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O SONHO MAIS DOCE / Doris Lessing
O SONHO MAIS DOCE / Doris Lessing

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O SONHO MAIS DOCE

Primeira Parte

 

Em Hampstead, ao amanhecer dos anos 60, há uma casa que é a mais hospitaleira de todas do Norte de Londres. Nela vivem Julia, a austera dona da casa, e a sua ex-nora Frances, que tem de cuidar sozinha dos seus dois filhos adolescentes e de uma horda de amigos, namoradas, ex-namoradas, abandonados e extraviados, que eles trazem consigo. Ocasionalmente também aparece Johnny - o camarada Johnny -, filho de Julia e ex-marido de Frances, que um dia lhe deixa a cargo Sylvia, a filha problemática da sua nova mulher. A mesa onde todas as noites estas personagens se sentam, também há lugar para o sonho. Mas, por detrás desse sonho, há um preço a pagar pelas ilusões. Doris Lessing, a «grande dama das letras britânicas» cuja carreira foi enfim premiada com o Nobel da Literatura, capta na perfeição a essência de cada uma das suas personagens e de uma década em que era «tudo para o melhor no melhor dos mundos possíveis». O Sonho mais Doce leva-nos assim numa viagem que atravessa gerações e continentes, dando um rosto espantosamente humano à nossa história recente. Um romance pleno, marcante, que homenageia a força motivadora do sonho e das relações.

 

Um início de anoitecer outonal; a rua, em baixo, um cenário de pequenas luzes amarelas que sugeriam intimidade e as pessoas já agasalhadas para o Inverno. Atrás dela, o quarto enchia-se de uma escuridão fria, mas nada conseguia desanimá-la: flutuava tão alto como uma nuvem estival, tão feliz como uma criança que acabara de aprender a andar. A razão desta rara leveza de espírito era um telegrama do ex-marido, Johnny Lennox — camarada Johnny —, chegado há três dias. ASSINEI CONTRATO PARA FILME FIDEL DOMINGO RECEBERÁS TODOS OS ATRASADOS E PAGAMENTO CORRENTE. E hoje era domingo. O «todos os atrasados» devia-se, sabia-o, a algo parecido com o acesso de euforia que ela própria experimentava agora: estava absolutamente fora de questão que ele pagasse «todos», pois entretanto deviam ascender a tanto dinheiro que ela já deixara de se dar ao trabalho de anotar as dívidas. Mas, para ele se mostrar tão confiante, estava com certeza à espera de uma quantia realmente grande. Sentiu uma leve aragem — apreensão? A confiança era a... não, não devia dizer que era a marca dele, embora tivesse sentido isso muitas vezes na sua vida; mas lembrava-se de alguma vez o ter visto derrotado, ou sequer desconcertado, pelas circunstâncias?

Numa secretária atrás dela encontravam-se duas cartas, lado a lado, como uma lição sobre as improváveis, mas tão frequentes e dramáticas justaposições da vida. Uma, oferecia-lhe um papel numa peça. Frances Lennox era uma actriz de pequenos papéis, segura e responsável, e nunca a tinham convidado para nada mais do que isso. Este papel era para uma brilhante nova peça, com duas personagens, e o papel masculino seria representado por Tony Wilde, que até agora lhe parecera tão superior a ela que jamais ousaria ter a ambição de ver o seu nome e o dele lado a lado num cartaz. E fora ele que pedira para lhe oferecerem o papel, a ela. Havia dois anos tinham participado na mesma peça, ela, como de costume, num útil papel secundário. No fim da curta temporada — a peça não tinha sido um sucesso — ela ouvira na noite da última representação, enquanto andavam para trás e para diante a agradecer as chamadas ao palco, «Muito bem, foi muito bom».

Sorrisos do Olimpo, pensara, embora soubesse que ele dera sinais de estar interessado nela. Mas agora dera consigo a deixar-se arrebatar por toda a espécie de sonhos febris, que não a tomavam exactamente de surpresa, pois sabia bem demais como estava em baixo, como o seu ego erótico andava bem controlado, mas não podia coibir-se de imaginar o seu talento para se divertir (ainda o teria?), até para o prazer temerário, a receber espaço para se manifestar, ao mesmo tempo que mostrava o que era capaz de fazer no palco desde que lhe dessem uma oportunidade. Mas não iria ganhar muito dinheiro, num pequeno teatro e com uma peça que era uma aposta arriscada. Sem aquele telegrama de Johnny, não poderia ter-se dado ao luxo de aceitar.

A outra carta oferecia-lhe um espaço, bem pago e seguro, como conselheira sentimental (com o nome ainda por escolher) no The Defender. Isto constituiria uma continuação da outra faceta da sua vida profissional como jornalista freelance, que era aquela onde ganhava dinheiro.

Havia anos que escrevia sobre os mais variados assuntos. No início, experimentara a sua capacidade de voo em jornais locais e de grande formato, em qualquer lugar que lhe permitisse ganhar algum dinheiro. Depois dera consigo a fazer pesquisa para artigos sérios, que saíam na imprensa nacional. Era conhecida como autora de artigos consistentes e equilibrados, que frequentemente projectavam uma luz inesperada e original sobre uma questão actual.

Faria bem esse trabalho. Para que outra coisa a preparara a sua experiência, a não ser para lançar um olhar sereno e objectivo sobre os problemas alheios? Mas aceitar esse trabalho não acarretaria qualquer satisfação, qualquer sentimento de que iria abalançar-se a novos voos. Pelo contrário, teria de endireitar os ombros com o reforço interior da determinação, que é como um bocejo reprimido.

Como estava cansada de todos os problemas, das almas feridas, dos abandonados e extraviados, e como seria delicioso dizer: «Muito bem, agora podem olhar por vocês mesmos durante algum tempo, pois eu vou estar no teatro todas as noites e também durante a maior parte do dia.» (Sentiu outra cotoveladazinha fria: perdeste o juízo? Perdera, e estava a adorar cada minuto.)

A copa de uma árvore ainda com a folhagem estival, mas já um pouco rala, cintilava: a luz de dois pisos acima, dos aposentos da velha, tinha-a arrebatado da escuridão para um movimento animado, quase verde: a cor era tácita. Julia estava, portanto, em casa. A readmissão da sogra — da sua ex-sogra — no seu pensamento trouxe consigo uma apreensão que lhe era familiar, em virtude do peso da desaprovação que se filtrava através da casa para a atingir, mas havia algo mais, de que só recentemente tomara consciência. Julia tivera de ir para o hospital, podia ter morrido, e Frances fora finalmente obrigada a reconhecer quanto dependia dela. Supondo que Julia não existia: que faria ela, que fariam todos eles?

Entretanto, até há pouco tempo, referiam-se-lhe, todos, como a velha, incluindo ela própria. Mas Andrew, não. E Frances tinha reparado que Colin começara a tratá-la por Julia. Os três quartos acima do dela, que ficava por cima daquele onde se encontrava agora, por baixo do de Julia, eram ocupados por Andrew, o filho mais velho, e por Colin, o mais novo, seus filhos e de Johnny Lennox.

Ela tinha três divisões, quarto e escritório e outra que fazia sempre jeito quando alguém lá passava a noite, e ouvira Rose Trimble dizer: «Para que precisa ela de três divisões? É uma egoísta.»

Mas ninguém perguntava por que precisava Julia de quatro divisões: a casa era dela. Aquela casa ruidosa e sobrelotada, com pessoas a ir e vir, a dormir no chão e a trazer amigos cujos nomes a maior parte das vezes desconhecia, tinha no seu cimo uma zona estranha onde reinava a ordem, onde o ar parecia docemente malva e rescendente a violetas, com armários que guardavam chapéus de décadas passadas, adornados com véus, diamantes falsos e flores, e fatos de tecidos e com cortes que já não se encontravam em lado algum. Julia Lennox descia a escada e saía para a rua de costas direitas, mãos enfiadas em luvas — tinha gavetas cheias delas —, sapatos impecáveis, chapéus, casacos de cor violeta, cinzento ou malva, e envolta numa aura de essências de flores. «Onde arranja ela aquelas roupas?», perguntara Rose antes de ter tomado consciência de uma verdade do passado: que as roupas podiam ser guardadas durante anos em vez de postas de lado uma semana depois de terem sido compradas.

Por baixo da fatia da casa de Frances havia uma sala que ia das traseiras até à frente da habitação e onde, geralmente num enorme sofá vermelho, os adolescentes costumavam trocar intensas confidências, a dois e dois; ou, por vezes, se abria a porta cautelosamente, podia-se vê-lo ocupado por até meia dúzia de «miúdos», aconchegados, juntinhos como uma ninhada de cachorrinhos.

A sala não era usada o suficiente para justificar a ocupação de uma parte tão grande do centro da casa. A vida da habitação decorria na cozinha. Só quando havia alguma festa ela tinha o uso que lhe cabia por direito próprio, mas as festas eram poucas, pois os jovens frequentavam discotecas e concertos pop; embora parecesse difícil afastarem-se da cozinha e de uma mesa muito grande que Julia usara outrora, com uma aba descida, para jantares, no tempo em que «recebia», como ela dizia.

Agora a mesa estava sempre toda aberta e, às vezes, com dezasseis a vinte cadeiras e bancos à sua volta.

O apartamento da cave era grande e Frances raramente sabia quem lá estava acampado. Sacos de dormir e edredões enchiam o chão como detritos depois de uma tempestade. Sentia-se uma espia, quando descia lá abaixo. Além de insistir para que mantivessem o lugar limpo e arrumado — ocasionalmente, tinham acessos de «limpeza» cujos resultados não pareciam fazer grande diferença —, não interferia. Julia, que não sofria de tais inibições, descia a pequena escada e parava a observar o espectáculo de dorminhocos, às vezes ainda na cama ao meio-dia, ou mais tarde, as chávenas sujas no chão, os montes de discos, os rádios e as roupas espalhadas a trouxe-mouxe, e depois virava-se lentamente, figura severa apesar dos pequenos véus e das luvas, por vezes com uma rosa pregada num punho, e, tendo percebido pela rigidez de umas costas ou por uma cabeça nervosamente erguida que a sua presença fora notada, subia devagar a escada, deixando atrás de si, no ar estagnado, um odor a flores e a pó de arroz caro.

Frances debruçou-se da janela para ver se escorria luz pelos degraus da cozinha: escorria, o que significava que estavam todos lá e à espera do jantar. Quem, esta noite? Em breve saberia. Nesse momento, o pequeno «Carocha» de Johnny contornou a esquina, estacionou na perfeição e Johnny apeou-se. E, no mesmo instante, três dias de sonhos idiotas dissiparam-se, enquanto ela pensava: «Tenho estado louca, tenho estado doida. O que me levou a imaginar que alguma coisa ia mudar?» Mesmo que houvesse um filme, não haveria dinheiro nenhum para ela nem para os rapazes, como de costume... mas ele tinha dito que o contrato estava assinado, não tinha?

No tempo que demorou a andar vagarosamente, a parar na secretária a olhar para as duas fatídicas cartas, a chegar à porta, sempre sem pressa e a começar a descer a escada, foi como se os últimos três dias não tivessem acontecido. Não ia fazer a peça, não ia desfrutar a perigosa intimidade do teatro com Tony Wilde e tinha praticamente a certeza de que amanhã escreveria ao The Defender a aceitar o trabalho oferecido.

Desceu a escada devagar, tentando recompor-se, e depois parou, sorrindo, na porta aberta da cozinha. Encostado à janela, de pé e a apoiar o peso com os braços abertos no parapeito, estava Johnny, uma imagem de pura bravata e — embora não tivesse consciência disso — desculpa. À volta da mesa estava sentado um grupo variado de jovens, entre os quais se encontravam também Andrew e Colin. Olhavam todos para Johnny, que estivera a perorar a respeito de qualquer coisa, e faziam-no todos com admiração — todos excepto os filhos dele. Sorriam, como os outros, mas os seus sorrisos eram ansiosos. Eles, como ela, sabiam que o dinheiro prometido para hoje desaparecera na terra dos sonhos. (Por que diabo lho dissera ela? Tinha obrigação de saber!) Tudo aquilo já acontecera antes. E eles sabiam, como ela, que ele viera agora, quando sabia que a cozinha estaria cheia de jovens, para não ser acolhido com fúria, lágrimas, recriminações — mas isso pertencera ao passado, a um passado distante.

Johnny abriu os braços, de palmas voltadas para ela, a sorrir penosamente, e disse:

— O filme não vai para a frente... a CIA... — Perante a expressão dela, desistiu e calou-se, a olhar nervosamente para os dois rapazes.

— Não te incomodes — respondeu Frances. — Eu não esperava, realmente, outra coisa. — Os olhos dos filhos fitaram-se nela e a sua preocupação fez com que se sentisse ainda mais culpada.

Parou junto do forno, onde vários pratos estavam prestes a chegar aos respectivos momentos da verdade. Como se as costas voltadas da mulher o absolvessem, Johnny iniciou uma velha lengalenga a respeito da CIA, cujas maquinações tinham, desta vez, sido as culpadas de o filme não ir avante.

Colin, que precisava do apoio de algum facto, interrompeu-o para perguntar:

— Mas, pai, eu pensava que o contrato...

— Demasiados entraves — cortou Johnny, muito depressa. — Não compreenderias... O que a CIA quer, a CIA consegue.

Um olhar cauteloso, por cima do ombro, mostrou a Frances uma crispação de cólera, confusão e ressentimento no rosto de Colin. Como sempre, Andrew parecia despreocupado e até divertido, embora ela soubesse quanto estava longe de tais sentimentos. Esta cena, ou algo parecido, fora repetida ao longo de toda a infância dos rapazes.

No ano em que a guerra começou, em 1939, dois jovens esperançosos e ignorantes — como os que se encontravam esta noite à roda da mesa — tinham-se apaixonado, como milhões de outros nos países em guerra, e abraçado um ao outro em busca de conforto no mundo cruel. Mas também havia excitação, o mais perigoso sintoma da guerra. Johnny Lennox apresentou-a à Liga da Juventude Comunista precisamente quando estava prestes a deixá-la para ser um adulto, se não ainda um soldado. O camarada Johnny era uma espécie de estrela, e precisava de que ela o soubesse. Ela sentara-se nas filas de trás das salas apinhadas para o ouvir explicar que se tratava de uma guerra imperialista e que as forças progressistas e democráticas deviam boicotá-la. Em breve, porém, apareceu nas mesmas salas e, dirigindo-se ao mesmo público, exortou-o a cumprir o seu dever, pois a guerra era agora contra o fascismo, em virtude do ataque dos Alemães à União Soviética. Havia os que apupavam e protestavam, assim como havia os leais; havia vaias e estrepitosas gargalhadas. Zombavam de Johnny por estar ali a explicar tranquilamente a nova Linha do Partido, como se até recentemente não tivesse dito o exacto oposto. Frances sentia-se impressionada com a sua calma, com o modo como aceitava — e provocava, até — a hostilidade com a sua pose, de braços estendidos com as palmas para a frente, sofrendo em consequência das duras realidades dos tempos. Apresentava-se com o uniforme da RAF. Quisera ser piloto, mas como os seus olhos não estavam à altura ficara-se por cabo, tendo recusado, com base em razões ideológicas, o posto de oficial. Ficaria na administração.

Essa fora, pois, a iniciação de Frances na política, ou melhor, na política de Johnny. Talvez fosse uma proeza rara ser jovem, no fim dos anos 30, e não querer saber da política para nada, mas no caso dela essa era a realidade. Filha de um advogado de Kent, o teatro fora a sua janela para o glamour, a aventura, e o grande mundo, primeiro em peças escolares e depois em grupos de amadores. Representara sempre papéis principais, mas devia-os ao seu tipo de bonita rosa inglesa. Agora, no entanto, também usava uniforme, era uma das jovens ligadas ao Ministério da Guerra a quem competia, principalmente, servir de motorista a oficiais superiores. As jovens mulheres fardadas, que faziam o seu género de trabalho, costumavam levar uma vida agradável, embora haja tendência para ocultar este aspecto da guerra por uma questão de tacto e porventura, até, de vergonha em relação aos mortos. Ela dançava muito, jantava fora, tomou-se moderadamente de amores por garbosos franceses, polacos e americanos, mas não esqueceu Johnny nem as suas angustiadas e apaixonadas noites de amor que foram uma espécie de ensaio para o seu posterior anseio um pelo outro.

Nessa altura, ele estava no Canadá a cuidar dos aviadores da RAF que lá treinavam. Chegara entretanto a oficial e estava a sair-se bem, como as suas cartas tornavam evidente. Depois voltou ao país, como ajudante de um figurão importante qualquer, e passou a capitão. Ele ficava muito elegante no seu uniforme e ela muito atraente no dela. Casaram nessa semana, Andrew foi concebido e acabaram-se os bons tempos, porque ela estava num quarto com um bebé e sentia-se só e assustada por causa dos bombardeamentos. De caminho, adquirira uma sogra, a temível Julia, que parecia uma senhora da sociedade saída de uma revista de moda dos anos 30, que veio da sua casa em Hampstead — esta casa — para demonstrar o seu horror pelo lugar onde Frances vivia e oferecer-lhe um canto na sua casa. Frances recusou. Podia não ser dada à política, mas partilhava com todas as fibras do seu ser o fervoroso desejo de independência da sua geração. Quando saiu de casa, foi para um quarto mobilado. E agora, reduzida a pouco mais do que a mulher de Johnny e a mãe de um bebé, era independente e podia definir-se com esse pensamento e agarrar-se a ele. Não era muito, mas era seu.

Os dias e as noites passavam, arrastados, e ela estava tão longe da vida encantadora de que desfrutara como se nunca tivesse deixado a casa dos seus pais, em Kent. Os últimos dois anos da guerra foram difíceis, pobres, assustadores. A comida era má. Bombas que pareciam ter sido concebidas para destroçar os nervos das pessoas afectavam os dela. A roupa era difícil de encontrar e feia. Não tinha amigos, conhecia apenas outras mães de filhos pequenos. Temia acima de tudo que quando Johnny voltasse para casa ficasse decepcionado com ela, uma jovem mãe cansada e com excesso de peso, nada parecida com a elegante rapariga de uniforme por quem ele se apaixonara loucamente. E foi isso que aconteceu.

Johnny saíra-se bem na guerra, e tornara-se notado. Ninguém podia dizer que não era inteligente e vivo, e nesse tempo a sua política não dava nas vistas. Foram-lhe oferecidos bons empregos na Londres que se reconstruía depois da guerra. Recusou-os. Não ia deixar-se comprar pelo sistema capitalista: as suas ideias e a sua fé não tinham mudado, infimamente que fosse. O camarada Johnny Lennox, de novo à civil, preocupava-se apenas com A Revolução.

Colin nasceu em 1945. Dois filhos pequenos num andar miserável em Notting Hill, então uma precária e pobre zona de Londres. Johnny não estava muitas vezes em casa. Trabalhava para o Partido. Chegou a altura de explicar que o Partido era o Partido Comunista, e o que se pretendia fosse ouvido era O PARTIDO. Quando dois desconhecidos se encontravam, o início de conversa podia ser o seguinte: «Também és do Partido?» «Sim, evidentemente.» «Bem me pareceu.» O que significava: És uma boa pessoa, gosto de ti e, portanto, só podias ser do Partido, como eu.

Frances não aderiu ao Partido, embora Johnny lhe dissesse que aderisse. Era mau para ele, explicou, ter uma mulher que não aderia. — Mas quem saberia? — perguntou Frances, aumentando o desdém que inspirava ao marido, porque não tinha, nem nunca teria, qualquer noção de política.

— O Partido sabe.

— Paciência.

Não estavam, definitivamente, a entender-se, e o Partido era o menor dos males, embora fosse uma irritação para Frances. Viviam com grandes dificuldades, para não dizer na miséria. Ele via isso como um sinal de graça interior. Ao regressar de um seminário de fim-de-se-mana, «Johnny Lennox fala sobre a Ameaça de Agressão Americana», encontrava-a a estender a roupa dos filhos numa frágil geringonça de cordas e roldanas precariamente aparafusada na parede exterior da janela da cozinha, ou a regressar do jardim, a arrastar um filho pela mão e a empurrar o carrinho do outro. O cesto do carrinho estava cheio de artigos de mercearia e, enfiado atrás da criança, um livro que ela esperara poder ler enquanto as crianças brincavam.

— És uma verdadeira trabalhadora, Frances — elogiava-a ele. Johnny podia estar encantado com isso, mas a mãe dele não estava.

Quando aparecia, sempre depois de ter escrito primeiro, a avisar, num papel grosso capaz de cortar, sentava-se com desagrado na borda de uma cadeira onde provavelmente havia resíduos de bolacha ou laranja. E declarava:

— Isto não pode continuar, Johnny.

— Por que não, Mutti?

Tratava-a por Mutti por saber que ela detestava.

— Os seus netos serão um motivo de orgulho para a Grã-Bretanha Popular;

Nessas ocasiões, Frances não permitia que os seus olhos encontrassem os de Julia, porque não queria ser desleal. Sentia que a sua vida, toda a sua vida e ela à mistura, era desinteressante, feia, esgotante, e que os disparates de Johnny eram apenas uma parte disso. Acabaria tudo, tinha a certeza. Teria de acabar.

E acabou, porque Johnny anunciou que se apaixonara por uma camarada genuína, membro do Partido, e ia viver com ela.

— E como vou eu viver? — perguntou Frances, embora já soubesse o que esperar.

— Pagarei uma pensão, evidentemente — respondeu Johnny, mas nunca pagou.

Ela arranjou um infantário público e um pequeno emprego numa empresa que fazia cenários e figurinos para teatro. Era mal pago, mas ia-se governando. Julia apareceu e queixou-se de que as crianças estavam a ser negligenciadas e as suas roupas eram uma desgraça.

— Talvez deva falar com o seu filho — respondeu-lhe Frances. — Deve-me um ano de pensão. — Depois foram dois anos, depois três...

Julia perguntou-lhe se abandonaria o emprego e olharia pelos rapazes se recebesse uma mesada decente da família. Frances respondeu que não.

— Mas eu não me meteria na sua vida — disse Julia. — Garanto-lhe isso.

— Não compreende.

— Não, não compreendo. Talvez me queira explicar.

Johnny deixou a camarada Maureen e voltou para Frances, dizendo que tinha cometido um erro. Ela aceitou-o. Sentia-se só, sabia que os filhos precisavam de um pai e estava faminta de sexo.

Ele voltou a trocá-la por outra camarada genuína. Quando regressou de novo, Frances disse-lhe: «Fora.»

Estava a trabalhar a tempo inteiro num teatro, e embora não ganhasse muito, ia chegando. Os rapazes tinham então dez e oito anos. Havia problemas constantes nas escolas e eles não estavam a sair-se bem.

— O que é que espera? — perguntou-lhe Julia.

— Eu nunca espero nada — respondeu Frances.

Depois as coisas mudaram radicalmente. Frances ficou estupefacta ao saber que o camarada Johnny tinha concordado que Andrew fosse para uma boa escola. Julia disse Eton, porque o seu marido estudara lá. Frances esperava ouvir dizer que Johnny recusara Eton, mas depois foi informada de que ele também lá andara e conseguira ocultar esse nefasto facto durante todos aqueles anos. Julia não o mencionara porque a carreira dele em Eton estivera longe de o cobrir, ou cobri-los, de glória. Frequentara o colégio três anos e depois saíra para ir para a Guerra Civil de Espanha.

— Queres dizer que estás feliz por o Andrew ir para esse colégio? — perguntou-lhe Frances, pelo telefone.

— Bem, pelo menos recebe-se uma boa educação — respondeu Johnny, de ânimo leve, e ela ouviu o implícito: Vê o que lucrei com a minha.

Assim, com Julia a pagar, Andrew partiu da pobre residência onde a mãe e o irmão viviam e foi para Eton, onde passava as férias com amigos de colégio e se tornou um amável desconhecido.

Frances foi a uma festa de fim de período em Eton com um traje que imaginou adequado para a ocasião e o primeiro chapéu que jamais usara. Fiz bem, pensou, e percebeu que Andrew ficou aliviado quando

a viu.

Depois vieram pessoas perguntar por Julia, a viúva de Philip e nora do pai de Philip: um homem idoso lembrava-se dele, em rapaz. Ao que parecia, os Lennox estudavam, naturalmente, em Eton.

Também perguntaram por Johnny, ou Jolyon. «Interessante...» disse um homem que fora professor de Johnny. «Uma interessante escolha de carreira.»

A partir de então, Julia passou a comparecer nas ocasiões formais, onde era acolhida com grande interesse, o que a surpreendia: quando visitara Eton nos breves três anos em que Jolyon o tinha frequentado, vira-se a si mesma como a mulher de Philip e sem grande importância.

Colin recusou Eton devido a uma profunda e complicada lealdade para com a mãe, a quem vira labutar durante todos aqueles anos. Isso não significava que não discutisse com ela, não se lhe opusesse, não a enfrentasse e não se saísse tão mal na escola que Frances estava secretamente convencida de que o fazia de propósito, para a magoar. Mas mostrava-se frio e zangado com o pai, quando Johnny aparecia de passagem para dizer que lamentava muito, mas na realidade não tinha o dinheiro para lhes dar. Por fim, concordou em ir para uma escola progressista, a St Joseph's, com todas as despesas pagas por Julia.

Depois Johnny apresentou uma sugestão que Frances, finalmente, não recusou. Julia ceder-lhe-ia, e aos filhos, a parte de baixo da sua casa. Ela não precisava de tanto espaço, era ridículo...

Frances pensou em Andrew, regressando para várias moradas miseráveis, ou não regressando e, com certeza, nunca levando amigos a casa. Pensou em Colin, que não escondia o quanto detestava a maneira como viviam. Disse sim a Johnny, disse sim a Julia, e assim foi parar à grande casa que era e sempre seria a de Julia.

Só ela sabia o que lhe custava. Mantivera a sua independência durante todo este tempo, pagara as suas despesas e as dos rapazes e não aceitara dinheiro de Julia nem dos seus próprios pais, que teriam gostado de ajudar. E agora ali estava, e era uma capitulação definitiva: o que para outras pessoas era «uma solução muito sensata», para ela era uma derrota. Já não era ela mesma, tornara-se num apêndice da família Lennox.

No que respeitava a Johnny, fizera o que seria de esperar dele. Quando a mãe lhe disse que devia sustentar os seus filhos, arranjar um emprego onde recebesse um salário, gritou-lhe que ela era um membro típico da classe exploradora, só pensava em dinheiro, enquanto ele trabalhava para o futuro do mundo inteiro. Discutiam, frequente e ruidosamente. Ao ouvi-los, Colin empalidecia, ficava calado e saía de casa durante horas, ou dias. Andrew mantinha o seu sorriso displicente e divertido, o seu aprumo. Ultimamente, estava com frequência em casa, e até trazia amigos.

Entretanto, Johnny e Frances tinham-se divorciado porque ele casara apropriada e formalmente, num casamento a que os camaradas compareceram, assim como Julia. Ela chamava-se Phyllida e não era uma camarada, mas ele dizia que era boa matéria-prima e ainda faria dela uma comunista.

Esta pequena história era o motivo por que Frances se mantinha de costas para os outros, a mexer um guisado que na realidade não precisava de ser mexido. Reacção retardada: os joelhos tremiam-lhe e a sua boca parecia cheia de ácido, pois o seu corpo estava agora a absorver a má notícia, bastante mais tarde do que a sua mente. Sabia que estava furiosa e que tinha todo o direito para estar, mas estava mais furiosa consigo mesma do que com Johnny. Que ela se tivesse permitido passar três dias dentro de um sonho louco, muito bem, mas como pudera envolver os rapazes nisso? No entanto, fora Andrew quem trouxera o telegrama, esperara que ela lho mostrasse e comentara: «Frances, o teu transviado marido está finalmente a fazer o que é certo.» Sentara-se na borda de uma cadeira, num gesto leve: um jovem louro e atraente, que dava cada vez mais a impressão de ser um pássaro prestes a levantar voo. Era alto, o que o fazia parecer ainda mais magro, as jeans ficavam-lhe largas nas pernas compridas e tinha as mãos, esguias, elegantes e ossudas apoiadas, de palmas para cima, nos joelhos. Sorria-lhe, com um sorriso que ela sabia pretender ser amável. Andavam a esforçar-se muito para se entenderem, mas ele ainda a deixava nervosa, em virtude dos anos em que a rejeitara. Tinha dito «o teu marido» e não «o meu pai». Tratava com cordialidade a nova mulher de Johnny, Phyllida, mas depois dizia que, de modo geral, ela era um bocado chata.

Felicitara-a pelo papel oferecido na nova peça e gracejara a respeito das conselheiras sentimentais.

Colin também se mostrara afectuoso, coisa rara nele, e telefonara a amigos a respeito da nova peça.

Era tudo tão mau para os dois, era tudo tão terrível, mas no fim de contas tratava-se apenas de mais um pequeno choque em anos e anos de muitos outros, tentava dizer a si mesma enquanto esperava que os seus joelhos recuperassem a força, enquanto agarrava o rebordo de uma gaveta com uma das mãos e continuava a mexer com a outra, de olhos fechados.

Atrás dela, Johnny continuava a sua arenga acerca da imprensa capitalista e das suas mentiras a respeito da União Soviética e da maneira deturpada como apresentava Fidel Castro.

Que as censuras e o léxico de Johnny quase não tinham feito mossa nela ficara demonstrado pelo modo como, após uma conferência recente, ela murmurara: «Parece uma pessoa interessante», ao que ele replicara, áspero: «Não creio que tenha conseguido ensinar-te nada, Frances; não aprendes.»

«Bem sei, sou estúpida.» Isso fora uma repetição do grande momento primitivo, mas ao mesmo tempo final, quando Johnny voltara para ela pela segunda vez, esperando que o aceitasse: ele gritara-lhe que era uma cretina política, uma inútil pequena-burguesa, uma inimiga de classe, e ela dissera: «Está bem, sou estúpida, agora sai.»

Não podia continuar ali parada, sabendo que os filhos estavam a observá-la, nervosamente, magoados por causa dela, apesar de os outros olharem para Johnny com olhos brilhantes de amor e admiração.

— Sophie — pediu —, dá-me aqui uma ajuda.

Surgiram imediatamente mãos prestáveis, de Sophie e, ao que parecia, de toda a gente, e os pratos foram colocados no meio da mesa. Evolaram-se odores deliciosos, quando as tampas foram levantadas.

Sentaram-se à cabeceira da mesa, gratos por se sentarem e sem olharem para Johnny. Todas as cadeiras foram ocupadas, mas havia outras encostadas à parede e, se ele quisesse, podia trazer uma e sentar-se também. Iria fazê-lo? Fazia-o com frequência, enfurecendo-a, embora fosse óbvio que estava convencido de que o seu gesto era um cumprimento. Mas não, esta noite, não, depois de ter causado sensação e ter saciado a sede de admiração (se é que alguma vez a saciaria) ir-se-ia embora — não iria? Não, não iria. Os copos de vinho estavam cheios, a toda a volta da mesa. Johnny trouxera duas garrafas: o mãos-largas do Johnny, que nunca entrava numa sala sem uma oferta de vinho... Era incapaz de conter esta bílis, de evitar que estas palavras amargas lhe chegassem, indesejadas, à língua. Vai-te embora, instigava-o mentalmente. Vai.

Fizera um grande e nutritivo guisado de Inverno, de carne de vaca e castanhas, de uma receita de Elizabeth David, cujo livro Frencb Country Cooking estava aberto, algures na cozinha. (Anos mais tarde, diria: Santo Deus, participei numa revolução culinária e nem dei por isso.) Estava convencida de que aqueles jovens não comiam «como devia ser» senão àquela mesa. Andrew distribuía puré de batata aromatizado com aipo. Sophie servia conchas de guisado e Colin encarregava-se dos espinafres com natas e das cenouras estufadas em manteiga. Johnny observava de pé, momentaneamente silenciado, porque ninguém olhava para ele.

Por que não se vai embora?

À roda da mesa, naquela noite estavam os que ela considerava os habituais — ou pelo menos alguns deles. A sua esquerda sentava-se Andrew, que se servira generosamente, mas agora olhava para a comida como se não a reconhecesse. Ao lado dele estava Geoffrey Boné, amigo de escola de Colin, que passava as férias todas com eles há tanto tempo que ela já nem se lembrava. Não se dava bem com os pais, segundo dizia Colin. (Mas, no fim de contas, quem se dava?) Ao lado dele, Colin já voltara o rosto redondo e corado na direcção do pai, todo ele angústia acusadora, enquanto segurava na faca e no garfo. Ao lado de Colin estava Rose Trimble, que fora namorada de Andrew, ainda que fugazmente: um inevitável alvoroço com o marxismo levara-o a um seminário de fim-de-semana intitulado «África Quebra as Suas Correntes!», e Rose estava lá. O caso deles (teria chegado a isso? — ela tinha dezasseis anos) terminara, mas Rose ainda ali ia, parecia na verdade ter-se mudado para lá. Defronte de Rose estava Sophie, uma rapariga judia na plena exuberância da sua beleza, esbelta, de olhos pretos cintilantes, cabelo preto cintilante, de tal modo que quem a via não podia deixar de pensar na intrínseca injustiça do Destino e, logo a seguir, nos imperativos da Beleza e nas suas exigências. Colin estava apaixonado por ela. Assim como Andrew. Assim como Geoffrey. Ao lado de Sophie, estava o oposto absoluto, em todos os sentidos, de Geoffrey, que tinha feições correctas, era inglês, amável, e bem-comportado, o tempestuoso e sofredor Daniel, que acabara de ser ameaçado de expulsão da St. Joseph's por roubar em lojas. Ele era subchefe de turma e Geoffrey era chefe e tivera de lhe fazer ver que tinha de se emendar, caso contrário... uma ameaça oca, sem dúvida, feita para demonstrar aos outros a gravidade do que todos eles faziam. Este pequeno incidente, discutido de maneira irónica por aqueles miúdos conhecedores da vida, confirmou — como se tal fosse necessário — a injustiça inerente ao mundo, pois Geoffrey estava sempre a roubar em lojas, mas era difícil associar aquele rosto franco e ansiosamente amável a qualquer mau comportamento. E havia ainda outro ingrediente no caso: Daniel adorava Geoffrey, sempre adorara, e ser admoestado pelo seu herói era mais do que podia suportar.

Ao lado de Daniel estava uma rapariga que Frances nunca tinha visto, mas ela esperava ser esclarecida em devido tempo. Era uma jovem loura, bem arranjada e com boa presença, cujo nome parecia ser Jill. À direita de Frances encontrava-se Lucy, que não era da St. Joseph's: era a namorada de Daniel, da Dartington, e estava ali com frequência. Lucy, que numa escola comum seria sem dúvida perfeita, pois era decidida, inteligente e responsável e parecia ter nascido para mandar, disse que as escolas progressistas, ou pelo menos a Dartington, eram boas para algumas pessoas, mas outras precisavam de disciplina, e ela gostaria de frequentar uma escola comum, com normas, regulamentos e exames para os quais fosse preciso trabalhar. Daniel disse que a St. Joseph's era uma merda hipócrita, que pregava a liberdade, mas quando se tratava de a pôr em prática a coarctava com moralidade.

— Eu não diria coarctar — explicou Geoffrey amavelmente a todos, protegendo o seu acólito. — Trata-se mais de indicar os limites.

— Para alguns — insistiu Daniel.

— Injusto, admito — conveio Geoffrey.

Sophie disse que adorava a St. Joseph's e adorava o Sam (o director). Os rapazes tentaram mostrar-se indiferentes com a novidade.

Colin continuava a sair-se tão mal nos exames que a sua vida tranquila e sem ameaças era um tributo à famosa tolerância da escola.

Das muitas queixas de Rose contra a vida, o que mais lamentava era não ter sido mandada para uma escola progressista, e quando as virtudes, ou não, de tais escolas eram discutidas, o que acontecia frequente e ruidosamente, ela mantinha-se calada, com o seu rosto sempre rubicundo ainda mais vermelho de cólera. Os sacanas dos seus horríveis pais tinham-na matriculado numa escola normal para raparigas, em Sheffield, e embora, aparentemente, ela tivesse desertado e desse a impressão de estar a viver ali, as suas acusações contra a escola não diminuíam e Rose tinha tendência para se desfazer em lágrimas e dizer que eles, os outros, não sabiam a sorte que tinham. Andrew conhecera, de facto, os pais de Rose, que eram ambos funcionários da câmara local.

— E o que há de mau neles? — perguntara Frances, esperando ouvir dizer bem deles, porque não gostava da rapariga e queria que ela se fosse embora. (E por que não dizia a Rose que partisse? Porque isso não estaria conforme com o espírito dos tempos.)

— Acho que são apenas pessoas comuns — respondera Andrew, sorrindo. — Gente convencional, de cidade pequena, e suponho que estão um pouco atrapalhados com a Rose.

— Ah — murmurou Frances, vendo esbater-se a possibilidade de Rose voltar para casa. Mas havia ali mais alguma coisa. Não dissera ela, dos seus próprios pais, que eram maçadores e convencionais? Não que fossem uns sacanas fascistas, mas talvez ela os tivesse descrito desse modo se o epíteto estivesse então ao seu alcance, como estava agora ao de Rose. Como podia criticar a rapariga por querer deixar uns pais que não a compreendiam?

Estavam já a ser postas nos pratos segundas doses em todos

menos no de Andrew, que mal tocara na comida. Frances fingiu não reparar.

Andrew estava em apuros, mas era difícil saber até que ponto.

Saíra-se muito bem em Eton, fizera amigos, o que ela achava normal, e devia ir para Cambridge no próximo ano. Este ano, dizia ele, mandriava. E não restavam dúvidas a esse respeito. Às vezes dormia até às quatro ou cinco da tarde, parecia doente e debaixo do seu encanto e da sua competência social escondia — o quê?

Frances sabia que ele se sentia infeliz, mas não era novidade os seus filhos sentirem-se infelizes. Era preciso fazer alguma coisa. Foi Julia quem veio à sua parte da casa para lhe perguntar:

— Frances, já esteve no quarto do Andrew?

— Não me atreveria a entrar no quarto dele sem pedir licença.

— É a mãe dele, suponho.

Iluminados por esta troca de palavras, os abismos que as separavam fizeram com que, como sempre, Frances olhasse impotentemente para a sogra. Não sabia o que dizer. Imaculada, Julia estava parada à sua frente como o Juízo Final, à espera, e Frances sentia-se atrapalhada como uma colegial, com vontade de transferir o peso do corpo de um pé para o outro.

— O fumo é tanto que mal se consegue ver no quarto — continuou Julia.

— Oh, compreendo, refere-se a erva... marijuana? Mas, Julia, um grande número deles fuma-a. — Não se atreveu a dizer que ela própria também experimentara.

— Quer dizer que, para si, isso não é nada? Não tem importância?

— Não disse isso.

— Ele dorme o dia inteiro, entorpece-se com aquela fumarada, não come...

— Julia, o que quer que eu faça?

— Fale com ele.

— Não consigo... não seria capaz... ele não me daria ouvidos.

— Nesse caso, falo eu. — E Julia girou nos delicados saltos e saiu, deixando atrás de si uma fragrância de rosas.

Julia e Andrew conversaram. Pouco depois, Andrew passou a visitar Julia nos aposentos dela, coisa que ninguém se atrevera a fazer, e voltava muitas vezes de lá com informação destinada a aplanar caminhos e lubrificar engrenagens.

— Ela não é tão má como poderíamos pensar. Na realidade, é antes uma querida.

— Aí está uma palavra que não me viria imediatamente ao pensamento.

— Bem, eu gosto dela.

— Gostaria que viesse cá a baixo, de vez em quando. Podia comer connosco, não podia?

— Ela não quereria. Não aprova a maneira como vivemos — disse Colin.

— Talvez nos corrigisse — observou Frances, tentando brincar.

— Ah! Ah! Mas por que não a convidas?

— Tenho medo dela — admitiu Frances, pela primeira vez.

— E ela tem medo de ti! — replicou Andrew.

— Oh, isso é absurdo! Tenho a certeza de que ela nunca teve medo de ninguém.

— Olha, mãe, tu não compreendes. Ela teve uma vida muito protegida. Não está habituada aos nossos modos turbulentos. Esqueces-te de que até o avô morrer ela nem um ovo cozia para si, acho eu. E tu lidas com hordas esfaimadas e falas a língua delas. Estás a perceber a diferença? — O que ela percebeu foi que ele disse delas e não nossa.

— A única coisa que sei é que ela se senta lá em cima a comer um nico de salmão fumado e uma pequena fatia de pão e a beber um copo de vinho, enquanto nós nos sentamos cá em baixo a empanturrar-nos com grandes refeições. Talvez pudéssemos mandar-lhe um tabuleiro'...

— Eu pergunto-lhe — disse Andrew, e presumivelmente perguntou, mas continuou tudo na mesma.

Frances fez um esforço e obrigou-se a subir a escada para o quarto dele. Eram seis horas e já estava a escurecer. Isso tinha acontecido há duas semanas. Bateu à porta, apesar de as suas pernas quase a terem levado de novo para baixo.

Depois de uma boa espera, ouviu-o dizer:

— Entra.

Frances entrou. Andrew estava deitado na cama, vestido, a fumar. A janela, do outro lado dele, mostrava salpicos de chuva fria.

— São seis horas — disse ela.

— Eu sei que são seis horas.

Frances sentou-se, sem esperar pelo convite de que necessitava. O quarto era grande e estava mobilado com sólidos móveis antigos e alguns bonitos candeeiros chineses. Andrew era o habitante errado para aquele quarto, e Frances não pôde deixar de recordar o marido de Julia, o diplomata, que com certeza se sentiria ali à vontade.

— Vieste para me pregar um sermão? Não te incomodes; a Julia já se encarregou disso.

— Estou preocupada — disse Frances, com a voz a tremer; anos, décadas de preocupação estavam a acumular-se na sua garganta.

Andrew levantou a cabeça da almofada, para a observar. Não com inimizade, antes com enfado.

— Assusto-me a mim próprio — confessou. — Mas acho que estou prestes a controlar-me.

— Estás, Andrew? Estás realmente?

— No fim de contas, não se trata de heroína, ou cocaína, ou... no fim de contas, não há esconderijos de frascos vazios a rebolar debaixo da cama.

Na verdade, havia lá espalhados alguns pequenos comprimidos azuis.

— O que são, então, aqueles pequenos comprimidos azuis?

— Ah, os pequenos comprimidos azuis. Anfetaminas. Não te preocupes com eles.

— E — disse Frances, citando e esforçando-se, em vão, por parecer irónica — não são viciantes e podes largá-los quando quiseres.

— Lá isso não sei. Mas penso que estou viciado... em erva. Não há dúvida de que tira o gume da realidade. Por que não experimentas?

— Já experimentei. A mim não me faz nada.

— É pena, pois eu diria que tens mais realidade do que aquela com que podes haver-te.

Como ele não disse mais nada, ela esperou um pouco e depois levantou-se para sair. Quando fechou a porta, ouviu-o dizer:

— Obrigado por teres vindo, mãe. Volta mais vezes.

Seria possível que ele quisesse a sua «interferência»... que tivesse estado à espera de que o visitasse, quisesse falar?

Agora, nesta noite, sentia os laços existentes entre ela e os seus dois filhos, mas era tudo terrível; os três estavam unidos, esta noite, pela decepção, por um golpe que se abatera onde já antes fora desfechado.

Sophie falava:

— Sabe do maravilhoso novo papel da Frances? — perguntou a Johnny. — Vai ser uma estrela. É tão maravilhoso*. Leu a peça?

— Sophie — interveio Frances. — Afinal, não vou fazer a peça. Sophie fitou-a, com os grandes olhos já cheios de lágrimas.

— O que quer dizer? Não pode... não é... Não pode ser verdade.

— Não vou fazê-la, Sophie.

Os dois filhos olhavam para Sophie, talvez estivessem mesmo a dar-lhe pontapés por baixo da mesa: cala-te.

— Oh — soluçou a encantadora rapariga, e tapou o rosto com as mãos.

— As coisas mudaram — disse Frances. — Não posso explicar. Agora os dois rapazes olhavam, com olhares cheios de acusação,

para o pai. Ele mudou um pouco de posição, pareceu que ia encolher os ombros, conteve o gesto, sorriu e, de súbito, saiu-se com isto:

— Vim dizer-te mais uma coisa, Frances.

Fora então por isso que não se tinha ido embora e ficara ali parado desconfortavelmente, sem se sentar: tinha mais alguma coisa a dizer.

Frances preparou-se para o que aí vinha, e viu que Colin e Andrew faziam o mesmo.

— Preciso de te pedir um grande favor — disse Johnny, dirigindo-se à sua atraiçoada mulher.

— E do que se trata?

— Sabes da Tilly, claro... a filha da Phyllida?

— Evidentemente que sei.

Andrew, que visitava Phyllida, fizera saber que não se tratava de um lar harmonioso, que a miúda estava a causar muitos problemas.

— A Phyllida não parece capaz de dar conta da Tilly.

Ao ouvir isto, Frances riu-se ruidosamente, pois já sabia o que se seguiria.

— Não. Não é simplesmente possível. Está fora de questão.

— Sim, Frances, pensa no assunto. Elas não se entendem. A Phylida já não sabe o que fazer. Nem eu. Quero que fiques com a Tilly aqui. Sabes lidar tão bem com...

Frances sufocava de cólera e viu que os filhos estavam brancos, pelo mesmo motivo. Calados, olharam os três uns para os outros. Sophie exclamava:

— Oh, Frances, é tão generosa, seria maravilhoso!

Geoffrey, que no fim de contas visitava aquela casa há tanto tempo que podia, com toda a justiça, ser considerado da família, fez coro com Sophie:

— Que ideia porreira!

— Um momento, Johnny — disse Frances. — Estás a pedir-me que acolha a filha da tua segunda mulher porque vocês dois não sabem lidar com ela?

— É mais ou menos isso — admitiu Johnny, a sorrir. Seguiu-se uma pausa longa, muito longa. Passara pela cabeça dos

entusiásticos Sophie e Geoffrey que Frances não estava a aceitar aquilo com o espírito do idealismo liberal universal com que, de início, tinham presumido que aceitaria: esse espírito de que / tudo para o melhor no melhor dos mundos possíveis, que um dia viria a ser a abreviatura de «Os Anos 60».

Frances conseguiu dizer:

Talvez planeies contribuir com alguma coisa para o seu sustento?

— E teve consciência de que, ao dizer isso, estava a aceitar. Johnny olhou para os jovens rostos em redor, para avaliar se estavam tão chocados com a mesquinhez dela como ele.

— O dinheiro — declarou altivamente — não é, na realidade, a questão, aqui.

Frances remeteu-se de novo ao silêncio. Levantou-se, dirigiu-se à área de trabalho junto do fogão e parou de costas para a sala.

— Quero trazer a Tilly para aqui — disse Johnny. -— Na verdade, já a trouxe. Ela está no carro.

Colin e Andrew levantaram-se e foram juntar-se à mãe, um de cada lado dela. Isso permitiu-lhe voltar-se e olhar de frente Johnny, do outro lado do aposento. Mas não conseguiu falar. E Johnny, vendo a ex-mulher ladeada pelos filhos de ambos, três pessoas furiosas, com os rostos brancos e ameaçadores, ficou também sem fala. Mas apenas momentaneamente.

Depois recompôs-se, estendeu os braços, com as palmas voltadas para eles, e sentenciou:

— De cada um conforme a sua capacidade, para cada um conforme a sua necessidade. — E baixou os braços.

— Oh, isso é tão bonito — disse Rose.

— Porreiro — concordou Geoffrey. Jill, a recém-chegada, sussurrou:

— Oh, é encantador.

Todos os olhos estavam agora postos em Johnny, uma situação a que estava bem habituado. Ficou imóvel, recebendo raios de crítica e luminosos feixes de amor, e sorriu-lhes. O camarada Johnny era um homem alto, de cabelos já grisalhos cortados como os de um romano

— sempre ao vosso serviço —, e vestia jeans pretos, justos, e um casaco de cabedal preto à Mão, feito especialmente para ele por um camarada admirador ligado ao ramo do vestuário. A severidade era o seu estilo preferido, sorrindo ou não, pois um sorriso nunca podia ser mais do que uma concessão temporária, mas agora sorria descaradamente.

— Queres dizer que a Tilly tem estado lá fora à espera, no carro, este tempo todo? — perguntou Andrew.

— Santo Deus! — exclamou Colin. — Típico.

— Vou buscá-la e trazê-la — disse Johnny, e saiu passando pela ex-mulher e pelos filhos sem os olhar.

 

Ninguém se mexeu. Frances pensou que se os seus filhos não estivessem tão perto, a envolvê-la no seu apoio, teria caído. A volta da mesa, todos os rostos estavam voltados para eles: tinham finalmente compreendido que aquele era um momento muito mau.

Ouviram a porta da frente abrir-se — Johnny tinha, evidentemente, uma chave da casa da mãe — e depois, à entrada para aquele aposento, para a cozinha, apareceu um vulto pequeno e assustado, metido numa grande canadiana, a tremer de frio e a tentar sorrir, mas o que conseguiu soltar foi um grande lamento, quando olhou para Frances, que lhe tinham dito que era bondosa e cuidaria dela «até compormos as coisas». Era como um passarito arrojado por uma tempestade, e Frances foi ao seu encontro, envolveu-a nos braços e disse-lhe: «Acalma-te, pronto, pronto, acalma-te.» Depois lembrou-se de que não estava a falar com uma criança, mas sim com uma rapariga dos seus catorze anos, e por isso o seu impulso de a aconchegar no colo estava fora de questão. Entretanto, Johnny, que se colocara logo atrás da rapariga, dizia:

— Acho que o melhor é metê-la na cama. — E depois acrescentou, dirigindo-se a todos em geral: — Vou andando. — Mas não foi.

