava
apenas com Tyndale.
A sua atitude era provocatória. Cada expressão impassível negava a verdade e rejeitava a forma como se tinham unido tão completamente naqueles abraços e ainda estavam
unidos nesta câmara.
Pior, agora ela encorajava deliberadamente Tyndale, apesar do aviso que recebera.
Sentiu crescer na sua mente uma irritação aguda. Manteve-a controlada, mas não deixava de o afetar. Ele renunciara ao sonho de uma vida pela beldade que agora cobria
de atenções o seu atacante em potência. Ele sacrificara-o por ela e por algo que nem sequer podia acontecer, e ela agia como se ele não significasse nada para ela,
mesmo derretendo com o toque dele.
Voltou a atenção para Tyndale.
- Porque não cem? - disse.
As pálpebras de Tyndale desceram, aquiescentes, mas a sua resposta foi interrompida pela porta da sala, que se entreabriu, rangendo.
Uma nova visita entrou. Primeiro o traseiro. Recuou, de olhos no corredor para se certificar de que não tinha sido visto.
Hampton pousou as cartas e cruzou os braços. Vergil estava tão irado, que parecia capaz de matar alguém, de tal modo que Daniel lhe colocou uma mão firme no braço.
Tyndale sorriu, divertido.
O visitante fechou a porta com grande e silencioso cuidado. Virou-se.
O conde de Glasbury precisou de um momento para compreender que se não enfiara sub-repticiamente numa câmara vazia, mas que interrompera um pequeno convívio. A surpresa
deixou-o especado, a boca flácida aberta de espanto.
- Queríeis alguma coisa, querido? - perguntou a condessa. A sua boca parecia a de um peixe.
Todos aguardaram, deixando-o especado feito espantalho. Até o seu amigo Tyndale aproveitou o momento mais do que um amigo devia.
Foi Hampton que o safou. - Sem dúvida que soubestes do nosso jogo particular por algum criado e vos quisestes juntar.
- Sim, é isso.
Não o safou completamente. - Por sorte a conversa do criado estava correta, ou isto poderia ser mal interpretado e custar-vos muito caro.
O conde ficou muito rosado. Recompondo-se, olhou de alto para a assembleia. - A conversa dele estava incorreta. Disseram-me que a mesa incluía jogadores mais interessantes.
- Desde que haja dinheiro para se perder, não somos esquisitos quanto à estirpe do homem que o perde - declarou Daniel. - Portanto, sois livre de vos juntar a nós.
O conde endireitou-se, indignado com o insulto. A sua mão recuou até ao trinco da porta. - Não me parece. Eu sou muito esquisito quanto à estirpe dos homens aos
quais me associo. Perdoai a minha intrusão.
- Dormi bem, querido - disse-lhe docemente a condessa quando ele virou costas.
Diane parecia muito preocupada com os progressos erráticos de Tyndale no decorrer da última hora. O seu rosto iluminava-se de deleite quando ele ganhava e entristecia-se
quando ele perdia.
O que deixou Daniel fora de si. Como resposta, prolongou a destruição que estava na sua intenção concretizar.
À medida que o jogo se tornava mais imprudente, Hampton, comentando que a noite terminaria com a diminuição acentuada da fortuna de um dos homens, retirou-se completamente,
não fosse caber-lhe ser esse homem.
Às trezentas libras, Vergil também se retirou.
Daniel aproveitou a oportunidade para muito rapidamente perder mil para o único opositor que lhe restava.
- A vossa sorte tinha melhorado consideravelmente, St. John
- disse Tyndale enquanto se distribuíam cartas mais uma vez. Parece que a maré voltou a virar, todavia.
- A minha sorte é sempre inconstante, é o que é. Além disso, a condessa é um fator de distração.
- Como também vossa prima - disse Tyndale jovialmente, oferecendo um sorriso a Diane.
No que respeitava a Daniel, fora-lhe atirada uma luva.
- Se somos tão grandes distrações, está na altura de nos retirarmos. - A condessa levantou-se, e todos os outros também. - Fazei como se estivésseis em casa, cavalheiros.
Obrigada pela vossa companhia.
Diane seguiu-a até à outra câmara. Daniel ouviu os sons indistintos que, do outro lado da parede, revelavam mulheres a prepararem-se para ir para a cama. Permitiu-se
a fantasia de imaginar Diane a despir-se e a lavar-se e a cuidarem-lhe do cabelo, e perdeu mais duas mil libras no seu desenrolar.
Por fim os sons pararam. Uma criada saiu e retirou-se.
Daniel imaginou Diane encolhida do lado dela, pálpebras fechadas e rosto adorável em repouso.
Varreu a imagem da sua mente. Virou cada pedacinho da sua atenção paraTyndale. - Que tal se jogássemos a sério? O que dizeis a duzentas?
CAPÍTULO 15
Diane, sobre que vos debruçais? - perguntou Pen.
- Uma carta. - Diane escrevera duas na noite anterior e não ficara satisfeita com nenhuma delas. A longa, que explicava a sua história toda, certamente não serviria.
Nem aquela que se desfazia em súplicas. Agora, escrevinhava à pressa um simples pedido de informação relativo a um Jonathan Albret, armador, se o pastor de Fenwood
acaso o conhecesse.
Incluiu a sua morada de Londres e selou a carta antes de ter oportunidade de lhe mexer muito. Levou-a para o quarto de dormir, onde a criada acabava de arranjar
o cabelo a Pen.
- Como posso enviar isto? - inquiriu.
Pen pegou na carta e atirou-a à criada. - Dai-a ao mordomo. Ide-vos. Estou pronta.
A mulher saiu. Pen espreitou para o espelho e torceu um dos caracóis soltos que lhe emolduravam o rosto. - Que dia terrível tenho à minha frente. Uma excursão ao
mar, nada menos. Vai estar um vento cortante, por mais bonito que o dia esteja. Os homens saem mais cedo, para pescar, e depois nós vamos ter com eles, mas eu terei
de estar perto dele a maior parte do dia, e depois de ontem à noite ele assusta-me mais do que nunca.
Pen referia-se ao conde, mas as suas palavras retratavam o desconforto de Diane. Depois da noite anterior, Daniel também a assustava mais do que nunca. Ou melhor,
fazia-a ter medo de si própria.
Fora igualmente horrível e maravilhoso, estar sentada na salinha exterior enquanto os homens jogavam às cartas. Ela mal olhara para Daniel, e os olhos dele passavam
por ela de relance, mas as sensações físicas que ele despertara no ribeiro tinham regressado no momento em que ele entrara. As mãos que seguravam as cartas poderiam
estar a acariciar-lhe o corpo, e a boca que bebericava o vinho poderia estar a beijar-lhe o pescoço e o seio.
Ele soubera. Aquele olhar único, quente, dissera-lho. Ele brincara com ela também, mantendo as memórias vivas, tornando tudo pior. Ela vira-se impotente para o deter
e demasiado fraca para alegar uma dor de cabeça e sair como devia ter feito. A agitação física e a consciência viva um do outro eram imperiosas de mais, deliciosas
de mais, para serem negadas.
A ideia de passar o dia em semelhante estado deixava-a desalentada. Precisava de passar tempo longe dele, para compor as suas emoções. Tempo para tentar voltar a
pôr as coisas no sítio.
- Não estou a sentir-me muito bem, Pen. Acho que devia ficar aqui a descansar.
Pen desviou o olhar do espelho com preocupação. - O que vos inquieta, querida? Se vos fiz ficar doente por vos obrigar a ficar de pé até tão tarde...
- Não é nada grave. Apenas estou muito cansada.
- Talvez deva ficar convosco, não vá...
- É atencioso, mas não é necessário. Não estou doente. Penso que vou apanhar um pouco de ar e depois voltar e dormir.
Pen ponderou. Por fim, abanou a cabeça. - Se eu ficar todos dirão que se trata de um estratagema da minha parte, como resposta à noite de ontem. Não, tenho de ser
corajosa e ir para a frente. Manter-me-ei firme apesar do dia prometer ser terrível. - Riu-se, amarga.
- E pensar que não procurei o divórcio para lhe poupar o escândalo
a ele. Bem, Mr. Hampton bem me avisou que é sempre a mulher quem paga.
Andrew Tyndale espiava da janela as carruagens que desciam a rua. O seu olhar fixou-se numa, muito cara. Quatro cavalos pretos puxavam-na, de longe muito melhores
do que os animais que ele próprio detinha. Vexava-o que Daniel St. John pudesse dar-se a tais luxos.
Vexava-o ainda mais que, a partir desta altura, tivesse meios para adquirir muitos mais.
No valor de vinte mil libras.
O que raio acontecera ali?
Era a pergunta que se repetira na sua cabeça desde a madrugada até ao nascer do dia.
Nunca perdia muito nas mesas de jogo. Desprezava homens que não sabiam quando se retirar, homens que arriscavam demasiado e tinham a ruína como resultado. Nem sequer
gostava muito de cartas. Preferia de longe jogos em que a sorte não tinha qualquer papel. Jogos que sabia que ganharia, porque ele fazia as regras.
Tinha sido culpa da rapariga, concluiu. Distraíra-o solenemente enquanto lá estivera. Não podia ter mais de dezassete anos, avaliou, mas ela tinha uma pose, um ar,
que sugeria a existência de uma sensualidade suculenta por baixo daquela postura inocente. Passara muito tempo desde a última rapariga refinada, o que a tornara
mais apelativa. As raparigas que Mrs. P encontrava eram bezerras ignorantes e estúpidas. Ele preferia de longe poldras bem-nascidas.
Sim, distraíra-o solenemente. Pusera-o num estado de excitação enquanto permanecera na sala. A bem ver, andava a ficar muito naquele estado desde a primeira vez
que reparara nela naquele baile.
De alguma forma, a disputa deles passara a ser sobre ela. Na altura não compreendera, mas olhando para trás... Os sorrisos dela quando ele ganhava, a preocupação
quando perdia, o desagrado do primo... Tudo tivera um papel, estava muito certo agora.
Mesmo assim, vinte mil libras? Não havia cara bonita que lhe fizesse aquilo. Estivera a ganhar tantas vezes durante a noite, por largas quantias, que constatar o
quanto perdera, no fim, fora um choque.
Pior, a dívida deste cavalheiro tinha testemunhas das quais ninguém duvidaria.
As carruagens faziam-se pequenas com a distância, em direção à costa. Furtara-se à excursão pesqueira, alegando indisposição, ainda que St. John fosse compreender
bem o que se passava. Não se ralava minimamente. Tinha problemas maiores do que a opinião de um armador.
Sentiu-se tomado por uma fúria raivosa, como tantas outras vezes desde que saíra da saleta da condessa. Viu novamente o brilho de triunfo nos olhos de St. John,
quando Hampton fazia a contagem. O Diabo tinha provavelmente o mesmo aspeto quando arrebatava a alma de algum homem.
Só havia uma explicação, era evidente. O sacana fizera batota. Como, Andrew não estava certo, mas fora isso que ocorrera.
As carruagens tinham desaparecido e a entrada estava deserta.
Um movimento perto da casa, próximo, chamou-lhe a atenção. Um vulto esguio de cabelo cor de avelã em madeixas desarranjadas entrou no seu ângulo de visão.
Olhando Diane Albret, ocorreu-lhe uma saída para o dilema. Tinha um toque de justeza moral, e também iria funcionar. St. John tinha arrogância e orgulho bastantes
para garantir que sim.
Mesmo com aquele verniz todo, a rapariga não era ninguém. St. John também, em rigor. Quando tudo terminasse, as pessoas relevantes concordariam que St. John tinha
sido um parvo e Andrew fora grandemente lesado. Além do mais, as vinte mil libras já não iriam importar.
Afinal, mortos não podem cobrar dívidas particulares.
Depois de ter ido apanhar ar, para espairecer, Diane regressou ao quarto, onde ficou até ouvir atividade no exterior, indicando-lhe que as mulheres saíam para se
juntarem ao grupo que estava na costa.
Só regressariam à tardinha. O que queria dizer que tinha um longo dia só para si.
Já tinha decidido como o passar. Enquanto caminhara, olhara para a sua vida sem contemplações. Não ficara agradada com o que vira.
Admitira para si própria que, mau grado todas as garantias de Daniel, ela não estava a salvo do interesse dele.
Foi até ao guarda-vestidos. Ao enfiar os botins, admitiu que não estava a salvo devido às suas próprias reações. Os beijos dele podiam ser escandalosos, mas não
mais do que a forma como ela os permitia.
Bem, ela não era a mesma rapariga que deixara Madame Leblanc em Rouen. Aprendera alguma coisa sobre o mundo nos últimos meses. Sabia que Daniel tinha tomado alguma
decisão a propósito dela no dia anterior à beira daquele ribeiro, e que da próxima vez aqueles beijos não iriam parar.
E haveria uma próxima vez. Não duvidava disso.
Tirou a capa do guarda-vestidos. Desejou ter levado as suas velhas roupas da escola, e não era só por a ajudarem a estar menos exposta. Incomodava-a levar a cabo
a missão do dia vestida com as coisas que lhe tinham sido compradas por um homem que não era nem seu parente nem seu tutor.
Toda a gente sabia o que isso geralmente queria dizer.
Tinha sido incrivelmente ingénua ao acreditar em Daniel quando ele dizia que, no caso deles, não era isso.
Devidamente vestida para sair, atravessou a casa silenciosa. Era altura de recordar o porquê de estar sequer em Inglaterra. Se descobrisse a vida que tivera antes
de Daniel St. John entrar nela, talvez existisse algo para a ancorar e suster quando cortasse os laços que tinha com ele.
Assim o esperava. Não estava certa de conseguir fazê-lo de outro modo. A própria ideia doía-lhe tanto, deixava-a tão desolada, que
se sentara no jardim, tentando não pensar nela. No entanto, acabara por aceitar aquilo que tinha de fazer.
Precisava de abandonar aquela casa, e a irmã dele, e os presentes e a generosidade dele. Precisava de fugir do calor e dos abraços dele.
Precisava de o deixar.
Prosseguia, resoluta, olhos enevoando-se, o vazio detestável espraiando-se, inchado, omisso e pesado, no seu coração.
Pelos corredores da casa deambulava uma criada ou outra, e ela pediu a uma delas que lhe procurasse Mary. A bonita rapariga foi ter com ela à cozinha.
- Como se dá com a vossa aldeia? - perguntou Diane.
- Estais a pensar lá ir, senhora?
- Um dia, talvez.
- Só sei ir para lá daqui. Ides pela estrada oeste até Witham, e virais para norte, e depois ides outra vez para norte em Brinley.
- Fica a duas horas de distância, dissestes?
- Talvez um bocadinho mais. Os caminhos são só terra depois de se chegar a Witham. Não sei a que distância fica de Londres.
Diane saiu da casa pela porta dos criados, ao pé da cozinha. Pareceu-lhe apropriado fazê-lo, como fazia nos primeiros dias em Paris. Não era a boneca do abastado
Daniel St. John que arrancava dali naquele dia. Era a órfã sem um tostão, de origem tão obscura que não interessava a ninguém.
Duas horas de carroça, dissera Mary.
Uma pessoa conseguia andar mais depressa do que uma carroça.
Foi para oeste pela estrada. Regressaria bem antes de Pen e dos outros voltarem da costa.
Uma hora mais tarde, soube a razão por que as pessoas escolhiam carroças lentas em vez de passos rápidos.
Calçara os seus botins, mas os modelos que se vendiam nas lojas de Paris eram delicados, para não dizer pior. Os que tinha nos pés,
com as suas solas finas, não pareciam capazes de sobreviver a um dia na estrada.
Piorou quando enveredou pelo caminho de terra em Witham. Sentia todos os sulcos e pedras através das solas. Tentou ignorar o desconforto e repreendia-se a si própria
por ser tão mole. Era o que o luxo fazia às pessoas, Madame Leblanc sempre ensinara. Tornava-as moles e fracas e dadas ao pecado.
Como era verdadeiro. Como era tão, tão, verdadeiro.
Viu a imagem de Madame a entoar as suas lições de moral. Tentou aceitar a dor nos pés como castigo por gostar tanto dos beijos de Daniel. Disse para si própria que
cada um dos toques era mau e pecado e era marca de um homem em quem não se podia confiar. Um sedutor. Um predador. Um demónio.
O seu coração não o aceitava. Não sentia que houvesse pecado no que dizia respeito a Daniel.
Meditava sobre aquela nova verdade quando o som de uma carruagem a aproximar-se captou a sua atenção. Desviou-se, para a deixar passar.
Para sua surpresa, a carruagem veio parar ao seu lado. Andrew Tyndale estava sentado num cabriole de dois cavalos, rédeas nas mãos, olhando-a surpreendido.
- Miss Albret, que fazeis aqui?
- Vim só dar um passeio. O que fazeis vós aqui?
- Decidi tirar o dia para ir ao campo visitar um amigo. Deixai-me levar-vos para casa primeiro, no entanto. Temo que estejais mais longe do que pensais.
- Não vos incomodeis. Tendes coisas a fazer. Não poderia permitir que vos atrasásseis por minha causa.
- A demora será pequena, e insignificante, em todo o caso. Por favor permiti que vos auxilie.
- Nunca me perdoaria a mim própria ter-lhe causado algum inconveniente. Ficarei bem. Palavra. Gosto de dar longos passeios. Adoro. Continuai o vosso caminho conforme
planeastes, e eu vou...
Ele apeou-se da carruagem. - Nem pensar nisso. Deixai que vos ajude a subir.
Era de mais. De cada vez que reunia coragem para perseguir o seu objetivo, havia algum homem, determinado a ajudar e proteger, a interferir.
Ignorou a oferta de Mister Tyndale e deixou-se cair em cima de um pedregulho na berma da estrada. Enfiou a cabeça nas mãos e ficou a olhar para a ponta dos sapatos
mutilados.
- Há algum problema, Miss Albret?
- Tudo é um problema.
- Não compreendo.
Diane ergueu o rosto. Os olhos dele não eram fundos e imperscrutáveis e perigosos como os de Daniel. Eram transparentes, meigos e muito solidários. A sua expressão
aberta fê-la sentir-se logo melhor. com este homem não havia mistérios, sombrias confusões, nem taciturnas perturbações.
Preocupara-se um pouco com ele na noite anterior. Vendo-o jogar às cartas com Daniel, teve a impressão de que não estaria à altura do Homem Diabo, e estava condenado
a perder. Como ele parecia estar bem humorado, era óbvio que não tinha sido assim tão mau.
- Não estou a andar só para me distrair - disse ela, deixando sair a confidência sem uma decisão real. - vou a uma aldeia chamada Fenwood. Soube que tenho lá um
familiar e vou visitá-lo.
Preparou-se para que ele lhe lembrasse educadamente que deveria ter dito à dona da casa, ou a Pen, para que uma das duas providenciasse uma carruagem para a levar.
Ela não queria ter de explicar que não queria que ninguém soubesse que estava a fazer aquilo. Iria ter de fingir ser estúpida ao ponto de não se ter lembrado de
tais coisas.
Afinal, a expressão dele aligeirou-se, como se a explicação dela fizesse todo o sentido do mundo. - Este familiar aguarda-vos?
- Não. Só decidi ir hoje de manhã. Nunca cheguei sequer a conhecê-lo. Houve um distanciamento...
- Tendes a certeza de que vos receberá?
Não pensara naquilo. O pastor podia ser parente dela, mas não querer ter nada a ver com a filha de Jonathan Albret. Viu-se especada em frente à residência do pastor
e a fecharem-lhe a porta na cara.
- Não se apoquente, provavelmente correrá como esperais. Havia tanta gentileza no sorriso de Mister Tyndale enquanto a tranquilizava que ela teve de lho devolver.
- A minha visita pode esperar até amanha - disse ele. - Porque não levar-vos até Brinley? Fica perto de Fenwood. Podeis esperar lá e eu levo uma mensagem da vossa
parte ao vosso familiar. Se ele estiver de acordo, podeis ir fazer-lhe a vossa visita. Assim, também não tereis de voltar a pé, e estaremos de regresso à casa antes
dos outros.
Uma nota alegre e cúmplice infiltrou-se na última frase. Ele pensava que ela escondia a visita de Daniel por o afastamento ter sido obra dele.
A interpretação de Mister Tyndale era conveniente, porém. Ela dificilmente poderia explicar que não era prima de Daniel e que a pessoa era apenas parente dela. Além
disso, poderia ser melhor fazê-lo como Mister Tyndale sugeria, e enviar primeiro um pedido ao pastor.
- Mostrais-vos muito amável e generoso, Mister Tyndale.
- De todo, Miss Albret. De todo. É para isso que servem os amigos. - Apontou para o veículo. - Vamos?
- Adoro o mar - disse Hampton. Eram as primeiras palavras que pronunciava numa hora. - É o melhor exemplo do sublime. Posso dizer que estou satisfeito por não ter
regressado hoje à cidade.
- Eu detesto o mar - ripostou Daniel. Nunca compreendera aqueles disparates poéticos sobre o sublime, mas se o mar era exemplo disso, também detestava o sublime.
- Um sentimento inusitado, St. John - prosseguiu Vergil. -A vossa fortuna, fê-la o mar.
Daniel não queria saber que lhe tivesse feito a fortuna. Passara anos a balouçar nas suas ondas, mas não gostava minimamente dele.
Detestava a sua imprevisibilidade e a sua vastidão. Odiava a forma como fazia um homem sentir-se pequeno e à mercê do destino. Incomodava-o que as suas ondas ritmadas
conseguissem trazer à tona verdades das profundezas da alma de uma pessoa.
De todas as coisas que os homens faziam para fingir que conseguiam impor a vontade humana ao mar, a pesca desportiva sempre se lhe afigurara a mais ridícula. Era
uma forma de duelo, só que o opositor era primevo por natureza.
Daniel estava de pé numa rocha entre Vergil e Hampton, mais as suas longas canas de pesca no meio de todo o ridículo arraial. Ele e os outros homens do grupo testavam
as suas débeis capacidades contra a mais eterna força do planeta. Apanharam-se de facto alguns peixes, com grande alarido e excitação.
Vergil apanhara um enorme e escorregadio. Hampton não, mas tanto se perdera em contemplação que não se mostrara minimamente aborrecido.
Apenas o jovem Dante revelava inquietude. Estava sentado no chão ao lado das pernas do irmão, mostrando-se impaciente com o desporto e nem um pouco impressionado
com o sagrado sublime.
- Quando chegarão as senhoras, que achais? - inquiriu.
Sim, quando chegariam elas, que raio? Quando chegaria ela? Daniel forçara-se a não olhar para a estrada, a ver se chegavam, mas os seus ouvidos estavam permanentemente
à escuta de sons de carruagens.
- Seria de pensar que já tivésseis tido a vossa parte - murmurou Vergil, lançando um olhar irritado à cabeça do irmão. - Compreendeis, espero, que se algum marido
alguma vez vos pedir contas, sois um homem morto.
- Por falar nisso, talvez tenha chegado a altura de ele começar a ter lições com o chevalier - sugeriu Hampton. - Tendo em conta o seu gosto por feitos atléticos,
seria dinheiro bem gasto.
Dante ergueu os olhos, subitamente mais rapaz do que homem.
- E julgais mesmo que me desafiariam, a sério? Não é como se algum dos velhadas se importasse, de facto.
- Ser traído por um rapaz que ainda nem sequer saiu da universidade pode despertar o interesse do mais enfadado dos homens
- rematou Vergil.
- Rapaz uma ova. Não sois muito mais velho do que eu...
- Sou o suficiente para saber uma coisa ou duas a propósito de discrição...
Daniel parou de ouvir a querela dos irmãos. Outro som absorveu a sua atenção.
Aproximavam-se carruagens.
Finalmente.
Fez questão de mostrar que verificava a linha em vez de olhar para a estrada como ansiava fazer. Calculou a aproximação apenas pelo som enquanto lutava para dominar
a expectativa crescente, quase demente.
Cerrando os dentes, fixou os olhos no mar, mas isso só fez com que as malditas ondas fossem uma distraçáo, despoletando redemoinhos de memórias de paixão e prazer.
Anseios de posse soltavam-se como chamas das brasas acesas de desejo que há semanas ardiam dentro dele.
Ele fechou os olhos e forçou comedimento às suas reações. Estava a ser mais infantil do que Dante. Mais imprudente. Nem sequer sabia o que dizer quando voltasse
a vê-la. Não sabia ao certo o que queria dizer.
- Ah! As senhoras chegaram - anunciou uma voz ao fundo da fila de homens.
Daniel aguardou que as carruagens parassem para lançar a linha. Criados começaram a esticar panos e a dispor cestos na colina viçosa para lá da estrada.
Reparou no conde, que fixava atentamente uma carruagem. Seguindo a direção do seu olhar, Daniel viu a condessa a sair.
Seguiram-se duas outras senhoras. Daniel aguardou que aparecesse outra cabeça na abertura. Uma bela cabeça, com olhos emotivos que conseguiam fazer um homem esquecer-se
de si próprio.
Em vez disso, o lacaio fechou a porta da carruagem.
Daniel perscrutou o grupo, procurando Diane.
Encaminhou-se na direção da condessa, parada entre três mulheres que estavam a conseguir falar à volta dela, como se ela nem existisse. Desculpando-se como se tivesse
sido incluída, apanhou-o a meio caminho com um sorriso de gratidão.
- Quanta gentileza da vossa parte terdes vindo salvar-me, Mr. St. John.
- Seria uma satisfação acompanhar-vos, mas pergunto-me onde está a minha prima.
- Ela ficou na casa, para dormir. Foi irrefletido da minha parte tê-la deixado ficar a pé até tão tarde ontem à noite, e hoje de manhã estava muito cansada. Confesso
que fiquei tentada a me furtar a vir também, mas... - Indicou o conde com um olhar expressivo, e depois as suas companheiras de carruagem. - Uma pessoa tem de manter
as aparências e ser corajosa e isso tudo.
Daniel teria de longe preferido que a condessa tivesse cedido às suas inclinações para se esconder. A sua bravura significava que Diane fora deixada desacompanhada.
Não havia razão para a condessa se preocupar com aquilo, mas para Daniel sim.
Havia outro membro do grupo que não tinha mostrado a mesma coragem da condessa. Andrew Tyndale também pedira para ser dispensado da excursão.
O que significava que Diane não estava completamente sozinha na casa com os criados.
- Peço desculpa, mas afinal não terei possibilidade de vos fazer companhia. O vosso irmão cuidará de vós, tenho a certeza. Sinto-me obrigado a regressar à casa,
para me certificar de que a minha prima não se encontra doente.
- Estou certa que não. Apenas cansada...
Ele deu meia-volta e estugou o passo até à carruagem, não aguardando pelo outros. Notou que Vergil e Hampton o tinham visto. A expressão que fizeram e a rapidez
com que o intercetaram na carruagem sugeriam que ele não conseguia esconder bem a sua preocupação.
- vou voltar à casa, Duclairc. A vossa irmã precisa da vossa companhia neste momento.
- Ides regressar? Porquê?
- A minha prima ficou para trás. Está doente, e eu devo atendê-la.
- Estou certo de que se fosse sério Pen...
- vou lá verificar, de qualquer forma. - com um gesto, indicou ao cocheiro para partir.
A mão de Vergil travou o braço de Daniel quando este subia para a carruagem. - Parece-me que vou convosco. Jantar ai fresco enfada-me.
Daniel olhou para aquela mão e depois para Vergil. A desaprovação que Vergil mostrara no ribeiro cintilava-lhe nos brilhantes olhos azuis.
- A vossa irmã precisa de vós ao lado dela, e eu não tenho necessidade de auxílio.
- Mesmo assim...
- Permiti-me que seja eu a regressar - propôs Hampton. - A intrusão súbita deste barulho todo estragou-me o resto do dia. Penso que afinal sempre regressarei a Londres.
Não vos importais de me levar até ao meu cavalo, pois não, St. John?
Hampton, que raramente sorria, fazia-o agora com uma firmeza afável que informava que Daniel não regressaria sozinho para a casa e para uma Diane desacompanhada.
Raios. Era pouco provável que Vergil tivesse partilhado as suas suspeitas. Hampton devia ter sentido o que existia entre eles na noite anterior durante a partida.
Quem mais o teria visto? A condessa?
Tyndale? !
Devia dar uma sova a ambos por o insultarem com a insinuação de que ele não podia ser deixado sozinho com a prima.
Só que, claro, tinham razão.
Saltou para a carruagem. - Vinde, se quereis. Como se eu me importasse.
CAPÍTULO 16
Diane aguardava com impaciência, ensaiando o que iria dizer quando se encontrasse com o pastor. Visões de um reencontro banhado em lágrimas sucediam-se na sua mente,
pequenos dramas escritos ao longo dos anos, quando se deitava na cama da escola.
Ela esforçava-se para deter a imaginação. O pastor podia nem sequer aceder a vê-la. Podia não ser seu parente. Podia ser-lhe tão afastado que não tivesse interesse
numa associação.
Apesar de dizer a si própria aquilo tudo, a expectativa continuava a crescer. Durante cerca de meia hora depois de Mister Tyndale sair ainda conseguiu contê-la,
mas com o passar do tempo não parava de se avolumar.
Foi até à janela pela vigésima vez, para espreitar a rua à procura da carruagem. Brinley não era uma aldeia grande e a estalagem era minúscula. Mister Tyndale tivera
a generosidade de pagar um quarto para ela não ter de esperar na sala comum.
Era um quarto humilde mas bonito. Cortinas de musselina enfeitavam a janela e a cama. Umas alegres almofadas amarelas salpicavam a colcha azul e simples. Era o tipo
de quarto que ela presumira que teria quando fora para Paris com Daniel. Em vez disso, ele pusera-a dentro de um vaso de porcelana branco e azul.
Avistou uma carruagem. Mesmo não sendo maior do que um ponto, ela sabia que era de Mister Tyndale. O seu coração disparou. Tentou recuperar a compostura, lutou para
domar a esperança. Não conseguiu, e por fim preparou-se para sair a correr.
Mister Tyndale já estava à porta do quarto quando ela a abriu.
- Ele estava lá? Viste-lo?
- Estava lá.
- O que disse? Recebe-me?
- Lamento ter de vos desapontar, Miss Albret. Ele não sabe nada de vós e está certo de não haver parentesco entre os dois. É um velhote seco que não viu vantagem
nenhuma em ter a reunião que procuráveis.
A excitação desapareceu como que expulsada por um murro. A sua ausência imediata agravou o vazio mais do que nunca. Tornou-se tão grande que poderia tê-la absorvido.
Foi para a janela e olhou para o exterior, para esconder a sua reação. Lágrimas ameaçavam brotar. Acumulavam-se-lhe no peito e na garganta, e ela sentia-se pior
por não poder libertá-las.
- Magoa-me profundamente que isto vos tenha perturbado tanto.
Diane sentiu calor no seu ombro. A mão dele repousava lá, uma pequena mostra de solidariedade. O gesto paternal ajudou um pouquinho.
- Sinto-me culpado. Devia ter advogado melhor o vosso caso.
- Se não há parentesco, não há finalidade na reunião. Agradeço-vos terdes ido, poupando-me o constrangimento de ir importunar um estranho com o qual não tenho quaisquer
laços.
Ela virou-se para ele e a mão dele deixou-se cair. Ele parecia tão preocupado que ela se sentiu culpada. - Não há de ser nada. É só que tenho tão pouca família que
esperava descobrir mais, é tudo.
- bom, continuais a ter o vosso primo.
- Sim. O meu primo.
Só que não era primo coisa nenhuma e ela não queria continuar com ele. Percebeu que, inconscientemente, havia depositado uma
grande quantidade de planos no velho pastor. Sem o admitir, estava na expectativa de ter um sítio para onde ir quando deixasse Daniel. Agora não sabia ao certo para
onde iria nem como viveria.
- Estais perturbada. Receei que isso acontecesse. Antes de sair, dei indicação de que nos preparassem o jantar. Tomei a liberdade de dizer que no-lo trouxessem para
aqui para vós não terdes de comer lá em baixo, onde há outros que ficarão a observar-vos.
- Foi muito atencioso da vossa parte. Confesso que não estou segura de conseguir esconder bem as minhas emoções, e posso bem passar sem a companhia de outras pessoas.
Ele sorriu, gentil. - Aceitais a minha, pelo menos? Pode ser uma ajuda não estardes completamente só. Um pouco de conversa poderá distrair-vos.
- Oh, não me referia a vós. Tendes sido tão atencioso e prestável que eu... bom, aceito com agrado a vossa companhia. Apesar de não estar com muita fome.
- Tendes de comer alguma coisa na mesma. Não ficaria bem levar-vos de volta a desmaiar de fome.
Naquele preciso momento ela não queria nem um pouco voltar. Acabaria por ter de o fazer, claro. Antes disso, contudo, queria algum tempo para se acalmar e avaliar
o significado que esta desilusão tinha para o seu futuro.
O estalajadeiro chegou com a mulher e a filha, carregando tabuleiros de comida. Colocaram a pequena mesa perto da janela e arrastaram para lá outra cadeira. A um
gesto subtil de Mister Tyndale, a mulher desatou o drapeado de musselina da cama, para que a função da divisão ficasse disfarçada.
- Cheira muito bem - comentou Diane, dirigindo-se até lá para inspecionar a refeição depois de todos terem saído. Havia carne de ave com molho, batatas e pão. Uma
garrafa de vinho também os aguardava.
- Comida simples do campo - disse Mister Tyndale. - Prefiro-a aos pratos exóticos que são servidos em algumas festas de Londres.
- Também eu.
Ele indicou-lhe a cadeira dela com um gesto. Ela sentou-se.
- Penso que sois uma das pessoas mais amáveis que já conheci, Mister Tyndale.
Ele deixou escapar um sorriso modesto e serviu o vinho. - Qualquer cavalheiro faria o mesmo, Miss Albret. bom, vamos lá tratar da vossa disposição para vos termos
a sorrir outra vez.
Durante uma hora, ele distraiu-a com as suas conversas. A voz e a consideração dele tinham o efeito de um bálsamo. A desilusão diminuiu até não ser mais do que um
fino véu sobre o seu ânimo.
- Miss Albret, perdoe-me se estiver a intrometer-me, mas os acontecimentos de hoje pareceram afetá-la profundamente. Era importante para vós descobrirdes mais família?
Estais infeliz com a vossa situação?
A pergunta, feita quando ela enfiava o garfo numa tartelete de nata, agitou o véu.
- Não diria que estou infeliz, mas tenho andado a pensar que talvez seja bom procurar mudar as minhas circunstâncias. - Ela não estava certa da razão por que o admitia.
Saiu-lhe da boca, como resultado da familiaridade e à-vontade que o dia fizera crescer entre eles.
- Acho que podeis ter razão.
- O que quereis dizer com isso?
A expressão dele tornou-se séria e ponderada. - Arrisco o vosso desagrado com o que estou prestes a dizer, mas como sou um cavalheiro preocupado com o vosso bem-estar,
não vejo outra escolha. Tem havido rumores, lamento dizê-lo.
- Rumores?
- Não vos assusteis. Coisa pouca, e pura especulação. Bem, tendo em conta que St. John apareceu vindo do nada, sem história, rico como o pecado, com grande probabilidade
de a sua fortuna ter sido gerada por meios ilícitos... Diz-se que foi com sedução e nada mais que abriu as portas dos círculos que agora frequentais. Depois aparece
uma prima, também sem história... a forma como ele corre
com os homens, a forma como dançou convosco no baile... o que posso dizer? Tem havido comentários.
O conde de Glasbury insinuara o mesmo, por isso ela não ficou assim tão chocada. Não obstante, de repente ficou a gostar muito menos de Mister Tyndale.
Ele interpretou mal o silêncio dela. - Miss Albret, por favor perdoai-me se vos pergunto isto, sei que não me compete, realmente, mas vós sois tão inocente e tão
jovem. O vosso primo importunou-vos de alguma forma? Desde ontem à noite que isso me preocupa. Enquanto jogávamos às cartas senti que vós tínheis medo dele, e que
o interesse dele por vós não era totalmente apropriado.
- Estais enganado, asseguro-vos.
A expressão dele ficou imediatamente mais leve. - É um alívio ouvi-lo, e é o que esperava. Quando dissestes que talvez fosse bom mudar a vossa situação...
- Não quis dizer que precisava de fugir do meu primo - mentiu, desconfortável com o rumo que a conversa tomava. Mister Tyndale podia ser amável e paternal, mas não
era o pai dela. - Referia-me a coisas mais práticas. Não tenho fortuna e vejo pouco futuro nos círculos que venho frequentando. Tem sido agradável, mas talvez fosse
avisado procurar um caminho mais realista. Não quero ser uma daquelas parentes pobres, para sempre dependentes.
- Um sentimento admirável. - Ele pousou os cotovelos na mesa, juntou as mãos, apoiou o queixo em cima delas, e olhou para ela muito diretamente. - Quero que saibais,
porém, que se alguma vez precisardes de qualquer ajuda que seja, sentir-me-ei honrado se puder assistir-vos.
Era um comentário muito típico de Mister Tyndale. Atencioso e solícito. E, contudo... Diane não conseguiu reprimir uma pontinha de cautela. Os seus olhos azuis pareciam
tão límpidos e honestos como sempre, incrivelmente interessados, mas durante um instante mínimo ela pensou ter vislumbrado uma centelha minúscula, preocupante.
- Gostaria que pensásseis em mim como vosso amigo - continuou ele. - Admitirei, correndo o risco de vos fazer rir, que espero que um dia penseis em mim como algo
mais do que um amigo.