A rapariga olhava suplicante para Andrew, que no fim de contas conhecia entre todos aqueles estranhos.

— Não se preocupem, eu trato do assunto — disse o rapaz, que pôs um braço à volta de Tilly e se voltou para sair. — Vou levá-la para a'cave. Lá em baixo é agradável e está quente.

— Oh, não, não, não, por favor — gritou a rapariga. — Não, não posso ficar sozinha, não posso, não me obrigues.

— Claro que não, se não queres. — E acrescentou, dirigindo-se à mãe: — Arranjo-lhe uma cama no meu quarto, para esta noite. — Levou-a e ficaram todos calados, a ouvi-lo encorajá-la a subir a escada.

Johnny estava frente a frente com Frances, que lhe disse em voz baixa, esperando que os outros não ouvissem:

— Vai-te embora, Johnny. Vai-te embora.

Ele tentou distribuir um sorriso simpático em redor, prendeu os olhos de Rose, que retribuiu, mas duvidosa, suportou um veemente olhar de censura de Sophie, acenou severamente com a cabeça a Geoffrey, que conhecia há anos, e saiu. A porta da frente fechou-se. A porta do carro bateu.

Colin estava agora atrás de Frances, a tocar-lhe no braço, no ombro, sem saber o que fazer.

— Vem — disse-lhe —, vem para cima.

 

Enquanto subiam a escada, Frances começou a praguejar, primeiro baixinho, para não ser ouvida pelos jovens, e depois em voz alta. «Raios o partam, raios o partam, raios partam o sacana, o grandíssimo sacana!» Sentou-se a chorar na sua sala, enquanto Colin, sem saber como reagir, acabou por lhe ir buscar lenços de papel e depois um copo de água.

Entretanto, Andrew dissera a Julia o que se passava. Ela desceu, abriu a porta de Frances sem bater e entrou.

— Explique-me, por favor, porque eu não compreendo. Por que permite que ele se comporte desta maneira?

Julia von Arne nascera numa parte especialmente encantadora da Alemanha, perto de Estugarda, numa região de colinas, regatos e vinhas. Era a única rapariga e a mais nova dos três filhos de uma família amável e bem-nascida. O pai era diplomata e a mãe música. Em Julho de 1914 receberam a visita de Philip Lennox, um promissor terceiro secretário da Embaixada em Berlim. Que Julia, de catorze anos, se apaixonasse pelo belo Philip — que tinha vinte e cinco —, não foi nada de surpreendente, mas ele também se apaixonou por ela. Julia era bonita, pequenina, tinha cabelo louro encaracolado e usava vestidos que, segundo o romântico jovem lhe dizia, eram como flores. Recebera uma educação severa, sob a orientação de preceptoras inglesas e francesas, e ele tinha a sensação de que cada gesto dela, cada sorriso, até cada virar de cabeça, era formal, determinado, como se os seus movimentos fossem uma dança. Como todas as raparigas ensinadas a terem consciência dos seus corpos, por causa dos perigos terríveis da imodéstia, os seus olhos falavam por ela, podia atingir o coração com um simples olhar, e quando descia as pálpebras delicadas sobre o azul convite ao amor dos seus olhos, ele experimentava a sensação de estar a ser rejeitado. Tinha irmãs, que vira poucos dias antes no Sussex, alegres marias-rapazes que desfrutavam o exemplar Verão celebrado em tantas memórias e romances. Uma amiga das irmãs, Betty, fora alvo de gracejos por ter aparecido para jantar com sólidos braços bronzeados, nos quais arranhões brancos denunciava que andara a brincar no feno com os cães. A família observara-o, para ver se ele se interessava pela rapariga, que daria uma esposa adequada, e ele estivera disposto a tomá-la em consideração. Esta jovenzinha alemã parecia-lhe tão fascinante como uma beldade vislumbrada num harém, toda promessa e oculta bem-aventurança, e ele imaginava que se um raio de sol lhe tocasse ela se derreteria como um floco de neve.

 

Ela ofereceu-lhe uma rosa vermelha do jardim e ele percebeu que lhe estava a oferecer o coração. Declarou-lhe o seu amor ao luar e no dia seguinte falou com o pai dela. Sim, sabia que com catorze anos era demasiado jovem, mas ele estava a pedir autorização formal para se declarar quando ela tivesse dezasseis. E assim se separaram em 1914, quando a guerra estava no início, mas, como acontecia a muitas pessoas liberais sensatas, parecia ridículo, tanto aos von Arne como aos Lennox, que a Alemanha e a Inglaterra pudessem entrar em guerra. Quando a guerra foi declarada, Philip deixara a sua amada em lágrimas havia apenas duas semanas. Nesses tempos, os governos sentiam-se compelidos a anunciar que as guerras deveriam estar terminadas pelo Natal, e os namorados tinham a certeza de que voltariam a ver-se em breve.

A xenofobia começou, quase de imediato, a envenenar o amor de Julia. A sua família não se importava de que ela amasse o seu inglês — não se tratavam, os seus respectivos imperadores, por primos? —, mas os vizinhos comentavam e os criados murmuravam e mexericavam. Durante os anos da guerra, Julia, e também a sua família, foram alvo de boatos. Os seus três irmãos combatiam nas trincheiras, o seu pai estava no Ministério da Guerra e a sua mãe fazia trabalho de guerra, mas aqueles poucos dias febris de Julho de 1914 tornaram -nos a todos alvo de comentários e suspeitas. Julia nunca perdeu a fé nem no seu amor nem em Philip. Ele foi ferido duas vezes e, por meios sinuosos, ela teve conhecimento disso e chorou por ele. Não importava, gritava o coração de Julia, a gravidade dos seus ferimentos, pois ela amá-lo-ia para sempre. Philip foi desmobilizado em 1919. Ela esperava-o, sabendo que ele viria reclamá-la, quando na sala onde cinco anos antes tinham namorado entrou um homem que achava devia reconhecer. Tinha uma manga vazia presa ao peito por um alfinete e um rosto tenso e sulcado de vincos. Ela tinha agora quase vinte anos. Ele viu uma mulher jovem e alta — ela crescera uns bons centímetros —, com cabelo louro preso no alto da cabeça por uma grande seta de azeviche e vestida de luto carregado pela morte de dois irmãos. Um terceiro irmão, um rapaz que ainda não tinha vinte anos, fora ferido e estava sentado, ainda de uniforme, com uma perna hirta estendida à sua frente, em cima de um tamborete. Os dois tão recentes inimigos fitaram-se um ao outro. Depois Philip, sem sorrir, avançou de mão estendida. O jovem fez uma careta e um movimento involuntário, como se fosse desviar-se, mas recompôs-se e a civilidade foi restaurada quando sorriu e apertaram as mãos. Esta cena, que no fim de contas se repetiu sob várias formas desde então, não teve na altura tanto peso como teria agora. A ironia, que enaltece esse elemento que persistimos em excluir da nossa visão das coisas, teria sido impossível de suportar por eles: a nossa pele tornou-se mais grossa.

E agora estes dois namorados que não se teriam reconhecido se passassem um pelo outro na rua, tinham de decidir se os sonhos que tinham acalentado mutuamente durante aqueles anos terríveis eram suficientemente fortes para os conduzir ao casamento. Não restava nada da encantadora e formalista rapariguinha nem do homem sentimental que transportara uma rosa vermelha murcha junto do coração até ela se desfazer. Os grandes olhos azuis estavam tristes, e ele tinha tendência para mergulhar no silêncio — tal como o irmão mais novo dela, quando se lembrava de coisas que só poderiam ser compreendidas por outros soldados.

Casaram sem aparato: não era de modo algum a altura apropriada para um grande casamento germano-britânico. Em Londres a febre da guerra estava a baixar, embora ainda se falasse de Boches e Hunos. As pessoas eram amáveis com Julia. Ela perguntou-se pela primeira vez se não fora um erro ter escolhido Philip; no entanto, estava convencida de que se amavam um ao outro e fingiam ambos que eram pessoas sérias por natureza e não estavam tomados por uma tristeza incurável. E entretanto a guerra foi ficando para trás e os piores rancores da guerra passaram. Julia, que sofrera na Alemanha pelo seu amor inglês, tentava agora tornar-se inglesa, num acto volitivo. Falara razoavelmente inglês, mas voltou a receber lições e não tardou a falar como nenhuma pessoa inglesa falava, um inglês perfeito e requintado, com todas as palavras separadas. Sabia que as suas maneiras eram formais e tentou tornar-se mais natural. As suas roupas também eram perfeitas, mas, no fim de contas, era mulher de um diplomata e tinha de manter as aparências. Como os ingleses diziam.

Começaram a vida de casados numa pequena casa em Mayfair, onde recebia, como se esperava dela, com a ajuda de uma cozinheira e uma criada, e atingia algo semelhante aos padrões que recordava da sua casa. Entretanto, Philip descobrira que casar com uma alemã não fora a melhor receita para uma carreira desanuviada. Discussões com os seus superiores revelavam-lhe que certos postos lhe estariam vedados, como na Alemanha, por exemplo, e que poderia dar consigo empurrado para fora da estrada recta para o topo e ir parar a lugares como a África do Sul ou a Argentina. Resolveu evitar decepções e transferiu-se para a administração. Teria uma excelente carreira, mas nenhum do encanto dos ministérios no estrangeiro. Às vezes encontrava em casa de uma irmã a Betty, com quem podia ter casado — e que continuava solteira em virtude de tantos homens terem morrido — e pensava como a sua vida poderia ter sido diferente.

Quando Jolyon Meredith Wilhelm Lennox nasceu, em 1920, teve uma ama e depois uma governanta. Era uma criança comprida e magra, com caracóis dourados e olhos azuis combativos e críticos, muitas vezes em relação à sua mãe. Cedo ficou a saber, pela governanta, que era alemão: teve uma pequena birra e foi difícil de aturar durante alguns dias. Levaram-no a visitar a sua família alemã, mas não se pode dizer que tenha sido um êxito: não gostou do lugar nem das maneiras diferentes — pretendiam que, às refeições, se sentasse com uma mão de cada lado do prato, quando não estava realmente a comer, que só falasse quando lhe falassem e juntasse os calcanhares quando fazia um pedido. Recusou-se a voltar lá. Julia discutiu com Philip quanto a enviarem o filho para um colégio interno aos sete anos. Isso hoje não é invulgar, mas naquele tempo Julia mostrou-se corajosa. Philip disse-lhe que toda a gente da classe social deles fazia isso e, aliás, que olhasse para ele! Tinha ido para o colégio interno aos sete anos. Sim, lembrava-se, ao princípio sentira um pouco saudades de casa... mas isso não tinha importância, passava. O argumento do «Olha para mim!», usado na esperança de pôr fim aos protestos atendendo à convicção dele da sua superioridade, ou pelo menos da sua sensatez, não convenceu Julia. Havia em Philip um lugar que lhe estava para sempre vedado, uma reserva, uma frieza, que ao princípio tinha atribuído à guerra, às trincheiras, às invisíveis cicatrizes psicológicas do soldado. Mas depois começou a duvidar: ela nunca estabelecera com as mulheres dos colegas do marido intimidade suficiente para lhes perguntar se também sentiam esse lugar proibido nos seus homens, essa zona assinalada pela palavra VERBOTEN, Proibida a Entrada; mas isso não a impedia de observar, de reparar em muitas coisas. Não, pensou, se queres tirar um filho tão pequeno à sua mãe... Perdeu a batalha e perdeu o filho, que a partir daí se tornou cortês e afável, mas também, e com frequência, impaciente.

Tanto quanto percebeu, ele saiu-se bem na primeira escola, mas em Eton as coisas não correram bem. Os relatórios que de lá vinham não eram bons. «Não faz amigos com facilidade.» «É um solitário.»

Nas férias interrogava-o, manobrando-o até o colocar numa posição de que não podia escapar facilmente, pois ele fugia a perguntas e situações directas.

— Diz-me cá, Jolyon, o facto de eu ser alemã causa-te problemas?

Os olhos dele pestanejavam, queriam esquivar-se, mas ele enfrentava-a com um rasgado sorriso cortês e respondia:

— Não, mãe. Por que haveria de causar?

— Por nada, foi só um pensamento.

Pediu a Philip que «falasse» com Jolyon, querendo com isso dizer, é claro, «Modifica-o, por favor, ele está a partir-me o coração».

— Ele esconde muito bem o jogo — foi a resposta do marido. As suas preocupações eram na verdade suavizadas pelo mero facto

de ele estar em Eton, pelo peso de Eton, um fornecedor de excelência e uma garantia de sucesso. Entregara o seu filho — o seu único filho — ao sistema educativo inglês e esperava que, em troca, Jolyon fosse bem-sucedido, como o pai, e a seu tempo lhe seguisse as pegadas, provavelmente como diplomata.

Quando o pai de Philip morreu e, pouco depois, a sua mãe, ele quis mudar-se para a grande casa de Hampstead. Era a casa da família e ele, o filho, viveria lá. Julia gostava da pequena casa de Mayfair, tão fácil de governar e manter limpa, e não queria viver no grande casarão, com as suas muitas divisões. Mas foi isso que acabou por fazer. Não opôs, sequer, a sua vontade à de Philip. Não discutiram. Conseguiam entender-se porque ela não insistia nas suas preferências. Comportava-se como vira a sua mãe comportar-se, cedendo ao seu pai. No seu modo de ver, um lado tinha de ceder e não importava muito qual fosse. O importante era haver paz na família.

O mobiliário da pequena casa, na sua maioria vindo da casa da Alemanha, foi facilmente absorvido pela de Hampstead, onde na realidade Julia não parecia receber tanto como antes, apesar de haver muito espaço para tudo. Por um lado, Philip não era, realmente, um homem sociável: tinha um ou dois amigos íntimos a quem via, muitas vezes sozinho. E Julia supunha que estava a ficar velha e enfadonha, pois já não gostava de festas tanto como gostara. Mas havia jantares e, com frequência, pessoas importantes, e ela sentia-se satisfeita por fazer isso tão bem e Philip se orgulhar dela.

Fazia visitas à Alemanha. Os pais, que estavam a envelhecer, ficavam muito satisfeitos por verem a filha, e ela gostava do irmão, que era agora o único que lhe restava. Mas voltar a casa era perturbador, chegava mesmo a ser assustador. Havia pobreza e desemprego, os comunistas e, depois, os nazis, estavam em todo o lado e quadrilhas percorriam as ruas. Depois chegou Hitler. Os von Arne desprezavam por igual os comunistas e Hitler e estavam convencidos de que ambos os desagradáveis fenómenos acabariam simplesmente por desaparecer. Aquela não era a sua Alemanha, diziam. E não era, com certeza, o que Julia recordava da Alemanha dela, isto é, se esquecesse a perversa boa-taria que existira durante a guerra. Tinham dito que ela era uma espia. Evidentemente que não fora gente séria, nem gente educada... bem, sim, também houvera uma ou duas pessoas dessas. Achou que não gostava muito de visitar a Alemanha naquele tempo, e tornou-se mais fácil deixar de o fazer quando os seus pais morreram.

No fim de contas, tinha de admitir que os Ingleses eram pessoas sensatas. Não era possível imaginá-los a permitirem combates entre comunistas e fascistas nas ruas — enfim, havia algumas escaramuças; mas não se devia exagerar, nada que se comparasse com o Hitler.

Chegou uma carta de Eton informando que Jolyon desaparecera, deixando um bilhete em que dizia ir para a Guerra Civil de Espanha, assinado por camarada Johnny Lennox.

Philip usou toda a sua influência para descobrir onde estava o filho de ambos. Na Brigada Internacional? Em Madrid? Na Catalunha? Ninguém parecia saber. Julia sentia-se inclinada para compreender o filho, pois chocara-a o tratamento dado pela Grã-Bretanha e pela França ao governo eleito em Espanha. O marido, que afinal era um diplomata, defendia o seu governo e o seu país, mas a sós com ela dizia-se envergonhado. Não admirava a política que estava a defender e a orientar.

Passaram meses. Por fim, chegou um telegrama do filho a pedir dinheiro: morada, uma casa no East End de Londres. Julia interpretou imediatamente isso como significando que ele queria que o visitassem; caso contrário, teria indicado um banco onde pudesse ir levantar o dinheiro. Juntos, Julia e Philip foram a uma casa situada numa rua pobre, onde encontraram Jolyon a ser tratado por uma mulher de ar decente, do tipo que Julia identificou logo como uma possível criada. Ele estava num quarto do andar de cima com hepatite, provavelmente apanhada em Espanha. Depois, ao conversar com a tal mulher, que se identificava como camarada Mary, tornou-se pouco a pouco evidente que ela não sabia nada de Espanha e, depois, que o próprio Jolyon nunca estivera em Espanha, mas ali, naquela casa, doente.

— Precisei de algum tempo para compreender que ele não estava bem — disse a camarada Mary.

Era gente pobre. Philip passou um cheque de uma quantia muito razoável, e foi-lhe dito, cortesmente, que não tinham conta bancária, apenas com a leve insinuação sarcástica de que as contas bancárias eram para gente rica. Como não tinha consigo aquela importância, Philip disse que o dinheiro seria entregue no dia seguinte, e foi.

Jolyon, que insistia em ser tratado por Johnny, estava tão magro que os ossos do seu rosto deixavam adivinhar o esqueleto, e embora não se cansasse de dizer que a camarada Mary e a sua família eram o sal da terra, deixou-se convencer facilmente a ir para casa.

Essa foi a última vez que os seus pais ouviram falar de Espanha, mas na Liga dos Jovens Comunistas, onde se convertera numa estrela, ele era um herói da Guerra Civil de Espanha.

Johnny teve um quarto, e depois um andar, na casa grande, aonde iam muitas pessoas que perturbavam os pais e desgostavam profundamente Julia. Eram todas comunistas, de modo geral muito jovens, e estavam sempre a levar Johnny para reuniões, comícios, cursos de fim-de-semana e manifestações. Ela disse ao filho que se ele tivesse visto as ruas da Alemanha cheias de bandos rivais, não quereria ter nada que ver com semelhante gente, e em consequência da discussão que se seguiu ele saiu pura e simplesmente de casa. Antevendo posteriores padrões de comportamento, vivia em casas de camaradas, dormia no chão ou onde quer que houvesse um canto para ele, e pedia dinheiro aos pais. «No fim de contas, suponho que não querem que eu passe fome, mesmo sendo comunista.»

Julia e Philip não souberam de Frances enquanto Johnny não casou com ela, quando veio de licença, embora Julia estivesse familiarizada com o que descreveu como «aquele tipo de rapariga». Andara a observar as raparigas espertas, atrevidas e namoradeiras que estavam ao serviço dos funcionários superiores e algumas delas ligadas ao departamento do seu marido. Perguntara a si mesma: «Estará certo divertirem-se tanto no meio desta terrível guerra?» Bem, pelo menos ninguém podia dizer que eram hipócritas. (Uma senhora idosa, de pé a fixar caracóis brancos com laca enquanto se via tristemente ao espelho, dissera-lhe, décadas depois: «Oh, divertíamo-nos tanto, tanto... Era tão... glamoroso... compreende?)

A guerra de Julia podia ter sido verdadeiramente terrível. O seu nome constara de uma lista dos alemães a serem enviados para o campo de internamento da Isle of Man. Philip disse-lhe: «A questão de seres internada nunca existiu; tratou-se apenas de um erro administrativo.» Mas, erro ou não, fora necessária a intervenção de Philip para o seu nome ser removido. Esta guerra angustiava-a com recordações da anterior e custava-lhe a acreditar que, uma vez mais, países destinados a serem amigos estivessem em guerra. Não se sentia bem, dormia mal, chorava. Philip era atencioso — foi sempre um homem atencioso. Abraçava-a e embalava-a. «Então, minha querida, então.» Podia abraçá-la porque tinha um dos novos braços «inteligentes», capazes de fazer tudo. Bem, quase tudo. À noite tirava a prótese e colocava-a no seu suporte. Assim só podia abraçá-la parcialmente, e Julia tinha tendência para o abraçar ela.

Os pais Lennox não foram convidados para o casamento do seu filho, Jolyon, com Frances. Foram informados por telegrama, quando ele ia partir de novo para o Canadá. Ao princípio, Julia não quis acreditar que os estivesse a tratar daquela maneira. Philip abraçou-a e disse: «Tu não compreendes, Julia.» «Não, não compreendo, eu não compreendo nada.» Com um humor que lhe tornou a voz áspera, ele explicou: «Não vês que nós somos inimigos de classe? Não, Julia, não chores, ele acabará por crescer, espero.» Mas tinha os olhos fixos por cima do ombro dela e no rosto uma angústia igual à que ela sentia — que ela sentia cada vez com mais frequência e mais fortemente, todos os dias. Uma angústia chorosa, generalizada e penetrante, de que não conseguia libertar-se.

Sabiam que Johnny estava a «sair-se bem» no Canadá. Mas o que significava sair-se bem neste contexto? Pouco depois de ele ter voltado para lá, chegou uma carta com uma fotografia sua e de Frances nos degraus do registo civil. Estavam ambos de uniforme, o dela justo como uma cinta. Era uma loura sorridente, aparentemente dada a pequenas gargalhadas. «Rapariga pateta», sentenciou Julia, guardando a carta e a fotografia. A carta tinha o carimbo de um censor, como se tivesse ultrapassado os limites — que era o que Julia sentia. Depois Johnny escreveu um bilhete a dizer: «Podias passar para ver como vai a Frances. Ela está grávida.»

Julia não foi. Depois chegou outra carta de avião, informando que nascera um bebé, um rapaz, e que ele achava que o mínimo que Julia podia fazer era visitá-la. «Chama-se Andrew», informava um post scriptum, como se ele se tivesse lembrado do pormenor no último momento, e Julia recordou-se das participações do nascimento de Jolyon, enviadas em grandes e espessos sobrescritos brancos, num cartão que parecia porcelana fina em que estava escrito, numa elegante caligrafia a preto: Jolyon Mereditb Wilhelm Lennox. Nenhum dos destinatários podia ter duvidado de que estava ali anunciada uma nova e importante adição à espécie humana.

Ela achou que devia ir ver a nora, adiou, e quando por fim chegou ao endereço que Johnny lhe dera já não encontrou Frances. Era uma rua lúgubre, onde havia uma periclitante casa em ruínas, atingida por uma bomba. Julia ficou satisfeita por não ter de entrar em nenhuma daquelas casas, ali, mas indicaram-lhe outra que parecia ainda pior. Ficava em Notting Hill. Abriu-lhe a porta uma mulher desleixada, que não sorria, e lhe disse que batesse naquela porta, além, a que tinha a clarabóia rachada.

Bateu, e respondeu-lhe uma voz irritada: «Espere um momento, está bem, entre.» O quarto era grande, mal iluminado e tinha as janelas sujas. Cortinas de cetineta verde desbotada e tapetes puídos. Na semiescuridão esverdeada estava sentada uma mulher nova e forte, com as pernas nuas abertas e um bebé atravessado no peito. Segurava um livro numa das mãos, por cima da cabeça do bebé — uma cabecinha que se movimentava ritmadamente e umas mãozinhas que se abriam e fechavam sobre carne nua. O seio exposto, grande e flácido, expelia leite ao ritmo dos movimentos.

O primeiro pensamento de Julia foi que tinha ido à casa errada, pois esta mulher, embora jovem, não podia ser a da fotografia. Enquanto permanecia parada, a esforçar-se para se convencer de que estava, de facto, a olhar para Frances, a mulher de Jolyon Meredith Wilhelm, a mulher disse: «Sente-se», dando a impressão de que ter de dizer aquilo, de que ter sequer de admitir a presença de Julia ali, era a última gota, o cúmulo. Franziu a testa, ao endireitar-se para aliviar o desconforto, a boca do bebé soltou-se do mamilo e um líquido leitoso escorreu do seio para uma cintura flácida. Frances voltou a introduzir o mamilo, o bebé soltou um choro sufocado e atracou-se de novo ao seio com um pequeno movimento trémulo de cabeça que Julia observara em cachorrinhos alinhados ao longo das tetas de uma cadela a amamentar, a sua pequena dachshund de há muito tempo. Frances colocou um pedaço de pano, que Julia juraria tratar-se de uma fralda, sobre o outro seio.

As duas mulheres fitaram-se com antipatia.

Julia não se sentou. Havia uma cadeira, mas o assento estava sujo de manchas suspeitas. Podia ter-se sentado na cama, que estava por fazer, mas não quis.

— Johnny escreveu-me, a pedir que visse como você estava — disse.

A voz fria, leve, quase arrastada, modulada de acordo com algum ritmo ou escala conhecida apenas de Julia, fez com que a mulher mais nova a fitasse de novo e depois se risse.

— Estou como vê, Julia — respondeu Frances.

Julia sentia-se entrar em pânico. Achava aquele lugar horrível, a um nível de grande sordidez. A casa onde ela e Philip tinham encontrado Johnny, na altura da tragédia da Guerra Civil Espanhola, tinha sido pobre, com paredes delgadas e uma sensação de precariedade, mas estava limpa e Mary, a senhoria, pertencia a um tipo de mulher decente. Neste lugar, agora, Julia sentia-se aprisionada num pesadelo. Aquela jovem mulher descarada, ali seminua, com os grandes seios a ressumar, o sugar ruidoso do bebé, um ténue cheiro a vomitado, ou a fraldas... Sentia que Frances estava a forçá-la, de modo muito brutal, a olhar de frente para uma indecorosa e obscena fonte de vida que ela nunca tivera de reconhecer. O seu próprio bebé fora-lhe apresentado como uma trouxinha bem lavada, depois de ter sido alimentado pela ama. Julia recusara-se a amamentar; achara isso um acto muito próximo da animalidade, mas não ousara dizê-lo. Médicos e enfermeiras tinham admitido, com tacto, que ela não era capaz de amamentar... a sua saúde... Julia brincara muitas vezes com o rapazinho que entrava na sala com brinquedos, chegara mesmo a sentar-se no chão com ele e tivera prazer numa hora de brincadeira, contada ao minuto pela ama. Lembrava-se do odor a sabonete e a pó de talco. Lembrava-se de ter cheirado a cabecinha de Jolyon com um prazer tão profundo...

É inacreditável, pensava Frances. Ela é inacreditável — e o escárnio ameaçava fazê-la explodir numa gargalhada estridente.

Julia estava ali parada no meio do quarto, no seu impecável fato de fazenda cinzenta sem uma ruga, sem uma protuberância. Era abotoado até ao pescoço, onde um lenço de seda malva emprestava um leve toque de cor. Cobriam-lhe as mãos luvas de pelica cinzenta, e apesar de totalmente protegida das superfícies pouco limpas que a cercavam não continha pequenos e ansiosos movimentos de rejeição e de exagerada desaprovação. Os seus sapatos lembravam melros reluzentes, com fivelas de latão que pareciam a Frances fechaduras ali colocadas para garantir que os pés não voariam nem sequer ensaiariam uns tímidos passinhos de dança. Um pequeno véu de rede cercava-lhe o chapéu sem lhe ocultar os olhos horrorizados, e também ele estava preso por um fecho metálico. Era uma mulher engaiolada, e a Frances, sujeita a tão grandes pressões de solidão, pobreza e ansiedade, o seu aparecimento naquele quarto, que detestava e de onde desejava fugir, revestiu-se de foros de deliberada provocação, de insulto.

— O que devo dizer ao Jolyon?

— A quem?... ah, sim. Mas... — Frances endireitou-se energicamente, amparando com uma das mãos a cabeça do bebé e segurando com a outra o pano que cobria o seio desnudo. — Não me diga que o Johnny lhe pediu que viesse aqui?

— Bem, pediu, sim.

Agora as duas mulheres partilharam um momento, um instante de incredulidade, e os seus olhos encontraram-se, realmente, inquiridores.

Quando lera a carta do filho a mandá-la visitar a sua mulher, Julia dissera a Philip: «Mas eu pensava que ele nos odiava... Se não estávamos à altura de o ver casar-se, por que me ordena agora que visite a Frances?»

Philip respondera com secura, mas também distraído, porque estava como sempre absorvido pelos seus deveres relacionados com a guerra: «Verifico que esperas coerência. Geralmente isso é um erro, na minha opinião.»

Quanto a Frances, nunca ouvira Johnny referir-se aos pais a não ser como fascistas, exploradores ou, na melhor das hipóteses, reaccionários. Nesse caso, como podia ele ser...

— Frances, gostaria muito de a ajudar com algum dinheiro. — Tirou um sobrescrito da mala de mão.

— Oh, não, tenho a certeza de que o Johnny não gostaria. Ele nunca aceitaria dinheiro de...

— Pois eu acho que descobrirá que aceitaria e aceitará.

— Oh, não, não, Julia, por favor, não.

— Nesse caso, muito bem, adeus.

Julia só voltou a pôr os olhos em Frances depois de Johnny ter regressado da guerra, e Philip, que então estava doente e morreria em breve, disse estar preocupado com Frances e com as crianças. As recordações que guardava daquela visita levaram Julia a protestar e a dizer que tinha a certeza de que Frances não a queria ver, mas Philip insistiu: «Por favor, Julia. Para tranquilizar o meu espírito.»

Julia foi à casa de Notting Hill, que estava certa de que fora escolhida por causa da miséria e da fealdade da zona. Agora havia duas crianças. A que vira antes, Andrew, começava a dar os primeiros passos e era um menino ruidoso e cheio de energia, e havia um bebé, Colin. Mais uma vez, Frances estava a amamentar. Era uma mulher corpulenta, informe e desleixada, e Julia ficou convencida de que a casa constituía um perigo para a saúde. Na parede havia um armário de comida, dentro do qual se vislumbrava uma garrafa de leite e um pedaço de queijo. A rede de arame tinha sido pintada e a tinta coagulara, o que significava que o ar não podia circular como devia ser. Havia roupa de bebés estendida em geringonças de madeira que pareciam na iminência de se desmoronar. Não, disse Frances numa voz que a hostilidade e a censura tornavam fria. Não, não precisava de dinheiro nenhum, obrigada.

Julia ficou ali parada, numa súplica inconsciente, com as mãos trémulas e os olhos cheios de lágrimas.

— Mas, Frances, pense nas crianças.

Foi como se, deliberadamente, Julia tivesse tocado com ácido num ponto já ferido. Oh, sim, Frances pensava muitas vezes no modo como os seus próprios pais, quanto mais os de Johnny, deviam vê-la e à maneira como vivia com as crianças. Respondeu, numa voz endurecida pela cólera:

— Parece-me que nunca pensa noutra coisa a não ser nas crianças. — E o seu tom dizia: Como se atreve!

— Deixe-me ajudar, por favor... O Johnny não tem juízo, nunca teve, e não é justo para as crianças.

O problema era que, agora, Frances concordava sem reservas com a falta de juízo de Johnny. Quaisquer vestígios de ilusão que lhe restassem tinham desaparecido, deixando um resíduo de exaspero não resolvido a respeito dele, dos camaradas, da Revolução, de Estaline e toda essa conversa fiada. Mas o que estava em causa, aqui, não era Johnny, era ela própria, uma pequena e ameaçada noção de identidade e de independência. Foi por isso que o Pense nas crianças de Julia acertou no alvo como uma bala envenenada. Que direito tinha ela, Frances, de lutar pela sua independência, por si própria, à custa de... mas eles não estavam a sofrer, não, não estavam. Ela sabia que não estavam.

Julia foi-se embora, contou o que se passara a Philip e tentou não pensar naquela casa de Notting Hill.

Mais tarde, quando soube que Frances tinha ido trabalhar num teatro, Julia pensou: Num teatro! É claro, só podia ser! E depois Frances começou a representar e ela pensou: Estará a representar papéis de criada?

Foi ao teatro, sentou-se cá bem atrás, onde esperava não ser vista, e viu-a fazer um pequeno papel numa agradável pequena comédia. Frances estava mais magra, embora ainda forte, e usava o cabelo louro em ondas frisadas. Representava uma proprietária de hotel, em Brighton. Julia não conseguiu ver nela nada da jovem risonha, de uniforme justo, de antes da guerra, mas mesmo assim achou que representava bem o seu papel e sentiu-se encorajada. Frances soube que ela tinha ido vê-la, porque o teatro era pequeno e Julia usava um dos seus chapéus inimitáveis, com véu, e tinha as mãos enluvadas no regaço. Nenhuma outra mulher do público usava chapéu. E aquelas luvas, oh, aquelas luvas, que vontade de rir.

Durante toda a guerra, sobretudo em maus momentos, Philip guardara a recordação de uma certa luvazinha, de musselina suíça, e aqueles pontos, branco sobre branco, assim como o pequeno franzir no pulso, pareciam-lhe uma deliciosa frivolidade, como se se rissem de si mesmos, e uma promessa de que a civilização regressaria.

Philip morreu pouco depois, de ataque cardíaco, e Julia não se surpreendeu. A guerra tinha sido difícil para ele. Trabalhara sem descanso e ainda levara trabalho para casa, para fazer à noite. Ela sabia que o marido tinha estado envolvido em toda a espécie de empreendimentos ousados e perigosos, e que sofria pelos homens que mandara para o perigo, e algumas vezes para a morte. Tornara-se um velho, durante a guerra. E, como a ela, esta guerra estava a obrigá-lo a reviver a anterior: sabia-o, pelos pequenos comentários secos que às vezes deixava escapar. Estas duas pessoas, que se tinham apaixonado tão fatalmente, haviam vivido sempre em paciente ternura, como se tivessem decidido proteger as suas recordações, como uma ferida, de qualquer contacto irritante, recusando-se sempre a olharem-se de demasiado perto.

Agora Julia estava sozinha na grande casa, e Johnny apareceu e disse que a queria e que ela devia mudar-se para um andar. Pela primeira vez na sua vida, Julia fez finca-pé e recusou. Ia viver ali e não esperava que ele, ou fosse quem fosse, a compreendesse. A sua própria casa, a casa dos von Arne, perdera-se. O seu irmão mais novo fora morto na Segunda Guerra Mundial. A casa tinha sido vendida e ela recebera o dinheiro da venda. Esta casa, onde tanto relutara em viver, era agora o seu lar, o único vínculo com aquela Julia que tinha tido um lar, que esperara ter o seu, definido por um lugar com recordações. Ela era Julia Lennox e esta era a sua casa.

— És egoísta e gananciosa, como todos os da tua classe — disse-lhe Johnny.

— Tu e a Frances podem vir viver para cá, mas eu ficarei aqui.

— Muito obrigado, Mutti, mas declinamos.

— Porquê Mutti? Nunca me trataste assim quando eras pequeno.

— Estás a tentar ocultar o facto de seres alemã, Mutti?

— Não, não penso que esteja a fazer isso.

— Eu penso. Hipócrita. É o que esperamos de pessoas como tu. Estava realmente furioso. O pai não lhe deixara nada, fora tudo para

Julia. Planeara morar naquela casa e enchê-la de camaradas necessitados de abrigo. Depois da guerra, toda a gente estava pobre, a viver da mão para a boca, e ele sobrevivia dos trabalhos que fazia para o partido, alguns deles ilegais. Ficara furioso por Frances ter recusado aceitar um donativo de Julia. Quando ela dissera, «Mas, Johnny, não compreendo como podes querer aceitar dinheiro do inimigo de classe?», ele batera-lhe pela única vez nas suas vidas. Ela pagara na mesma moeda, e com mais força. Não tinha feito a pergunta por provocação nem como uma crítica, mas porque queria, sinceramente, que lho explicasse.

Julia vivia com desafogo, mas não era rica. Custear dois estudos, o de Andrew e o de Colin, estava dentro das suas posses, mas se Frances não tivesse concordado em ir morar para ali, planeara alugar parte da casa. Agora economizava de uma maneira que faria Frances rir, se soubesse. Julia não comprava roupas novas. Despedira a governanta, que vivera na cave, dependia de uma mulher que vinha duas vezes por semana (Mrs. Philby, que tivera de ser persuadida com lisonjas e presentes, para continuar a trabalhar para ela quando Frances chegara com os seus hábitos mal-educados) e fazia ela própria uma boa parte do trabalho doméstico. Deixara de comprar comida na Fortnums, mas descobrira, agora que Philip morrera, que os seus gostos eram frugais e que os padrões exigidos a uma esposa de um funcionário do Ministério dos Estrangeiros nunca tinham na realidade sido os seus.

Quando Frances chegou, para ocupar toda a casa à excepção do andar de cima, de Julia, sentiu-se aliviada. Continuava a não gostar de Frances, que parecia determinada a escandalizá-la, mas amava os rapazes e estava decidida a protegê-los dos seus pais. Na verdade, eles tinham medo dela, pelo menos no princípio, mas Julia nunca o percebeu. Pensava que Frances queria afastá-la deles, sem saber que na realidade ela os instigava a visitarem a avó. «Por favor, ela é tão boa para nós. E ficaria muito satisfeita se a fossem ver.» «Oh, não, é demais. Temos de ir?»

Frances foi ao jornal para resolver o assunto do seu emprego e percebeu* como estivera certa ao preferir o teatro. Como freelance tivera pouca experiência de instituições e não encarava com entusiasmo a expectativa de uma vida de trabalho comunal. Assim que pôs os pés no edifício que abrigava The Defender, identificou, de facto, uma atmosfera de esprit de corps. A história venerável do The Defender, que remontava ao século dezanove, como paladino de toda a espécie de boas causas, estava a ser continuada, ou era essa a impressão geral, muito particularmente das pessoas que lá trabalhavam. O período actual, os anos 60, estava à altura de qualquer dos grandes tempos do passado. Frances foi acolhida no redil por uma tal Julie Hackett. Era uma mulher afável, para não dizer feminil, com abundante e forte cabelo preto, preso aqui e ali por uma variedade de travessas e ganchos, uma figura resolutamente avessa a modas, pois via a moda como uma escravizadora das mulheres. Observava tudo quanto a rodeava com a intenção de corrigir erros de facto e crença, e criticava os homens em cada frase que proferia, partindo do princípio, como é tendência dos crentes, de que Frances concordava com ela em tudo. Andara de olho nela, vira artigos da sua autoria aqui e ali, e também no The Defender, mas um deles decidira-a a contratá-la. Tratara-se de uma peça satírica, mas bem disposta, acerca de Carnaby Street, que estava em vias de se tornar um símbolo da Grã-Bretanha moderna e a atrair jovens, para não falar dos jovens de espírito, de todo o mundo. Frances dissera que deviam estar todos a sofrer de alguma espécie de alucinação colectiva, visto a rua ser suja e maltrapilha, e as roupas, mesmo que fossem atraentes — algumas —, não serem melhores do que outras de ruas que não tinham gravadas nelas as sílabas mágicas Carnaby. Heresia! Uma corajosa heresia, achava Julie Hackett, vendo em Frances uma alma gémea.

Frances foi conduzida a um escritório onde uma secretária seleccionava cartas dirigidas à Tia Vera e as arrumava em montinhos, visto que até as mais desagradáveis atribulações humanas devem ser divididas em categorias facilmente identificáveis. O meu marido é infiel, um alcoólico, bate-me, não me dá dinheiro suficiente, vai trocar-me pela secretária, prefere os seus parceiros do bar a mim. O meu filho é alcoólico, drogado, engravidou uma rapariga, não sai de casa, vive desregrada-mente em Londres, ganha dinheiro mas não contribui para as despesas domésticas. A minha filha... Pensões, ajudas, o comportamento de funcionários, problemas de saúde... mas a estes últimos era um médico que respondia. As cartas sobre assuntos mais comuns eram tratadas por uma secretária que assinava Tia Vera e representava uma nova e próspera secção do The Defender. O trabalho de Frances consistiria em consultar essas cartas, encontrar um tema ou uma preocupação predominante e depois usá-lo para escrever um artigo sério e extenso, que ocuparia um lugar proeminente no jornal. Frances poderia escrever os seus artigos e fazer a pesquisa necessária em casa. Pertenceria ao The Defender, mas não estaria nele, e por isso se sentia grata.

Quando saiu do metro, vinda do jornal para casa, comprou comida e desceu a calçada a pé, carregada.

Julia estava parada junto da sua janela alta, a olhar para baixo, quando viu Frances aproximar-se. Pelo menos aquele casaco elegante era uma melhoria, em vez da habitual canadiana: talvez fosse possível esperar que ela ainda usasse alguma coisa em vez dos eternos jeans e camisolas... Caminhava pesadamente, o que lembrou a Julia um burro com cangalhas. Parou perto de casa e Julia pôde observar que tinha arranjado o cabelo, que lhe caía, alourado e liso como palha de ambos os lados de um risco, como era moda.

De algumas das casas por onde passara saía música martelada e ruidosa, tão alta como um coração furioso, mas Julia dissera que não toleraria música alta, que não podia suportar tal coisa, e por isso, embora se tocasse música em casa, era com o som baixo. Do quarto de Andrew saíam geralmente os tons em surdina de Palestrina ou Vivaldi; do de Colin, jazz tradicional; da sala onde estava o televisor, música sincopada e vozes, e da cave, a vibração latejante de que «os miúdos» precisavam.

Toda a enorme casa estava iluminada, não havia uma janela escura, e parecia emitir luz das paredes, assim como das janelas: ressumava luz e música.

Frances viu a sombra de Johnny nas cortinas da cozinha e tanto bastou para a sua boa disposição esmorecer. Ele estava no meio de uma arenga, percebeu-o pelos braços gesticulantes, e quando ela chegou à cozinha, estava lançado a todo o vapor. Cuba, de novo. A volta da mesa encontrava-se um grupo de jovens, mas ela não teve tempo para ver quem eram. Andrew, sim, Rose, sim... o telefone tocava. Frances largou os sacos pesados, levantou o auscultador e ouviu Colin, a falar da escola.

— Mãe, ouviste a notícia?

— Não, que notícia? Estás bem, Colin, esta manhã saíste e...

— Sim, sim. Escuta, acabamos de ouvir no noticiário. O Kennedy morreu.

— Quem?

— O Presidente Kennedy.

— Tens a certeza?

— Dispararam contra ele. Liga a televisão. Ela disse por cima do ombro:

— O Presidente Kennedy morreu. Dispararam contra ele.

Fez-se silêncio, enquanto ela estendia a mão para o rádio e o ligava. Não estavam a dar nada na rádio. Voltou-se e viu todos os rostos atordoados pelo choque, incluindo o de Johnny. Silenciara-o a necessidade de encontrar uma formulação correcta, e logo a seguir declarou:

— Temos de avaliar a situação... — mas não pôde continuar.

— A televisão — disse Geoffrey Boné, e, como se fossem apenas um, «os miúdos» levantaram-se da mesa, saíram da cozinha e subiram a escada para a sala.

Andrew avisou, atrás deles:

— Cuidado, a Tilly está a ver. — Depois seguiu-os a correr. Frances e Johnny ficaram sozinhos, virados um para o outro.

— Suponho que vieste saber da tua enteada? — perguntou ela. Johnny mexeu-se, nervoso: queria muito subir e ver o Noticiário

das 18 Horas, mas planeara dizer qualquer coisa e ela ficou parada, encostada às prateleiras junto do fogão, a pensar. Bem, deixa-me adivinhar... E, como esperara ele acabou por dizer:

— Infelizmente, é a Phyllida.

— Sim?

— Ela não está bem.

— Andrew já me tinha dito.

— Vou para Cuba daqui a dois dias.

— Nesse caso, o melhor é levá-la contigo.

— Creio que os fundos não dão para tanto e...

— Quem paga?

Nesta altura surgiu a expressão irritada que significava o-que-se-pode-esperar-de... que sempre a levara a avaliar o seu próprio grau de estupidez.

— Já tinhas obrigação de saber que certas coisas não se perguntam, camarada.

Noutro tempo, teria mergulhado num pântano de incompetência e culpa — com que facilidade, então, ele conseguia fazê-la sentir-se idiota!

— Mas estou a perguntar. Pareces esquecer que tenho motivos para me interessar pelas tuas finanças.

— E quanto te vão pagar nesse teu novo emprego? Ela sorriu-lhe.

— Não o suficiente para manter os teus filhos e agora também a tua enteada.

— E encher a barriga a qualquer um que apareça à procura de uma refeição à borla.

— O quê? Não me digas que querias que fechasse a porta a potencial material para a Revolução?

— São calaceiros e drogados — respondeu ele. — Escumalha. — Mas resolveu não continuar e mudou o tom para um apelo de camarada aos melhores sentimentos de Frances. — A Phyllida não está realmente bem.

— E que queres que eu faça a esse respeito?

— Que olhes por ela.

— Não, Johnny.

— Então o Andrew. Ele não tem nada melhor para fazer.

— Está ocupado a olhar pela Tilly. Ela está realmente doente.

— Isso é em grande parte para chamar a atenção e para que tenham pena dela.

— Nesse caso, por que a largaste em cima de nós?

— Oh... porra. Os problemas psicológicos não são a minha especialidade... são a tua.

— Ela está doente. Está realmente doente. E por quanto tempo vais.

Ele baixou a cabeça, de testa franzida.

— Disse que iria por seis semanas. Mas com esta nova crise... —-Lembrado da crise, acrescentou: — Vou ver as notícias. — E saiu a correr da cozinha.

Frances aqueceu uma sopa, um guisado de frango, pão de alho, fez uma salada, empilhou fruta num prato e dispôs queijos. Estava a pensar na pobre pequena, Tilly. No dia seguinte à chegada da rapariga, Andrew fora ter com ela ao escritório, onde estava a trabalhar e perguntara:

— Mãe, posso pôr a Tilly no quarto de hóspedes? Ela não pode realmente dormir no meu quarto, apesar de me parecer que era disso que ela gostaria.

Frances já o esperara: o seu andar tinha na realidade quatro divisões, o seu quarto, o seu escritório, uma sala de estar e um pequeno quarto que, quando Julia dirigia a casa, fora de hóspedes. Ela achava que aquele andar era seu, um lugar seguro onde estava livre de todas as pressões, de todas as pessoas. Agora Tilly e a sua doença estariam do outro lado de um pequeno patamar. E a casa de banho...

— Está bem, Andrew. Mas eu não posso olhar por ela. Não da maneira que ela precisa.

— Eu trato disso. Vou arranjar o quarto para ela. — Depois, quando se voltava para subir a escada, acrescentou em voz baixa e muito séria: — Ela está realmente mal.

—> Eu sei que está.

— Tem medo de que a metamos num manicómio.

— Mas é claro que não faremos isso, ela não está doida.

— Pois não — concordou o rapaz com um sorriso estranho, em que havia mais súplica do que imaginava. — Mas talvez eu esteja?

— Não me parece.

Ouviu Andrew trazer a rapariga para baixo, do seu quarto, e irem os dois para o quarto de hóspedes. Silêncio. Ela sabia o que estava a acontecer. A rapariga estava deitada na cama, encolhida, ou no chão, e Andrew abraçava-a a tranquilizá-la, ou talvez lhe estivesse até a cantar, já o ouvira fazer isso.

E nessa manhã observara a seguinte cena: ela preparava a comida para a noite, enquanto Andrew estava sentado à mesa com Tilly, que se embrulhara num xaile de bebé que encontrara numa arca e achara apropriado. Tinha à frente uma taça de leite e cereais e havia outra à frente de Andrew. Ele dava-lhe de comer como no jogo infantil: «Uma para o Andrew... agora uma para a Tilly... uma para o Andrew...»

Na altura de «uma para a Tilly», ela abria a boca e fitava Andrew com os grandes e angustiados olhos azuis. Dir-se-ia que não sabia pestanejar. Andrew inclinava a colher e metia-lha na boca e ela ficava com os lábios fechados, mas sem engolir. Andrew forçava-se a engolir a sua colherada e recomeçava. «Uma para a Tilly... uma para o Andrew...» As quantidades de comida que entravam na boca da rapariga eram minúsculas, mas pelo menos ele estava a comer alguma coisa.

— A Tilly não come — disse ele à mãe. — Não, não, é muito pior do que eu. Ela não come nada.

Isto passava-se antes de a anorexia ser uma palavra de uso corrente, como sexo e sida.

— Mas não come porquê? Sabes? — perguntou Frances, mas a intenção era dizer-lhe: por favor, diz-me porque achas tão difícil comer.

— No caso dela, diria que é por causa da mãe.

— Então no teu caso não é?

— Não, eu diria que no meu caso é o meu pai. — A irrisão humorística, as atitudes cativantes daquela personalidade que Eton criara nele, pareciam ter-se desencontrado do seu eu genuíno e tornado uma série de caricaturas grotescas, como máscaras deslocadas. Os seus olhos estavam fixos, melancólicos, ansiosos, todos suplicantes.

— O que vamos fazer? — perguntou Frances, tão desesperada como ele.

— Esperar, esperar um bocado, mais nada, correrá tudo bem. Quando «os miúdos» — tinha, na verdade, de deixar de usar esta

frase — vieram para baixo para se sentarem à mesa, à espera de comerem, Johnny não estava com eles. Ficaram todos a ouvir a discussão que decorria no cimo da casa. Gritos, imprecações, palavras que não era possível distinguir.

— Ele quer que a Julia vá para a sua casa e cuide da Phyllida, enquanto está em Cuba — disse Andrew.

Olharam para ela, para verem a sua reacção. Ela ria-se.

— Oh, meu Deus — acabou por dizer —, ele é realmente impossível.

Os outros entreolharam-se, desaprovadores. Todos menos Andrew. Admiravam-no e achavam Frances amarga. Andrew disse-lhes, muito sério:

— Está simplesmente fora de questão. Não é justo pedir a Julia. O cimo da casa, onde Julia tinha o seu ser, era com frequência

motivo de troça e costumavam referir a ela como «a velha». Mas desde que Andrew viera para casa, e se tornara amigo dela, tinham de proceder como ele.

— Por que haveria ela de cuidar da Phyllida? — perguntou ele. — Já lhe chegamos nós.

Esta nova maneira de ver a situação deu origem a um silêncio pensativo.

— Ela não gosta da Phyllida — disse Frances, apoiando o filho, e coibiu-se de acrescentar: nem de mim. Ela nunca gostara das mulheres de Johnny.

— Quem gostaria? — comentou Geoffrey, e Frances olhou-o interrogadoramente: havia ali algo de novo.

— A Phyllida esteve aqui esta tarde — explicou Geoffrey.

— Veio à tua procura — disse Andrew.

— Esteve aqui? A Phyllida?

— É chalada — declarou Rose. — Eu estava cá. É pirada da mona. Não regula bem — e soltou uma pequena gargalhada.

— O que queria ela? — perguntou Frances.

— Mandei-a embora — respondeu Andrew. — Disse-lhe que não devia vir aqui.

Lá em cima, batiam portas. Johnny gritava e veio furioso pela escada abaixo, seguido por uma única palavra de Julia:

— Imbecil!

Ele chegou, a faiscar cólera.

— Cabra velha. Cabra fascista.

«Os miúdos» olharam para Andrew, para saberem como reagir. Estava tão pálido que parecia doente. Gritaria, discussões, isso era demais para ele.

— É demais — disse Rose, admirada com o mau ambiente geral.

— A Tilly vai ficar de novo transtornada — disse Andrew. Soergueu-se e Frances, receosa de que ele aproveitasse o pretexto para não comer, pediu-lhe: — Por favor, Andrew, senta-te. — Ele sentou-se e a sua obediência surpreendeu-a.

— Sabia que a sua... que a Phyllida esteve aqui? — perguntou Rose a Johnny, às gargalhadinhas. O seu rosto estava corado e os seus pequenos olhos pretos cintilavam.

— O que? — perguntou Johnny, cortante, lançando um olhar rápido a Frances. — Ela esteve aqui?

Ninguém disse nada.

— Falarei com ela — disse Johnny.

— Ela tem pais? — perguntou Frances. — Pode ir para casa deles, enquanto estiveres em Cuba.

— Detesta-os. E com razão. São escumalha lúmpen.

Rose comprimia a boca com as costas da mão, para conter a hilaridade.

Entretanto, Frances olhava em redor, para ver quem estava presente nessa noite. Além de Geoffrey... e evidentemente de Andrew e Rose, estavam Jill e Sophie, esta a chorar. Estava também um rapaz que não conhecia.

Nesse momento o telefone tocou e era de novo Colin.

— Tenho estado a pensar... A Sophie está aí? Deve sentir-se terrivelmente transtornada. Deixa-me falar com ela.

Isto lembrou a todos que, naturalmente, Sophie devia estar transtornada, pois o seu pai morrera de cancro o ano passado e ela ia para ali a maior parte das noites porque em sua casa a mãe chorava e contagiava-a com o seu desgosto. E claro que a morte de Kennedy devia...

Ouviram-na soluçar ao telefone e dizer:

— Oh, Colin, obrigada, oh, obrigada, tu compreendes, Colin, oh, eu sabia que ligarias... oh, vens, oh, obrigada, obrigada.

Voltou para a mesa e anunciou:

— Colin vem no último comboio desta noite.

Ocultou o rosto nas mãos, que eram compridas e elegantes, com unhas pintadas no tom rosa recomendado naquela semana pelas juízas da moda da St. Joseph's, a que pertencia. O cabelo comprido, preto e lustroso caiu-lhe para a mesa, como se fosse o pensamento, tornado visível, de que não teria nunca de sofrer sozinha durante muito tempo.

— Todos nós lamentamos o que aconteceu ao Kennedy, não lamentamos? — disse Rose, com azedume.

Jill não deveria estar na escola? Mas os alunos da St. Joseph's entravam e saíam conforme lhes apetecia, pouco se importando com horários ou exames. Quando os professores sugeriam uma abordagem mais disciplinada, por certo lhes recordavam os princípios em que a escola assentava, o principal dos quais era o desenvolvimento pessoal. Colin saíra para a escola de manhã e vinha a caminho de casa. Geoffrey dissera que talvez fosse amanhã: sim, lembrara-se de que era chefe de turma. Teria Sophie «abandonado» por completo? Na realidade, parecia estar mais tempo ali em casa do que lá. Jill tinha estado na cave com o seu saco-cama e subia para as refeições. Tinha dito a Colin, que dissera a Frances, que precisava de uma folga. Daniel voltara para a escola, mas era de esperar que regressasse, se Colin ia regressar: qualquer desculpa servia. Ela sabia que eles estavam convencidos de que, no momento em que viravam as costas, acontecia toda a espécie de coisas dramáticas e deliciosas.

Havia uma cara nova, ao fundo da mesa, a sorrir-lhe apaziguadoramente e à espera de que ela perguntasse: «Quem és tu? Que estás aqui a fazer?» Mas ela limitou-se a pôr-lhe um prato de sopa à frente e a sorrir.

— Chamo-me James — disse ele, corando.

— Bem, olá, James. Serve-te de pão... ou qualquer outra coisa. Ele estendeu a mão grande e embaraçada para uma grossa fatia de

(saudável) pão integral. Ficou com ela na mão, a olhar em redor com evidente satisfação.

— O James é meu amigo, bem, na verdade é meu primo — explicou Rose, conseguindo mostrar-se ao mesmo tempo nervosa e agressiva. — Eu disse-lhe que não haveria problema se viesse... quero dizer, para jantar, quero dizer... — Frances viu que havia mais um refugiado de uma família problemática e começou a fazer uma lista mental da comida que precisaria de comprar no dia seguinte.

Esta noite eram apenas sete à mesa, contando com ela. Johnny estava parado junto da janela, hirto como um soldado. Queria ser convidado para se sentar. Havia um lugar vago. Mas diabos a levassem se ia convidá-lo; se a sua reputação junto «dos miúdos» sofresse com isso, estava-se nas tintas.

— Antes de te ires embora, diz-nos quem matou o Kennedy — pediu.

Sem resposta, para variar, Johnny encolheu os ombros.

— Talvez tenham sido os soviéticos — sugeriu o novato, ousando reivindicar o seu lugar junto deles.

— Isso é um disparate — replicou Johnny. — Os camaradas soviéticos não são a favor do terrorismo.

O pobre do James ficou envergonhado.

— Talvez fosse o Castro — disse Jill, a quem Johnny já estava a fitar friamente. — Quero dizer, a Baía dos Porcos, quero dizer...

— Eles também não são a favor do terrorismo — respondeu ele.

— Telefona-me, antes de partires — pediu Frances. — Disseste que era daqui a dois dias, não disseste?

Mas ele não se foi embora.

— Foi um tarado — disse Rose. — Foi algum tarado que disparou contra ele.

— Quem pagou ao tarado? — perguntou James, de novo refeito, embora corado do esforço para se afirmar.

— Não devemos excluir a CIA — declarou Johnny.

— Nunca devemos excluí-la — disse James, ganhando assim a aprovação de Johnny com um sorriso e um aceno de cabeça.

James era um jovem forte, corpulento, e sem dúvida mais velho do que Rose, mais velho, mesmo, do que qualquer deles, talvez com excepção de Andrew. Rose viu Frances observar James e reagiu de imediato: estava sempre atenta a críticas:

— James está metido na política. É amigo do meu irmão mais velho e abandonou os estudos.

— Por essa é que eu não esperava — disse Frances. — Que surpresa.

— O que quer dizer com isso? — Rose estava uma pilha, furiosa. — Por que disse isso?

— Oh, Rose, foi apenas uma brincadeira.

— Ela gosta de brincar — explicou Andrew, interpretando a mãe, como se tivesse de justificá-la.

— E por falar em brincadeiras... — Quando tinham todos corrido para cima para verem o noticiário da televisão, ela vira no chão dois sacos grandes cheios de livros. Apontou-os a Geoffrey, que não conteve um sorriso orgulhoso. — Pelo que vejo, a colheita hoje foi grande.

Riram-se todos. A maior parte deles roubava em lojas de modo impulsivo, mas Geoffrey fazia disso um negócio. Visitava livrarias com regularidade, para surripiar livros escolares, sempre que podia, mas, além desses, tudo quanto vinha à rede era peixe. Chamava a isso «libertá-los». Era um gracejo da Segunda Guerra Mundial e um vínculo saudoso com o seu pai, que fora piloto de bombardeiros. Dissera a Colin que tinha a impressão de que o pai deixara de reparar fosse no que fosse desde o fim da guerra. «Na minha mãe e em mim não repara com certeza.» Pela utilidade que tinha para a família, era como se tivesse morrido nessa guerra. «Junta-te ao clube», respondera Colin. «A Guerra, a Revolução, onde está a diferença?»

— Deus abençoe a Foyles — respondeu o rapaz. — Já libertei mais lá do que em qualquer outro lugar de Londres. A Foyles é uma benfeitora da humanidade. — Mas olhava nervosamente para Frances, e acrescentou: — A Frances não aprova.

Eles sabiam que Frances não aprovava e costumava dizer, com frequência: «Foi a minha malfadada educação. Ensinaram-me a pensar que era errado roubar.» Agora, sempre que ela ou qualquer outra pessoa criticava ou não alinhava com os outros, diziam em coro: «Foi a tua malfadada educação.» Até que Andrew dissera: «Essa piada está a ficar um bocado gasta.»

Seguira-se uma meia hora desenfreada de variações sobre gracejos em que entravam as palavras malfadada educação.

Johnny aproveitou a deixa para se lançar no seu sermão habitual:

— Assim é que é, tirem tudo o que puderem aos capitalistas. Foram eles que começaram por nos roubar.

— A nós não, com certeza? — perguntou Andrew, desafiando o pai.

— Roubaram ao povo trabalhador. Ao povo comum. Tirem tudo o que puderem a esses sacanas.

Andrew nunca roubara em lojas, considerava isso um comportamento inferior, próprio apenas de labregos, e perguntou, num desafio directo ao pai:

— Não devias voltar para junto da Phyllida?

Frances podia ser ignorada, mas o remoque do filho levou Johnny para a porta.

— Nunca se esqueçam — recomendou, dirigindo-se a todos em geral —, devem guiar tudo quanto fazem, cada palavra, cada pensamento, em conformidade com os interesses da Revolução.

— Então, o que arranjaste hoje? — perguntou Rose a Geoffrey, a quem admirava quase tanto como a Johnny.

Geoffrey foi tirando livros dos sacos e empilhando-os numa torre em cima da mesa.

Bateram palmas. Menos Frances e Andrew.

Frances tirou da pasta uma das cartas para o jornal que trouxera para casa:

 

— «Querida Tia Vera...» esta sou eu... «Querida Tia Vera, tenho três filhos, todos na escola. Todas as noites chegam a casa com coisas roubadas, principalmente guloseimas e bolachas...» O grupo de ouvintes gemeu, desconsolado. «Mas pode ser tudo, incluindo também livros escolares...» Bateram palmas. «Mas hoje o meu mais velho, o rapaz, chegou com um par de jeans muito caros.» Voltaram a bater palmas. «Não sei o que fazer. Quando a campainha da porta toca, penso: É a polícia.» Frances deu-lhes tempo para um gemido. «E tenho medo por eles. Apreciaria muito o seu conselho, Tia Vera. Já não sei o que fazer.»

 

Voltou a meter a carta na pasta.

— O que vais aconselhar? — perguntou Andrew.

— Talvez devesses aconselhar-me o que devo dizer, Geoffrey. No fim de contas, um chefe de turma deve estar familiarizado com estes assuntos.

— Não seja assim, Frances — protestou Rose.

— Oh — gemeu Geoffrey, com a cabeça nas mãos e sacudindo os ombros como se soluçasse —, ela leva tudo a sério!

— Pois levo — confirmou Frances. — É roubo. Vocês são ladrões — disse a Geoffrey, com a liberdade outorgada pelo facto de ele viver praticamente com eles há anos. — Tu és um ladrão, mais nada. Eu não sou o Johnny.

Fez-se um silêncio consternado. Rose deu uma gargalhadinha. O rosto escarlate do recém-chegado, James, equivaleu a uma confissão. , Sophie exclamou:

— Mas, Frances, eu não sabia que nos desaprovava tanto!

; — Bem, desaprovo — respondeu Frances, com a voz a tornar-se mais branda, por se tratar de Sophie. — Agora já sabes.

— É a sua malfadada educação — começou Rose, mas um olhar de Andrew fê-la desistir.

— E agora vou ver o noticiário e tenho de trabalhar. — Saiu, mas acrescentou: — Durmam bem, todos —, dando assim permissão a toda a gente, incluindo James, que talvez estivesse à espera de passar lá a noite.

Apanhou, brevemente, o noticiário. Parecia que um louco qualquer alvejara Kennedy. Pela parte que lhe tocava, morrera outro homem público. Provavelmente merecera-o. Jamais se teria permitido dar voz a este pensamento, tão distante do espírito dos tempos. As vezes parecia-lhe que a única coisa útil que aprendera na sua longa convivência com Johnny fora a manter-se calada a respeito do que pensava.

Antes de se instalar para trabalhar, o que esta noite consistia em cerca da centena de cartas que trouxera para casa, abriu a porta para o quarto de hóspedes. Silêncio e escuridão. Foi em bicos de pés até à cama e inclinou-se para a forma sob os cobertores, que podia ser a de uma criança. E, a confirmá-lo, Tilly tinha o polegar na boca.

— Não estou a dormir — disse uma vozinha.

— Estou preocupada contigo — respondeu Frances, e ouviu a sua voz tremer: prometera a si mesma não se envolver emocionalmente, pois que vantagem poderia isso ter? — Gostarias que te fizesse uma chávena de chocolate quente?

— Tentarei.

Frances preparou o chocolate no seu escritório, onde tinha uma cafeteira e alguns produtos essenciais, e levou-o à rapariga, que lhe disse:

— Não quero que pense que não me sinto grata.

— Posso acender a luz? Queres tentar beber agora?

— Ponha-a no chão.

Frances obedeceu, consciente de que o mais provável era a chávena continuar lá, intacta, de manhã.

Trabalhou até tarde. Ouviu Colin chegar e depois ir com Sophie para o grande sofá, onde se sentaram a conversar — ela ouvia-os, ou pelo menos ouvia as suas vozes, mesmo por baixo de si: o velho sofá vermelho ficava logo por baixo da sua secretária. Ouviu-lhes as vozes baixas e depois passos cuidadosos, por cima de si. Bem, tinha a certeza de que Colin sabia tomar precauções: dissera-o em voz bem alta ao irmão, que lhe pregara um sermão a respeito de tais assuntos.

Sophie tinha dezasseis anos. Frances desejava envolver a rapariga nos braços e protegê-la. Nunca sentira nada semelhante por Rose, Jill, Lucy ou qualquer das outras jovens que entravam e saíam daquela casa. Porquê Sophie, então? Por ela ser tão bonita, era por isso: era isso que ela queria proteger e preservar. E que disparate isso era — ela, Frances, devia sentir-se envergonhada. Esta noite sentia-se envergonhada de muitas coisas. Abriu a porta e escutou. Em baixo, na cozinha, parecia estarem mais do que Andrew, Rose, James... amanhã descobriria.

Dormiu agitadamente, atravessou duas vezes o patamar para ver como Tilly estava; numa delas, encontrou um quarto muito escuro, silêncio e o odor leve e sufocante a chocolate. Noutra, viu Andrew a subir a escada, depois de uma missão semelhante, e voltou para a cama. Ficou acordada. O problema era o roubo nas lojas. Quando Colin entrara na St. Joseph's, depois de não se ter saído muito bem na secundária, tinham começado a aparecer coisas que ela sabia não serem dele, nada de muito importante: uma T-shirt, embalagens de esferográficas, um disco. Lembrava-se de ter ficado impressionada por ele ter roubado uma antologia poética. Protestou. Ele queixou-se de que todos faziam aquilo e ela era uma bota-de-elástico. Mas não se imagine que as coisas ficaram por aí. Ele andava numa escola progressista! Uma jovem da primeira vaga de amigos de escola, que iam e vinham mas muito menos livremente, pois no fim de contas eram todos mais novos, uma rapariga chamada Petula, informou Frances de que Colin roubava amor: fora o director quem o dissera. O caso foi ruidosamente discutido à mesa do jantar. Não, não se tratava do amor dos pais, mas do amor do director, que repreendera Colin por qualquer motivo. Geoffrey, que já nesse tempo fazia mais ou menos parte da mobília — há cinco anos, ou mais —, orgulhava-se do que ele gamava nas lojas. Frances ficara chocada, mas limitara-se a dizer: «Bem, não te deixes apanhar.» Não dissera «Não faças isso» porque não teria sido obedecida, mas também porque não fazia ideia, então, de como o roubo em lojas se tornaria predominante. E também, e era isso que lhe tirava agora o sono, porque gostara de ser uma deles, uma daquele grupo de jovens modernos que eram os novos árbitros das modas e da moral. Havia — houvera — indubitavelmente um sentimento de nós contra eles. Petula, aquela rapariga cheia de vivacidade (agora a frequentar uma escola para filhos de diplomatas em Hong Kong) dissera que roubar sem ser apanhado era um rito de iniciação e que os adultos deviam compreender isso.

Hoje Frances ia ter de escrever um artigo sério, longo e equilibrado a respeito desse mesmo assunto. Já lamentava, deveras, ter aceite o novo emprego. Ia ter de tomar uma posição acerca de numerosas questões, quando fazia parte da sua natureza ver os pontos de vista contrários e recusar-se a dizer mais do que «Sim, é tudo muito difícil».

Há pouco tempo, passara a ver o roubo como uma coisa definitivamente errada, e isso não se devia à sua malfadada educação e sim ao facto de ouvir, havia anos, Johnny instigar toda a espécie de comportamentos anti-sociais, muito no género de comandante de guerrilha: ataca e foge. Um dia, viera-lhe ao pensamento uma verdade simples. Ele queria derrubar tudo quanto o rodeava, como Sansão. Resumia-se tudo a isso. «A Revolução» de que ele e os seus amigos nunca paravam de falar seria como apontar um lança-chamas a tudo, até restar apenas terra queimada, e depois — bem, era simples — ele e os seus amigos reconstruiriam o mundo à imagem deles. Uma vez vista, esta realidade tornava-se óbvia, mas depois havia que enfrentar um pensamento: como podiam pessoas incapazes de organizar as suas próprias vidas, que viviam em permanente desordem, construir alguma coisa que valesse a pena? Este pensamento sedicioso — e que estava anos à frente do seu tempo, pelo menos em qualquer dos círculos a que tivera acesso — vivia lado a lado com uma emoção que ela mal sabia existir. Pensou que Johnny era... não precisava de escrever isso. O que pensava tornara-se muito claro, mas ao mesmo tempo confiava numa aura de optimismo esperançoso que o rodeava, aos camaradas e a tudo o que eles faziam. Acreditava — mas quase nem se dava conta disso — que o mundo se tornaria cada vez melhor, que subiam todos numa escada rolante de Progresso e que os males presentes se dissipariam pouco a pouco e toda a humanidade viveria numa época mais feliz e salutar. E quando estava na cozinha, a preparar pratos de comida para «os miúdos», vendo todos aqueles rostos jovens e ouvindo as suas irreverentes vozes confiantes, sentia que estava a assegurar esse futuro para eles, numa promessa silenciosa.

Qual fora a origem dessa promessa? Johnny, ela absorvera-a do camarada Johnny, e enquanto a sua mente estava ocupada a criticá-lo mais dependia emocionalmente, a cada dia e sem o saber, de Johnny e dos seus doces bravos mundos novos.

Dentro de poucas horas sentar-se-ia e escreveria o seu artigo — e diria o quê?

Se não tomara uma posição contra o roubo na sua própria casa, nem mesmo quando passara a desaprová-lo muito fortemente, que direito tinha, então, de dizer aos outros o que deviam fazer?

E como aquelas pobres crianças estavam confusas. Quando saíra da cozinha, a noite passada, ouvira-as rir, mas pouco à vontade; ouvira a voz de James mais alta do que a dos outros, por querer tanto ser aceite por todos aqueles espíritos livres. Pobre rapaz, fugira de pais maçadoramente provincianos (como ela própria tinha fugido) para as delícias da rítmica Londres e uma casa descrita por Rose como Mansão da Liberdade — adorava a frase — onde ouvira exactamente a mesma condenação: estava destinado a roubar, estavam todos, como roubara aos seus pais.

Já eram nove horas, tarde para ela. Tinha de se levantar. Abriu a porta para o patamar e viu Andrew sentado no chão, num ponto de onde podia ver a porta do quarto da rapariga, que estava aberta. Ele murmurou: Olha, olha só.

O pálido sol de Novembro entrava no quarto em frente, onde uma figura franzina e erecta, com uma auréola de cabelo louro e vestindo qualquer coisa antiquada, cor-de-rosa — um robe? — estava empoleirada num tamborete alto. Se Philip observasse agora esta visão, como seria fácil persuadir-se de que se tratava da rapariga, Julia, o seu amor de há muito tempo. Na cama, toda enrolada no seu xaile de bebé, encontrava-se Tilly, amparada por almofadas e a fitar, sem pestanejar, a mulher idosa.

— Não — disse a voz fria e clara de Julia —, não, tu não te chamas Tilly. Esse é um nome muito pateta. Qual é o teu verdadeiro nome?

— Sylvia — sussurrou a rapariga.

— Então por que dizes que te chamas Tilly?

— Quando era pequena, não sabia dizer Sylvia e por isso dizia Tilly. — Ali estava a maior quantidade de palavras que algum deles já lhe ouvira, de uma vez.

— Muito bem. Tratar-te-ei por Sylvia.

Julia tinha na mão uma caneca de qualquer coisa, com uma colher dentro. Cuidadosamente, delicadamente, recolheu na colher uma quantidade apropriada do conteúdo da caneca — que cheirava a sopa — e aproximou-a dos lábios de Tilly, ou Sylvia. Que estavam cerrados com força.

— Ouve-me com atenção. Não vou permitir que te mates por seres pateta. Não o permitirei. E agora tens de abrir a boca e começar a comer.

Os pálidos lábios tremeram um pouco, mas abriram-se, enquanto a rapariga fitava Julia, aparentemente hipnotizada. A colher introduziu-se na boca e o seu conteúdo desapareceu. Os observadores esperaram, sem fôlego, para verem se havia um movimento de deglutição. Houve.

Frances olhou para o filho e viu que ele também estava a engolir, por mimetismo.

— Compreendes — dizia Julia, enquanto enchia de novo a colher —, sou a tua avó torta. Não permito que os meus filhos e netos se portem tão tolamente. Precisas de me compreender, Sylvia... — e a colher voltou a entrar na boca e o seu conteúdo a ser engolido. E mais uma vez Andrew fez um movimento de deglutição. — És uma rapariga muito bonita e inteligente...

— Sou horrível — veio a resposta das almofadas.

— Não acho. Mas se decidiste ser horrível, então serás e eu não o permitirei.

A colher voltou a entrar na boca e o seu conteúdo a ser engolido.

— Primeiro, vou pôr-te de novo boa e, depois, tu voltas para a escola e fazes os teus exames. A seguir, irás para a universidade e serás médica. Sabes, eu tenho pena de não ser médica, mas tu podes sê-lo em meu lugar.

— Não posso. Não posso. Não posso voltar para a escola.

— Porquê? O Andrew disse-me que eras boa aluna, antes de te tornares pateta. E agora pega nesta caneca e bebe o resto sozinha.

Os observadores mal respiravam, neste momento crítico — sim, porque só podia ser crítico, não é verdade? E se Tilly-Sylvia recusava a caneca de vivificante sopa e voltava a meter o polegar na boca? E se cerrava os lábios com força? Julia encostava-lhe a caneca à mão que não estava ocupada a apertar o xaile à sua volta.

— Pega. — A mão tremeu, mas abriu-se. Julia entregou-lha, cuidadosamente, e fechou-lhe a mão à volta da caneca. A mão levantou-se, a caneca chegou aos lábios e por cima dela soou o murmúrio:

— Mas é tão difícil.

— Eu sei que é difícil.

A mão trémula chegava a caneca aos lábios, enquanto Julia a amparava. A rapariga sorveu um golinho, engoliu.

— Vou vomitar — sussurrou.

— Não, não vais. Pára com isso, Sylvia.

Frances e o filho esperaram mais uma vez, contendo a respiração. Sylvia não vomitou, embora tivesse de conter os vómitos quando Julia lhe disse: «Pára com isso.»

Entretanto, de baixo, do andar dos «rapazes» chegou Colin e, atrás dele, Sophie. Pararam ambos. Colin corou muito e Sophie pareceu meio a rir, meio a chorar e prestes a correr de novo para o andar de cima, mas em vez disso aproximou-se de Frances e abraçou-a.

— Querida, muito querida Frances — disse, e correu pela escada abaixo a rir.

— Não é o que estás a pensar — disse Colin.

— Eu não estou a pensar nada — respondeu Frances. Andrew limitou-se a sorrir e a não se pronunciar.

Colin viu a pequena cena, através da porta, observou-a e depois comentou:

— Óptimo para a avó —, e desceu a escada em grandes passadas. Julia, que não se dera conta do seu público, desceu do banco e endireitou a roupa. Tirou a caneca das mãos da rapariga.

— Volto daqui a uma hora, para ver como estás — disse-lhe. — E depois levo-te à minha casa de banho, onde poderás mudar de roupa. Vais melhorar num instante, verás.

Apanhou a chávena de chocolate frio deixada por Frances na noite anterior, saiu do quarto e estendeu-lha.

— Creio que isto é seu. — E depois disse a Andrew: — E tu também podes deixar de ser pateta.

Deixou a porta do quarto aberta e subiu a escada, segurando com uma das mãos a saia cor-de-rosa, que roçagava.

— Pronto, foi óptimo — disse Andrew à mãe. — Muito bem, Sylvia — gritou à rapariga, que sorriu, ainda que debilmente, e correu pela escada acima.

Frances ouviu uma porta fechar-se, a de Julia, e depois outra, a de Andrew. No quarto oposto, um charco de sol inundava uma almofada, e Sylvia, pois não havia qualquer dúvida de que era isso quem ela era agora, estendeu a mão para ele, virando-a de um lado para o outro e examinando-a.

Neste momento bateram com força à porta principal, a campainha tocou repetidamente e uma voz de mulher gritou. A rapariga sentada ao sol na sua cama soltou um grito e escondeu-se debaixo dos cobertores.

Quando a porta se abriu, o grito de «Deixem-me entrar» ouviu-se em toda a casa. «Deixem-me entrar, deixem-me entrar», repetia uma voz histérica e rouca.

A porta de Andrew abriu-se com estrondo e ele correu pela escada abaixo, a dizer:

— Deixa isto comigo. Oh, Jesus, fecha a porta do quarto da Tilly. Frances fechou a porta e Julia gritou, de cima:

— O que é? Quem é?

— A mãe dela, a mãe da Tilly — respondeu-lhe Andrew, mas baixinho.

— Nesse caso, lamento dizer que a Sylvia vai ter uma recaída

— disse Julia, e continuou parada lá em cima, de guarda. Frances, que ainda estava em camisa de dormir, entrou no seu

quarto, enfiou uns jeans e uma camisola e desceu depressa a escada, a caminho da altercação.

— Onde está ela? Quero falar com a Frances — gritou Phyllida, enquanto Andrew dizia, calmamente:

— Não grite. Eu vou buscá-la.

— Estou aqui — anunciou Frances.

Phyllida era uma mulher alta, magra como um osso esburgado, com uma grenha de cabelo avermelhado mal pintado e enormes unhas aguçadas, pintadas de violeta. Apontou uma grande mão irada a Frances e disse:

— Quero a minha filha. Você roubou a minha filha.

— Não seja idiota — respondeu Andrew, pairando à volta da histérica criatura como um insecto a tentar decidir onde devia picar. Pôs uma mão no ombro de Phyllida, a acalmá-la, mas ela sacudiu-a e Andrew gritou-lhe, subitamente descontrolado e surpreendido consigo próprio: — Pare com isso! — Encostou-se a uma parede, a recompor-se. Estava a tremer.

— E eu? — perguntou Phyllida. — Quem vai cuidar de mim?

Frances percebeu que também estava a tremer; o seu coração galopava, tinha dificuldade em respirar: ela e Andrew estavam a ser afectados por aquele dínamo de energia emocional. E, na verdade, Phyllida, cujos olhos fitavam sem ver como os de uma figura de proa, ali erecta e triunfante, parecia mais calma do que eles.

— Não é justo — declarou, apontando as garras violeta a Frances.

— Por que veio ela viver aqui e eu não? Andrew refizera-se.

— Então, Phyllida — disse, e o seu sorriso bem-humorado, que

o protegia, voltara-lhe aos lábios. - Sabe muito bem que não pode

fazer uma coisa destas.

— Por que não? — perguntou, desviando a atenção para ele. — Por que há-de ela ter uma casa e eu não?

— Mas você tem uma casa — respondeu Andrew. — Eu visitei-a lá, não se lembra?

— Mas ele vai partir e deixar-me. — E repetiu, guinchando: — Vai partir e deixar-me sozinha. — Acrescentou, mais calmamente, dirigindo-se a Frances: — Não sabia isso? Não sabia? Ele vai deixar-me da mesma maneira que a deixou.

Este comentário racional pareceu provar a Frances quão totalmente a histeria se transferira para ela, que estava a tremer e sentia os joelhos fracos.

— Então, por que não diz alguma coisa?

— Não sei o que dizer — conseguiu Frances murmurar. — Não sei por que está aqui.

— Porquê? Tem o descaramento de perguntar porquê? — E desatou a gritar: — Tilly, Tilly, onde estás?

— Deixe-a em paz — disse Andrew. — Está sempre a queixar-se de que não sabe lidar com ela, por isso deixe-nos tentar, a nós.

— Mas ela está aqui. Ela está aqui. E eu? Quem vai olhar por mim?

Tudo indicava que aquele ciclo ia continuar.

— Não pode querer que a Frances olhe por si — disse Andrew calmamente, mas com voz trémula. — Por que o faria ela?

— Mas e eu? E eu? — Agora era mais um lamento e, pela primeira vez, aqueles olhos irados pareciam ver, de facto, Frances. — Você não é exactamente uma Brigitte Bardot, pois não? Então por que vem ele aqui constantemente?

Esta pergunta lançou uma luz inesperada nas coisas e deixou Frances sem fala.

— Ele vem aqui porque nós estamos aqui, Phyllida — explicou Andrew. — Nós somos filhos dele, lembra-se? Colin e eu... esqueceu-se de nós?

Parecia que sim. E, de súbito, decorridos alguns momentos, baixou o acusador dedo espetado e ficou a pestanejar, como se estivesse a acordar. Depois virou-se, saiu e bateu com a porta.

Frances sentiu-se invadida por uma fraqueza geral. Tremia tanto que teve de se encostar à parede. Andrew estava parado, de braços caídos, com um sorriso lastimoso. «Mas ele é novo demais para ter de se haver com este tipo de coisas», pensou ela. Cambaleou para a porta da cozinha, agarrou-se a ela enquanto entrava, e viu Colin e Sophie à mesa, a comerem torradas.

Percebeu que Colin estava com disposição para a criticar. Sophie estivera outra vez a chorar.

— Bem — disse o filho, geladamente furioso —, o que esperavas?

— O que queres dizer com isso? — perguntou Frances, absurdamente, mas pretendia ganhar tempo. Deixou-se escorregar para a sua cadeira e sentou-se com a cabeça apoiada nos braços. Sabia o que ele queria dizer. Era uma acusação geral: que ela e o seu pai tinham lixado tudo, que ela não era uma cómoda mãe convencional, como outras mães, e ainda por cima havia aquela casa boémia, de que às vezes se ressentia violentamente, apesar de admitir que lhe agradava.

— Ela aparece aqui — continuou Colin —, aparece sem mais nem menos e faz uma cena, e agora temos de olhar pela Tilly.

— Ela quer ser tratada por Sylvia — informou Andrew, que entrara e se sentara à mesa.

— Não quero saber de como ela se chama — replicou o irmão. — Por que está aqui?

Agora estava lacrimoso e parecia um pequeno mocho eriçado, com os seus óculos de aros pretos. Se Andrew era alto e esguio, Colin era roliço, com um rosto franco e suave, neste momento opado de pranto. Frances compreendeu que aqueles dois tinham provavelmente passado a noite anterior a chorar nos braços um do outro, ela pelo falecido pai e ele pelo seu sofrimento por... bem, por tudo.

Andrew, que como Frances ainda estava gelado e trémulo, protestou:

— Mas por que acusas a mãe? Ela não tem culpa.

Se não fosse feita alguma coisa, os dois irmãos começariam a discutir, como acontecia com frequência e sempre porque Andrew tomava o partido de Frances, enquanto Colin a culpava.

— Sophie, fazes-me uma chávena de chá, por favor? — pediu Frances. — E estou certa de que o Andrew também agradecia uma.

— Meu Deus, se agradecia — respondeu o rapaz.

Sophie levantou-se logo, satisfeita pelo pedido. Colin, perdido o apoio da presença dela, mesmo ali à sua frente, ficou a pestanejar vagamente, tão infeliz que Frances desejou abraçá-lo... mas ele jamais o toleraria.

— Mais tarde, vou visitar a Phyllida — disse Andrew. — Entretanto já terá acalmado. Não é má pessoa, quando não está de cabeça perdida. — De repente, pôs-se de pé. —Jesus, esquecera-me da Tilly!

Quero dizer, da Sylvia. E ela deve ter ouvido. Fica destroçada, quando a mãe implica com ela.

— Eu estou com certeza destroçada — comentou Frances. —-Não consigo parar de tremer.

Andrew saiu da cozinha a correr, mas não voltou. Julia descera para ficar com Sylvia, que se escondera debaixo da roupa, a gemer: «Não a deixe aproximar-se, não a deixe aproximar-se», enquanto Julia repetia: «Pronto, pronto, acalma-te. Ela vai-se embora num instante.»

Frances bebeu o chá em silêncio, enquanto as tremuras se iam dissipando. Se tivesse lido num livro que a histeria era contagiosa, teria dito: «Bem, sim, isso faz sentido!» Mas não era histeria o que sentia. Estava a pensar. Se é com aquilo que Tilly tem estado a viver, não admira que esteja em frangalhos.

Sophie tinha-se sentado ao lado de Colin e cada um passara um braço pelos ombros do outro, como um par de órfãos. Pouco depois partiram para apanharem um comboio para a escola, e Colin lançou um sorriso de desculpa à mãe, antes de sair. Sophie abraçou-a. «Oh, Frances, não sei o que faria se não pudesse vir aqui!»

E agora Frances tinha de escrever o seu artigo.

Pôs de parte as cartas sobre roubo em lojas e escolheu outro tema. «Querida Tia Vera, estou tão preocupada que não sei o que fazer.» A filha da correspondente, com quinze anos, andava a fazer sexo com um rapaz de dezoito. «Estas jovens pensam que são a Virgem Maria e não'lhes pode acontecer a elas.» Aconselhou a ansiosa mãe a arranjar contraceptivos para a filha. «Vá ao médico de família», disse-lhe. «Os jovens estão a começar a ter relações sexuais muito mais cedo do que nós começámos. Pode informar-se a respeito da nova pílula anti-conceptiva. Haverá problemas. Nem todos os adolescentes são pessoas responsáveis, e esta nova pílula deve ser tomada regularmente, todos os dias.»

Foi deste modo que o primeiro artigo de Frances desencadeou tempestades de indignação moral. Choveram cartas de pais assustados e Frances receou ser despedida, mas Julie Hackett ficou satisfeita. Frances estava a fazer aquilo que fora contratada para fazer, o que seria de esperar de uma pessoa suficientemente corajosa para dizer que Carnaby Street era uma ilusão pindérica.

As vagas de refugiados que desaguavam em Londres, fugindo de Hitler e depois de Estaline, eram muito pobres, muitas vezes indigentes, e viviam como podiam, de uma tradução aqui, uma recensão de livro ali, lições de línguas. Trabalhavam como porteiros de hospitais, em obras de construção, faziam trabalhos domésticos. Havia alguns cafés e restaurantes tão pobres como eles, que satisfaziam a sua necessidade nostálgica de se sentarem a tomar um café e a conversar de política e literatura. Provinham de universidades de todos os cantos da Europa e eram intelectuais, uma palavra infalível para incitar ondas de desconfiança no seio dos xenófobos filisteus britânicos, que quando admitiam que esses recém-chegados eram muito mais instruídos do que eles, não o faziam necessariamente como um louvor. Um café, em especial, servia gulash, sonhos, sopas substanciais e outros pratos que «enchiam» a esses imigrantes fustigados pelas tempestades da vida que em breve estariam a acrescentar, de tantas e variadas maneiras, riqueza e renome à cultura nativa. Em fins dos anos 50, início dos 60, tinham-se tornado editores, escritores, jornalistas, artistas e um Prémio Nobel, e um estranho que entrasse no Cosmo julgaria encontrar-se no lugar mais em voga do Norte de Londres, pois toda a gente usava o uniforme corrente do não-conformismo: camisolas de gola alta e jeans caros, casacos à Mao e casacos de cabedal, cabelos compridos ou o sempre popular corte à imperador romano. Estavam algumas mulheres presentes, de minissaias, na sua maioria namoradas deles, que absorviam estranhos e atraentes costumes estrangeiros enquanto bebiam o melhor café de Londres e comiam bolos de creme de inspiração vienense.

Frances adquirira o hábito de passar pelo Cosmo, para trabalhar. Na parte da casa que considerara sua, a coberto de invasão, sentava-se agora a ouvir os passos de Julia ou os de Andrew, pois ambos visitavam Sylvia para lhe levarem chávenas disto ou daquilo, e insistiam que a sua porta se mantivesse aberta, pois a rapariga tinha medo de estar atrás de uma porta fechada. E Rose vagueava pela casa. Uma vez, Frances surpreendera-a a bisbilhotar os seus papéis, na sua secretária, e Rose soltara uma gargalhada alegre, dissera, «Oh, Frances!» e saíra a correr. Fora apanhada nos aposentos de Julia, pela própria Julia. Não roubava, ou não roubava muito, mas era uma espia por natureza. Julia disse a Andrew que Rose devia ser convidada a partir, e Andrew disse a Frances o que Julia lhe dissera. Aliviada, pois não gostava da rapariga, Frances disse a Rose que era tempo de regressar para junto da sua família. Colapso de Rose. Chegavam notícias da cave, onde ela se instalara («É o meu canto»), de que Rose estava na cama a chorar e parecia estar doente. Depois as coisas acalmaram e ela apareceu de novo à mesa do jantar, provocadora, irritada e conciliadora.

Poder-se-ia argumentar que queixar-se destes pequenos contratempos em casa e, depois, decidir sentar-se num canto do Cosmo, onde vibravam constantemente ecos de debates e discussões, era, sem dúvida, um pouco perverso. Sobretudo porque as conversas que se escutavam eram infalivelmente revolucionárias. Todas aquelas pessoas eram revolucionárias, mesmo tendo fugido dos resultados da revolução. Eram na sua maioria representantes de alguma fase do Sonho e conseguiam discutir durante horas o que acontecera nesta ou naquela reunião em 1905, na Rússia, ou em 1917, ou em Berchtesgaden, ou quando tropas alemãs invadiram a União Soviética, ou a situação dos campos de petróleo romenos em 1940. Discutiam acerca de Freud e Jung, acerca de Trotski e Bucarine, acerca de Arthur Koestler e da Guerra Civil Espanhola. E Frances, cujos ouvidos se fechavam completamente quando Johnny iniciava uma das suas arengas, achava tudo aquilo repousante, embora não prestasse activamente atenção. É verdade que um café ruidoso cheio de fumo de cigarros (então um acompanhamento indispensável da actividade intelectual) oferece mais intimidade do que uma casa por onde passavam indivíduos para uma conversa. Andrew gostava daquilo ali. E Colin também: diziam que tinha uma energia boa, para não falar nas vibrações positivas.

Johnny frequentava-o muito, mas como naquela altura estava em Cuba, era seguro para ela ir lá.

Frances não era a única do The Defender. Havia um homem que escrevia artigos políticos, a quem ela fora apresentada assim por Julie Hackett: «Este é o nosso político-mor, Rupert Boland. É um intelectual, mas não é mau tipo, apesar de ser homem.»

Não se tratava de uma pessoa em quem normalmente se reparasse, mas ali dava nas vistas em virtude de usar um fato castanho muito sóbrio e gravata. Tinha um rosto agradável. Estava ali a escrever ou a tomar apontamentos com uma esferográfica, exactamente como ela. Sorriram e inclinaram a cabeça um ao outro e, nesse momento, ela viu um homem alto, com um casaco à Mao, levantar-se para sair. Santo Deus, era Johnny. Enfiou um comprido sobretudo afegão tingido de azul, o último grito em Carnaby Street, e saiu. E, a poucas mesas de distância, a um canto e a tentar obviamente não ser vista (provavelmente por Johnny) estava Julia. Conversava com... tratava-se com certeza de um amigo íntimo. Namorado? Frances percebera recentemente que Julia não tinha muito mais de sessenta anos. Mas não, Julia não podia ter um caso (a palavra que ela própria usaria seria, com toda a probabilidade, liaison) numa casa a abarrotar de jovens sempre atentos. Era tão absurdo como se ela, Frances, tivesse.

Ao desistir do teatro, talvez para sempre, Frances tivera a sensação de estar a bater com a porta na cara ao romance, ou a um amor sério.

E Julia... Frances pensou que Julia se devia sentir muito só, sem ninguém lá no alto daquela casa cheia e ruidosa onde os jovens lhe chamavam a velha ou, até, a velha fascista. Ouvia música clássica pela rádio e lia. Mas às vezes saía, e pelos vistos ia ali.

Julia usava um fato azul um pouco baço e um chapéu de leve tom malva com um pequeno véu — evidentemente. As suas luvas estavam em cima da mesa. O cavalheiro seu amigo, de cabelo grisalho e bem conservado, era tão elegante e antiquado como ela. Levantou-se e inclinou-se para a mão de Julia, onde os seus lábios estabeleceram contacto com o ar que a cobria. Ela sorriu e inclinou a cabeça, e ele saiu. O seu rosto, quando ficou só, moldou-se numa expressão que Frances interpretou como estoicismo. Julia desfrutara de uma hora livre da trela e agora iria para casa, ou talvez fazer algumas compras frugais. Quem ficara a tomar conta de Sylvia? Isso significava que Andrew devia estar em casa. Frances não voltara ao quarto do filho, mas presumia que ele passava lá longas horas sozinho, a fumar e a ler.

Era sexta-feira. Nessa noite podia contar com cadeiras bem juntas a toda a volta da mesa. Seria uma ocasião especial e toda a gente o sabia, incluindo o grupo da St. Josephs, porque Frances telefonara a Colin para dizer que Sylvia ia descer para jantar e a pedir-lhe para recomendar a todos que a tratassem por Sylvia. «E pede-lhes também que procedam com tacto, Colin.» «Obrigado por teres tão pouca confiança em nós», respondera ele.

Entretanto, os seus cuidados protectores para com Sophie tinham-se transformado em amor, e na St. Josephs os dois eram reconhecidos como um casal. «Um casal de periquitos»(1), dissera Geoffrey magnanimamente, pois sentia com certeza ciúme. De Geoffrey podia-se esperar um comportamento cavalheiresco, apesar de furtar em lojas... apesar de ser ladrão. O mesmo já não se podia dizer de Rose, cujo ciúme de Sophie lhe jorrava dos olhos e do rosto despeitado.

 

Querida Tia Vera. Os nossos dois filhos dizem que não voltam para a escola. O rapaz tem quinze anos. A rapariga, dezasseis. Andaram meses a faltar às aulas, antes de nós sabermos. Depois a polícia informou-nos de que passavam o tempo com alguns tipos pouco recomendáveis. Agora quase nunca vêm a casa. O que havemos de fazer?

Sophie dissera que não voltava para a escola depois do Natal, mas talvez mudasse de ideias para estar com Colin. Ele, porém, disse que não andava a sair-se bem e não queria fazer os exames finais, no próximo Verão.

 

*1. Periquito em inglês é «lovebird», pássaro do amor. (NT)

 

Tinha dezoito anos. Dizia que os exames eram estúpidos e já era velho demais para andar na escola. Rose, que não era responsabilidade sua, deixara a escola. Assim como James. Sophie não ia à escola havia meses. Geoffrey ia bem, sempre fora bom aluno, e parecia que seria o único a apresentar-se aos exames. Daniel também os faria, porque Geoffrey fazia, mas não era inteligente como o seu ídolo. Jill estava com mais frequência em casa do que na escola. Lucy, da Dartington, iria aos exames e sair-se-ia brilhantemente, não restavam dúvidas a esse respeito.

A própria Frances, menina obediente, frequentara a escola, fora pontual, fizera os exames e teria ido para a universidade se a guerra e Johnny não se tivessem atravessado no caminho. Não conseguia perceber qual era o problema. Não gostara muito da escola, mas achara o processo uma coisa que era necessário suportar. Teria de ganhar a sua vida, a questão era essa. Os jovens de agora nunca pareciam pensar nisso.

 

Escreveu a carta que gostaria de enviar, mas que, é claro, não enviaria.

 

Cara Mrs. Jackson. Não faço a mínima ideia do que devo aconselhar. Parece que criámos uma geração que espera que a comida lhe caia do céu para a boca sem precisar de trabalhar para isso. Com sincero pesar, Tia Vera.

 

Julia estava a levantar-se. Pegou na mala, nas luvas e num jornal e, quando passou por Frances, inclinou a cabeça. Tarde demais, Frances levantou-se para puxar uma cadeira para ela, mas Julia já se afastara. Se tivesse procedido como devia ser, Julia ter-se-ia sentado: houvera um breve momento de hesitação. E depois, finalmente, teria travado amizade com a sua sogra.

Frances sentou-se, pediu mais café e depois sopa. Andrew tinha dito que, quando uma pessoa tinha sorte na escolha do momento e pedia sopa de gulash, lhe serviam a parte espessa, do fundo da panela, como se fosse guisado. Era muito bom. O gulash dela, quando lho serviram, era sem dúvida do meio da panela.

Não sabia o que escrever para o terceiro artigo. O segundo fora sobre marijuana e tinha sido fácil. O artigo fora objectivo e informativo, mais nada, e ela tinha recebido muitas cartas em resposta.

Como eram simpáticos os frequentadores do Cosmo, aquelas pessoas de toda a Europa a que, é claro, entretanto se juntara o tipo de britânicos atraído por elas. Muitos deles judeus. Mas nem todos.

Julia comentara, na presença dos «miúdos», quando um deles perguntara se tinha sido uma refugiada: «Encontro-me na infeliz situação de ser uma alemã que não é judia.»

 

Espanto e indignação. O estatuto de fascista, de Julia, estava confirmado: embora todos eles usassem a palavra fascista tão facilmente como diziam foda-se ou merda, não significando, necessariamente, muito mais de que se tratava de uma pessoa que não aprovavam.

Sophie lamuriara que Julia lhe causava calafrios, como todos os alemães.

A respeito da rapariga, Julia observara: «Ela tem a beleza de uma jovem judia, mas acabará como uma velha bruxa, como todas nós.»

Se Sylvia-Tilly descia para jantar, a comida tinha de ser apropriada para ela. Não era possível servir-lhe um prato diferente do dos outros, mas a verdade é que ela só comia batatas. Frances fazia um grande empadão de carne, de modo que as raparigas que estavam de dieta podiam deixar o puré e comer o resto. Havia também vegetais. Rose não comia vegetais, mas comia salada. Geoffrey nunca comia peixe ou vegetais: havia anos que ela se preocupava com a dieta de Geoffrey, e ele nem sequer era seu filho. O que pensariam os seus pais, se ele quase nunca ia a casa, mas estava sempre a vir para ali, ou melhor, para junto de Colin? Ela perguntou-lhe e Geoffrey respondeu que eles estavam muito satisfeitos por ele ter outro lugar para onde ir. Parece que trabalhavam ambos muito. Eram quacres. Religiosos. Um lar muito aborrecido, ao que parecia. Ganhara afecto por Geoffrey, mas diabos a levassem se ia perder tempo a preocupar-se com Rose. Cautela, Frances: se alguma coisa tinha aprendido, fora a não dizer o que uma pessoa aceita ou recusa do destino, que tem ideias próprias.

Mas talvez o destino de uma pessoa seja apenas o seu temperamento, que atrai invisivelmente pessoas e acontecimentos. Há pessoas que (porventura inconscientemente, quando são jovens, até serem forçadas a ver que esse é o seu carácter) adoptam uma certa passividade em relação à vida, esperando para ver o que lhes vem no prato, ou cai no regaço, ou fita frente a frente no rosto —- «O que se passa com vocês? São cegos?» —, e depois tentam, mais do que agarrá-lo, esperar, permitir que a coisa se desenvolva, se revele. Então a tarefa consiste em fazer o melhor que se puder com o que calhou em sorte.