A mesa pareceu-lhe subitamente muito pequena e o rosto dele muito próximo. Um rosto agradável e sincero ainda, mas surgiram-lhe mais daquelas faúlhas nos olhos,
mudando tudo.
O espanto foi tanto que ficou sem conseguir mexer-se ou falar.
De repente, o braço dele atravessou a mesa e a mão dele segurou-lhe o queixo. - Sei que há uma grande diferença entre as nossas idades, mas isso não é assim tão
invulgar. Admiro-vos desde a primeira vez que nos vimos. Espero que pelo menos considereis o meu afeto, e que o vosso primo não objete se eu me apresentar como pretendente.
Pretendente!
Ela ficou pasmada a olhar.
Ele levantou-se da cadeira e inclinou-se sobre a mesa.
A mente confusa de Diane não compreendia o porquê de ele estar a fazer aquilo.
Ele mostrou-lhe o porquê.
O afável, generoso e sincero Mister Tyndale beijou-a, e contornou a mesa enquanto o fazia.
- Não há prova de que ele a tenha seguido.
Hampton ofereceu o reconforto dentro do coche, que dobrava uma curva da estrada, inclinando-se com a velocidade. - Ele só mandou vir a carruagem dele muito depois
de ela ter saído, e pode ter seguido por um caminho completamente diferente.
- Se assim foi, saberemos dentro em breve e aí podeis dizer-me que fui estúpido.
Tinham chegado à casa e descoberto logo a ausência tanto de Diane como de Tyndale. Levara-lhes um tempo insuportavelmente longo para localizarem alguém que soubesse
para onde Diane tinha ido. Por fim, a caseira apresentara uma rapariga chamada Mary que relatou a informação sobre o pastor de Fenwood.
Daniel não tivera tempo de se perguntar o que teria querido
Diane do pastor. O moço que preparara a carruagem de Tyndale
chegara pouco depois, e a convicção de que Tyndale seguira Diane alojara-se, determinada, na mente de Daniel, não deixando espaço para mais nada.
Ele não tirava os olhos da paisagem campestre, procurando vestígios dela, ou de Tyndale. Ou de ambos.
- Suspeitais disso por causa de ontem à noite? - perguntou Hampton. - Ele parece um sujeito decente. Todos o dizem. Não esperaria que ele procurasse desforrar-se
de vós através dela.
Só que ele não era um sujeito decente. Ficaria encantado por se desforrar de alguém daquela forma, porque tinha um fraquinho por raparigas inocentes de maneiras
refinadas e pele branca e cabelo escuro. Especialmente se elas estivessem impotentes e dependentes dele e sem qualquer proteção.
O coche atravessou Witham a toda a brida e virou para uma rua de terra. E aí teve de abrandar. A demora deixou Daniel furioso.
Hampton mantinha uma calma notável, mas, vendo bem, ele era sempre assim. A Daniel, aborrecia-o que o advogado não percebesse o perigo que eles se apressavam para
evitar.
- Se estais tão seguro da decência de Tyndale, não sei porque insististes em acompanhar-me.
- Já que estamos quase lá, digo-vos porquê. - Hampton indicou com um gesto preguiçoso as pistolas penduradas na parede do coche por cima da cabeça de Daniel. - Estou
aqui para me certificar de que não levais nenhuma das duas convosco quando descerdes desta carruagem.
- Se me sentir inclinado a matar um homem, bastam-me as minhas mãos.
- Não duvido disso. Na verdade, suspeito que o comprovastes. No entanto, hoje não o fareis.
Entraram nos arrabaldes de Brinley. Daniel ordenou ao cocheiro que fosse devagar.
Hampton examinava um lado da rua enquanto Daniel examinava
o outro. Perto da outra ponta da aldeia, Daniel viu uma pequena estalagem à frente da qual estava parado um cabriole conhecido.
Saiu do coche antes de este parar, com Hampton no seu encalço. Lá dentro, procurou o estalajadeiro e perguntou pelo homem a quem pertencia o cabriole.
- Não está. - Foi a resposta do estalajadeiro, que deu meia-volta.
Daniel agarrou-lhe no peitilho da camisa e puxou-o até os dedos dos pés se lhe levantarem do chão. - Onde está ele? Atónito, o estalajadeiro limitou-se a apontar
para cima.
- Está só?
A cabeça sobre a sua mão crispada abanou.
Ele largou o homem e dirigiu-se às escadas.
Hampton agarrou-lhe no braço. - Não façais nada precipitado.
Daniel enxotou-o e subiu os degraus três a três.
Só havia dois quartos no segundo piso. Uma das portas estava aberta, revelando uma divisão vazia.
Abriu de rompante a porta de outro. Foi invadido por uma raiva violenta ao deparar-se com a cena de sedução.
Tyndale estava curvado sobre uma Diane sentada, segurando-lhe o rosto entre as mãos, beijando-a. As costas dela estavam contra a cadeira e os braços dela agarravam
os dele. A resistir-lhe? A abraçá-lo? No segundo antes de a porta bater com um estrondo na parede não era claro. A Daniel também não lhe importava.
Tyndale ergueu a cabeça e afastou-se da mesa. A expressão de Diane registava surpresa, e depois horror. Ela virou-se para trás e cobriu o rosto com as mãos.
Sem pensar, sem se importar com nada, conduzido por emoções sombrias de mais para atentar em custos, Daniel voltou a sua atenção completa para Tyndale e deu um passo
na direção do homem que tencionava desfazer em pedaços.
Uma mão no seu braço deteve-o. Tentou espantá-la, mas esta não se mexeu. Furioso, voltou-se para Hampton, disposto a afastá-lo com um murro se necessário fosse.
- Não esqueçais quem ele é. Vale a forca? - perguntou calmamente Hampton.
Regressou uma pequena centelha de razoabilidade. Tyndale observava, sem mostrar a mínima preocupação. As mãos de Diane deixaram-se cair. Sentada, ali, a olhar para
ninguém, era palpável a sua humilhação. Ficaram todos nos respetivos lugares, num silêncio cortante, um tableau vivant de ruína e comprometimento e raiva.
- Miss Albret, deixai-nos, por favor - disse Hampton com a sua voz de advogado.
Ela começou a falar, mas parou. Daniel não conseguia imaginar o que ela pensava poder dizer. Tentar desculpar Tyndale? Acusá-lo de a ter enganado? Não importava.
A situação falava por si. Não havia homem que levasse uma mulher para um quarto daqueles se as suas intenções fossem honradas.
Ela apressou-se a sair e Hampton fechou a porta.
Tyndale foi até à mesa, sentou-se numa cadeira, e serviu-se de vinho.
- Foi apenas um beijo - disse ele. - Ela não se importou minimamente, porque haveis vós de vos importar?
Daniel queria estrangulá-lo.
Hampton assumiu uma posição de barreira entre os dois. - comprometeste-la com o simples facto de a terdes trazido para este quarto. Ela pode não o ter compreendido,
mas vós certamente que sim. Agora tem de se encontrar uma solução.
- Imagino que possa oferecer alguma compensação, se não for muito alta.
- Não se trata de uma leiteira que possais despachar com um punhado de libras - devolveu Hampton.
- Para todos os efeitos é mesmo. - Tyndale bebeu um gole e pensou. - Não sugeris certamente que eu faça por ela o que deve ser feito? Suponho que pudesse considerá-lo,
se ela tivesse nascimento ou fortuna.
- Diabos me levem se permito tal coisa - rosnou Daniel.
- Não podeis esperar que fique com ela sem dinheiro nenhum, St. John. Certamente que a reputação dela vale algumas
libras.
- Também tendes uma reputação - lembrou Hampton. Tyndale riu. - Por mais prendada que seja, ela não é ninguém.
Por mais rico que seja, esse vosso amigo também não. Penso que a minha reputação consegue sobreviver a este mal-entendido.
- Que tipo de acordo tínheis em mente? - inquiriu Hampton.
- Não a quero amarrada a ele, e com ele a aproveitar...
- A dívida de ontem à noite desaparece, para começar. Isso e mais vinte mil poderiam resolver o assunto.
- Quarenta mil libras é uma soma bastante avultada - respondeu Hampton.
- Penso que é generoso da minha parte considerar sequer o assunto seriamente.
- Penso que é generoso da minha parte deixar-vos viver - prosseguiu Daniel.
Tyndale deu uma dentada num resto de tartelete. - É um desafio?
- Não - assegurou enfaticamente Hampton. - Está irritado, como seria de esperar. A vossa postura só o provoca mais. Não esqueçais que sou testemunha do que se passa,
e eu não sou um zé-ninguém.
Tyndale voltou-se e estudou Daniel. - Ficastes muito perturbado com um simples beijo, St. John. Mostrais-vos tão protetor como se de uma irmã se tratasse.
O quarto desapareceu. Assim como a ideia de qualquer acordo. Exceto um.
Era a única resolução que ele alguma vez quisera com este homem. Planeara-a, vivera para ela e depois, por causa de Diane, descartara-a. Mas agora, mesmo assim,
aqui estava.
Por vezes o destino conspira para forçar uma pessoa afazer o que tem de ser feito.
- Não haverá casamento nem acordo - comunicou, abrindo a porta. - O meu padrinho visitará o vosso amanhã em Londres.
CAPÍTULO 17
Era como se alguém tivesse morrido. Uma sobriedade silenciosa envolvia a casa. Diane sabia o porquê daquela atmosfera carregada. O comportamento dela não manchara
apenas a sua reputação, mas também a de Daniel e da irmã. Toda a casa sofreria por causa da sua estupidez.
Homens visitavam Daniel, com o mesmo rosto que as pessoas envergam nos velórios. Mister Hampton apareceu várias vezes no dia a seguir ao regresso de Diane e Daniel
a Londres, e Vergil Duclairc também esteve de visita. Houve outros homens que ela não conhecia. Finalmente, ao fim da tarde, um homem grisalho de porte nobre foi
conduzido ao escritório de Daniel. Diane viu-o passar pela biblioteca, onde estava a ler um livro.
Foi até à entrada e olhou para a porta do escritório. Daniel passara ali a maior parte do seu tempo desde o regresso deles. Ele mal falara com ela depois de a encontrar
na estalagem. Regressado do confronto com Tyndale, perguntara apenas se ela estava ilesa. As afirmações dela não tinham suavizado a sua expressão e ele não quisera
ouvir as explicações dela.
Ele nem sequer tinha ido na carruagem quando regressaram a Londres. Ficara ao lado do cocheiro, tomando as rédeas nas mãos.
Regressaram imediatamente. Mister Hampton mandou emalar as coisas deles e enviou-as para a cidade na carruagem da condessa.
O homem não ficou no escritório durante muito tempo. Saiu, sério e apagado, parecendo um personagem de uma tragédia.
A porta do escritório ficou entreaberta. Diane passou por lá e espreitou para dentro.
Daniel estava, como tantas outras vezes, perto da janela, a olhar para fora. Parecia muito sozinho. Muito isolado.
Ela entrou sorrateiramente.
- Gostaria de falar convosco - disse ela. - Parece-me que devo voltar para França. O escândalo não vos afetará tanto se eu já cá não estiver.
- Não será necessário. A culpa não foi vossa.
- A culpa, foi minha. Eu devia ter percebido...
- Pessoas mais sensatas e vividas do que vós não se aperceberam.
Ele parecia tão distante. O coração dela sofria por Daniel insistir em não olhar para ela. Ele anulara qualquer familiaridade entre os dois. Fechara uma porta. Ela
voltara a tornar-se uma responsabilidade, nada mais.
Tinha sido a vontade dela. Decidira que esta amizade e esta intimidade tinham de acabar. Agora, experimentar o gelo da sua morte entristecia-a mais do que ela alguma
vez esperara.
- Não foi o que pareceu - disse, ouvindo a sua voz embargada. A verdade não iria fazer diferença, mas de súbito foi de importância vital que ele ouvisse aquilo.
- Ele ajudou-me quando eu estava na estrada, e foi ver se um pastor de Fenwood se encontrava comigo. Eu limitei-me a esperar no quarto que ele regressasse, não que...
Ele virou-se para ela. - E depois ele mandou vir o jantar, e vocês comeram, e para vosso choque vós descobristes que ele não pensava em vós como uma filha ou uma
sobrinha.
- Sim.
- E depois ele aludiu a afeto e amor, até mesmo a casamento.
- Sim. Como sabíeis?
- E depois beijou-vos. E vós permitistes.
- Foi um choque, estava estupefacta. Foi tão inesperado...
- Não interessa.
- Interessa sim. - E interessava. Naquele momento, interessava mais do que qualquer coisa no mundo.
- Não estou certo do que vi quando entrei. Sei sim que se não tivesse chegado, Tyndale não teria parado depois de um beijo e que o vosso consentimento em estar naquele
quarto tê-lo-ia absolvido das piores acusações.
Ela não sabia o que dizer. Tinha sido insuportavelmente ingénua e estúpida. - Certamente, se eu fosse embora, ninguém se importaria com isto. Ninguém viria a saber.
- Oh! Claro que viria a saber-se. Estas coisas arranjam sempre forma de sair por algum lado. Não vos preocupeis demasiado com o assunto, porém. Estou a tratar disso.
Disse a última parte com firmeza. O silêncio da casa e a retirada de Jeanette para os seus aposentos fixaram-se na memória de Diane. Como também a procissão de visitantes
sisudos.
Assolou-a uma suspeita terrível.
- O homem que esteve aqui agora mesmo. Não era o chevalier Corbet? Ele nunca vos visitou.
Daniel foi até à secretária. Estava apinhada de livros-mestre e outros livros. - E um velho amigo e concordou em fazer-me um favor importante.
- Que favor? - Ela foi até à secretária e contemplou a prova de que um homem colocava os seus assuntos em ordem. - Mãe de Deus, o que fizestes? Desafiastes Mister
Tyndale por causa disto?
- É evidente.
- É evidente? Eu nem sequer sou vossa prima de verdade. Não tendes responsabilidade em relação a mim, muito menos a de um gesto tão perigoso. Decerto havia outra
forma de salvaguardar o vosso orgulho, sem que tivésseis de tentar matá-lo.
- Não outra que me fosse aceitável.
- E se ele vos mata a. vóst - A ideia fez-lhe revolver o estômago. Se ele morresse por aquilo, por uma coisa tão pequena, ela nunca se perdoaria. Seria para sempre
perseguida pela culpa.
Ela tinha decidido deixá-lo, mas não assim. Não de uma forma tão permanente. Saber que ele estava algures no mundo teria facilitado tudo. Assim, ela podia sofrer
uma perda que o seu coração sabia já não conseguir absorver.
- Não estejais preocupada. Estareis amparada se eu falhar. Passei a manhã a tratar de obrigações para vós e Paul e mais algumas pessoas. Não ficareis desprovida.
- Não quero o vosso dinheiro. Não quero que este confronto vá para a frente.
É imprudente e desnecessário. Tanto quanto sabeis, as atenções dele agradaram-me. Talvez
ele estivesse a ser sincero ao comunicar as suas intenções como pretendente. Talvez eu tenha gostado do beijo e da oportunidade de agarrar o filho segundo de um
conde.
Daniel aproveitou para compor alguns livros-mestre. - Talvez sim. É o que está a parecer.
Um não imperioso subiu-lhe aos lábios, mas ela reprimiu-o. Proclamar a sua inocência, descrever a repulsa que sentira pelos beijos insistentes de Tyndale, só deitaria
achas para a fogueira.
Partia-lhe o coração que Daniel pudesse pensar que ela desejara aquela cena de sedução, mas o seu orgulho pouca importância tinha naquele momento. Ela não podia
deixá-lo bater-se naquele duelo. Não podia arriscar que ele morresse. Deixá-lo perguntar-se se não estaria a proteger uma mulher que não merecia o seu cavalheirismo.
Poderia conduzir a que ele abdicasse do duelo.
- E não é só imprudente, mas também hipócrita. O vosso próprio comportamento comigo tem sido muito pior do que o de Mister Tyndale.
- Tenho consciência disso. No entanto, a um nível essencial, foi muito diferente, de formas que vós não conseguis compreender.
- Como objeto desse comportamento, não vejo diferença, a não ser que as intenções últimas dele possam ter sido honradas.
- Estou muito certo de que não o eram. Nem as minhas. Em todo o caso, um de nós pagará por vos ter destratado, e talvez por muito mais.
- Para quando está marcado, este duelo?
- Louis está com o padrinho de Tyndale neste preciso momento. Conto que seja para breve.
- Jeanette sabe o que planeais fazer?
- com certeza.
Ele dissera à irmã, mas não à mulher por cuja honra ele lutava.
- Presumo que ela vos tenha suplicado para mudardes de ideias.
- Ao contrário de vós, Jeanette sabe bem que não vale a pena tentar.
- Talvez seja por não saber a história toda.
Ela deu meia-volta, para ir recrutar uma aliada. A voz dele seguiu-a em surdina até à porta. - Na verdade, é por saber mesmo toda a história.
- Tendes de o deter. - Na saleta, de pé em frente a Jeanette, Diane disse-o como uma ordem.
- Ninguém consegue fazê-lo, agora.
Jeanette parecia resignada e frágil. A sua pele branca mostrava rugas ténues em que Diane nunca tinha reparado.
Começou a andar para trás e para diante. Um misto de frustração e preocupação extrema martelava-lhe na cabeça. - A reaçáo de Daniel foi demasiado extrema. Um duelo!
Tinha de haver outra forma...
- Houve. Mister Tyndale ofereceu-se para casar convosco se levásseis um dote.
- O vosso irmão prefere morrer, ou matar, a pagar meia dúzia de libras?
- A soma era muito grande e pretendia ser um insulto tanto para vós como para o meu irmão. No entanto, não foi por isso que Daniel recusou.
- Então porque foi?
Ela alisou as pontas do xaile. - Ele nunca vos colocaria numa situação em que vos sentísseis obrigada a casar com um homem para evitar este confronto.
- Deveria ter sido escolha minha, não dele.
- bom, ele fê-la. Além disso, Daniel nunca teria deixado Tyndale ter-vos de forma alguma, nem mesmo em casamento. Não tenho dúvidas de que mais depressa mataria
o homem do que o permitiria.
Diane pousou a mão no ombro de Jeanette e olhou-a nos olhos.
- Daniel disse algo sobre vós saberdes a história toda. Há mais alguma coisa aqui pelo meio?
- Digo-vos isto. Faço-o na esperança de que não vos culpeis a vós própria. Paul sugeriu que Mister Tyndale podia já ter-vos levado deliberadamente para aquela estalagem,
com a intenção de provocar um duelo com Daniel. Na noite anterior, a jogar às cartas com Daniel, tinha perdido uma soma avultada. A sua obrigação para com a dívida
desapareceria se Daniel morresse.
- É uma forma drástica de acertar uma dívida.
- E uma forma eficaz. Mister Hampton, o advogado, apresentou esta teoria a Daniel. O meu irmão considera-a irrelevante, claro. Contudo, explicaria o porquê de o
dote que Tyndale pediu para casar convosco ser tão escandalosamente elevado. Incluía a dívida, reparai.
Então ela fora um peão. A gentileza, na rua, fora meramente a atitude de um homem que avistara uma oportunidade. Talvez até a tivesse seguido, esperando encontrar
uma forma de a comprometer para que tudo pudesse desenrolar-se como se desenrolou.
Ser a boneca de Daniel tinha sido uma coisa. Ser o joguete de Tyndale era outra. Ela caíra na armadilha como a pateta estúpida e ignorante que era. Pior, Daniel
podia morrer por causa disso.
- Essa teoria só funcionaria se Mister Tyndale estivesse confiante em ganhar o duelo - prosseguiu ela.
- Tem reputação de ser um excelente atirador.
Um dos melhores atiradores de Inglaterra, dissera-lhe Daniel naquele dia junto ao ribeiro.
- Temos de impedir isto, Jeanette.
- Ninguém tem capacidade para o fazer. Acreditai em mim. Conheço o meu irmão como mais ninguém. Ele vai defrontar Tyndale, e fá-lo-á com o intuito de o matar.
Diane aguardou até a casa se fazer silenciosa e levantou-se da cama. Horas de tumulto e culpa haviam redundado numa decisão.
As emoções dos últimos dias tinham-na preparado para aquela escolha. Talvez as dos últimos meses. A desolação de considerar a possível morte de Daniel revelara as
verdades do seu coração.
Tirou do armário um robe que nunca tinha usado. Um modelo frívolo, nada prático, de cetim rosa-escuro e renda bege, que tinha sido feito em Paris por capricho de
Jeanette, apesar de Diane insistir que nunca usaria tal vestimenta.
Imaginou o aspeto com que ficaria com aquilo por cima da sua singela camisa de noite. A imagem que lhe veio à cabeça era cómica e ridícula. Pareceria uma criança
vestida com as roupas da mãe.
Decidindo que não era altura para pudores, despiu a camisa e vestiu a sua nudez com a seda rosa, que a cobria quase como um vestido de noite, só que a frente tinha
uma abertura pronunciada, e o toque sensual do tecido cingia-se-lhe às curvas. O decote redondo, debruado a renda, tocava-lhe os seios.
Sentiu um nó no estômago. Estava prestes a fazer uma coisa que qualquer pessoa com algum juízo consideraria um erro estúpido e escandaloso.
Pior, poderia falhar. No escritório ele tinha-lhe sido tão indiferente que ela não confiava que o seu plano fosse resultar. Mas tinha de tentar. Jeanette dissera
que ninguém conseguiria fazer com que ele anulasse o desafio. Havia uma pequena possibilidade de não ser verdade.
Reunindo toda a coragem, saiu do quarto para ir negociar com o Homem Diabo.
CAPITULO 18
Abriu a porta do quarto de Daniel com cuidado. Um feixe de luz entrou pela frincha.
Sentiu as pernas bambas. Fez uma pausa e um esforço para manter a calma.
Esperou que não fosse horrível de mais. Ele não era um estranho. As suas boas intenções deviam salvaguardá-la de se tornar uma perdida, independentemente da forma
como os outros vissem a sua atitude. Independentemente de como ele a visse.
Empurrou um pouco mais a porta e entrou, sorrateira.
A elegância ampla e esparsa do quarto surpreendeu-a. A mobília possuía um toque oriental. Toda a estrutura da cama era de linhas direitas, com ornamentações em relevo,
e o guarda-fatos tinha embutidos de flores e pássaros. Perto da cama, viu uma cómoda entalhada com três cores de madeira.
Os apontamentos exóticos não tornavam o quarto opressivo. Não era nenhuma fantasia asiática. Pareciam objetos que ele simplesmente tinha trazido das suas viagens
e posto a uso.
Daniel estava sentado numa cadeira perto da lareira vazia, lendo um livro à luz de um candelabro. A cadeira estava virada para ela e ela viu o robe japonês de mangas
compridas que ele envergava,
fechado e atado com uma faixa de pano. Era azul-escuro com um padrão branco e lembrou-lhe o quarto que ela ocupara em Paris.
Reparou nas pernas dele, nuas, que o robe deixava destapadas dos joelhos para baixo. Via-se um profundo V de pele exposta acima do ponto onde as abas do robe lhe
cruzavam o peito.
Parecia que ele não trazia mais nada vestido, o que tornava ainda mais inequívocas as implicações daquilo que ela se propusera fazer. Esperara encontrá-lo de casaca
e botas, ou já adormecido num quarto escuro. Não ali sentado, com aquela luz toda, quase nu.
Tinha um aspeto maravilhoso, um homem de ação temporariamente em repouso. Apesar de relaxado, o magnetismo emanava dele como uma força invisível, afetando-a como
afetava sempre, desassossegando-a e deixando-a mais desperta do que o normal. A luz das velas esculpia-lhe o belo rosto em ângulos severos e os seus olhos escuros
luziam como estrelas negras.
Ele não a ouvira entrar. Ela ficou de pé à frente da porta, com tanto medo e tão nervosa que teve de forçar a voz a sair.
- O que estais a ler?
Ele mal reagiu, mas ela percebeu que o tinha surpreendido.
- Poesia.
Ele ergueu os olhos.
De repente, o seu robe pareceu-lhe muito fino e muito perverso. Não lhe pareceu que a cobrisse nem de perto como cobrira no quarto.
Ela foi alvo de uma inspeção longa e lenta, cheia de interesse masculino. Uma vitalidade tensa, despertada, partiu do outro lado do quarto em direçáo a ela.
- Estais muito bela. Não vejo o vosso cabelo solto desde aquele dia na escola. - Indicou distraidamente o robe. -
É muito bonito.
- Foi Jeanette que mo escolheu, em Paris.
- Ela sugeriu que o usásseis hoje à noite?
- Não. Porque o faria?
Ele fez aquele sorriso jocoso dele. - Então foi ideia vossa vestirdes isso, soltardes o cabelo e virdes até aqui. Porquê?
O rosto dela ardia. Não tinha contado anunciar verbalmente as suas intenções. O robe e a sua presença deviam bastar.
- Viestes tentar-me, Diane?
- Sim.
- Se pensais encantar-me com a vossa beleza e depois sair, quero que saibais agora que náo se passará assim.
- Eu sei disso.
Ele forçou-se a desviar o olhar dela para o fogo brando. Nem sequer compreendeis o que estais a oferecer.
- Náo sou ignorante. Sei o que é esperado.
- Não sabeis o que eu espero. Voltai para o vosso quarto. Ela quase obedeceu.
Em vez disso, caminhou na direção dele.
- Não quero que este duelo aconteça. Quero que recueis.
Ele olhou para ela, e não foi com um ar satisfeito. Ela reparou que, apesar da irritação, ele lhe apreciava as pernas, que espreitavam pela racha do robe a cada
passada.
- Se vierdes até mini assim, deveis querer muito que ele viva. Preferiríeis a outra solução dele? Casar-se convosco?
Ao lado das suas pernas nuas, ela olhou para aqueles olhos escuros, donos de perigosas profundezas. Anos antes, aqueles olhos assustavam-na. Agora enfeitiçavam-na.
- Só me interessa que náo haja duelo.
O olhar dele percorreu-a, breve e exaustivamente. - Não se trata apenas de vós.
- Não, também se trata de vós e do vosso orgulho.
- Sendo assim, procurais salvar um homem sem honra fazendo-me a mim ainda mais indigno do que ele. - Virou o livro que tinha no colo e voltou a debruçar-se sobre
ele. - Permiti-me alguns escrúpulos, além do mais, no que vos diz respeito. E agora, por favor, regressai ao vosso quarto.
Ordenava-lhe que se retirasse, e não era com delicadeza. A coragem dela vacilou. O seu corpo inteiro vacilou. Estar perto dele provocava-lhe aquilo, mais do que
a própria rejeição. O constrangimento
por ter sido rejeitada foi abafado pela desilusão de ele não a querer o bastante.
Se ela soubesse mais sobre estas coisas não teria falhado. Se fosse mais bonita, ou mais vivida, ou mais sedutora, a escolha dele teria sido diferente.
Devia retirar-se com o orgulho que lhe restasse, mas não podia. Poderia não voltar a estar assim perto dele, poderia nunca mais ver a luz das velas a desenhar-lhe
sombras no rosto como naquele momento. Depois de se afastar, a aura dele nunca mais a envolveria como envolvia agora, incitando-a a ficar ainda que ele a repudiasse.
Ele virou uma página. - Ide-vos, já. Quero que vades.
Tremendo, mal conseguindo manter o equilíbrio, ela baixou-se até ficar de joelhos ao lado das pernas dele, inclinou-se e apoiou-se nos calcanhares. Ele ainda lia,
mas conseguia vê-la por cima do livro.
Desapertou o primeiro botão pérola que lhe cobria o seio. Demorou-lhe tempo de mais porque os dedos não mostravam vontade de trabalhar. Não era só o nervosismo que
os tornava desajeitados. Estar a escassos centímetros dele afetava-a.
Finalmente conseguiu. O robe e a sua seda afastaram-se um pouco. Começou rapidamente a desembaraçar-se do botão seguinte.
- Devagar, querida. Seduzir não é algo que se faça à pressa.
Ela ergueu os olhos.
O livro estava na mesa ao lado das velas. O príncipe da tentação observava.
A atenção dele deixou-a enfeitiçada.
Desapertou os outros botões muito lentamente, já que mal reparava no que fazia. Ele parecia também não reparar. Os olhares, unidos, eram tudo o que existia, ligando-os,
dando origem a confissões e expectativas cuja existência nunca devia ter sido reconhecida. Ela sabia que ele a queria, isso era óbvio. Se ele aceitaria a sua proposta
já era menos claro.
Tendo chegado ao último botão, perto da cintura, ela forçou-se a apartar os olhos dos dele e a olhar para baixo. O cetim abria-se, mal lhe cobrindo os mamilos, duros
contra o tecido brilhante.
Olhou de novo para ele. Parecia aguardar alguma coisa.
Engolindo em seco, afastou mais o robe. O cetim brilhava-lhe na pele. Afastou mais o tecido, para mostrar os seios.
A sensação de estar ali ajoelhada, expondo a sua nudez, inundou-a de um arrebatamento erótico. Os seus seios tornaram-se pesados e cheios. Os seus mamilos endureceram
mais, sensíveis agora ao ar, ao olhar dele e até à própria luz. Tremores de excitação obscureciam o seu constrangimento. A carícia do cetim na sua pele tornou-se
uma pequena torrente de sensualidade.
A expressão dele ficou mais tensa. Ela sentiu que travava uma batalha. O ar entre eles ficou carregado daquela tensão.
- Devia deixar que vos despísseis completamente para não haver equívocos sobre o que está a acontecer, e porquê.
- Não haverá equívoco algum.
Desviando o olhar, com medo de ver a reação dele, ela ergueu a mão e, espantada consigo própria, deu por si a pousá-la na perna dele e a subir-lhe até ao joelho
numa carícia.
O mundo girou. com um movimento que a surpreendeu e desnorteou, ele puxou-a para a frente, para os seus braços e o seu colo, e tomou-lhe a boca num beijo selvagem.
O cetim oferecia pouca proteção contra a aspereza quente do seu abraço. A boca dele exigia uma rendição mais completa do que alguma vez os seus beijos haviam exigido.
A pressão da excitação dele na sua coxa provava-lhe que era melhor sedutora do que tinha pensado.
Os beijos dele instigavam a sua paixão a elevar-se ao nível da dele, o que se verificou nas respostas dela às suas exigências possessivas e quentes. O poder das
sensações que percorriam e torturavam o seu corpo assustava-a.
- Disse-vos que partísseis. Não digais que não fostes avisada. A cabeça dele virou-se. O seu cabelo suave roçou-lhe o rosto. A boca dele desceu-lhe pelo pescoço.
Os seios dela, mais volumosos, palpitavam, e um desejo louco de que ele continuasse mais para baixo tomou conta de si. Arqueou-se instintivamente, para o encorajar.
Ele beijou-lhe o volume do seio como resposta. - Alegra-me que o queirais, que não seja um sacrifício assim tão grande.
- Também quero que pareis com o duelo. - Ela mal conseguiu que as palavras saíssem, mal se lembrou de lhe pedir a promessa.
- Pensais mesmo que conseguiríeis ir embora agora se eu recusasse?
Pareceu uma ameaça, mas ele roçou-lhe o mamilo com o dedo para clarificar que ela não iria embora porque não queria fazê-lo. Todo o seu corpo se fletia. A sua respiração
entrecortava-se.
- Dou-vos a vida dele e vós dais-vos a mim. E um acordo diabólico, o que pretendeis, Diane, e ambos o lamentaremos muito em breve, parece-me. - Os seus olhos escuros
conseguiram penetrar os dela. - Neste preciso momento, contudo, não me importo minimamente. Haveis tratado disso.
Ele ergueu-se com ela nos braços. Avançou até à cama e deixou-a cair nela. Agarrando o robe de Diane pelos ombros, puxou-o e pô-lo de lado, deixando-a nua.
Olhando para ela, começou a desatar a faixa do seu robe.
Ali, ela quase mudou de ideias. Os momentos passavam ritmados, demasiado vivos e reais. Face à franqueza sensual do olhar dele era impossível negar o que ia acontecer.
Ali deitada na cama, nua e vulnerável, sem mais nada a cobri-la que não o poder masculino que emanava dele, ela soube que ele estava certo. Ela não compreendera
totalmente o que estava a oferecer.
Ela desviou o olhar quando o robe lhe caiu dos ombros. Era covardia e ele não disse nada, mas segundos depois, extinta a luz da vela, o quarto ficou escuro.
Ela ouviu-o aproximar-se da cama e o seu coração bateu numa fúria de pânico. Ela quase saltou ao sentir o corpo nu que subitamente lhe aquecia o flanco. Os seus
olhos acostumaram-se à escuridão e ela espreitou.
Apoiando num braço, ele olhava para ela. A escuridão fazia da cama um lugar pequeno e misterioso, cheio de uma intimidade de penumbra. Não um sonho, porém, mesmo
se a noite obscurecia o
mundo. Os sonhos nunca eram tão tangíveis e tão definidos. Ela sentia-se mais desperta do que nunca. A vivacidade intensa que ele sempre lhe inspirava tornou-se
um estado de alerta físico.
Curvando-se, ele puxou-a para a envolver nos braços. Acariciou-lhe o corpo como se conseguisse ver melhor do que ela. Ela puxou-o contra si, desajeitada e insegura,
e com toda a consciência de que a sua surpresa ao sentir a pele dele e o toque dele no seu corpo inteiro conseguia perceber-se na sua respiração entrecortada.
Beijando-a com fervor, como se o medo dela o impacientasse, ele acariciou-a mais intimamente. A parte de dentro das coxas. O volume e a fenda das suas nádegas. A
liberdade com que manuseava o seu corpo insinuava posse. O atrevimento dele chocava-a, o que, no entanto, só vinha aumentar a excitação das novas sensações, e as
suas reações alarmavam-na ainda mais.
Ele passou-lhe as pontas dos dedos em círculos pelo seio. Este prazer ela conhecia. Ele já lho ensinara e ela ficava sem defesa. A carícias lentas bem podiam ser
internas, tal era a prontidão com que os toques provocantes lhe enviavam tremores para a parte de baixo do corpo. Algo se avolumou até ela sentir uma palpitação
profunda e insistente entre as coxas.
Ele beijou-lhe o outro seio. A língua dele rodopiava, deixando-a tensa. O seu mamilo ficou tão sensível que ela mal conseguia aguentar. A combinação de carícias
num seio e dos dentes e lábios dele no outro deixou-a atordoada. Agarrou-se aos ombros dele e tentou conservar o pouco e vacilante controlo que lhe restava.
Não conseguiu. O medo desapareceu, como também o choque e a estranheza de estar ali a fazer aquilo. A sua mente ficou toldada e ao mesmo tempo focada. O pulsar no
fundo do seu ventre estava cada vez mais intenso, alimentando-se das sensações da sua pele e do seu corpo, sensações que começaram a possuí-la.
O latejar húmido, o ardor, que sentia entre as pernas tornou-se desconfortável. O que ele fazia só o piorava. As suas ancas balouçavam, para aliviar a estranha fome
que ali crescia. Reprimiu gemidos de frustração.
A mão esquerda dele deixou o seio e acariciou-a até à barriga. Ficou ali, enquanto o corpo dela se erguia e baixava involuntariamente, procurando algo.
- Isso é vós a quererdes-me - disse ele, a sua mão acompanhando o ritmo, adivinhando o desconsolo e embaraço dela. - Mas preciso que me queirais ainda mais.
A mão dele deslizou mais para baixo, até às coxas dela e à sua humidade.
Até ao lugar privado que a torturava.
O choque regressou, veemente. Ela juntou as coxas com força, para o deter.
- Ides permitir - disse ele. - Esta noite sois minha, e eu quero-o. Vós também quereis.
Ele apertou suavemente a coxa dela numa ordem sem palavras e afastou-lhe as pernas.
A carícia dele deixou-a perplexa. Agarrou-se mais a ele e procurou o seu beijo para evitar gritar. As sensações tomaram posse dela, fazendo-a querer mais. Ela tentou
conter o que lhe faziam, mas não conseguia. O prazer era concentrado de mais, direto de mais, de uma intensidade quase dolorosa. A sua reação física espantava-a.
As ânsias primitivas que a dominavam assustavam-na.
Ele colocou-se em cima dela, um vulto forte e escuro que emanava um calor físico, em parte estranho mas completamente masculino. Continuou a tocá-la, instando-a
ao abandono, forçando-a a desejá-lo apesar de isso a aterrorizar.
- Afastai mais as pernas. Dobrai os joelhos.
Foi o que fez. As coxas dela abriram-se às ancas dele e os seus braços agarraram-se aos ombros dele. Ele pressionou o corpo dele contra o dela, preenchendo ligeiramente
o vazio latejante e aliviando o desejo ardente e insaciável. Durante alguns segundos perfeitos ela conheceu a ventura de o ter assim enlaçado nela, nos seus braços
e perto do seu coração. A paixão dele pareceu recuar um pouco, tomando menos dela, permitindo-lhe gozar a intimidade.
Não durou. Uma dor crua cortou-a quando ele pressionou mais. Uma sensação de estar a ser violentada obliterou a ternura. Cerrou os dentes e agarrou-se ferozmente
a ele para não gritar.
Ele parou e não se mexeu. A dor diminuiu mas ainda estava lá. Ela aceitou o beijo dele, mas não conseguiu evitar sentir receio de ter dado uma parte dela que nunca
poderia recuperar. Ela podia correr até aos confins da Terra, mas algo dela seria para sempre dele.