Teria ela acreditado, ao casar com Johnny aos dezanove anos, quando não havia razão alguma para esperar outra coisa além de guerra e maus tempos, que daria consigo transformada numa espécie de mãe adoptiva de casa de jovens — «mãe-terra» era o termo corrente. Onde, ao longo do caminho, deveria ter dito (se tivesse estado decidida a evitar tal destino), «Não, não quero»? Debatera-se contra a casa de Julia, mas provavelmente teria sido melhor se se houvesse rendido muito mais cedo, dizendo sim, sim, ao que estava a acontecer, e dizendo-o conscientemente, aceitando o que estava à sua frente, como se tornara agora a sua filosofia. Dizer não é muitas vezes como aquelas pessoas que se divorciam de um parceiro para casarem com outro exactamente igual em aspecto e carácter: temos integrados em nós padrões invisíveis tão inevitavelmente nossos como as impressões digitais, mas só tomamos consciência deles quando olhamos em redor e os vemos reflectidos como num espelho.

«Sabemos o que somos...» (Oh, não, não sabemos!) «... mas não o que podemos ser.»

Em tempos, ter-lhe-ia custado a acreditar que podia viver castamente, sem um homem em perspectiva... mas ainda acarinhava fantasias a respeito de um homem na sua vida que não fosse um louco egoísta como Johnny. Mas que homem estaria disposto a aceitar uma tribo de jovens, todos eles «perturbados» por um motivo ou outro? Ali estavam, felizes por viverem na esfuziante Londres do swing, onde lhes era prometido tudo quanto os propagandistas de pelo menos dois continentes podiam imaginar, e no entanto, embora os «miúdos» dançassem o swing — e dançavam, partiam amanhã, sábado, para o grande concerto de jazz —, depois estavam tramados, e dois deles, os seus filhos, por causa dela e de Johnny. E da guerra, é claro.

Frances pegou na sua carga, dois sacos cheios e pesados, pagou a despesa e subiu a colina para casa.

Um nevoeiro nacarado — pós-Campanha Ar Puro — flutuava do lado de fora das janelas e orvalhava o cabelo e as pálpebras dos «miúdos» que entravam em casa a rir e a abraçarem-se uns aos outros como sobreviventes. Canadianas húmidas amontoavam-se no corrimão, e todas as cadeiras à volta da mesa, excepto duas à esquerda de Frances, estavam ocupadas. Colin sentara-se ao lado de Sophie, mas viu que ficaria ao lado do irmão, na terceira cadeira vazia, e mudou-se rapidamente para a cabeceira, onde parou junto de Geoffrey, que estava sentado defronte de Frances. Colin reclamou a importante cadeira empurrando Geoffrey para fora dela com um movimento das nádegas. Foi um gesto de colegial, rude e violento, demasiado juvenil para o seu estatuto de quase adultos. Geoffrey foi sentar-se à direita de Frances, sem olhar para Colin. Qualquer discórdia fazia Sophie sofrer, e ela levantou-se, aproximou-se de Colin, inclinou-se para o enlaçar com um braço e beijou-o na face. Embora avaro de sorrisos, desta vez não pôde impedir um sorriso fraco e carinhoso, primeiro dirigido a ela e abrangendo depois toda a gente. Riram-se todos. Rose... James... Jill — estes três pareciam estar encarnados na cave; Daniel estava ao lado de Geoffrey, o chefe de turma e o seu auxiliar. Lucy, que viera da Dartington para passar ali o fim-de-semana com ele, estava ao lado de Daniel. Doze lugares. Enquanto esperavam, comiam todos pão, esfaimadamente, e aspiravam os aromas que vinham do fogão. Andrew chegou, finalmente, com o braço à volta dos ombros de Sylvia. Ela continuava embrulhada no xaile de bebé, mas vestia uns jeans limpos, que lhe estavam largos, e uma camisola de Andrew. O seu cabelo claro e fino fora escovado para cima, dando-lhe um aspecto ainda mais infantil. Mas sorria, embora os seus lábios tremessem.

Colin, que não gostava da sua presença ali, levantou-se, sorrindo, e fez-lhe uma pequena vénia. «Bem-vinda, Sylvia», disse, e os olhos dela inundaram-se de lágrimas perante o coro de «Olá, Sylvia».

Sentou-se ao lado de Frances e Andrew ao lado dela. A refeição podia começar. Num instante, os pratos encheram todo o espaço ao longo da mesa. Colin levantou-se para servir vinho, antecipando-se a Geoffrey que estava prestes a fazê-lo, enquanto Frances punha comida nos pratos. Um instante crítico: chegara a Andrew e a seguir seria Sylvia. Andrew disse: «Eu trato disso», e começou uma pequena brincadeira. Pôs uma única cenoura no seu prato e outra no de Sylvia. Adoptara uma atitude solene e judiciosa, de testa franzida, e Sylvia começara a rir, embora os seus lábios ainda fizessem pequenos e trémulos movimentos nervosos. No prato dele, uma pequena colher de couve e outra no dela, ignorando a mão que se levantara instintivamente para o deter. Para ele, uma simples amostra do picado de carne, e o mesmo para ela. E depois, com um ar de atrevimento, um bocado grande de batata para ela e outro para ele. Estavam todos a rir. Sylvia olhava para o seu prato, mas Andrew, com um ar determinado que parecia dizer «vamos lá acabar com isto», enchera uma colher de puré de batata e esperava que ela fizesse o mesmo. Ela fez — e engoliu.

Tentando não olhar para o que estava a passar-se, enquanto Andrew e Sylvia lutavam consigo mesmos, Frances ergueu o seu copo de Rioja — sete xelins a garrafa, pois aquele agradável vinho ainda estava para ser «descoberto» — e fez um brinde à Educação Progressista, uma paródia antiga que todos eles apreciavam.

— Onde está a Julia? — perguntou a voz fraquinha de Sylvia. Seguiu-se um silêncio ansioso. Depois Andrew respondeu:

— Ela não vem tomar as refeições connosco.

— Porquê? É tão agradável, aqui com vocês. >!, Este foi um momento de verdadeiro progresso, como Andrew disse,

depois, a Julia. «Ganhámos, Julia, sim, ganhámos de facto.» Frances estava contente: tinha até lágrimas nos olhos. Andrew enlaçou Sylvia com o braço e, sorrindo à mãe, disse à rapariga:

— É, realmente. Mas a Julia prefere estar lá em cima, sozinha. Dando-se conta de que, inadvertidamente, criara uma imagem do

que devia ser a solidão, acrescentou logo a seguir:

— Mas eu vou convidá-la de novo.

Disse isto, em parte, para se aliviar do peso e do desafio do seu próprio prato em que ainda mal tocara. Enquanto ele saía e subia a escada, Sylvia pousou a colher.

Andrew regressou pouco depois e voltou a sentar-se:

— Ela disse que talvez passe por aqui mais tarde.

Estas palavras deram origem a um momento que raiou o pânico. Apesar dos esforços de Andrew a favor da sua avó, todos eles tinham tendência para ver Julia como uma espécie de velha bruxa que lhes dava vontade de rir. O contingente da St. Josephs não imaginava quanto Julia lutara, durante uma ou duas semanas, com a doença de Sylvia, sentando-se com ela, dando-lhe banho, fazendo-a engolir colheradas disto e golinhos daquilo. Julia mal dormira, durante esse período. E ali estava a sua recompensa: Sylvia a pegar de novo na colher e a observar Andrew a levantar a sua, como se tivesse esquecido a forma de o fazer.

O momento difícil passou, os miúdos apaziguaram os seus apetites de adolescentes e Frances comeu mais do que costumava, para servir de exemplo aos dois que estavam à sua esquerda. Foi um anoitecer maravilhoso, com laivos de ternura por causa de Sylvia e da preocupação deles com ela. Era como se estivessem, colectivamente, a abraçá-la, enquanto ela engolia uma colherada após outra. E Andrew também.

E depois viram-na empalidecer e começar a tremer.

— O meu pai... — murmurou. — Quero dizer, o meu padrasto...

— Oh, não — tranquilizou-a Colin. — Não te preocupes, ele foi para Cuba.

— Acho que não — disse Andrew, ao mesmo tempo que se levantava rapidamente para interceptar Johnny, que estava no átrio do lado de fora da cozinha. Andrew fechou a porta, mas todos ouviram a voz brusca, razoável e confiante de Johnny, assim como a de Andrew, a responder-lhe:

— Não, pai, não, não pode entrar. Eu depois explico-lhe.

As vozes continuaram, ora altas ora baixas, e por fim Andrew regressou, deixando a porta aberta, e sentou-se de novo ao lado de Sylvia. Estava vermelho e irritado, e agarrou no garfo como se fosse uma arma.

— Mas por que não está ele em Cuba? — perguntou Colin, petulantemente, como uma criança.

Os irmãos entreolharam-se, de súbito unidos, trocando expressões entendidas.

Andrew explicou:

— Ele não partiu, mas espero que parta. — Acrescentou, ainda furioso: — Penso que, na realidade, vai para Zanzibar... ou para o Quénia. — Uma pausa, enquanto os dois irmãos comungavam, com os seus olhos e os sorrisos furiosos. — Não está sozinho, vem com um negro... um homem de lá... um camarada africano.

Estes ajustamentos ao espírito dos tempos eram atentamente acompanhados pelo grupo. Tinham posto África nos seus corações e nas suas consciências, as escolas progressistas haviam-se encarregado disso. E até Rose, que estava longe de uma escola progressista, escolheu as palavras para dizer:

— Temos de ser simpáticos com as pessoas de cor escura, eis o que eu penso.

Sylvia não se refizera. A colher pendia-lhe, imóvel, da mão magra. James, que compreensivelmente não estava a perceber nada, perguntou:

— Porque vai ele para África em vez de para Cuba?

Os irmãos riram-se, juntos, da pergunta — e não foi agradável —, enquanto Frances se continha para não fazer coro com eles, embora lhe apetecesse. Esforçava-se sempre para não criticar Johnny em público.

Colin disse, como um orador:

— Deixemo-los conjecturar —, e Frances, ao ouvir a citação, não se conteve mais e riu-se.

— É isso mesmo — concordou Andrew —, deixem-nos conjecturar.

— Por que se estão a rir? — perguntou Sylvia. — Onde está a graça? Andrew parou imediatamente a brincadeira e voltou uma vez mais

a pegar na colher. Mas acabara-se a refeição, para ele e para Sylvia.

— Johnny vai voltar — disse ele à rapariga. — Foi apenas buscar qualquer coisa ao carro. Se queres sair do caminho...

— Oh, sim, quero, por favor — respondeu muito depressa a enteada de Johnny, e levantou-se amparada pelo braço de Andrew. Saíram ambos. Pelo menos tinham ambos comido alguma coisa.

— Digam à Julia que não desça — recomendou Frances, atrás deles. — Caso contrário, voltam a discutir.

A refeição continuou, menos animada.

O contingente da St. Joseph's estava a falar de um livro que Daniel roubara de uma barraca de livros em segunda mão. The Ordeal of Richard Feverel.

Ele lera-o, disse que era bestial e que o pai tirano era igualzinho ao seu. Recomendou-o a Geoffrey, que lhe agradou dizendo que era formidável, e depois o romance emigrou para Sophie que declarou tratar-se do melhor livro que já lera e que a fizera chorar. Agora quem o estava a ler era Colin.

— Por que não o posso ler? — perguntou Rose. — É injusto.

— Não é o único exemplar que há no mundo — respondeu Colin.

— Eu tenho um. Empresto-to — ofereceu Frances.

— Oh, Frances, obrigada, é tão amável comigo.

Isto significava, e todos o sabiam: espero que continue a ser amável comigo.

— Vou buscá-lo — disse Frances, arranjando um pretexto para sair da cozinha onde muito em breve vibrariam correntes discordantes. E tudo fora tão agradável até este momento... Subiu à divisão que ficava mesmo por cima da cozinha, e que era a sala, procurou The Ordeal of Richard Feverel numa parede coberta de livros, voltou-se e viu que Julia estava ali sentada sozinha, na semiescuridão. Desde que tinha ocupado a parte inferior da casa, Frances nunca encontrara Julia naquela sala. Era uma ocasião ideal para se sentar e tentar estabelecer amizade com Julia, mas estava com pressa, como sempre.

— Ia a meio da escada, para me juntar a vocês todos — explicou Julia —, mas ouvi que o Johnny tinha chegado.

— Não sei como impedi-lo de vir. — Frances apurou o ouvido para o que se passava em baixo, na cozinha: estariam todos bem, sem discussões?, e depois para cima — estaria Sylvia bem?

— Ele tem uma casa — observou a sogra. — Parece-me que não a frequenta muito.

— Bem, se a Phyllida lá está, quem pode censurá-lo? Esperara que o comentário fizesse Julia sorrir, pelo menos, mas em

vez disso ela continuou:

— Tenho de dizer uma coisa... — Frances esperou o que, tinha a certeza, seria uma dose de desaprovação. — É muito fraca com o Johnny. Ele tratou-a de modo abominável.

Frances pensou: Nesse caso, por que lhe deu a chave da casa? — mas sabia que a mãe dificilmente diria ao filho que ele não podia ter uma chave de uma casa que considerava sua. Além disso, havia os rapazes.

— Talvez pudéssemos mudar as fechaduras? — perguntou, tentando brincar um pouco.

Mas Julia levou as palavras a sério e respondeu:

— Eu encarregar-me-ia disso se não pensasse que você lhe daria imediatamente uma chave nova.

Levantou-se, e Frances, que encarara a ideia de se sentar, viu fugir outra oportunidade.

— Julia, está sempre a criticar-me, mas não me apoia — observou. E o que queria dizer com aquilo, a não ser que Julia a fazia sentir-se uma colegial deficiente em tudo?

— O que está a dizer? Não compreendo. — Julia estava furiosa e magoada.

— Não quero dizer... tem sido tão boa... é sempre tão generosa... não, eu só queria dizer que...

— Não creio que tenha estado aquém das minhas responsabilidades para com a família — cortou Julia, e Frances verificou, incrédula, que Julia podia chorar facilmente. Magoara-a e foi o facto de isso ser possível que a fez gaguejar:

— Julia... mas, Julia... está enganada. Eu não queria dizer... — E depois acrescentou: — Oh, Julia — num tom diferente que fez a outra parar, a caminho da porta, para a observar, como se estivesse disposta a comover-se, a deixar-se tocar, até a estender ela própria a mão.

Mas uma porta bateu, no andar de baixo, e Frances exclamou, desesperada:

— Aí está ele, o Johnny.

— Sim, é o camarada Johnny — disse Julia, e foi para cima.

Frances desceu para a cozinha e encontrou Johnny na posição habitual, de costas para a janela, e, com ele, um negro bem-parecido, com roupas mais caras do que qualquer dos presentes, e que sorriu quando Johnny o apresentou:

— O camarada Mo, da África Oriental.

Frances sentou-se e empurrou o livro para Rose, por cima da mesa, mas ela fitava, cheia de admiração, o camarada Mo, e também Johnny, que, para impressionar o outro, reatou o seu discurso sobre a história da África Oriental e dos Árabes.

Frances confrontava, agora, um dilema. Não queria convidar Johnny a sentar-se. Pedira-lhe — embora Julia nunca o acreditasse — para não aparecer às horas das refeições e para telefonar antes de vir. Mas agora, com aquele convidado, com certeza que devia...

— Deseja comer alguma coisa? — perguntou, e o camarada Mo esfregou as mãos, riu-se, disse que estava esfomeado e sentou-se imediatamente na cadeira ao lado dela. Johnny, convidado para se sentar, disse que beberia apenas um copo de vinho — trouxera uma garrafa. Onde Andrew e Sylvia tinham estado sentados, momentos antes, sentaram-se agora os camaradas Mo e Johnny, e os dois homens passaram para os seus pratos tudo quanto restava do empadão e dos vegetais.

A ira de Frances era tão grande que raiava o desânimo: de que servia, alguma vez, enfurecer-se com Johnny? Era óbvio que ele não comia há dias, estava a empanturrar-se de pão, a beber grandes goladas de vinho e a reencher o seu copo e o do camarada Mo, entre garfadas de comida. Os jovens observavam apetites maiores ainda do que os deles.

— Vou servir a sobremesa — anunciou Frances, com a voz enrou-quecida pela fúria.

Foram postos na mesa pratos com pegajosas delícias das lojas cipriotas, doces de mel, nozes e massa filo, pratos com fruta e o seu pudim de chocolate, feito especialmente para «os miúdos».

Depois de ter olhado fixamente o pai e em seguida a mãe — Por que o deixaste sentar-se? Por que o deixaste...» —, Colin levantou-se, arrastando a cadeira para trás e empurrando-a ruidosamente contra a parede, e saiu.

— Sinto-me aqui como num segundo lar — disse o camarada Mo, enquanto comia pudim de chocolate. — E não conheço estes bolos. São como alguns que nós temos da cozinha árabe?

— Cipriota — informou Johnny —, quase com certeza com influência oriental... — e lançou-se numa dissertação sobre as cozinhas do Mediterrâneo.

Escutavam-no todos, fascinados: ninguém podia dizer que Johnny era enfadonho quando não falava de política, mas aquilo era bom demais para durar muito. Em breve estava a falar do assassínio de Kennedy e dos prováveis papéis da CIA e do FBI. Daí passou para os planos americanos para dominarem África, e apresentou como prova o facto de a CIA ter sugerido ao camarada Mo enormes quantias em dinheiro. Mostrando os dentes todos e as gengivas, o camarada Mo confirmou isso, com orgulho. Fora abordado por um agente da CIA em Nairobi que lhe oferecera financiar o partido em troca de informações. James quis saber como soubera ele que era a CIA, e o camarada Mo respondeu que «toda a gente sabia» que a CIA andava a rondar a África como um leão à procura da sua presa. Riu-se, encantado, e olhou em redor, à espera de aprovação.

— Deviam ir todos visitar-nos. Vão, vejam com os próprios olhos e divirtam-se — convidou, sem fazer a mínima ideia de que estava a descrever um futuro glorioso. — Johnny prometeu ir.

— Oh, eu pensava que ele ia agora, imediatamente... — disse James, e desta vez os olhos do camarada Mo fitaram, interrogadores, Johnny, enquanto dizia:

— O camarada Johnny é sempre bem-vindo.

— Isso significa que não disseste ao Andrew que ias para África? — perguntou Frances, à espera da resposta «Deixem-nos conjecturar». Johnny sorriu e pronunciou o aforismo:

— Deixem-nos sempre conjecturar.

— Quem? — perguntou Rose.

— Obviamente, Rose, a CIA — respondeu Frances.

— Oh, sim, a CIA — disse James —, é claro. — Estava a absorver informações, de acordo com o seu talento e a sua intenção.

— Deixem-nos conjecturar — repetiu Johnny, que acrescentou, dirigindo-se no seu tom mais severo ao predisposto discípulo James:

— Em política, nunca devemos deixar a nossa mão esquerda saber o que a direita faz.

— O que a esquerda faz talvez fosse mais lógico — comentou Frances.

Ignorando-a, ele continuou:

— Deves cobrir sempre o teu rasto, camarada James. Não deves, nunca, facilitar as coisas ao inimigo.

— Talvez eu também deva ir a Cuba — disse Mo. — O camarada Fidel está a encorajar laços com os países africanos libertados.

— E até com os não libertados — acrescentou Johnny, confiando a todos eles os segredos da política.

— Vai a Cuba para quê? — perguntou Daniel, que queria realmente saber, confrontando Johnny do outro lado da mesa com o seu incendiário cabelo ruivo, as suas sardas e os olhos sempre tensos pelo conhecimento de que não era digno de lamber as botas de... Geoffrey, por exemplo. Ou de Johnny.

— Esse tipo de pergunta não se devia fazer — disse-lhe James, e olhou para Johnny à espera de aprovação.

— Exactamente — respondeu Johnny, que se levantou e regressou à sua posição de orador, de costas para a janela, descontraído, mas atento.

— Quero ver um país que só conheceu escravatura e sujeição construir a liberdade, construir uma sociedade nova. Fidel operou milagres em cinco anos, mas os próximos cinco revelarão uma mudança real. Espero levar Andrew e Colin, levar os meus filhos, para verem com os próprios olhos... A propósito, onde estão eles? — Só agora dava pela sua ausência.

— O Andrew está com a Sylvia — respondeu Frances. — Agora vamos ter de tratá-la assim.

— Porquê, ela mudou de nome?

— Esse é o nome dela — disse Rose, mal-humorada, e foi acrescentando que detestava o seu nome e queria ser tratada por Marilyn.

— Eu na realidade só a conheci como Tilly — respondeu Johnny com um ar brincalhão que momentaneamente fez lembrar Andrew. — Bem, e onde está o Colin?

— A fazer os trabalhos de casa — respondeu Frances. Uma história pouco verosímil, embora Johnny não o soubesse.

Johnny pareceu enervado. Os seus filhos eram o seu público preferido, e ele não fazia ideia de quanto era, também, crítico.

— Pode ir-se a Cuba, sem mais nem menos, como turista? — perguntou James, que evidentemente não aprovava os turistas nem a sua frivolidade.

— Ele não vai como turista — disse o camarada Mo. Sentindo-se deslocado à mesa enquanto o seu camarada de armas estava de pé diante deles, levantou-se e foi para o seu lado. — Fidel convidou-o.

Era a primeira vez que Frances ouvia falar naquilo.

— E convidou-a também a si — acrescentou o camarada Mo. Johnny estava francamente desagradado; não quisera que isso fosse

revelado.

— Um amigo de Fidel está no Quénia — continuou o camarada Mo —, para as celebrações da Independência, e disse-me que Fidel quer convidar Johnny e a mulher de Johnny.

— Devia referir-se a Phyllida.

— Não, referia-se a si. Ele disse o camarada Johnny e a camarada Frances.

Johnny estava furioso.

— O camarada Fidel desconhece claramente a indiferença de Frances pelos assuntos mundiais.

— Não — discordou o camarada Mo, aparentemente sem notar que Johnny estava prestes a explodir, ali mesmo ao seu lado. — Ele disse que tinha ouvido dizer que ela é uma actriz famosa e será bem-vinda para criar um grupo de teatro em Havana. Convite a que junto o nosso. Podia criar um teatro revolucionário em Nairobi.

— Oh, Frances — murmurou Sophie, apertando as mãos uma na outra e com os olhos enternecidos —, que maravilhoso, que absolutamente maravilhoso!

— A especialidade de Frances parece ser mais a de conselheira de problemas familiares — disse Johnny e, pondo firmemente fim àquele disparate, ergueu a voz e dirigiu-se aos jovens. — Vocês pertencem a uma geração afortunada. Construirão um novo mundo, meus jovens camaradas. Possuem a capacidade de ver para lá de todas as velhas falsidades, das mentiras, das ilusões; vocês podem derrubar o passado, destruí-lo, construir de novo... este país tem dois aspectos principais. Por um lado, é rico e tem uma infra-estrutura sólida e consolidada, mas por outro, está eivado de atitudes antiquadas e embrutecedoras. Esse será o problema. O vosso problema. Antevejo a Grã-Bretanha do futuro, livre, rica, sem pobreza e onde a injustiça será uma recordação...

Continuou algum tempo neste tom, repetindo exortações que soavam a promessas. Vocês transformarão o mundo... será sobre os ombros da vossa geração que pesará a responsabilidade... o futuro está nas vossas mãos... vocês viverão para ver um mundo melhor, um lugar glorioso, e saberão que foram os vossos esforços... que coisa maravilhosa é ser da vossa idade, agora, com tudo nas vossas mãos...

Rostos e olhos jovens brilhavam, adoravam-no e àquilo que ele dizia. Johnny estava no seu elemento, a absorver admiração. Adoptara a pose de Lenine, com uma das mãos a apontar para diante, para o futuro, enquanto a outra se cerrava sobre o seu coração.

— Ele é um grande homem — concluiu em voz suave e reverente, olhando-os muito sério. — Fidel é um homem genuinamente grande. Aponta a todos nós o caminho para o futuro.

Havia ali um rosto que evidenciava uma assintonia com Johnny: James, que o admirava tanto quanto ele poderia desejar, encontrava-se nas garras de uma grande necessidade de esclarecimento.

— Mas, camarada Johnny... — disse, levantando a mão como se estivesse numa aula.

— E agora boa noite — disse Johnny. — Tenho uma reunião. E aqui o camarada Mo também.

O seu aceno de cabeça, sisudo mas camarada, excluiu Frances, a quem dirigiu um olhar gelado. Saiu seguido pelo camarada Mo, que disse a Frances: «Obrigado, camarada. Salvou-me a vida. Estava a morrer de fome. E agora parece que vou ter uma reunião.»

Ficaram silenciosos, a ouvir o «Carocha» de Johnny arrancar e partir.

— Que tal se todos vocês se encarregassem da lavagem da louça? — sugeriu Frances. — Eu tenho que fazer. Boa noite.

Demorou-se um pouco, para ver quem aceitava o desafio. Geoffrey, é claro, o bom rapazinho; Jill, que estava claramente apaixonada pelo bonito Geoffrey; Daniel, que estava apaixonado por Geoffrey mas provavelmente não o sabia; Lucy... Bem, todos eles, na verdade. Rose?

Rose continuou sentada: raios a partissem se permitiria que a usassem.

As influências do Dia de Natal, essa festa contumaz, começaram a espalhar consternação logo na noite de 12 de Dezembro quando, para surpresa de Frances, descobriu que estava a beber à independência do Quénia. James ergueu o copo transbordante de Rioja e brindou: «A Kenyatta, ao Quénia, à Liberdade.» Como sempre, o seu rosto caloroso e amigável, ainda que comum, sob a cascata de caracóis pretos, enviava em todas as direcções mensagens de ilimitados mananciais de dádivas de sentimento. Olhos excitados, rostos fervorosos: as recentes arengas de Johnny ainda ecoavam neles.

Fora consumida uma farta refeição, uma pequena parte dela por Sylvia, sentada como sempre à esquerda de Frances. No seu copo havia uma mancha vermelha: Andrew tinha dito que ela devia beber um pouco, que lhe faria bem, e Julia apoiara-o. O fumo de cigarro era mais denso do que de costume; dir-se-ia que naquela noite toda a gente estava a fumar, por causa da libertação do Quénia. Colin, não; esse sacudia as nuvens de fumo à medida que lhe chegavam ao rosto.

— Os pulmões de vocês vão apodrecer — avisou.

— Bem, é só esta noite — respondeu Andrew.

— Vou passar o Natal a Nairobi — anunciou James, olhando à sua volta, orgulhoso mas pouco à vontade.

— Oh, os teus pais vão? — perguntou Frances sem pensar, e as suas palavras foram acolhidas por um silêncio repreensivo.

— Será possível? — troçou Rose, apagando o cigarro e acendendo furiosamente outro.

— O meu pai combateu no Quénia — replicou James em tom de leve censura. — Era soldado. Diz que é uma boa terra.

— Ah, então os teus pais vivem lá? Ou tencionam ir viver? Vais visitá-los?

— Não, eles não vivem lá — disse Rose. — O pai dele é inspector das finanças, em Leeds.

— E isso é crime? — indagou Geoffrey.

— São uns convencionais, todos certinhos — sentenciou Rose. — Até custa a acreditar.

— Não são tão maus como isso — defendeu James, que não estava a gostar daquilo. — E nós devemos dar desconto às pessoas que ainda não são politicamente conscientes.

— Ah, com que então vais tornar os teus pais politicamente conscientes... não me faças rir — troçou Rose.

— Eu não disse isso — respondeu James, desviando o olhar da prima e virando-se para Frances. — Vi fotografias que o meu pai tirou em Nairobi. São bestiais. É por isso que vou.

Frances compreendeu não haver necessidade de fazer perguntas tão idiotas como: Tens passaporte? Tens um visto? Como vais pagar? E só tens dezassete anos.

James flutuava nos braços de um sonho de adolescente, que não era perturbado por realidades enfadonhas. Ele daria consigo, como por magia, na rua principal de Nairobi... Aí correria para o camarada Mo... integrar-se-ia num grupo de amáveis camaradas onde não tardaria a ser um líder e a fazer discursos inflamados. E, como tinha dezassete anos, haveria uma rapariga. Como é que ele a imaginava? Negra? Branca? Frances não fazia ideia. James continuava a falar das recordações do seu pai do Quénia. As sinistras verdades da guerra tinham sido apagadas e só restavam altos céus azuis, todo aquele espaço e um bom gajo (corrigido para bom tipo) que salvara a vida do seu pai. Um negro. Um ascari, arriscando a vida pelo soldado britânico.

Qual fora o sonho equivalente de Frances, não aos dezasseis anos, pois era uma estudante atarefada, mas aos dezanove? Sim, tinha a certeza de que, devido à imersão de Johnny na Guerra Civil Espanhola, fantasiara ser enfermeira de soldados. Onde? Numa paisagem rochosa, com vinho e azeitonas. Mas onde? Os sonhos dos adolescentes não precisam de pontos em mapas.

— Não podes ir para o Quénia — disse Rose. — Os teus pais impedir-te-ão.

Arrancado da fantasia para a realidade, James estendeu a mão para o seu copo e despejou-o.

— Como o assunto foi abordado — disse Frances —, quero falar do Natal. — Defrontada com rostos já apreensivos, sentiu-se incapaz de continuar. Eles sabiam o que iam ouvir, porque Andrew já os avisara.

E foi ele quem disse:

— Bem, não haverá Natal aqui este ano. Eu vou almoçar a casa da Phyllida. Ela telefonou-me a dizer que não tem tido notícias do meu... do Johnny e que tem horror ao Natal.

— Quem não tem? — disse Colin.

— Oh, Colin — protestou Sophie —, não sejas assim. Colin informou, sem olhar para ninguém:

— Eu vou para casa da Sophie, por causa da mãe dela, que não pode ficar sozinha no dia de Natal.

— Mas eu pensava que eras judia — disse Rose a Sophie.

— Festejámos sempre o Natal — explicou Sophie. — Quando o meu pai era vivo... — Calou-se, a morder os lábios e com os olhos a marejarem-se de lágrimas.

— E a Sylvia vai com a Julia a casa de uma amiga dela — disse Andrew.

— E eu tenciono ignorar completamente o Natal — informou Frances.

— Mas, Frances — protestou Sophie —, isso é horrível, não pode fazer uma coisa dessas.

— Não é horrível. É maravilhoso. E agora, Geoffrey, não achas que devias ir a casa no Natal? Sabes que devias, realmente.

O rosto cortês de Geoffrey, sempre atento ao que podiam esperar dele, sorriu, de acordo.

— Sim, Frances, eu sei. Tem razão, vou a casa. Tanto mais que a minha avó está a morrer — acrescentou, no mesmo tom.

— Nesse caso, eu também vou a casa — decidiu Daniel. O seu cabelo flamejava e o seu rosto tornou-se ainda mais vermelho quando prometeu: — Irei visitar-te.

— Como queiras — respondeu Geoffrey, revelando com as palavras pouco convidativas que talvez tivesse em mente umas férias livres de Daniel.

— James — disse Frances —, vai a casa, por favor.

— Está a pôr-me na rua? — perguntou, bem-humorado. — Não a censuro. Já se fartou de mim?

— Por agora, sim — respondeu ela, que era por natureza incapaz de mandar alguém embora permanentemente. — E a escola, James? Não vais acabar o curso?

— É claro que vai — disse Andrew, revelando assim que já houvera conselhos nesse sentido. Os quatro anos que tinha a mais do que ele outorgavam-lhe esse direito. — É ridículo, James — acrescentou, dirigindo-se directamente ao rapaz. — Falta-te apenas um ano para os exames finais. O esforço não te matará.

— Não conheces a minha escola — replicou James, mas o desespero entrara na equação. — Se conhecesses...

— Qualquer pessoa pode sofrer durante um ano. Ou mesmo três. Ou quatro — disse Andrew, olhando com ar culpado para a mãe: estava a fazer revelações.

— Está bem, rendo-me — respondeu James. — Mas... — olhou para Frances — não creio que possa sobreviver sem a atmosfera libertadora da casa de Frances.

— Podes vir de visita — disse ela. — Há sempre fins-de-semana.

Restavam agora Rose e a misteriosa Jill, a rapariga loura sempre bem penteada, bem lavada e cortês, que quase nunca falava, mas escutava — oh, como escutava!

— Eu não vou a casa — declarou Rose. — Não vou.

— Dás-te conta de que os teus pais podiam processar-me por os privar dos teus afectos... esse tipo de coisas?

— Eles não se importam comigo — declarou Rose. — Estão-se nas tintas.

— Isso não é verdade — protestou Andrew. — Tu podes não gostar deles, mas eles importam-se com certeza contigo. Escreveram-me. Parecem convencidos de que sou uma boa influência.

— Isso é uma anedota.

Trocas de olhares entre os outros insinuaram os meandros existentes por trás desta pequena esgrima de palavras.

— Já disse que não vou — insistiu Rose, lançando olhares encurralados a todos os outros, como se fossem seus inimigos.

— Escuta Rose — disse Frances, esforçando-se por não deixar transparecer na voz a antipatia que tinha pela rapariga —, a Mansão da Liberdade fecha no Natal. — Não especificou por quanto tempo.

— Posso ficar no apartamento da cave, não posso? Não incomodarei ninguém.

— E como vais tu... — começou Frances, mas calou-se. Andrew tinha uma mesada e andara a dar dinheiro a Rose. «Ela podia

alegar que a tratava mal», dissera Andrew. «Bem, ela queixa-se na mesma, diz a toda a gente que a enganei, como o fidalgo rural perverso à jovem leiteira. O problema é que ela estava caída por mim, mas eu não estava por ela.» Frances pensara: Ou caída pelo encantador rapaz de Eton e pelas suas relações? Andrew dissera: «Penso que foi consequência de ter vindo para aqui. Foi uma enorme revelação para ela. Veio de um ambiente muito limitado... os seus pais são muito simpáticos...» «E tu... e Julia... vão mantê-la indefinidamente?» «Não. Eu já disse basta. No fim de contas, ela tirou bom proveito de um beijo ou dois ao luar.»

Mas agora estavam confrontados com uma hóspede que não saía.

Rose dir-se-ia estar a ser ameaçada com a cadeia, com tortura. Um animal encerrado numa jaula demasiado pequena podia ter aquele aspecto, olhar ferozmente para fora e em redor. Era tudo desproporcionado, ridículo... Frances insistiu, embora a violência da rapariga estivesse a acelerar o seu próprio ritmo cardíaco.

— Rose, vai passar o Natal a casa, e pronto. Faz apenas isso. Eles devem estar preocupadíssimos contigo. E precisas de lhes falar a respeito da escola...

Rose saltou da cadeira como se explodisse, berrou: «Oh, merda, só faltava isso...», e saiu da cozinha a correr, em pranto, com as lágrimas a cair. Ouviram-na descer ruidosamente a escada para o apartamento da cave.

— Bolas, que alarido — comentou Geoffrey, sorrindo.

— Mas a escola dela deve ser horrível, para Rose a detestar tanto — comentou Sylvia, que concordara em voltar para a escola enquanto ali vivesse, «com Julia», como dizia. E que sim, se esforçaria e estudaria para médica.

O que enfurecia Rose, o que a consumia com o ácido da inveja, era o facto de Sylvia — «E ela nem sequer é da família, é apenas enteada de Johnny» — estar naquela casa como por direito e Julia pagar as suas despesas. Parecia convencida de que seria justo Julia pagar para ela, Rose, ir para uma escola progressista, e mantê-la ali enquanto ela quisesse.

Colin dissera-lhe: «Julgas que a minha avó é feita de dinheiro? Já é muito para ela acolher a Sylvia, pois além disso também paga as minhas despesas e as do Andrew.» «Não é justo», fora a resposta de Rose. «Não compreendo por que ela há-de ter tudo.»

Agora restava Jill, que não dissera uma palavra. Ao perceber que todos a olhavam, disse:

— Não vou a casa. Mas vou passar o Natal com a minha prima, em Exeter.

Na manhã seguinte, Frances encontrou-a na cozinha, a ferver água para fazer chá. Como na cozinha da cave havia muito de tudo, a sua presença só podia significar que Jill queria uma oportunidade para ter uma conversa.

— Vamo-nos sentar e tomar chá — disse Frances, e sentou-se.

Jill fez o mesmo, na extremidade da mesa. Aquilo não ia, evidentemente, ser como um recontro com Rose. A rapariga observava Frances sem hostilidade, mas triste e séria, e a abraçar-se a si mesma, como se tivesse frio.

— Jill, compreendes que me encontro numa situação impossível, em relação aos teus pais — começou Frances.

— Pensei que ia dizer que não via motivo para me manter. Teria razão. Mas...

— Eu não ia dizer tal coisa. Mas não vês, realmente, que os teus pais devem estar doidos de preocupação?

— Eu disse-lhes onde estava. Disse-lhes que estava aqui.

— Estás a pensar em não voltar para a escola?

- Não vejo que valha a pena continuar.

- Não estava a sair-se bem na escola, mas na St. Joseph's isso não constituía um argumento decisivo.

— E não percebes que devo estar preocupada contigo?

Ao ouvir estas palavras a rapariga pareceu reviver, deixar para trás a fria apreensão, e disse, inclinando-se para a frente:

— Oh, Frances, não, não deve. Isto aqui é tão agradável. Sinto-me tão segura.

— E não te sentes segura em casa?

— Não se trata disso. E que eles... não gostam de mim. — E recolheu-se de novo na sua concha, abraçando-se, esfregando os braços como se tivesse realmente frio.

Frances reparou que nesta manhã Jill pintara grandes linhas pretas à roda dos olhos. Uma novidade, nesta rapariguinha tão arranjada. E trazia um dos vestidos de minissaia de Rose.

Gostaria de a abraçar e apertar a si. Nunca sentira semelhante impulso em relação a Rose: no que tocava a Rose, desejava simplesmente que partisse. Portanto, gostava de Jill, mas não gostava de Rose. E que diferença podia isso fazer, se as tratava exactamente da mesma maneira?

Frances estava sentada sozinha na cozinha, e a mesa que limpara e encerara brilhava como uma lagoa. Tratava-se, na realidade, de uma mesa muito bonita, pensou, agora que podia vê-la. Sem um prato ou um copo, e sem ninguém. Era dia de Natal e ela gritara adeus a Colin e a Sophie, primeiro, ambos vestidos para o almoço de Natal — até Colin, que desprezava roupas. Depois foi Julia, com um fato de veludo cinzento e uma espécie de gorro com uma rosa e um véu azulado. Sylvia usava um vestido que Julia lhe comprara, que fez Frances sentir-se grata por os adeptos dos jeans e T-shirt não o verem: não queria que se rissem de Sylvia, que podia ter ido à igreja há cinquenta anos com aquele vestido azul. Mas recusara-se a pôr um chapéu. A seguir partiu Andrew, para consolar Phyllida. Ele espreitara pela porta, para dizer: «Invejamos-te todos, Frances. Bem, todos menos a Julia, que está preocupada por ficares sozinha. E podes esperar um pequeno presente. Ela sentiu-se acanhada para te dizer.»

Frances estava sentada sozinha. Em todo aquele país, mulheres afa-digavam-se ao fogão, regando com molho milhões de perus, enquanto os pudins de Natal coziam no vapor. Couves-de-bruxelas evolavam eflúvios sulfurosos. Campos inteiros de batatas aninhavam-se à volta das aves. Reinava o mau humor, mas ela, Frances, estava sentada como uma rainha, só. Somente quem conheceu a pressão de adolescentes exuberantes, ou de dependentes emocionais que sugam, e comem, e exigem, pode conhecer o puro prazer de estar livre, nem que seja por uma hora. Frances sentia-se descontrair, todo o seu corpo, era como um balão prestes a flutuar, subir e afastar-se. E a tranquilidade! Noutras casas soava música natalícia, exultante ou ruidosa, mas ali, naquela casa, nem a televisão, nem sequer o rádio... mas, espera... passava-se alguma coisa lá em baixo... seria Rose? No entanto, ela dissera que ia com Jill para casa dos primos desta. A música devia vir da casa ao lado.

Portanto, de modo geral, silêncio. Ela respirava, inalava, exalava... oh, felicidade, não tinha absolutamente nada que a preocupasse, em que pensar, sequer, durante várias horas. A campainha da porta tocou. Levantou-se, a praguejar: um jovem sorridente, vestido de vermelho em honra do Natal, estendeu-lhe, com uma vénia, um tabuleiro envolto em musselina branca, unida no centro e atada com um laço vermelho. «Feliz Natal», desejou ele, e acrescentou «Bon appetit.» E lá foi, a assobiar «Good King Wenceslas».

Frances pôs o tabuleiro no centro da mesa. Trazia um cartão anunciando que vinha de um restaurante fino, do tipo sério, e quando ela abriu o invólucro de musselina encontrou um pequeno banquete e outro cartão: «Com os melhores votos, de Julia.» Os melhores votos. Era sem dúvida por culpa dela, Frances, que Julia não escrevera Com amizade, mas paciência, não ia preocupar-se com isso agora.

Era tudo tão bonito que lhe custava tocar-lhe.

Uma taça de porcelana branca continua uma sopa verde, muito fria, com raspas de gelo, que a sondagem de um dedo demonstrou tratar-se de um misto de untuosidade aveludada e adstringência — o que seria? Azedas? Um prato azul decorado com tiras onduladas de alface verde brilhante, a fingir algas, continha conchas de vieira contendo vieiras fatiadas, com cogumelos. Duas codornizes deitadas ao lado uma da outra num leito de aipo salteado. Ao lado, um cartão recomendava: «Por favor, aquecer durante dez minutos.» Uma pequena sobremesa natalícia feita de chocolate e decorada com azevinho. Um prato de frutos que Frances nunca provara e cujos nomes mal conhecia: groselhas do Cabo, lichias, maracujás, goiabas. Uma fatia de queijo Silton. Garrafinhas de champanhe, borgonha e porto contornavam o banquete. Hoje em dia, não haveria nada de notável na graciosa pequena refeição que prestava homenagem à refeição natalícia que imitava, mas então era um vislumbre de uma visão de campos celestiais, uma andorinha que vinha de visita das plenitudes do futuro. Frances não era capaz de a comer; seria um crime. Sentou-se a admirá-la e pensou que, afinal, Julia devia estimá-la.

Chorou. Chora-se no Natal. É obrigatório. Chorou por causa da bondade da sogra para com ela e com os seus filhos, e por causa do encanto da refeição, da qual se desprendiam convites, e por causa da sua incredulidade perante aquilo a que conseguira sobreviver, e depois, a fundo e sem peias, chorou pelas angústias de natais passados. Oh, meu Deus, aqueles natais em que os rapazes eram pequenos, moravam naqueles quartos horríveis, era tudo tão horrendo e onde muitas vezes tinham frio.

Depois enxugou os olhos e continuou sentada, sozinha. Uma hora, duas horas. Nem uma alma em casa... aquele rádio estava a tocar no andar de baixo, não na casa ao lado, mas ela preferiu ignorá-lo. No fim de contas, podia ter sido deixado ligado, por esquecimento. Quatro horas. As companhias do gás e da electricidade deviam sentir-se aliviadas por, mais uma vez, terem estado à altura do almoço natalício nacional. De Land's End às Orkneys, mulheres cansadas e irritadas deviam estar a sentar-se e a dizer: «Agora lava tu a louça.» Bem, desejava-lhes sorte.

Pessoas passariam pelo sono em poltronas e sofás e o discurso da rainha seria escutado intermitentemente, interrompido pelas consequências da comida em excesso. Começava a escurecer. Frances levantou-se, correu bem os cortinados e acendeu a luz. Voltou a sentar-se. Estava com fome, mas não conseguia arranjar coragem para destruir o bonito banquete. Comeu uma fatia de pão com manteiga. Serviu-se de um copo de Tio Pepe. Em Cuba, Johnny devia estar a arengar, a quem quer que se encontrasse com ele, a respeito de qualquer coisa — a situação na Grã-Bretanha, provavelmente.

Talvez fosse para cima e passasse pelo sono; no fim de contas, raramente tinha essa oportunidade. A porta exterior, de acesso ao átrio, abriu-se, seguida da que dava para a cozinha, e Andrew entrou.

— Estiveste a chorar — disse, sentando-se perto dela.

— Estive, sim. Um pouco. Foi agradável.

— Eu não gosto de chorar. Assusta-me, porque tenho medo de nunca mais parar.

Corou e acrescentou:

— Oh, meu Deus...

— Oh, Andrew. Lamento tanto.

— Porquê? Com os diabos, como podias imaginar...

— Podia ter sido tudo feito de maneira diferente, suponho.

— O quê? O que é que podia? Oh, Deus.

Ele serviu-se de vinho, dobrado sobre si mesmo, de modo não muito diferente do de Jill, dias antes.

— É Natal — disse Frances. — É só isso. O grande provocador de recordações dolorosas.

Ele pareceu afastar esse pensamento, com um gesto de mão que dizia: Chega, não continues. E inclinou-se para a frente para observar o presente de Julia. Como Frances fizera, mergulhou um dedo na sopa e fez uma careta de apreço. Provou uma fatia de vieira.

— Estou a sentir-me uma tremenda hipócrita, Andrew. Mandei toda a gente embora, como bons filhos, mas eu quase nunca ia a casa, depois de a ter deixado. Ia no dia de Natal e vinha-me embora na manhã seguinte, ou até na mesma tarde.

— Pergunto-me se eles, os teus pais, iam passar o Natal a casa.

— Os teus avós.

— Ah, sim, suponho que eram. Foram.

— Não sei. Conheço tão pouco a respeito deles. Havia a guerra, como uma espécie de abismo atravessado na minha vida, e do outro lado essa vida. E agora eles morreram. Quando saí de casa, pensava neles o menos que podia. Não sabia, simplesmente, lidar com eles. E por isso não os via e agora sou dura com a Rose quando ela não quer ir a casa.

— Presumo que não tinhas quinze anos quando saíste de casa?

— Não. Tinha dezoito.

— Então, pronto, estás ilibada.

Este absurdo fê-los rir. Um maravilhoso entendimento: como estava a dar-se bem com o seu filho mais velho. Bem, isso tornara-se realidade desde que ele crescera, o que, na verdade, não fora assim há tanto tempo. Como era agradável, que consolo para...

— E a Julia também não tinha muito o hábito de ir passar o Natal a casa, pois não?

— Como podia, se estava aqui?

— Que idade tinha ela, quando veio para Londres?

— Vinte, suponho.

— O quê? — Ele levantou, efectivamente, as mãos, para cobrir a boca e a parte inferior do rosto, e depois deixou-as cair e disse: — Vinte anos. É a minha idade. E às vezes penso que ainda nem aprendi a dar o laço aos atacadores dos sapatos.

Imaginaram, em silêncio, uma Julia muito jovem.

— Há uma fotografia — disse Frances, a seguir. — Eu vi-a. Uma fotografia de casamento. Ela usava um chapéu tão carregado de flores que mal se lhe via o rosto.

— Sem véu?

— Sem véu.

— Meu Deus, vir para aqui, sozinha, para o meio destes ingleses frios. Como era o avô?

— Não o conheci. Eles não aprovavam muito o Johnny. Nem a mim, evidentemente. — Acrescentou, tentando encontrar razões para a enormidade de tudo aquilo: — Compreendes, era no tempo da guerra fria.

Ele agora apoiava-se nos braços cruzados em cima da mesa, e olhava-a de testa franzida, a tentar compreender.

— A guerra fria — repetiu.

— Meu Deus — disse Frances, estupefacta —, claro, tinha-me esquecido de que os meus pais não aprovavam o Johnny. Escreveram-me até uma carta dizendo que eu era uma inimiga do meu país. Uma traidora... sim, creio que disseram isso. Depois pensaram melhor e vieram ver-me... tu e o Colin eram pequeninos. O Johnny, que estava presente, chamou-lhes proscritos da História. — Pareceu à beira das lágrimas, mas era por causa de recordar o exaspero passado.

Ele arqueou as sobrancelhas, com o rosto a debater-se contra o riso, perdeu a batalha e agitou os braços, como se quisesse sufocá-lo.

— É tão cómico — comentou, tentando desculpar-se.

— Sim, acho que é cómico.

Andrew apoiou a cabeça nos braços, suspirou e ficou assim um longo momento. Por entre os seus braços, ouviram-se as palavras:

— Não creio, simplesmente, possuir a energia para...

— O quê? A energia para quê?

— Onde foste buscá-la, toda essa confiança? Acredita, sou uma coisa muito frágil, em comparação. Talvez seja um proscrito da História?

— A que te referes?

Andrew levantou o rosto. Estava vermelho e molhado de lágrimas.

— Bem, deixa lá. — Agitou de novo as mãos, a dispersar maus pensamentos. — Sabes, está-me a apetecer um pouco do teu banquete.

— Não comeste o almoço de Natal?

— A Phyllida estava uma desgraça. Chorava, gritava e desmaiava, sucessivamente. Sabes, ela é realmente louca. Estou a falar a sério.

— Bem sei.

— A Julia diz que é por a terem mandado — à Phyllida — para o Canadá, no início da guerra. Aparentemente sentiu-se infeliz, não era uma família muito simpática. E ela detestava aquilo tudo. Quando voltou vinha transformada num problema, diziam os pais dela. Mal se reconheciam uns aos outros. Ela tinha dez anos quando partiu e quase quinze quando regressou.

— Nesse caso, faço ideia, pobre Phyllida.

— Também acho. E olha o que lhe saiu na rifa, com o camarada Johnny. — Puxou o tabuleiro para perto de si, levantou-se para ir buscar uma colher, uma faca e um garfo, sentou-se e acabara de mergulhar a colher na sopa quando a porta exterior bateu e a que ficava atrás deles se abriu ruidosamente e Colin entrou, trazendo consigo ar frio, uma sensação da escuridão exterior e, como uma acusação contra ambos, o seu rosto infeliz.

— Estou a ver comida? Comida a sério?

Sentou-se e, usando a colher que Andrew acabara de trazer, começou pela sopa.

— Não comeste o teu almoço de Natal?

— Não. A mãe de Sophie armou-se em judia ferrenha com ela e perguntou-lhe o que tinha a ver com o Natal. Mas elas sempre festejaram o Natal. — Entretanto, acabara de comer a sopa. — Por que é que não cozinhas assim? — perguntou, acusador, a Frances. — Isto, sim, é sopa.

— Quantas codornizes achas que eu teria de cozinhar para cada um de vocês, com o apetite que têm?

— Aguenta aí um momento — disse Andrew. — Vamos repartir. — Trouxe um prato para a mesa, e depois outro para Colin, assim como outra faca e outro garfo. Passou uma codorniz para o seu prato.

— Isso deve ser aquecido durante dez minutos — avisou Frances.

— Quero lá saber. Delicioso.

Estavam a competir um com o outro, para ver quem comia primeiro. E, chegados ao fim das codornizes, as suas colheres pairaram juntas sobre a sobremesa, que desapareceu em duas colheradas.

— Não há pudim de Natal? — perguntou Colin. — Não há pudim de Natal no Natal?

Frances levantou-se, foi buscar uma lata de pudim de Natal à prateleira alta onde estivera a amadurecer serenamente, e pô-lo num instante no fogão, em banho-maria.

— Quanto tempo demora isso? — perguntou Colin.

— Uma hora.

Pôs na mesa fatias de pão e depois manteiga, queijo e pratos. Eles despacharam o Stilton e começaram a comer a sério, com o vandalizado tabuleiro posto de parte.

— Mãe, temos de pedir à Sophie que venha viver aqui — disse Colin.

— Mas ela já vive praticamente aqui.

— Não... refiro-me a como deve ser. Não tem nada que ver comigo... isto é, não estou a dizer que a Sophie e eu estamos firmes, não se trata disso. Ela não pode continuar em casa. Não fazes ideia de como a mãe dela é. Chora, agarra a filha e diz que têm de saltar de uma ponte juntas, ou tomar veneno. Já imaginaste o que é viver assim? — Era como se estivesse a acusar Frances, mas, ao aperceber-se disso, acrescentou de modo diferente, quase como se se desculpasse: — Se pudesses sentir o que é aquela casa... é como entrar no Inferno.

— Sabes como eu gosto da Sophie. Mas, sinceramente, não estou a vê-la ir lá para baixo, para a cave, e partilhá-la com a Rose e quem quer que possa aparecer. Presumo que não esperas que ela se mude para o teu quarto?

— Bem... não, não é... essa não é a questão. Mas ela podia acampar na sala, que praticamente nunca usamos.

— Se rompeste com a Sophie, tenho a tua permissão para tentar a minha sorte? — perguntou Andrew. — Estou loucamente apaixonado por ela, como toda a gente deve saber.

— Eu não disse...

Então os dois jovens regrediram ao modo colegial e começaram a empurrar-se um ao outro, cotovelo com cotovelo, joelho com joelho.

— Feliz Natal — disse Frances, e eles desistiram.

— Por falar da Rose, onde está ela? — perguntou Andrew. — Foi a casa?

— É claro que não — respondeu Colin. — Está lá em baixo, alternando entre soluçar de partir o coração e pintar-se.

— Como sabes? — perguntou Andrew.

— Esqueces as vantagens de uma escola progressista. Sei tudo a respeito de mulheres.

— Quem me dera saber, também. Embora a minha educação seja em todos os aspectos melhor do que a tua, estou constantemente a falhar no relacionamento humano.

— Estás a sair-te muito bem com a Sylvia — lembrou Frances.

— Pois sim, mas ela não é uma mulher, pois não? É mais o fantasma de uma menina pequena que alguém assassinou.

— Isso é horrível — protestou Frances.

— Mas muito verdadeiro — disse Colin.

— Se a Rose está realmente lá em baixo, suponho que o melhor será chamá-la — sugeriu Frances.

— Tem mesmo de ser? — perguntou Andrew. — É tão agradável estar en famille, para variar.

— Vou chamá-la, caso contrário toma uma overdose e depois diz que a culpa foi nossa — disse Colin.

Levantou-se rapidamente e foi pela escada abaixo. Os dois que ficaram não disseram nada, limitaram-se a olhar um para o outro enquanto ouviam o lamento vindo de baixo, presumivelmente de boas-vindas, e a voz sensata de Colin. Depois Rose subiu, empurrada pelo rapaz.

Vinha fortemente maquilhada, com os olhos realçados com lápis preto, pestanas pretas postiças e sombra arroxeada. Estava furiosa, acusadora, suplicante e, é claro, à beira das lágrimas.

— Há pudim de Natal, daqui a pouco.

Mas Rose vira a fruta no tabuleiro e começou a debicá-la.

— O que é isto? — perguntou, agressivamente. — O que é isto? — Levantou uma lichia.

— Já deves ter provado isso, depois de uma refeição chinesa, como sobremesa — explicou Andrew.

— Que refeição chinesa? Eu nunca como refeições chinesas.

— Deixa ver — disse Colin, e descascou a lichia, retirou os fragmentos quebradiços da pele delicadamente entalhada expondo o luminoso fruto cor de pérola, qual pequenino ovo lua, e, depois de lhe retirar o caroço preto e reluzente, estendeu-o a Rose, que o engoliu inteiro e comentou:

— Não é nada de especial, não vale o trabalho que dá.

— Devias tê-la deixado repousar na tua língua, devias ter deixado a sua interioridade falar à tua interioridade — explicou Colin. Mostrava a sua expressão de mocho e parecia um aprendiz de juiz a quem faltava apenas a peruca, enquanto abria outra lichia e a estendia delicadamente a Rose, entre o indicador e o polegar. Ela manteve-a na boca, como uma criança que se recusa a engolir.

— É uma aldrabice — declarou, quando finalmente engoliu. Acto contínuo, os dois irmãos puxaram o prato de frutos para eles

e dividiram-nos entre si. Rose abriu a boca, de olhos fixos, e pareceu que ia realmente chorar.

— Ohhhhh! — lamuriou —, vocês são horríveis. Não tenho culpa de nunca ter comido uma refeição chinesa.

— Bem, vais comer pudim de Natal, já a seguir — disse-lhe Frances.

— Tenho tanta fome — choramingou Rose.

— Nesse caso, come pão com queijo.

— Pão com queijo no Natal?

— Foi o que eu comi — respondeu Frances. — E agora cala a

boca, Rose.

Rose parou a meio de um lamento, olhou incredulamente para Frances e permitiu-se manifestar toda a escala de tiques de adolescente incompreendida: olhos chispantes, beicinho e peito a arquejar.

Andrew cortou uma fatia de pão, barrou-a fartamente de manteiga e depois de queijo.

— Toma — disse-lhe.

— Engordo, com tanta manteiga.

Andrew retirou a oferta e começou a comê-la ele próprio. Rose ofegava, de indignação e lágrimas. Ninguém olhava para ela. Depois pegou no pão, cortou uma fatia fina, barrou-a com um pouco de manteiga e cobriu com algumas migalhas de queijo. Mas, em vez de comer, ficou a olhar para o pão: Olhem para o meu jantar de Natal.

— Vou cantar um cântico de Natal, para ajudar a passar o tempo antes do pudim — disse Andrew.

Começou a cantar «Noite de Paz», mas Colin interrompeu-o:

— Cala-te, Andrew, isso é mais do que posso suportar, palavra que é.

— O pudim já deve estar comestível — anunciou Frances.

A grande massa escura e reluzente do pudim foi colocada num prato azul muito bonito. Ela pôs na mesa pratos e colheres e deitou mais vinho. Espetou o raminho de azevinho da oferta de Julia no pudim e foi buscar uma lata de custarda.

Comeram.

Pouco depois o telefone tocou. Era Sophie, em lágrimas, e por isso Colin subiu ao andar de cima para falar com ela, demoradamente, muito demoradamente. Quando regressou, disse que voltava para casa de Sophie e passaria lá a noite; a pobre rapariga não podia suportar aquilo sozinha. Ou talvez a trouxesse para ali.

Depois ouviram um táxi no exterior e Sylvia entrou, corada e sorridente, uma rapariga bonita: quem poderia acreditar que tal era possível, poucas semanas antes? Fez-lhes uma vénia, no seu vestido de boa menina, ao mesmo tempo satisfeita e divertida com a gola e os punhos de renda e os bordados. Julia entrou atrás dela.

— Oh, Julia, sente-se, por favor — convidou Frances.

Mas ela vira Rose, que parecia um palhaço agora que as lágrimas lhe tinham borrado a pintura e estava a atulhar-se de pudim.

— Fica para outra ocasião.

Percebeu-se que Sylvia gostaria de ter ficado com Andrew, mas subiu atrás de Julia.

— Que vestido estúpido — comentou Rose.

— Tens razão — concordou Andrew. — Não é nada o teu estilo.

Depois Frances lembrou-se de que não agradecera a Julia e, envergonhada consigo mesma, correu pela escada acima. Alcançou-a no último patamar. Agora abraçá-la-ia. Poria simplesmente os braços à volta daquela mulher idosa, rígida e crítica e beijá-la-ia. Não conseguiu. Os seus braços recusaram-se simplesmente a erguer-se, não se estenderam para abraçar Julia.

— Obrigada — agradeceu. — Foi um gesto adorável. Não imagina o bem que me fez...

— Ainda bem que gostou — disse Julia, voltando-se para transpor a sua porta, e Frances acrescentou atrás dela, sentindo-se insignificante e ridícula:

— Obrigada, muito obrigada.

Sylvia não tinha dificuldade alguma em beijar Julia, deixava-se beijar e abraçar por ela e até se sentava nos seus joelhos.

Era Maio e as janelas estavam abertas para um bonito entardecer de Primavera, com os pássaros a cantar mais alto do que o barulho do trânsito. Uma chuva ligeira brilhava nas folhas e nas flores primaveris.

O grupo sentado à roda da mesa parecia o coro de um musical, pois usavam todos túnicas com riscas horizontais brancas e azuis sobre malhas pretas, justas. Frances usava riscas pretas e brancas, na esperança de que isso pudesse servir para afirmar uma diferença. Os rapazes usavam as mesmas riscas sobre jeans. O cabelo chegava-lhes, tinha de chegar-lhes, bem abaixo das orelhas, numa afirmação da sua independência, enquanto todas as raparigas tinham cortes de cabelo à Evansky. Um corte de cabelo à Evansky era o desejo do fundo do coração de todas as raparigas in, e tinham-no conseguido — às boas ou, muito provavelmente, às más. O estilo situava-se entre o corte à gar-çonne dos anos 20 e o aparado, com uma franja até às sobrancelhas. Liso, escusado seria dizer. O cabelo encaracolado estava out. Até o cabelo de Rose, aquela massa preta encrespada, estava à Evansky. Cabecinhas bem arranjadas, rapariguinhas jeitosinhas e sabidinhas, coisinhas fofas, e os rapazes quais póneis hirsutos, e todos eles com as riscas azuis e brancas inspiradas nas camisolas de marinheiros e a condizer com as canecas azuis e brancas que usavam para o pequeno-almoço. Quando o geist fala, o zeit deve obedecer. Estavam ali as raparigas e os rapazes da revolução sexual, embora ainda não soubessem que seria por isso que ficariam famosos.

Havia uma excepção ao obrigatório Evansky, em tudo tão forte como o da Vidal Sassoon. Mrs. Evansky, uma senhora decidida, recusara-se a cortar o cabelo de Sophie. Colocara-se atrás da rapariga, erguendo aquelas acetinadas massas negras, deixando-as escorregar por entre os dedos, e depois sentenciara: «Lamento, mas não posso cortá-lo.» E, perante os protestos de Sophie, acrescentara: «Além disso, tem um rosto comprido. Não a beneficiaria em nada.» Sophie ficara sentada, sentindo-se excluída, rejeitada, e depois Mrs. Evansky dissera: «Vá-se embora e pense no assunto, e se insistir... mas cortar isto matar-me-ia de pena.»

E por isso, única entre as raparigas, Sophie mantinha intactas as brilhantes madeixas negras e sentia-se uma espécie de aleijão.

O carrossel do tempo girara sem parar durante quatro meses. Mas o que eram quatro meses? Nada e, no entanto, tudo mudara.

Primeiro, Sylvia. Também ela alcançara a uniformidade plena. O seu corte de cabelo, suplicado a Julia, não lhe ficava realmente bem, mas todos sabiam que era importante para ela sentir-se normal e como os outros. Comia, ainda que não bem, e obedecia em tudo a Julia. A mulher idosa e a rapariguinha muito jovem passavam horas juntas na sala de Julia, enquanto esta lhe preparava pequenos mimos, lhe dava chocolates que lhe tinham sido oferecidos pelo seu admirador Wilhelm Stein e lhe contava histórias da Alemanha de antes da guerra — da Alemanha de antes da Primeira Guerra Mundial. Uma vez, Sylvia perguntara, delicadamente, por que preferiria morrer a magoar Julia; «Então nunca acontecia nada de mau?» Julia ficara estupefacta, mas depois rira-se. «Não vou admiti-lo, mesmo que tenham acontecido coisas más.» Mas, sinceramente, não conseguia lembrar-se de coisas más. A sua mocidade parecia-lhe, naquela casa cheia de música e gente amável, um paraíso. E havia alguma coisa semelhante agora, em algum lado?

Andrew prometera à mãe e à avó que no Outono iria para Cambridge, mas entretanto quase não saía de casa. Preguiçava por ali, lia e fumava no seu quarto. Sylvia visitava-o, depois de bater formalmente à porta, arrumava-lhe o quarto e ralhava-lhe. «Se eu consigo, tu também consegues.» Referia-se, agora, a fumar erva. Para ela, que se desmoronara tão terrivelmente, e se refizera com tamanha dificuldade, tudo era uma ameaça: o álcool, o tabaco, a erva, vozes altas e pessoas a discutir faziam-na meter-se na cama, tapar a cabeça e enfiar os dedos nos ouvidos. Frequentava a escola e já estava a sair-se bem. Julia sentava-se com ela a fazer os trabalhos de casa, todas as noites.

Geoffrey, que era inteligente, teria bons resultados nos exames e depois iria para a London School of Ecomomics para estudar — está claro — Política e Economia. Dizia que não perderia tempo com Filosofia. Daniel, a sua sombra, dizia que também iria para a LSE e faria o mesmo curso.

Jill fizera um aborto e estava no seu lugar habitual, tendo aparentemente saído incólume da aventura. O impressionante era que «os miúdos» tinham resolvido tudo sem os adultos. Nem Frances nem Julia tinham sido informadas, e Andrew tão-pouco, pois parecia ser também considerado adulto e um possível inimigo. Fora Colin quem procurara os pais da rapariga — ela tivera medo de ir — e lhes dissera que Jill estava grávida. Eles estavam convencidos de que Colin era o pai e recusaram-se a aceitar os seus desmentidos. Quem era? Ninguém sabia, ou jamais saberia, embora Geoffrey fosse acusado: por ser tão bonito, era sempre tido por culpado de corações despedaçados e promessas não cumpridas.

Colin obteve dos pais de Jill o dinheiro para o aborto e procurou o médico de família, que finalmente sugeriu um número de telefone adequado. Depois, quando Jill estava de novo em segurança no piso da cave, Julia, Frances e Andrew foram informados. Mas os pais disseram que Jill não podia voltar à St. Joseph's, se lá podiam acontecer coisas daquele género.

Sophie e Colin tinham-se separado. Sophie, que jamais na sua vida faria alguma coisa pela metade, fora demais para Colin: amava-o de morte, ou pelo menos de uma maneira que tinha algo de doentio. «Vai-te embora», tinha-lhe ele gritado, finalmente, «deixa-me em paz.» E recusou-se a sair do quarto durante vários dias. Depois foi a casa de Sophie e pediu desculpa, disse que o culpado era ele, que estava apenas «um pouco baralhado», e pediu «por favor volta para a nossa casa, por favor, por favor, sentimos todos a tua falta, e a Frances pergunta constantemente "Onde está a Sophie?"»... E quando a rapariga voltou desfez-se em desculpas, como se fosse a culpada, e Frances abraçou-a e disse-lhe: «Sophie, tu e o Colin são uma coisa, mas vires aqui quando te apetecer é outra.»

Aos fins-de-semana Sophie vinha a Londres com o contingente da St. Joseph's, passava as noites de sexta-feira com eles e ia a casa ficar com a sua mãe, que afirmava estar melhor. «Embora não pareça. Arrasta-se por ali e tem um ar horrível.» A depressão, e muito menos a depressão clínica, ainda não tinha entrado no vocabulário geral nem no consciente. As pessoas ainda diziam: «Oh, estou tão deprimida», com o significado de que estavam de mau humor. Sophie, uma boa filha na medida em que podia suportá-lo, ia passar as noites de sábado a casa, mas não estava lá durante o dia. Ao jantar de sábado e domingo estava no seu lugar à grande mesa.

Acontecera-lhe uma coisa maravilhosa. Descia muitas vezes a encosta para Primrose Hill e depois atravessava Regent's Park, para receber lições de canto e dança. Aí, numa clareira arrelvada cheia de canteiros de flores, há uma estátua de uma jovem mulher com uma cabra, chamada «Protectora dos Indefesos». Aquela rapariga de pedra atraía Sophie, que deu consigo a deixar uma folha no pedestal, depois uma flor e depois um raminho de flores. A breve trecho estava a levar um biscoito e a recuar para observar pardais, ou um melro, a voarem para os pés da estátua e levarem as migalhas. Uma vez, pôs uma coroa de flores na cabeça da pequena cabra. Até que um dia encontrou no pedestal um livrinho chamado A Linguagem das Flores e, preso a ele por uma fita, um raminho de lilases e rosas vermelhas. Não viu ninguém ali perto, apenas algumas pessoas a passear no jardim. Assustou-se, ao compreender que tinha sido observada. Contou a história à mesa do jantar, rindo de si mesma por causa do seu amor pela rapariga de pedra, e mostrou A Linguagem das Flores, que passou de mão em mão para todos verem. O lilás significava Primeiras Emoções de Amor, e uma rosa vermelha significava Amor. - — Não lhe vais responder, pois não? — perguntou Rose, furiosa.

— Adorável Rose — respondeu Colin —, é claro que vai.

E deram todos uma vista de olhos ao livro, para tentarem compor uma mensagem adequada. No entanto, o que Sophie queria dizer era: «Sim, estou interessada, mas não tiro conclusões precipitadas.» Nada no livro parecia adequado para isso. Por fim decidiram-se todos por campânulas brancas, para Esperança — mas cuja época já passara — e pervincas, Amizade Nascente. Sophie disse ter a impressão de que havia algumas no jardim da sua mãe. E que mais?

— Oh, vai a fundo — encorajou Geoffrey. — Vive perigosamente. Lírio do vale, que significa Regresso da Felicidade. E flox, Consentimento.

Sophie pôs o raminho no pedestal, deixou-se ficar um bocado; depois foi-se embora, voltou e verificou que as flores tinham desaparecido. Mas podiam ter sido levadas por qualquer outra pessoa, não podiam? Não, porque quando lá voltou no dia seguinte encontrou um homem novo, que disse andar a observá-la «há séculos», mas cuja timidez não lhe permitira abordá-la sem a linguagem das flores. Uma história bem achada, pois ele não tinha nada de tímido. Era actor e estudava na Academia, para onde ela tencionava entrar no Outono. Chamava-se Roland Shattock, tinha uma beleza descarnada, era teatral em tudo e uma espécie de trotskista. Comparecia com frequência à mesa do jantar e estava lá esta noite. Mais velho do que os outros, até mesmo um ano mais velho do que Andrew, apresentava um ar de conhecedor do mundo e usava um casaco de camurça tingido de violeta e com franjas, e a sua presença era sentida como uma visita do mundo adulto e uma espécie de bilhete de entrada nele. Se ele não os olhava como «miúdos», então... Nunca lhes passou pelas idealistas cabeças que pudesse precisar a miúde de uma boa refeição.

Quando Roland estava presente, Colin tinha tendência para se manter calado e subir cedo, sobretudo se Johnny aparecia, pois as discussões entre o jovem trotskista e o velho estalinista eram ruidosas e violentas, e muitas vezes desagradáveis. Sylvia também fugia para cima e ia ter com Julia.

Johnny estivera em Cuba e arranjara maneira de fazer um pequeno filme. «Mas receio que não renda muito dinheiro, Frances.» Entretanto, fora visitar a Zâmbia independente, com o camarada Mo.

Quanto a Rose, houve dificuldades constantes, quase todos os dias dos quatro meses. Não voltaria para a sua escola, e também não voltaria para casa. Estava disposta a ir para a St. Joseph's, se pudesse ter esta casa aqui como base. Andrew viajou, para visitar de novo os pais dela. Eles estavam convencidos de que aquele jovem encantador, e com um ar tão classe superior, tinha planos para a sua filha, o que tornou mais fácil concordarem, não com a St. Joseph's, que estava além dos seus meios, mas com uma escola diurna em Londres. Pagariam as despesas da escola e dar-lhe-iam uma mesada para as roupas, mas não pagariam o seu alojamento e manutenção. Deram a entender que era responsabilidade de Andrew pagar essas despesas. Ou seja, na realidade, de Frances.

Talvez fosse possível pedir-lhe para fazer alguma coisa em troca, como serviços domésticos, pois havia sempre problemas para manter a casa limpa, apesar da ajuda da Mrs. Philby de Julia, que nunca fazia mais do que passar o aspirador pelo chão. «Não sejas idiota», respondeu Andrew. «Consegues imaginar a Rose a levantar um dedo?»

Foi arranjada em Londres uma escola do tipo progressista, e Rose concordou com tudo. «Se ela pudesse ficar aqui, não haveria nenhum problema.» Depois Andrew foi ter com Frances para lhe dizer que havia um problema, e dos grandes. Rose estava com medo de contar a Frances. E Jill também estava metida na encrenca. As raparigas tinham sido apanhadas no metro sem bilhete, e era a terceira vez que isso acontecia a ambas. Foram intimadas a comparecer perante o funcionário da delinquência juvenil, no gabinete da Polícia dos Transportes. Haveria com certeza multas a pagar e o reformatório de Borstal era uma possibilidade real. Frances estava demasiado furiosa, na sua maneira por demais familiar, com Rose — uma emoção surda e desanimadora, semelhante a indigestão crónica — para a confrontar e, por isso, pediu a Andrew que dissesse às raparigas que as acompanharia à entrevista. Quando desceu, na manhã indicada, encontrou as duas mal-humoradas jovens unidas no ódio pelo mundo, a fumar na cozinha. Pareciam pandas, com a sua pintura branca nos olhos envoltos em círculos pretos e as unhas pintadas de preto. Traziam vestidos com minissaia da Bibas — roubados, evidentemente. Não podiam ter escolhido uma aparência mais adequada para predispor a autoridade contra elas.

— Se querem realmente safar-se apenas com uma reprimenda, aconselho-as a lavarem a cara — disse Frances, perguntando-se se elas estariam decididas a dificultar as coisas o mais possível, ou até se acalentariam ambições de serem enviadas para Borstal. É claro que isso seria muito bem feito para ela: uma pessoa não se coloca na situação de in loco parentis sem se arriscar a, em determinada altura, receber o castigo reservado de facto aos pais delinquentes.

— Não vejo por que hei-de fazer isso — respondeu imediatamente Rose.

Frances aguardou, curiosa, a resposta de Jill. Aquela rapariga que inicialmente fora sossegada, boa e submissa, capaz de passar um serão inteiro sem dizer nada, sorrindo apenas, tornara-se quase irreconhecível por trás da sua pintura e da sua cólera.

Pegando na deixa de Rose, declarou:

— Eu também não vejo porquê.

Foram de metro. Frances comprou bilhetes para todas e reparou nos sorrisos sarcásticos das duas. Em breve estavam no gabinete onde os borlistas juvenis defrontavam a sua sorte na pessoa de Mrs. Kent, que vestia uma uniforme azul-marinho do tipo genérico, que lhe outorgava a majestade da autoridade. O seu rosto era, no entanto, bondoso, apesar do ar severo, para inspirar respeito.

— Sentem-se, por favor — convidou.

Frances sentou-se a um lado, enquanto as raparigas, que se mantiveram de pé, como cavalos teimosos, tempo suficiente para tornarem claro o que pensavam daquilo tudo, se deixaram cair de uma maneira que pretendia dar a entender que tinham sido forçadas.

— É muito simples — disse Mrs. Kent, embora o seu suspiro, decerto inconsciente, denotasse o contrário. — Foram ambas advertidas duas vezes. Sabiam que a terceira seria a última. Eu podia mandá-las para o magistrado e ele decidiria se devia colocá-las sob tutela ou não. No entanto se me derem garantias de bom comportamento escapam com uma multa, mas os vossos pais ou o vosso tutor terão de se responsabilizar por vocês.

Dizia isto, ou algo parecido com isto, tantas vezes que a sua esferográfica denunciava cansaço e exaspero enquanto ia fazendo rabiscos num bloco de apontamentos. Quando terminou, sorriu a Frances.

— É progenitora de alguma destas duas raparigas?

— Não, não sou.

— Tutora? Com algum poder legal?

— Não, mas elas vivem comigo... na nossa casa, e irão para a escola a partir de lá. — Embora soubesse que Rose iria, quanto a Jill não sabia e, por isso, estava a mentir.

Mrs. Kent olhava demoradamente para as raparigas, que estavam sentadas com ar amuado, afastadas uma da outra, com as pernas afastadas cruzadas alto e os joelhos levantados, mostrando os collants pretos até ao entrepernas. Frances notou que Jill tremia: nunca imaginaria que aquela rapariga calma fosse capaz disso.

— Posso falar consigo em particular? — perguntou Mrs. Kent a Frances, e depois levantou-se e disse às raparigas: — Não nos demoramos nada.

Conduziu Frances à porta e levou-a para uma pequena sala, que era sem dúvida o seu refúgio da tensão das entrevistas. Foi até à janela, e Frances seguiu-a. Olharam para baixo, para um pequeno jardim onde dois namorados lambiam o mesmo cone de gelado.

— Gostei do seu artigo sobre Criminalidade Juvenil. Recortei-o.

— Obrigada.

— Não percebo por que motivo procedem assim. Compreendemos quando são miúdos pobres e até temos uma política de clemência quando se trata de casos difíceis, mas eles apresentam-se aqui, rapazes e raparigas, vestidos à moda, e eu não entendo. Um deles, disse-me outro dia — e andava numa boa escola, note — que não pagar passagens nos transportes era uma questão de princípio. Quando lhe perguntei de que princípio se tratava, respondeu-me que era marxista. Queria destruir o capitalismo, acrescentou.

— Isso parece-me familiar...

— Que tipo de garantia me pode dar de que não terei de novo aquelas raparigas à minha frente daqui a uma semana, mais ou menos?

— Não posso dar nenhuma garantia. Andam ambas a discutir com os pais e vieram-me parar às mãos. Abandonaram as duas a escola, mas espero que voltem.

— Compreendo. Um amigo do meu filho — amigo da escola — passa mais tempo connosco do que em casa.

— Ele diz que os pais são uma merda?

— Diz que não o compreendem. Mas eu também não o compreendo. Teve de fazer muita pesquisa para o seu artigo?

— Um bom bocado.

— Mas não apresentou nenhumas soluções.

— Não conheço as soluções. Sabe explicar-me por que motivo uma rapariga — refiro-me à morena, que está lá dentro, Rose Trimble — que acaba de ver todas as suas dificuldades solucionadas escolheria precisamente este momento para fazer uma coisa que sabe poder estragar tudo?

— Eu chamo-lhe caminhar no arame — disse Mrs. Kent. — Gostam de desafiar os limites. Caminham na corda bamba, mas esperam que alguém os apanhe. E você está a apanhá-los, não está?

— Suponho que sim.

— Ficaria surpreendida se soubesse quantas vezes ouço a mesma história.

As duas mulheres estavam junto uma da outra, à janela, ligadas por uma espécie de desespero.

— Gostava de saber o que se está a passar — disse Mrs. Kent.

— Todos gostaríamos.

Voltaram para o gabinete, onde as raparigas, que tinham estado a dar gargalhadinhas e a rir à custa das duas mulheres mais velhas, reataram o silêncio e o ar amuado.

— Vou dar-lhes outra oportunidade — anunciou Mrs. Kent. — Mrs. Lennox disse que as ajudará. Mas na realidade estou a exceder as minhas instruções; espero que compreendam ambas que escaparam por uma margem muito estreita. Podem considerar-se afortunadas por terem uma amiga como Mrs. Lennox. — Esta última observação foi um erro, mas Mrs. Kent não podia adivinhar isso. Frances ouviu positivamente o fervilhar de ressentimento das raparigas — pelo menos de Rose — que não suportavam dever alguma coisa a alguém.

Fora do edifício, no passeio, disseram que iam às compras.

— Se eu lhes dissesse que não roubassem nas lojas dar-me-iam ouvidos? — perguntou Frances.

Mas elas afastaram-se sem a olhar.

Nessa noite, ao jantar, anunciaram que tinham fanado os dois vestidos Biba, ou do tipo Biba, que usavam, ambos tão curtos que só podiam ter sido escolhidos com a intenção de escandalizar ou provocar críticas.

E Sylvia disse que os achava curtos demais, num esforço para se afirmar que lhe deve ter custado muito.

— Curtos demais para quê? — zombou Rose.

Não olhara uma única vez para Frances, toda a noite, como se a crise daquela manhã nunca tivesse acontecido. Mas Jill disse, num murmúrio apressado que combinava delicadeza com agressão:

— Obrigada, Frances, mil agradecimentos.

Andrew disse às raparigas que se podiam considerar cheias de sorte por se terem safado, e Geoffrey, o emérito ladrão de lojas, disse-lhes que era fácil não se ser apanhado desde que se tivesse cuidado.

— No metro não se pode ter cuidado — disse Daniel, que não comprava bilhetes, para emular o seu ídolo, Geoffrey. — No metro é preciso ter sorte. Ou és apanhado ou não és.

— Nesse caso, não viajes no metro sem bilhete — replicou Geoffrey. — Não mais de duas vezes. É estúpido.

Publicamente criticado por Geoffrey, Daniel corou e disse que viajara «anos» no metro sem bilhete e só fora apanhado duas vezes.

— E a terceira vez? — perguntou Geoffrey, a instrui-lo.

— A terceira vez teve azar — gritou o grupo em coro.

Essa foi a semana em que Jill se permitiu engravidar — ou melhor, fez por isso.

Todos aqueles dramas se tinham desenrolado nos quatro meses a seguir ao Natal e, como se nada tivesse acontecido, ali estavam os protagonistas, ali estavam os rapazes e as raparigas, sentados à volta da mesa, a fazer planos para o Verão naquele anoitecer primaveril.

Geoffrey anunciou que iria para os Estados Unidos e se juntaria aos lutadores pela igualdade racial «nas barricadas». Uma experiência útil para a Política e Economia na LSE.

Andrew disse ficaria ali e leria.

— Não The Ordeal of Richard Feverel — disse Rose. — Que chatice.

— Também isso — respondeu Andrew.

Sylvia, convidada para ir com Jill para casa dos seus primos em Exeter («É um lugar porreiro, eles têm cavalos»), respondeu que não, que ficaria ali e leria, também.

«Julia diz que devo ler mais. Li alguns dos livros do Johnny. Vocês não vão acreditar, mas enquanto não vim para esta casa não sabia que havia livros que não eram sobre política.»

Isto significava, e toda a gente o sabia, que Sylvia não podia separar-se de Julia: sentia-se demasiado frágil para ficar por sua conta.

Colin disse que talvez fosse vindimar uvas para França, ou talvez experimentasse escrever um romance: a última hipótese provocou um gemido colectivo.

— Por que não há-de ele escrever um romance? — perguntou Sophie, que tomava sempre o partido de Colin, por ele a ter magoado tão terrivelmente.

— Talvez escreva um romance acerca da St. Josephs — continuou ele. — Porei lá todos nós.

— Isso não é justo — apressou-se a protestar Rose. — A mim não me podes pôr, porque não ando na St. Joseph's

— Isso é a pura verdade — comentou Andrew.

— Ou talvez possa escrever um romance a teu respeito — disse Colin. — «As Atribulações de uma Rosa». Que tal?

Rose fitou-o e depois olhou desconfiadamente em redor. Olhavam-na todos solenemente. Provocar Rose tornara-se um desporto demasiado frequente, e Frances tentou acalmar as coisas, pois adivinhava lágrimas, perguntando:

— E quais são os teus planos, Rose?

— Vou ficar com a prima da Jill. Ou posso ir à boleia a Devon. Ou ficar aqui — acrescentou, desafiando Frances. Sabia que Frances ficaria satisfeita se ela partisse, mas não atribuía isso a qualquer má qualidade sua. Não sabia que era antipática. Habitualmente antipatizavam com ela, mas pensava que tal se devia à injustiça geral do mundo — e com certeza não teria usado a palavra antipatizar ou pensado sequer nela: as pessoas embirravam com ela, vingavam-se nela das suas chatices. Pessoas que eram amáveis, ou bonitas, ou encantadoras, ou as três coisas ao mesmo tempo; pessoas que confiavam noutras nunca faziam a mínima ideia dos pequenos infernos habitados por alguém como Rose.

James disse que ia para um acampamento de Verão recomendado por Johnny, a fim de estudar a senescência do capitalismo e as contradições internas do imperialismo.

Daniel disse tristemente que lhe parecia que teria de ir para casa, ao que Geoffrey respondeu bondosamente:

— Não te importes, o Verão não dura para sempre.

— Isso é que dura — lamentou-se Daniel, com o rosto vermelho de sofrimento.

Roland Shattock disse que ia levar Sophie numa excursão a pé pela Cornualha. Notando expressões de apreensão em certos rostos — no de Frances, no de Andrew —, acrescentou:

— Oh, não entrem em pânico, ela estará em segurança comigo. Creio que sou homossexual.

A declaração, que hoje seria acolhida apenas com qualquer coisa no género de «Sério?», ou talvez com suspiros da parte das mulheres, foi, então, demasiado casual para ser judiciosa e provocou um mal-estar geral.

Sophie gritou imediatamente que não se importava com isso, que gostava apenas de estar com Roland. Andrew parecia delicadamente pesaroso e quase se conseguia ouvi-lo pensar que ele não era maricas.

— Bem, talvez não seja — emendou Roland. — No fim de contas, Sophie, sou doido por ti. Mas não tenha medo, Frances. Não sou homem para raptar menores.

— Eu tenho quase dezasseis anos — lembrou Sophie, indignada.

— Pensei que eras muito mais velha, quando te vi sonhar tão maravilhosamente no jardim.

— Eu sou muito mais velha — afirmou ela, e era verdade, pois referia-se à doença da mãe, à morte do pai e ao modo como Colin a maltratara.

— Bela sonhadora — disse Roland, beijando-lhe a mão, mas numa paródia do beija-mão continental que saúda o ar por cima de uma luva, ou, neste caso, nós de dedos sempre rescendendo ligeiramente ao guisado de frango que estivera a mexer, para ajudar Frances. — Mas se for parar à prisão, terá valido a pena.

Quanto a Frances, tinha esperança em semanas pacíficas e produtivas.

A carta incendiária vinha endereçada a «J... indecifrável... Lennox» e foi aberta por Julia que, apesar de ter visto que era para Johnny — «Caro camarada Johnny Lennox», e que a primeira frase dizia «Quero que me ajude a abrir os olhos das pessoas para a verdade», a leu, releu e, depois de deixar os seus pensamentos assentar, telefonou ao filho.

— Tenho aqui uma carta de Israel, de um homem chamado Reuben Sachs, para ti.

— É um bom tipo — disse Johnny. — Tem mantido uma posição coerentemente progressista como marxista não-alinhado na defesa de relações pacíficas com a União Soviética.

— Seja como for, ele quer que convoques uma reunião dos teus amigos e camaradas para o ouvirem falar das suas experiências numa prisão checa.

— Deve ter havido uma boa razão para ele lá ter estado.

— Foi preso como espião sionista a soldo do imperialismo americano. — Johnny ficou calado. — Esteve preso quatro anos, foi torturado, tratado brutalmente e, por fim, libertado... Consideraria um favor se tu não dissesses: Infelizmente, algumas vezes foram cometidos erros.

— O que é que quer, Mutti?

— Acho que deves fazer o que ele pede. Ele diz que gostaria de abrir os olhos das pessoas para a verdade acerca dos métodos usados pela União Soviética. Por favor, não digas que se trata de um provocador qualquer.

— Não vejo que utilidade isso poderia ter.

— Nesse caso, eu própria convocarei uma reunião. No fim de contas, Johnny, encontro-me na feliz situação de saber quem são os teus amigos.

— Por que pensa que eles compareceriam a uma reunião convocada por si, Mutti?

— Enviarei a todos uma cópia desta carta. Queres que ta leia?

— Não, eu conheço o tipo de mentiras que andam a ser espalhadas.

— Ele estará aqui dentro de duas semanas e vem a Londres precisamente para isso, para falar aos camaradas. Também irá a Paris. Posso sugerir uma data?

— Se quiser.

— Mas deve ser conveniente para ti. Não creio que ele fique satisfeito se tu não compareceres.

— Eu telefono-lhe a indicar uma data. Mas quero tornar claro que me dissociarei de qualquer propaganda anti-soviética.

Na noite em questão, a grande sala de estar recebeu uma quantidade invulgar de convidados. Johnny convidara colegas e camaradas, e Julia convidara pessoas que lhe parecia que Johnny deveria ter convidado, mas não convidara. Havia pessoas que ainda pertenciam ao Partido, algumas que tinham saído devido a várias crises — o Pacto Hitler-Estaline, o Levantamento de Berlim, Praga, Hungria e, até, um ou dois que remontavam ao ataque à Finlândia. Cerca de cinquenta pessoas, com a sala apinhada de cadeiras e gente de pé junto das paredes. Todas se descreviam como marxistas. Andrew e Colin estavam presentes, apesar de terem começado por se queixar de que era tudo muito maçador.

— Por que vai fazer isso? — perguntou Colin à avó. — Não é o seu género, pois não?

— Espero, embora provavelmente não passe de uma velha tonta, que seja possível chamar o Johnny à razão.

O contingente da St. Josephs estava em exames. James partira para a América. As raparigas do andar de baixo faziam questão de ir a uma discoteca: a política era uma merda.

Reuben Sachs jantou com Julia, a sós: Frances teria sido capaz de concordar com as raparigas, e até com a sua escolha de linguagem.

Ele era um homenzinho baixo e roliço, desesperado e sério, e não conseguia parar de falar no que lhe tinha acontecido, e a reunião, quando começou, foi apenas uma continuação do que ele tinha contado a Julia, a qual, depois de o informar de que nunca fora comunista e não precisava de que a persuadisse, se manteve calada, pois tornara-se evidente que aquilo de que ele precisava era de falar enquanto ela — ou fosse quem fosse — escutava.

Mantivera durante anos uma posição difícil em Israel, como socialista, mas rejeitando o comunismo e pedindo que os socialistas não-alinhados do mundo apoiassem relações pacíficas com a União Soviética: o que significava que ficariam forçosamente numa situação complicada com os seus próprios governos. Fora ultrajado como comunista durante toda a guerra fria. O seu temperamento não o predispunha, por natureza, para estar permanentemente exposto, alvo de tiros de todos os lados. Isso via-se nos seus empolgados e agitados discursos, nos seus olhos suplicantes e irritados, enquanto repetia, como um refrão, as palavras: «Nunca transigi no tocante às minhas convicções.»

Estava a fazer uma visita fraterna a Praga, numa Missão de Paz e Boa Vontade, quando foi preso sob a acusação de espião cosmopolita sionista a soldo do imperialismo americano. No carro da polícia, dirigira-se aos seus captores nos seguintes termos: «Como podem vocês, representantes de um Estado dos Trabalhadores, sujar as mãos com um trabalho como este?», e quando lhe bateram, e continuaram a bater, ele continuou a usar as mesmas palavras. Assim como na prisão. Os guardas eram brutamontes e os interrogadores também, mas ele continuava a dirigir-se-lhes como a seres civilizados. Falava seis línguas, mas eles insistiam em interrogá-lo numa língua que ele não sabia, o romeno, o que significava que ao princípio não sabia do que estava a ser acusado, ou seja, de toda a espécie de actividades anti-soviéticas e antichecas. «Mas devo explicar que sou bom em línguas...» Durante os interrogatórios aprendeu romeno suficiente para acompanhar, e depois para argumentar, o seu processo. Durante dias, meses, anos, foi espancado, injuriado, mantido longos períodos sem comer e sem dormir — em suma, torturado de todos os modos caros aos sádicos. Durante quatro anos. E continuou a insistir na sua inocência, e a explicar aos interrogadores e aos carcereiros que, ao fazerem aquele tipo de trabalho, estavam a sujar a honra do povo, do Estado dos Trabalhadores. Levou muito tempo para compreender que o seu caso não era único e que a prisão estava cheia de pessoas como ele, que transmitiam em morse, batendo nas paredes, mensagens em que se diziam tão surpreendidos por estarem presos como ele.

E também explicavam que «o idealismo não é apropriado nestas circunstâncias, camarada». A venda caiu-lhe dos olhos, como dizia. Mais ou menos na altura em que deixou de apelar aos melhores sentimentos e à condição de classe dos seus torturadores, pois perdera a fé nas possibilidades, a longo prazo, da Revolução Soviética, foi libertado numa das novas alvoradas do Império soviético. E descobriu que continuava a ser um homem com uma missão, que era agora a de abrir os olhos dos camaradas ainda iludidos com a natureza do comunismo.

Frances resolvera que não queria ouvir «revelações» de que já se consciencializara havia décadas, mas mesmo assim entrou no fundo da sala quando já estava cheia e deu consigo sentada ao lado de um homem do qual parecia lembrar-se, mas que obviamente se lembrava bem dela, a julgar pelo modo como a cumprimentou. Johnny ouvia a um canto, sem preconceito. Os seus filhos estavam com Julia, do outro lado da sala, e não olhavam para o pai. O rosto deles tinha a expressão tensa e infeliz que ela se habituara a ver havia anos. Se evitavam os olhos do pai, a ela enviaram sorrisos de apoio, demasiado tristes para serem convincentes como ironia, que era o que pretendiam transmitir. Naquela sala estavam pessoas que conheciam desde muito pequenos, alguns com filhos com quem eles tinham brincado.

Quando Reuben iniciou a sua história dizendo «Vim contar-lhes a verdade da situação, como é meu dever...», fez-se silêncio na sala e ele não poderia queixar-se de que o seu público não o escutava com atenção. Mas aqueles rostos... as suas expressões não correspondiam ao que era costume ver-se numa reunião, reagindo ao que era dito com sorrisos, acenos de cabeça, concordância, discordância. Eram corteses, mas inexpressivos. Alguns ainda eram comunistas, tinham sido comunistas durante toda a sua vida e nunca mudariam: há pessoas que, uma vez formada uma opinião, não são capazes de mudar. Alguns tinham sido comunistas, podiam criticar, e fazê-lo até apaixonadamente, a União Soviética, mas eram todos socialistas e tinham fé no progresso, na escada rolante sempre a subir para um mundo melhor. E a União Soviética fora um símbolo tão forte dessa fé que, como foi dito décadas mais tarde por pessoas que tinham vivido mergulhadas em sonhos, «A União Soviética é a nossa mãe e nós não insultamos as nossas mães».

Estavam ali sentados a ouvir um homem que cumprira quatro anos de trabalhos forçados numa prisão comunista e fora tratado brutalmente, uma história dolorosamente emotiva ao ponto de, por vezes, Reuben Sachs chorar, explicando que o fazia por se ter «enxovalhado e sujado o grande sonho da humanidade», mas ao que se apelava ali era à razão dos presentes.

E era por isso que os rostos das pessoas que tinham comparecido à reunião daquela noite «para ouvirem a verdade» estavam inexpressivos, ou mesmo atordoados, escutando como se a história não lhes dissesse respeito. O emissário d'«a verdade da situação» falou durante hora e meia e depois terminou com um apelo veemente a perguntas, mas ninguém disse nada. E como se nada, absolutamente nada, tivesse sido dito, a reunião terminou porque as pessoas começaram a levantar-se e, depois de agradecerem a Frances, supondo que era ela a anfitriã, e acenado com a cabeça a Johnny, foram saindo. Não diziam nada. E quando começavam a falar entre si era de outros assuntos.

Reuben Sachs continuou sentado, à espera daquilo por que viera a Londres, mas era como se tivesse estado a falar das condições de vida na Europa medieval ou até do homem da Idade da Pedra. Não podia acreditar no que via, no que acontecera.

Julia continuou sentada no seu lugar, a observar com ar sardónico e um pouco amargo, e Andrew e Colin mostravam-se francamente irónicos. Johnny saiu, com alguns outros, sem olhar para os filhos nem para a mãe.

O homem sentado ao lado de Frances não se mexera. Ela achava que tivera razão em não ter querido vir: estava a ser invadida por uma infelicidade antiga, e precisava de se recompor.

— Frances — disse ele, tentando chamar-lhe a atenção —, não foi uma coisa agradável de ouvir.

Ela sorriu, mais vagamente do que ele teria gostado, mas depois viu o seu rosto e pensou que pelo menos uma pessoa tinha compreendido o que fora dito.

— Sou o Harold Holman — apresentou-se —, mas tu não pareces lembrar-te de mim. Andei muito com o Johnny, nos velhos tempos... Ia a casa de vocês, quando todos os nossos filhos eram pequenos... nessa altura estava casado com a Jane.

— Parece que bloqueei tudo isso.

Entretanto, Andrew e Colin observavam: a sala já estava quase vazia e Julia conduzia o tristemente decepcionado portador da verdade para os seus aposentos.

— Posso telefonar-te? — perguntou Harold.

— Por que não? Mas liga-me para o The Defender. — Baixou a voz, por causa dos filhos, e acrescentou: — Estarei lá amanhã à tarde.

— Combinado — respondeu ele, e foi-se embora.

Isto fora tão casual que mal começava a ter consciência de que ele estava interessado nela como mulher, pois perdera o hábito de esperar tal coisa. Foi então que Colin apareceu e perguntou:

— Quem é aquele homem?

— Um velho amigo do Johnny... de antigamente.

— E vai telefonar-te para quê?

— Não sei. Talvez tomemos um café, em memória dos velhos tempos — respondeu, mentindo com naturalidade, pois esse aspecto dela já começava a voltar à tona.

— Vou regressar à escola — disse Colin, brusco, desconfiado, e não se despediu quando saiu para apanhar o comboio.

Quanto a Andrew, avisou:

— Vou ajudar a Julia com o pobre do nosso convidado — e deixou-a com um sorriso ao mesmo tempo cúmplice e circunspecto, embora fosse duvidoso que tivesse consciência disso.

Uma mulher que fechou a porta ao seu eu amoroso tão completa-mente como Frances fechara, não pode deixar de se surpreender quando ela se abre de súbito. Gostava de Harold, isso tornava-se evidente pelo modo como estava a despertar, com o pulso a bater, a animação a tomar conta dela.

E, no entanto, porquê? Porquê ele? Apanhara-a desprevenida, era isso. Que coisa extraordinária. A ocasião era extraordinária, quem poderia acreditar em semelhante coisa, se não visse? Não ficaria nada surpreendida se este Harold tivesse sido a única pessoa presente que se permitira absorver o que Reuben Sachs dissera. Uma boa palavra, absorver. Podemos sentar-nos hora e meia a ouvir informação capaz de transformar em ruínas a nossa preciosa cidadela de fé, ou que não condiz facilmente com o que já se encontra no nosso cérebro, mas não a absorvermos. Isso é diferente.

Frances não dormiu bem nessa noite, por culpa de estar a permitir-se sonhar como uma rapariga apaixonada.

Ele telefonou-lhe na tarde seguinte e convidou-a para passarem um fim-de-semana juntos numa certa cidadezinha no Warwickshire, e ela respondeu-lhe que aceitava tão facilmente como se estivesse habituada a fazer aquilo com frequência. E perguntou-se mais uma vez o que havia naquele homem que lhe permitia girar com tanta facilidade a chave de uma porta que ela mantivera fechada. Era um homem sólido, sorridente e alourado, com o ar de quem avaliava tudo de modo sereno e divertido. Era, ou fora, funcionário de um organismo educativo qualquer. Funcionário sindical?

Como esperava que o habitual sortido de miúdos chegaria para passar o fim-de-semana, subiu ao andar de Julia para lhe dizer que gostaria de ter o fim-de-semana livre. Assim, com estas palavras.

Julia pareceu sorrir um pouco. Mas seria mesmo um sorriso? Se fosse, não era desagradável...

— Pobre Frances — disse ela, surpreendendo-a. — Leva uma vida monótona.

— Levo?

— Acho que sim. E os jovens podem muito bem olhar por eles próprios, para variar.

E, ao sair, Frances ouviu dizer baixinho: «Volte para nós, Frances», o que a surpreendeu tanto que se voltou, mas viu que Julia já pegara de novo no seu livro.

Volte para nós... Oh, aquilo revelava discernimento da parte da sogra, um discernimento desconfortável, pois apoderara-se dela uma revolta contra a sua vida, contra a implacável labuta que era a sua vida, e embrenhara-se numa paisagem de sonhos febris, onde se perderia — e nunca mais regressaria à casa de Julia.

E havia os seus filhos, o que não era brincadeira nenhuma. Ao ser-lhes dito que a mãe estaria ausente nesse fim-de-semana, reagiram ambos como se ela tivesse dito que ia partir para uma viagem de seis meses.

Da escola, Colin perguntou, pelo telefone:

— Aonde vais? Com quem vais?