Pareceu-lhe que tinha terminado, mas não. Ele mexeu-se, e ela compreendeu que a união inicial tinha sido só o começo. Erguendo-se acima dela, sobrepondo-se, o corpo
dele dominava o dela com cada investida.
Colocando uma mão na cabeceira da cama para se equilibrar, ele tomou-a numa posse rítmica, cadenciada. O que quer que o ato fosse para além daquilo, ela via que
se tratava de uma primitiva reivindicação de direito. Pior, os movimentos dele tentavam-na e exigiam que ela se rendesse àquela reivindicação.
Ele moveu-se com mais força, tomando tudo, dando significado a cada olhar intenso que lhe dirigira e a cada reação inquieta que ela experimentara. Ela tentou fechar-se
ao poder, à aura que criava e às emoções que evocava. Concentrou-se na dor, para se proteger. De qualquer forma, continuava a afetá-la, provocando assombro, lembrando-a
outra vez do aviso dele de que ela não sabia o que oferecia, nem o que ele esperaria.
A cabeça dele inclinou-se para trás. Uma estocada forte e profunda penetrou-a. Ele ficou bem dentro dela, imóvel por um segundo. A ameaça de perigo que definia a
sua persona recuou. Ela sentiu uma tensão endurecer-lhe os músculos debaixo das suas mãos. Depois, subitamente, ambos se desvaneceram no ar.
Ele não voltou a mexer-se. Desceu os olhos para ela e ficou assim tempo de mais, respirando fundo. Ela não conseguia ver-lhe os olhos, e perguntou-se se conteriam
atenção intensa ou a impassividade distraída que ela conhecia tão bem.
Ele afastou-se para o lado, separando completamente os corpos. Afundou-se na cama, ao lado dela.
Um sentimento de humilhação procurava infiltrar-se nela. Mas não fazia progressos. Ela estava para além de qualquer constrangimento. As suas emoções tinham sido
abalroadas. Tudo era ainda demasiado real, e mudara irreversivelmente.
Ela não experimentava nem arrependimento nem triunfo, apenas um sentido agudo do presente. Seria necessário tempo para absorver e compreender o que estava agora
no seu coração.
O silêncio tornou-se tenso e embaraçoso. Ela concluiu que ele não falava porque não havia nada a dizer. bom, ela soubera para o que ia quando lá fora. Não fingiria
que tinha sido algo diferente do que acontecera, nem esperaria que ele o fizesse.
Saindo da cama, tateou o chão à procura do robe. Vestiu-o e afastou-se, debatendo-se com alguns botões.
- Valeu a pena?
Ela voltou-se. Ele não se mexera. Nem sequer parecia estar a olhar na direção dela.
- Valeu a pena, Diane? Deveis importar-vos mais do que eu me apercebi, para fazerdes uma coisa destas.
Surpreendeu-a que falasse no assunto. A intimidade física provavelmente exigia que se dissesse alguma coisa.
- Valeu a pena. Foi um pequeno preço a pagar para salvar o homem que amo. - Achou espantosamente fácil dizer a palavra, ser sincera sobre os seus sentimentos, mesmo
sabendo que ele não os partilhava. O que acontecera naquela cama despojara-a de mais do que roupas ou da sua inocência. Também afastara todas as razões pelas quais
as pessoas guardam as verdades nos seus corações.
- Ele não é merecedor do vosso sacrifício. - Daniel ergueu-se num cotovelo e olhou para ela. - Não posso deixá-lo ficar convosco, mesmo que vós penseis que o amais.
Principalmente agora. Deveis saber disso.
Ele?
Ela dirigiu-se para a porta. - Equivocais-vos. Não o fiz para salvar Andrew Tyndale.
Ele ficou a ver a porta fechar-se atrás do robe de cetim cor-de-rosa, depois voltou a afundar-se na cama.
Voltou a vê-la, ajoelhada ao lado da cadeira, tão linda que o seu coração parara de bater. com aquele primeiro botão soubera que ela não recuaria. Soubera que perdera.
E ficara contente com isso, e tão ávido dela que nada mais importara. Nada.
Balançou as pernas para fora da cama e pegou no robe. Atou-o e pôs-se à janela.
Aquela noite comprometera tudo. Ela. Ele. A sua vida inteira.
Abriu a janela para a cidade silenciosa, adormecida. Conhecia muito bem a vista que lhe proporcionava. Muitas noites ali se pusera, fazendo planos, aguardando. Arquitetara
uma pequena guerra àquela janela, infiltrando-se no campo inimigo, abatendo os guardas, protegendo a retaguarda enquanto se aproximava do objetivo.
Naquela noite, uma mulher atraíra-o para a derrota completa sem sequer o saber.
Valeu a pena...
Ela fizera-o para salvar um homem.
Não era Tyndale.
Ele devia ter percebido. Talvez tivesse. Mas se o tivesse admitido, não poderia ter aceitado a proposta dela. Não teria conseguido levá-la para aquela cama e arrebatá-la.
Precisava de estar irritado com ela para o fazer.
E durante o dia inteiro fora essencial que ele não aceitasse que, se o duelo ocorresse, pudesse não ser Tyndale a estar em risco de morte, e a precisar de ser salvo.
Valeu apena...
Contemplou a rua. Um dos candeeiros tinha um poste mais baixo do que os outros. Nunca tinha reparado. Há anos que se punha àquela janela e nunca vira realmente aqueles
postes.
O seu olhar vagueou de um lado para o outro, procurando outras particularidades que lhe tivessem escapado. Um dos telhados tinha uma saliência na cornija, e a janela
do lado mais baixo de outra casa parecia estar entaipada. Naquela noite, todos os pormenores lhe saltavam à vista, detalhes há muito invisíveis que agora exigiam
atenção.
Mais valia concentrar-se neles do que debater os assuntos que tinha entre mãos, mais prementes, tais como saber de que forma este acordo que Diane comprara com o
próprio corpo lhe ataria as mãos no que respeitava a Tyndale.
Tais como as velhas memórias que o tinham invadido, deitado na cama ao lado dela, fazendo com que sentisse nojo de si próprio e fúria em relação a ela.
Tais como o facto de não ter tratado Diane especialmente bem naquela noite. Ela podia ter sido tola e arrojada, e ele ávido e irritado, mas ele podia ter sido mais
cuidadoso com ela. Não conseguiria tê-la poupado ao choque nem à dor, mas podia ter sido mais meigo, mesmo faltando-lhe a força e a honradez para a recusar completamente.
Valeu a pena. Foi um pequeno preço a pagar...
Lá fora, à luz dos candeeiros, mais pormenores ganhavam forma. Uma das casas tinha apenas quatro degraus até à porta, em vez de cinco. Veio-lhe a imagem de visitas
a não repararem na inclinação e a tropeçarem de cada vez que subiam.
Constatou que dois edifícios que sempre presumira serem idênticos na verdade tinham alturas ligeiramente diferentes.
Foi um pequeno preço apagar para salvar o homem que amo.
As palavras dela surgiram-lhe de rompante, gorando as suas tentativas de as manter ao largo. Olhava fixamente para a rua, subitamente sem nada ver face à repetição
contínua das palavras dela, que o imobilizaram. O tom da voz dela, a calma aceitação e resignação, ecoavam nos seus pensamentos, fazendo o seu peito encher-se de
um estranho peso.
Numa coisa ele estivera certo. O homem que ela procurara salvar não era digno do sacrifício dela.
E tinha sido um sacrifício enorme, dado em simples inocência a um homem que nem sequer lhe deu o valor que tinha. Um homem dominado pelo passado, que alimentava
raiva e ódio porque receava não ter nada dentro de si se eles desaparecessem. Um homem que a tentara muito antes de ela o tentar a ele, e que não gostava que ela
usasse a sua própria volúpia para frustrar o objetivo nascido daquele ódio.
Ela era idiota em se importar sequer com um homem assim, quanto mais amá-lo.
A garganta ardia-lhe e ouviu o silêncio cruel de quando se deitaram um ao lado do outro. Viu-a ir-se embora, orgulhosa apesar do seu desalento.
Foi um pequeno preço apagar para salvar o homem que amo.
Céus.
Virou as costas à janela. Encaminhou-se para a porta de um quarto que muitas vezes, na calada da noite, desejara visitar. Entrou e foi até à cama.
Ela estava deitada de lado com os joelhos encolhidos, vestida com uma camisa branca. Parecia sozinha e indefesa, como se se aninhasse debaixo do lençol para se proteger
de um mundo indiferente.
Ele levantou o lençol e deitou-se ao seu lado. Diane sobressaltou-se o bastante para ele perceber que se ela estivera a dormir, agora já não o fazia.
Estavam novamente deitados um ao lado do outro, numa cama diferente, e num silêncio diferente. Havia muito que ele podia dizer-lhe, mas muito pouco que não fosse
magoá-la mais. Ela não merecia mais golpes. Naquela guerra, ela era um prisioneiro inocente, não um soldado.
- Lamento ter-vos magoado, e não ter sido mais atencioso disse, virado para as costas dela.
Os ombros dela encolheram-se um pouco. - Provavelmente não se pode evitar.
- Não totalmente, mas...
- Não foi completamente horrível, não vos sintais mal. Típico dela, preocupar-se com ele. Quase se riu, e também
esteve perto de chorar. - bom, fico contente por saber que não foi completamente horrível.
- Mas se viestes aqui fazê-lo outra vez, não me parece que queira.
- Estou certo que não. Não vim aqui para isso.
- Então porquê?
- Para vos dizer que me sinto honrado por vos terdes importado o bastante para o fazer, e para ficar convosco um bocado, se vós o permitirdes.
Ela ficou muito quieta. Tão quieta que até podia ter parado de respirar.
- Permiti-lo-eis?
Ela assentiu com a cabeça.
Ele tocou-lhe no ombro. - Vindes para perto de mim, para eu poder tomar-vos nos braços?
Deu-se uma pausa, como se ela tivesse de ponderar. Virou-se. Ele puxou-a para si.
- Não vos preocupeis. Irei embora antes de os criados estarem por aí.
Ela aproximou-se mais. Ele envolveu-a com delicadeza e deu-lhe um beijo na face. Os seus lábios tocaram em humidade. Ela chorara depois de regressar ao quarto.
Partiu-lhe o coração. Ele apertou-a mais contra si, protetor.
Soube-lhe bem segurá-la assim enquanto ela adormecia. Nunca o tinha feito com uma mulher. Nunca partilhava o leito com as suas amantes ocasionais.
Acolheu com surpresa o prazer do seu calor e da sua suavidade de mulher, apaziguadores até, e não intrusivos como ele imaginara que dormir com uma mulher seria.
CAPÍTULO 19
Ela acordou só, sentindo os aromas do cacau e de lilases. O cacau estava numa mesa ao lado, como sempre desde que ela o provara pela primeira vez da chávena de Daniel.
Os raminhos de lilases estavam pousados mesmo ao lado do seu nariz, enfiados entre duas almofadas.
Uma criada tinha trazido o cacau. Daniel devia ter deixado as flores.
Ela pegou nelas e cheirou-as. Vinham de um arbusto que crescia num canto ensolarado do jardim. Ela imaginou-o a ir lá a baixo, no escuro, para cortar o pequeno ramo.
Ele ficara com ela a maior parte da noite. Ela sentira o seu abraço todas as vezes que se mexeu.
Tinha sido maravilhoso estar assim nos braços de alguém. O contacto prolongado e reconfortante mexera mais com ela do que aquilo que acontecera na cama dele. Durante
uma noite memorável, o vazio do seu coração tinha desaparecido. Sumido. Até a dormir se maravilhara com a sua ausência.
Chegou uma criada para a ajudar a vestir-se. Quando acabaram, Diane escreveu um bilhete apressado à condessa de Glasbury, levou-o para baixo para ser enviado de
imediato, e em seguida foi procurar Jeanette.
Encontrou-a nos aposentos dela, no mesmo cadeirão onde estava no dia anterior. Jeanette parecia tão desgastada e cansada que Diane se perguntou se ela teria sequer
ido para a cama.
- Está a acontecer agora. Agora mesmo - disse Jeanette. - O que está a acontecer?
- O duelo. Esperei que fosse amanhã, ou depois... não tão cedo.
- Tenho a certeza de que estais enganada.
- O chevalier veio. Daniel saiu com ele. Estão a encontrar-se agora. Sinto-o na alma.
- Não acredito, Jeanette. Ele disse-me que recuaria.
O olhar de Jeanette voou na direçáo dela. Examinou-a, muito à semelhança do que havia feito naquele primeiro dia no quarto de porcelana de Paris. - Quando é que
ele disse isso?
Diane sentiu-se corar. - Ontem à noite. Ele prometeu.
- Ontem à noite? Dizei-me, onde foi feita essa promessa? Quando? O rosto dela aqueceu.
Labaredas de entendimento e raiva arderam nos olhos de Jeanette. - Quando fazia amor convosco? Não fiqueis tão surpreendida. Já tinha percebido o interesse dele
por vós. Vi-o desde o início.
- Abanou a cabeça e murmurou uma praga. - Um homem diz o que quer que seja em alturas dessas. Pior, é sincero. Até que a luz do dia aparece e ele, lamentavelmente,
muda de ideias.
- Ele não voltará atrás com a palavra dada.
- Existem promessas mais antigas que ele é obrigado a manter. O meu irmão nunca deixou mulher nenhuma interferir com aquilo que jura fazer. Não recua face a nada.
Se ele vos seduziu com essa promessa, foi uma atitude desprezível da parte dele, e dir-lhe-ei isso mesmo quando ele regressar. - A sua expressão ríspida desfez-se.
- Se regressar.
- Ele não me seduziu. E também não entrará neste duelo. Disse-o com toda a firmeza que conseguiu, para tranquilizar a mulher sentada à sua frente, que parecia chorar
já a morte dele.
Jeanette estendeu a mão, procurando ser reconfortada. Diane agarrou-a e colocou o outro braço por cima do ombro de Jeanette.
- Ontem à noite foi a primeira vez com ele?
- Sim.
- Ele prometeu-me que não procuraria seduzir-vos. Já a pensar no duelo, deve ter-se agarrado a uma oportunidade de viver. Tenho a certeza de que, se assim não fosse,
não teria agido de forma tão desonrosa para convosco.
Diane não estava convencida daquilo. A forma como ele a beijara no ribeiro implicava que ele já desistira de quaisquer garantias que tivesse dado à irmã.
- Temos de decidir o que fareis agora - retomou, após respirar fundo para se recompor. - Direi a Daniel que tem de pôr alguma coisa no vosso nome. O bastante para
conseguirdes casar. Apareceram homens que se fariam vossos pretendente se tivésseis alguma fortuna.
- Não quero casar com nenhum desses possíveis pretendentes. Jeanette deu-lhe palmadinhas na mão. - Neste momento talvez
não. Pensai com cuidado, porém. Vereis que tenho razão.
- Seja como for, depois do que aconteceu com Mister Tyndale, não penso que seja provável haver pretendentes.
- Se o dote for suficiente, haverá, confiai em mim.
- Se o dote for suficiente, o próprio Mister Tyndale casaria comigo. Não gosto da ideia de ser negociada como um artigo usado.
Jeanette ergueu os olhos. Tristeza e compaixão transbordavam deles. - Não tenhais ilusões de que existe a alternativa de um futuro com o meu irmão. Há muito pouco
espaço no coração e na vida dele para o tipo de afeto que uma mulher espera. Ele está fechado a emoções dessas. Ele sabe disso, percebeis? Escolheu que fosse assim
porque qualquer outra coisa iria enfraquecê-lo.
Diane sabia que não havia lugar para ela na vida dele. Contudo, Daniel era muito mais complicado do que Jeanette julgava. Um homem daqueles não teria ido reconfortá-la
nem ficaria com ela nos braços durante a noite toda.
Ela experimentara uma paz maravilhosa, segurança, naquele abraço adormecido. Suscitara uma intimidade especial, que era diferente
da intimidade física de que tinham gozado na cama dele, mas que também lhe estava ligada. Ela queria preservar aquela aura especial. Queria preencher o vazio tanto
quanto a sua memória lho permitisse.
No fundo da sua alma, porém, ela sabia que só conseguiria preservá-la se não procurasse mais. Não queria arriscar-se a descobrir que ele tinha sido motivado por
pena ou por culpa, e não por afeto.
Não queria certamente arriscar-se a fazer amor com ele outra vez. Não conseguiria suportar que o fizessem e, em vez daquela doce intimidade, deparar novamente com
o silêncio vazio e constrangedor.
- Já decidi o que fazer, Jeanette. Penso que devia ir-me embora desta casa. Não haverá duelo, mas haverá comentários. Não quero continuar a viver esta mentira, que
nós somos primos. Não quero ir a festas em que as pessoas vão estar a sussurrar acerca do que aconteceu com Mister Tyndale, ou a perguntar-se o que existe entre
Daniel e eu.
- Para onde ireis?
- vou pedir à condessa que me permita ficar com ela enquanto trato das coisas. vou pedir-lhe para contactar alguns dos amigos que tem no campo e para me dar referências
como governanta. Ou talvez haja uma escola onde eu possa ensinar, que fique longe de Londres. Se eu desaparecer antes de o escândalo rebentar, talvez não seja tão
grande assim. Serei facilmente esquecida.
Jeanette assentiu com a cabeça. - Eu tenho algum dinheiro. vou dizer a Daniel para vos dar mais.
- Não, não posso aceitar dinheiro dele agora.
- Vireis visitar-me? Enquanto estou aqui, antes de regressar a Paris?
- Claro que sim. - Curvou-se e abraçou-a.
Jeanette beijou-lhe a face. - Se ele não voltar, talvez possais regressar a Paris comigo. Prometei-me que pensareis nisso.
- Ele voltará, vereis. Não foi bater-se em nenhum duelo.
Chegou uma carta de resposta da condessa, convidando Diane para a acompanhar numa visita a Laclere Park, a propriedade da sua família no campo. Penelope explicava
que seria impossível encontrarem onde se refugiar em Londres, e apresentava-lhe aquela proposta como uma solução melhor, acrescentando que ela própria sentia alguma
necessidade de se esconder.
Diane foi para o quarto dela e fez as malas. Era mais difícil de fazer do que ela julgara e dispensou a criada, para as suas reações não serem observadas.
Esteve sempre à escuta de sons que anunciassem o regresso de Daniel. O que veria refletido nos olhos dele quando estivessem novamente frente a frente? Suspeitava
que poderia ser muito estranho.
Como reagiria ele à partida dela? Ficaria surpreendido? Recetivo?
Aliviado?
Ela sabia que ele compreenderia que se ela ficasse ali, dependente dele, a situação acabaria por se tornar desagradável. Nem todos os lilases do mundo, todo o amor
do coração dela, conseguiriam fazer daquilo algo diferente do que seria realmente.
A confiança dela na promessa dele vacilava com o passar das horas. Quando desceu do quarto para ir para a biblioteca, já estava muito abalada.
Abriu uma janela que dava para a rua e pôs-se à espera e à escuta com tanta atenção que a cabeça lhe começou a doer. Quanto mais tempo passava, mais a preocupação
aumentava, fazendo-a sentir-se enjoada e doente de apreensão.
Passavam carruagens e cavalos, e ela ouvia cada um deles. Por fim, quando estava quase a desistir, quando tinha começado a chorar a sua perda, parou um cavalo à
frente da casa.
Ela identificou os sons de um moço a levar o cavalo.
Erguendo-se de um salto, correu pelo corredor até ver a entrada.
Era Daniel.
Claro que era. Quem mais seria?
O alívio que lhe acelerara o coração respondeu à pergunta. Ela temera que fosse o chevctlier, trazendo más notícias.
- Ide lá a cima à vossa irmã - disse ela. - Ela está doente de preocupação. Ide agora. Eu fico na biblioteca.
Ele subiu a escadaria. Ela esperou até ver as suas botas desaparecer e depois voltou para a biblioteca.
Reviu o rosto dele quando reparou nela. Tinha as memórias da noite anterior nos olhos, mas também algo mais. Ela reconhecera laivos da velha distração.
Tornou-se mais difícil olhar para ele quando ele entrou por fim na biblioteca, silenciosamente, e fechou a porta.
Agora não havia distração. Os olhos dele ardiam com toda a atenção que ele conseguia reunir. A sua boca era uma linha direita.
- Jeanette está sossegada? - perguntou ela.
- Sim. Louis e eu encontrámo-nos com Tyndale e o padrinho dele. Foi resolvido de forma honrada.
- Vós retirastes o desafio?
- Disse que o faria.
- Não duvidei.
- Uma ova.
A preocupação devia estar-lhe estampada no rosto quando chegara a correr à entrada. -Jeanette está muito aliviada, tenho a certeza.
- Não penso que seja essa a reação dela, de todo. Está estupefacta, contudo. Há muito tempo que não sou capaz de a surpreender, por isso retiro daqui alguma satisfação.
Mas de nada mais. Ele não gostara de fazer aquilo. Ferira-lhe o orgulho, fazer figura de covarde e desistir. Desagradava-lhe que ela o tivesse forçado a fazê-lo.
- Obrigada.
O que lhe deu direito a um olhar sombrio.
- A minha irmã disse-me que ides visitar a condessa.
- Pensei que seria melhor...
- Onde fostes buscar a ideia de que vos deixaria ir embora agora?
Falou como se, mais do que qualquer outra coisa, a ideia lhe parecesse curiosa. Porém, ela não conseguia ignorar a raiva que emanava dele, muito à semelhança do
que acontecera no ribeiro. Ele refreava-a, mas essa contenção vinha apenas intensificar o efeito que surtia no ar, e nela.
Ele aproximou-se dela. - Acabo de ir ter com um homem que desprezo e renunciei a matá-lo porque vós o exigistes de mim, e enquanto eu o fazia, vós fazíeis as malas.
- Agora não posso ficar. Bem sabeis.
- Não vejo porque não. - Ele aproximou-se mais. - A bem ver, agora tendes de ficar.
- Sabeis porque não posso ficar. Estaria errado.
- A noite passada foi errada?
Ele estava a confundi-la, pondo-se assim tão perto dela. A deixá-la baralhada. - Isso foi diferente.
- Talvez penseis que a noite passada não tenha sido errada porque vos destes por uma causa nobre. Para salvar uma vida. bom, se tendes queda para sacrifícios desses,
deveis ficar. Dizei-vos que desta vez o fazeis para salvar a minha alma. Há uma vida inteira de sacrifício nessa empreitada.
Disse-o com ironia, mas o calor do seu olhar e o tom meigo da sua voz contradiziam a leveza que ele pretendia incutir nas suas palavras.
Ela ficou a olhar para ele, incapaz de pensar numa resposta a semelhante desafio. Veio-lhe à mente que seria uma boa forma de o Diabo seduzir as pessoas. Deveras
eficaz, usar as inclinações de uma pessoa para a conduzir ao Inferno.
- Quando tomastes esta decisão de ir embora? - perguntou ele.
- Ontem à noite? Virdes até mim foi o derradeiro ato de amizade?
Ele perturbava-a mais do que nunca, ali a olhar para ela, alto, à sua frente, e a exigir a sua atenção. Tinha dificuldade em pensar direito. A referência à noite
anterior teve como único resultado pôr-lhe o coração aos pulos.
- Antes - respondeu ela. - Depois do ribeiro, e da partida de cartas.
- Porque compreendestes o quanto vos queria? Isso assustou-vos? Ela desviou o seu olhar do dele e colocou alguns passos entre
eles. Não estava a gostar da conversa, nem da forma como ele persistia em esmiuçar os seus motivos e a sua determinação.
- Não pode ter-vos assustado por de mais, se viestes ter comigo ontem à noite.
- Para ontem à noite eu tinha uma razão. Uma boa razão. Ofereci uma noite, porém, não mais. Não vou ser a vossa Margot. Não consigo. Aprendi isso ontem à noite,
pelo menos. Penso que estas coisas são diferentes para as mulheres do que são para os homens. E agora tenho a minha decisão tomada e vós devíeis ter a gentileza
de a aceitar.
Sentiu-o atrás dela, perto de mais. Em seguida as mãos dele estavam nos seus braços e a respiração dele no seu cabelo. Um beijo leve no alto da cabeça fez-lhe disparar
sensações por todo o corpo.
- Não sou tão gentil quanto isso. Não abro mão facilmente daquilo que quero. Nem estou a pedir-vos que fiqueis aqui a viver como minha amante, Diane.
Ela rodou para escapar ao toque dele e encarou-o. - Não estais? Então não quereis... Claro, provavelmente não foi o que esperáveis.. Quereis que fique aqui como
dantes, apenas como dama de companhia de Jeanette...
A resposta atrapalhada divertiu-o. - Agora nunca poderíeis ser apenas a dama de companhia de Jeanette. Jamais. Tenciono voltar a fazer amor convosco, e essa é definitivamente
uma razão pela qual não posso deixar-vos partir. Visto que não sou homem para importunar convidados nem corromper inocentes, há apenas uma forma de resolver as coisas.
Casaremos.
O comunicado deixou-a sem reação.
- É a única solução, Diane.
- Não é. Ambos sabemos que não é.
- Verdade. Podia ter mandado Hampton mudar a tal obrigação para vós terdes acesso imediato ao rendimento. Foram essas as instruções de Jeanette, mesmo agora.
- Agora não poderia aceitá-lo.
- Porque causei o transtorno de continuar vivo? Desgraçada de vós, eu não ter morrido hoje num duelo. Ter-vos-ia garantido um futuro confortável e seguro. Devíeis
ter dado mais peso aos vossos próprios interesses ontem à noite.
- Parai de distorcer o que eu disse. Eu não...
- Não faço tenção de pôr o que quer que seja no vosso nome, apesar da insistência da minha irmã. Não vos facilitarei a partida. Casaremos.
Ela pensou saber a razão daquela prontidão toda. Era a mesma culpa que provavelmente o levara ao quarto dela na noite anterior. Ela teria preferido não ver mostras
dela. - Estou a ver. Decidistes fazer a coisa certa. Compreendo. No entanto, não é necessário. Não esperei...
- Não esperastes nada. Eu sei disso. Não mostra que tenhais grande opinião de mim. Uma jovem tem o direito de esperar algo do homem que lhe tira a inocência.
- Não foi culpa vossa.
- Já recusei ofertas mais flagrantes.
Um casamento por obrigação era a última coisa que ela queria, e logo com este homem, entre todos os homens. - É amável da vossa parte. Muito decente. No entanto,
não penso que devamos fazê-lo. Vós não quereis realmente fazê-lo, e eu também não estou certa de o querer.
- Diane, existem muitas razões para isto se revelar um erro, e a maior parte delas tem a ver com o meu temperamento. Mas deveis fazê-lo, mesmo sem terdes a certeza.
Calará os rumores sobre Tyndale, e sobre vós e eu.
- Também a minha ausência. O meu desaparecimento.
- Já disse que não posso deixar-vos partir.
Ela não gostava que ele continuasse a insistir naquilo, como se controlasse tudo o que se passava. - Sou eu que tenho a palavra final. É uma escolha minha. Não preciso
de dinheiro nenhum da vossa parte para o fazer, por isso não podeis deter-me se eu estiver determinada.
- É verdade. Só posso dar o meu melhor para me certificar de que a determinação não é assim tanta. - Colocou-lhe a mão na face e olhou-a nos olhos. - Tenho de vos
mostrar que está em meu poder garantir que não? Bastou o toque dele para lho mostrar. Sentiu um calor a descer-lhe do pescoço até aos seios, e o olhar dele forçou
o tempo a abrandar. Ela constatou que ele sempre soubera do efeito que tinha nela. A indiferença dele havia-a protegido, fazendo as vezes de um escudo que ele usava
para bem dela, porque ele sabia que ela seria uma presa fácil.
- Estais apreensiva por causa da noite passada? É frequente a primeira vez não ser agradável para a mulher. De futuro não será assim.
Ela sentiu a face corar por baixo da mão dele. Baixou os olhos e encolheu os ombros. Sim, estava apreensiva por causa da noite anterior, mas não da forma a que ele
se referia. A dor fora a parte fácil. - Nem tudo foi desagradável.
- Assim o dissestes. Não foi completamente horrível. Prometo-vos que da próxima vez não será de todo horrível. - Levantou-lhe : o queixo com o dedo, para ela ter
de olhar para ele. - Aceitais a minha proposta, Diane?
A forma como olhava para ela, tão belo e promissor na sua ternura, tão cativante no seu poder misterioso, convenceu-a a pôr de parte o receio.
O coração dela queria aceitar. O seu amor ansiava a euforia. Ambos estavam desejosos de ser arrebatados por ele e pelo feitiço mágico e estimulante que ele urdia
agora.
O seu bom senso não lhe permitia a capitulação total. Sussurrava-lhe que ela em verdade não sabia o que ele lhe traria. Os avisos
de Jeanette ecoavam-lhe nos ouvidos. Navegava em águas desconhecidas. Havia camadas dele que ela ignorava e possivelmente nunca conheceria.
- Estais muito enganada quanto a uma coisa. Não me limito a fazer o que está certo. Eu quero isto. Espero que tenhais falado verdade ontem à noite e que também o
queirais.
Falou com aspereza, como se as palavras fossem difíceis de pronunciar. Parecia que não gostara de o admitir, de fazer aquela declaração, e que lhe fora arrancada
do coração.
Inclinou a cabeça e beijou-a. Foi o beijo mais meigo que ele alguma vez lhe dera. Oferecia cuidado e apoio e sugeria peripécias futuras. Prometia afeto, quiçá amor.
Preenchia-lhe o coração, tal como o seu longo abraço o havia feito na noite anterior.
O beijo sossegou-a mais do que qualquer outra coisa. As profundezas misteriosas e desconhecidas subitamente não importavam. Nem o perigo que ela pressentira enquanto
faziam amor. Independentemente de como tudo se desenrolasse, ela sabia que naquele momento as intenções dele eram boas.
- Aceitais?
Apesar da sensação de estar a dar um passo arriscado, ela assentiu com a cabeça. No meio do torpor que ele criava, parecia a única coisa certa a fazer.
Ele sorriu como se a decisão dela tivesse sido importante para ele. - vou dizer à minha irmã - disse ele, afastando-se. - Iremos para a Escócia, se concordardes.
O casamento será legal e as nossas histórias ambíguas não interferirão. Gostaria que ela e Paul nos acompanhassem e servissem de testemunhas. É aceitável para vós?
- Claro. Contudo, visto que mal perguntastes se o casamento me era aceitável, a solicitude deste novo tratamento é uma surpresa agradabilíssima.
As palavras dela apanharam-no quando ele se encaminhava para a porta. Parou e olhou para trás. - Lamento dizer que provavelmente não durará.
Acabava de lhe ser dado um aviso cordial e ela sabia-o. - Tenho bastante certeza de que não. As pessoas não mudam assim tão rapidamente.
- Não, imagino que não.
CONTINUA
CAPÍTULO 11
Claro que as possibilidades de fabrico não são o meu interesse principal. Sou acima de tudo um cientista.
Gustave acenou com a cabeça em resposta à declaração tranquilizadora e honesta de Sir Gerome Scot. Scot era um colega cientista e impunha-se gentileza. Era também
Scot quem pagava a refeição que Gustave comia agora num clube privado a convite dele.
No entanto, não queria saber de experiências com químicos. Tinha a mente ocupada com outros problemas.
Já estava atrasado. Tyndale queria que fosse rapidamente preparada uma demonstração da descoberta e até então Gustave não havia feito progresso nenhum nos preparativos.
Teria ajudado se pudesse ter sido uma demonstração pequena, como a experiência que levara a cabo em Paris. Mas não, Tyndale queria saltar essa etapa. Queria uma
coisa maior, que pudesse ser usada para obter uma patente e atrair industriais.
Precisava de comprar materiais e químicos. Precisava de encontrar um edifício, fora de mão, que não suscitasse curiosidade a ninguém. Precisava de se movimentar
por Londres discreta e subtilmente.
Scot papagueava em francês, como era o dever de qualquer homem civilizado e educado. Até os criados deste clube exclusivo
sabiam o suficiente para atender ao conforto de Gustave. Infelizmente, uma vez fora dos patamares mais elevados da sociedade deste país bárbaro, ninguém falava francês,
muito menos latim. E Gustave não sabia inglês.
A situação era impossível. Era necessário que descesse consideravelmente no mundo para fazer as coisas funcionarem, mas não conseguia comunicar com os homens que
precisava de abordar.
Scot lançou-se numa entediante explicação de mais um processo químico. Gustave tentou parecer interessado, mas passados cinco minutos algo lhe chamou a atenção.
Entrara um jovem na divisão, vindo de outra sala, que olhou à volta e se dirigiu a uma mesa onde estava um amigo. Era o seu antigo secretário, Adrian Burchard.
Scot notou a distraçáo. Olhou na direção de Adrian e fez um esgar. - Parece deslocado, não parece?
- Sim. O que faz ele aqui?
- É membro. Não se pode exatamente mandar embora o filho de um conde, pois não? Mesmo sendo óbvio que a paternidade é apenas legal.
A notícia foi surpreendente. Adrian nunca dissera ser filho de um conde quando se candidatara à colocação em Paris. Quem imaginaria tal coisa, com aqueles olhos
escuros mediterrânicos.
- Então, a mãe dele... - Gustave ergueu uma sobrancelha muito eloquente.
- Obvio, não é? Foi nobre da parte de Dincaster ter aceitado sequer o rapaz, é o que digo. Bem, é um filho terceiro, por isso são poucas as hipóteses de ser ele
a herdar, imagino eu. Tem o bom senso de ser discreto, não que seja possível com uns olhos daqueles. Tem estado por conta dele desde que saiu da universidade, foi
o que ouvi. Nem um tostão do conde, que é o que deve ser. Faz alguns trabalhos menores para os Negócios Estrangeiros esporadicamente. Secretário e coisas parecidas,
uma vez ou outra. Há no nosso governo quem não ligue por aí além ao verdadeiro nascimento de uma pessoa, lamento dizer. " ofc
Adrian alegara ter secretariado um diplomata qualquer, ou coisa assim. Fora um pormenor que Gustave presumira ser mentira e descurara generosamente.
- Que interessante. - Que útil, de facto.
Gustave duvidava que Adrian tivesse anunciado a alguma pessoa do clube que por vezes secretariava homens menos ilustres do que embaixadores. Não admirava que raramente
saísse de casa em Paris e que passasse os seroes naquele quarto de sótão.
Ficou de olho em Adrian durante o resto da refeição. Calculou o tempo de terminar a sua refeição para coincidir com a do secretário. Fez por sair do clube ao mesmo
tempo que o filho de conde de aspeto estrangeiro.
A expressão de Adrian registou alguma surpresa quando Gustave se reuniu a ele à espera do chapéu. Não houve, porém, menção da sua associação anterior.
Era tudo o que Gustave tinha necessidade de saber.
Seguiu Adrian para a rua e teve de estugar o passo para o apanhar. - Preferis ser mal-educado com o vosso antigo empregador?
- Fiquei surpreendido por ver-vos, foi tudo. Estais a desfrutar da vossa visita?
- Estou ocupado de mais. Penso que fui precipitado em dispensar-vos. Ser-me-ia útil a ajuda de alguém que conhece esta cidade.
- Há muitos secretários e escriturários disponíveis. Se pedirdes aos vossos amigos, eles arranjam-vos um.
- Preciso de um que fale francês.
- Não deve ser muito difícil.
- Preferia alguém conhecido. - Gustave sorriu. - Como vós. Tinham chegado a uma esquina. Adrian parou e voltou-se para
ele. - Não estou à procura de emprego neste momento.
- Não seria oficial. Não seria público - esclareceu Gustave, mostrando-lhe que sabia quais eram as suas verdadeiras apreensões.
Adrian olhou para todos os lados e finalmente para um edifício no outro lado da rua. - Lamento não poder ajudar-vos.
- Seria muito privado. Eu próprio desejo discrição. A nossa necessidade mútua nesse aspeto assegurará a discrição do acordo.
- Lamento. Não posso.
- Acho que podeis. Acho que deveis.
- Devo?
- Certamente não quereis que procure a ajuda de outros cientistas e confidencie que o meu próprio secretário é orgulhoso de mais para me ajudar.
Adrian olhou de repente para ele, incisivo. A sua irritação desvaneceu lentamente, substituída por resignação. - Suponho que possa ajudar-vos, oficiosamente, claro.
- bom. Não é todos os dias. com efeito, depois de se atender a algumas questões, não precisarei muito mais de vós. O mesmo salário, digamos? Quinze dias?
O queixo de Adrian contraiu-se, como se falar de dinheiro fosse um insulto. Ali em Inglaterra, onde se sabia que era filho de um conde, mesmo que de legitimidade
duvidosa, era mesmo.
- Certo. Agora vou prestar-vos um primeiro auxílio, uma vez que precisais claramente dele. Do outro lado da rua está um homem de barba que vos observa desde que
parámos aqui. Provavelmente é um carteirista que vos identificou como estrangeiro.
Alarmado, Gustave deu meia-volta. Assim que o fez, um homem de barba, mal vestido, de casaca e chapéu gastos, começou a descer
a rua.
- Ficai alerta a estas coisas, msieur. Inglaterra tem os melhores ladrões do mundo.
- Miss Albret?
O chamamento veio de uma carruagem que passava na rua. Diane deparou com os olhos perplexos de Vergil Duclairc à janela.