— Com um amigo — respondeu Frances, e seguiu-se um silêncio desconfiado.

E Andrew olhou-a com o mais triste dos sorrisos, um sorriso cheio de medo; mas ele com certeza não sabia isso.

Ela era, sempre fora, o ponto estável da vida deles, e não serviria de nada dizer que ambos tinham idade suficiente para lhe permitir alguma liberdade. Mas em que idade é que filhos assim, vivendo numa base tão instável, deixam de precisar da presença constante de um progenitor? Aquela era a sua mãe e ia ausentar-se um fim-de-semana com um homem, e eles sabiam-no. Se ela alguma vez tivesse feito uma coisa semelhante, antes... mas fora sempre tão obediente à situação deles, às suas necessidades, como se estivesse a compensá-los das ausências de Johnny. «Como se?» Ela tinha tentado compensá-los das ausências de Johnny.

No sábado, Frances saiu de casa de mansinho, pois sabia que Andrew, que tinha o sono agitado, estaria atento, e que Colin podia ter resolvido acordar mais cedo do que o habitual meio da manhã. Olhou para cima, na frente da casa, receando ver o rosto de Andrew ou o de Colin, mas não havia rosto algum nas janelas. Eram sete horas da manhã de um maravilhoso dia de Verão, e o seu estado de espírito, não obstante o sentimento de culpa, ameaçava projectá-la para as alturas de uma celestial irresponsabilidade, e ali estava ele, o seu galã, o seu namorado, sorrindo, obviamente satisfeito com o que via, com esta mulher loura (fora arranjar o cabelo) de vestido de linho verde, a instalar-se a seu lado e a voltar-se para ele, a fim de rirem juntos desta aventura. Viajaram confortavelmente pelos subúrbios de Londres, chegaram ao campo, e ela desfrutava o apreço dele por ela, e o prazer dela nele, naquele interessante homem arruivado, e ao mesmo tempo combatia os pensamentos dos rostos desamparados e infelizes dos seus filhos. Querida Tia Vera, sou divorciada e estou a criar dois rapazes. Sinto-me tentada a ter um caso, mas tenho medo de transtornar os meus filhos. Eles vigiam-me como falcões. Que devo fazer? Gostava de me divertir um pouco. Não tenho nenhuns direitos?

Bem, se ela, Frances, tinha oportunidade de se divertir um pouco, devia ir em frente e afastar firmemente os filhos do pensamento. De duas uma, ou fazia isso, ou dizia àquele homem: Dá a volta e regressemos; cometi um erro.

Pararam junto ao rio perto de Maidenhead e tomaram o pequeno-almoço, descansaram mais tarde numa pequena cidade cujo jardim público parecia convidativo, seguiram viagem, sentiram-se atraídos por um bar cativante e almoçaram noutro jardim enquanto os pardais saltitavam em seu redor, na poeira.

Ele perguntou-lhe, a certa altura:

— Estás a ter dificuldade em afastar a incredulidade?

— Estou — respondeu, e conteve-se para não acrescentar: é por causa dos rapazes, compreendes...

— Bem me parecia. Quanto a mim, não sinto dificuldade absolutamente nenhuma.

E havia no seu riso triunfo suficiente para a levar a observá-lo à procura do motivo. Havia em tudo aquilo algo que ela não estava a compreender, mas paciência. Sentia-se irresponsavelmente feliz. Como era monótona a vida que levava. Julia tinha razão. Seguiram por estradas secundárias para evitar as auto-estradas, perderam-se, mas as suas expressões e os seus sorrisos prometiam o tempo todo: Esta noite vamos estar nos braços um do outro. O dia continuava quente, com uma sedosa neblina dourada, e ao fim da tarde sentaram-se noutro jardim, junto de um rio, observados por melros, um tordo e um grande cão simpático que se sentou perto deles até conseguir, dos dois, o seu pedaço de bolo e ir-se embora a dar devagarinho à cauda.

— Que cão tão gordo — comentou Harold Holman. — E será assim que eu estarei depois deste fim-de-semana.

Saciado, sim, era isso que parecia, mas havia um outro ingrediente, o seu prazer na companhia dela, na situação, que a levou a perguntar, sem querer:

— Por que estás tão satisfeito contigo próprio?

Ele compreendeu imediatamente, de modo que a agressividade da pergunta, que ela lamentava, pois contrariava o radiante contentamento que sentia, foi anulada quando Harold disse:

— Ah, sim, tens razão, tens razão. — Olhou-a a rir e ela achou que ele parecia um leão indolente, com as patas cruzadas à sua frente e levantando a cabeça imperiosa num lento e preguiçoso bocejar. — Eu explico-te, eu explico-te tudo. Mas primeiro quero chegar a um lugar ainda com esta luz.

E partiram de novo para Warwickshire, onde ele estacionou do lado de fora do hotel e se apeou para contornar o carro e abrir-lhe a porta.

— Vem ver isto. Do outro lado da rua havia árvores, lápides tumulares, arbustos, um velho teixo. — Estava com vontade de te mostrar isto... não, estás enganada, nunca aqui trouxe uma mulher antes, mas parei nesta cidade há meses e pensei: este lugar é mágico. Mas estava sozinho.

Atravessaram a rua de mãos dadas e pararam no velho cemitério onde o teixo parecia quase tão alto como a pequena igreja. Rompia um crepúsculo de princípios de Verão e uma lua luminosa assomava no céu a escurecer. As lápides pálidas desfilavam e pareciam querer falar-lhes. Lufadas de ar estival quente, de mistura com fiapos de neblina fria, roçavam-lhes os rostos e eles pararam, abraçados, e beijaram-se, e depois ficaram assim enlaçados um longo momento, a escutar os recados do corpo um do outro. Por fim a pressão de emoções incompartilháveis fê-los afastar-se um do outro, embora ainda de mãos dadas, e ele disse: «Sim», com uma mágoa serena que ela não precisou de que lhe explicasse. «Eu podia ter casado com alguém assim, em vez de com...», pensou Frances. Julia chamava-lhe um imbecil. Como Johnny não telefonara à mãe depois daquela pequena reunião «para que toda a gente pudesse ouvir a verdade», Julia telefonara-lhe para saber o que pensava, ou antes, o que estava preparado para dizer. «Então?», perguntara. «Com certeza valeu a pena reflectir... no que aquele israelita disse?» «Precisa de aprender a ver as coisas de uma perspectiva a longo prazo, Mutti.» «Imbecil.»

O cemitério escureceu, enquanto o céu se iluminava, as lápides brilhavam, fantasmagóricas, e eles encostaram-se ao teixo, na escuridão que o envolvia, e ficaram a ver o luar alastrar. Depois caminharam por entre as sepulturas, todas elas antigas, nenhuma mais nova do que o século, e em breve encontravam-se no quarto do hotel antiquado, onde se tinham registado como Harold Holman e Frances Holman.

Na realidade, ela estava, até, a pensar: «Ora, por que não? Eu podia casar com este homem, podíamos ser felizes, no fim de contas as pessoas casam e são felizes» — mas o pensamento do peso e da complexidade da casa de Julia afugentou este disparate, e ela expulsou igualmente esse pensamento, na sua intenção de ser feliz naquela única noite.

E foi, e foram.

— Feitos um para o outro — murmurou-lhe ele ao ouvido, e depois repetiu as palavras, numa exclamação alta e exultante. Ficaram deitados ao lado um do outro, enlaçados, enquanto a breve noite corria a caminho de um alvorecer que as nuvens não atrasariam: o luar cintilava nos vidros das janelas.

— Há anos que estou apaixonado por ti — disse ele —, anos. Desde que te vi pela primeira vez com aqueles teus rapazinhos. A mulher do Johnny. Não imaginas quantas vezes fantasiei telefonar-te e convidar-te para uma saltadinha do outro lado da esquina da rua, para tomarmos uma bebida. Mas eras a mulher do Johnny e ele inspirava-me tanto respeito...

A boa disposição de Frances estava a desfalecer e ela desejava que ele não continuasse: mas era óbvio que ele tinha de continuar, pois essa era a triste face da verdade.

— Isso deve ter sido naquele horrível andar em Notting Hill.

— Era horrível? Mas nesse tempo nós não nos preocupávamos com viver agradavelmente. — Riu-se alto, de um excesso de tudo, e acrescentou: — Oh, Frances, se alguma vez tiveste um sonho que pensavas nunca seria realidade, esta noite o meu realizou-se.

Ela estava a pensar como era nesse tempo, com excesso de peso e preocupações, com os filhos pequenos sempre pegados a ela, a agarrá-la, a subirem por ela, a competirem pelo seu colo.

— Gostava de saber o que viste em mim, nessa altura. Ele ficou um momento silencioso.

— Tudo. Johnny... ele era um grande herói para mim, então. E tu eras a mulher do Johnny. Vocês eram um casal tremendo, eu invejava ambos, e invejava o Johnny. E os rapazinhos. Ainda não tinha filhos. Queria ser como vocês.

— Como o Johnny.

— Não sei explicar. Vocês eram... uma sagrada família — riu-se, pôs as pernas para fora e sentou-se na beira da cama, espreguiçando os braços no luar que iluminava o quarto. — Tu eras maravilhosa. Calma... serena... nada te perturbava. E eu tinha consciência de que o Johnny não era necessariamente o mais fácil... não estou a criticá-lo...

— Por que não? Eu critico-o. — Ia realmente demolir aquele sonho?... Não podia? Oh, sim, podia! — Fazes alguma ideia de quanto eu odiava o Johnny, então?

— Bem, é claro que às vezes odiamos aqueles que amamos. A Jane... era um castigo.

— O Johnny era constantemente um castigo.

— Mas que herói!

Frances estava sentada com o braço à volta do pescoço dele, o mais chegada que podia, para estar perto daquela exultante vitalidade. Os seus seios estavam contra o braço dele. Quanto gostara do seu próprio corpo esta noite, porque ele gostara. Seios macios, pesados, e os seus braços... podia afirmar que eram belos.

— Quando vi o Johnny naquela sala, na outra noite, perguntei-me se vocês dois ainda...

— Meu Deus, não! — E só por esse momento afastou dele corpo, mente e até simpatia. — Como pudeste pensar isso? — Bem, e por que não?... — Esquece o Johnny. Volta para aqui. Deitou-se e ele estendeu-se a seu lado, sorrindo.

— Admirei aquele homem mais do que qualquer outra pessoa na minha vida. Para mim, era uma espécie de deus. O camarada Johnny. Ele era muito mais velho do que eu... — Levantou a cabeça, para a olhar.

— Isso significa que eu sou muito mais velha do que tu.

— Não, esta noite não és. Eu estava numa encrenca, quando conheci o Johnny... numa reunião. Estava muito verde... Ficara mal nos exames, e os meus pais disseram: «Se és comunista, não ensombres a nossa porta.» O Johnny foi bondoso comigo. Uma figura paterna. Resolvi ser digno dele.

Frances contraiu os músculos do diafragma, mas teve dificuldade em saber se o fazia para conter o riso ou as lágrimas.

— Arranjei um quarto em casa de um camarada. Voltei a fazer os meus exames. Fui professor durante algum tempo, nessa altura estava no sindicato... mas a questão é que devo tudo ao Johnny.

— Bem, que queres que te diga? Foi bom da parte dele. Mas tens a certeza de que foi bom para ti?

— Se tivesse acreditado, então, que podia estar contigo esta noite, ter-te nos braços, acho que teria enlouquecido de alegria. A mulher do Johnny, nos meus braços.

Fizeram de novo amor. Sim foi amor, um amor amigável, até terno, enquanto o riso borbulhava no caldeirão, bem longe dos ouvidos dele, mas não dos dela.

Dormiram. Acordaram. E depois pareceu que ele teve maus sonhos, pois acordou sobressaltado e ficou deitado de costas, a segurá-la, mas de um modo que dizia: Espera. Por fim, disse, tristemente:

— Foi um golpe duro, sabes, o que aquele homem, Sachs, disse. Ela resolveu ignorar.

— Não se pode dizer que não foi um choque. Ela resolveu falar.

— Jornais — soletrou. — Relatos de jornais durante anos. Televisão. Rádio. As purgas, os campos. Os campos de concentração, os assassínios. Durante anos.

Um longo silêncio.

— Sim — disse ele, por fim —, mas eu não acreditava. Bem, uma parte, evidentemente... mas nada como... o que ele nos disse.

— Como podes não ter acreditado?

— Não queria acreditar, suponho.

— Exactamente. — E depois ouviu a sua própria voz dizer: — E aposto que ainda não ouvimos nem metade.

— Por que dizes isso? Pareces muito satisfeita contigo mesma.

— Acho que estou. É bom verificar que tinha razão, após anos a ser rebaixada e... espezinhada. De ser rebaixada agora.

Ele ficou estupefacto. Mas ela continuou:

— Eu não concordava com ele. Não depois dos primeiros tempos... — Não especificou: Quando ele voltou da Guerra Civil de Espanha. Porque, afinal, ele não voltara, pois não estivera lá. Não especificou: Quando vi o hipócrita desonesto que ele era. Porque, apesar de tudo, como podia chamar-lhe desonesto se ele acreditava em cada palavra. — Deixei-me levar por todo aquele encanto. Tinha dezanove anos. Mas não durou.

Ele não gostou de ouvir aquilo, não gostou mesmo nada, e ela ficou ali deitada a seu lado, silenciosa, suficientemente concordante com ele para se sentir magoada porque ele estava magoado.

Seguiu-se um longo silêncio pesado: lá fora já estava um dia claro e quente e o trânsito começara.

— Parece que foi tudo em vão — observou ele, por fim. Foi tudo... mentiras e contra-senso. — Ela ouvia as lágrimas na sua voz.

— Que desperdício. Todo aquele esforço... gente morta para nada. Gente boa. Ninguém me vai dizer que não era. — Silêncio. — Não quero fazer disso uma coisa importante, mas eu fiz tantos sacrifícios pelo Partido. E tudo para nada.

— A não ser o facto de o camarada Johnny te ter inspirado para grandes coisas.

— Não troces.

— Não estou a troçar. Vou conceder ao Johnny uma boa nota: pelo menos foi bom para ti.

— Ainda não consegui assimilar. Não comecei, sequer, a assimilar.

Ficaram assim ao lado um do outro, e se ele estava a deixar escapar sonhos, sonhos tão grandes, tão doces, ela estava a pensar: «Não há dúvida de que sou uma pessoa muito egoísta, como o Johnny sempre disse. Harold está a pensar no futuro dourado da espécie humana, indefinidamente adiado, mas eu estou a pensar naquilo de que abdiquei na minha vida.» Isso causava-lhe uma dor tão grande que era quase insuportável. O peso doce e quente de um homem a dormir nos seus braços, a sua boca na face dela, o peso macio dos testículos de um homem na sua mão, a deliciosa viscosidade de...

— Vamos descer para o pequeno-almoço — disse ele. — Creio que, caso contrário, desato a chorar.

Tomaram o pequeno-almoço discretamente, numa salinha agradável, e quando saíram do hotel notaram que, naquela manhã, o cemitério parecia abandonado e insignificante e a magia da noite anterior acabaria por parecer patética e ridícula se não saíssem dali. Assim fizeram e dirigiram-se para um sítio onde, deitado numa colina coberta de erva, ele lhe disse que ali, onde estavam, com paisagens ondulantes a desenrolar-se em todas as direcções, ficava o próprio coração da Inglaterra. E depois, e ela compreendeu-o em absoluto, ele chorou, aquele homem corpulento, com o rosto oculto no braço, sobre a erva, chorou pelo seu sonho perdido, e ela pensou: «Somos perfeitos um para o outro, mas não voltaremos a estar juntos.» Foi o fim de alguma coisa. Para ele. E para ela também: «O que estou aqui a fazer, a retou-çar no coração da Inglaterra com um homem de coração destroçado por causa de... bem, sem ser por minha causa?»

Ao fim da tarde, pediu-lhe que a deixasse onde pudesse apanhar um táxi, porque não podia suportar a ideia de ser vista com ele do lado de fora da casa de olhos esfaimados. Beijaram-se. Cheios de pesar. Ele viu-a entrar num táxi e partiram em direcções diferentes. Frances correu pela escada acima, ligeira, plena da energia de ter feito amor, e foi direita à sua casa de banho, com medo de cheirar demasiado a sexo. Depois subiu ao andar de Julia, bateu e esperou pela inspecção minuciosa e fria — que não falhou. Em seguida, como a inspecção não foi hostil, mas amistosa, sentou-se sem dizer nada, apenas a sorrir a Julia com os lábios a tremer.

— É difícil — comentou a sogra, como se soubesse quanto era difícil. Foi a um armário cheio de garrafas interessantes, deitou conhaque num copo e levou-o a Frances.

— Vou tresandar a álcool — disse ela.

— Não se importe com isso — respondeu Julia, e acendeu a chama da sua pequena máquina de café. Ficou junto dela de costas voltadas para Frances, que sabia que o fazia por uma questão de tacto, pois percebia quanto ela precisava de chorar. Depois uma chávena de café forte foi fazer companhia ao conhaque.

A porta abriu-se e Sylvia entrou a correr, sem bater.

— Oh, Frances, não sabia que estava aqui! Eu não sabia que ela estava aqui, Julia. — Parou hesitante, a sorrir, e depois correu para Frances e abraçou-a, com a face encostada ao cabelo dela. — Oh, Frances, não sabíamos onde estava. Foi-se embora. Deixou-nos. Pensámos que se tinha fartado de todos nós e partido.

— É claro que eu não podia fazer isso — respondeu Frances.

— Pois não — disse Julia. — Penso que a Frances tem de estar aqui.

O Verão prolongou-se e soltou-se, foi respirando cada vez mais devagar, e o tempo parecia cercar-nos por todo o lado como lagos pouco fundos onde podíamos flutuar e preguiçar: tudo isto terminaria quando «os miúdos» regressassem. Os dois que já ali se encontravam ocupavam pouco espaço na grande casa. Frances vislumbrava Sylvia do outro lado do patamar, deitada com um livro na cama, de onde acenava, «Oh, Frances, este livro é tão encantador», ou a correr pela escada acima para ir ter com Julia. Também costumava ver as duas descer a rua, para irem às compras: Julia e a sua pequena amiga Sylvia. Andrew também lia na cama. Frances tinha — com um sentimento de culpa, escusado seria dizer — batido à sua porta, ouvido o «Entra» habitual e entrado; mas não, o quarto estava isento de fumo. «Ah, és tu, mãe», disse, em voz arrastada, pois tudo nele se tornara também mais lento, como as próprias pulsações dela. «Devias ter mais confiança em mim. Já não sou um janado em erva a caminho da perdição.»

Frances não cozinhava. Podia encontrar Andrew na cozinha, a fazer uma sanduíche, e ele oferecia-se para lhe fazer também uma. Ou o contrário. Sentavam-se em lados opostos da grande mesa e contemplavam a abundância: tomates das lojas cipriotas de Camden Town, bem impregnados de sol a sério, nodosos e até deformados, mas quando a faca os cortava, a magnificência luxuriante e selvagem do seu cheiro enchia a cozinha. Comiam tomates com pão grego e azeitonas, e algumas vezes falavam. Ele dizia que lhe parecia bem estudar Direito.

— Por que tens dúvidas a esse respeito?

— Penso que escolherei Direito Internacional. O conflito das nações. Mas confesso que me sentiria feliz se passasse a vida deitado na cama a ler.

— E de vez em quando a comer tomates.

— A Julia diz que o seu tio passou toda a vida sentado na biblioteca a ler. E suponho que a gerir os seus investimentos.

— Quanto dinheiro terá ela?

— Um destes dias, pergunto-lhe.

Um pequeno incidente desagradável interrompeu esta paz. Uma noite, quando Frances tinha subido para jantar, Andrew abriu a porta a dois rapazes franceses que disseram ser amigos de Colin, o qual lhes teria dito que podiam passar lá a noite. Um deles falava excelente inglês e Andrew falava bem Frances. Sentaram-se à mesa até tarde, a beber vinho e a comer o que puderam encontrar, enquanto prosseguia uma espécie de jogo em que ambos os lados queriam treinar a língua do outro. O semi-silencioso sorria e escutava. Parecia que Colin e eles tinham travado amizade enquanto colhiam uvas e, depois, Colin fora para casa com eles, na Dordogne, e agora andava a viajar à boleia em Espanha. Pedira-lhes que dessem cumprimentos à sua família.

Subiram para o quarto de Colin, onde abriram sacos de dormir em vez de usarem a cama, para causarem a mínima desarrumação possível. Nada poderia ser mais amigável e civilizado do que estes dois irmãos, mas de manhã um mal-entendido levara-os para a casa de banho de Julia. Estavam por lá na brincadeira, queixando-se de não haver duche, admirando a plenitude da água quente e usando os sais de banho e o sabonete perfumado de violeta, além de fazerem imenso barulho. Eram cerca de oito horas da manhã, e eles planeavam seguir viagem bem cedo. Julia ouviu chapinhar e vozes jovens altas e bateu, e tornou a bater, à porta. Não a ouviram. Ela abriu a porta e deparou com dois rapazes nus, um a chafurdar na sua banheira e a soprar balões de sabonete e o outro a barbear-se. Seguiu-se uma rajada de exclamações apropriadas, em que a palavra merde era a mais ruidosa e frequente. Depois deram com eles a ser invectivados por uma mulher idosa, com o cabelo preso em rolos e de negligée de chiffon cor-de-rosa, no Frances que ela aprendera há cinquenta anos na sala de aula com uma sucessão de mademoiselles. Um dos rapazes saltou da banheira, sem pegar sequer numa toalha para se cobrir, enquanto o outro se voltava, de gilete na mão e boca aberta. Como era evidente que o seu aparecimento deixara os dois atordoados demais para responderem, Julia retirou-se e eles pegaram nas suas coisas e fugiram para baixo, onde Andrew ouviu a história e se riu.

— Mas onde aprendeu ela aquele Frances? — perguntaram. — Ancien regime, no mínimo.

— Não, Louis Quartorze.

Brincaram, enquanto tomavam café, e depois os irmãos partiram para viajar à boleia por Devon, que em meados dos anos 60 era o lugar mais bestial depois da Londres do swing.

Mas Frances não conseguiu rir-se. Foi aos aposentos de Julia e encontrou-a não na sala, vestida e impecável na sua delicadeza, mas na cama, em pranto. Quando viu Frances levantou-se, mas trémula. De moto próprio, os braços de Frances envolveram-na, e o que até então parecera uma impossibilidade tornou-se a coisa mais natural do mundo. A frágil velhota apoiou a cabeça no ombro da mulher mais nova e disse: «Não compreendo. Aprendi que não compreendo nada.» Chorava de uma maneira que Frances não teria imaginado possível, da parte dela, e soltou-se dos seus braços para a cama. Frances deitou-se a seu lado e abraçou-a, enquanto ela soluçava e chorava. Evidentemente que já não se tratava de uma questão de profanação de casa de banho. Quando se acalmou um pouco, conseguiu dizer:

— Deixa entrar qualquer pessoa.

— Mas o Colin esteve com eles — explicou Frances.

— Qualquer um pode dizer isso. Só falta aparecerem para aí maltrapilhos vindos da América a dizer que são amigos do Geoffrey.

— Sim, isso parece-me mais do que provável — admitiu Frances. — Julia, não acha muito interessante o modo como estes jovens viajam por aí assim, como trovadores... — A comparação talvez não fosse a mais apropriada, pois Julia riu-se irritadamente e replicou:

— Tenho a certeza de que eles tinham melhores maneiras — e recomeçou a chorar e a repetir: — Deixa entrar qualquer pessoa.

Frances perguntou se queria que convidasse Wilhelm Stein para a visitar, e Julia concordou.

Entretanto, Mrs. Philby veio e quis saber, como os ursos da história, quem tinha estado a dormir no quarto de Colin. Foi informada. A velha empregada era do mesmo vintage de Julia, tão elegante e digna como ela no seu pobre, mas limpo e arranjado, traje de chapéu preto, saia preta e blusa estampada, e tinha uma expressão de quem se recusava a ter qualquer relação com aquele mundo que passara a existir sem que ela fosse ouvida nem achada.

— Então eram uns porcos — sentenciou.

Andrew subiu e verificou que uma laranja tinha rolado para fora de uma mochila e havia algumas migalhas de croissants. Se esta amostra de porcaria chegava para desorientar Miss Philby — apesar de, com certeza, não poder ser novidade para ela —, então o que iria dizer da casa de banho, que Sylvia ejulia costumavam deixar quase intacta. «Jesus!», exclamou, e correu pela escada acima ao encontro de uma cena tempestuosa de água entornada e toalhas abandonadas. Fez uma arrumação preliminar antes de dizer a Mrs. Philby que podia entrar, e que era apenas água.

Andrew e Frances estavam sentados à mesa quando chegou Wilhelm Stein, doutor em filosofia e negociante de livros sérios. Subiu logo aos aposentos de Julia, sem entrar na cozinha, e depois desceu e parou à porta, sorrindo, muito ligeiramente deferente, encantador, um cavalheiro idoso tão perfeito nos seus modos como Julia.

— Não creio que seja fácil para vocês compreenderem a educação de que Julia foi vítima... sim, posso usar essa palavra, pois creio que essa educação a incapacitou gravemente para o mundo onde agora se encontra. — Ele, como Julia, falava um inglês idiomático perfeito, e Andrew estava a compará-lo com o Frances exclamativo, explectivo e excitado que ouvira na noite anterior.

— Queira sentar-se, Dr. Stein — convidou Frances.

— Não nos conhecemos suficientemente bem um ao outro para nos tratarmos por Frances e Wilhelm? Eu acho que sim, Frances. Mas agora não me sento, pois vou buscar o médico. Trouxe o carro. — Preparava-se para sair, mas voltou atrás para dizer, sentindo, sem dúvida, que não se explicara adequadamente. — Os jovens desta casa

— exceptuando você, Andrew — são por vezes assaz...

— Brutos — concluiu Andrew. — Concordo. Uns tipos chocantes. — Falava severamente, e o Dr. Stein acolheu a pequena brincadeira com uma vénia e um sorriso.

— Devo dizer-lhe que quando tinha a sua idade era um tipo chocante. Era... turbulento. E bruto. — Fez uma careta ao que estava a recordar. — Pode não acreditar, vendo-me agora. — Sorriu de novo, divertido com a imagem que sabia estar a apresentar, e a apresentá-la conscientemente, com uma das mãos apoiada no punho de prata da bengala e a outra toda aberta, como se dissesse: Sim, acredite em mim.

— Olhando-me, será difícil ver-me como... Andei envolvido com os comunistas em Berlim, com tudo o que isso implica. Com tudo o que isso implica — insistiu. — Sim, é verdade, foi assim. — Suspirou. — Penso que ninguém pode negar que nós, alemães, somos de extremos? Ou pode? Bem, nesse tempo, Julia von Arne estava num extremo e eu estava no outro. Às vezes divirto-me a imaginar o que a minha pessoa de vinte e um anos teria dito de Julia, como rapariga. E rimos juntos a esse respeito. Bem, tenho uma chave e quando vier com o médico abrirei a porta para entrarmos.

Em Agosto foi lá a casa um tal Jake Miller, que lera um artigo de Frances onde ela zombava da mania corrente de actividades exóticas como o Ioga, o I-Ching, o Maharishi e o Subud. O editor dissera que precisavam de uma matéria divertida para a silly season, e tinha sido isso que levara Jake Miller a telefonar para o The Defender e perguntar a Frances se podia visitá-la. A curiosidade respondera sim por ela, e ali estava ele na sala, um homenzarrão infinitamente sorridente com ofertas de livros místicos. Os sorrisos ilimitados de paz, amor e boa vontade seriam em breve obrigatórios nos rostos dos bons, ou talvez se devesse dizer dos jovens e dos bons, e Jake era um precursor, embora já não fosse jovem, mas, sim, quarentão. Estava ali a fintar a Guerra do Vietname. Frances resignou-se a ouvir um discurso, mas o interesse dele não era a política. Reclamava-a como co-conspiradora nos campos da experiência mística. «Mas eu escrevi aquilo de brincadeira», protestou ela, enquanto ele respondia, a sorrir: «Mas eu sabia que só estava a escrever assim porque não podia escrever de outra maneira, que estava a comunicar com aqueles de entre nós capazes de compreender.»

Jake reivindicava toda a espécie de poderes especiais, como por exemplo a capacidade de dissolver nuvens fitando-as, e na verdade, parada à janela a olhar para um céu em movimento acelerado, ela viu nuvens passarem numa confusão e dissiparem-se. «É fácil», afirmou ele, «mesmo para pessoas inexperientes.» Compreendia a linguagem dos pássaros, afirmou, e comunicava com mentes semelhantes através da percepção extra-sensorial. Frances podia ter alegado que ela não era, claramente, uma mente semelhante, pois tivera de lhe telefonar, mas esta cena, entre o divertido e o irritante, terminou com o aparecimento de Sylvia com um recado de Julia — recado que Frances nunca chegaria a ouvir. Sylvia trazia um casaco de algodão com os símbolos do zodíaco, comprado porque lhe servia e ela era tão pequena que se tornava difícil encontrar roupas à sua medida: o casaco era na realidade da secção de roupa infantil. Tinha o cabelo preso em duas tranças finas, uma de cada lado do rosto sorridente. Os sorrisos dele e dela encontraram-se e fundiram-se, e num ápice Sylvia estava a conversar com aquele novo tipo de amigo cordial que a esclarecia acerca do seu signo solar, do I-Ching e da sua provável aura. Um momento depois, o amável americano estava no chão a lançar os seus pauzinhos de milefólio para ela, e a leitura final cativou-a tanto que Sylvia prometeu sair e comprar pessoalmente o livro. Perspectivas e possibilidades de que nunca suspeitara enchiam todo o seu ser, como se antes ele tivesse estado completamente vazio, e aquela rapariga que dificilmente conseguia sair de casa sem Julia, saiu agora confiantemente com Jake de Illinois para comprar prospectos esclarecedores. Quando voltou já era tarde, para ela. Passava das dez horas quando correu pela escada acima para Julia, que a recebeu de braços estendidos para um abraço, mas logo os deixou cair e se sentou pesadamente a olhar fixamente para aquela rapariga que se encontrava num estado de vivacidade que não teria julgado possível nela. Ouviu-a tagarelar num silêncio que se tornou tão pesado e desaprovador que Sylvia acabou por se calar.

— Bem, Sylvia, minha pobre criança, onde foste buscar todo esse disparate?

— Mas, Julia, não é disparate nenhum, palavra. Eu explico, escute...

— É disparate — cortou Julia, levantando-se e virando as costas. Voltou-se para fazer café, mas Sylvia viu umas costas frias, que a excluíam, e> começou a chorar.

Embora a rapariga o não soubesse, os olhos de Julia estavam marejados e ela fazia um enorme esforço para não chorar também. Que aquela menina, a sua menina, pudesse traí-la assim, pensava, magoada. Entre as duas, a mulher idosa e o seu pequeno amor, a criança a quem dera o seu coração sem reservas e pela primeira vez na sua vida — sentia-o agora — havia apenas desconfiança e mágoa.

— Mas, Julia... mas, Julia... — Julia não se voltou e Sylvia correu pela escada abaixo e atirou-se para cima da cama, onde chorou tão ruidosamente que Andrew ouviu e foi ver o que se passava.

Ela contou-lhe o que se passava e ele disse-lhe:

— Agora pára de chorar. Isso não serve de nada. Eu vou ter com a minha avó e falar com ela.

E foi.

— E quem é esse homem? Por que o deixou a Frances entrar?

— Mas está a falar como se ele fosse um ladrão ou um vigarista.

— Isso mesmo, um vigarista é o que ele é. Enganou a pobre Sylvia, fê-la perder a noção da realidade.

— Sabe, avó, este tipo de coisas, o ioga e tudo isso, está na moda... a avó é que leva uma vida muito recolhida, como sabe. — Embora falasse em tom mais ou menos brincalhão, estava assustado com o rosto infeliz de Julia. Sabia muito bem qual era o verdadeiro problema, mas resolveu persistir no nível das causas simples. — É mais do que provável que ela se depare com coisas destas na escola, não pode protegê-la disso. — Enquanto falava, Andrew estava a pensar que lia o seu horóscopo todas as manhãs, embora, é claro, não acreditasse nele, e até encarara a ideia de mandar ler a sina. — Acho que está a exagerar — ousou dizer, e viu-a finalmente acenar com a cabeça e depois suspirar.

— Muito bem — disse. — Mas como é que essa... essa... coisa detestável se espalhou de súbito por todo o lado?

— Boa pergunta — disse Andrew, abraçando-a, mas sentiu-a hirta nos seus braços.

Julia e Sylvia fizeram as pazes.

— Fizemos as pazes — disse a rapariga a Andrew, como se uma coisa pesada e infeliz se tivesse tornado leve e inofensiva.

Mas Julia não ouvia as novas descobertas de Sylvia, não deitava os palitos do I-Ching nem falava de budismo, e por isso a sua perfeita intimidade, a intimidade possível apenas entre um adulto e uma criança, confidente e confiante, e tão fácil e natural como respirar, chegara ao fim. Teve de acabar para a mais nova poder crescer, mas mesmo quando o adulto sabe e espera isso, é impossível os corações não sangrarem e ficarem doloridos. Julia, porém, nunca tivera esse tipo de amor por uma criança — não o tivera com certeza por Johnny — e não sabia que uma criança em crescimento — e Sylvia passara, com ela, por um rápido processo de crescimento — se transforma numa desconhecida. De repente, Sylvia deixou de ser a rapariguinha pulando, feliz, à roda de Julia e com medo de a perder de vista. Amadurecera o suficiente para interpretar que os pauzinhos do milefólio — aos quais pedira conselho — lhe diziam que devia ir ver a sua mãe. Assim o fez, sozinha, e em vez de encontrar Phyllida aos gritos e histérica encontrou-a calma, reservada e até com ar digno. Estava sozinha: Johnny fora a reunião.

Sylvia ia à espera das censuras e recriminações que não podia suportar, e sabia que teria de fugir; mas Phyllida disse:

— Deves fazer o que achares melhor. Eu sei que deve ser melhor para ti lá, com outros jovens. E segundo ouvi dizer a tua avó gosta de ti.

— Sim, eu amo-a — disse a rapariga simplesmente, e depois tremeu, com medo do ciúme da mãe.

— O amor é fácil, quando se é rico — respondeu Phyllida, mas foi o mais perto que chegou de criticar. A sua determinação em portar-se bem, em conter os demónios que a dilaceravam e uivavam no seu interior, fazia-a parecer lenta e aparentemente estúpida. Repetiu: — É melhor para ti, eu sei. — E: — Deves decidir por ti mesma. — Como se não tivesse sido tudo decidido há muito tempo.

Não lhe ofereceu chá nem um refresco; ficou sentada a agarrar os braços de uma cadeira e a fitar a filha, pestanejando de vez em quando, e depois, quando lhe pareceu que ia tudo rebentar dentro dela, disse apressadamente:

— Deves ir andando, Tilly. Sim, eu sei que agora és Sylvia, mas para mim és Tilly.

E Sylvia viera-se embora consciente de que só por um triz a mãe não gritara com ela.

Colin foi o primeiro a regressar: declarou que tinha sido formidável, e mais não disse. Passava muito tempo no quarto a ler.

Sophie veio dizer que ia começar as aulas na escola de teatro e que a sua casa seria a sua base, porque a mãe ainda precisava dela.

— Mas, por favor, posso vir cá com frequência? Adoro tanto os nossos jantares, Frances, adoro tanto os nossos serões!

Frances tranquilizou-a, abraçou-a e ficou a saber por esse contacto que a rapariga estava perturbada.

— O que se passa? — perguntou. — E o Roland? Não passaste um tempo agradável com ele?

Sophie respondeu, sem pretender ser brincalhona:

— Creio que não tenho idade suficiente para ele.

— Ah, compreendo. Foi ele que disse isso?

— Disse que se eu tivesse mais experiência compreenderia. É curioso, Frances, mas às vezes tenho a sensação de que ele não está de modo algum ali... está comigo, mas... e, no entanto, ama-me, Frances, diz que me ama...

— Então, já vês...

— Fizemos algumas coisas encantadoras. Andámos quilómetros, fomos ao teatro, juntámo-nos a algumas outras pessoas e passámos um tempo formidável.

Geoffrey ia começar a estudar na LSE. Passou para dizer que lhe parecia que já era um rapaz crescido e era tempo de ter o seu próprio canto. Ia partilhar uma casa com uns americanos que conhecera numa manifestação na Geórgia; era uma pena que o Colin fosse um ano mais novo do que ele, pois de contrário poderia partilhá-la também. Disse que gostaria de vir ali «como nos velhos tempos», que deixar esta casa era mais como sair de casa do que se estivesse a deixar os pais.

Daniel, um ano mais novo do que Geoffrey, tinha mais um ano de escola, um ano sem Geoffrey. James ia para a LSE.

Jill continuava a ser a esfinge. Não regressou com Rose, que nunca lhes disse onde estivera, embora tenha dito que Jill tinha estado em Bristol com um amante. Mas disse que ela voltaria.

Rose estava no rés-do-chão e anunciou que ia continuar na escola. Ninguém acreditou, mas enganaram-se. Na realidade, ela era inteligente, sabia-o e estava decidida a «mostrar-lhes». A mostrar a quem? Frances era com certeza a primeira dessa lista, mas na verdade ela referia-se a todos. «Vou mostrar-lhes» resmungava, e isso tornou-se como um mantra que repetia quando chegava a altura de fazer os trabalhos de casa, e quando o progressismo da escola parecia aquém do que ela esperara, como quando lhe pediram o favor de não fumar nas aulas. A determinação de Sylvia de ser bem-sucedida na escola não tinha apenas Julia como alvo, mas também Andrew, que continuava a tratá-la como um irmão mais velho afectuoso e amável, quando estava lá e não em Cambridge.

Problemas financeiros... Quando Frances tinha ido para aquela casa o combinado fora que Julia pagaria as contribuições de toda a casa, mas Frances seria responsável pelo resto: gás, electricidade, água, telefones. E também por Mrs. Philby e pela auxiliar que ela levava para a ajudar quando «os miúdos» se tornavam demais. «Miúdos? Mais parecem porcos.» Frances também pagava a comida, abastecia geralmente a casa do que era preciso e, em resumo, precisava de muito dinheiro. E estava a ganhá-lo. A conta de Cambridge chegara semanas antes, e Julia pagara-a: disse que o ano em que Andrew não estudara tinha sido uma grande ajuda. A conta da escola de Sylvia também foi paga — por Julia. Depois veio a de Colin, e Frances levou-a para a pequena mesa do patamar, no cimo da casa, onde era posto o correio de Julia, mas fê-lo com grande apreensão, e justificada, como se verificou quando Julia desceu com a conta da St. Joseph's na mão. Julia também estava nervosa. Desde que as barreiras entre as duas tinham sido demolidas, mostrara-se mais afectuosa com Frances, mas também mais impaciente e crítica.

— Sente-se, Julia.

Julia sentou-se, depois de ter afastado um par de meias de Frances.

— Oh, desculpe — pediu a nora, e Julia aceitou a desculpa com um pequeno sorriso tenso.

— Que vem a ser isto a respeito do Colin e de psicanálise?

Era o que Frances temia: já houvera conversas entre a escola e ela própria, e entre Colin e ela própria, e Sophie também estivera envolvida: «Oh, adorável, Colin, isso seria tão bom.»

— O director descreveu-mo como o facto de Colin ter alguém com quem falar.

— Eles podem chamar-lhe o que quiserem. Custará milhares, milhares de libras todos os anos.

— Ouça, Julia, sei que não aprova nenhuma dessas coisas psicológicas. Mas já pensou que ele terá um homem com quem falar? Bem, espero que seja um homem. Esta é uma casa de mulheres, e o Johnny...

— Ele tem um irmão, tem o Andrew.

— Mas eles não se entendem.

— Não se entendem? O que é isso? — Houve uma pausa, enquanto Julia esticava e depois cerrava os dedos que repousavam nos seus joelhos.

— Os meus irmãos mais velhos discutiam de vez em quando. É normal os irmãos discutirem.

Frances sabia que Julia tivera irmãos e que eles tinham sido mortos naquela guerra antiga. Os movimentos penosos dos dedos de Julia trouxeram-nos para aquela sala, o passado de Julia... irmãos mortos. Podia jurar que havia lágrimas nos olhos da sogra, embora ela estivesse sentada de costas para a luz.

— Eu consenti que o Colin falasse com alguém porque... ele está muito infeliz, Julia.

Frances ainda não sabia se Colin concordaria. O que ele dissera tinha sido: «Sim, eu sei, o Sam disse-me.» O director. «Respondi-lhe que o meu pai é que devia fazer análise. «Está para nascer o dia», dissera Frances, e ele: «Sim, e por que não tu? Tenho a certeza de que não te faria mal conversar um bocado.» «Falar com alguém.» «Não acho que eu seja mais maluco do que qualquer outra pessoa.» «Concordo com isso.»

Julia levantou-se.

— Penso que há algumas coisas acerca das quais não é provável que concordemos — disse. — Mas não foi isso que vim dizer. Mesmo sem a estúpida análise, não posso pagar pelo Colin. Pensava que ele ia deixar a escola agora, e afinal fico a saber que vai continuar mais um ano.

— Concordou em tentar de novo os exames.

— Mas eu não posso pagar por ele e pelo Andrew, e também pela Sylvia. Pagarei os estudos universitários de ambos, até serem independentes.

Mas o Colin... não posso. E a Frances agora está a ganhar dinheiro, espero que seja suficiente.

— Não se preocupe, Julia. Lamento muito que tudo isto lhe tenha caído em cima dos ombros.

— E suponho que é inútil pedir ao Johnny. Ele deve ter dinheiro, está sempre a viajar para qualquer lado.

— Pagam-lhe para isso.

— Porquê? Por que lhe pagam?

— Oh, o camarada Johnny, está a ver... é a modos que uma estrela, Julia.

— E um idiota — disse a mãe de Johnny. — Por que será? Eu não acho que seja uma idiota. E o pai dele não era, com certeza. Mas o Johnny é, sim, ele é um idiota. Julia parou junto da porta, passando um olhar entendido pela sala que em tempos fora a sua saleta de estar pessoal. Sabia que Frances não ligava àquele tipo de mobiliário — móveis tão bons —, nem aos cortinados, que durariam outros cinquenta anos se fossem devidamente cuidados. Desconfiava de que estavam cheios de pó e provavelmente de traças. A velha carpete, que viera da casa na Alemanha, estava puída em certos pontos.

— E desconfio de que você vai defender o Johnny, como sempre faz.

— Eu defendo-o? Quando é que defendi, alguma vez, a sua política?

— A sua política! Aquilo não é política, aquilo é uma tamanha... estupidez.

— É a política de metade do mundo, Julia.

— Mas não deixa de ser estupidez. Bem, Frances, não gosto de a ver mais preocupada, já com tantas coisas a sobrecarregá-la, mas não posso impedi-lo. Se é, realmente, incapaz de pagar as despesas do Colin, podíamos hipotecar a casa.

— Não, não, não... absolutamente não.

— Bem, diga-me, se houver dificuldades. — E saiu.

Haveria dificuldades. A escola de Colin era muito cara e ele concordara em fazer o ano inteiro. Já tinha dezanove anos, e isso era um embaraço. A conta para a Clínica de Maystock, o «falar com», custaria milhares. Enfim, ela precisava de arranjar mais trabalho. Pediria um aumento. Sabia que os seus artigos tinham feito subir a tiragem do The Defender. Podia escrever para outros jornais, mas com outro nome. Estes problemas tinham sido discutidos com — imaginem! — Rupert Boland, no Cosmo. Ele também tinha problemas financeiros, não especificados. Gostaria de deixar o The Defender, que alegava não ser lugar para um homem, mas pagavam-lhe bem. Recebia uma importância extra por fazer pesquisa para televisão e rádio: ela também podia fazer isso. Mesmo assim, precisaria de mais, precisaria de muito mais. Johnny: pedir-lhe de novo, talvez? Julia tinha razão, ele levava uma vida do equivalente actual a um rajá, participava em delegações e missões de boa vontade, hospedando-se sempre nos melhores hotéis, com todas as despesas pagas, transmitindo saudações de camaradagem de um lugar do mundo para outro. Devia estar a receber dinheiro de algum lado: quem lhe pagava a renda? Trabalhar, realmente, não trabalhava, nunca.

Com este Outono começou uma situação curiosa. Colin vinha duas vezes por semana da St. Joseph's para ir à Clínica de Maystock, onde tinha entrevistas marcadas com um Dr. David. Um homem: Frances estava encantada. Colin teria um homem com quem falar, um homem fora da sua situação familiar. («Se é disso que ele precisa», perguntara Julia, «por que não Wilhelm? Ele gosta do Colin.» «Mas, Julia, não compreende, ele é demasiado próximo, faz parte do nosso mundo.» «Não, não compreendo.») O problema é que, obedecendo a uma qualquer teoria psicanalítica, o Dr. David não falava nada. Dizia boa tarde, sentava-se na sua cadeira após um rápido aperto de mão e a partir daí não dizia uma palavra durante a hora inteira. Nem uma. «Limita-se a sorrir», contou Colin. «Eu digo qualquer coisa e ele sorri. E depois diz: "O tempo acabou. Até quinta-feira."»

Colin vinha da Maystock directamente para casa e ia logo ter com a mãe e dizia-lhe tudo o que não fora capaz de dizer ao Dr. David. Vinha tudo de enxurrada, as queixas, as angústias, as cóleras que Frances esperara que ele descarregasse, finalmente, nos ombros profissionais do Dr. David. O qual se limitava a ficar sentado em silêncio, o que levava Colin a ficar também calado, além de frustrado e furioso. Gritava à mãe que o Dr. David estava a torturá-lo e que a culpa era toda da escola, por obrigá-lo a ir à Clínica de Maystock. E a culpa de ele estar naquela confusão era dela. Por que casara com Johnny? — gritava-lhe. Aquele comunista, toda a gente sabia o que era o comunismo, mas ela casara com ele, Johnny não passava de um comissário fascista e ela, Frances, casara com ele e toda essa merda acabara por desabar em cima dele e de Andrew. Era isto que ele gritava parado no meio do quarto dela, mas a quem estava a gritar era ao Dr. David, porque estava tudo reprimido dentro dele e tinha de sair em qualquer lado. Durante todo o trajecto para Londres, no pequeno e ronceiro comboio, ensaiava as suas acusações contra a vida, o seu pai e a sua mãe, para as dizer ao Dr. David, mas este limitava-se a sorrir.

Por isso, tinha tudo de rebentar e sair de rajada, e tinha por alvo a sua mãe. Olha, gritava, visita após visita, olha para esta casa, cheia de pessoas que não têm direito algum de cá estar. Por que estava a Sylvia ali? Não era da sua família. Ela ficava com tudo, todos eles ficavam com tudo, e o Geoffrey, que andara anos a chupá-los. Frances alguma vez calculara, realmente, o que fora gasto com Geoffrey ao longo dos anos? Podiam ter comprado outra casa do tamanho da de Julia com o que ele custara. Por que estivera o Geoffrey sempre ali? Todos diziam que o Geoffrey era seu amigo, mas ele nunca gostara muito dele, a escola é que decidira que o Geoffrey era seu amigo. O Sam é que decidira que eles se completavam, por outras palavras, não tinham a porra de nada em comum, mas seria bom para eles; a verdade, porém, é que não tinha sido bom para ele, Colin, e Frances fora conivente com a escola, sempre fora conivente, às vezes ele até pensava que o Geoffrey era mais filho de Frances do que ele, e olhasse para o Andrew, deitado na cama um ano inteiro a fumar erva, e Frances sabia que ele também experimentara cocaína, não sabia? E se não sabia, porquê? Frances nunca sabia nada, limitava-se a deixar correr as coisas, e a Rose, o que estava a Rose a fazer naquela casa, a viver a expensas deles, a ter tudo, ele não queria a Rose ali, odiava-a, Frances sabia que ninguém gostava da Rose e no entanto ela estava lá em baixo, assenhoreara-se do andar e se alguém ousava espreitar à porta ela gritava-lhe que saísse. Era tudo culpa de Frances, às vezes ele pensava que era a única pessoa com juízo daquela casa, mas fora ele que tivera de ir para a Maystock para ser torturado pelo Dr. David.

Ao escutar Colin a vociferar assim, tirando e pondo os grossos óculos de aros pretos, agitando as mãos, andando pesadamente de um lado para o outro, ela estava a ouvir o que nenhum ser humano (a não ser o Dr. David e outros como ele, é claro) deveria jamais ter de ouvir: os pensamentos não censurados de outra pessoa. Provavelmente não eram pensamentos diferentes dos de muita gente, quando enfurecida e em estado de erupção. Felizmente as pessoas não podiam ouvir o que os outros pensavam delas, como ela era agora obrigada a ouvir, de Colin. A tirada da angústia decorria durante uma hora, o tempo que ele teria passado com o Dr. David. Depois dizia, numa voz inteiramente cordial e normal: «Agora tenho de ir apanhar o comboio.» Ou: «Fico cá esta noite e vou no primeiro comboio da manhã.» E o Colin que ela conhecia regressava, até mesmo sorridente, embora de um modo algo intrigado e frustrado. Devia estar completamente exausto depois de todo aquele alarido.

— Não tens de ir à Maystock — lembrou-lhe ela. — Podes dizer não. Queres que eu lhes diga que decidiste não ir?