Ao seu lado, na sombra, vislumbrou o perfil perfeito de Julian Hampton, o amigo e jovem advogado de um seleto punhado de clientes que incluía Daniel e a família
Duclairc. Conhecera Mister
Hampton no jantar da condessa, um homem de pungente beleza, dono de uma reserva cristalina. Ela passara o serão inteiro à espera que ele falasse em poesia, caso
se dignasse de todo falar.
Ela continuou o seu caminho, retomando a descompostura mental que dava a Daniel St. John desde o momento em que o vira sair da casa naquele dia de manhã.
Sentiu uma pequena movimentação de cavalos a bater os cascos e a resfolegar. Subitamente, Vergil caminhava ao lado dela.
- Miss Albret, estais só? Quem vos escoltava perdeu-vos de vista? Ficai comigo e eu encontro o criado de St. John.
- Ninguém me perdeu. Tenho uma coisa para fazer e vou fazê-la. E agora um bom dia para vós.
Ela dobrou uma esquina, deixando-o para trás. Ele apanhou-a. - Estais sozinha? Mas não podeis andar a pé sozinha.
- Claro que posso. É o que tenho estado a fazer no último quarto de hora, mais ou menos.
Uma carruagem colocou-se ao lado deles. O veículo de Mister Hampton dera meia-volta e agora acompanhava-os.
Vergil colocou-se à frente dela, impedindo-a de prosseguir.
- Miss Albret, dar-vos-emos a nossa carruagem. O cocheiro levar-vos-á aonde quer que desejais ir. Devo insistir.
Começava a tornar-se severo e autoritário.
Naquele dia ela não estava na disposição de acatar ordens de ninguém, muito menos de um homem.
- Miss Albret, ou ides de carruagem ou aceitais que vos escolte a pé. Uma ou outra deixar-me-ão em sarilhos com o vosso primo, já que ele me avisou para me afastar,
mas, por favor... - Apontou a carruagem.
- Estou a andar porque quero andar. Não consigo impedir-vos de me acompanhar, se persistirdes. Quanto aos avisos do meu primo, ele não ficará preocupado. Provavelmente
sabe que estais arrebatado por uma certa cantora de ópera e não tendes qualquer interesse em
mim. Não que me importe o que Daniel St. John pensa, ou sabe, ou as preocupações que tem.
Vergil pestanejou de surpresa. Se fora espanto pela sua falta de consideração pela opinião de Daniel ou a prova de que toda a gente sabia da sua cantora de ópera,
ela não percebeu.
- Falais com muita franqueza, não falais?
- As minhas desculpas. Mas tenho andado a falar com tanta delicadeza e sensaboria nestas últimas semanas, que a franqueza acumulada hoje de manhã transbordou.
Ele foi até à carruagem e disse algo pela janela. O veículo acelerou e virou na rua seguinte.
Vergil caminhava ao lado dela, tentando protegê-la dos encontroes. - Onde ides?
- Onde me dissestes para ir, a uma das sociedades que seguram navios. Soube de uma chamada Lloyds, na City1.
- Vai ser uma longa caminhada. Seguramente que St. John vos teria levado.
Ela cerrou os dentes. Daniel prometera levá-la "dentro de alguns dias". Tinha sido há duas semanas.
Claro, ele não via necessidade para pressas. Que lhe importava a ele? Não era ele quem estava à deriva no mundo, sem história, sem família, sem casa. Ele não trazia
um vazio no coração que implorava ser preenchido com alguma coisa, com qualquer coisa. Podia dizer-lhe para esperar até não ter absolutamente mais nada que fazer,
o que seria nunca.
Andavam há meia hora quando o vulto de um cavalo os mergulhou na sombra.
- Levastes o vosso tempo a chegar, St. John - comentou Vergil. Diane estacou. O seu olhar subiu pela figura encorpada do animal até ao rígido cavaleiro que tapava
o sol.
1 Área do centro de Londres onde estão concentradas várias instituições financeiras. (N. da T.)
- Não quis passar por cima de ninguém - disse Daniel. - Hampton vem atrás, e se regressardes pelo mesmo caminho deparareis com a carruagem dele. Obrigada, e a minha
prima pede-vos desculpa pela demora que isto vos causou. Não pedis, Diane?
- Não são necessárias desculpas - disse Vergil, afastando-se. Daniel desmontou. - O que vou eu fazer convosco?
- Sair-me da frente, hoje seria a escolha mais avisada. - Retomou a marcha.
Ele acompanhou-a, com o cavalo pela rédea. A multidão afastava-se como o Mar Vermelho à passagem do enorme corcel.
- Uma mulher não anda sozinha em Londres. A minha irmã não vo-lo explicou?
- Vejo imensas mulheres a andarem sozinhas.
- Mas isso é diferente. São pobres e têm de ir para os empregos.
- Também sou pobre e tenho de ir trabalhar. Ele ignorou a primeira parte. - Trabalhar onde?
- vou à Lloyds.
- Ah! Então esta rebelião é o resultado de um amuo por eu ainda não ter tratado disso.
Ela parou e pôs-se de frente para ele, tão furiosa que os seus olhos lhe doíam. - Não troceis de mim. É por isso que aqui estou. E por isso que saí da escola. Não
foi para vos divertir, nem foi pela vossa irmã, por muito que goste dela. Se esperar que vós atendais a isto, ficarei velha primeiro. Se eu não soubesse que sou
completamente insignificante para vós, suspeitaria que me mentistes no jardim para me empatar.
Rodou nos calcanhares e continuou a andar. Ele foi atrás dela.
- Ide-vos embora.
- Devo insistir em acompanhar-vos. As ruas não são seguras e estamos longe de mais para chamar Paul ou outra pessoa.
Ela ignorou o homem que caminhava ao seu lado, ao contrário de todos os outros transeuntes. Os dois, mais o enorme cavalo que seguia ao lado deles, resfolegando
pela rua, atraíam muitas atenções.
- Estamos a dar espetáculo - advertiu Daniel.
- Da próxima vez visto a minha roupa da escola. Quando fazia isso em Paris ninguém reparava em mim.
- Se estiverdes com as vossas roupas da escola, ninguém responderá às vossas perguntas. Na realidade, hoje também ninguém o faria, não fosse o facto de eu estar
convosco.
Podia ter dito logo explicitamente: "Não sois nada sem mim. Eu fiz-vos."
- E o que achais? - ripostou, com os lábios contraídos para controlar a raiva. - Veremos.
A Lloyds ficava na Royal Exchange, que, com o seu pórtico clássico, lhe fez lembrar uma igreja inglesa. O espaço interior imenso e quadrado, repleto de mercadores
e homens de negócios, estava ladeado de mercadorias. Daniel pegou-lhe no braço para ela não ser engolida pela multidão e fê-la subir alguns degraus até uma sala
cheia de homens.
- É a Lloyds - disse. - Os corretores estão naquela parede. vou apresentar-vos a Thomson. Ele conhece-me.
Ela não se refugiou à sombra de Daniel, por muito que quisesse. Acercou-se da secretária de Mister Thompson com toda a distinção que conseguiu e olhou o empregado
diretamente nos olhos.
O jovem ficou corado, começou a gaguejar e deixou cair a caneta ao chão quando ela lhe sorriu.
Diane olhou de lado para Daniel, deparando-se com Daniel a fazer-lhe o mesmo.
Mister Thompson teve imenso gosto em rever Daniel. Daniel apresentou-a e tentou impor a sua autoridade na entrevista, mas ela exigiu a atenção de Mister Thompson
com mais um sorriso.
Ele deu-lha de bom grado. Por baixo dos esparsos e grisalhos fios de cabelo, o seu couro cabeludo ruborizou-se. Esquecendo a presença impositiva de Daniel St. John,
aguardou o pedido de Diane com um sorriso radiante.
- Procuro informação sobre um parente meu, Jonathan Albret. Esteve nos transportes marítimos há alguns anos, à volta de quinze.
Espero que, se a vossa sociedade tiver segurado algum dos seus navios, possais ter algo que me ajude na minha busca.
- bom, certamente que podemos ver o que temos. Posso pedir aos nossos escriturários que verifiquem e que vos enviem informação.
- Seria possível fazê-lo agora? Ficar-vos-ia muito grata. Há mui-
tos meses que procuro.
Daniel soltou um suspiro. - Mister Thompson está muito ocupado...
- Não tão ocupado que não possa ajudar uma senhora em apuros. - O rosto de Mister Thompson converteu-se numa máscara de simpatia. Deu ordens ao escrevente e uns
enormes tomos encadernados começaram a dar entrada.
Mister Thompson inclinou-se por cima do ombro dela para explicar como eram registadas as entradas. - Sabeis os nomes dos navios ou dos comandantes?
Ela olhou para Daniel, que abanou a cabeça.
- Não, só o nome do dono.
- Ah, isso torna as coisas mais difíceis. Temos de examinar esta coluna, mas assim não há uma ordem. Tomai, ficai com este, e eu ficarei com o outro e o meu empregado
fará o terceiro.
Diane ofereceu um sorriso de gratidão ao seu rosto muito próximo. Até as entradas do homem ficaram vermelhas.
- Mister St. John, se tiverdes outros assuntos a tratar na cidade, tenho a certeza de que Mister Thompson e o seu escriturário me assistirão - disse Diane.
- Não receeis, St. John, vossa prima estará a salvo connosco.
- Ficarei aqui - foi a resposta firme.
Eram só três tomos, por isso ele limitou-se a sentar-se numa cadeira ao pé da janela enquanto Diane e os seus dois deslumbrados assistentes os folheavam.
Duas horas mais tarde, Diane tinha provas irrefutáveis de que o seu pai não segurara navio algum através da Loyds durante os seis anos que precederam o seu desaparecimento.
Entrara na Royal Exchange temerária e confiante, certa de fazer progressos. Agora, ao fechar o pesado volume encadernado, apoderou-se dela um desalento profundo.
Mister Thompson reparou. - Lamento muito. Podemos prócurar mais para trás se quiserdes.
- Não, obrigada.
Os dois homens olhavam para ela com a expressão de quem cortaria uma perna para a poupar àquela infelicidade. O que só a fez sentir-se culpada pela sua pequena sedução.
- Vinde, Diane. - A voz de Daniel estava mesmo por trás dela. Ela não queria olhar para ele. Provavelmente estaria aborrecido
por ela ter causado tantos incómodos para coisa nenhuma.
Forçando-se a engolir a desilusão que sentia, dizendo a si própria que havia outras sociedades de seguros e que isto não ditava o fim da sua esperança, aceitou que
ele a acompanhasse até à rua. Quando ele estava a desatar as rédeas do cavalo, viu-lhe o rosto.
Não era irritação. Era outra coisa, o que lhe endurecia a expressão e lhe ardia nos olhos.
Caminharam para oeste em silêncio. Ela sentiu-se aliviada. Era desilusão a mais para responder a qualquer admoestação com a atitude determinada que tivera duas horas
antes.
De qualquer maneira, conseguia praticamente ouvi-la. Era o tom indiferente das velhas perguntas da escola. Estais satisfeita agora? Bastar-vos-á for uns tempos?
Chega terdes desperdiçado a tarde de três homens na vossa demanda?
À medida que se aproximavam de Temple Bar, o caos e o ritmo das ruas mudaram bruscamente.
As pessoas caminhavam um bocadinho mais depressa. Os pobres e os plebeus iam em massa na direção do rio enquanto as carruagens e as pessoas mais bem vestidas se
apressavam a ir na outra direção. Daniel parou e espreitou pela rua estreita, inclinando a cabeça.
A brisa trazia um burburinho vago.
- Outra manifestação - disse Daniel. - Perto do Parlamento. A sessão de hoje deve ter começado. - Ele pegou no braço dela e
voltou pelo caminho que acabavam de percorrer. - Teremos de ir por outro caminho. Infelizmente, isso quer dizer que passaremos por uma parte da cidade pouco agradável.
Depararam com uma travessa calma, sem ninguém. As lojas tinham fechado as portas.
Daniel conduziu o cavalo até uma pedra de montar. - Não há como prever o que encontraremos. Será melhor se formos a cavalo. Subi para a pedra e eu ajudo-vos a subir,
para trás de mim.
Ela pôs-se em cima da pedra. - Nunca andei a cavalo.
- Então o dia de hoje será o primeiro em muitas coisas, não é verdade? - Ele montou e depois inclinou-se para ela. - A primeira vez que andais a cavalo e a primeira
vez que usais os vossos encantos até terdes dos homens aquilo que quereis. - A expressão dele voltou a endurecer ao dizer a última parte.
O braço dele rodeou-lhe a cintura, numa proximidade desconcertante. - E também a primeira vez que tendes as pernas em exibição para Londres inteira ver. Isto só
funcionará se puxardes a saia para cima, já que tendes de montar com uma perna para cada lado. Fazei-o agora e eu puxo-vos.
Ela obedeceu. Meia-volta e estava atrás dele. A saia subiu-lhe, amarfanhada, até aos joelhos.
- Cobri-vos o melhor que conseguirdes com a vossa capa. Depois segurai-vos a mim para não cairdes.
Ela resistiu à última ordem, preferindo agarrar a parte de trás da sela.
Quase caiu, e o animal ainda mal começara a andar. Hesitante, colocou os braços à volta do corpo de Daniel.
Não era um abraço. Nem por isso. No entanto, a ligação, o calor, inebriaram-na por completo. Tal como o abraço de despedida de Madame Leblanc, na escola, a deixara
sem fôlego, tal como o trato de Daniel na carruagem a deixara vulnerável, estar agarrada a ele, mesmo sem intimidade, provocou uma reação imediata.
O vazio tomou conta dela e depois gritou de alívio, quase gemendo, sentindo o afluxo do mais doce, mais humano, contentamento.
Vede, não estais completamente só, sussurrou o seu coração. Há outras maneiras. Outros lares, e outros amores, para além dos da família.
Fora avisado regressarem a cavalo e não a pé. Passaram por ruas de mau aspeto. As pessoas que nelas perambulavam estavam agitadas pela manifestação na qual nem sequer
tinham participado. Daniel passava a trotar a um ritmo rápido, ignorando os gritos atirados na direção deles.
Subitamente, parou o cavalo. Espreitando por detrás do corpo de Daniel, ela viu que se formara uma multidão na rua à sua frente. Daniel virou a montada, mas também
não paravam de chegar pessoas ao cruzamento que acabavam de atravessar.
Praguejando baixinho, voltou a virar e avançou a trote. - Deve ter havido violência perto do Parlamento. As notícias correm. Agora segurai-vos bem.
Ela agarrou-se muito bem. A fealdade das expressões dos rostos à sua volta convertia a humanidade do grupo na ferocidade de uma multidão. Lembrou-se do ataque à
saída da ópera, em Paris, e preocupou-a que alguns daqueles pobres diabos pudessem ter facas.
Valendo-se da corpulência do cavalo, Daniel abriu caminho. Alguns homens tentaram não se desviar e só saltaram para o lado no último minuto. Choveram pragas e obscenidades.
- Porque estão eles irritados connosco? Não estamos no governo.
- Estão irritados com qualquer pessoa que possa comer sem contar os tostões que lhe sobram.
De repente os rostos que os olhavam com desprezo não pareciam tão falhos de humanidade. - Se estão com fome, imagino que isso desculpe o comportamento deles.
Ele virou para ela uns olhos inflamados. - Não há desculpa.
Nesse preciso momento, um homem agarrou a cabeçada do cavalo. Outro agarrou no tornozelo exposto de Diane, que, horrorizada, o tentou sacudir, conseguindo apenas
que ele começasse a rir-se. "í
Grunhindo, Daniel deu-lhe um pontapé com tanta vontade que o homem voou e caiu de costas na sarjeta.
Diane viu por instantes o rosto de Daniel enquanto ele reagia à ameaça. Por um momento ele pareceu tão duro e cruel, tão primitivo e implacável, que ela quase o
largou e se virou para trás. Depois pestanejou e aquele aspeto desapareceu tão rápido que ela se perguntou se o teria imaginado.
Daniel passou o cavalo para um ritmo mais rápido. A multidão afastou-se. Não houve mais desafios.
Em breve a multidão rarefez-se e desapareceu, juntamente com a pobreza dos edifícios. O ruído surdo e familiar ainda vogava na brisa, mas todas as outras provas
de desassossego tinham cessado.
- Tendes de descer agora - instruiu Daniel, parando o cavalo.
- Outras pessoas não devem ver-vos assim.
Fizeram a pé o resto do caminho até à casa dele. Ele não disse nada, mas ela sentiu que ele queria fazê-lo. Não eram coisas agradáveis, disso tinha a certeza. O
seu silêncio tinha uma nota áspera.
- Vinde ao escritório, por favor.
Ela sentiu-se como se sentia na escola, quando era chamada ao gabinete da diretora. Detestava sentir em si aquela reação. Melindrava-a estar em tão grande desvantagem,
e nem sequer saber porquê, ou o que era que ele esperava dela.
Pelo menos ele não se sentou atrás da escrivaninha e não a examinou como se fosse uma aluna malcomportada. Em vez disso, pôs-se à janela e, como fazia tantas vezes
na presença dela, olhou para fora, em vez de olhar para ela.
O que também não lhe agradava nada.
- Sei que ficastes infeliz com o dia de hoje. Lamento. - Parecia suficientemente sincero. Então porque sentia ela que ele não o lamentava completamente?
- Talvez não devais persistir muito em procurar parentes perdidos, Diane. A desilusão... sois jovem e tendes uma vida a construir. O passado consegue ser uma grilheta,
e vós fostes poupada a isso.
- Vós não compreendeis.
- Penso que sim, melhor do que pensais.
- Se compreendêsseis nunca chamaríeis grilheta ao passado, como se aprisionasse uma pessoa.
- Pode fazê-lo.
- Então eu quero grilhetas dessas. Quero estar presa a uma família, boa ou má. Quero poder dizer que o meu avô viveu nesta cidade e que o meu tio tinha aquele ofício.
- Ela ouvia ressentimento e súplica na sua voz, mas não conseguiu deter nem um nem outro. - Quero saber que alguém se importava comigo quando nasci e que ficou triste
por me deixar e que pensava em mim às vezes. Quero saber que tenho algures um primo ou uma tia que se pergunta o que terá sido feito de mim.
A sua declaração ressoou pela sala. Ecoou durante algum tempo até ser engolida pelo silêncio.
- É tudo? Quero sair.
Ele voltou-se. - Não, não é tudo. Não deveis voltar a sair sozinha.
- Em Paris combinámos que podia continuar a fazer aqui o mesmo que lá.
- Eu não sabia que andáveis sozinha em Paris. No futuro levai escolta.
-Já acabámos?
- Não. Parece-me que nestas últimas semanas haveis descoberto o poder que uma mulher bonita tem. Contudo, a forma como brincastes com Mister Thompson e o empregado
hoje foi ousada de mais.
- Não foi nada ousada. Foi muito subtil. Já vi duquesas fazer bem pior.
- Não sois uma duquesa de quarenta anos.
- Não, sou uma órfã de vinte sem um tostão. Se um sorriso abre os livros dos Mister Thompson do mundo, é um preço pequeno a pagar, com a única moeda que tenho.
- Eu ter-vos-ia aberto os livros.
- Preferi fazê-lo eu própria. Dizei, msieur, o nosso acordo produz os resultados que esperáveis?
- O que quereis dizer?
- Atraio as atenções que esperáveis? Travais conhecimento com os homens que queríeis conhecer? Faz-se negócio nos serões de cartas e clubes? O investimento que fazeis
em mim traz-vos resultados?
- Que coisa para se perguntar. Às vezes espantais-me.
- Prefiro-vos espantado a ter-vos a encher-me os ouvidos. Se tudo se passa como queríeis, não penso que os vossos sermões sejam apropriados. Contai os vossos ganhos
e deixai-me colher os meus.
Ela saiu, e a cada passo aumentava a pequena fúria que sentira quando ele a confrontara na rua. Chegou à escadaria praticamente a tremer de frustração e com uma
sensação inexplicável de ter sido insultada.
Estavam dois vasos orientais colocados no remate dos corrimões. Ao contrário dos que estavam no seu quarto de Paris, estes eram rosa e verdes, cobertos de flores.
Olhou para eles, ali no seu poiso para todos verem, proclamando o gosto urbano do homem que os detinha.
Que a detinha a ela, de certa forma.
Pegou num dos vasos. A fineza da porcelana proclamava a proeza do artífice, a par da sua decoração.
Tomando-lhe o peso, deleitou-se com a sensação.
Caro. Perfeito. Um objeto de singular beleza.
As suas mãos libertaram-no. Desfez-se em pedaços no chão de mármore.
O som ecoou até ao corredor. Abriram-se portas de onde saíram criados boquiabertos. Daniel emergiu da biblioteca, curioso.
Ela estava no meio dos estilhaços, mal conseguindo conter uma euforia insolente.
Os criados desviaram o olhar de Diane para Daniel.
Ele aproximou-se com uma expressão estranhíssima no rosto. Apontou para o vaso partido.
- Era um Ming.
- Dais nomes aos vossos vasos?
- Dinastia Ming. com pelo menos trezentos anos. O par não tinha preço.
- Dissestes-me para partir um. Todos os dias, se quisesse.
- Eram os do vosso quarto.
- Importa?
Ele voltou para a biblioteca com uma expressão de indulgência.
- O simples facto de terdes partido alguma coisa é o que importa. Não me augura nada de bom, pois não?
CAPÍTULO 12
Ainda não terminaram, senhora. Conto que demore pelo menos mais uma hora. - O lacaio falou pela janela do cocheiro e o rosto desapareceu em seguida.
Penelope olhou para Diane, desculpando-se. - Espero que não vos importeis de esperar por eles.
- Claro que não. - Era o que a condessa tinha de mais desconcertante. Apesar de ter tomado como amiga a obscura prima de um armador, agia como se Diane não devesse
estar grata e até tivesse algum direito a importar-se.
- Eu cá importo-me. Mas não com este atraso. Se o meu irmão me pedisse para esperar a tarde inteira, não poderia queixar-me. No entanto, vexa-me ser tão cobarde.
Incomoda-me que o conde tenha o condão de me fazer isto, mas o medo deixa-me paralisada.
- O simples facto de irdes à festa mostra que não sois covarde. Estavam a caminho de uma festa em casa de Lady Pennell, no
Essex. Penelope combinara parar ali em Hampstead, naquela casa antiga, para se encontrar com o seu irmão Vergil e viajarem juntos. Em circunstâncias normais, a condessa
não teria necessidade daquele aparato todo, mas a festa poderia tornar-se muito constrangedora. O seu marido, o conde de Glasbury, estaria lá. A sua família
reunia-se em peso para a apoiar. O irmão mais velho, o visconde Laclere, também planeara ir até lá para estar ao lado da irmã.
- Podíamos assistir - sugeriu Penelope. - É uma academia de esgrima, cujo dono é o chevalier Louis Corbet. Dizem alguns que é a melhor de Inglaterra, apesar da fama
da de Angelo, em Bond Street. Lá é um desporto. Aqui diz-se que o chevalier a ensina como se fosse para combater na guerra ou em duelos. Podíamos dar uma espreitadela.
- É permitido? As mulheres assistem no tal Angelo?
- Claro que não. Descobri, porém, que depois de uma mulher deixar o marido, pouco mais há que possa fazer que realmente choque alguém.
Diane notara há já algum tempo que Penelope considerava que a sua nova liberdade merecia um pouco de censura pública. Não que ela explorasse realmente essa liberdade.
Ao contrário de algumas mulheres, que sem pudor adotavam amantes, os pecados de Penelope eram de natureza diferente. Ela misturava-se com pessoas com que normalmente
uma condessa não se misturaria, e fazia seus amigos outros que tinham caído muito mais baixo do que ela.
Segundo Jeanette, a condessa maculava-se sem redenção possível. As pessoas importantes mais facilmente perdoariam um caso com um homem casado do que perdoariam amizades
democráticas. Era apenas uma questão de tempo até algumas das salas que ainda se abriam para a condessa começarem a fechar.
Tomando a dianteira, Pen encaminhou-se para a entrada da casa e empurrou a porta devagar. Seguiram o barulho de aço sobre aço até uma câmara grande que ficava a
seguir ao vestíbulo. Espreitando pela ombreira da porta, como crianças a espiar no baile, viram três pares de homens em duelo de espadas.
- Parece muito perigoso - sussurrou Penelope, - Nem sequer utilizam camisas acolchoadas. Um movimento em falso e há sangue.
Diane não considerara o perigo que as roupas deixavam adivinhar. Só reparara na falta delas. Não só eles não usavam camisas
acolchoadas, como não usavam camisa de todo. A sala parecia girar com as imagens de seis torsos nus e fortes.
Ela nunca vira nenhum na vida.
- Não pensei que o vosso primo estivesse aqui - desculpou-se Penelope. - O homem grisalho com quem se bate em duelo é chevalier Corbet.
Diane distinguira logo Daniel. Ele estava de frente para elas, mas toda a sua concentração estava no adversário, tal como era devido.
- Ele e o chevalier são claramente os mais capazes. Os movimentos do meu irmão são menos audazes. São mais estudados.
Diane não reparava nos diferentes níveis de perícia. Não conseguia desviar a atenção de Daniel. Ele estava muito atraente. Ao contrário dos rostos dos homens mais
novos, onde o esforço era visível, o dele permanecia calmo, quase frio, ao corresponder ao ataque do chevalier.
Tinha um aspeto magnífico. Forte e confiante, esbelto e musculado e... maravilhoso. Um brilho suavíssimo cobria-lhe a pele e músculos retesados delineavam-lhe os
braços, os ombros e o peito. Não era o homem maior da sala, mas não havia como não reparar que cada centímetro dele estava perfeitamente trabalhado e era potencialmente
perigoso.
O olhar dela deixou-se ir até àqueles músculos, fascinado com a sua solidez esculpida. A forma como o tronco dele se estreitava até às ancas atraía inexoravelmente
a sua atenção. Sentiu uma excitação percorrê-la, e memórias proibidas das suas carícias na carruagem invadiram-lhe a mente.
Qual seria a sensação de pousar a palma da sua mão naquele peito? Parecia tão robusto, mas com certeza que a pele seria quente , e macia...
- Diabos, Pen, que fazeis aqui? - O grito de Vergil Duclairc arrancou Diane às suas vergonhosas especulações.
Tinham reparado nelas.
Os combates cessaram imediatamente. Vergil e três outros homens apressaram-se a ir buscar as camisas.
Daniel não. Olhando para a entrada, baixou a espada. O seu olhar captou o de Diane antes de esta conseguir esconder-se atrás do umbral.
Ela sentiu o rosto aquecer. Algo no olhar dele sugeria que soubera que ela estava lá. Tal como ela vira a reação dele no espelho da modista, ele vira a sua, apesar
de ter a atenção na espada do chevalier.
Ao contrário de Vergil Duclairc, ele deixara-a olhar.
A expressão dele não mostrava nem constrangimento nem choque. Os seus olhos limitavam-se a constatar o que ela via, e o facto de não ter desviado o olhar. Como ainda
não tinha feito.
- Céus, Pen, que tínheis na cabeça? - Vergil apareceu subitamente à frente delas, tapando a vista. A camisa apenas lhe pendia dos ombros, um simples recurso para
esconder a nudez.
Ao lado dele estava um jovem de beleza perfeita de cabelo castanho e sorriso vencedor. Devidamente vestido, estivera comodamente recostado num banco num dos lados
da sala.
- Não fazia ideia de que esgrimíeis sem roupa - justificou Pen.
- Só em jogo de combate defensivo. É para nos acostumarmos à vulnerabilidade. - Mas sois vós quem tem de dar explicações, não eu.
- Apenas estávamos curiosas sobre a prática. Ainda bem que não estáveis completamente nus, como nas métopas gregas de Elgin. E pensar que eu sempre presumira que
se tratara de liberdade artística por parte do escultor.
Vergil suspirou, exasperado. - Sabeis muito bem que devíeis ter saído imediatamente. Além do mais, trazer Miss Albret...
Penelope olhou para Diane. - Oh, Céus, fui descuidada. Vamo-nos embora agora e esperamos na carruagem. Não vos apresseis por nossa causa. Insisto. Terminai como
havíeis planeado.
Pegando em Diane pelo braço, Penelope dirigiu-se para a entrada do edifício. - O Vergil consegue ser um tanto retrógrado.
Sempre fez parte dele, mas piora à medida que vai envelhecendo. Não sei onde foi buscar isso, uma vez que a nossa família não é conhecida por coisas dessas. É mais
o oposto. Ele é bem-intencionado, mas consegue ser cansativo.
- Concordo, Pen. Tendo acabado de ouvir uma repreensão que durou o caminho todo até aqui, devo dizer que essa característica de Vergil se desenvolveu consideravelmente
desde a última vez que o vi. Apesar de ser escandaloso da vossa parte andardes assim a espreitar.
A resposta veio de trás delas. Diane olhou para lá para ver o belo jovem que as seguia. A nota de humor nos seus olhos límpidos sugeria que ele considerava os comportamentos
escandalosos muito divertidos.
No pátio, Pen deu-lhe um abraço e um beijo. - Diane, este é o meu irmão mais novo, Dante. Só tem dezoito anos, mas já viveu uma vida inteira de tribulação. Fiquei
surpreendida por vos ver ali, Dante. Foi gentil da vossa parte sairdes da universidade para virdes até cá apoiar-me.
- E com satisfação que vos apoio, mas confesso que tive pouca escolha no que respeita à parte de vir até cá.
O semblante de Pen mudou. O seu suspiro pareceu tão exasperado como o de Vergil fora. - Estais a dizer que fostes suspenso? Outra vez, Dante? Não admira que Vergil
resmungasse. O que foi desta vez?
- Algo de somenos importância. - Dante indicou Diane com o olhar, para lembrar à irmã que tinham companhia.
- Visto que temos algum tempo antes de irmos embora, vou dar um passeio no parque - anunciou Diane.
Pen estava completamente absorta com o irmão mais novo e não objetou quando Diane se afastou. A última visão que teve deles, ao virar a esquina da casa, foi de Dante
a falar com uma expressão algo envergonhada e Pen a resmungar.
Diane já avançara bem no bosque quando reparou que nunca antes passeara no campo. A escola localizava-se nos arredores de Rouen, mas a sua envolvência dificilmente
se diria rural. As saídas tinham sido para ir à cidade, que não ficava longe. Em Paris, e agora em Londres, ela usufruíra dos parques, mas sem se aventurar para
lá das áreas cultivadas. Esta casa de Hampstead podia não estar rodeada de quintas, mas havia muita terra e tanta vegetação que o cenário parecia rural.
Andou por caminhos, surpreendida por a experiência não a assustar mais. As pessoas falavam da Natureza como sendo um lugar de transformação. A ela, pelo contrário,
parecia-lhe bastante familiar. Talvez por a Natureza ser silenciosa e solitária, e o seu coração estar muito acostumado a ambas as coisas.
Não completamente silenciosa. O estrondo de disparos rasgava o sossego a intervalos regulares. Não muito longe, alguém andava atrás de caça.
O que também não a deixou sobressaltada. Ela soube logo o significado do som. Soube que pertencia àquele sítio e que ela não devia aproximar-se.
Virou por outro caminho e viu uma clareira mais à frente. Ao aproximar-se do intervalo nas árvores, deparou com uma casa rústica.
Parou. A imagem daquela casa, rodeada por aqueles troncos e ramos vacilantes, era-lhe tão familiar que ficou sem respiração. Teve a estranha sensação de já ter vivido
aquele momento.
Não era a primeira vez que tinha aquela sensação inusitada. Ela sabia que todas as pessoas a experimentavam por vezes. Mas esta foi mais distinta do que qualquer
outra. Acreditava que, se lho pedissem, conseguiria descrever completamente a casa sem ver o resto.
Tentou fazê-lo. Quando a sua cabeça lhe falhou, quando não surgiram os pormenores recônditos, ela riu-se de si própria e continuou a andar.
A velha casa de telhado de colmo, de paredes revestidas e vigas de madeira, parecia bem cuidada. Alguém vivia lá.
Como se chamado pela sua curiosidade, a porta abriu-se e saiu de lá um homem de idade. As suas roupas eram simples mas estavam limpas, a sua barba comprida e branca.
Reparou nela.
- O chevalier agora aceita mulheres para as lições? - A ideia fê-lo soltar uma risada, a caminho do poço com um balde na mão.
- Estou apenas de visita. Não estou a aprender a usar a espada.
- Falais como ele. Francesa, certo? Não se vê muito mulheres por aqui.
Ela aproximou-se. A sensação de estar reviver alguma coisa intensificou-se. - Quem sois?
Ele olhou surpreso para ela e depois riu-se. - Sou George. Cuido dos terrenos o melhor que posso com estas pernas. Passei aqui a maior parte da minha vida, ainda
antes de o chevalier vir para cá. Diacho, estava aqui quando passou para aquele marialva antes de Corbet. Perdeu-os ao jogo, sim, e eu já estava a ver. Como vejo
aqueles rapazolas que vêm para os duelos deles a perder, provavelmente, a maior parte do que têm em mulheres e cartas. - Deu à manivela até o balde emergir do poço.
- Uma pergunta arrojada merece outra. Quem sois vós?
Uma profunda desilusão abriu-lhe o peito. - Não sou ninguém.
- Saiu-lhe antes de dar por isso, a resposta nascida do particular desalento que subitamente lhe partiu o coração.
Diane deu meia-volta, para se afastar daquele sítio que a fazia sentir-se tão estranha e perdida.
- Sabeis o caminho de regresso? - perguntou George.
Ela parou. Não prestara muita atenção aos caminhos por onde viera. Fora descuidada.
- Que sorte não vos terdes perdido. Ide pelo primeiro trilho que sai para a direita. Leva-vos ao limite do bosque e é só seguir por ele até à casa. Há outro caminho,
mais rápido, mas esse é o melhor de seguir. Mas ide pelas árvores deste lado do campo. Esses disparos que ouvis é um dos rapazes a praticar com a pistola do outro
lado.
- Pensei que fosse caça.
-Já não se anda muito à caça por estas partes. Demasiada construção. Costumava ser campo, mas a cidade está a tomar o espaço.
Ela agradeceu e seguiu o caminho que ele indicara. Na curva para contornar o campo, o sol dissipou a sensação de déjà vu.
Não conseguia ver a casa, mas ia na sua direção, segundo as indicações de George. Umas poucas flores precoces salpicavam o pequeno campo. Quando chegasse o verão,
cobri-lo-iam por inteiro.
Perguntou-se se conheceria o chevalier. Se sim, talvez ele a convidasse para uma nova visita. Imaginou-se a correr descalça ao sol naquele prado. A fantasia era
tão vívida que ela sentiu a erva e a terra sob os pés.
Os tiros tinham parado, mas subitamente um estalido rompeu o silêncio. Ao mesmo tempo, sentiu um silvo ténue perto da orelha. Um baque à sua esquerda fê-la virar
a cabeça em sobressalto e gritar.
Estacou, aturdida. Precisou de vários instantes para compreender a razão da sua reação.
Acabava de passar por ela uma bala.
Desceu-lhe pelo pescoço um arrepio de medo. A mesma sensação de choque que experimentara a seguir à ópera imobilizava-a agora.
Apareceu um homem do outro lado do campo. Viu-a e desatou a correr. À medida que ele se aproximava, Diane via apenas cabelo louro e um rosto consternado.
- Estais ferida? Acertou-vos? -As perguntas gritadas aproximaram-se com ele.
Não tinha a certeza. Achava que não. Abanou a cabeça.
- Graças a Deus. Uma lebre assustou-me e a minha pontaria falhou. Nunca anda ninguém nestes terrenos, por isso quando vos ouvi o meu coração parou.
Ela recuperou a compostura. - Estou bastante bem. Não acho sequer que tenha passado perto. Gritei porque me assustei, foi tudo.
Ele suspirou de alívio. - Por favor, deixai-me acompanhar-vos até à casa. As apresentações formais terão de aguardar, mas o meu nome é Andrew Tyndale, e nunca me
perdoarei pelo meu descuido.
Ele parecia robusto e honesto, um cavalheiro. Já sem a preocupação no rosto, a sua expressão era contrita e preocupada. Diane calculou que tivesse quarenta e muitos
anos.
Permitir-lhe que a acompanhasse pareceu-lhe uma opção sensata. - Agradeço-vos, sim. Estou um pouco abalada, confesso.
Enquanto caminhavam, silenciosos, ela olhou disfarçadamente para ele algumas vezes. Era um homem atraente, de maxilares fortes e olhos azuis encovados. O seu semblante
dava mostras de abertura, como se não houvesse muito a disfarçar. Pareceu-lhe que deveria ter sido deslumbrante quando era novo. O cabelo louro ao estilo romano
e o corte elegante do casaco sugeriam que ainda considerava sê-lo.
Ela travara conhecimento com muitos homens da idade dele desde que saíra da escola. Alguns ignoravam o correr dos anos e fingiam ser ainda jovens, e passavam por
tolos em vez de inteligentes. Outros resignavam-se tanto ao passar do tempo que bem podiam estar já nos sessenta. Andrew Tyndale parecia ter conseguido um equilíbrio.
Envergava a sua maturidade com franqueza, mas a sua boa forma e elegância anunciavam que ainda não tinha passado o seu tempo.
Ele sorriu-lhe. Era um sorriso caloroso. Conferia ao seu rosto um semblante que inspirava confiança. - Como disse, as apresentações formais terão de aguardar, mas,
uma vez que quase vos matei, posso saber o vosso nome?