Mas Colin não queria deixar de vir a Londres duas vezes por semana, para ir à Maystock, para a ver, a ela, sabia-o, pois sem a frustração da hora passada com o analista não poderia gritar e barafustar com ela, dizer aquilo que tinha pensado durante tanto tempo, mas nunca dissera, nunca fora capaz de deitar cá para fora.

Ao fim de uma hora a ser alvo dos gritos dele, Frances sentia-se tão cansada que ia para a cama ou se deixava cair numa cadeira. Uma noite, quando estava assim sentada no escuro, Julia bateu, abriu a porta, viu que a sala estava às escuras e depois que Frances estava lá. Acendeu a luz. Ouvira Colin gritar com a mãe e ficara perturbada com isso, mas não fora por esse motivo que descera.

— Sabia que a Sylvia não veio para casa?

— São só dez horas.

— Posso sentar-me? — E Julia sentou-se, com as mãos a esfrangalhar o lencinho que tinha no colo. — Ela é nova demais para estar fora de casa tão tarde com um grupo de pessoas pouco recomendáveis.

Às vezes, depois das aulas, Sylvia ia a um certo andar em Camden Town onde Jake e os seus amigos passavam a maior parte das tardes e dos serões. Eram todos cartomantes, um ou dois profissionais, ou escreviam horóscopos para jornais, eram iniciados em ritos, na sua maioria inventados por eles próprios, eram dados à evocação de espíritos e bebiam substâncias misteriosas com nomes como Bálsamo da Alma, Combinado Mental ou Essência da Verdade — que geralmente pouco mais eram do que misturas de ervas ou especiarias — e de modo geral viviam num mundo de significado e sentido muito distante do das outras pessoas. Sylvia fazia muito sucesso entre eles. Era a sua mascote, a neófita pela qual os possuidores do conhecimento anseiam, e eram-lhe devidamente confiados segredos do mais alto significado. Ela gostava daquelas pessoas porque elas gostavam dela e era sempre bem-vinda. Nunca procedia de modo irresponsável, telefonava sempre quando vinha mais tarde do que o habitual, e se por acaso se demorava ainda mais do que dissera voltava a telefonar a Julia.

— Se tens de estar com essa gente, que posso eu dizer, Sylvia? Frances também não gostava, mas sabia que aquilo acabaria por

passar à rapariga.

Mas para Julia era uma tragédia, a sua ovelhinha afastada dela, transviada por uns loucos doentios.

— Aquelas pessoas não são normais, Frances — disse esta noite, angustiada e à beira das lágrimas.

Frances não zombou — «Alguém é?» —, pois sabia que Julia enveredaria por definições. Além disso, sabia que ela descera por mais algum motivo além da sua ansiedade por causa de Sylvia, e aguardou.

— E como explica que um filho fale à sua mãe como o Colin lhe fala a si?

— Ele tem de dizer o que diz a alguém.

— Mas é ridículo, as coisas que ele diz... Eu ouço tudo, a casa inteira ouve.

— Ele não o pode dizer ao Johnny e, por isso, diz-mo a mim.

— Acho espantoso que lhes seja permitido comportarem-se dessa maneira. Porquê?

— Estão todos baralhados. Não acha estranho, Julia?

— Acho muito estranha a maneira como se comportam.

— Não, escute, eu penso no assunto. Eles são todos tão privilegiados, têm tudo, têm mais do que qualquer de nós alguma vez teve... bem, consigo talvez tenha sido diferente.

— Não foi. Eu não tinha um vestido novo todas as semanas. E não roubava. — O tom de voz de Julia subiu. — Aquela sua cozinha de ladrões, Frances... são todos ladrões e não têm moral nenhuma. Se precisam de alguma coisa, pronto, roubam-na.

— O Andrew, não. O Colin, não. E também não creio que a Sophie alguma vez tenha roubado.

— A casa está cheia de... você deixa-os vir para cá, eles abusam de si e são ladrões e mentirosos. Esta foi uma casa honrada, a nossa família era honrada e toda a gente nos respeitava.

— Sem dúvida, e eu pergunto-me por que é que eles são assim. Têm todos tanto, têm mais do que alguma geração jamais teve, e contudo...

— Estão baralhados — terminou Julia, levantando-se para se ir embora. Depois parou defronte de Frances, com as mãos afastadas, como se segurassem uma coisa invisível — uma pessoa? — que ela estava a torcer como um trapo. — Essa é uma boa expressão: baralhados. E eu sei porquê. Perturbado, não foi isso que disse que o Colin estava? São todos filhos da guerra, eis a razão. Duas guerras terríveis, e aqui está o resultado. São filhos da guerra. Acha que pode haver guerras assim, como aquelas, guerras tão terríveis, e depois podermos dizer: Pronto, acabou-se, agora é voltar ao normal? Agora nada é normal. As crianças não são normais e você, também... — mas ficou-se por aí e Frances não saberia o que Julia pensava dela.

E agora a Sylvia, com aqueles espiritualistas, como se proclamam... Sabia que apagam as luzes e se sentam de mãos dadas e uma mulher idiota qualquer finge que está a falar com um fantasma?

— Sabia, sim.

— E apesar disso, fica sentada, limita-se sempre a ouvi-los, mas não os detém.

— Julia, nós não podemos detê-los — disse Frances, quando ela ia a sair.

— Mas eu deterei a Sylvia. Digo-lhe que vá para casa da mãe, se quer continuar a andar com aquela gente.

A porta fechou-se e Frances disse em voz alta, para a sala vazia:

— Não, Julia, não fará isso; está apenas a resmungar para consigo, como uma velha bruxa, para desopilar.

Nessa mesma noite, quando a frase de Julia «Esta era uma casa honrada» ainda soava aos ouvidos de Frances, a campainha tocou, já tarde, e Frances desceu para ver quem era. No degrau estavam duas raparigas dos seus quinze anos, cujas expressões hostis e exigentes a avisaram do que ia ouvir, e que foi:

— Deixe-nos entrar. A Rose está à nossa espera.

— Mas eu não estava. Quem são vocês?

— A Rose disse que podemos morar aqui — afirmou uma delas, aparentemente a preparar-se para forçar o caminho e entrar.

— Não compete à Rose dizer quem pode e quem não pode morar aqui — respondeu Frances, surpreendida com a sua própria firmeza. E, vendo as raparigas hesitarem, acrescentou: — Se querem ver a Rose, venham amanhã a uma hora decente. Agora acho que ela está a dormir.

— Não, não está. — Frances olhou para baixo, para a janela do apartamento da cave, e viu Rose a gesticular energicamente às amigas e a dizer-lhes.

— Eu bem lhes disse que ela é uma vaca velha.

As raparigas afastaram-se, com trejeitos que significavam o que é que se pode esperar, para Rose, e uma disse bem alto, por cima do ombro:

— Quando ganharmos a Revolução, veremos quem ri melhor. Frances foi logo ter com Rose, que a esperava trémula de raiva.

O seu cabelo preto, já não domado pelo corte à Evansky, parecia eriçado, o seu rosto estava vermelho e ela parecia mesmo prestes a atacar fisicamente Frances.

— Que diabo de ideia é essa, de dizeres às pessoas que podem vir morar aqui?

- É o meu apartamento, não é? Posso fazer o que me apetecer no

meu próprio apartamento.

— Não é o teu apartamento. Nós permitimos que fiques aí até acabares a escola. Mas se aparecerem outras pessoas que precisem, usarão o segundo quarto.

— Eu vou alugar esse quarto.

A incredulidade perante o que estava a acontecer emudeceu Frances, situação que não era rara, tratando-se de Rose. Depois viu o ar triunfante da rapariga, por não ter sido contestada, e disse:

— Nós não te cobramos nada por viveres aqui. Vives aqui absolutamente de graça e, sendo assim, como pudeste imaginar, por um momento que fosse, que podias alugar um quarto?

— Não tenho outro remédio — gritou Rose. — Não posso viver com o que os meus pais me dão. São uns avarentos, é uma ninharia que não chega para nada.

— E para que precisas tu de mais, se não pagas nada por morar aqui, comes connosco e a tua escola está paga?

Mas Rose estava agora possessa de uma fúria descontrolada.

— Merdas, todos vocês são uns merdas. E não se importam com as minhas amigas, que não têm para onde ir. Têm andado a dormir num banco em King's Cross. Suponho que é isso que quer que eu faça.

— Se é isso que queres, podes ir — respondeu Frances. — Não estou a deter-te.

— O seu queridinho Andrew engravida-me — gritou Rose — e agora você põe-me na rua como um cão.

Isto deixou Frances perplexa, mas depois disse a si mesma que não podia ser verdade... e logo a seguir lembrou-se de que o aborto de Jill fora arranjado sem que ela soubesse de nada. A sua hesitação deu vantagem a Rose, que berrou:

— E veja o que aconteceu à Jill, obrigou-a a fazer um aborto quando ela não queria.

— Eu nem sabia que ela estava grávida. Não sabia nada a esse respeito — disse Frances, e depois deu-se conta de que estava a discutir com Rose, coisa que nenhuma pessoa no seu juízo faria.

— E suponho que também não sabia a meu respeito? Todas essas papariquices, sejam simpáticos com a Rose, mas era para encobrir o Andrew.

— Estás a mentir. Eu sei quando estás a mentir.

Mas depois ficou de novo chocada: Colin tinha dito que ela nunca sabia de nada do que se passava: e se Rose estivesse grávida? Mas não, Andrew ter-lhe-ia dito.

— E eu não vou continuar a viver aqui, com você a tratar-me de modo tão horrível. Sei quando não sou desejada.

O ridículo desta última declaração fez, realmente, Frances dar uma gargalhada, mas foi também de alívio por pensar que Rose poderia, de facto, ir-se embora.

— Muito bem, Rose, concordo contigo. Se te sentes assim, é obviamente melhor que te vás embora quando quiseres.

Subiu a escada, naquele silêncio que costuma dizer-se existir no coração da tempestade. Um olhar mostrou-lhe o rosto de Rose erguido para ela como se rezasse — mas depois uivou, em pranto.

Frances fechou a porta, correu para o seu quarto e atirou-se para cima da cama. Oh, meu Deus, quem me dera livrar-me de Rose, livrar-me simplesmente de Rose... O bom senso, porém, insinuou-se: Mas, é claro, ela não irá.

Ouviu Rose correr ruidosamente pela escada acima e desatar aos murros na porta de Andrew. Demorou-se muito tempo no quarto dele. Frances — a casa inteira, na realidade — ouviu os soluços, os gritos, as ameaças.

Depois, já passava bem da meia-noite, ela desceu, passando pelos aposentos de Frances, e reinou o silêncio.

Bateram-lhe à porta: era Andrew, branco de exaustão.

— Posso sentar-me? — Sentou-se. — Não imaginas como é sempre divertido ver-te neste ambiente inverosímil — comentou, mantendo a compostura, apesar de tudo.

Frances viu-se de jeans coçados, camisola e pés descalços, e depois a mobília de Julia, que provavelmente deveria estar num museu. Conseguiu sorrir e abanar a cabeça, num gesto que dizia «tudo isto é demais».

— Ela disse que estás a pô-la na rua.

— Se ao menos isso fosse possível. Ela é que disse que se ia embora.

— Receio que não tenhamos essa sorte.

— Disse que a engravidaste.

— O quê?

— Foi o que ela afirmou.

— Não houve penetração. Enrolámo-nos um bocado, foi mais uma brincadeira do que outra coisa. Durou uma hora, pouco mais ou menos. É impressionante como aqueles cursos esquerdistas de tempo de Verão parecem... hum... a mais leve brisa parece murmurar: Por favor, sexo, sexo, sexo.

— O que vamos fazer? Por que não a mandamos simplesmente embora, meu Deus, por que não fazemos isso?

— Se o fizermos ela ficará nas ruas. Não irá para casa.

— Também acho.

— É apenas um ano. Temos de aguentar até ao fim.

— O Colin está furioso por ela estar aqui.

— Eu sei. Não te esqueças de que todos nós ouvimos as queixas dele contra a vida. E contra a Sylvia. Provavelmente também contra mim.

— Contra mim, sobretudo.

— Agora vou lá abaixo dizer-lhe que se alguma vez repetir que a engravidei... espera lá, suponho que também disse que a fiz fazer um aborto?

— Ela não disse isso, mas calculo que o dirá.

— Meu Deus, que cabra.

— Mas como é eficaz, ser cabra. Ninguém lhe pode fazer frente.

— Observa-me, e verás.

— O que vais fazer? Chamar a polícia? A propósito, que é feito da Jill? Parece ter desaparecido.

— Ela e a Jill discutiram. Suponho que a Rose se livrou simplesmente dela.

— Mas onde está? Alguém sabe? Supostamente, estou in loco parentis.

— «Loco» é uma boa palavra, neste contexto — comentou Andrew, e saiu.

Mas Frances estava a aprender que enquanto era vista pelos «miúdos» como uma espécie de benévola aberração da natureza, e eles suficientemente felizardos para beneficiarem disso, estava longe de ser a única na situação de in loco parentis. Chegara uma carta de Espanha, depois do Verão, de uma inglesa que vivia em Sevilha, dizendo que gostara muito da companhia de Colin, o encantador filho de Frances. (Colin, encantador? Bem, nesta casa, não, não era.) «Um grupo muito simpático, este Verão. Nem sempre corre tudo tão bem. Eles às vezes têm problemas tão grandes! Acho extraordinário o modo como vão para casa de outros pais. A minha filha arranja pretextos para não vir a casa. Tem um lar alternativo em Hampshire, com um ex-namorado. Suponho que temos de admitir que é isso que acontece.»

Uma carta da Carolina do Norte. «Viva, Frances Lennox! Tenho a sensação de que a conheço muito bem. O seu Geoffrey Boné passou aqui semanas, com outros jovens de outras partes do mundo, todos para participarem na Luta pelos Direitos Civis. Batem-me à porta, jovens desgarrados e abandonados do mundo — não, não, não me refiro ao Geoffrey; nunca conheci um jovem mais sereno. Mas colecciono-os, assim como a Frances, e assim como a minha irmã Fran na Califórnia. O meu filho Pete vai a Inglaterra no próximo Verão e tenho a certeza de que irá aí parar.» Da Escócia, da Irlanda, de França... cartas que iam para uma pasta de outras similares que chegavam havia anos, desde o tempo em que quase não via Andrew.

Foi assim que as mães-de-casa, as mães-terra, que proliferaram por todo o lado nos anos 60 tomaram pouco a pouco consciência da presença umas das outras pelo mundo fora e compreenderam que faziam parte de um fenómeno: o geist estava de novo em acção. Formaram uma rede, antes de o termo se ter tornado parte da linguagem. Eram uma rede de educadoras. De educadoras neuróticas. Como «os miúdos» tinham explicado, Frances estava a curar-se de qualquer espécie de culpa enraizada na sua infância. (Frances dissera que não se surpreenderia nada se fosse isso.) Quanto a Sylvia, tinha uma «linha» diferente. (Origem de linha: calão do Partido.) Sylvia aprendera com os seus formidáveis amigos místicos que Frances estava a trabalhar no seu karma, danificado numa vida anterior.

Numa das suas visitas a casa, para gritar com a mãe, Colin trouxe consigo Franklin Tichafa, de Zimlia, uma colónia britânica que, no dizer de Johnny, estava na iminência de passar para o Quénia. E os jornais também diziam todos o mesmo. Franklin era um rapaz negro, um pouco gordo e risonho. Colin disse à mãe que não podiam usar a palavra rapaz porque tinha más conotações, mas Frances respondeu-lhe: «Ele ainda não é um homem, pois não? Se um rapaz de dezasseis anos não pode ser descrito como rapaz, quem pode?»

— Ela faz de propósito — disse Andrew. — Para chatear.

Isso era em parte verdade. Johnny queixara-se há muito tempo de que Frances era politicamente obtusa, de propósito, para o embaraçar na presença dos camaradas, e na realidade ela fizera-o algumas vezes propositadamente, assim como estava a fazê-lo agora.

Toda a gente gostava de Franklin, assim chamado em homenagem a Franklin Roosevelt, que andava a «tirar» literatura na St. Joseph's para agradar aos pais, mas planeava estudar economia e política na universidade.

— Isso é o que vocês andam todos a estudar — comentou Frances. — Política e economia. É extraordinário que alguém queira estudar isso, quando nunca percebem nada, sobretudo os economistas.

Este comentário era tão avançado em relação à época, que o deixaram passar ou provavelmente nem o ouviram.

Na noite em que Franklin chegou, Colin não desceu aos aposentos de Frances para a habitual sessão de acusações: não tinha ido a Maystock. Franklin dormiu no quarto dele, num saco de dormir, no chão.

Frances ouviu-os conversar e rir mesmo por cima da sua cabeça... O seu muito abusado coração parecia respirar com mais facilidade, e ela achou que, afinal, do que Colin precisava, realmente, era de um bom amigo, de alguém que se risse muito: eles brincavam e, como é próprio de jovens (ou rapazes), trocavam palmadas, socos e larachas. Franklin foi vindo mais vezes, e Colin disse que estava farto da Maystock. Surpreendera, realmente, o Dr. David a dormir enquanto ele se mexia nervosamente na sua cadeira de paciente, à espera de que o grande homem dissesse, enfim, alguma coisa.

— Quanto lhe pagam? — perguntou. Frances disse-lhe.

— Rico emprego, para quem consegue arranjá-lo — comentou Colin.

Mas estaria ele de novo a «guardar» dentro de si? Teria esgotado toda a sua cólera naquelas noites de acusações contra ela? Não fazia ideia. Mas continuava a sair-se mal na escola e queria sair.

Foi Franklin quem lhe disse que era uma asneira.

— Essa seria uma má jogada — disse-lhe, à mesa do jantar. — Se o fizeres, quando fores crescido arrepender-te-ás.

A última frase era uma citação directa. Em qualquer grupo de jovens, ditos, admoestações e conselhos emanados das bocas dos pais são repetidos pelas deles de brincadeira, zombando ou a sério. «Quando fores crescido arrepender-te-ás» fora dito pela avó de Franklin, junto da fogueira — um toro ardia no centro da cabana —, numa aldeia onde uma cabra podia empurrar portas encostadas na esperança de roubar alguma coisa. Uma negra ansiosa a quem Franklin dissera que não queria aceitar a sua bolsa para a St. Josephs — estava cheio de medo —, tinha-o avisado: «Quando fores crescido arrepender-te-ás.»

— Já sou crescido — respondeu Colin.

Era de novo Novembro, escuro e chuvoso. Em virtude de ser fim-de-semana, encontravam-se todos presentes. Sylvia estava sentada à esquerda de Frances e os outros tinham o cuidado de fingir que não reparavam que ela se debatia com a comida. Abandonara o círculo de pessoas que nunca conseguiam dizer nada sem olhares significativos e vozes cheias de subentendidos, dizendo, como Julia poderia ter feito: «Não são pessoas muito decentes.» Jake aparecera lá em casa, para falar com Frances, e estava visivelmente ansioso.

— Existe um problema, Frances. É cultural. Penso que nós nos Estados Unidos nos inibimos menos do que vocês aqui.

— Confesso que me apanhou desprevenida — respondeu Frances. — Sylvia não nos disse nada a respeito do motivo por que...

— Mas não havia nada a dizer, acredite.

Sylvia confidenciou a Andrew que o que a «transtornara» não tinham sido os loucos ritos satânicos que os outros tinham imaginado e de que haviam troçado, enquanto ela lhes dizia que eram tolices, ou sessões que tinham corrido mal — ou bem, dependendo do ponto de vista —, com aparições ruidosas com alguma coisa urgente a comunicar, no género de que Sylvia deveria usar sempre azul e um amuleto de turquesa —, mas que Jake a beijara e lhe dissera que já era velha de mais para continuar virgem. Ela esbofeteara-o, com força, e dissera-lhe que era um velho nojento. Para Andrew era evidente que Jake lhe oferecera arcanos deleites sexuais, mas Sylvia replicara: «Ele tem idade suficiente para ser meu avô.» E tinha. À justa.

Andrew viera passar o fim-de-semana, porque Colin lhe tinha dito pelo telefone que Sylvia tivera uma recaída. Fora Colin quem ligara, e sendo assim o que significavam todas as suas reclamações furiosas acerca da presença da rapariga ali em casa? «Tens de vir, Andrew. Sabes sempre o que fazer.» E Julia, sabia ela o que fazer? Aparentemente, já não. Ao saber que Sylvia estava de novo no seu quarto, e não fora noite após noite, dissera, naquele tom de voz muito pesaroso que parecia ter agora adoptado permanentemente:

— Sim, Sylvia, é isso que devemos esperar quando convivemos com tal gente.

— Mas não aconteceu nada, Julia — murmurara Sylvia, e tentara abraçá-la. Os braços de Julia que ainda recentemente a abraçavam com tanta facilidade, abraçaram-na de novo, mas não como dantes, e Sylvia chorou no seu quarto por causa daqueles velhos braços rígidos que a censuravam.

Sylvia estava sentada com o garfo na mão, a virar e revirar um pedaço de batata cozinhada em natas, cozinhada assim porque ela gostava.

Andrew estava ao lado de Sylvia e Colin ao lado dele, com Rose do outro lado. Não trocavam nem um olhar nem uma palavra. James também viera da sua escola e dormiria no chão da sala. Defronte de Rose estava Franklin, que bebera um nadinha a mais do que a conta. Havia garrafas de vinho espalhadas pela mesa, trazidas por Johnny que se encontrava no seu posto junto da janela. Ao lado de Franklin estava Geoffrey, que frequentava o primeiro período na LSE. Parecia um guerrilheiro, com o seu vestuário de excedentes do exército. Estava ali porque encontrara Johnny no Cosmo e ficara a saber que ele viria naquela noite.

Sophie não estava presente, mas visitara a casa naquela tarde, para ver a querida Frances. Estava a achar a vida difícil, não por causa da escola de teatro, onde ia brilhantemente, mas sim de Roland Shattock. Naquela noite tinha ido com ele a uma discoteca. A seguir a Frances encontrava-se Jill, que reaparecera naquela tarde. Perguntou timidamente se podia ficar para jantar. Tinha uma ligadura no pulso esquerdo e muito mau aspecto. Rose acolhera-a com a pergunta: «O que pensas que estás a fazer aqui?» Jill esperou que houvesse risos e ruídos suficientes para perguntar a Frances: «Posso vir morar no outro quarto, lá em baixo? É a si que compete dizer quem lá pode ficar, não é?» O problema é que Colin tinha dito que queria que Franklin ficasse com o uso desse quarto e fosse convidado para o Natal. E, obviamente, Jill e Rose não poderiam ficar juntas.

— Tencionas voltar para a escola? — perguntou Frances.

— Não sei se me aceitam — respondeu Jill, lançando-lhe um olhar tímido e suplicante, que significava: Importa-se de lhes perguntar se me voltam a aceitar?

Mas onde iria ela viver?

— Estiveste no hospital?

A rapariga acenou com a cabeça. Depois, ainda num murmúrio, acrescentou:

— Estive lá um mês. — Isso significava que estivera numa enfermaria psiquiátrica, e esperava que Frances o compreendesse. — Não podia dormir apenas na sala?

Andrew, aparentemente ocupado com Sylvia, a encorajá-la e a rir quando ela gracejava a respeito das suas dificuldades, estava também a ouvir a troca de palavras entre a mãe e Jill e prendeu o olhar de Frances e abanou a cabeça. Os polegares para baixo não poderiam ter sido mais evidentes, embora se tratasse apenas de um pequeno não que pretendia passar despercebido. Mas Jill viu-o. Ficou calada, de olhos baixos e lábios a tremer.

— O problema é onde te vamos pôr — disse Frances. E Jill provavelmente não conseguiria sair-se bem na escola, mesmo que ela conseguisse que a readmitissem. O que se poderia fazer?

Este pequeno drama desenrolava-se na extremidade da mesa onde Frances se encontrava; na outra reinava um bom humor ruidoso. Johnny falava-lhes da sua ida à União Soviética com uma delegação de bibliotecários e os gracejos eram a expensas dos membros que não pertenciam ao partido e tinham cometido gafes atrás de gafes. Um exigira que lhe garantissem — numa reunião do Sindicato de Escritores Soviéticos — que não havia censura na União Soviética.

Outro quisera saber se a União Soviética, «como o Vaticano», tinha um índex de livros proibidos. «Quero dizer», explicou Johnny, «isso revela, de facto, um nível imperdoável de ingenuidade política.»

Depois o assunto foram as eleições recentes, que tinham reconduzido o Partido Trabalhista. Johnny estivera activo nesse capítulo: tarefa complicada, pois se, por um lado, o Partido Trabalhista representava obviamente uma ameaça maior para a classe trabalhadora do que os Conservadores (confundindo mentalidades com formulações incorrectas), por outro considerações tácticas tinham imposto que lhe fosse dado apoio. James prestava atenção aos prós e aos contras de tudo aquilo como se estivesse a ouvir a sua música preferida. Johnny saudara-o com um aceno de cabeça de camaradagem e pusera-lhe a mão no ombro, mas agora estava concentrado no recém-chegado, e ainda por conquistar, Franklin. Fez uma breve resenha da política colonial em relação a Zimlia, enumerou os crimes da política colonial no Quénia, evidenciando especial satisfação nas passagens onde a Grã-Bretanha procedera mal, e começou a exortar Franklin para lutar pela liberdade de Zimlia. «Os movimentos nacionalistas de Zimlia não são tão desenvolvidos como os Mau Mau, mas cabe aos jovens como tu libertar o vosso povo da opressão.» Johnny tinha um copo na mão esquerda e estava inclinado para a frente, com os olhos fixos nos de Franklin, ao mesmo tempo que lhe apontava o indicador da mão direita, como se o alvejasse com um revólver. Franklin mexia-se e sorria, incomodado, e por fim disse: «Com licença», e saiu — para ir à casa de banho, na realidade, mas dir-se-ia que fugia, e quando voltou sorriu e estendeu o prato a Frances, para repetir, e não olhou para Johnny, que tinha estado à espera do seu regresso. «A história depositou nos ombros da tua geração, em África, mais responsabilidade do que no de qualquer outra. Como eu desejava ser de novo jovem, como desejava ter tudo isso à minha frente.»

E, caso raro, as suas feições, geralmente vincadas por uma expressão de autoridade marcial, foram suavizadas pela nostalgia. Johhny estava a tornar-se um combatente a envelhecer, pensou Frances, e como devia detestar isso, pois a cada dia surgiam notícias de novos e mais jovens avatares da Revolução. Pobre Johnny, estava na prateleira. No mesmo momento, Franklin ergueu o copo num gesto violento, que parecia uma paródia, e brindou: «A Revolução em África!» e caiu para a frente na mesa, apagado, ao mesmo tempo que Jill se levantava e dizia:

— Com licença, com licença, agora tenho de ir.

— Queres dormir aqui esta noite? Há a sala... O James e tu podem fazer companhia um ao outro.

Jill parou a abanar a cabeça, apoiando-se com uma mão no braço de Frances, e depois caiu desmaiada a seus pés.

— Mas que confusão — disse Johnny, bem-disposto, e observou enquanto Geoffrey e Colin reanimavam Franklin e lhe chegavam um copo de água aos lábios, e Frances levantava Jill. Rose continuou sentada, a comer como se nada estivesse a acontecer. Sylvia murmurou que queria ir para a cama e Andrew levou-a para cima.

Franklin foi ajudado a descer para o segundo quarto do apartamento da cave, e Jill metida num saco-cama na sala. James disse que olharia por ela, mas adormeceu imediatamente. Frances desceu durante a noite, para ver como estava Jill, e encontrou ambos a dormir. O aspecto da rapariga era terrível, à luz fraca da porta para o patamar. Precisava de cuidados. Era obviamente necessário telefonar aos pais dela e pô-los a par da situação, que provavelmente desconheciam. E de manhã Jill devia ser convidada a ir para casa.

Mas de manhã ela partira, desaparecera na selvagem e perigosa Londres. E Rose, quando lhe perguntaram onde pensava que Jill poderia estar, respondeu que não era ama dela.

Era natural um certo nervosismo a respeito de Franklin, visto partilhar espaço com Rose. Receavam que ela tivesse preconceitos raciais, «com aqueles antecedentes» — modo eufemístico de Andrew se referir aos seus antecedentes de classe. Mas afinal estavam enganados. Rose foi «simpática» com Franklin. «Foi realmente simpática», comunicou Colin. «Ele acha-a formidável.»

E achava. E com razão. Nascera uma amizade aparentemente improvável entre o bem-humorado e amável jovem negro e a rapariga rancorosa, cuja fúria fervilhava e explodia com a mesma fiabilidade da mancha vermelha de Júpiter.

Frances e os filhos maravilhavam-se com isso, pois não conseguiam imaginar duas pessoas mais diferentes, mas na realidade eles habitavam uma paisagem moral similar. Rose e Franklin nunca saberiam quanto tinham em comum.

Desde que chegara àquela casa que Rose fora possuída por uma fúria silenciosa, gerada pelo facto de aquela gente considerar a casa sua, como por direito. Aquela grande casa, os seus móveis que pareciam saídos de um filme, o seu dinheiro... mas tudo isso constituía apenas os alicerces de uma angústia mais profunda, pois era disso que se tratava, de uma espécie de queimadura cáustica que nunca lhe dava tréguas. Era o à-vontade deles com tudo, com o que tomavam por adquirido, com o que sabiam. Ela nunca mencionara um livro — e houve um período em que os punha à prova com livros de que nenhuma pessoa no seu perfeito juízo podia ter ouvido falar — que eles não tivessem lido ou de que não tivessem ouvido falar. Parava naquela sala, com duas paredes forradas de livros do chão ao tecto, e sabia que eles os tinham lido.

— Frances — desafiou, ao ser surpreendida lá, com as mãos nos quadris e a olhar furiosa para os livros —, leu, realmente, todos estes livros?

— Bem, li, sim, creio que li.

— Quando os leu? Tinha livros em sua casa, quando cresceu?

— Sim, tínhamos os clássicos. Acho que toda a gente os tinha, naquele tempo.

— Toda a gente, toda a gente! Quem é toda a gente?

— A classe média — respondeu Frances, decidida a não se deixar intimidar. — E também uma boa proporção da classe trabalhadora.

— Oh, quem disse?

— Verifica. Não é difícil verificar este tipo de coisas.

— E quando tinha tempo para ler?

— Deixa-me ver... — Frances recordava-se de si mesma, a maior parte do tempo sozinha, com dois filhos pequenos e o seu tédio aliviado apenas pela leitura. Lembrava-se de Johnny insistir com ela para ler isto, ler aquilo... — O Johnny foi uma boa influência — disse a Rose, insistindo consigo mesma que era preciso ser justa. — Ele é muito lido, como sabes. Os comunistas são-no, geralmente... é engraçado, não é, mas são... Ele fazia-me ler.

— Todos estes livros — disse Rose. — Bem, nós não tínhamos livros.

— É fácil recuperar o tempo perdido, quando queremos. Podes ler o que quiseres daqui.

Mas a naturalidade de tudo aquilo fez Rose cerrar os punhos. Fosse o que fosse a que se aludisse, eles pareciam estar ao corrente: uma ideia, um facto histórico. Estavam de posse de algum banco de conhecimento: não importava o que se perguntava, eles sabiam tudo.

Rose tirara livros das prateleiras, mas não os apreciava. Podia ler devagar, mas lia: se alguma coisa era, era perseverante e não desistia. Mas enchia-se de fúria enquanto lia, uma fúria que se erguia entre ela e a história ou os factos que tentava apreender. Era por causa desta gente ter tudo isto como uma espécie de herança, enquanto ela, Rose...

Quando chegara e se encontrara na complexa riqueza de Londres, Franklin vivera dias de pânico em que desejara não ter aceite a bolsa de estudos.

Era esperar demasiado dele. O seu pai fora professor dos primeiros anos numa escola da missão católica. Os padres, vendo que o rapaz era inteligente, tinham-no encorajado e apoiado, até que a certa altura pediram a uma pessoa rica — Franklin nunca saberia quem era — que acrescentasse aquele rapaz prometedor à sua lista de beneficiários. Um empreendimento dispendioso: dois anos na St. Joseph's e depois, com sorte, a universidade.

Quando regressara da escola da missão à sua aldeia, Franklin sentira-se secretamente envergonhado da situação dos seus pais. E ainda sentia. Algumas cabanas de colmo no mato, sem electricidade, nem telefone, nem água instalada, nem casa de banho. A loja mais próxima ficava a cerca de oito quilómetros de distância. Em comparação, a escola da Missão, com as suas comodidades, parecia um lugar rico. A deslocação para Londres fora violenta: estava rodeado por tais riquezas, tais maravilhas, que a Missão só podia parecer-lhe miserável, pobre. Ficara os primeiros dias em Londres com um padre bondoso, amigo dos da Missão, que compreendeu que o rapaz deveria estar em estado de choque e andou com ele de autocarro e de metro e o levou aos jardins, aos mercados, às grandes lojas, aos supermercados, ao banco e a comer em restaurantes. Tudo isso para o acostumar; mas depois ele teve de ir para a St. Josephs, um lugar que parecia o paraíso, com edifícios como ilustrações de livros espalhados por campos verdes, e onde os rapazes e as raparigas eram todos brancos, com excepção de dois nigerianos que lhe pareceram tão estranhos como os brancos, e os professores, totalmente diferentes dos padres católicos, que eram todos tão cordiais, tão amáveis... Fora da escola da Missão, não encontrara amabilidade em pessoas brancas. Colin estava num quarto ao longo do corredor, a duas portas do seu. Para Franklin, o pequeno quarto tinha tudo quanto qualquer pessoa poderia desejar, incluindo um telefone. Era um pequeno paraíso, mas ele ouvira Colin queixar-se da sua excessiva pequenez. A comida — a variedade, a abundância, cada refeição como se fosse um banquete, mas ele ouvira resmungar que a comida era monótona. Na Missão pouco mais tivera para comer do que papas de milho e molhos.

Lentamente, crescera dentro dele um forte sentimento que, às vezes, ameaçava irromper-lhe, escaldante, da boca em insultos e acusações, enquanto sorria e se mostrava agradável e submisso. Não está certo, não é justo, vocês têm tanto e não sabem dar-lhe o devido valor. Era isso que o magoava, que o feria, que lhe doía: eles não fazem a mínima ideia da sorte que têm. E quando foi com Colin à grande casa, que lhe pareceu dever ser um palácio (foi isso que pensou, ao princípio), encontrou-a cheia de coisas bonitas, deu consigo sentado em silêncio enquanto todos eles brincavam e chalaceavam. Observou o irmão mais velho, Andrew, e a sua ternura com a rapariga que se sentira mal, e mentalmente sentiu-se no lugar dela, ali sentado entre Frances e Andrew, ambos tão amáveis com ela, tão meigos. Depois dessa primeira visita aconteceu o mesmo que quando tinha sabido da bolsa de estudos. Não entendia, não estava à altura daquilo, algumas vezes nem sabia para que serviam as coisas: um objecto de cozinha ou um móvel. Mas voltou, uma vez e outra e outra, e viu-se tratado como um filho da casa. Ao princípio, Johnny foi um problema. Franklin já tinha estado exposto às doutrinas de Johnny, às coisas que ele dizia, e decidira que não queria ter nada que ver com aqueles políticos, que o assustavam. Políticos tinham-no exortado a matar todos os brancos, mas a sua experiência do bem recebera-a por intermédio dos padres brancos da Missão, apesar de serem severos, e por intermédio de um protector branco desconhecido, e agora destas pessoas amáveis na nova escola e nesta casa. E, no entanto, ardia, consumia-se, sofria: era inveja e estava a envenená-lo. Eu quero. Eu quero isto. Eu quero. Eu quero...

Sabia que não podia dizer a maior parte do que pensava. Os pensamentos que enchiam a sua cabeça eram perigosos e não podia permitir que se revelassem. E com Rose também não os deixava exprimir-se. Nem Rose nem Franklin permitiam jamais que o outro visse as cenas sinistras e venenosas que albergavam nas respectivas mentes. Mas gostavam de estar um com o outro.

Ele precisou de muito tempo para deslindar o que as pessoas eram umas para as outras, as relações entre elas, e se essas relações existiam. Não era surpreendente para ele que um grupo tão grande de pessoas se sentasse à volta daquela mesa para comer, embora, para encontrar uma comparação, tivesse de remontar à sua aldeia, onde estava habituado a que as pessoas fossem bem-vindas, esperassem ser alimentadas e lhes fosse dado um lugar para dormir. Na pequena casa dos seus pais na Missão, pouco mais do que um simples quarto e uma cozinha, não havia espaço para o género de hospitalidade natural da aldeia. Quando Franklin ficava com os avós nas férias escolares, à volta do grande tronco que ardia toda a noite no meio da cabana dormiam embrulhadas em mantas pessoas que ele não conhecera antes e poderia nunca mais voltar a ver: parentes distantes de passagem. Ou conhecidos em maré de pouca sorte que ali iam procurar refúgio. No entanto, a par desta bondosa hospitalidade havia uma pobreza de que se envergonhava, ou pior ainda, que já não podia compreender. Quando regressasse a casa depois de tudo isto seria capaz de a suportar? — pensava, ao ver as roupas de Rose amontoadas na cama dela, ao ver o que as crianças da escola tinham: não havia um fim para o que eles possuíam, para o que esperavam ter. E ele tinha algumas, poucas, roupas cuidadosamente guardadas, que os pais lhe tinham comprado com tanta dificuldade.

E depois, os livros no piso de cima. Na missão houvera uma Bíblia, livros de orações e The Pilgrim's Progress, que ele lia e relia constantemente. Lera jornais já com semanas, que encontrara empilhados para forrar prateleiras ou gavetas na copa da Missão. Guardava como um tesouro uma Arthur Mee Childrens Enciclopaedia que achara num monte de lixo, deitada fora por uma família branca. Agora tinha a sensação de que sonhos que o haviam acompanhado desde a infância se tinham tornado realidade naquelas paredes forradas de livros da sala. Tirou um livro, folheou-o e o precioso objecto palpitou, vivo, nas suas mãos. Levava livros às escondidas para o seu quarto, na esperança de que Rose não visse, pois ela chocara-o ao dizer-lhe: «Eles só fingem que lêem esses livros, sabes. É tudo uma farsa.»

Mas Franklin ria-se, porque ela queria que ele se risse: Rose era sua amiga. Disse-lhe que a considerava sua irmã: tinha saudades das suas irmãs.

Este ano o Natal ia ser a sério, porque Colin e Andrew estariam ambos em casa. A mãe de Sophie dissera-lhe que não queria estragar-lhe a festa e que ela própria iria para casa da sua irmã. Sophie andava mais bem disposta, já não chorava dia e noite e frequentava um curso de Terapia da Dor.

Como Johnny estava em casa entre viagens, presumivelmente Phyllida teria quem olhasse por ela e não precisaria de Andrew para isso.

Quando Frances disse que haveria Natal, apareceu imediatamente nos rostos e nos olhos um espírito de frivolidade, presente também em gracejos destinados a zombar da festa, embora estes últimos tivessem de ser contidos para não perturbarem a alegria de Franklin. Ele tinha a sensação de não poder esperar que o tempo passasse até ao dia dos festejos, a respeito dos quais lia em todos os jornais e via anúncios na televisão, e que já estavam a encher as lojas de cores vivas. Mas sentia-se secretamente infeliz porque haveria oferta de presentes e ele tinha muito pouco dinheiro. Frances acabara de reparar que o seu casaco era de tecido fino e que ele não tinha nenhuma camisola quente, e deu-lhe dinheiro para se vestir, como presente de Natal. Ele guardava-o numa gaveta e sentava-se na cama a virá-lo e revirá-lo como uma galinha choca aos seus ovos. O facto de aquela importância em dinheiro estar nas suas mãos, nas suas mãos, fazia parte do milagre que o Natal parecia ser para ele. Mas Rose abriu a porta do seu quarto, para ver como ele estava, viu-o inclinado para a gaveta com o dinheiro, saltou e contou-o.

— Onde roubaste isso?

Isto correspondia tanto ao que aprendera a esperar dos brancos que gaguejou:

— Mas, missus, missus...

Rose, que não conhecia a palavra, insistiu:

— Onde o arranjaste?

— A Frances deu-mo, para comprar roupas.

A cara da rapariga ficou afogueada de cólera. A Frances não lhe dera tanto, apenas o suficiente para comprar um vestido Biba e fazer mais uma visita a Mrs. Evansky. Depois disse:

— Tu não precisas de comprar roupas. — Estava sentada na cama ao lado dele, com o dinheiro na mão, tão próxima que qualquer suspeita, da parte de Franklin, de preconceito racial teve de ser abandonada. Nenhuma pessoa branca em toda a colónia, nem mesmo os padres brancos, se sentaria tão perto de uma pessoa negra num gesto de amizade natural. — Podes fazer coisas melhores com esse dinheiro — disse Rose e, relutantemente, devolveu-lho. Viu-o metê-lo de novo na gaveta.

Geoffrey passou pela casa uma noite e juntou-se a Rose num plano para vestirem Franklin. Quando ele entrara para a LSE encantara-o verificar que roubar roupas, livros, fosse o que fosse que se quisesse, como meio para minar o sistema capitalista, era um facto adquirido. Pagar, realmente, alguma coisa, bem, até que ponto alguém pode ser politicamente ingénuo? As coisas não se compravam, «libertavam-se»: a antiga palavra da II Guerra Mundial ganhara novo fôlego e estava em voga.

Geoffrey iria passar lá o Natal — «Temos de passar o Natal em casa» — e nem sequer ouviu o que tinha dito.

James disse ter a certeza de que os seus pais não se importariam com a sua ausência: visitava-os no Ano Novo.

Lucy, da Dartington, viria: os pais iam para a China numa missão humanitária qualquer.

Daniel disse que tinha de ir a casa, mas esperava que lhe guardassem uma fatia de bolo.

Chegara uma cartinha triste de Jill. Pensava em todos; eram os seus únicos amigos. «Por favor, escrevam-me. Por favor, mandem-me algum dinheiro.» Mas não indicava nenhuma morada.

Frances escreveu aos pais de Jill, a perguntar se a tinham visto. Já escrevera antes, a confessar a impossibilidade de a manter na escola.

A resposta que então recebera dizia: «Por favor não se censure, Mrs. Lennox. Nós nunca fomos capazes de fazer nada com ela.» Desta vez, a carta de resposta dizia: «Não, ela não achou indicado contactar-nos. Ficaríamos gratos se nos informasse se ela aparecer em sua casa. Na St Joseph's não sabem nada. Ninguém sabe.»

Frances escreveu aos pais de Rose a informar que ela tinha tido boas notas no período do Outono. A carta de resposta dos pais dizia: «Provavelmente não sabe, mas não temos tido notícias nenhumas da nossa filha e estamos gratos por sabermos dela. A escola enviou-nos uma cópia das notas. Deduzimos que lhe enviou outra a si. Ficámos surpreendidos; ela costumava orgulhar-se — ou pelo menos era isso que nos parecia — de quanto era capaz de ser má aluna.»

Sylvia também se saiu bem. Isso devia-se em parte à ajuda de Julia, embora essa ajuda tivesse diminuído recentemente. Sylvia voltara a subir e a ir ter com ela e, com a voz a tremer de amor e lágrimas, dissera-lhe: «Por favor, Julia, não continue zangada comigo. Não posso suportar isso.» As duas tinham caído nos braços uma da outra e o antigo grau de intimidade fora restaurado, não totalmente, mas quase. Havia apenas uma pequena nuvem no firmamento de Julia: Sylvia dissera que «queria ser religiosa». Tocara-a muito fundo ouvir Franklin contar como os padres jesuítas o tinham salvo e resolvera instruir-se e tornar-se católica romana. Julia disse que tinham esperado que ela própria fosse à missa aos domingos, «mas na realidade as coisas nunca foram além disso». Mas supunha que ainda podia ser considerada católica.

Sylvia, Sophie e Lucy passaram a véspera de Natal a enfeitar uma minúscula árvore para colocarem na janela, e ajudaram Frances na preparação dos cozinhados. Estavam a permitir-se voltar a ser meninas pequenas. Frances teria jurado que aquelas felizes criaturas que não paravam de rir tinham dez ou onze anos. A habitualmente tarefa pesada de preparar a comida tornou-se motivo de gracejos e, sim, até divertida. Franklin veio de baixo, atraído pelo barulho. Geoffrey e James — que iriam dormir na sala — e depois Colin e Andrew sentiram-se felizes a descascar castanhas e a mexer recheio. Depois a grande ave foi untada de manteiga e azeite e exposta no tabuleiro de ir ao forno, ao som de aplausos.

Os preparativos continuaram, até que se tornou tarde e Sophie disse que não precisava de ir para casa; a sua mãe agora estava bem e ela trouxera consigo o vestido para o dia seguinte. Quando Frances se deitou, ouviu todos os jovens na sala logo por baixo dela, fazendo uma festa preliminar só para eles. Pensou em Julia, dois pisos acima, sozinha e sabendo que a sua Sylvia estava com os outros e não com ela...

Julia dissera que não desceria para o almoço de Natal, mas convidara todos para um verdadeiro chá natalício na sala agora cheia de jovens a embebedar-se.

Na manhã de Natal, como milhões de outras mulheres em todo o mundo, Frances desceu sozinha para a cozinha. Pela porta da sala, deixada aberta presumivelmente por uma questão de ventilação, podiam ver-se vários vultos amontoados.

Frances sentou-se à mesa, com um cigarro na mão e uma chávena de chá forte, da qual se desprendiam rumores de colinas onde mulheres mal pagas colhiam folhas para deleite daquele lugar exótico que era o Ocidente. A casa estava silenciosa... mas, não, soaram passos e Franklin apareceu, vindo de baixo, todo sorridente. Trazia o casaco novo e uma camisola grossa, e levantou um pé após outro para mostrar sapatos e peúgas novos; levantou a camisola para mostrar uma camisa de xadrez, e levantou a camisa para exibir uma camisola interior azul luminosa. Abraçaram-se. Ela teve a sensação de estar a abraçar a própria encarnação do espírito natalício, pois ele estava tão feliz que iniciou uma pequena dança, enquanto batia palmas. «Frances, Frances, Mãe Frances, é a nossa mãe, é uma mãe para mim.»

Entretanto, Frances percebeu que juntamente com aquela felicidade exuberante havia culpa inequívoca: aquelas roupas tinham sido libertadas.

Fez-lhe chá e ofereceu-lhe torradas, mas ele estava a guardar espaço para o banquete de Natal. Quando se sentou, ainda a sorrir, defronte dela, Frances achou que tinha de esfriar a felicidade, com Natal ou sem ele.

— Franklin — disse-lhe —, quero que saibas que neste país não somos todos ladrões.

O rosto dele tornou-se imediatamente sério, depois franzido de dúvida, e o rapaz começou a lançar olhares à sua volta, como se procurasse possíveis acusadores.

— Não digas nada — pediu ela. — Não há necessidade. Não estou a culpar-te a ti, compreendes? Só quero que saibas que nem todos roubamos aquilo que queremos.

— Eu devolvo as roupas — disse ele, perdida toda a alegria.

— Não, claro que não vais fazer isso. Queres ser preso? Presta apenas atenção ao que eu disse, mais nada. Não penses que toda a gente é como... — Mas como não queria nomear os culpados, corrigiu, com o dito jocoso: — Nem todos libertamos coisas.

Ele estava de cabeça baixa, a morder o lábio. Aquela alegre expedição dos três às riquezas de Oxford Street, onde roupas quentes, roupas coloridas, coisas de que ele necessitava tanto, chegavam nas mãos de Rose e nas de Geoffrey e eram metidas num grande saco de compras... não tinha sido ele que as libertara, ele apenas se maravilhara com a destreza dos outros. Fora uma viagem à terra mágica das possibilidades, como ir ao cinema e, em vez de admirar maravilhas, tornar-se parte delas. Assim como na véspera Sylvia, Sophie e Lucy se tinham tornado meninas pequenas, «miúdas às gargalhadinhas», como Colin lhes chamara, assim também agora Franklin se tornou um rapazinho recordando como estava longe de casa, um estrangeiro escarnecido por riquezas que nunca poderia ter.

Chegou Sylvia que, tendo concluído que o corte à Evansky não era para ela, usava laços de fita vermelha nas duas tranças douradas. Abraçou Frances e abraçou Franklin que, grato pelo que sentia como um gesto de perdão, voltou a sorrir, mas continuou sentado a abanar a cabeça, tristonho e lançando olhares pesarosos a Frances; no entanto, graças a Sylvia, à sua simpatia e amabilidade, as coisas voltaram em breve à normalidade — ou quase.

A cozinha encheu-se de jovens já com ressaca e precisando de beber mais, e quando todos se sentaram à volta da grande mesa com o enorme peru à frente, pronto para ser trinchado, o grupo já mergulhara naquele estado de euforia que prenuncia a iminência do sono. A comprová-lo, James cabeceou por cima do prato e teve de ser despertado. Franklin, de novo sorridente, olhou para o seu prato bem cheio, pensou na sua aldeia pobrezinha, deu silenciosamente graças e comeu. Como comeu! As raparigas, até mesmo Sylvia, também não se fizeram rogadas e o barulho tornou-se incrível, pois «os miúdos» tinham voltado a ser adolescentes, embora Andrew, «o velho» permanecesse na sua idade, assim como Colin, apesar de se esforçar muito para entrar no espírito da coisa. Mas Colin estaria sempre do lado de fora a olhar para dentro, por muito que tentasse fazer palhaçadas, ser um deles — e sabia-o.