- Diane Albret. - Pronunciou o "t", como fazia desde que chegara a Inglaterra. Sempre na expectativa de que alguém reconhecesse o nome se o pronunciasse daquela
maneira. Para reivindicar a sua verdadeira proveniência, também tentava purgar o seu discurso de palavras francesas e do seu sotaque, mesmo sendo um e outro considerados
muito elegantes naquelas partes.
- Sois francesa? - perguntou, indicando, como George antes dele, que o sotaque ainda a denunciava.
- Sou inglesa, mas cresci em França.
- Estáveis longe de casa durante a guerra, então.
Sim, muito longe de casa. Ela não sabia porquê, mas sentiu que ele acolheria de bom grado as suas confidências sobre o assunto. Estaria muito mais interessado no
significado que aquilo tinha tido para ela do que Daniel estivera.
- Sois parente do chevalier?
- Não, estou aqui com Lady Glasbury.
- Ah! Agora sei porque me pareceis familiar. Penso que vos vi com ela no baile de Lady Starbridge, na semana passada. A condessa é amiga do chevalier.
- Não me parece. Estamos à espera que o irmão dela acabe o treino.
- Deveis referir-vos a Vergil Duclairc. Da Sociedade de Duelos de Hampstead. É o nome que deram a eles próprios. Não é sociedade de esgrima, mas sim de duelos. Praticam
para um desafio que nunca há de vir, e fingem ser corsários.
- Não sois membro, parece-me.
- Sou velho de mais para me deixar encantar por fantasias.
- Mas também frequentais a academia do chevalier?
- A sua perícia é insuperável, e usa o sabre militar, que eu prefiro. Gosto que ele treine sem as camisas acolchoadas. Ao contrário dos jovens que lá estão agora,
contudo, não tiro a camisa e trago uma lavada para vestir depois de terminado o treino.
Ele riu com a piada que acabava de dizer. Ela quase o fez também, mas só até se lembrar que assim indicaria que os vira sem as camisas.
- O dia está bonito e o campo muito agradável - disse ele, oferecendo-lhe um sorriso paternal. - Vamos atravessá-lo e ir para a casa pelo caminho do bosque do outro
lado. Há um riacho adorável onde se vêem crocos floridos.
- Não vai começar mais ninguém a atirar, pois não?
- Não, e eu sei como ficar fora de alcance se o fizerem.
Ela sentia-se muito segura com ele, ainda que ele quase a tivesse alvejado. Queria atravessar o campo, por isso anuiu.
com a saia a roçar pela erva seca, concluiu que gostava da companhia de Andrew Tyndale. Poderia um dia ter caminhado assim com o pai se ele não estivesse morto.
Andrew Tyndale não a assustava minimamente, sendo tão velho, nem a deixava perturbada. Tratava-a como trataria uma sobrinha ou uma filha.
Não criava pequenas eternidades nas quais ela se esquecia de como respirar.
- As minhas desculpas pela minha irmã, St. John. O facto de levar uma vida independente fez com que começasse a ter atitudes muito peculiares.
A exasperação de Vergil fez Daniel sorrir. Ter atitudes muito peculiares era uma espécie de tradição dos Duclairc, e Vergil, com o seu respeito pela aparência de
retidão, era o que destoava da família.
- Sendo uma mulher casada, claro, o choque não foi tão grande. A vossa prima, contudo... - Vergil arranjava o lenço no espelho do vestiário. - vou relembrar à Pen
as responsabilidades dela a esse respeito.
- Eu não faria do assunto mais do que aquilo que foi. Estou certo de que se a vossa irmã soubesse nunca teria entrado, muito menos deixado que a minha prima o fizesse.
Vergil assentiu com a cabeça, aliviado por ter recebido absolvição pela irmã. - Muito decente da vossa parte.
Daniel não se sentia de todo decente a propósito do pequeno episódio. O comportamento de Lady Glasbury era desculpável. O seu não.
Ele soubera que elas lá estavam bem antes de Vergil dar o alarme. Tinha reparado nelas ao travar a espada de Louis com a sua. Vira Diane a observá-lo. Tivera plena
consciência da expressão dos seus olhos.
Gozara dissimuladamente cada maldito segundo do que lhe parecera uma hora, emproando-se como um animal que se exibe perante a sua parceira.
Fazia-se ridículo por causa dela.
Saíram para o pátio onde a carruagem da condessa aguardava. Vergil encaminhou-se para lá com uma expressão que indicava que a condessa ia ouvir um sermão, de qualquer
forma.
Acabou por ser curto. Voltou para a beira de Daniel. - A vossa prima não está aqui. Foi dar um passeio, para proporcionar à minha irmã alguma privacidade com Dante,
que lhe contou a história do seu mau comportamento.
- Eu vou procurar por ela.
- Dissestes que tínheis de ir a uma reunião antes de vos juntardes a nós no Essex. Permiti-me, já que de qualquer modo nos demoraremos até ela ser encontrada.
A reunião era de importância vital, mas podia seguramente esperar. Daniel não queria Diane a caminhar naqueles bosques.
Quando se voltou para a casa, deparou com a saída alvoroçada do edifício de dois outros alunos da academia. Subiram para uma carruagem, que se afastou.
A sua ausência revelou um cavalo atado a um poste.
- Não tinha reparado que Tyndale ainda cá estava - comentou Daniel.
- Saiu para o tiro estávamos nós a chegar. Era a pistola dele que ouvíamos quando praticávamos.
Mal acabou de falar, os seus olhos brilharam de preocupação. Daniel também ficou com o coração nas mãos. Era raro alguém caminhar no terreno, e quem praticava pistola
não se preocupava muito com essas coisas.
- Certamente que se lhe tivessem acertado... - começou Vergil.
- Vós e Dante procurais no campo e no bosque à direita comandou Daniel, dirigindo-se a passos largos para as traseiras da casa. - Eu vou para a zona de tiro.
Ela não fora ferida. Daniel soube-o quando ouviu o riso dela. Seguiu o som até a ver sentada num tronco à beira do ribeiro.
Tinham-lhe enfeitado o colo com um montinho de crocos. Um homem oferecia-lhe mais um.
Não tinha sido uma bala a ir ao seu encontro.
Mas sim Andrew Tyndale.
Diane sorriu e aceitou a flor. Daniel não viu aquela desconfiança cautelosa nos seus olhos. Ela não sentia perigo. Claro que não. Daniel não conseguia ver a expressão
de Tyndale, mas conseguia imaginar a sua honestidade franca.
Apenas Daniel testemunhara a ferocidade daqueles olhos quando combatia com Louis.
Nem mais ninguém vira as outras centelhas quando Tyndale observara Diane do outro lado de um salão de baile apinhado. Daniel vira-as, mas só porque as procurara
cuidadosamente.
Tyndale estava sentado ao lado de Diane e apontava para outra flor que tinha na mão. De sobrolho franzido, ela olhava para a flor e recebia uma qualquer lição de
horticultura.
Diane teve de se baixar mais para ver bem a flor. A Daniel não escapou a reaçáo manhosa de Tyndale ao movimento subtil.
O canalha iria tentar agora, aqui? A idade teria tornado o homem assim tão precipitado e descarado?
A flor escorregou da mão de Tyndale e flutuou pelo ribeiro abaixo. Rindo da sua falta de jeito, ele esticou o braço para tirar outra do montinho no colo de Diane.
Daniel observou aquela mão, o braço que roçava o corpo de Diane, e os olhos de Tyndale, e soube com certeza que, dando-lhe tempo suficiente naquele tronco, as coisas
se tornariam muito menos inocentes.
Instintos que ele não sabia que possuía incitaram-no a avançar. Emoções primitivas de proteção e posse aos gritos na sua cabeça, que, surgindo tão súbitas e violentas,
quase tomaram conta dele.
Foram outros instintos que as limitaram. Os instintos do felino perfeitamente imóvel que, sentado, aguarda o movimento da sua presa. Os de um homem que planeia uma
vida em perseguição de um objetivo.
O objetivo esperava-o naquele tronco. Cinco minutos, talvez dez, e estaria terminado. Quase. Os meios para a concretização estariam ao seu alcance, porém.
Contara que levasse semanas. Meses. Afinal, o destino tratara rapidamente disso.
Concluída a explicação sobre a flor, Tyndale aproximou-se e enfiou-a no cabelo de Diane, junto à orelha.
Daniel notou no semblante dela um pouco da cautela que tão bem conhecia. Durante um instante, Diane perscrutou o rosto do homem ao seu lado. Depois descontraiu e
sorriu, tranquilizada.
Daniel imaginou o regresso daquela desconfiança. Viu o horror dela quando Tyndale a atacasse. Ele sabia o quanto teria de deixar as coisas avançarem para ter uma
desculpa para o matar. O grito para a proteger crescia e crescia à medida que a sua cabeça presenciava o desenrolar de tudo.
Rebentou uma tormenta dentro dele. A ânsia que sentia de sair do meio das árvores chocou o homem que ele lutara para ser. Passavam em rajadas pela sua mente imagens
de todas as razões pelas quais devia esperar que aquele canalha se desgraçasse. Invadiram-no memórias que lhe arrepiavam a espinha sempre que assomavam à superfície.
A cabeça num torvelinho, o sangue a ferver, Daniel era dilacerado pelas forças raivosas que se debatiam dentro dele.
Diane curvou-se para apanhar mais um croco. O olhar de Tyndale, com muito pouco de paternal, desceu-lhe pelo corpo.
A lascívia daqueles olhos despoletou relâmpagos na tempestade. Uma decisão que Daniel jamais esperara cristalizou-se de imediato.
Ela já tinha sofrido o bastante com isto. Ele encontraria outra forma de o fazer.
CAPÍTULO 13
Daniel saiu do meio das árvores. Diane viu-o quando se preparava para apanhar um croco violeta. O som do passo dele fê-la erguer a cabeça de rompante. Endireitou-se
rapidamente.
A alcunha de criança que lhe dera surgiu-lhe logo. O Homem Diabo. Há semanas que não pensava nele daquela forma, mas agora sim.
A expressão dele parecia amigável. Caminhava num passo descontraído. Ainda assim, sentia ameaça nele, um perigo retraído. Nos seus olhos viu perfeitamente o brilho
que dizia que nada o distrairia naquele dia.
- Aqui estais vós. Temíamos que vos tivésseis perdido. A condessa aguarda. - O olhar de Daniel foi pousar não sobre ela mas sobre Andrew Tyndale. - Nunca fomos apresentados.
Sou Daniel St. John. Miss Albret é minha prima.
Mister Tyndale ergueu-se. - Devo desculpar-me por não a ter levado imediatamente. O prazer que tem com as flores atrasou-nos.
- Na realidade, perdi-me mesmo e Mister Tyndale teve a bondade de me mostrar o caminho certo. - A mentira saiu-lhe. Por alguma razão pareceu-lhe boa ideia fazê-lo.
- É gentil da vossa parte tentar fazer vista grossa à minha indesculpável negligência, Miss Albret, mas a verdade deve ser dita ou vosso primo considerará a nossa
associação imprópria. Eu estava a atirar e uma bala perdeu-se, St. John. Quando ouvi uma mulher gritar, corri a investigar. A vossa prima não estava ferida, mas
encontrava-se muito abalada. Parar um momento ao pé do ribeiro para ela se recompor pareceu-me uma coisa apropriada para se fazer.
- Agradeço-vos por terdes cuidado dela. Ela não tinha forma de saber que estes bosques podiam ser perigosos. Se eu tivesse dado conta de que ela poderia ter a oportunidade
de os explorar, tê-lo-ia referido. Deveria tê-lo feito, por precaução, ao saber que ela pararia aqui com a condessa. - Aproximou-se de Diane, deixando o caminho
livre. - Tendes a minha gratidão.
Era uma despedida, e por pouco não era rude. Mister Tyndale acatou graciosamente a indicação e seguiu o trilho pelo meio do arvoredo.
- Não deveis ter associação nenhuma com aquele homem no futuro. Jamais.
As costas de Daniel estavam viradas para ela quando emitiu a ordem.
-Acho-o muito simpático, e ficou muito aflito com o acidente com a pistola.
Saiu-lhe mais desafiador do que ela tencionara.
Ele voltou-se. Quando ela viu a expressão dele, ficou com um nó na garganta.
- Não houve acidente nenhum. Ele viu-vos andar sozinha e atirou na vossa direção, para ter uma desculpa para vos conhecer. Não há maneira de alguém que esteja na
zona de tiro conseguir atirar uma bala para o campo.
A acusação dele aumentou-lhe a irritação. Ele tornava-se tão cansativo como Vergil fora para Penelope, só que Daniel St. John não tinha direito a sujeitá-la a estas
lições e recriminações. Não era irmão dela, nem sequer parente. Não lhe agradava a forma como
ele censurava o pobre Mister Tyndale, que ficara tão preocupado e contrito com o seu erro.
- Talvez ele tenha usado uma zona de tiro diferente. Uma lebre
assustou-o e...
- Nem um urso assustaria o homem. Tem fama de ser um dos melhores atiradores de Inglaterra. Valha-nos ao menos isso, já que se atreveu a tal estratagema para vos
conhecer.
- Arengais como um louco. Mister Tyndale foi em tudo um cavalheiro. Para não dizer que tem idade que chegue para ser meu pai.
- Cristo, como sois ignorante. Julgais que a idade de um homem faz alguma diferença em coisas dessas?
- Claro que sim. O comportamento dele comigo foi irrepreensível. Gostei da companhia dele. Acho que me seria um bom amigo.
- Ele quer mais do que amizade, podeis acreditar em mim. Ela riu. - Isso é o que Madame Leblanc disse sobre vós. Quase
as mesmas palavras.
- E ela estava certa, que raio.
Subitamente ele estava mais próximo. Mesmo à frente dela. Ela teve de inclinar a cabeça para lhe ver o rosto.
Novas centelhas avivavam-lhe o olhar. As mais profundas, que vira naquela primeira noite em Paris, quando ele partira o vaso. As de aço que mostrara quando confrontara
Vergil no salão de Margot.
Estava com ciúmes.
Ela não tinha experiência com ciumeira, mas sabia que estava certa. Uma parte estúpida dela sentia-se lisonjeada. Outra parte, maior, estava furiosa.
- Avisai-los a todos para se porem a andar? Passais o vosso tempo nas festas e jantares a seguir-me para todo o lado, a dizer a todos que não tenho um tostão e que
sou órfã e que não mereço a atenção deles?
- Digo-lhes que se não vos tratarem devidamente têm de se haver comigo.
- Mas contais que algum me corteje devidamente porque não tenho fortuna, não é assim?
Ele não respondeu, mas ela aprendera o suficiente sobre o funcionamento do mundo para saber que estava certa.
Diane constatou de forma violenta o caráter absurdo da sua situação. A sua cabeça latejava de indignação.
Indicou as roupas com um gesto e riu amargamente. - Mas vós estragastes-me, St. John. Arruinastes-me. Olhai para a boneca que comprastes. Esperais que fique sentada
na prateleira para sempre, a ser bonita? Quando isto acabar, que escolhas tenho? Devo contentar-me em ser governanta, então? Ou dama de companhia de uma senhora?
Depois destas diversões grandiosas? Eu tenho frequentado duquesas. Já que não há uma forma decente de eu no futuro viver esta vida, penso que devia considerar a
alternativa.
- O que quereis dizer com isso?
- Por esta altura Margot já voltou para Londres com Mister Johnson. Fui descuidada em ainda não ter ido visitá-la.
Deu meia-volta. Conseguiu dar três passos orgulhosos e irritados antes de ele lhe agarrar o braço.
- Ides uma ova! - Fê-la voltar-se para trás. Contra ele.
O abraço dele envolveu-a. Chocou-a. Ela ainda conseguiu contorcer-se uma vez, na tentativa de resistir antes de o calor do corpo dele e a exigência dos seus olhos
começarem a vencer a sua indignação.
Lutou contra a tentadora intimidade, apesar de o seu coração a desejar tanto. Talvez tivesse sido isto a que se referira quando ameaçara converter-se numa Margot.
Quem sabe se o fizesse, o vazio seria encoberto durante algum tempo.
Como Daniel o encobria agora.
- Não deveis ter associação nenhuma com aquele homem no futuro. - Falou com gentileza, desta vez. Falou a sério. Pareceu-lhe mais um aviso do que uma ordem, mas
ainda lhe restava discernimento suficiente, suficiente noção do tempo e do espaço, para não gostar de o ouvir.
- Ele não pensa em mim dessa forma. É um cavalheiro, ele.
- Todos os homens pensam em vós dessa forma.
- Duvido que isso seja verdade. Acho que...
O beijo dele silenciou-a. A sua insistência firme provava que pelo menos um homem pensava nela daquela maneira.
Os beijos foram lentos e duros e implacáveis. Estavam carregados do perigo que ela sentira quando ele surgira das árvores, e do ciúme que ela percebera nas suas
acusações. Eram os beijos de um homem provocado, inobservante de regras e propriedades, fazendo reivindicações que nem sequer pretendia.
Ela sabia aquilo tudo, mas o seu coração e a sua alma não conseguiam resistir. Aquele calor enfraquecia-a, como sempre acontecia. Que ele se importasse o suficiente
e reparasse o bastante para sentir ciúmes era alguma coisa, pelo menos. Até para a luxúria se impunha atenção. Uma fome primária que fosse significava que a queriam
de alguma maneira. A forma como ele excitava o seu corpo só a enfraquecia mais. Carícias lentas recordaram-lhe as alegrias físicas que ele conseguia dar.
Ela sucumbiu ao torpor. Esqueceu onde estavam e que devia detê-lo. O odiado vazio encolheu, morreu, libertando uma felicidade que ela não merecia. Esfomeada, agarrou-se
a ela, mas sabia, mesmo no seu arrebatamento, que era falsa e que não duraria.
A mão dele foi para debaixo da capa dela. Beijos queimavam-lhe o pescoço, entrecortando-lhe a respiração. Uma carícia no seio fê-la arquejar. A sua alma sabia que
ele não pararia, que estava mais retirado do mundo do que ela.
Os dedos dele roçavam-lhe o mamilo, enviando-lhe arrepios de prazer pelo corpo todo.
- Não deveis ter associação nenhuma com ele - voltou a dizer.
- com nenhum deles.
Uma minúscula rebelião quis vencer na sua mente, mas ele obliterou-a com outro beijo. O seu abraço comandava mais do que incitava. Ela perdeu mão da sua fraca resistência,
arrastada pelo poder dele. Devolveu-lhe o beijo, não sabendo porquê, acedendo
apenas sem decidir fazê-lo, fazendo-o apenas porque as reações do seu corpo e coração o exigiam.
O abraço dele vagueava, com arrojadas carícias. Ela ia ao encontro do seu toque mesmo quando o percurso das suas mãos a assustava. Por cima da barriga e das nádegas,
descendo até às coxas, ele agarrava-a e reivindicava-a toda. O seu toque moveu-se de forma mais chocante, provocando-a através do vestido, descendo-lhe pela fenda
entre as nádegas, aventurando-se na direçáo da pulsação que a enlouquecia, fazendo o prazer assentar e latejar.
Uma voz chamou o nome dele, procurando-o. Ela ouviu, mas ele não. Penetrou o torpor dela e reavivou a consciência que ela tinha do mundo envolvente. Assustada,
contorceu o corpo para escapar.
Ele ergueu a cabeça e estacou ao ouvir o som da voz de Vergil a aproximar-se pelo caminho.
Ela libertou-se e afastou-se com um pulo. com a separação, a confusão tomou conta dela.
- Dissestes que não o faríeis. Em Paris, prometestes...
- Não prometi nada.
Subitamente, Vergil estava num dos lados da pequena clareira. Olhou para ela e depois para Daniel.
Ela viu que Vergil parecia saber o que tinha interrompido. Daniel também o viu, claramente. Ele parecia imperturbável, contudo, como se o que tivesse ocorrido merecesse
a expressão de desaprovação que entrevia por baixo das pálpebras baixas do seu jovem amigo.
Vergil tentou esconder o desconforto. - Tyndale disse que a tínheis encontrado. bom. Pen gostaria de partir, porém. Quer chegar à festa antes do conde.
- Claro. Foi rude da minha parte atrasar a condessa. - Diane não tinha ideia de como encontrara voz para falar. Conseguiu reunir compostura suficiente para se afastar
do olhar abrasador de Daniel e aceitar a escolta de Vergil até à carruagem que aguardava.
- Ele está a ser muito cauteloso - disse Adrian, conduzindo-os pela rua. - Se não soubesse o que ele andava a tramar, o mais certo seria não conseguir a mínima pista
daquilo que tem acontecido.
Daniel caminhava ao lado dele pelas travessas silenciosas, próximas ao rio. Não estavam em Londres, mas do outro lado da ponte, em Southwark, numa zona pobre de
edifícios e armazéns a cair aos pedaços.
Tentava prestar atenção à história de Adrian, mas era difícil. Tinha a mente ocupada com Diane. A sua cabeça e o seu corpo ainda estavam no ribeiro, sucumbindo ao
desejo devastador que a sua decisão sobre Tyndale havia despertado. Teve vontade de matar Vergil por ter interferido, mas também estava grato por isso. Se tivesse
ficado entregue a si próprio muito mais tempo teria deitado Diane no chão e...
- Ele precisou de mim para encontrar este sítio, claro. Ninguém que tenha uma propriedade tão insignificante fala a língua dele, e ele não fala a deles. Também me
deu desenhos para levar, para se fazerem os cilindros. Conseguiu obter os químicos sozinho, suspeito, uma vez que não me solicitou nada.
- Sorte ter esbarrado convosco - comentou Daniel, forçando-se a prestar atenção ao assunto do momento.
Adrian deu uma risada. - Passei três vezes mesmo à frente dele antes disso. Ele está sempre a olhar para o chão, remoendo as grandes questões do universo, presume-se.
Nunca esperei que me chantageasse para trabalhar com ele, todavia. Considerei simplesmente que seria mais fácil estar de vigia se ele contasse ver-me por aí. Parou
ao chegar a uma construção, pouco mais do que um abrigo baixo entalado ao fundo entre os vizinhos. - Chegámos.
- Seria de pensar que estão lá dentro as jóias da coroa. - Três cadeados grandes e brilhantes aperaltavam a porta.
- Ponderei dizer ao serralheiro para me fazer umas chaves adicionais, mas não me quis arriscar a que Dupré descobrisse. Não há problema, contudo. Ficai de guarda.
Daniel tapou-o. Olhando para trás, viu Adrian tirar um ponteiro de metal do casaco e começar a tentear a fechadura de cima.
- Onde aprendestes isso?
- com um coronel da guarda da nossa embaixada na Turquia. É uma aptidão útil para um secretário de diplomata.
As duas primeiras fechaduras abriram-se numa sucessão rápida. Daniel lançou o braço para trás. - Esperai. Vejo alguém.
Adrian virou-se e cruzou os braços. Daniel espreitou para as sombras do outro lado da rua onde identificara movimento. - É melhor ir verificar. Não temos hipótese
se Dupré tiver alguém a vigiar o sítio.
- A não ser que ele encontrasse um espião francês, não sei como o conseguiria. Mas ide.
Daniel saiu do pátio de escombros defronte do edifício e foi na direção da sombra.
Logo que o seu destino se tornou claro, um homem saiu disparado pela rua abaixo. No curto instante antes de o homem se virar, Daniel vislumbrou uma barba e cabelo
escuro por baixo do chapéu.
Voltou para Adrian. - Era apenas um vagabundo, curioso e ocioso, como seria de esperar nesta zona.
Adrian atirou-se à última fechadura. Empurrou a porta.
O interior do edifício era tão pobre como o exterior. Há vários anos, alguém rebocara as paredes, mas o tempo abrira-lhes fendas
e escurecera-lhes a cor. Entrava
um pouco de luz por uma janelita alta, apesar das novas portadas e fechadura que a cobriam.
Encostada a uma parede estava uma mesa coberta com uma fila de cilindros de metal, cada qual ligado por fios a uma panela cheia de líquido.
Daniel aproximou-se e espreitou para as panelas. Cada uma delas tinha um pedaço de metal de bom tamanho. - Está operacional?
- Penso que sim. Não enfiei a mão em nenhum para descobrir.
Devem estar umas cem libras de ferro aqui dentro.
- Dado que fui eu quem tratou da compra, posso dizer que é exatamente esse o peso.
Daniel contemplou a notável engenhoca. - Isto deve ter custado uma soma considerável.
- As minhas aquisições chegaram a mais de mil libras. Os químicos têm de ter custado centenas mais. - Adrian apontou para as barras de ferro. - Reparai que têm tamanho
e forma iguais. Acrescentei esse requisito. Não tinha ideia do que tencionáveis fazer, mas caso planeeis algo, lembrei-me de que a estandardização poderia ser conveniente.
- Muito bem - elogiou Daniel, embora também não fizesse ideia do que tencionava fazer, se é que tencionava fazer alguma coisa.
- Não vejo como teve fundos próprios para isto. A casa de Paris era da família e não me parece que tenha havido grande herança para lá disso. Tem poucos rendimentos,
a não ser alguns honorários da universidade de lá. Digamos que custou mil e quinhentas. Pagou a pronto, e eu pressenti que haveria mais se fosse necessário. Aonde
iria buscar tanto dinheiro? - indagou Adrian.
Daniel perscrutou a experiência. Não, não era uma experiência. Era demasiado grande para tal. Demasiado elaborada. Tratava-se mais de um modelo de funcionamento,
para avaliar custos e potencial.
As suas suspeitas estavam corretas. Dupré não o tinha feito para outros cientistas, mas para impressionar homens do mundo da manufatura.
Mil e quinhentas libras a pronto, dissera Adrian. Um custo significativo. Um custo que Dupré não conseguia suportar sozinho, isso era certo.
- Quantas chaves disse ao serralheiro para fazer?
- Dois conjuntos.
- Procurou um sócio - concluiu Daniel. - A pergunta é, quem?
CAPÍTULO 14
- Não tenhais associação nenhuma com ele. Revelou-se impossível, pois Andrew Tyndale também fora convidado para a festa.
E também não era um grupo grande que se reunia na casa de Lady Pennell para o fim de semana. No máximo, seriam trinta os presentes. Sendo uma das mais notáveis senhoras
a moverem-se em círculos alargados, Lady Pennell convidara um grupo diverso, incluindo um ator famoso e um romancista popular, e também membros do Parlamento, um
conde, dois barões e um visconde.
Não contava com a presença de nenhuma mulher dos círculos mais seletos, claro. Lady Pennell não caía nas boas graças das arbitras da sociedade, ainda que os homens
delas considerassem as suas reuniões mais interessantes do que beber ponche em outras reuniões mais adequadas.
- Ainda bem que os meus irmãos aceitaram comparecer - dizia Pen, instalando-se no aposento com Diane. Pen insistira que partilhassem um quarto, mesmo tendo a anfitriã
planeado outras disposições. Visto que tinha uma saleta, dificilmente seria pequeno.
- Não tinha dado fé de que o grupo era tão pequeno. Não há como evitar o conde com discrição, receio. - murmurou Pen.
Diane suspeitava que não havia como evitar ninguém. Nem o
conde. Nem Mister Tyndale. Nem Daniel St. John, quando ele chegasse, à noite.
Não tenhais associação nenhuma com ele. Daniel proferira aquele aviso acerca de Andrew Tyndale, mas o coração dela fazia-o agora a propósito do próprio Daniel. Os
beijos e abraços do bosque tinham-na deixado muito abalada, e os seus pensamentos demoravam-se neles desde então. Suspeitava que o pacto feito em Paris tinha sido
irrevogavelmente desfeito.
As implicações assustavam-na. Como também as suas reações. Não era apenas preocupação que a ocupava desde que se instalara no seu lugar na carruagem de Pen. Invadia-a
também um anseio nostálgico. Admitia miseravelmente estar intrigada e excitada com Daniel, e nenhuma parte dela devia estar assim, nem um pedacinho que fosse. Contrariamente
à ameaça rebelde que ela pronunciara quando estavam no ribeiro, transformar-se numa Margot seria o tipo de vida que ela não conseguiria viver.
Pen ocupava-se com instruções à criada que lhe desfazia a mala. As roupas de Diane seriam atendidas mais tarde.
- Foi gentil da parte de Lady Pennell convidar-me - disse Diane. De todos os convites que recebera, achou este o mais peculiar.
- Ela gosta de se rodear de pessoas interessantes.
- Eu não sou interessante.
- Não é verdade. No entanto, admito que a minha vinda tenha influenciado o convite, assim como a esperança de encorajar a aceitação por parte do vosso primo.
- Então Lady Pennell considera Daniel interessante?
- A maior parte das mulheres considera-o interessante. Não foram só a riqueza e o estilo a abrir-lhe portas na sociedade, mas também o fascínio de mulheres influentes.
A bem dizer, penso que Lady Pennell nutre uma certa ternura por ele agora. É bem-parecido, confiante e misterioso. O seu porte e a sua presença têm dado azo a todo
o tipo de especulações ao longo dos anos.
- Que tipo de especulações?
- Como prima, provavelmente ireis achá-las divertidas. Quando ele chegou vindo do nada há muitos anos corriam rumores de que ele tinha feito fortuna com pirataria
nos altos mares. Outros cochichavam que ele tinha usado os navios em serviços especiais para a marinha. Alguns insistiam que ele era um emigre vindo de França enquanto
rapaz, por causa da revolução, e que tem sangue muito mais rico do que alega. - Pen riu e ergueu uma sobrancelha.
- O que significa, claro, que vós também.
Diane forçou-se a rir igualmente. - Se assim fosse, eu saberia, não é verdade?
- bom, como disse, foi tudo especulação. Ninguém sabe ao certo a história dele, por isso criam-se estórias. - Pen lançou-lhe um olhar inquiridor e matreiro, encorajando-a.
Diane dificilmente poderia satisfazer a curiosidade de Pen a propósito de Daniel, já que ela própria sabia muito pouco da história dele. Admiti-lo revelaria a mentira
do parentesco deles. O que daria seguramente a todos muito sobre o que especular.
Para evitar mais conversas sobre o tópico, deixou Pen a desfazer as malas e foi para a saleta aguardar a sua vez.
Entrou uma criadita com um tabuleiro de refrescos. Ao pousá-lo na mesa, olhou para Diane com manifesta curiosidade.
De regresso à saída, parou. - Corou e fez uma vénia. - As minhas desculpas, Miss Albret, mas posso fazer-vos uma pergunta?
- Claro. O que é?
- Eu sou de Fenwood, e o pároco de lá também se chama Albret. Sois parente dele?
Diane ficou especada a olhar para a bonita rapariga com a sua capa de musselina, pele sedosa e cintilantes olhos azuis. Foi incapaz de lhe dar uma resposta porque
o seu coração começou a bater com tanta força e tão rápido que lhe doía.
- As minhas desculpas - disse a rapariga. - Foi inapropriado da minha parte, é só que achei curioso, por vós serdes francesa e tudo.
- Não tenho conhecimento de parentescos nessa cidade que mencionais, mas se os houver, gostaria de saber. Onde fica esse sítio?
- Ora, não fica a mais de duas horas de carroça. É uma aldeia perto de Brinley. Mister Paul Albret é pastor lá desde sempre, desde antes de eu nascer.
Diane não conseguia acreditar na sua sorte. Se a criadita tivesse sido um nadinha menos audaz...
- Como vos chamais?
- Mary.
- Estou-vos agradecida por me terdes falado, Mary. De outro modo, poderia nunca ter ficado a saber deste possível parente.
- Oh, duvido disso. Estão muitos de nós nesta área, a servir nas casas do condado. Acabaríeis por vos encontrar com um.
- Mary, esse pastor reside lá? Se lhe enviar uma carta, ele irá recebê-la, na vossa opinião?
- Ele vive lá. Sempre viveu.
- Conhecestes os filhos dele?
- Eram de antes do meu tempo. Duas raparigas e um rapaz, acho eu, mas foram todos embora há muitos anos. Nunca ouvi dizer que tivessem voltado. A minha família não
conhece bem o pastor, somos seguidores de Wesley.
Subitamente, a saleta com a sua mobília clássica de mogno tornou-se claustrofóbica. Estar presa naquela casa com aquele grupo pareceu-lhe um transtorno terrível.
A resposta às perguntas da sua alma, que não a deixavam sossegar, podia estar a poucas horas de distância.
- Obrigada, Mary.
Talvez conseguisse arranjar forma de visitar a cidade de que Mary falara. Entretanto, podia pelo menos entrar em contacto com o pastor e ver se ele sabia alguma
coisa.
Enquanto Pen se atarefava com o guarda-roupa no aposento ao lado, Diane sentou-se à escrivaninha e começou a escrever uma carta.
- Dir-se-ia que estamos no Parlamento e que acabou de ser lançada uma votação - comentou Pen. Estava sentada na sala. ao lado de Diane, a seguir ao jantar.
Diane apertou-lhe a mão, para a reconfortar. Apesar de distraída com pensamentos de uma carta parcialmente escrita e memórias, angustiantes de tão insistentes, de
beijos no bosque, Diane não conseguiu evitar reparar no drama social que se desenrolava.
A festa não fora preparada para proporcionar o confronto entre o conde e a condessa de Glasbury, mas a presença dos dois afetou tudo. A expectativa dominava o ambiente.
Durante o jantar, corriam olhares para o fundo da mesa, onde o casal separado estava sentado, tão próximos um do outro que era impossível ignorarem-se.
Bastou os homens reunirem-se às mulheres para se formarem subtilmente dois grupos. Os convidados anunciavam o lado escolhido através da localização e da interação.
Diane reparou no tamanho maior do grupo reunido à volta do conde, e na presença de Andrew Tyndale ao seu lado. Daniel, que chegara pouco antes do jantar, misturava-se
com o grupo que estava próximo de Pen. O advogado de Duclairc, o enigmático Julian Hampton, também estava por perto, observando mas raramente tomando parte.
O visconde Laclere emprestava o seu prestígio como prometera, mas era Vergil que estava literalmente ao lado de Pen.
- Abandonaram-me. Seria de esperar, imagino eu. - Disse Pen num murmúrio enquanto o seu olhar conduzia Diane para o outro lado da câmara. Poucas senhoras se demoravam
no canapé.
A expressão e pose de Pen comunicavam que não se passava nada de inaudito. Diane sentia o constrangimento da amiga, porém. Viu nos olhos de Pen a constatação do
custo total de se ter separado do marido.
De repente, Pen ficou hirta. O conde de Glasbury, um homem esguio de meia idade, de cabelo grisalho, sobrancelhas espessas, e uma boca murcha, atravessara a divisória
e vinha na direção delas.
O círculo de Pen afastou-se um pouco para trás para dar espaço ao confronto privado. Todos davam mostras de não reparar em nada, mesmo se dúzias de olhos se esforçavam
para acompanhar a marcha do homem.
- Pelo menos ninguém está a lamber os lábios de expectativa sussurrou Pen.
- Que comedimento impressionante.
O olhar do conde centrou-se em Pen. A Diane pareceu-lhe ser o tipo de homem que gostava de falar de alto com os outros, como fazia com a mulher agora.
- Como vos encontrais, minha querida?
- Encontro-me bastante bem.
- É certo que sim. A cidade inteira fala nisso. Tornastes-vos na inveja de todas as mulheres desvairadas de pouco discernimento e menor discrição. Tendes a vossa
própria casa e carruagem. Tendes liberdade para vos comportardes escandalosamente. Tendes o prazer de proteger A prima de um mercador.
Diane não foi insensível ao ênfase nem à insinuação. Daniel ouviu, mesmo estando a dez metros. As suas pálpebras semicerraram-se, mas esta foi a sua única reação.
- Olhai lá... - começou Vergil.
- Agradeço-vos, mas eu trato do assunto, Vergil. - Pen encolhera-se quando o conde se aproximara, mas agora a sua coluna endireitava-se. - Não é avisado para um
libertino descarado censurar outro homem de semelhante forma, meu querido.
- Também é perigoso - acrescentou Vergil.
O conde exibiu um sorriso escarninho. - O mundo está perdido nestes últimos anos, com condessas e duquesas tão pouco criteriosas. Como se dinheiro e uma cara bonita
fizessem um homem.
Pen sorriu. - Mais vale dinheiro e uma cara bonita do que carne velha amarga e degenerada.
- Admira que tenhais vindo, se desprezais assim tanto o círculo de Lady Pennell - interveio Vergil.
- Resta esperar que as suas festas sejam mais agradáveis depois desta noite. Além disso, vim para ver a minha mulher. Está na altura de esta separação confrangedora
cessar.
- Então perdestes o vosso tempo. Não voltarei para vós.
- Se eu decidir que sim, não tereis escolha. A lei...
- Fazei o que quer que seja para coagir a condessa e a lei saberá mesmo de tudo. - A ameaça náo viera de Vergil. Julian Hampton aproximara-se para ouvir e interrompia
agora com uma voz muito calma.
O conde fulminou-o com o olhar. - Ela não se atreveria.
Hampton correu a assembleia com os olhos, vendo tudo e náo vendo nada. - Claro que sim. E acreditais nisso, senão nunca teríeis concordado com os termos de separação
que negociei. Ora, eu tinha planeado passar estes dias na cidade, não a aborrecer-me numa festa campestre. Parece-me a mim que esta casa e este grupo são grandes
o bastante para vós e a condessa não precisardes de voltar a falar. Fazei-me esse favor, para amanhã poder retirar-me.
Afastou-se, sem falar com mais ninguém.
Lívido, o conde também se retirou.
- As minhas desculpas pela forma como vos insultou e ao vosso primo - disse Pen. - Assim como por ter falado táo livremente à vossa frente.
Diane sabia que ele tinha falado tão livremente porque a considerava tão insignificante que seria um desperdício de discrição. Da mesma forma que os homens como
ele não notavam a presença de criados, ignorara-a.
Vergil inclinou-se e sussurrou à orelha de Pen, mas Diane ouviu na mesma. - Onde fica o vosso quarto?
- Na ala este. Insisti que Diane o dividisse comigo.
- Muito bem. Far-vos-ei uma visita, de qualquer forma.
A sala esvaziava-se quando Vergil abordou Daniel. - Hampton e eu vamos jogar às cartas. Porque não juntardes-vos a nós?
- Julgo que não. Raramente jogo com amigos.
- Fazei-me a vontade, St. John. Tenho uma noite longa pela frente, e como Hampton nunca fala será insuportável.
Relutante, Daniel concordou. Vergil não estava em condições de perder às cartas, o que significava que Daniel teria de tomar
providências para o deixar ganhar. Ele não se importava, mas o jogo ficava menos interessante.
Acompanhou Vergil, saindo ambos da sala. Não entraram na biblioteca como Daniel previra. Em vez disso, Vergil apontou-lhe a escada. - O quarto de Pen tem uma saleta.
Não há razão para fazermos os criados ficarem acordados para nos atender, e se jogarmos lá, já não será necessário.
Quando subiam a escada, outro homem descia-a. AndrewTyndale saudou-os de passagem.
Daniel deteve Vergil. - Porque não convidá-lo também? com quatro o jogo é mais recreativo.
- É melhor não.
- Duclairc, vamos jogar às cartas naquela sala para proteger a vossa irmã caso o conde se dirija lá hoje à noite com intenções desonrosas, estou certo?
O rosto de Vergil endureceu ao ver-se confrontado com esta formulação tão direta.
- E não é muito melhor se um dos amigos do conde estiver lá sentado connosco? Há menos probabilidade de as coisas se descontrolarem, caso as vossas suspeitas se
confirmem.
Vergil acenou com a cabeça a contragosto. Desceu as escadas atrás de Tyndale, chamando-o.
Daniel ficou a observar enquanto o convite era feito. A noite de cartas poderia revelar-se interessante, afinal. Não gostava de ganhar com amigos, mas não tinha
pruridos desses com inimigos.
Vergil voltou com Tyndale a reboque. Harnpton aguardava no alto do segundo patamar. Os quatro percorreram a ala este até à saleta de Pen.
- Bem, tendes de nos prometer que não vos ides embebedar nem fareis uma barulheira, sem nos deixar dormir toda a noite admoestou Pen enquanto eles colocavam uma
mesa e cadeiras no centro da divisão. Contando com a sua chegada, ela mandara trazer vinho e whisky.
Daniel percebeu que Pen se referia a ela e Diane. Não reparara que elas partilhavam um quarto. Imaginou que ter a sua dama de companhia por perto seria outra tentativa
por parte da condessa de frustrar qualquer tentativa do conde de reivindicar os seus direitos de marido, dado que passavam a noite sob o mesmo teto.
Também significava que Daniel iria ter Diane por perto naquela noite. A câmara não era grande, e a proximidade acentuou imediatamente a tensão que crescia silenciosamente
entre eles desde que ele chegara à casa. Durante o serão inteiro apercebeu-se da consciência que ela tinha da presença dele, e do que acontecera, mesmo que ela fingisse
que ele não existia.
Ela continuava a ignorá-lo agora. Estava sentada à escrivaninha, a arranhar qualquer coisa num papel, não mostrando qualquer interesse pelos homens que se instalavam
para jogar. A condessa estava empoleirada num banco. Parecia que as mulheres iam ficar um pouco antes de se retirarem, para dar aparência de um convívio privado.
Daniel escolheu a cadeira que lhe permitia ver Diane, ainda que ela fosse distraí-lo. Não queria Tyndale naquela posição. Ver Tyndale observar Diane iria distraí-lo
ainda mais.
A sua jogada astuta serviu de pouco. Diane finalizou a sua tarefa e foi para o banco, para junto da condessa. O que a colocou numa localização excelente para Tyndale
lhe sorrir e para ela lhe devolver o sorriso.
Diane também sorria a Vergil e Hampton. A única pessoa a quem não concedia atenção era Daniel. Dava-se a grande trabalho para nem sequer olhar na direçáo dele, como
fizera o serão todo.
Ele não se deixava enganar minimamente. Podiam bem estar sós, abraçando-se, tão intensa era a ligação entre os dois. Ela podia não o querer, podia até estar ressentida
com isso, mas era inegável que estava lá, afetando o ar, o tempo e a luz.
- O vosso jogo está fraco, St. John - disse Hampton quando Daniel perdeu mais dez libras para Andrew Tyndale.
- Talvez não seja o jogo dele que é fraco mas o de Mister Tyndale que é bom - propôs Diane.
Tyndale apreciou o elogio mais do que seria adequado.
Daniel apanhou o olhar de Diane quando este passava inadvertidamente por ele. Prendeu-o e concedeu-se a si próprio uma recordação breve, intensa e expressiva do
envolvimento deles no ribeiro, uma recordação cheia dos suspiros e do anseio dela, do que aconteceu e quase acontecera. Ela começou a corar, como se o olhar dele
comunicasse a imagem e as sensações.
- Porque não aumentamos a aposta? - perguntou Daniel. - Os cavalheiros deviam tirar partido do meu jogo fraco.
- com certeza. Já agora, fazemos render o nosso tempo - aprovou Tyndale.
Hampton não avançou nenhuma opinião, mas o olhar que lançou a Daniel era especulativo. - Talvez as senhoras queiram retirar-se. Podemos continuar sozinhos.
- Credo, não - ripostou a condessa. - Não quando vai começar a diversão a sério. Além disso, devo ficar para arrastar o meu irmão daqui antes que ele se arruine.
Vergil suspirou. - Bolas Pen, eu não sou Dante.
- Por falar em Dante, a última vez que o vi tinha posto Mrs. Thornton a fazer uns barulhinhos parvos enquanto folheavam um livro - comentou a condessa. - Onde está
ele, Vergil?
- Penso que se retirou, madame. - O tom de Hampton sugeria que quanto menos perguntasse acerca das circunstâncias e orientação da retirada de Dante, melhor. Começou
a dar as cartas. - Cinquenta libras, cavalheiros?
Tyndale e Vergil assentiram com a cabeça. Hampton olhou para Daniel, procurando o seu acordo.
A aposta elevada pareceu perturbar Diane, e não seria por ela temer que o seu benfeitor pudesse ficar mal. Daniel ficou com a distinta impressão de que ela se preocupava
apenas com Tyndale.
A sua atitude era provocatória. Cada expressão impassível negava a verdade e rejeitava a forma como se tinham unido tão completamente naqueles abraços e ainda estavam
unidos nesta câmara.
Pior, agora ela encorajava deliberadamente Tyndale, apesar do aviso que recebera.
Sentiu crescer na sua mente uma irritação aguda. Manteve-a controlada, mas não deixava de o afetar. Ele renunciara ao sonho de uma vida pela beldade que agora cobria
de atenções o seu atacante em potência. Ele sacrificara-o por ela e por algo que nem sequer podia acontecer, e ela agia como se ele não significasse nada para ela,
mesmo derretendo com o toque dele.
Voltou a atenção para Tyndale.
- Porque não cem? - disse.
As pálpebras de Tyndale desceram, aquiescentes, mas a sua resposta foi interrompida pela porta da sala, que se entreabriu, rangendo.
Uma nova visita entrou. Primeiro o traseiro. Recuou, de olhos no corredor para se certificar de que não tinha sido visto.
Hampton pousou as cartas e cruzou os braços. Vergil estava tão irado, que parecia capaz de matar alguém, de tal modo que Daniel lhe colocou uma mão firme no braço.
Tyndale sorriu, divertido.
O visitante fechou a porta com grande e silencioso cuidado. Virou-se.
O conde de Glasbury precisou de um momento para compreender que se não enfiara sub-repticiamente numa câmara vazia, mas que interrompera um pequeno convívio. A surpresa
deixou-o especado, a boca flácida aberta de espanto.
- Queríeis alguma coisa, querido? - perguntou a condessa. A sua boca parecia a de um peixe.
Todos aguardaram, deixando-o especado feito espantalho. Até o seu amigo Tyndale aproveitou o momento mais do que um amigo devia.
Foi Hampton que o safou. - Sem dúvida que soubestes do nosso jogo particular por algum criado e vos quisestes juntar.
- Sim, é isso.
Não o safou completamente. - Por sorte a conversa do criado estava correta, ou isto poderia ser mal interpretado e custar-vos muito caro.
O conde ficou muito rosado. Recompondo-se, olhou de alto para a assembleia. - A conversa dele estava incorreta. Disseram-me que a mesa incluía jogadores mais interessantes.
- Desde que haja dinheiro para se perder, não somos esquisitos quanto à estirpe do homem que o perde - declarou Daniel. - Portanto, sois livre de vos juntar a nós.
O conde endireitou-se, indignado com o insulto. A sua mão recuou até ao trinco da porta. - Não me parece. Eu sou muito esquisito quanto à estirpe dos homens aos
quais me associo. Perdoai a minha intrusão.
- Dormi bem, querido - disse-lhe docemente a condessa quando ele virou costas.
Diane parecia muito preocupada com os progressos erráticos de Tyndale no decorrer da última hora. O seu rosto iluminava-se de deleite quando ele ganhava e entristecia-se
quando ele perdia.
O que deixou Daniel fora de si. Como resposta, prolongou a destruição que estava na sua intenção concretizar.
À medida que o jogo se tornava mais imprudente, Hampton, comentando que a noite terminaria com a diminuição acentuada da fortuna de um dos homens, retirou-se completamente,
não fosse caber-lhe ser esse homem.
Às trezentas libras, Vergil também se retirou.
Daniel aproveitou a oportunidade para muito rapidamente perder mil para o único opositor que lhe restava.
- A vossa sorte tinha melhorado consideravelmente, St. John
- disse Tyndale enquanto se distribuíam cartas mais uma vez. Parece que a maré voltou a virar, todavia.
- A minha sorte é sempre inconstante, é o que é. Além disso, a condessa é um fator de distração.
- Como também vossa prima - disse Tyndale jovialmente, oferecendo um sorriso a Diane.
No que respeitava a Daniel, fora-lhe atirada uma luva.
- Se somos tão grandes distrações, está na altura de nos retirarmos. - A condessa levantou-se, e todos os outros também. - Fazei como se estivésseis em casa, cavalheiros.
Obrigada pela vossa companhia.
Diane seguiu-a até à outra câmara. Daniel ouviu os sons indistintos que, do outro lado da parede, revelavam mulheres a prepararem-se para ir para a cama. Permitiu-se
a fantasia de imaginar Diane a despir-se e a lavar-se e a cuidarem-lhe do cabelo, e perdeu mais duas mil libras no seu desenrolar.
Por fim os sons pararam. Uma criada saiu e retirou-se.
Daniel imaginou Diane encolhida do lado dela, pálpebras fechadas e rosto adorável em repouso.
Varreu a imagem da sua mente. Virou cada pedacinho da sua atenção paraTyndale. - Que tal se jogássemos a sério? O que dizeis a duzentas?
CAPÍTULO 15
Diane, sobre que vos debruçais? - perguntou Pen.
- Uma carta. - Diane escrevera duas na noite anterior e não ficara satisfeita com nenhuma delas. A longa, que explicava a sua história toda, certamente não serviria.
Nem aquela que se desfazia em súplicas. Agora, escrevinhava à pressa um simples pedido de informação relativo a um Jonathan Albret, armador, se o pastor de Fenwood
acaso o conhecesse.
Incluiu a sua morada de Londres e selou a carta antes de ter oportunidade de lhe mexer muito. Levou-a para o quarto de dormir, onde a criada acabava de arranjar
o cabelo a Pen.
- Como posso enviar isto? - inquiriu.
Pen pegou na carta e atirou-a à criada. - Dai-a ao mordomo. Ide-vos. Estou pronta.
A mulher saiu. Pen espreitou para o espelho e torceu um dos caracóis soltos que lhe emolduravam o rosto. - Que dia terrível tenho à minha frente. Uma excursão ao
mar, nada menos. Vai estar um vento cortante, por mais bonito que o dia esteja. Os homens saem mais cedo, para pescar, e depois nós vamos ter com eles, mas eu terei
de estar perto dele a maior parte do dia, e depois de ontem à noite ele assusta-me mais do que nunca.
Pen referia-se ao conde, mas as suas palavras retratavam o desconforto de Diane. Depois da noite anterior, Daniel também a assustava mais do que nunca. Ou melhor,
fazia-a ter medo de si própria.
Fora igualmente horrível e maravilhoso, estar sentada na salinha exterior enquanto os homens jogavam às cartas. Ela mal olhara para Daniel, e os olhos dele passavam
por ela de relance, mas as sensações físicas que ele despertara no ribeiro tinham regressado no momento em que ele entrara. As mãos que seguravam as cartas poderiam
estar a acariciar-lhe o corpo, e a boca que bebericava o vinho poderia estar a beijar-lhe o pescoço e o seio.
Ele soubera. Aquele olhar único, quente, dissera-lho. Ele brincara com ela também, mantendo as memórias vivas, tornando tudo pior. Ela vira-se impotente para o deter
e demasiado fraca para alegar uma dor de cabeça e sair como devia ter feito. A agitação física e a consciência viva um do outro eram imperiosas de mais, deliciosas
de mais, para serem negadas.
A ideia de passar o dia em semelhante estado deixava-a desalentada. Precisava de passar tempo longe dele, para compor as suas emoções. Tempo para tentar voltar a
pôr as coisas no sítio.
- Não estou a sentir-me muito bem, Pen. Acho que devia ficar aqui a descansar.
Pen desviou o olhar do espelho com preocupação. - O que vos inquieta, querida? Se vos fiz ficar doente por vos obrigar a ficar de pé até tão tarde...
- Não é nada grave. Apenas estou muito cansada.
- Talvez deva ficar convosco, não vá...
- É atencioso, mas não é necessário. Não estou doente. Penso que vou apanhar um pouco de ar e depois voltar e dormir.
Pen ponderou. Por fim, abanou a cabeça. - Se eu ficar todos dirão que se trata de um estratagema da minha parte, como resposta à noite de ontem. Não, tenho de ser
corajosa e ir para a frente. Manter-me-ei firme apesar do dia prometer ser terrível. - Riu-se, amarga.
- E pensar que não procurei o divórcio para lhe poupar o escândalo
a ele. Bem, Mr. Hampton bem me avisou que é sempre a mulher quem paga.
Andrew Tyndale espiava da janela as carruagens que desciam a rua. O seu olhar fixou-se numa, muito cara. Quatro cavalos pretos puxavam-na, de longe muito melhores
do que os animais que ele próprio detinha. Vexava-o que Daniel St. John pudesse dar-se a tais luxos.
Vexava-o ainda mais que, a partir desta altura, tivesse meios para adquirir muitos mais.
No valor de vinte mil libras.
O que raio acontecera ali?
Era a pergunta que se repetira na sua cabeça desde a madrugada até ao nascer do dia.
Nunca perdia muito nas mesas de jogo. Desprezava homens que não sabiam quando se retirar, homens que arriscavam demasiado e tinham a ruína como resultado. Nem sequer
gostava muito de cartas. Preferia de longe jogos em que a sorte não tinha qualquer papel. Jogos que sabia que ganharia, porque ele fazia as regras.
Tinha sido culpa da rapariga, concluiu. Distraíra-o solenemente enquanto lá estivera. Não podia ter mais de dezassete anos, avaliou, mas ela tinha uma pose, um ar,
que sugeria a existência de uma sensualidade suculenta por baixo daquela postura inocente. Passara muito tempo desde a última rapariga refinada, o que a tornara
mais apelativa. As raparigas que Mrs. P encontrava eram bezerras ignorantes e estúpidas. Ele preferia de longe poldras bem-nascidas.
Sim, distraíra-o solenemente. Pusera-o num estado de excitação enquanto permanecera na sala. A bem ver, andava a ficar muito naquele estado desde a primeira vez
que reparara nela naquele baile.
De alguma forma, a disputa deles passara a ser sobre ela. Na altura não compreendera, mas olhando para trás... Os sorrisos dela quando ele ganhava, a preocupação
quando perdia, o desagrado do primo... Tudo tivera um papel, estava muito certo agora.
Mesmo assim, vinte mil libras? Não havia cara bonita que lhe fizesse aquilo. Estivera a ganhar tantas vezes durante a noite, por largas quantias, que constatar o
quanto perdera, no fim, fora um choque.
Pior, a dívida deste cavalheiro tinha testemunhas das quais ninguém duvidaria.
As carruagens faziam-se pequenas com a distância, em direção à costa. Furtara-se à excursão pesqueira, alegando indisposição, ainda que St. John fosse compreender
bem o que se passava. Não se ralava minimamente. Tinha problemas maiores do que a opinião de um armador.
Sentiu-se tomado por uma fúria raivosa, como tantas outras vezes desde que saíra da saleta da condessa. Viu novamente o brilho de triunfo nos olhos de St. John,
quando Hampton fazia a contagem. O Diabo tinha provavelmente o mesmo aspeto quando arrebatava a alma de algum homem.
Só havia uma explicação, era evidente. O sacana fizera batota. Como, Andrew não estava certo, mas fora isso que ocorrera.
As carruagens tinham desaparecido e a entrada estava deserta.
Um movimento perto da casa, próximo, chamou-lhe a atenção. Um vulto esguio de cabelo cor de avelã em madeixas desarranjadas entrou no seu ângulo de visão.
Olhando Diane Albret, ocorreu-lhe uma saída para o dilema. Tinha um toque de justeza moral, e também iria funcionar. St. John tinha arrogância e orgulho bastantes
para garantir que sim.
Mesmo com aquele verniz todo, a rapariga não era ninguém. St. John também, em rigor. Quando tudo terminasse, as pessoas relevantes concordariam que St. John tinha
sido um parvo e Andrew fora grandemente lesado. Além do mais, as vinte mil libras já não iriam importar.
Afinal, mortos não podem cobrar dívidas particulares.
Depois de ter ido apanhar ar, para espairecer, Diane regressou ao quarto, onde ficou até ouvir atividade no exterior, indicando-lhe que as mulheres saíam para se
juntarem ao grupo que estava na costa.
Só regressariam à tardinha. O que queria dizer que tinha um longo dia só para si.
Já tinha decidido como o passar. Enquanto caminhara, olhara para a sua vida sem contemplações. Não ficara agradada com o que vira.
Admitira para si própria que, mau grado todas as garantias de Daniel, ela não estava a salvo do interesse dele.
Foi até ao guarda-vestidos. Ao enfiar os botins, admitiu que não estava a salvo devido às suas próprias reações. Os beijos dele podiam ser escandalosos, mas não
mais do que a forma como ela os permitia.
Bem, ela não era a mesma rapariga que deixara Madame Leblanc em Rouen. Aprendera alguma coisa sobre o mundo nos últimos meses. Sabia que Daniel tinha tomado alguma
decisão a propósito dela no dia anterior à beira daquele ribeiro, e que da próxima vez aqueles beijos não iriam parar.
E haveria uma próxima vez. Não duvidava disso.
Tirou a capa do guarda-vestidos. Desejou ter levado as suas velhas roupas da escola, e não era só por a ajudarem a estar menos exposta. Incomodava-a levar a cabo
a missão do dia vestida com as coisas que lhe tinham sido compradas por um homem que não era nem seu parente nem seu tutor.
Toda a gente sabia o que isso geralmente queria dizer.
Tinha sido incrivelmente ingénua ao acreditar em Daniel quando ele dizia que, no caso deles, não era isso.
Devidamente vestida para sair, atravessou a casa silenciosa. Era altura de recordar o porquê de estar sequer em Inglaterra. Se descobrisse a vida que tivera antes
de Daniel St. John entrar nela, talvez existisse algo para a ancorar e suster quando cortasse os laços que tinha com ele.
Assim o esperava. Não estava certa de conseguir fazê-lo de outro modo. A própria ideia doía-lhe tanto, deixava-a tão desolada, que
se sentara no jardim, tentando não pensar nela. No entanto, acabara por aceitar aquilo que tinha de fazer.
Precisava de abandonar aquela casa, e a irmã dele, e os presentes e a generosidade dele. Precisava de fugir do calor e dos abraços dele.
Precisava de o deixar.
Prosseguia, resoluta, olhos enevoando-se, o vazio detestável espraiando-se, inchado, omisso e pesado, no seu coração.
Pelos corredores da casa deambulava uma criada ou outra, e ela pediu a uma delas que lhe procurasse Mary. A bonita rapariga foi ter com ela à cozinha.
- Como se dá com a vossa aldeia? - perguntou Diane.
- Estais a pensar lá ir, senhora?
- Um dia, talvez.
- Só sei ir para lá daqui. Ides pela estrada oeste até Witham, e virais para norte, e depois ides outra vez para norte em Brinley.
- Fica a duas horas de distância, dissestes?
- Talvez um bocadinho mais. Os caminhos são só terra depois de se chegar a Witham. Não sei a que distância fica de Londres.
Diane saiu da casa pela porta dos criados, ao pé da cozinha. Pareceu-lhe apropriado fazê-lo, como fazia nos primeiros dias em Paris. Não era a boneca do abastado
Daniel St. John que arrancava dali naquele dia. Era a órfã sem um tostão, de origem tão obscura que não interessava a ninguém.
Duas horas de carroça, dissera Mary.
Uma pessoa conseguia andar mais depressa do que uma carroça.
Foi para oeste pela estrada. Regressaria bem antes de Pen e dos outros voltarem da costa.
Uma hora mais tarde, soube a razão por que as pessoas escolhiam carroças lentas em vez de passos rápidos.
Calçara os seus botins, mas os modelos que se vendiam nas lojas de Paris eram delicados, para não dizer pior. Os que tinha nos pés,
com as suas solas finas, não pareciam capazes de sobreviver a um dia na estrada.
Piorou quando enveredou pelo caminho de terra em Witham. Sentia todos os sulcos e pedras através das solas. Tentou ignorar o desconforto e repreendia-se a si própria
por ser tão mole. Era o que o luxo fazia às pessoas, Madame Leblanc sempre ensinara. Tornava-as moles e fracas e dadas ao pecado.
Como era verdadeiro. Como era tão, tão, verdadeiro.
Viu a imagem de Madame a entoar as suas lições de moral. Tentou aceitar a dor nos pés como castigo por gostar tanto dos beijos de Daniel. Disse para si própria que
cada um dos toques era mau e pecado e era marca de um homem em quem não se podia confiar. Um sedutor. Um predador. Um demónio.
O seu coração não o aceitava. Não sentia que houvesse pecado no que dizia respeito a Daniel.
Meditava sobre aquela nova verdade quando o som de uma carruagem a aproximar-se captou a sua atenção. Desviou-se, para a deixar passar.
Para sua surpresa, a carruagem veio parar ao seu lado. Andrew Tyndale estava sentado num cabriole de dois cavalos, rédeas nas mãos, olhando-a surpreendido.
- Miss Albret, que fazeis aqui?
- Vim só dar um passeio. O que fazeis vós aqui?
- Decidi tirar o dia para ir ao campo visitar um amigo. Deixai-me levar-vos para casa primeiro, no entanto. Temo que estejais mais longe do que pensais.
- Não vos incomodeis. Tendes coisas a fazer. Não poderia permitir que vos atrasásseis por minha causa.
- A demora será pequena, e insignificante, em todo o caso. Por favor permiti que vos auxilie.
- Nunca me perdoaria a mim própria ter-lhe causado algum inconveniente. Ficarei bem. Palavra. Gosto de dar longos passeios. Adoro. Continuai o vosso caminho conforme
planeastes, e eu vou...
Ele apeou-se da carruagem. - Nem pensar nisso. Deixai que vos ajude a subir.
Era de mais. De cada vez que reunia coragem para perseguir o seu objetivo, havia algum homem, determinado a ajudar e proteger, a interferir.
Ignorou a oferta de Mister Tyndale e deixou-se cair em cima de um pedregulho na berma da estrada. Enfiou a cabeça nas mãos e ficou a olhar para a ponta dos sapatos
mutilados.
- Há algum problema, Miss Albret?
- Tudo é um problema.
- Não compreendo.
Diane ergueu o rosto. Os olhos dele não eram fundos e imperscrutáveis e perigosos como os de Daniel. Eram transparentes, meigos e muito solidários. A sua expressão
aberta fê-la sentir-se logo melhor. com este homem não havia mistérios, sombrias confusões, nem taciturnas perturbações.
Preocupara-se um pouco com ele na noite anterior. Vendo-o jogar às cartas com Daniel, teve a impressão de que não estaria à altura do Homem Diabo, e estava condenado
a perder. Como ele parecia estar bem humorado, era óbvio que não tinha sido assim tão mau.
- Não estou a andar só para me distrair - disse ela, deixando sair a confidência sem uma decisão real. - vou a uma aldeia chamada Fenwood. Soube que tenho lá um
familiar e vou visitá-lo.
Preparou-se para que ele lhe lembrasse educadamente que deveria ter dito à dona da casa, ou a Pen, para que uma das duas providenciasse uma carruagem para a levar.
Ela não queria ter de explicar que não queria que ninguém soubesse que estava a fazer aquilo. Iria ter de fingir ser estúpida ao ponto de não se ter lembrado de
tais coisas.
Afinal, a expressão dele aligeirou-se, como se a explicação dela fizesse todo o sentido do mundo. - Este familiar aguarda-vos?
- Não. Só decidi ir hoje de manhã. Nunca cheguei sequer a conhecê-lo. Houve um distanciamento...
- Tendes a certeza de que vos receberá?
Não pensara naquilo. O pastor podia ser parente dela, mas não querer ter nada a ver com a filha de Jonathan Albret. Viu-se especada em frente à residência do pastor
e a fecharem-lhe a porta na cara.
- Não se apoquente, provavelmente correrá como esperais. Havia tanta gentileza no sorriso de Mister Tyndale enquanto a tranquilizava que ela teve de lho devolver.
- A minha visita pode esperar até amanha - disse ele. - Porque não levar-vos até Brinley? Fica perto de Fenwood. Podeis esperar lá e eu levo uma mensagem da vossa
parte ao vosso familiar. Se ele estiver de acordo, podeis ir fazer-lhe a vossa visita. Assim, também não tereis de voltar a pé, e estaremos de regresso à casa antes
dos outros.
Uma nota alegre e cúmplice infiltrou-se na última frase. Ele pensava que ela escondia a visita de Daniel por o afastamento ter sido obra dele.
A interpretação de Mister Tyndale era conveniente, porém. Ela dificilmente poderia explicar que não era prima de Daniel e que a pessoa era apenas parente dela. Além
disso, poderia ser melhor fazê-lo como Mister Tyndale sugeria, e enviar primeiro um pedido ao pastor.
- Mostrais-vos muito amável e generoso, Mister Tyndale.
- De todo, Miss Albret. De todo. É para isso que servem os amigos. - Apontou para o veículo. - Vamos?
- Adoro o mar - disse Hampton. Eram as primeiras palavras que pronunciava numa hora. - É o melhor exemplo do sublime. Posso dizer que estou satisfeito por não ter
regressado hoje à cidade.
- Eu detesto o mar - ripostou Daniel. Nunca compreendera aqueles disparates poéticos sobre o sublime, mas se o mar era exemplo disso, também detestava o sublime.
- Um sentimento inusitado, St. John - prosseguiu Vergil. -A vossa fortuna, fê-la o mar.
Daniel não queria saber que lhe tivesse feito a fortuna. Passara anos a balouçar nas suas ondas, mas não gostava minimamente dele.
Detestava a sua imprevisibilidade e a sua vastidão. Odiava a forma como fazia um homem sentir-se pequeno e à mercê do destino. Incomodava-o que as suas ondas ritmadas
conseguissem trazer à tona verdades das profundezas da alma de uma pessoa.
De todas as coisas que os homens faziam para fingir que conseguiam impor a vontade humana ao mar, a pesca desportiva sempre se lhe afigurara a mais ridícula. Era
uma forma de duelo, só que o opositor era primevo por natureza.
Daniel estava de pé numa rocha entre Vergil e Hampton, mais as suas longas canas de pesca no meio de todo o ridículo arraial. Ele e os outros homens do grupo testavam
as suas débeis capacidades contra a mais eterna força do planeta. Apanharam-se de facto alguns peixes, com grande alarido e excitação.
Vergil apanhara um enorme e escorregadio. Hampton não, mas tanto se perdera em contemplação que não se mostrara minimamente aborrecido.
Apenas o jovem Dante revelava inquietude. Estava sentado no chão ao lado das pernas do irmão, mostrando-se impaciente com o desporto e nem um pouco impressionado
com o sagrado sublime.
- Quando chegarão as senhoras, que achais? - inquiriu.
Sim, quando chegariam elas, que raio? Quando chegaria ela? Daniel forçara-se a não olhar para a estrada, a ver se chegavam, mas os seus ouvidos estavam permanentemente
à escuta de sons de carruagens.
- Seria de pensar que já tivésseis tido a vossa parte - murmurou Vergil, lançando um olhar irritado à cabeça do irmão. - Compreendeis, espero, que se algum marido
alguma vez vos pedir contas, sois um homem morto.
- Por falar nisso, talvez tenha chegado a altura de ele começar a ter lições com o chevalier - sugeriu Hampton. - Tendo em conta o seu gosto por feitos atléticos,
seria dinheiro bem gasto.
Dante ergueu os olhos, subitamente mais rapaz do que homem.
- E julgais mesmo que me desafiariam, a sério? Não é como se algum dos velhadas se importasse, de facto.
- Ser traído por um rapaz que ainda nem sequer saiu da universidade pode despertar o interesse do mais enfadado dos homens
- rematou Vergil.
- Rapaz uma ova. Não sois muito mais velho do que eu...
- Sou o suficiente para saber uma coisa ou duas a propósito de discrição...
Daniel parou de ouvir a querela dos irmãos. Outro som absorveu a sua atenção.
Aproximavam-se carruagens.
Finalmente.
Fez questão de mostrar que verificava a linha em vez de olhar para a estrada como ansiava fazer. Calculou a aproximação apenas pelo som enquanto lutava para dominar
a expectativa crescente, quase demente.
Cerrando os dentes, fixou os olhos no mar, mas isso só fez com que as malditas ondas fossem uma distraçáo, despoletando redemoinhos de memórias de paixão e prazer.
Anseios de posse soltavam-se como chamas das brasas acesas de desejo que há semanas ardiam dentro dele.
Ele fechou os olhos e forçou comedimento às suas reações. Estava a ser mais infantil do que Dante. Mais imprudente. Nem sequer sabia o que dizer quando voltasse
a vê-la. Não sabia ao certo o que queria dizer.
- Ah! As senhoras chegaram - anunciou uma voz ao fundo da fila de homens.
Daniel aguardou que as carruagens parassem para lançar a linha. Criados começaram a esticar panos e a dispor cestos na colina viçosa para lá da estrada.
Reparou no conde, que fixava atentamente uma carruagem. Seguindo a direção do seu olhar, Daniel viu a condessa a sair.
Seguiram-se duas outras senhoras. Daniel aguardou que aparecesse outra cabeça na abertura. Uma bela cabeça, com olhos emotivos que conseguiam fazer um homem esquecer-se
de si próprio.
Em vez disso, o lacaio fechou a porta da carruagem.
Daniel perscrutou o grupo, procurando Diane.
Encaminhou-se na direção da condessa, parada entre três mulheres que estavam a conseguir falar à volta dela, como se ela nem existisse. Desculpando-se como se tivesse
sido incluída, apanhou-o a meio caminho com um sorriso de gratidão.
- Quanta gentileza da vossa parte terdes vindo salvar-me, Mr. St. John.
- Seria uma satisfação acompanhar-vos, mas pergunto-me onde está a minha prima.
- Ela ficou na casa, para dormir. Foi irrefletido da minha parte tê-la deixado ficar a pé até tão tarde ontem à noite, e hoje de manhã estava muito cansada. Confesso
que fiquei tentada a me furtar a vir também, mas... - Indicou o conde com um olhar expressivo, e depois as suas companheiras de carruagem. - Uma pessoa tem de manter
as aparências e ser corajosa e isso tudo.
Daniel teria de longe preferido que a condessa tivesse cedido às suas inclinações para se esconder. A sua bravura significava que Diane fora deixada desacompanhada.
Não havia razão para a condessa se preocupar com aquilo, mas para Daniel sim.
Havia outro membro do grupo que não tinha mostrado a mesma coragem da condessa. Andrew Tyndale também pedira para ser dispensado da excursão.
O que significava que Diane não estava completamente sozinha na casa com os criados.
- Peço desculpa, mas afinal não terei possibilidade de vos fazer companhia. O vosso irmão cuidará de vós, tenho a certeza. Sinto-me obrigado a regressar à casa,
para me certificar de que a minha prima não se encontra doente.
- Estou certa que não. Apenas cansada...
Ele deu meia-volta e estugou o passo até à carruagem, não aguardando pelo outros. Notou que Vergil e Hampton o tinham visto. A expressão que fizeram e a rapidez
com que o intercetaram na carruagem sugeriam que ele não conseguia esconder bem a sua preocupação.
- vou voltar à casa, Duclairc. A vossa irmã precisa da vossa companhia neste momento.
- Ides regressar? Porquê?
- A minha prima ficou para trás. Está doente, e eu devo atendê-la.
- Estou certo de que se fosse sério Pen...
- vou lá verificar, de qualquer forma. - com um gesto, indicou ao cocheiro para partir.
A mão de Vergil travou o braço de Daniel quando este subia para a carruagem. - Parece-me que vou convosco. Jantar ai fresco enfada-me.
Daniel olhou para aquela mão e depois para Vergil. A desaprovação que Vergil mostrara no ribeiro cintilava-lhe nos brilhantes olhos azuis.
- A vossa irmã precisa de vós ao lado dela, e eu não tenho necessidade de auxílio.
- Mesmo assim...
- Permiti-me que seja eu a regressar - propôs Hampton. - A intrusão súbita deste barulho todo estragou-me o resto do dia. Penso que afinal sempre regressarei a Londres.
Não vos importais de me levar até ao meu cavalo, pois não, St. John?
Hampton, que raramente sorria, fazia-o agora com uma firmeza afável que informava que Daniel não regressaria sozinho para a casa e para uma Diane desacompanhada.
Raios. Era pouco provável que Vergil tivesse partilhado as suas suspeitas. Hampton devia ter sentido o que existia entre eles na noite anterior durante a partida.
Quem mais o teria visto? A condessa?
Tyndale? !
Devia dar uma sova a ambos por o insultarem com a insinuação de que ele não podia ser deixado sozinho com a prima.
Só que, claro, tinham razão.
Saltou para a carruagem. - Vinde, se quereis. Como se eu me importasse.
CAPÍTULO 16
Diane aguardava com impaciência, ensaiando o que iria dizer quando se encontrasse com o pastor. Visões de um reencontro banhado em lágrimas sucediam-se na sua mente,
pequenos dramas escritos ao longo dos anos, quando se deitava na cama da escola.
Ela esforçava-se para deter a imaginação. O pastor podia nem sequer aceder a vê-la. Podia não ser seu parente. Podia ser-lhe tão afastado que não tivesse interesse
numa associação.
Apesar de dizer a si própria aquilo tudo, a expectativa continuava a crescer. Durante cerca de meia hora depois de Mister Tyndale sair ainda conseguiu contê-la,
mas com o passar do tempo não parava de se avolumar.
Foi até à janela pela vigésima vez, para espreitar a rua à procura da carruagem. Brinley não era uma aldeia grande e a estalagem era minúscula. Mister Tyndale tivera
a generosidade de pagar um quarto para ela não ter de esperar na sala comum.
Era um quarto humilde mas bonito. Cortinas de musselina enfeitavam a janela e a cama. Umas alegres almofadas amarelas salpicavam a colcha azul e simples. Era o tipo
de quarto que ela presumira que teria quando fora para Paris com Daniel. Em vez disso, ele pusera-a dentro de um vaso de porcelana branco e azul.
Avistou uma carruagem. Mesmo não sendo maior do que um ponto, ela sabia que era de Mister Tyndale. O seu coração disparou. Tentou recuperar a compostura, lutou para
domar a esperança. Não conseguiu, e por fim preparou-se para sair a correr.
Mister Tyndale já estava à porta do quarto quando ela a abriu.
- Ele estava lá? Viste-lo?
- Estava lá.
- O que disse? Recebe-me?
- Lamento ter de vos desapontar, Miss Albret. Ele não sabe nada de vós e está certo de não haver parentesco entre os dois. É um velhote seco que não viu vantagem
nenhuma em ter a reunião que procuráveis.
A excitação desapareceu como que expulsada por um murro. A sua ausência imediata agravou o vazio mais do que nunca. Tornou-se tão grande que poderia tê-la absorvido.
Foi para a janela e olhou para o exterior, para esconder a sua reação. Lágrimas ameaçavam brotar. Acumulavam-se-lhe no peito e na garganta, e ela sentia-se pior
por não poder libertá-las.
- Magoa-me profundamente que isto vos tenha perturbado tanto.
Diane sentiu calor no seu ombro. A mão dele repousava lá, uma pequena mostra de solidariedade. O gesto paternal ajudou um pouquinho.
- Sinto-me culpado. Devia ter advogado melhor o vosso caso.
- Se não há parentesco, não há finalidade na reunião. Agradeço-vos terdes ido, poupando-me o constrangimento de ir importunar um estranho com o qual não tenho quaisquer
laços.
Ela virou-se para ele e a mão dele deixou-se cair. Ele parecia tão preocupado que ela se sentiu culpada. - Não há de ser nada. É só que tenho tão pouca família que
esperava descobrir mais, é tudo.
- bom, continuais a ter o vosso primo.
- Sim. O meu primo.
Só que não era primo coisa nenhuma e ela não queria continuar com ele. Percebeu que, inconscientemente, havia depositado uma
grande quantidade de planos no velho pastor. Sem o admitir, estava na expectativa de ter um sítio para onde ir quando deixasse Daniel. Agora não sabia ao certo para
onde iria nem como viveria.
- Estais perturbada. Receei que isso acontecesse. Antes de sair, dei indicação de que nos preparassem o jantar. Tomei a liberdade de dizer que no-lo trouxessem para
aqui para vós não terdes de comer lá em baixo, onde há outros que ficarão a observar-vos.
- Foi muito atencioso da vossa parte. Confesso que não estou segura de conseguir esconder bem as minhas emoções, e posso bem passar sem a companhia de outras pessoas.
Ele sorriu, gentil. - Aceitais a minha, pelo menos? Pode ser uma ajuda não estardes completamente só. Um pouco de conversa poderá distrair-vos.
- Oh, não me referia a vós. Tendes sido tão atencioso e prestável que eu... bom, aceito com agrado a vossa companhia. Apesar de não estar com muita fome.
- Tendes de comer alguma coisa na mesma. Não ficaria bem levar-vos de volta a desmaiar de fome.
Naquele preciso momento ela não queria nem um pouco voltar. Acabaria por ter de o fazer, claro. Antes disso, contudo, queria algum tempo para se acalmar e avaliar
o significado que esta desilusão tinha para o seu futuro.
O estalajadeiro chegou com a mulher e a filha, carregando tabuleiros de comida. Colocaram a pequena mesa perto da janela e arrastaram para lá outra cadeira. A um
gesto subtil de Mister Tyndale, a mulher desatou o drapeado de musselina da cama, para que a função da divisão ficasse disfarçada.
- Cheira muito bem - comentou Diane, dirigindo-se até lá para inspecionar a refeição depois de todos terem saído. Havia carne de ave com molho, batatas e pão. Uma
garrafa de vinho também os aguardava.
- Comida simples do campo - disse Mister Tyndale. - Prefiro-a aos pratos exóticos que são servidos em algumas festas de Londres.
- Também eu.
Ele indicou-lhe a cadeira dela com um gesto. Ela sentou-se.
- Penso que sois uma das pessoas mais amáveis que já conheci, Mister Tyndale.
Ele deixou escapar um sorriso modesto e serviu o vinho. - Qualquer cavalheiro faria o mesmo, Miss Albret. bom, vamos lá tratar da vossa disposição para vos termos
a sorrir outra vez.
Durante uma hora, ele distraiu-a com as suas conversas. A voz e a consideração dele tinham o efeito de um bálsamo. A desilusão diminuiu até não ser mais do que um
fino véu sobre o seu ânimo.
- Miss Albret, perdoe-me se estiver a intrometer-me, mas os acontecimentos de hoje pareceram afetá-la profundamente. Era importante para vós descobrirdes mais família?
Estais infeliz com a vossa situação?
A pergunta, feita quando ela enfiava o garfo numa tartelete de nata, agitou o véu.
- Não diria que estou infeliz, mas tenho andado a pensar que talvez seja bom procurar mudar as minhas circunstâncias. - Ela não estava certa da razão por que o admitia.
Saiu-lhe da boca, como resultado da familiaridade e à-vontade que o dia fizera crescer entre eles.
- Acho que podeis ter razão.
- O que quereis dizer com isso?
A expressão dele tornou-se séria e ponderada. - Arrisco o vosso desagrado com o que estou prestes a dizer, mas como sou um cavalheiro preocupado com o vosso bem-estar,
não vejo outra escolha. Tem havido rumores, lamento dizê-lo.
- Rumores?
- Não vos assusteis. Coisa pouca, e pura especulação. Bem, tendo em conta que St. John apareceu vindo do nada, sem história, rico como o pecado, com grande probabilidade
de a sua fortuna ter sido gerada por meios ilícitos... Diz-se que foi com sedução e nada mais que abriu as portas dos círculos que agora frequentais. Depois aparece
uma prima, também sem história... a forma como ele corre
com os homens, a forma como dançou convosco no baile... o que posso dizer? Tem havido comentários.
O conde de Glasbury insinuara o mesmo, por isso ela não ficou assim tão chocada. Não obstante, de repente ficou a gostar muito menos de Mister Tyndale.
Ele interpretou mal o silêncio dela. - Miss Albret, por favor perdoai-me se vos pergunto isto, sei que não me compete, realmente, mas vós sois tão inocente e tão
jovem. O vosso primo importunou-vos de alguma forma? Desde ontem à noite que isso me preocupa. Enquanto jogávamos às cartas senti que vós tínheis medo dele, e que
o interesse dele por vós não era totalmente apropriado.
- Estais enganado, asseguro-vos.
A expressão dele ficou imediatamente mais leve. - É um alívio ouvi-lo, e é o que esperava. Quando dissestes que talvez fosse bom mudar a vossa situação...
- Não quis dizer que precisava de fugir do meu primo - mentiu, desconfortável com o rumo que a conversa tomava. Mister Tyndale podia ser amável e paternal, mas não
era o pai dela. - Referia-me a coisas mais práticas. Não tenho fortuna e vejo pouco futuro nos círculos que venho frequentando. Tem sido agradável, mas talvez fosse
avisado procurar um caminho mais realista. Não quero ser uma daquelas parentes pobres, para sempre dependentes.
- Um sentimento admirável. - Ele pousou os cotovelos na mesa, juntou as mãos, apoiou o queixo em cima delas, e olhou para ela muito diretamente. - Quero que saibais,
porém, que se alguma vez precisardes de qualquer ajuda que seja, sentir-me-ei honrado se puder assistir-vos.
Era um comentário muito típico de Mister Tyndale. Atencioso e solícito. E, contudo... Diane não conseguiu reprimir uma pontinha de cautela. Os seus olhos azuis pareciam
tão límpidos e honestos como sempre, incrivelmente interessados, mas durante um instante mínimo ela pensou ter vislumbrado uma centelha minúscula, preocupante.
- Gostaria que pensásseis em mim como vosso amigo - continuou ele. - Admitirei, correndo o risco de vos fazer rir, que espero que um dia penseis em mim como algo
mais do que um amigo.
A mesa pareceu-lhe subitamente muito pequena e o rosto dele muito próximo. Um rosto agradável e sincero ainda, mas surgiram-lhe mais daquelas faúlhas nos olhos,
mudando tudo.
O espanto foi tanto que ficou sem conseguir mexer-se ou falar.
De repente, o braço dele atravessou a mesa e a mão dele segurou-lhe o queixo. - Sei que há uma grande diferença entre as nossas idades, mas isso não é assim tão
invulgar. Admiro-vos desde a primeira vez que nos vimos. Espero que pelo menos considereis o meu afeto, e que o vosso primo não objete se eu me apresentar como pretendente.
Pretendente!
Ela ficou pasmada a olhar.
Ele levantou-se da cadeira e inclinou-se sobre a mesa.
A mente confusa de Diane não compreendia o porquê de ele estar a fazer aquilo.
Ele mostrou-lhe o porquê.
O afável, generoso e sincero Mister Tyndale beijou-a, e contornou a mesa enquanto o fazia.
- Não há prova de que ele a tenha seguido.
Hampton ofereceu o reconforto dentro do coche, que dobrava uma curva da estrada, inclinando-se com a velocidade. - Ele só mandou vir a carruagem dele muito depois
de ela ter saído, e pode ter seguido por um caminho completamente diferente.
- Se assim foi, saberemos dentro em breve e aí podeis dizer-me que fui estúpido.
Tinham chegado à casa e descoberto logo a ausência tanto de Diane como de Tyndale. Levara-lhes um tempo insuportavelmente longo para localizarem alguém que soubesse
para onde Diane tinha ido. Por fim, a caseira apresentara uma rapariga chamada Mary que relatou a informação sobre o pastor de Fenwood.
Daniel não tivera tempo de se perguntar o que teria querido
Diane do pastor. O moço que preparara a carruagem de Tyndale
chegara pouco depois, e a convicção de que Tyndale seguira Diane alojara-se, determinada, na mente de Daniel, não deixando espaço para mais nada.
Ele não tirava os olhos da paisagem campestre, procurando vestígios dela, ou de Tyndale. Ou de ambos.
- Suspeitais disso por causa de ontem à noite? - perguntou Hampton. - Ele parece um sujeito decente. Todos o dizem. Não esperaria que ele procurasse desforrar-se
de vós através dela.
Só que ele não era um sujeito decente. Ficaria encantado por se desforrar de alguém daquela forma, porque tinha um fraquinho por raparigas inocentes de maneiras
refinadas e pele branca e cabelo escuro. Especialmente se elas estivessem impotentes e dependentes dele e sem qualquer proteção.
O coche atravessou Witham a toda a brida e virou para uma rua de terra. E aí teve de abrandar. A demora deixou Daniel furioso.
Hampton mantinha uma calma notável, mas, vendo bem, ele era sempre assim. A Daniel, aborrecia-o que o advogado não percebesse o perigo que eles se apressavam para
evitar.
- Se estais tão seguro da decência de Tyndale, não sei porque insististes em acompanhar-me.
- Já que estamos quase lá, digo-vos porquê. - Hampton indicou com um gesto preguiçoso as pistolas penduradas na parede do coche por cima da cabeça de Daniel. - Estou
aqui para me certificar de que não levais nenhuma das duas convosco quando descerdes desta carruagem.
- Se me sentir inclinado a matar um homem, bastam-me as minhas mãos.
- Não duvido disso. Na verdade, suspeito que o comprovastes. No entanto, hoje não o fareis.
Entraram nos arrabaldes de Brinley. Daniel ordenou ao cocheiro que fosse devagar.
Hampton examinava um lado da rua enquanto Daniel examinava
o outro. Perto da outra ponta da aldeia, Daniel viu uma pequena estalagem à frente da qual estava parado um cabriole conhecido.
Saiu do coche antes de este parar, com Hampton no seu encalço. Lá dentro, procurou o estalajadeiro e perguntou pelo homem a quem pertencia o cabriole.
- Não está. - Foi a resposta do estalajadeiro, que deu meia-volta.
Daniel agarrou-lhe no peitilho da camisa e puxou-o até os dedos dos pés se lhe levantarem do chão. - Onde está ele? Atónito, o estalajadeiro limitou-se a apontar
para cima.
- Está só?
A cabeça sobre a sua mão crispada abanou.
Ele largou o homem e dirigiu-se às escadas.
Hampton agarrou-lhe no braço. - Não façais nada precipitado.
Daniel enxotou-o e subiu os degraus três a três.
Só havia dois quartos no segundo piso. Uma das portas estava aberta, revelando uma divisão vazia.
Abriu de rompante a porta de outro. Foi invadido por uma raiva violenta ao deparar-se com a cena de sedução.
Tyndale estava curvado sobre uma Diane sentada, segurando-lhe o rosto entre as mãos, beijando-a. As costas dela estavam contra a cadeira e os braços dela agarravam
os dele. A resistir-lhe? A abraçá-lo? No segundo antes de a porta bater com um estrondo na parede não era claro. A Daniel também não lhe importava.
Tyndale ergueu a cabeça e afastou-se da mesa. A expressão de Diane registava surpresa, e depois horror. Ela virou-se para trás e cobriu o rosto com as mãos.
Sem pensar, sem se importar com nada, conduzido por emoções sombrias de mais para atentar em custos, Daniel voltou a sua atenção completa para Tyndale e deu um passo
na direção do homem que tencionava desfazer em pedaços.
Uma mão no seu braço deteve-o. Tentou espantá-la, mas esta não se mexeu. Furioso, voltou-se para Hampton, disposto a afastá-lo com um murro se necessário fosse.
- Não esqueçais quem ele é. Vale a forca? - perguntou calmamente Hampton.
Regressou uma pequena centelha de razoabilidade. Tyndale observava, sem mostrar a mínima preocupação. As mãos de Diane deixaram-se cair. Sentada, ali, a olhar para
ninguém, era palpável a sua humilhação. Ficaram todos nos respetivos lugares, num silêncio cortante, um tableau vivant de ruína e comprometimento e raiva.
- Miss Albret, deixai-nos, por favor - disse Hampton com a sua voz de advogado.
Ela começou a falar, mas parou. Daniel não conseguia imaginar o que ela pensava poder dizer. Tentar desculpar Tyndale? Acusá-lo de a ter enganado? Não importava.
A situação falava por si. Não havia homem que levasse uma mulher para um quarto daqueles se as suas intenções fossem honradas.
Ela apressou-se a sair e Hampton fechou a porta.
Tyndale foi até à mesa, sentou-se numa cadeira, e serviu-se de vinho.
- Foi apenas um beijo - disse ele. - Ela não se importou minimamente, porque haveis vós de vos importar?
Daniel queria estrangulá-lo.
Hampton assumiu uma posição de barreira entre os dois. - comprometeste-la com o simples facto de a terdes trazido para este quarto. Ela pode não o ter compreendido,
mas vós certamente que sim. Agora tem de se encontrar uma solução.
- Imagino que possa oferecer alguma compensação, se não for muito alta.
- Não se trata de uma leiteira que possais despachar com um punhado de libras - devolveu Hampton.
- Para todos os efeitos é mesmo. - Tyndale bebeu um gole e pensou. - Não sugeris certamente que eu faça por ela o que deve ser feito? Suponho que pudesse considerá-lo,
se ela tivesse nascimento ou fortuna.
- Diabos me levem se permito tal coisa - rosnou Daniel.
- Não podeis esperar que fique com ela sem dinheiro nenhum, St. John. Certamente que a reputação dela vale algumas
libras.
- Também tendes uma reputação - lembrou Hampton. Tyndale riu. - Por mais prendada que seja, ela não é ninguém.
Por mais rico que seja, esse vosso amigo também não. Penso que a minha reputação consegue sobreviver a este mal-entendido.
- Que tipo de acordo tínheis em mente? - inquiriu Hampton.
- Não a quero amarrada a ele, e com ele a aproveitar...
- A dívida de ontem à noite desaparece, para começar. Isso e mais vinte mil poderiam resolver o assunto.
- Quarenta mil libras é uma soma bastante avultada - respondeu Hampton.
- Penso que é generoso da minha parte considerar sequer o assunto seriamente.
- Penso que é generoso da minha parte deixar-vos viver - prosseguiu Daniel.
Tyndale deu uma dentada num resto de tartelete. - É um desafio?
- Não - assegurou enfaticamente Hampton. - Está irritado, como seria de esperar. A vossa postura só o provoca mais. Não esqueçais que sou testemunha do que se passa,
e eu não sou um zé-ninguém.
Tyndale voltou-se e estudou Daniel. - Ficastes muito perturbado com um simples beijo, St. John. Mostrais-vos tão protetor como se de uma irmã se tratasse.
O quarto desapareceu. Assim como a ideia de qualquer acordo. Exceto um.
Era a única resolução que ele alguma vez quisera com este homem. Planeara-a, vivera para ela e depois, por causa de Diane, descartara-a. Mas agora, mesmo assim,
aqui estava.
Por vezes o destino conspira para forçar uma pessoa afazer o que tem de ser feito.
- Não haverá casamento nem acordo - comunicou, abrindo a porta. - O meu padrinho visitará o vosso amanhã em Londres.
CAPÍTULO 17
Era como se alguém tivesse morrido. Uma sobriedade silenciosa envolvia a casa. Diane sabia o porquê daquela atmosfera carregada. O comportamento dela não manchara
apenas a sua reputação, mas também a de Daniel e da irmã. Toda a casa sofreria por causa da sua estupidez.
Homens visitavam Daniel, com o mesmo rosto que as pessoas envergam nos velórios. Mister Hampton apareceu várias vezes no dia a seguir ao regresso de Diane e Daniel
a Londres, e Vergil Duclairc também esteve de visita. Houve outros homens que ela não conhecia. Finalmente, ao fim da tarde, um homem grisalho de porte nobre foi
conduzido ao escritório de Daniel. Diane viu-o passar pela biblioteca, onde estava a ler um livro.
Foi até à entrada e olhou para a porta do escritório. Daniel passara ali a maior parte do seu tempo desde o regresso deles. Ele mal falara com ela depois de a encontrar
na estalagem. Regressado do confronto com Tyndale, perguntara apenas se ela estava ilesa. As afirmações dela não tinham suavizado a sua expressão e ele não quisera
ouvir as explicações dela.
Ele nem sequer tinha ido na carruagem quando regressaram a Londres. Ficara ao lado do cocheiro, tomando as rédeas nas mãos.
Regressaram imediatamente. Mister Hampton mandou emalar as coisas deles e enviou-as para a cidade na carruagem da condessa.
O homem não ficou no escritório durante muito tempo. Saiu, sério e apagado, parecendo um personagem de uma tragédia.
A porta do escritório ficou entreaberta. Diane passou por lá e espreitou para dentro.
Daniel estava, como tantas outras vezes, perto da janela, a olhar para fora. Parecia muito sozinho. Muito isolado.
Ela entrou sorrateiramente.
- Gostaria de falar convosco - disse ela. - Parece-me que devo voltar para França. O escândalo não vos afetará tanto se eu já cá não estiver.
- Não será necessário. A culpa não foi vossa.
- A culpa, foi minha. Eu devia ter percebido...
- Pessoas mais sensatas e vividas do que vós não se aperceberam.
Ele parecia tão distante. O coração dela sofria por Daniel insistir em não olhar para ela. Ele anulara qualquer familiaridade entre os dois. Fechara uma porta. Ela
voltara a tornar-se uma responsabilidade, nada mais.
Tinha sido a vontade dela. Decidira que esta amizade e esta intimidade tinham de acabar. Agora, experimentar o gelo da sua morte entristecia-a mais do que ela alguma
vez esperara.
- Não foi o que pareceu - disse, ouvindo a sua voz embargada. A verdade não iria fazer diferença, mas de súbito foi de importância vital que ele ouvisse aquilo.
- Ele ajudou-me quando eu estava na estrada, e foi ver se um pastor de Fenwood se encontrava comigo. Eu limitei-me a esperar no quarto que ele regressasse, não que...
Ele virou-se para ela. - E depois ele mandou vir o jantar, e vocês comeram, e para vosso choque vós descobristes que ele não pensava em vós como uma filha ou uma
sobrinha.
- Sim.
- E depois ele aludiu a afeto e amor, até mesmo a casamento.
- Sim. Como sabíeis?
- E depois beijou-vos. E vós permitistes.
- Foi um choque, estava estupefacta. Foi tão inesperado...
- Não interessa.
- Interessa sim. - E interessava. Naquele momento, interessava mais do que qualquer coisa no mundo.
- Não estou certo do que vi quando entrei. Sei sim que se não tivesse chegado, Tyndale não teria parado depois de um beijo e que o vosso consentimento em estar naquele
quarto tê-lo-ia absolvido das piores acusações.
Ela não sabia o que dizer. Tinha sido insuportavelmente ingénua e estúpida. - Certamente, se eu fosse embora, ninguém se importaria com isto. Ninguém viria a saber.
- Oh! Claro que viria a saber-se. Estas coisas arranjam sempre forma de sair por algum lado. Não vos preocupeis demasiado com o assunto, porém. Estou a tratar disso.
Disse a última parte com firmeza. O silêncio da casa e a retirada de Jeanette para os seus aposentos fixaram-se na memória de Diane. Como também a procissão de visitantes
sisudos.
Assolou-a uma suspeita terrível.
- O homem que esteve aqui agora mesmo. Não era o chevalier Corbet? Ele nunca vos visitou.
Daniel foi até à secretária. Estava apinhada de livros-mestre e outros livros. - E um velho amigo e concordou em fazer-me um favor importante.
- Que favor? - Ela foi até à secretária e contemplou a prova de que um homem colocava os seus assuntos em ordem. - Mãe de Deus, o que fizestes? Desafiastes Mister
Tyndale por causa disto?
- É evidente.
- É evidente? Eu nem sequer sou vossa prima de verdade. Não tendes responsabilidade em relação a mim, muito menos a de um gesto tão perigoso. Decerto havia outra
forma de salvaguardar o vosso orgulho, sem que tivésseis de tentar matá-lo.
- Não outra que me fosse aceitável.
- E se ele vos mata a. vóst - A ideia fez-lhe revolver o estômago. Se ele morresse por aquilo, por uma coisa tão pequena, ela nunca se perdoaria. Seria para sempre
perseguida pela culpa.
Ela tinha decidido deixá-lo, mas não assim. Não de uma forma tão permanente. Saber que ele estava algures no mundo teria facilitado tudo. Assim, ela podia sofrer
uma perda que o seu coração sabia já não conseguir absorver.
- Não estejais preocupada. Estareis amparada se eu falhar. Passei a manhã a tratar de obrigações para vós e Paul e mais algumas pessoas. Não ficareis desprovida.
- Não quero o vosso dinheiro. Não quero que este confronto vá para a frente.
É imprudente e desnecessário. Tanto quanto sabeis, as atenções dele agradaram-me. Talvez
ele estivesse a ser sincero ao comunicar as suas intenções como pretendente. Talvez eu tenha gostado do beijo e da oportunidade de agarrar o filho segundo de um
conde.
Daniel aproveitou para compor alguns livros-mestre. - Talvez sim. É o que está a parecer.
Um não imperioso subiu-lhe aos lábios, mas ela reprimiu-o. Proclamar a sua inocência, descrever a repulsa que sentira pelos beijos insistentes de Tyndale, só deitaria
achas para a fogueira.
Partia-lhe o coração que Daniel pudesse pensar que ela desejara aquela cena de sedução, mas o seu orgulho pouca importância tinha naquele momento. Ela não podia
deixá-lo bater-se naquele duelo. Não podia arriscar que ele morresse. Deixá-lo perguntar-se se não estaria a proteger uma mulher que não merecia o seu cavalheirismo.
Poderia conduzir a que ele abdicasse do duelo.
- E não é só imprudente, mas também hipócrita. O vosso próprio comportamento comigo tem sido muito pior do que o de Mister Tyndale.
- Tenho consciência disso. No entanto, a um nível essencial, foi muito diferente, de formas que vós não conseguis compreender.
- Como objeto desse comportamento, não vejo diferença, a não ser que as intenções últimas dele possam ter sido honradas.
- Estou muito certo de que não o eram. Nem as minhas. Em todo o caso, um de nós pagará por vos ter destratado, e talvez por muito mais.
- Para quando está marcado, este duelo?
- Louis está com o padrinho de Tyndale neste preciso momento. Conto que seja para breve.
- Jeanette sabe o que planeais fazer?
- com certeza.
Ele dissera à irmã, mas não à mulher por cuja honra ele lutava.
- Presumo que ela vos tenha suplicado para mudardes de ideias.
- Ao contrário de vós, Jeanette sabe bem que não vale a pena tentar.
- Talvez seja por não saber a história toda.
Ela deu meia-volta, para ir recrutar uma aliada. A voz dele seguiu-a em surdina até à porta. - Na verdade, é por saber mesmo toda a história.
- Tendes de o deter. - Na saleta, de pé em frente a Jeanette, Diane disse-o como uma ordem.
- Ninguém consegue fazê-lo, agora.
Jeanette parecia resignada e frágil. A sua pele branca mostrava rugas ténues em que Diane nunca tinha reparado.
Começou a andar para trás e para diante. Um misto de frustração e preocupação extrema martelava-lhe na cabeça. - A reaçáo de Daniel foi demasiado extrema. Um duelo!
Tinha de haver outra forma...
- Houve. Mister Tyndale ofereceu-se para casar convosco se levásseis um dote.
- O vosso irmão prefere morrer, ou matar, a pagar meia dúzia de libras?
- A soma era muito grande e pretendia ser um insulto tanto para vós como para o meu irmão. No entanto, não foi por isso que Daniel recusou.
- Então porque foi?
Ela alisou as pontas do xaile. - Ele nunca vos colocaria numa situação em que vos sentísseis obrigada a casar com um homem para evitar este confronto.
- Deveria ter sido escolha minha, não dele.
- bom, ele fê-la. Além disso, Daniel nunca teria deixado Tyndale ter-vos de forma alguma, nem mesmo em casamento. Não tenho dúvidas de que mais depressa mataria
o homem do que o permitiria.
Diane pousou a mão no ombro de Jeanette e olhou-a nos olhos.
- Daniel disse algo sobre vós saberdes a história toda. Há mais alguma coisa aqui pelo meio?
- Digo-vos isto. Faço-o na esperança de que não vos culpeis a vós própria. Paul sugeriu que Mister Tyndale podia já ter-vos levado deliberadamente para aquela estalagem,
com a intenção de provocar um duelo com Daniel. Na noite anterior, a jogar às cartas com Daniel, tinha perdido uma soma avultada. A sua obrigação para com a dívida
desapareceria se Daniel morresse.
- É uma forma drástica de acertar uma dívida.
- E uma forma eficaz. Mister Hampton, o advogado, apresentou esta teoria a Daniel. O meu irmão considera-a irrelevante, claro. Contudo, explicaria o porquê de o
dote que Tyndale pediu para casar convosco ser tão escandalosamente elevado. Incluía a dívida, reparai.
Então ela fora um peão. A gentileza, na rua, fora meramente a atitude de um homem que avistara uma oportunidade. Talvez até a tivesse seguido, esperando encontrar
uma forma de a comprometer para que tudo pudesse desenrolar-se como se desenrolou.
Ser a boneca de Daniel tinha sido uma coisa. Ser o joguete de Tyndale era outra. Ela caíra na armadilha como a pateta estúpida e ignorante que era. Pior, Daniel
podia morrer por causa disso.
- Essa teoria só funcionaria se Mister Tyndale estivesse confiante em ganhar o duelo - prosseguiu ela.
- Tem reputação de ser um excelente atirador.
Um dos melhores atiradores de Inglaterra, dissera-lhe Daniel naquele dia junto ao ribeiro.
- Temos de impedir isto, Jeanette.
- Ninguém tem capacidade para o fazer. Acreditai em mim. Conheço o meu irmão como mais ninguém. Ele vai defrontar Tyndale, e fá-lo-á com o intuito de o matar.
Diane aguardou até a casa se fazer silenciosa e levantou-se da cama. Horas de tumulto e culpa haviam redundado numa decisão.
As emoções dos últimos dias tinham-na preparado para aquela escolha. Talvez as dos últimos meses. A desolação de considerar a possível morte de Daniel revelara as
verdades do seu coração.
Tirou do armário um robe que nunca tinha usado. Um modelo frívolo, nada prático, de cetim rosa-escuro e renda bege, que tinha sido feito em Paris por capricho de
Jeanette, apesar de Diane insistir que nunca usaria tal vestimenta.
Imaginou o aspeto com que ficaria com aquilo por cima da sua singela camisa de noite. A imagem que lhe veio à cabeça era cómica e ridícula. Pareceria uma criança
vestida com as roupas da mãe.
Decidindo que não era altura para pudores, despiu a camisa e vestiu a sua nudez com a seda rosa, que a cobria quase como um vestido de noite, só que a frente tinha
uma abertura pronunciada, e o toque sensual do tecido cingia-se-lhe às curvas. O decote redondo, debruado a renda, tocava-lhe os seios.
Sentiu um nó no estômago. Estava prestes a fazer uma coisa que qualquer pessoa com algum juízo consideraria um erro estúpido e escandaloso.
Pior, poderia falhar. No escritório ele tinha-lhe sido tão indiferente que ela não confiava que o seu plano fosse resultar. Mas tinha de tentar. Jeanette dissera
que ninguém conseguiria fazer com que ele anulasse o desafio. Havia uma pequena possibilidade de não ser verdade.
Reunindo toda a coragem, saiu do quarto para ir negociar com o Homem Diabo.
CAPITULO 18
Abriu a porta do quarto de Daniel com cuidado. Um feixe de luz entrou pela frincha.
Sentiu as pernas bambas. Fez uma pausa e um esforço para manter a calma.
Esperou que não fosse horrível de mais. Ele não era um estranho. As suas boas intenções deviam salvaguardá-la de se tornar uma perdida, independentemente da forma
como os outros vissem a sua atitude. Independentemente de como ele a visse.
Empurrou um pouco mais a porta e entrou, sorrateira.
A elegância ampla e esparsa do quarto surpreendeu-a. A mobília possuía um toque oriental. Toda a estrutura da cama era de linhas direitas, com ornamentações em relevo,
e o guarda-fatos tinha embutidos de flores e pássaros. Perto da cama, viu uma cómoda entalhada com três cores de madeira.
Os apontamentos exóticos não tornavam o quarto opressivo. Não era nenhuma fantasia asiática. Pareciam objetos que ele simplesmente tinha trazido das suas viagens
e posto a uso.
Daniel estava sentado numa cadeira perto da lareira vazia, lendo um livro à luz de um candelabro. A cadeira estava virada para ela e ela viu o robe japonês de mangas
compridas que ele envergava,
fechado e atado com uma faixa de pano. Era azul-escuro com um padrão branco e lembrou-lhe o quarto que ela ocupara em Paris.
Reparou nas pernas dele, nuas, que o robe deixava destapadas dos joelhos para baixo. Via-se um profundo V de pele exposta acima do ponto onde as abas do robe lhe
cruzavam o peito.
Parecia que ele não trazia mais nada vestido, o que tornava ainda mais inequívocas as implicações daquilo que ela se propusera fazer. Esperara encontrá-lo de casaca
e botas, ou já adormecido num quarto escuro. Não ali sentado, com aquela luz toda, quase nu.
Tinha um aspeto maravilhoso, um homem de ação temporariamente em repouso. Apesar de relaxado, o magnetismo emanava dele como uma força invisível, afetando-a como
afetava sempre, desassossegando-a e deixando-a mais desperta do que o normal. A luz das velas esculpia-lhe o belo rosto em ângulos severos e os seus olhos escuros
luziam como estrelas negras.
Ele não a ouvira entrar. Ela ficou de pé à frente da porta, com tanto medo e tão nervosa que teve de forçar a voz a sair.
- O que estais a ler?
Ele mal reagiu, mas ela percebeu que o tinha surpreendido.
- Poesia.
Ele ergueu os olhos.
De repente, o seu robe pareceu-lhe muito fino e muito perverso. Não lhe pareceu que a cobrisse nem de perto como cobrira no quarto.
Ela foi alvo de uma inspeção longa e lenta, cheia de interesse masculino. Uma vitalidade tensa, despertada, partiu do outro lado do quarto em direçáo a ela.
- Estais muito bela. Não vejo o vosso cabelo solto desde aquele dia na escola. - Indicou distraidamente o robe. -
É muito bonito.
- Foi Jeanette que mo escolheu, em Paris.
- Ela sugeriu que o usásseis hoje à noite?
- Não. Porque o faria?
Ele fez aquele sorriso jocoso dele. - Então foi ideia vossa vestirdes isso, soltardes o cabelo e virdes até aqui. Porquê?
O rosto dela ardia. Não tinha contado anunciar verbalmente as suas intenções. O robe e a sua presença deviam bastar.
- Viestes tentar-me, Diane?
- Sim.
- Se pensais encantar-me com a vossa beleza e depois sair, quero que saibais agora que náo se passará assim.
- Eu sei disso.
Ele forçou-se a desviar o olhar dela para o fogo brando. Nem sequer compreendeis o que estais a oferecer.
- Náo sou ignorante. Sei o que é esperado.
- Não sabeis o que eu espero. Voltai para o vosso quarto. Ela quase obedeceu.
Em vez disso, caminhou na direção dele.
- Não quero que este duelo aconteça. Quero que recueis.
Ele olhou para ela, e não foi com um ar satisfeito. Ela reparou que, apesar da irritação, ele lhe apreciava as pernas, que espreitavam pela racha do robe a cada
passada.
- Se vierdes até mini assim, deveis querer muito que ele viva. Preferiríeis a outra solução dele? Casar-se convosco?
Ao lado das suas pernas nuas, ela olhou para aqueles olhos escuros, donos de perigosas profundezas. Anos antes, aqueles olhos assustavam-na. Agora enfeitiçavam-na.
- Só me interessa que náo haja duelo.
O olhar dele percorreu-a, breve e exaustivamente. - Não se trata apenas de vós.
- Não, também se trata de vós e do vosso orgulho.
- Sendo assim, procurais salvar um homem sem honra fazendo-me a mim ainda mais indigno do que ele. - Virou o livro que tinha no colo e voltou a debruçar-se sobre
ele. - Permiti-me alguns escrúpulos, além do mais, no que vos diz respeito. E agora, por favor, regressai ao vosso quarto.
Ordenava-lhe que se retirasse, e não era com delicadeza. A coragem dela vacilou. O seu corpo inteiro vacilou. Estar perto dele provocava-lhe aquilo, mais do que
a própria rejeição. O constrangimento
por ter sido rejeitada foi abafado pela desilusão de ele não a querer o bastante.
Se ela soubesse mais sobre estas coisas não teria falhado. Se fosse mais bonita, ou mais vivida, ou mais sedutora, a escolha dele teria sido diferente.
Devia retirar-se com o orgulho que lhe restasse, mas não podia. Poderia não voltar a estar assim perto dele, poderia nunca mais ver a luz das velas a desenhar-lhe
sombras no rosto como naquele momento. Depois de se afastar, a aura dele nunca mais a envolveria como envolvia agora, incitando-a a ficar ainda que ele a repudiasse.
Ele virou uma página. - Ide-vos, já. Quero que vades.
Tremendo, mal conseguindo manter o equilíbrio, ela baixou-se até ficar de joelhos ao lado das pernas dele, inclinou-se e apoiou-se nos calcanhares. Ele ainda lia,
mas conseguia vê-la por cima do livro.
Desapertou o primeiro botão pérola que lhe cobria o seio. Demorou-lhe tempo de mais porque os dedos não mostravam vontade de trabalhar. Não era só o nervosismo que
os tornava desajeitados. Estar a escassos centímetros dele afetava-a.
Finalmente conseguiu. O robe e a sua seda afastaram-se um pouco. Começou rapidamente a desembaraçar-se do botão seguinte.
- Devagar, querida. Seduzir não é algo que se faça à pressa.
Ela ergueu os olhos.
O livro estava na mesa ao lado das velas. O príncipe da tentação observava.
A atenção dele deixou-a enfeitiçada.
Desapertou os outros botões muito lentamente, já que mal reparava no que fazia. Ele parecia também não reparar. Os olhares, unidos, eram tudo o que existia, ligando-os,
dando origem a confissões e expectativas cuja existência nunca devia ter sido reconhecida. Ela sabia que ele a queria, isso era óbvio. Se ele aceitaria a sua proposta
já era menos claro.
Tendo chegado ao último botão, perto da cintura, ela forçou-se a apartar os olhos dos dele e a olhar para baixo. O cetim abria-se, mal lhe cobrindo os mamilos, duros
contra o tecido brilhante.
Olhou de novo para ele. Parecia aguardar alguma coisa.
Engolindo em seco, afastou mais o robe. O cetim brilhava-lhe na pele. Afastou mais o tecido, para mostrar os seios.
A sensação de estar ali ajoelhada, expondo a sua nudez, inundou-a de um arrebatamento erótico. Os seus seios tornaram-se pesados e cheios. Os seus mamilos endureceram
mais, sensíveis agora ao ar, ao olhar dele e até à própria luz. Tremores de excitação obscureciam o seu constrangimento. A carícia do cetim na sua pele tornou-se
uma pequena torrente de sensualidade.
A expressão dele ficou mais tensa. Ela sentiu que travava uma batalha. O ar entre eles ficou carregado daquela tensão.
- Devia deixar que vos despísseis completamente para não haver equívocos sobre o que está a acontecer, e porquê.
- Não haverá equívoco algum.
Desviando o olhar, com medo de ver a reação dele, ela ergueu a mão e, espantada consigo própria, deu por si a pousá-la na perna dele e a subir-lhe até ao joelho
numa carícia.
O mundo girou. com um movimento que a surpreendeu e desnorteou, ele puxou-a para a frente, para os seus braços e o seu colo, e tomou-lhe a boca num beijo selvagem.
O cetim oferecia pouca proteção contra a aspereza quente do seu abraço. A boca dele exigia uma rendição mais completa do que alguma vez os seus beijos haviam exigido.
A pressão da excitação dele na sua coxa provava-lhe que era melhor sedutora do que tinha pensado.
Os beijos dele instigavam a sua paixão a elevar-se ao nível da dele, o que se verificou nas respostas dela às suas exigências possessivas e quentes. O poder das
sensações que percorriam e torturavam o seu corpo assustava-a.
- Disse-vos que partísseis. Não digais que não fostes avisada. A cabeça dele virou-se. O seu cabelo suave roçou-lhe o rosto. A boca dele desceu-lhe pelo pescoço.
Os seios dela, mais volumosos, palpitavam, e um desejo louco de que ele continuasse mais para baixo tomou conta de si. Arqueou-se instintivamente, para o encorajar.
Ele beijou-lhe o volume do seio como resposta. - Alegra-me que o queirais, que não seja um sacrifício assim tão grande.
- Também quero que pareis com o duelo. - Ela mal conseguiu que as palavras saíssem, mal se lembrou de lhe pedir a promessa.
- Pensais mesmo que conseguiríeis ir embora agora se eu recusasse?
Pareceu uma ameaça, mas ele roçou-lhe o mamilo com o dedo para clarificar que ela não iria embora porque não queria fazê-lo. Todo o seu corpo se fletia. A sua respiração
entrecortava-se.
- Dou-vos a vida dele e vós dais-vos a mim. E um acordo diabólico, o que pretendeis, Diane, e ambos o lamentaremos muito em breve, parece-me. - Os seus olhos escuros
conseguiram penetrar os dela. - Neste preciso momento, contudo, não me importo minimamente. Haveis tratado disso.
Ele ergueu-se com ela nos braços. Avançou até à cama e deixou-a cair nela. Agarrando o robe de Diane pelos ombros, puxou-o e pô-lo de lado, deixando-a nua.
Olhando para ela, começou a desatar a faixa do seu robe.
Ali, ela quase mudou de ideias. Os momentos passavam ritmados, demasiado vivos e reais. Face à franqueza sensual do olhar dele era impossível negar o que ia acontecer.
Ali deitada na cama, nua e vulnerável, sem mais nada a cobri-la que não o poder masculino que emanava dele, ela soube que ele estava certo. Ela não compreendera
totalmente o que estava a oferecer.
Ela desviou o olhar quando o robe lhe caiu dos ombros. Era covardia e ele não disse nada, mas segundos depois, extinta a luz da vela, o quarto ficou escuro.
Ela ouviu-o aproximar-se da cama e o seu coração bateu numa fúria de pânico. Ela quase saltou ao sentir o corpo nu que subitamente lhe aquecia o flanco. Os seus
olhos acostumaram-se à escuridão e ela espreitou.
Apoiando num braço, ele olhava para ela. A escuridão fazia da cama um lugar pequeno e misterioso, cheio de uma intimidade de penumbra. Não um sonho, porém, mesmo
se a noite obscurecia o
mundo. Os sonhos nunca eram tão tangíveis e tão definidos. Ela sentia-se mais desperta do que nunca. A vivacidade intensa que ele sempre lhe inspirava tornou-se
um estado de alerta físico.
Curvando-se, ele puxou-a para a envolver nos braços. Acariciou-lhe o corpo como se conseguisse ver melhor do que ela. Ela puxou-o contra si, desajeitada e insegura,
e com toda a consciência de que a sua surpresa ao sentir a pele dele e o toque dele no seu corpo inteiro conseguia perceber-se na sua respiração entrecortada.
Beijando-a com fervor, como se o medo dela o impacientasse, ele acariciou-a mais intimamente. A parte de dentro das coxas. O volume e a fenda das suas nádegas. A
liberdade com que manuseava o seu corpo insinuava posse. O atrevimento dele chocava-a, o que, no entanto, só vinha aumentar a excitação das novas sensações, e as
suas reações alarmavam-na ainda mais.
Ele passou-lhe as pontas dos dedos em círculos pelo seio. Este prazer ela conhecia. Ele já lho ensinara e ela ficava sem defesa. A carícias lentas bem podiam ser
internas, tal era a prontidão com que os toques provocantes lhe enviavam tremores para a parte de baixo do corpo. Algo se avolumou até ela sentir uma palpitação
profunda e insistente entre as coxas.
Ele beijou-lhe o outro seio. A língua dele rodopiava, deixando-a tensa. O seu mamilo ficou tão sensível que ela mal conseguia aguentar. A combinação de carícias
num seio e dos dentes e lábios dele no outro deixou-a atordoada. Agarrou-se aos ombros dele e tentou conservar o pouco e vacilante controlo que lhe restava.
Não conseguiu. O medo desapareceu, como também o choque e a estranheza de estar ali a fazer aquilo. A sua mente ficou toldada e ao mesmo tempo focada. O pulsar no
fundo do seu ventre estava cada vez mais intenso, alimentando-se das sensações da sua pele e do seu corpo, sensações que começaram a possuí-la.
O latejar húmido, o ardor, que sentia entre as pernas tornou-se desconfortável. O que ele fazia só o piorava. As suas ancas balouçavam, para aliviar a estranha fome
que ali crescia. Reprimiu gemidos de frustração.
A mão esquerda dele deixou o seio e acariciou-a até à barriga. Ficou ali, enquanto o corpo dela se erguia e baixava involuntariamente, procurando algo.
- Isso é vós a quererdes-me - disse ele, a sua mão acompanhando o ritmo, adivinhando o desconsolo e embaraço dela. - Mas preciso que me queirais ainda mais.
A mão dele deslizou mais para baixo, até às coxas dela e à sua humidade.
Até ao lugar privado que a torturava.
O choque regressou, veemente. Ela juntou as coxas com força, para o deter.
- Ides permitir - disse ele. - Esta noite sois minha, e eu quero-o. Vós também quereis.
Ele apertou suavemente a coxa dela numa ordem sem palavras e afastou-lhe as pernas.
A carícia dele deixou-a perplexa. Agarrou-se mais a ele e procurou o seu beijo para evitar gritar. As sensações tomaram posse dela, fazendo-a querer mais. Ela tentou
conter o que lhe faziam, mas não conseguia. O prazer era concentrado de mais, direto de mais, de uma intensidade quase dolorosa. A sua reação física espantava-a.
As ânsias primitivas que a dominavam assustavam-na.
Ele colocou-se em cima dela, um vulto forte e escuro que emanava um calor físico, em parte estranho mas completamente masculino. Continuou a tocá-la, instando-a
ao abandono, forçando-a a desejá-lo apesar de isso a aterrorizar.
- Afastai mais as pernas. Dobrai os joelhos.
Foi o que fez. As coxas dela abriram-se às ancas dele e os seus braços agarraram-se aos ombros dele. Ele pressionou o corpo dele contra o dela, preenchendo ligeiramente
o vazio latejante e aliviando o desejo ardente e insaciável. Durante alguns segundos perfeitos ela conheceu a ventura de o ter assim enlaçado nela, nos seus braços
e perto do seu coração. A paixão dele pareceu recuar um pouco, tomando menos dela, permitindo-lhe gozar a intimidade.
Não durou. Uma dor crua cortou-a quando ele pressionou mais. Uma sensação de estar a ser violentada obliterou a ternura. Cerrou os dentes e agarrou-se ferozmente
a ele para não gritar.
Ele parou e não se mexeu. A dor diminuiu mas ainda estava lá. Ela aceitou o beijo dele, mas não conseguiu evitar sentir receio de ter dado uma parte dela que nunca
poderia recuperar. Ela podia correr até aos confins da Terra, mas algo dela seria para sempre dele.
Pareceu-lhe que tinha terminado, mas não. Ele mexeu-se, e ela compreendeu que a união inicial tinha sido só o começo. Erguendo-se acima dela, sobrepondo-se, o corpo
dele dominava o dela com cada investida.
Colocando uma mão na cabeceira da cama para se equilibrar, ele tomou-a numa posse rítmica, cadenciada. O que quer que o ato fosse para além daquilo, ela via que
se tratava de uma primitiva reivindicação de direito. Pior, os movimentos dele tentavam-na e exigiam que ela se rendesse àquela reivindicação.
Ele moveu-se com mais força, tomando tudo, dando significado a cada olhar intenso que lhe dirigira e a cada reação inquieta que ela experimentara. Ela tentou fechar-se
ao poder, à aura que criava e às emoções que evocava. Concentrou-se na dor, para se proteger. De qualquer forma, continuava a afetá-la, provocando assombro, lembrando-a
outra vez do aviso dele de que ela não sabia o que oferecia, nem o que ele esperaria.
A cabeça dele inclinou-se para trás. Uma estocada forte e profunda penetrou-a. Ele ficou bem dentro dela, imóvel por um segundo. A ameaça de perigo que definia a
sua persona recuou. Ela sentiu uma tensão endurecer-lhe os músculos debaixo das suas mãos. Depois, subitamente, ambos se desvaneceram no ar.
Ele não voltou a mexer-se. Desceu os olhos para ela e ficou assim tempo de mais, respirando fundo. Ela não conseguia ver-lhe os olhos, e perguntou-se se conteriam
atenção intensa ou a impassividade distraída que ela conhecia tão bem.
Ele afastou-se para o lado, separando completamente os corpos. Afundou-se na cama, ao lado dela.
Um sentimento de humilhação procurava infiltrar-se nela. Mas não fazia progressos. Ela estava para além de qualquer constrangimento. As suas emoções tinham sido
abalroadas. Tudo era ainda demasiado real, e mudara irreversivelmente.
Ela não experimentava nem arrependimento nem triunfo, apenas um sentido agudo do presente. Seria necessário tempo para absorver e compreender o que estava agora
no seu coração.
O silêncio tornou-se tenso e embaraçoso. Ela concluiu que ele não falava porque não havia nada a dizer. bom, ela soubera para o que ia quando lá fora. Não fingiria
que tinha sido algo diferente do que acontecera, nem esperaria que ele o fizesse.
Saindo da cama, tateou o chão à procura do robe. Vestiu-o e afastou-se, debatendo-se com alguns botões.
- Valeu a pena?
Ela voltou-se. Ele não se mexera. Nem sequer parecia estar a olhar na direção dela.
- Valeu a pena, Diane? Deveis importar-vos mais do que eu me apercebi, para fazerdes uma coisa destas.
Surpreendeu-a que falasse no assunto. A intimidade física provavelmente exigia que se dissesse alguma coisa.
- Valeu a pena. Foi um pequeno preço a pagar para salvar o homem que amo. - Achou espantosamente fácil dizer a palavra, ser sincera sobre os seus sentimentos, mesmo
sabendo que ele não os partilhava. O que acontecera naquela cama despojara-a de mais do que roupas ou da sua inocência. Também afastara todas as razões pelas quais
as pessoas guardam as verdades nos seus corações.
- Ele não é merecedor do vosso sacrifício. - Daniel ergueu-se num cotovelo e olhou para ela. - Não posso deixá-lo ficar convosco, mesmo que vós penseis que o amais.
Principalmente agora. Deveis saber disso.
Ele?
Ela dirigiu-se para a porta. - Equivocais-vos. Não o fiz para salvar Andrew Tyndale.
Ele ficou a ver a porta fechar-se atrás do robe de cetim cor-de-rosa, depois voltou a afundar-se na cama.
Voltou a vê-la, ajoelhada ao lado da cadeira, tão linda que o seu coração parara de bater. com aquele primeiro botão soubera que ela não recuaria. Soubera que perdera.
E ficara contente com isso, e tão ávido dela que nada mais importara. Nada.
Balançou as pernas para fora da cama e pegou no robe. Atou-o e pôs-se à janela.
Aquela noite comprometera tudo. Ela. Ele. A sua vida inteira.
Abriu a janela para a cidade silenciosa, adormecida. Conhecia muito bem a vista que lhe proporcionava. Muitas noites ali se pusera, fazendo planos, aguardando. Arquitetara
uma pequena guerra àquela janela, infiltrando-se no campo inimigo, abatendo os guardas, protegendo a retaguarda enquanto se aproximava do objetivo.
Naquela noite, uma mulher atraíra-o para a derrota completa sem sequer o saber.
Valeu a pena...
Ela fizera-o para salvar um homem.
Não era Tyndale.
Ele devia ter percebido. Talvez tivesse. Mas se o tivesse admitido, não poderia ter aceitado a proposta dela. Não teria conseguido levá-la para aquela cama e arrebatá-la.
Precisava de estar irritado com ela para o fazer.
E durante o dia inteiro fora essencial que ele não aceitasse que, se o duelo ocorresse, pudesse não ser Tyndale a estar em risco de morte, e a precisar de ser salvo.
Valeu apena...
Contemplou a rua. Um dos candeeiros tinha um poste mais baixo do que os outros. Nunca tinha reparado. Há anos que se punha àquela janela e nunca vira realmente aqueles
postes.
O seu olhar vagueou de um lado para o outro, procurando outras particularidades que lhe tivessem escapado. Um dos telhados tinha uma saliência na cornija, e a janela
do lado mais baixo de outra casa parecia estar entaipada. Naquela noite, todos os pormenores lhe saltavam à vista, detalhes há muito invisíveis que agora exigiam
atenção.
Mais valia concentrar-se neles do que debater os assuntos que tinha entre mãos, mais prementes, tais como saber de que forma este acordo que Diane comprara com o
próprio corpo lhe ataria as mãos no que respeitava a Tyndale.
Tais como as velhas memórias que o tinham invadido, deitado na cama ao lado dela, fazendo com que sentisse nojo de si próprio e fúria em relação a ela.
Tais como o facto de não ter tratado Diane especialmente bem naquela noite. Ela podia ter sido tola e arrojada, e ele ávido e irritado, mas ele podia ter sido mais
cuidadoso com ela. Não conseguiria tê-la poupado ao choque nem à dor, mas podia ter sido mais meigo, mesmo faltando-lhe a força e a honradez para a recusar completamente.
Valeu a pena. Foi um pequeno preço a pagar...
Lá fora, à luz dos candeeiros, mais pormenores ganhavam forma. Uma das casas tinha apenas quatro degraus até à porta, em vez de cinco. Veio-lhe a imagem de visitas
a não repararem na inclinação e a tropeçarem de cada vez que subiam.
Constatou que dois edifícios que sempre presumira serem idênticos na verdade tinham alturas ligeiramente diferentes.
Foi um pequeno preço apagar para salvar o homem que amo.
As palavras dela surgiram-lhe de rompante, gorando as suas tentativas de as manter ao largo. Olhava fixamente para a rua, subitamente sem nada ver face à repetição
contínua das palavras dela, que o imobilizaram. O tom da voz dela, a calma aceitação e resignação, ecoavam nos seus pensamentos, fazendo o seu peito encher-se de
um estranho peso.
Numa coisa ele estivera certo. O homem que ela procurara salvar não era digno do sacrifício dela.
E tinha sido um sacrifício enorme, dado em simples inocência a um homem que nem sequer lhe deu o valor que tinha. Um homem dominado pelo passado, que alimentava
raiva e ódio porque receava não ter nada dentro de si se eles desaparecessem. Um homem que a tentara muito antes de ela o tentar a ele, e que não gostava que ela
usasse a sua própria volúpia para frustrar o objetivo nascido daquele ódio.
Ela era idiota em se importar sequer com um homem assim, quanto mais amá-lo.
A garganta ardia-lhe e ouviu o silêncio cruel de quando se deitaram um ao lado do outro. Viu-a ir-se embora, orgulhosa apesar do seu desalento.
Foi um pequeno preço apagar para salvar o homem que amo.
Céus.
Virou as costas à janela. Encaminhou-se para a porta de um quarto que muitas vezes, na calada da noite, desejara visitar. Entrou e foi até à cama.
Ela estava deitada de lado com os joelhos encolhidos, vestida com uma camisa branca. Parecia sozinha e indefesa, como se se aninhasse debaixo do lençol para se proteger
de um mundo indiferente.
Ele levantou o lençol e deitou-se ao seu lado. Diane sobressaltou-se o bastante para ele perceber que se ela estivera a dormir, agora já não o fazia.
Estavam novamente deitados um ao lado do outro, numa cama diferente, e num silêncio diferente. Havia muito que ele podia dizer-lhe, mas muito pouco que não fosse
magoá-la mais. Ela não merecia mais golpes. Naquela guerra, ela era um prisioneiro inocente, não um soldado.
- Lamento ter-vos magoado, e não ter sido mais atencioso disse, virado para as costas dela.
Os ombros dela encolheram-se um pouco. - Provavelmente não se pode evitar.
- Não totalmente, mas...
- Não foi completamente horrível, não vos sintais mal. Típico dela, preocupar-se com ele. Quase se riu, e também
esteve perto de chorar. - bom, fico contente por saber que não foi completamente horrível.
- Mas se viestes aqui fazê-lo outra vez, não me parece que queira.
- Estou certo que não. Não vim aqui para isso.
- Então porquê?
- Para vos dizer que me sinto honrado por vos terdes importado o bastante para o fazer, e para ficar convosco um bocado, se vós o permitirdes.
Ela ficou muito quieta. Tão quieta que até podia ter parado de respirar.
- Permiti-lo-eis?
Ela assentiu com a cabeça.
Ele tocou-lhe no ombro. - Vindes para perto de mim, para eu poder tomar-vos nos braços?
Deu-se uma pausa, como se ela tivesse de ponderar. Virou-se. Ele puxou-a para si.
- Não vos preocupeis. Irei embora antes de os criados estarem por aí.
Ela aproximou-se mais. Ele envolveu-a com delicadeza e deu-lhe um beijo na face. Os seus lábios tocaram em humidade. Ela chorara depois de regressar ao quarto.
Partiu-lhe o coração. Ele apertou-a mais contra si, protetor.
Soube-lhe bem segurá-la assim enquanto ela adormecia. Nunca o tinha feito com uma mulher. Nunca partilhava o leito com as suas amantes ocasionais.
Acolheu com surpresa o prazer do seu calor e da sua suavidade de mulher, apaziguadores até, e não intrusivos como ele imaginara que dormir com uma mulher seria.
CAPÍTULO 19
Ela acordou só, sentindo os aromas do cacau e de lilases. O cacau estava numa mesa ao lado, como sempre desde que ela o provara pela primeira vez da chávena de Daniel.
Os raminhos de lilases estavam pousados mesmo ao lado do seu nariz, enfiados entre duas almofadas.
Uma criada tinha trazido o cacau. Daniel devia ter deixado as flores.
Ela pegou nelas e cheirou-as. Vinham de um arbusto que crescia num canto ensolarado do jardim. Ela imaginou-o a ir lá a baixo, no escuro, para cortar o pequeno ramo.
Ele ficara com ela a maior parte da noite. Ela sentira o seu abraço todas as vezes que se mexeu.
Tinha sido maravilhoso estar assim nos braços de alguém. O contacto prolongado e reconfortante mexera mais com ela do que aquilo que acontecera na cama dele. Durante
uma noite memorável, o vazio do seu coração tinha desaparecido. Sumido. Até a dormir se maravilhara com a sua ausência.
Chegou uma criada para a ajudar a vestir-se. Quando acabaram, Diane escreveu um bilhete apressado à condessa de Glasbury, levou-o para baixo para ser enviado de
imediato, e em seguida foi procurar Jeanette.
Encontrou-a nos aposentos dela, no mesmo cadeirão onde estava no dia anterior. Jeanette parecia tão desgastada e cansada que Diane se perguntou se ela teria sequer
ido para a cama.
- Está a acontecer agora. Agora mesmo - disse Jeanette. - O que está a acontecer?
- O duelo. Esperei que fosse amanhã, ou depois... não tão cedo.
- Tenho a certeza de que estais enganada.
- O chevalier veio. Daniel saiu com ele. Estão a encontrar-se agora. Sinto-o na alma.
- Não acredito, Jeanette. Ele disse-me que recuaria.
O olhar de Jeanette voou na direçáo dela. Examinou-a, muito à semelhança do que havia feito naquele primeiro dia no quarto de porcelana de Paris. - Quando é que
ele disse isso?
Diane sentiu-se corar. - Ontem à noite. Ele prometeu.
- Ontem à noite? Dizei-me, onde foi feita essa promessa? Quando? O rosto dela aqueceu.
Labaredas de entendimento e raiva arderam nos olhos de Jeanette. - Quando fazia amor convosco? Não fiqueis tão surpreendida. Já tinha percebido o interesse dele
por vós. Vi-o desde o início.
- Abanou a cabeça e murmurou uma praga. - Um homem diz o que quer que seja em alturas dessas. Pior, é sincero. Até que a luz do dia aparece e ele, lamentavelmente,
muda de ideias.
- Ele não voltará atrás com a palavra dada.
- Existem promessas mais antigas que ele é obrigado a manter. O meu irmão nunca deixou mulher nenhuma interferir com aquilo que jura fazer. Não recua face a nada.
Se ele vos seduziu com essa promessa, foi uma atitude desprezível da parte dele, e dir-lhe-ei isso mesmo quando ele regressar. - A sua expressão ríspida desfez-se.
- Se regressar.
- Ele não me seduziu. E também não entrará neste duelo. Disse-o com toda a firmeza que conseguiu, para tranquilizar a mulher sentada à sua frente, que parecia chorar
já a morte dele.
Jeanette estendeu a mão, procurando ser reconfortada. Diane agarrou-a e colocou o outro braço por cima do ombro de Jeanette.
- Ontem à noite foi a primeira vez com ele?
- Sim.
- Ele prometeu-me que não procuraria seduzir-vos. Já a pensar no duelo, deve ter-se agarrado a uma oportunidade de viver. Tenho a certeza de que, se assim não fosse,
não teria agido de forma tão desonrosa para convosco.
Diane não estava convencida daquilo. A forma como ele a beijara no ribeiro implicava que ele já desistira de quaisquer garantias que tivesse dado à irmã.
- Temos de decidir o que fareis agora - retomou, após respirar fundo para se recompor. - Direi a Daniel que tem de pôr alguma coisa no vosso nome. O bastante para
conseguirdes casar. Apareceram homens que se fariam vossos pretendente se tivésseis alguma fortuna.
- Não quero casar com nenhum desses possíveis pretendentes. Jeanette deu-lhe palmadinhas na mão. - Neste momento talvez
não. Pensai com cuidado, porém. Vereis que tenho razão.
- Seja como for, depois do que aconteceu com Mister Tyndale, não penso que seja provável haver pretendentes.
- Se o dote for suficiente, haverá, confiai em mim.
- Se o dote for suficiente, o próprio Mister Tyndale casaria comigo. Não gosto da ideia de ser negociada como um artigo usado.
Jeanette ergueu os olhos. Tristeza e compaixão transbordavam deles. - Não tenhais ilusões de que existe a alternativa de um futuro com o meu irmão. Há muito pouco
espaço no coração e na vida dele para o tipo de afeto que uma mulher espera. Ele está fechado a emoções dessas. Ele sabe disso, percebeis? Escolheu que fosse assim
porque qualquer outra coisa iria enfraquecê-lo.
Diane sabia que não havia lugar para ela na vida dele. Contudo, Daniel era muito mais complicado do que Jeanette julgava. Um homem daqueles não teria ido reconfortá-la
nem ficaria com ela nos braços durante a noite toda.
Ela experimentara uma paz maravilhosa, segurança, naquele abraço adormecido. Suscitara uma intimidade especial, que era diferente
da intimidade física de que tinham gozado na cama dele, mas que também lhe estava ligada. Ela queria preservar aquela aura especial. Queria preencher o vazio tanto
quanto a sua memória lho permitisse.
No fundo da sua alma, porém, ela sabia que só conseguiria preservá-la se não procurasse mais. Não queria arriscar-se a descobrir que ele tinha sido motivado por
pena ou por culpa, e não por afeto.
Não queria certamente arriscar-se a fazer amor com ele outra vez. Não conseguiria suportar que o fizessem e, em vez daquela doce intimidade, deparar novamente com
o silêncio vazio e constrangedor.
- Já decidi o que fazer, Jeanette. Penso que devia ir-me embora desta casa. Não haverá duelo, mas haverá comentários. Não quero continuar a viver esta mentira, que
nós somos primos. Não quero ir a festas em que as pessoas vão estar a sussurrar acerca do que aconteceu com Mister Tyndale, ou a perguntar-se o que existe entre
Daniel e eu.
- Para onde ireis?
- vou pedir à condessa que me permita ficar com ela enquanto trato das coisas. vou pedir-lhe para contactar alguns dos amigos que tem no campo e para me dar referências
como governanta. Ou talvez haja uma escola onde eu possa ensinar, que fique longe de Londres. Se eu desaparecer antes de o escândalo rebentar, talvez não seja tão
grande assim. Serei facilmente esquecida.
Jeanette assentiu com a cabeça. - Eu tenho algum dinheiro. vou dizer a Daniel para vos dar mais.
- Não, não posso aceitar dinheiro dele agora.
- Vireis visitar-me? Enquanto estou aqui, antes de regressar a Paris?
- Claro que sim. - Curvou-se e abraçou-a.
Jeanette beijou-lhe a face. - Se ele não voltar, talvez possais regressar a Paris comigo. Prometei-me que pensareis nisso.
- Ele voltará, vereis. Não foi bater-se em nenhum duelo.
Chegou uma carta de resposta da condessa, convidando Diane para a acompanhar numa visita a Laclere Park, a propriedade da sua família no campo. Penelope explicava
que seria impossível encontrarem onde se refugiar em Londres, e apresentava-lhe aquela proposta como uma solução melhor, acrescentando que ela própria sentia alguma
necessidade de se esconder.
Diane foi para o quarto dela e fez as malas. Era mais difícil de fazer do que ela julgara e dispensou a criada, para as suas reações não serem observadas.
Esteve sempre à escuta de sons que anunciassem o regresso de Daniel. O que veria refletido nos olhos dele quando estivessem novamente frente a frente? Suspeitava
que poderia ser muito estranho.
Como reagiria ele à partida dela? Ficaria surpreendido? Recetivo?
Aliviado?
Ela sabia que ele compreenderia que se ela ficasse ali, dependente dele, a situação acabaria por se tornar desagradável. Nem todos os lilases do mundo, todo o amor
do coração dela, conseguiriam fazer daquilo algo diferente do que seria realmente.
A confiança dela na promessa dele vacilava com o passar das horas. Quando desceu do quarto para ir para a biblioteca, já estava muito abalada.
Abriu uma janela que dava para a rua e pôs-se à espera e à escuta com tanta atenção que a cabeça lhe começou a doer. Quanto mais tempo passava, mais a preocupação
aumentava, fazendo-a sentir-se enjoada e doente de apreensão.
Passavam carruagens e cavalos, e ela ouvia cada um deles. Por fim, quando estava quase a desistir, quando tinha começado a chorar a sua perda, parou um cavalo à
frente da casa.
Ela identificou os sons de um moço a levar o cavalo.
Erguendo-se de um salto, correu pelo corredor até ver a entrada.
Era Daniel.
Claro que era. Quem mais seria?
O alívio que lhe acelerara o coração respondeu à pergunta. Ela temera que fosse o chevctlier, trazendo más notícias.
- Ide lá a cima à vossa irmã - disse ela. - Ela está doente de preocupação. Ide agora. Eu fico na biblioteca.
Ele subiu a escadaria. Ela esperou até ver as suas botas desaparecer e depois voltou para a biblioteca.
Reviu o rosto dele quando reparou nela. Tinha as memórias da noite anterior nos olhos, mas também algo mais. Ela reconhecera laivos da velha distração.
Tornou-se mais difícil olhar para ele quando ele entrou por fim na biblioteca, silenciosamente, e fechou a porta.
Agora não havia distração. Os olhos dele ardiam com toda a atenção que ele conseguia reunir. A sua boca era uma linha direita.
- Jeanette está sossegada? - perguntou ela.
- Sim. Louis e eu encontrámo-nos com Tyndale e o padrinho dele. Foi resolvido de forma honrada.
- Vós retirastes o desafio?
- Disse que o faria.
- Não duvidei.
- Uma ova.
A preocupação devia estar-lhe estampada no rosto quando chegara a correr à entrada. -Jeanette está muito aliviada, tenho a certeza.
- Não penso que seja essa a reação dela, de todo. Está estupefacta, contudo. Há muito tempo que não sou capaz de a surpreender, por isso retiro daqui alguma satisfação.
Mas de nada mais. Ele não gostara de fazer aquilo. Ferira-lhe o orgulho, fazer figura de covarde e desistir. Desagradava-lhe que ela o tivesse forçado a fazê-lo.
- Obrigada.
O que lhe deu direito a um olhar sombrio.
- A minha irmã disse-me que ides visitar a condessa.
- Pensei que seria melhor...
- Onde fostes buscar a ideia de que vos deixaria ir embora agora?
Falou como se, mais do que qualquer outra coisa, a ideia lhe parecesse curiosa. Porém, ela não conseguia ignorar a raiva que emanava dele, muito à semelhança do
que acontecera no ribeiro. Ele refreava-a, mas essa contenção vinha apenas intensificar o efeito que surtia no ar, e nela.
Ele aproximou-se dela. - Acabo de ir ter com um homem que desprezo e renunciei a matá-lo porque vós o exigistes de mim, e enquanto eu o fazia, vós fazíeis as malas.
- Agora não posso ficar. Bem sabeis.
- Não vejo porque não. - Ele aproximou-se mais. - A bem ver, agora tendes de ficar.
- Sabeis porque não posso ficar. Estaria errado.
- A noite passada foi errada?
Ele estava a confundi-la, pondo-se assim tão perto dela. A deixá-la baralhada. - Isso foi diferente.
- Talvez penseis que a noite passada não tenha sido errada porque vos destes por uma causa nobre. Para salvar uma vida. bom, se tendes queda para sacrifícios desses,
deveis ficar. Dizei-vos que desta vez o fazeis para salvar a minha alma. Há uma vida inteira de sacrifício nessa empreitada.
Disse-o com ironia, mas o calor do seu olhar e o tom meigo da sua voz contradiziam a leveza que ele pretendia incutir nas suas palavras.
Ela ficou a olhar para ele, incapaz de pensar numa resposta a semelhante desafio. Veio-lhe à mente que seria uma boa forma de o Diabo seduzir as pessoas. Deveras
eficaz, usar as inclinações de uma pessoa para a conduzir ao Inferno.
- Quando tomastes esta decisão de ir embora? - perguntou ele.
- Ontem à noite? Virdes até mim foi o derradeiro ato de amizade?
Ele perturbava-a mais do que nunca, ali a olhar para ela, alto, à sua frente, e a exigir a sua atenção. Tinha dificuldade em pensar direito. A referência à noite
anterior teve como único resultado pôr-lhe o coração aos pulos.
- Antes - respondeu ela. - Depois do ribeiro, e da partida de cartas.
- Porque compreendestes o quanto vos queria? Isso assustou-vos? Ela desviou o seu olhar do dele e colocou alguns passos entre
eles. Não estava a gostar da conversa, nem da forma como ele persistia em esmiuçar os seus motivos e a sua determinação.
- Não pode ter-vos assustado por de mais, se viestes ter comigo ontem à noite.
- Para ontem à noite eu tinha uma razão. Uma boa razão. Ofereci uma noite, porém, não mais. Não vou ser a vossa Margot. Não consigo. Aprendi isso ontem à noite,
pelo menos. Penso que estas coisas são diferentes para as mulheres do que são para os homens. E agora tenho a minha decisão tomada e vós devíeis ter a gentileza
de a aceitar.
Sentiu-o atrás dela, perto de mais. Em seguida as mãos dele estavam nos seus braços e a respiração dele no seu cabelo. Um beijo leve no alto da cabeça fez-lhe disparar
sensações por todo o corpo.
- Não sou tão gentil quanto isso. Não abro mão facilmente daquilo que quero. Nem estou a pedir-vos que fiqueis aqui a viver como minha amante, Diane.
Ela rodou para escapar ao toque dele e encarou-o. - Não estais? Então não quereis... Claro, provavelmente não foi o que esperáveis.. Quereis que fique aqui como
dantes, apenas como dama de companhia de Jeanette...
A resposta atrapalhada divertiu-o. - Agora nunca poderíeis ser apenas a dama de companhia de Jeanette. Jamais. Tenciono voltar a fazer amor convosco, e essa é definitivamente
uma razão pela qual não posso deixar-vos partir. Visto que não sou homem para importunar convidados nem corromper inocentes, há apenas uma forma de resolver as coisas.
Casaremos.
O comunicado deixou-a sem reação.
- É a única solução, Diane.
- Não é. Ambos sabemos que não é.
- Verdade. Podia ter mandado Hampton mudar a tal obrigação para vós terdes acesso imediato ao rendimento. Foram essas as instruções de Jeanette, mesmo agora.
- Agora não poderia aceitá-lo.
- Porque causei o transtorno de continuar vivo? Desgraçada de vós, eu não ter morrido hoje num duelo. Ter-vos-ia garantido um futuro confortável e seguro. Devíeis
ter dado mais peso aos vossos próprios interesses ontem à noite.
- Parai de distorcer o que eu disse. Eu não...
- Não faço tenção de pôr o que quer que seja no vosso nome, apesar da insistência da minha irmã. Não vos facilitarei a partida. Casaremos.
Ela pensou saber a razão daquela prontidão toda. Era a mesma culpa que provavelmente o levara ao quarto dela na noite anterior. Ela teria preferido não ver mostras
dela. - Estou a ver. Decidistes fazer a coisa certa. Compreendo. No entanto, não é necessário. Não esperei...
- Não esperastes nada. Eu sei disso. Não mostra que tenhais grande opinião de mim. Uma jovem tem o direito de esperar algo do homem que lhe tira a inocência.
- Não foi culpa vossa.
- Já recusei ofertas mais flagrantes.
Um casamento por obrigação era a última coisa que ela queria, e logo com este homem, entre todos os homens. - É amável da vossa parte. Muito decente. No entanto,
não penso que devamos fazê-lo. Vós não quereis realmente fazê-lo, e eu também não estou certa de o querer.
- Diane, existem muitas razões para isto se revelar um erro, e a maior parte delas tem a ver com o meu temperamento. Mas deveis fazê-lo, mesmo sem terdes a certeza.
Calará os rumores sobre Tyndale, e sobre vós e eu.
- Também a minha ausência. O meu desaparecimento.
- Já disse que não posso deixar-vos partir.
Ela não gostava que ele continuasse a insistir naquilo, como se controlasse tudo o que se passava. - Sou eu que tenho a palavra final. É uma escolha minha. Não preciso
de dinheiro nenhum da vossa parte para o fazer, por isso não podeis deter-me se eu estiver determinada.
- É verdade. Só posso dar o meu melhor para me certificar de que a determinação não é assim tanta. - Colocou-lhe a mão na face e olhou-a nos olhos. - Tenho de vos
mostrar que está em meu poder garantir que não? Bastou o toque dele para lho mostrar. Sentiu um calor a descer-lhe do pescoço até aos seios, e o olhar dele forçou
o tempo a abrandar. Ela constatou que ele sempre soubera do efeito que tinha nela. A indiferença dele havia-a protegido, fazendo as vezes de um escudo que ele usava
para bem dela, porque ele sabia que ela seria uma presa fácil.
- Estais apreensiva por causa da noite passada? É frequente a primeira vez não ser agradável para a mulher. De futuro não será assim.
Ela sentiu a face corar por baixo da mão dele. Baixou os olhos e encolheu os ombros. Sim, estava apreensiva por causa da noite anterior, mas não da forma a que ele
se referia. A dor fora a parte fácil. - Nem tudo foi desagradável.
- Assim o dissestes. Não foi completamente horrível. Prometo-vos que da próxima vez não será de todo horrível. - Levantou-lhe : o queixo com o dedo, para ela ter
de olhar para ele. - Aceitais a minha proposta, Diane?
A forma como olhava para ela, tão belo e promissor na sua ternura, tão cativante no seu poder misterioso, convenceu-a a pôr de parte o receio.
O coração dela queria aceitar. O seu amor ansiava a euforia. Ambos estavam desejosos de ser arrebatados por ele e pelo feitiço mágico e estimulante que ele urdia
agora.
O seu bom senso não lhe permitia a capitulação total. Sussurrava-lhe que ela em verdade não sabia o que ele lhe traria. Os avisos
de Jeanette ecoavam-lhe nos ouvidos. Navegava em águas desconhecidas. Havia camadas dele que ela ignorava e possivelmente nunca conheceria.
- Estais muito enganada quanto a uma coisa. Não me limito a fazer o que está certo. Eu quero isto. Espero que tenhais falado verdade ontem à noite e que também o
queirais.
Falou com aspereza, como se as palavras fossem difíceis de pronunciar. Parecia que não gostara de o admitir, de fazer aquela declaração, e que lhe fora arrancada
do coração.
Inclinou a cabeça e beijou-a. Foi o beijo mais meigo que ele alguma vez lhe dera. Oferecia cuidado e apoio e sugeria peripécias futuras. Prometia afeto, quiçá amor.
Preenchia-lhe o coração, tal como o seu longo abraço o havia feito na noite anterior.
O beijo sossegou-a mais do que qualquer outra coisa. As profundezas misteriosas e desconhecidas subitamente não importavam. Nem o perigo que ela pressentira enquanto
faziam amor. Independentemente de como tudo se desenrolasse, ela sabia que naquele momento as intenções dele eram boas.
- Aceitais?
Apesar da sensação de estar a dar um passo arriscado, ela assentiu com a cabeça. No meio do torpor que ele criava, parecia a única coisa certa a fazer.
Ele sorriu como se a decisão dela tivesse sido importante para ele. - vou dizer à minha irmã - disse ele, afastando-se. - Iremos para a Escócia, se concordardes.
O casamento será legal e as nossas histórias ambíguas não interferirão. Gostaria que ela e Paul nos acompanhassem e servissem de testemunhas. É aceitável para vós?
- Claro. Contudo, visto que mal perguntastes se o casamento me era aceitável, a solicitude deste novo tratamento é uma surpresa agradabilíssima.
As palavras dela apanharam-no quando ele se encaminhava para a porta. Parou e olhou para trás. - Lamento dizer que provavelmente não durará.
Acabava de lhe ser dado um aviso cordial e ela sabia-o. - Tenho bastante certeza de que não. As pessoas não mudam assim tão rapidamente.
- Não, imagino que não.