O pudim de Natal chegou, envolto nas suas chamas de brande, a uma sala que fora propositadamente escurecida para o receber, e entretanto eram quatro horas e Frances disse que a sala de cima tinha de ser arejada e limpa para o chá de Julia. Chá? Alguém seria capaz de comer mais alguma coisa? Gemidos, ao mesmo tempo que se estendiam mãos para apanharem mais umas migalhas de pudim, uma colher de custarda, um pastel de carne.

As raparigas foram para a sala e amontoaram sacos-cama a um canto. Abriram todas as janelas, porque a sala cheirava, realmente, mal. Levaram para baixo garrafas vazias que tinham passado a noite debaixo de cadeiras ou em cantos, e sugeriram que talvez fosse boa ideia persuadir Julia a dar o seu chá uma hora mais tarde — às seis, talvez? Mas isso estava fora de questão.

James estava sentado com a cabeça apoiada nas mãos, meio a dormir, e Geoffrey disse que se não dormisse um pouco morreria. Rose e Franklin ofereceram camas na cave e o grupo teria dispersado se não soasse uma pancada na porta da frente e depois a porta da cozinha se abrisse — era Johnny, a permitir-se uma descontracção natalícia das suas actividades, com os braços cheios de garrafas e acompanhado pelo seu novo compincha, Derek Carey, um dramaturgo da classe trabalhadora recentemente chegado a Londres vindo de Hull. Derek era tão jovial como o Pai Natal e tinha boas razões para isso, pois ainda estava inebriado pela cornucópia que Londres é. A sorte bafejara-o logo na primeira noite, havia duas semanas. Numa festa depois do teatro, observara de longe, maravilhado, duas maravilhosas mulheres louras, cujo sotaque chique lhe parecera, ao princípio, fingido. Julgara que se tratava de prostitutas. Mas não, eram evadidas da classe superior para os leitos pantanosos e bosques pungentes da Londres do Swing. «Oh, meu Deus» tinha gaguejado a uma delas, «se pudesse dormir consigo estaria tão perto do Paraíso quanto alguma vez julguei possível.» Ficara timidamente à espera da punição, física ou verbal, pelo atrevimento, mas o que ouviu foi: «E estará, coração querido, e estará.» Depois a outra deu-lhe um beijo de língua, pelo qual ele teria de se esforçar muito na sua terra, durante semanas ou meses. As coisas tinham seguido o seu curso a partir daí, acabando com os três na cama, e em cada novo lugar aonde ia esperava, e encontrava, novos deleites. Esta noite estava bêbado: havia duas semanas que quase nunca estivera sóbrio. Parado diante da carcaça do peru, a que Johnny já se atracara e que depenicava energicamente, juntou-se a ele. Os filhos de Johnny mantinham-se em silêncio, sem olharem para o pai.

— Presumo que querem um pouco de peru? — perguntou Frances, estendendo-lhes pratos.

— Oh, sim, seria óptimo — respondeu imediatamente Derek, e encheu o seu prato, enquanto Johnny fazia o mesmo e se sentava.

Colin e Andrew foram para cima. Pareciam prestes a perguntar: «E a Phyllida? Tem alguma coisa para comer?»

A presença dos dois homens tinha posto fim a todo o contentamento, e os jovens foram subindo para a sala, onde viram que Julia pusera uma toalha de renda na mesa, bela louça de porcelana e pratos com stollen alemão e bolo de Natal inglês.

Frances ficou com os dois homens, sentada a vê-los comer.

— Preciso de falar contigo a respeito da Phyllida, Frances.

— Não se preocupem comigo — disse o dramaturgo —, eu não escutarei. Mas, acreditem, sou muito entendido em situações conjugais. Para mal dos meus pecados.

Johnny, que limpara o prato, pôs pudim de Natal numa taça, regou-o com natas, levantou-se e foi para o seu lugar habitual com a taça na mão e de costas para a janela.

— Vou direito ao assunto.

— Pois vai.

— Então, então, pequenos — disse o dramaturgo. — Vocês já não são casados. Não precisam de rosnar e morder. — E serviu-se de vinho.

— A Phyllida e eu já demos o que tínhamos a dar — disse Johnny. — Indo direito ao assunto... — repetiu — quero voltar a casar. Ou talvez dispensemos as formalidades, que na realidade não passam de parvoíces burguesas. Encontrei uma verdadeira camarada, a Stella Linch, talvez te lembres dela do passado: a Guerra da Coreia, por aí.

— Não. E o que vais fazer com a Phyllida? Não, não me digas, não vais sugerir que venha para cá?

— Vou, sim. Quero que vá morar no apartamento da cave. O que não falta é espaço nesta casa. E tu pareces esquecer que é a minha casa.

— Não é da Julia?

— Moralmente, é minha.

— Mas já cá tens uma família de que te livraste.

— Então, então — intrometeu-se de novo o dramaturgo. E soltou um soluço. — Desculpem.

— A resposta é não, Johnny. A casa está cheia e, além disso, pareces esquecer-te de uma coisa: se a mãe dela vier para cá, a Sylvia vai-se embora imediatamente.

— A Tilly fará o que lhe mandarem.

— Esqueces que ela tem mais de dezasseis anos.

— Nesse caso, tem idade suficiente para visitar a mãe. E nunca se aproxima da Phyllida.

— Sabes tão bem como eu que a Phyllida desatará a berrar com ela. E, de qualquer maneira, devias pedir à Julia.

— A velha bruxa. Está gagá.

— Não, Johnny, não está gagá. E acho melhor despachares-te, pois vai haver um chá.

— Um chá? — repetiu o camarada de Leeds. — Oh, porreiro. Porreirinho, delicioso. — Balançando-se na cadeira, deitou mais vinho num copo já meio, disse «Com licença» e adormeceu, sentado como estava e com a boca aberta.

Frances ouviu vozes por cima dela, na sala: de Johnny e da sua mãe. «Estúpido idiota», disse Julia, e Johnny desceu a escada a dois e dois e voltou à cozinha.

— Tenho o direito de ter uma mulher que seja uma verdadeira camarada — disse a Frances. — Pela primeira vez na minha vida, vou ter uma mulher que é minha igual.

— Isso foi o que disseste a respeito da Maureen, lembras-te? Para não mencionar a Phyllida.

— Isso é um absurdo — protestou Johnny. — Não podia ter dito semelhante coisa.

O dramaturgo acordou, disse «Assistentes fora do ringue» e adormeceu de novo.

Sophie veio dizer que o chá tinha começado.

— Deixo-os aos dois a lutar com os pecados do mundo — disse Frances, e deixou-os.

Antes de ir para a sala foi ao seu quarto, vestiu um vestido novo e penteou-se, transformação que lhe permitiu recordar, ao ver-se ao espelho, que no seu tempo tinha sido descrita como uma loura bonita. E com Harold Holman, durante aquele fim-de-semana que parecia agora ter sido há um século, fora com certeza bela.

No princípio de Dezembro, Julia descera aos aposentos de Frances e parecera embaraçada, o que não era nada o seu estilo. «Frances, não quero que se ofenda comigo...» Estendia-lhe um dos seus sobrescritos brancos espessos, com a palavra Frances escrita na sua bonita caligrafia. O sobrescrito continha notas de banco. «Não consegui imaginar uma maneira agradável de fazer isto... mas ficaria muito feliz se... vá ao cabeleireiro e compre um bom vestido para o Natal.»

Frances tinha tendência para usar o cabelo caído de cada lado de um risco, mas o cabeleireiro (que não era de modo algum Evansky ou Vidal Sassoon, que só toleravam o estilo em voga) conseguiu transformar esse penteado no último grito em termos de chique. E ela pagara mais por um vestido do que alguma vez na sua vida. Não valera a pena vesti-lo para o almoço de Natal, com tanto que cozinhar, mas depois entrou na sala tão acanhada como uma rapariga. Ouviram-se imediatamente cumprimentos e houve até, da parte de Colin, uma pequena vénia, quando se levantou para lhe oferecer a sua cadeira. Não há como as roupas, para inspirarem boas maneiras. Mais alguém fez questão de a admirar. O distinto Wilhelm de Julia levantou-se, inclinou-se sobre a sua mão — que infelizmente ainda devia cheirar a cozinha — e beijou o ar acima dela.

Julia inclinou a cabeça e sorriu, a felicitá-la.

— Enche-me de mimos, Julia - disse Frances, ao que Julia respondeu:

— Minha querida, gostaria que soubesse o que realmente significa ser amada e mimada.

Depois Julia serviu o chá de um bule de prata, e Sylvia, sua aia, distribuiu fatias de stollen e do pesado bolo de Natal. Nas respectivas cadeiras, Geoffrey e James, Colin e Andrew esforçavam-se para se manterem acordados. Franklin observava Sylvia a andar de um lado para o outro como se ela tivesse aparecido por magia. Estabelecera-se conversa entre Wilhelm, Frances e Julia e as três raparigas, Sophie, Lucy e Sylvia.

Um problema: as janelas mantinham-se abertas e, no fim de contas, ainda estavam no meio do Inverno. Havia uma escuridão fria no exterior da sala poluída onde Julia recordava, e eles sabiam que recordava, como ali recebera embaixadores e políticos. «E uma vez, até, o primeiro-ministro.» A um canto havia um amontoado de sacos-cama e uma esquecida garrafa de vinho vazia.

Julia trazia um fato de belbutina cinzenta, com renda, e no pescoço e nas orelhas granadas que cintilavam e os censuravam. Estava a contar-lhes dos natais de há muito tempo, quando era uma rapariga na sua casa na Alemanha, um recital animado e ao mesmo tempo formal, como se lesse um livro de histórias antigas, enquanto Wilhelm Stein escutava e ia acenando com a cabeça, a confirmar o que ela dizia. — Sim — disse, aproveitando um silêncio. — Sim, sim. Bem, Julia, minha cara, temos de admitir que os tempos mudaram.

Em baixo, ouvia-se a voz de Johnny, num vigoroso debate com o dramaturgo. Geoffrey, que quase caíra para cima da mesa, a dormir, levantou-se e, com um pedido de desculpas, saiu seguido por James. Frances estava envergonhadíssima, mas ao mesmo tempo satisfeita por eles terem saído, pois pelo menos podia confiar em que as raparigas não cabeceariam enquanto estavam sentadas e pegavam nas bonitas chávenas, como se nunca tivessem feito outra coisa na sua vida. Menos Rose, é claro, que estava afastada, a um canto.

— Acho que as janelas... — disse Julia, e Sylvia foi imediatamente fechá-las e correr os pesados cortinados, com forros e entretelas, que sessenta anos de existência tinham desbotado para um azul-esverdeado, em comparação com o qual o azul do vestido de Frances parecia baço. Rose ameaçara arrancar os cortinados e fazer um vestido «como o da Scarlet O'Hara», e quando Sylvia dissera, «Mas, Rose, tenho a certeza de que Julia não gostaria», replicara: «Não percebes uma piada, não tens sentido de humor nenhum.» O que era, sem dúvida, verdade.

Andrew disse saber que eram todos uns bárbaros embrutecidos, mas que se Julia tivesse visto a refeição que tinham acabado de comer lhes perdoaria.

O seu stollen e o seu bolo jaziam em fatias intactas nos pequenos pratos verdes, com botões de rosa.

Veio de baixo o som de uma gargalhada. Julia sorriu ironicamente. Sorriu, mas tinha lágrimas nos olhos.

— Oh, Julia! — exclamou Sylvia e envolveu-a nos braços, encostando a face ao penteado prateado de ondas e pequenos caracóis. — Adoramos o seu delicioso chá, palavra, mas se soubesse...

— Sim, sim, sim — interrompeu-a Julia. — Sim, eu sei. — Levantou-se. Wilhelm Stein fez o mesmo e deu-lhe pequenas palmadas na mão. Aquelas duas pessoas distintas ficaram paradas juntas no meio da sala que os envolvia como uma moldura perfeita. A seguir Julia disse: — Bem, meus filhos, agora creio que chega.

Saiu pelo braço de Wilhelm.

Ninguém se mexeu. Depois Andrew e Colin espreguiçaram-se e bocejaram. Sylvia e Sophie começaram a levantar a mesa. Rose, Franklin e Lucy foram juntar-se ao grupo animado da cozinha. Frances não se mexeu.

Johnny e Derek estavam sentados um em cada extremidade da mesa, dirigindo uma espécie de seminário. Johnny lia passagens de Um Manual de Revolução, escrito por ele próprio e publicado por um editor respeitável. Estava a render algum dinheiro: como um crítico dissera, «Tem potencial para ser um bestseller perene.»

A contribuição de Derek Carey para o bem-estar das nações consistia em exortar jovens, em reuniões após reuniões, a preencherem mal os formulários de recenseamento, a destruirem quaisquer cartas oficiais que recebessem, e a aceitarem emprego como carteiros nos Correios e destruírem cartas e a roubarem o mais que pudessem em lojas. Todas essas pequenas coisas ajudavam a desmoronar a estrutura de um Estado opressor como o da Grã-Bretanha. Nas recentes eleições tinham sido aconselhados a estragar boletins de voto e a escrever neles comentários insultuosos, como Fascista! Rose e Geoffrey, ansiosos por dar nas vistas naquela hilariante companhia, descreveram a sua recente expedição de compras. Depois Rose desceu a correr e foi buscar sacos de compras cheios de presentes roubados, que começou a distribuir: eram sobretudo brinquedos macios, como tigres, pandas e ursos de peluche, mas havia também uma garrafa de brande, oferecida a Johnny, e outra de Armagnac, dada a Derek. «Assim é que é, camarada», elogiou Derek com uma piscadela de olhos transbordante

de camaradagem que tocou na alma de Rose, ressequida à míngua de elogios; foi como uma medalha de mérito. Johnny saudou-a com o punho cerrado. Nunca ninguém a vira tão feliz.

Franklin estava angustiado, pois desejara muito dar um presente a Frances e esperara que alguns daqueles objectos libertados lhe fossem parar às mãos, mas já tinha percebido que tal não aconteceria.

— E isto é para a Frances — disse Rose. Era um canguru, com um filhote na bolsa.

Ergueu-o, sorrindo em redor, à espera de ser aplaudida, mas Geoffrey tirou-lho, ofendido com o que considerava uma crítica a Frances. Franklin admirou o canguru e pensou que representava um cumprimento maravilhoso para Frances, que era uma mãe para todos eles; não tinha compreendido a reacção de Geoffrey e estendeu a mão para o canguru. Geoffrey deu-lho. Franklin sentou-se, a tirar o filhote da bolsa e a pô-lo lá de novo.

— Podias introduzir alguns cangurus em Zimlia — sugeriu Johnny, e ergueu o copo. — A libertação de Zimlia!

Franklin procurou um copo entre os destroços da mesa, estendeu-o a Rose para que o enchesse e bebeu à libertação de Zimlia.

Esta espécie de brincadeira excitava-o e assustava-o ao mesmo tempo. Sabia tudo a respeito da terrível guerra do Quénia: tinham-na estudado na escola, e ele não compreendia por que motivo Johnny, nem, pela mesma ordem de ideias, os professores da St. Josephs, estavam tão empenhados em que Zimlia passasse por uma guerra. Mas naquele momento, feliz com a comida, a bebida e o canguru, bebeu de novo ao brinde de Derek, «A Revolução», ao mesmo tempo que se perguntava a qual revolução e onde.

Depois disse:

— Vou dar isto a Frances — e já ia a meio da escada quando se lembrou de que era roubado e de que ela o repreendera nessa manhã. Mas não queria voltar com ele para a cozinha e foi assim que o boneco foi para às mãos de Sylvia, que levava para cima, para os aposentos de Julia, um tabuleiro cheio de coisas.

— Oh, que encantador! — exclamou, enquanto Franklin lho metia debaixo do braço, visto as mãos dela estarem ocupadas. Mas Sylvia pousou o tabuleiro no patamar e admirou o canguru. — Oh, Franklin, é tão bonito. — E beijou-o e deu-lhe um abraço tão terno e apertado que o rapaz quase explodiu de felicidade.

Na sala estavam agora Andrew, adormecido numa cadeira, estendido e com as mãos no estômago, e Colin, deitado no divã com Sophie, abraçados um ao outro e ambos adormecidos.

Franklin parou a observá-los, enquanto o coração se lhe sobressaltava de novo e se lembrava de quanto se sentia intrigado com tudo. Sabia que Colin e Sophie tinham sido «amigos», mas agora já não eram, e que Sophie tinha um «amigo» que fora passar o Natal com a família. Sendo assim, por que estavam nos braços um do outro e Sophie tinha a cabeça no ombro de Colin? Franklin ainda não dormira com uma rapariga. Na missão não havia raparigas e os rapazes eram vigiados pelos padres, que sabiam tudo quanto se passava. Em casa, com os seus pais, acontecia o mesmo. Quando visitava os avós, provocava as raparigas e brincava com elas, mas nada mais.

Como tantos recém-chegados a Inglaterra, sentira-se desde o princípio confuso com o que se passava. No início, pensara que não existia moral nenhuma, mas em breve desconfiara de que devia haver. Mas de que tipo? Na St. Joseph's raparigas e rapazes dormiam uns com os outros, que ele sabia: ou pelo menos era isso que parecia. No prado atrás da escola, pares deitavam-se juntos na relva e Franklin, solitário, ouvia os seus risos e, pior do que isso, os seus silêncios. Tinha a sensação de que as fêmeas desta ilha estavam disponíveis para todos, disponíveis para ele, se ao menos encontrasse as palavras certas. No entanto, vira um rapaz nigeriano, acabado de chegar à St. Joseph's, aproximar-se de uma rapariga e dizer-lhe: «Posso ir para a tua cama esta noite, se te der um bonito presente?» E ela esbofeteara-o com tanta força que o atirara ao chão. Franklin andara a ensaiar mentalmente palavras semelhantes, para tentar a sua sorte. Mas a mesma rapariga que dera a bofetada aninhava-se na cama com um rapaz que tinha um quarto no mesmo corredor, deixando a porta aberta para todos verem o que se passava. Ninguém prestava atenção.

Voltou a descer a escada e parou à escuta na porta da cozinha, onde o discurso de Johnny sobre táctica de guerrilha para destruir o complexo militar-imperialista era semelhante ao de Derek: roubar em lojas era aparentemente considerado uma arma importante. Desceu para o seu quarto e abriu a gaveta onde guardava o dinheiro. Pareceu-lhe menos: contou-o e não se enganava, o que ali estava era menos de metade. Estava parado, a contar as notas, quando ouviu Rose atrás dele.

— Metade do meu dinheiro desapareceu — disse, furioso.

— Eu tirei metade. Mereço-o, não mereço? Ficaste com todas aquelas roupas à borla. Se as tivesses comprado, não conseguirias nada tão bonito pelo mesmo dinheiro. Portanto, ficaste a ganhar, não ficaste? Tens roupa nova e metade do dinheiro.

Fitou-a, com o rosto franzido de desconfiança, zangado, furioso. Aquele dinheiro, para ele, representava mais do que uma dádiva de Frances, que era como se fosse sua mãe. Era como um gesto de boas-vindas à família, tornando-o parte dela.

Rose mostrava-se fria e cheia de desdém.

— Não compreendes nada — declarou. — Eu mereço-o, percebes?

Franklin encolheu os ombros, desanimado, e Rose ficou um momento a fitá-lo e depois foi para cima.

Ele procurou um lugar onde esconder o dinheiro naquele quarto onde não havia onde esconder coisa nenhuma. Em casa era possível esconder coisas proibidas no colmo do telhado, enterrá-las no chão de terra ou escondê-las no mato. Em casa dos seus pais havia tijolos que podiam ser deslocados e recolocados de novo. Acabou por meter outra vez o dinheiro na gaveta. Sentou-se na borda da cama e chorou com saudades de casa, com vergonha por Frances estar zangada com ele e também porque não se sentia à vontade com aqueles revolucionários lá em cima, apesar de o tratarem como um dos seus. Por fim dormiu um pouco e quando subiu para a cozinha verificou que os dois homens se tinham ido embora e estava toda a gente a lavar e a limpar a louça. Juntou-se-lhes com alívio e com prazer, por ser um deles. Parecia que ia haver jantar, embora todos dissessem, de brincadeira, que seria impossível comerem fosse o que fosse. Já tarde, por volta das dez horas, a carcaça do peru reapareceu, assim como toda a espécie de recheio e pastéis de carne, além de um grande tabuleiro de batatas assadas. Estavam todos sentados, a beber, cansados e satisfeitos com o Natal e consigo mesmos, quando bateram à porta da frente. Frances espreitou pela janela e viu uma mulher no passeio, hesitando entre bater de novo ou ir-se embora. Colin colocou-se ao lado da mãe. Receavam ambos que fosse Phyllida. — Eu vou — disse Colin, e saiu.

Frances viu-o falar com a desconhecida, que cambaleava um pouco. Pôs-lhe a mão no ombro, para a amparar, e depois trouxe-a para dentro, a enlaçá-la com um braço.

Ela andara a vaguear no escuro de ruas mal iluminadas e a luz forte do átrio fê-la pestanejar. Frances apareceu e a desconhecida disse-lhe: «É a querida do meu coração?» Parecia de meia-idade, mas era difícil saber ao certo, porque o seu rosto estava sujo, assim como as mãos brancas e bonitas que agarravam Colin. Parecia uma pessoa salva de um incêndio ou de uma catástrofe. O rosto de Colin estava desfigurado pela dor, o jovem sensível não conseguia conter as lágrimas.

— Mãe — disse, numa súplica, e Frances foi para o outro lado e, juntos, conduziram a pobre transviada pela escada até à sala, agora deserta e arrumada.

— Que sala tão encantadora — disse a mulher, e quase caiu. Colin e Frances deitaram-na no grande sofá, e ela ergueu imediatamente a mão suja e marcou o ritmo enquanto cantava... o quê?.... ah, sim, uma velha canção de music-hall: Vadiei e vadiei, vadiei e vadiei e eu... sim, vadiei, meus queridos, vadiei e agora encontro-me longe de casa...

Tinha uma voz leve e clara, correcta e doce. A roupa que usava não era pobre nem ela parecia pobre, embora estivesse sem dúvida doente. O seu hálito não cheirava a álcool. Iniciou outra canção: «Sally... Sally...» A voz doce subia, sincera, até à nota mais alta e sustinha-a.

— Sim, querido, sim — disse a Colin —, tens um coração bondoso. Percebo isso. — Grandes olhos azuis, olhos inocentes, olhos, até, infantis, fitavam Colin, enquanto ela ignorava Frances. — És bondoso, mas tem cuidado. Os corações bondosos metem-nos em sarilhos, e quem sabe isso melhor do que a Marlene?

— Como se chama, Marlene? — perguntou Frances, agarrando-lhe uma mão suja, muito fria e sem vitalidade, que se abandonou, trémula, na sua.

— O meu nome perdeu-se, querida. Perdeu-se e desapareceu, mas Marlene serve. — E começou a falar em alemão, a dizer expressões de ternura em alemão. Depois voltou a cantar, fragmentos de canções. Canções da II Guerra Mundial, de novo com Lili Marlene, e mais alemão. — «Icb Hebe dich» — disse-lhes — Sim, amo.

— Vou buscar a Julia — disse Frances.

Subiu a escada e encontrou Julia a jantar com Wilhelm, um de cada lado da pequena mesa adornada com prata e cristal. Explicou o que se passava e Julia disse, querendo ser brincalhona, mas conseguindo ser apenas acusadora:

— Vejo que esta casa adquiriu outra desamparada. Há limites para a hospitalidade, Frances. Quem é a senhora?

— Não é uma senhora. Mas é com certeza uma desamparada. Quando voltou para a sala, Andrew tinha chegado com um copo

de água que aproximava dos lábios da desconhecida.

— Não sou muito dada a água — e voltou a deitar-se dizendo que mais uma bebidazinha não lhe faria mal nenhum. E depois tornou a falar alemão.

Julia estava parada a ouvir. Fez um sinal a Wilhelm e sentaram-se os dois em cadeiras, lado a lado, prontos para pronunciarem a sentença.

— Posso chamar-lhe Marlene? — perguntou Wilhelm.

— Chame-me o que quiser, querido, chame-me o que lhe agradar. As palavras não ferem. Já feriram, mas foi há muito tempo. — Desta vez chorou um pouco, com grandes soluços, como os de uma criança. — Magoava — disse-lhes. — Magoava quando eles faziam isso. Mas os alemães eram cavalheiros. Eram rapazes decentes.

— Marlene, veio do hospital? — perguntou Julia.

— Sim, querida. Sou uma fugitiva do hospital, pode dizer-se isso, mas eles aceitarão a pobre Molly de volta, são bons para a pobre Molly. — E cantou: «Não há nenhuma como a bonita Sally. Ela é a querida do meu coração...» E acrescentou, em voz alta e doce: «Sally, Sally...»

Julia levantou-se, fez sinal a Wilhelm para ficar onde estava e chamou Frances, com um gesto, para o patamar. Colin também foi.

— Acho que devemos acolhê-la aqui — disse o rapaz. — Ela está doente, não está?

— Doente e louca — replicou Julia, e depois, suavizando com delicadeza a sua severidade, perguntou, dirigindo-se a Colin: — Sabes o que ela é... o que ela foi?

— Não faço a mínima ideia.

— Entreteve os alemães em Paris durante a última guerra. É uma prostituta.

Colin gemeu.

— Mas não é culpa dela.

O Espírito dos Sessenta, com olhos apaixonados, voz trémula e suplicantes mãos estendidas confrontava todo o passado da espécie humana, responsável por toda a injustiça e encarnado em Julia, que disse:

— Oh, rapaz pateta, culpa sua, culpa nossa, culpa deles, que importa isso? Quem vai olhar por ela?

— O que fazia uma rapariga inglesa a trabalhar como prostituta em França, durante a ocupação alemã? — perguntou Frances.

E foi então que, num tom que nenhum deles lhe ouvira antes, Julia disse:

— As prostitutas não têm problemas com passaportes; são sempre bem-vindas.

Frances olhou para Colin e Colin para Frances: o que vinha a ser tudo aquilo? Mas momentos destes são frequentes nos velhos, uma mudança de voz, uma careta dolorosa, uma rispidez — como agora — que é tudo quanto resta de alguma mágoa ou decepção... e depois, do mesmo modo, está dito, acabou-se, passou. Nunca ninguém saberá.

— Vou telefonar para o Friern Barnet — disse Julia.

— Oh, não, não, não — protestou Colin.

Julia voltou para a sala, interrompeu a cantilena de Sally e inclinou-se para perguntar:

— Molly? É Molly? Diga-me, é do Friern Barnet?

— Sou. Fugi para passar o Natal. Fugi para ver os meus amigos... mas não sei onde estão. No entanto, Friern é bom e Barnet ainda é melhor, eles receberão de novo a pobre Molly Marlene.

— Vai telefonar — disse Julia a Andrew, que saiu da sala.

— Não perdoarei a ninguém — declarou Colin, veemente, triste e desiludido.

— Pobre rapaz — compadeceu-se Wilhelm.

— Mandá-la de novo para... para...

— Para um manicómio, era isso que querias dizer, querido. Mas não faz mal, não fiques triste. Nem doido — e a mulher riu-se.

Andrew voltou, depois de telefonar. Sentaram-se todos à espera, Colin com olhos húmidos, e ouviram a louca deitada no divã a cantar Sally repetidamente — e o tom agudo e doce da sua voz partiu o coração de todos e não apenas o de Colin.

Em baixo, a crise acalmara a mesa do jantar e o assunto fora discutido e dividira os comensais ao ponto de terem dispersado.

A campainha da porta tocou. Andrew desceu e regressou com uma mulher de meia-idade e ar cansado, num uniforme cinzento que parecia uma bata e, dobrado num braço... sim, um colete de forças.

— Então, Molly — disse a mulher, em tom de censura, à fugitiva. — Que altura para nos fazeres uma partida destas. Sabes que no Natal temos sempre pouco pessoal.

— Molly má — disse a doente, levantando-se amparada por Frances, e foi ao ponto de dar uma palmada na própria mão. — Molly Marlene mazona.

A funcionária examinou a paciente e concluiu que não havia necessidade de usar a força. Pôs o braço à volta de Molly, ou Marlene, e conduziu-a para a porta e pela escada abaixo, seguida por todos menos por Julia.

— Adeeuuuss.... não choreeemmm... — Virou-se no átrio, para os olhar. — Bons tempos, aqueles — disse. — Foi o meu tempo mais feliz. Eles queriam-me sempre a mim. Tratavam-me por Marlene... que é realmente o meu nome de guerra, e queriam que eu cantasse a minha Sally — e, cantando a sua Sally, saiu à frente, pelo braço da outra mulher, que se voltou para dizer:

— É Natal, compreendem. No Natal todos se transtornam.

Colin disse à mãe, com as lágrimas a correr pelo rosto: — Como pudemos fazer isto? Não teríamos expulsado um cão, numa noite como esta — e foi para cima, seguido por Sophie, que ainda estava na cozinha, para o confortar e consolar. Estava uma noite muito suave: como se a questão fosse essa.

Na tarde seguinte, Colin meteu-se no autocarro para o hospital de doentes mentais. Tudo quanto sabia a seu respeito era que servia a parte norte de Londres. Imenso, uma mansão, fazendo lembrar o cenário de um romance gótico, levou Colin por um corredor que parecia medir quase meio quilómetro, pintado de verde-vómito reluzente. Ao fundo do corredor encantou uma escada e, nela, a mulher que tinha ido buscar a pobre louca Molly-Marlene, na noite anterior. Ela disse-lhe que Molly Smith estava no Quarto 23 e que ele não devia ficar transtornado se ela não o reconhecesse. A mulher vestia uma bata de plástico, tinha toalhas dobradas no braço e um sabonete de cheiro forte na mão. O Quarto 23 era grande e com grandes janelas, claro e arejado, mas estava a precisar de pintura. Havia pedaços de azevinho presos às paredes com fita adesiva. Homens e mulheres de várias idades estavam sentados por ali em cadeiras muito usadas, alguns de olhos vagos, sem olhar para nada, outros fazendo os movimentos inquietos que eram as expressões visíveis de quem sonhava estar noutro lugar qualquer, e havia um grupo de umas dez pessoas sentadas como num chá, empunhando canecas, passando biscoitos umas às outras e conversando. Uma delas era Molly, ou Marlene. Desajeitado e confuso, tão embaraçado como uma criança numa sala cheia de adultos, Colin disse:

— Olá, lembra-se de mim? Esteve em nossa casa, a noite passada.

— Oh, estive, querido? Não me lembro. Quer dizer que andei a vaguear? As vezes faço isso e depois... Mas sente-se, querido. Como se chama?

Colin sentou-se numa cadeira vazia, ao lado dela, com os olhos de todos os presentes na sala postos nele: todos eles ansiavam por que acontecesse alguma coisa interessante. Ele estava a tentar entabular conversa quando a auxiliar, ou enfermeira, ou guarda da noite passada entrou e disse:

— A casa de banho está livre.

Um homem de meia-idade levantou-se e saiu.

— A seguir sou eu — disse Molly, sorrindo com uma atenção vaga, mas ansiosa, a Colin, que perguntou de chofre:

— Há quanto tempo... quero dizer, está aqui há muito tempo?

— Oh, sim, querido, há muito, muito tempo.

A empregada, ainda a segurar toalhas e sabonete, mas mantendo-se à porta como se estivesse de guarda, disse a Colin:

— Esta é a casa dela. É a casa da Molly.

— Bem, não tenho outra — disse ela, a rir alegremente. — Às vezes vou vadiar por aí, mas depois volto.

— Sim, vadias, mas como nem sempre voltas nós temos de te procurar — corrigiu a empregada, sorrindo.

Colin suportou aquilo uma hora e depois, quando estava a pensar que tinha de partir, pois não podia suportar mais, chegou uma rapariga tão confusa como ele próprio estava. Parecia que a sua casa era uma daquelas a cujas portas Molly batera, não na noite anterior, mas na véspera do Natal.

A jovem, uma rapariguinha bonita e fresca, cujo rosto espelhava toda a consternação que Colin sentia, sentou-se ao lado de Colin e contou-lhes tudo acerca da sua escola, uma das boas escolas para raparigas, conversa a que Molly e os seus amigos prestaram atenção como se se tratasse de notícias da Tartária. Depois a empregada disse que chegara a vez de Molly tomar banho.

Alívio geral. Molly levantou-se e dirigiu-se para a casa de banho, acompanhada pela empregada ou guarda.

— Porta-te bem, Molly.

Os que ficaram começaram a tagarelar acerca de quem seria a seguir: ninguém queria ser, porque Molly deixava a casa de banho transformada num charco.

— Quando ela acaba, fica um autêntico charco — disse seriamente aos jovens uma mulher idosa e de ar desvairado. Dir-se-ia que esteve lá um hipopótamo.

— Que sabes tu de hipopótamos? — perguntou, desdenhoso, um homem idoso e de ar igualmente desvairado, que era sem dúvida um adversário habitual de discussões. — Nunca perdes a oportunidade de fazer comentários descabidos.

— Sei tudo a respeito de hipopótamos — replicou, irritada, a velha. — Costumava observá-los da varanda da nossa casa, nas margens do Limpopo.

— Qualquer pessoa pode dizer que teve uma casa nas margens do Limpopo ou do Danúbio azul, quando ninguém pode provar o contrário.

Colin e a rapariga, que se chamava Mandy, saíram do hospital e ele levou-a a casa para jantar, onde todos queriam saber tudo a respeito do temível hospital psiquiátrico e dos seus internados.

— São exactamente como nós — disse Colin, e Mandy apressou-se a concordar, veementemente:

— Sim, e eu não compreendo por que têm de lá estar.

Mais tarde, Colin abordou Julia, e depois a mãe, acerca do assunto. É difícil, muito difícil, para os mais velhos, flagelados pelo mundo, quando têm de ouvir os jovens idealistas pedir explicações sobre a tristeza desse mesmo mundo. «Porquê, mas porquê?» Colin queria saber e não se ficou por aí, pois voltou ao hospital mas esperava-o uma decepção, porque Molly esquecera a sua visita anterior. Por fim, deixou-lhe a morada e o número do telefone «para o caso de precisar de alguma coisa» — deixou-os a uma pessoa que precisava de tudo, principalmente da sua sanidade mental. Mandy fez o mesmo.

— Isso foi uma grande tolice — declarou Julia.

— Isso foi muito bondoso — disse Frances.

Durante algum tempo, Mandy tornou-se «um dos miúdos» da mesa do jantar, o que era fácil para ela em virtude de os seus pais trabalharem os dois. Não dizia que eles eram uns merdas e, sim, que «faziam o melhor que podiam». Era filha única. Depois os pais levaram-na para Nova Iorque. Ela e Colin escreveram-se durante anos.

E passariam vinte anos antes de se encontrarem de novo.

Na década de 80, em nome de outro imperativo ideológico, todos os hospitais psiquiátricos e manicómios foram encerrados e os seus internados ficaram entregues a si mesmos." ou nadavam, ou afogavam-se. Colin recebeu uma carta que dizia, numa letra trémula e hesitante, Colin — apenas isso e o endereço. Foi a Brighton, onde a encontrou num dos estabelecimentos dirigidos pelos filantropos que acolhiam ex-pacientes de hospitais psiquiátricos e lhes cobravam até ao último cêntimo das suas pensões, em troca de alojamento em condições que Dickens teria reconhecido.

Ela era uma velha mulher doente que ele não reconheceu, mas que parecia conhecê-lo.

— Ele tinha um rosto tão bondoso — disse Molly-Marlene Smith, se Smith era de facto o seu apelido. — Diga-lhe, ele tem uma cara tão simpática, aquele rapaz. Conhece o Colin?

Ela estava a morrer em consequência da bebida. Bem, de que haveria de ser?... Ao visitá-la de novo, Colin encontrou Mandy, agora uma elegante matrona americana com um ou dois filhos e um marido ou dois. Voltaram a encontrar-se no funeral e depois Mandy voou para Washington e para fora da vida dele.

Aconteceu outra coisa naquela noite de Natal.

Já tarde, muito depois da meia-noite, Franklin subiu sorrateiramente a escada, de ouvido atento a Rose, que parecia estar a dormir. A cozinha estava às escuras. Ele continuou a subir, passando pela sala onde Geoffrey e James dormiam nos seus sacos-cama, e seguiu para o andar seguinte, onde sabia que Sylvia tinha o seu quarto. Havia uma luz acesa no patamar. Bateu à porta de Sylvia, tão de mansinho como uma bicada de galinha. Nem um som. Tentou de novo, com a maior suavidade: não se atrevia a bater com mais força. E depois, logo acima dele, apareceu Andrew.

— O que estás a fazer? Perdeste-te? Esse é o quarto da Sylvia.

— Oh, oh, lamento muito. Pensei...

— É tarde — disse-lhe Andrew. — Volta para a cama.

Franklin desceu os degraus suficientes para ficar fora da vista de Andrew, e depois deixou-se cair, com a cabeça sobre os joelhos. Chorou de mansinho, para não ser ouvido.

Depois sentiu um braço sobre os seus ombros e ouviu Colin dizer:

— Pobre Franklin. Não te preocupes. Não fiques transtornado por causa do Andrew. Ele é apenas uma das pessoas naturalmente perfeitas deste mundo.

— Amo-a — soluçou Franklin. — Amo a Sylvia.

Colin aumentou a pressão do seu braço e encostou a face à cabeça de Franklin. Roçou-a pela carapinha rija, que parecia transmitir uma mensagem de saúde e força, como urze.

— Não amas, na realidade — disse-lhe. — Ela ainda é uma rapariguinha, bem sabes... sim, pode ter dezasseis ou dezassete anos, ou seja o que for, mas não é... madura, compreendes? É tudo culpa dos pais dela. Baralharam-na toda. — Neste ponto, e para sua própria surpresa, sentiu uma onda de riso subir-lhe à garganta: estava a confrontar-se com o absurdo. Mas persistiu. — Eles são todos uns merdas — declarou a Franklin, e transformou uma gargalhada num acesso de tosse.

Franklin estava mais espantado do que nunca.

— Eu acho a tua mãe tão decente. Ela é tão bondosa comigo.

— Oh, sim, suponho que é. Mas esquece-a, quero dizer, esquece a Sylvia. Terás de te apaixonar por outra pessoa qualquer. Que tal...

— E começou a desfiar uma lista de nomes de raparigas da escola, entoando-os como uma canção. — Há a Jilly e há... a Jolly. Há a Milly e há a Molly. Há a Elizabeth e a Margaret, há a Caroline e a Roberta.

— E acrescentou na sua voz habitual e com uma gargalhada desagradável: — Ninguém pode dizer que são imaturas.

Mas eu amo-a, dizia Franklin a si mesmo. Encantava-o aquela delicada rapariga pálida, com o fofo cabelo louro, apertá-la nos braços seria... Afastou o rosto do de Colin e ficou calado. Colin sentia sob o braço os ombros quentes e desolados do amigo.

Como se identificava bem com aquele sofrimento, como sabia que nada do que dissesse faria Franklin sentir-se melhor. Começou a embalá-lo suavemente. Franklin pensava que a única coisa que queria era voltar para África esta noite, voltar para sempre, aqui era tudo demasiado; mas sabia que Colin era bondoso. E gostava de estar ali sentado, envolto nos braços do rapaz bondoso.

— Queres levar o teu saco-cama para o meu quarto? Será melhor do que a companhia da Rose e poderemos dormir o tempo que nos apetecer.

— Sim... não, não, eu estou bem. Obrigado, Colin. — Mas eu amo-a, repetia a si mesmo.

— Nesse caso, está bem — disse Colin, que se levantou e subiu. E Franklin desceu. «De manhã vou ouvir um sermão», pensou,

referindo-se a Andrew. Mas Andrew nunca aludiu ao assunto e Sylvia nunca soube que, levado pelo desejo, Franklin fora forçado a subir a escada e bater à sua porta.

Quando chegou ao fundo da escada para o apartamento da cave, Rose esperava-o, com as mãos nos quadris e o rosto franzido de desconfiança.

— Se pensas que vais dormir com a Sophie, tira o cavalo da chuva. Roland Shattock pode não ser louco por ela, mas o Colin é.

— Com a Sophie? — gaguejou Franklin.

— Oh, sim, todos vocês andam caidinhos por ela.

— Foi um erro — disse Franklin. — Um erro, mais nada.

— Sério? Não julgues que me enganas. — Voltou-lhe as costas e foi para a sua cama.

Não estava, de modo algum, apaixonada por Franklin nem sequer o desejava, mas teria gostado de que ele tentasse. Uma irmã, bem, ela mostrar-lhe-ia que irmã era. Não podia dizer não a um rapaz negro, pois não? Isso feriria os sentimentos dele.

E Franklin enroscou-se na sua cama, fechado sobre si mesmo como um punho, a chorar amargamente.

Aquele ano tumultuoso de 1968 foi razoavelmente pacífico na casa de Julia, que havia já muito tempo deixara de estar a abarrotar com «os miúdos» e passara a estar cheia de adultos sóbrios.

Quatro anos: é muito tempo — quer dizer, quando se é jovem.

Sylvia revelara-se quase extraordinariamente brilhante, juntava dois anos de trabalho num só, encarava os exames como se fossem desafios agradáveis e parecia não ter amigos. Tornara-se católica romana, via com frequência um sacerdote jesuíta magnético chamado Padre Jack, de Farm Street, e ia todos os domingos à missa na Catedral de Westminster. Estava a caminho de se tornar médica.

Andrew também se saíra bem. Vinha com frequência de Cambridge a casa. A mãe preocupava-se com o facto de ele não ter uma namorada. Mas ele respondia que ficara arrepiado com todas as uvas verdes que vira trincar «por essa malta toda».

Colin acedera a fazer os exames finais da escola, mas depois desistira. Passou semanas na cama, gritando «deixem-me em paz» a quem lhe batesse à porta. Um dia levantou-se, como se nada tivesse acontecido, e disse que ia ver o mundo. «É tempo de eu ver alguma coisa do mundo, mãe.» E partiu. Chegavam postais de Itália, Alemanha, Estados Unidos e Cuba. «Pode dizer ao Johnny, da minha parte, que não sabe do que fala. Este lugar é uma merda.» Brasil, Equador. Aparecia entre viagens, era cortês, mas pouco esclarecedor.

Sophie terminara a escola de teatro e estava a conseguir pequenos papéis. Queixava-se a Frances de que a escolhiam de acordo com o seu aspecto. Frances não lhe respondia: «Não te preocupes; o tempo acabará por curar isso.» Vivia com Roland Shattock, que já tinha nome e representara Hamlet. Disse a Frances que não era feliz e que sabia que o deixaria.

Frances estivera quase a voltar para o teatro. Chegou mesmo a aceitar um papel tentador, mas depois teve, uma vez mais, de recusar. Dinheiro, novamente o dinheiro. As propinas de Colin já não eram um problema e Julia dissera que poderia arcar com as despesas de Sylvia e Andrew, mas depois Sylvia perguntou se Phyllida podia viver no apartamento da cave. Acontecera assim: Johnny tinha telefonado a Sylvia para lhe dizer que devia visitar a mãe. «E não digas que não, Tilly, porque não pega.»

Sylvia encontrara a mãe a esperá-la, vestida de modo a causar uma impressão de competência, mas com ar de doente. Não havia nada para comer em casa, nem sequer um pão. Johnny mudara-se para ir viver com Stella Linch, e não dava dinheiro a Phyllida, nem pagava a renda. «Arranja um emprego», dissera-lhe.

— Como é que eu posso arranjar um emprego, Tilly? — perguntara ela à filha. — Não estou bem.

O que era evidente.

— Por que não me trata por Sylvia?

— Oh, não sou capaz. Estou sempre a ouvir a minha menininha dizer: «Eu sou Tilly.» Pequena Tilly, é assim que me lembro de ti.

— A mãe pôs-me o nome de Sylvia.

— Oh, Tilly, eu tentarei. — E, antes de a conversa a sério começar, Phyllida estava a limpar os olhos com lenços de papel. — Se eu pudesse ir morar naquele apartamento, poderia arranjar-me. Às vezes recebo dinheiro do teu pai.

— Não quero ouvir falar nele — avisou Sylvia. — Nunca foi um pai para mim. Mal me lembro dele.

O seu pai era o camarada Alan Johnson, tão famoso como o camarada Johnny. Combatera na Guerra Civil Espanhola — combatera realmente — e fora ferido. Julia, que assistira à sua emergência para o estrelato, descrevia-o como uma «Errante Eminência Vermelha» — como Johnny.

— Johnny pensa que eu recebo mais dinheiro do Alan do que na realidade recebo. Há mais de dois anos que não me dá nada.

— Já disse que não quero saber.

Estavam sentadas numa sala onde os móveis eram muito poucos, pois Johnny levara quase tudo para a sua nova vida com Stella. Restavam apenas uma mesinha, duas cadeiras e um velho sofá.

— Tenho levado uma vida tão difícil — começou Phyllida, numa nota tão familiar que Sylvia se levantou, de facto — não por astúcia ou táctica: era o medo que a impelia a afastar-se da mãe. Começava já a sentir o início do tremor interno que no passado a deixara desamparada, inerte, histérica.

— Não é por minha culpa — murmurou.

— Não é por minha culpa — repetiu Phyllida na pesada voz oscilante da sua litania do queixume. — Nunca fiz nada para merecer a maneira como fui tratada.

Reparou que Sylvia estava de pé do outro lado da sala, tão longe dela quanto era possível, com a mão na boca e a fitá-la como se tivesse medo de vomitar.

— Desculpa. Por favor, não te vás embora. Senta-te, Tilly... Sylvia. A rapariga voltou, afastou mais a cadeira, sentou-se e, com uma

expressão fria, aguardou.

— Se fosse morar nesse apartamento, poderia governar-me. Eu pediria à Julia, mas tenho medo da Frances, de que ela diga não. Por favor, pede-lhe por mim.

— E pode censurá-la por isso? — perguntou Sylvia, com brus-quidão. As pessoas que conheciam e amavam a doce criatura que, como Julia dizia, «ilumina esta velha casa como um passarinho», não teriam reconhecido aquele rosto duro.

— Mas eu não tenho culpa de... — Phyllida ia começar de novo a lengalenga, mas depois viu que Sylvia voltara a levantar-se para se ir embora e disse: — Pára, pára. Desculpa.

— Não suporto quando se queixa e me acusa — disse Sylvia. — Não compreende? Não posso suportar, mãe.

Phyllida tentou sorrir e respondeu:

— Não volto a fazê-lo. Prometo.

— Promete, realmente? Quero acabar os meus exames e ser médica. Se a mãe estiver na casa sempre a implicar comigo, pura e simplesmente fugirei. Não posso suportar.

Phyllida estava surpreendida com aquela veemência. Suspirou.

— Meu Deus, eu era assim tão má, realmente?

— Sim, era. E mesmo quando eu era muito pequena estava sempre a dizer-me «a culpa é tua, se não fosses tu eu estaria a fazer isto ou aquilo». Uma vez disse que ia obrigar-me a meter a cabeça no forno do fogão, consigo, e morrer.

— Eu disse isso? Devo ter tido bons motivos.

— Mãe! — Sylvia levantou-se. — Falarei com a Julia e com a Frances. Mas não olharei por si. Não espere que o faça. Só serviria para implicar comigo a toda a hora.

E foi assim que, precisamente quando Frances resolvera abandonar o jornalismo e a Tia Vera para sempre, assim como os artigos sociológicos sérios, para não falar nos pequenos trabalhos que fazia com Rupert Boland, Julia disse que ia ter de dar uma mesada à Phyllida e, «de modo geral, olhar por ela. Ela não é como a Frances. Não sabe cuidar de si própria. Mas avisei-a de que terá de se dominar e não a incomodar».

— E, o que é com certeza mais importante, não incomodar a Sylvia.

— A Sylvia diz que está convencida de que saberá lidar com a situação.

— Espero que saiba.

— Mas se eu der uma mesada à Phyllida... a Frances pode pagar as propinas do Andrew? Está a ganhar o suficiente?

— É claro que estou.

E lá se foi outra vez o teatro. Tudo isto acontecera no Outono de 1964, assim como o seguinte: Rose fora-se embora. Sabia que ela ficara bem nos exames e não precisava dos resultados para ter essa certeza. Chegou a casa numa altura em que Frances, Colin e Andrew estavam juntos e anunciou: «E agora tenho notícias super. Vou-me embora. Vão ficar livres de mim. Parto definitivamente. Vou para a universidade.» E correu pela escada abaixo. De súbito, deixou de estar presente. Esperaram que ela telefonasse ou escrevesse, mas nada. Tinha deixado o apartamento numa balbúrdia: roupas pelo chão, restos de sanduíches numa cadeira, meias a secar na casa de banho. Mas esse era o estilo habitual dos «miúdos» e não significava nada.

Frances telefonou aos pais de Rose. Não, não tinham sabido nada. «Ela diz que vai para a universidade.» «Deveras? Enfim, espero que nos esclareça, quando achar que é oportuno.»

Deveriam informar a polícia? Bem, no caso de Rose não parecia apropriado. Ir à polícia por causa de Rose, Jill e Daniel, que uma vez desaparecera durante semanas, fora sempre discutido demoradamente, na base de princípios adequados aos anos 60, e a ideia abandonada. Os Chuis, os Pasmas, a Bófia, os defensores da tirania fascista (a Grã-Bretanha) não podiam ser abordados. Julho... Agosto... Geoffrey ouvira dizer, por intermédio da rede de informação que na altura unia os jovens de continente para continente, que Rose estava na Grécia com um revolucionário americano.

Em Agosto, Phyllida fizera o seu apelo e instalara-se no apartamento da cave. Em Setembro, Rose reaparecera, trazendo ao ombro um grande saco preto, que largou no chão da cozinha.

— Voltei com todos os meus bens terrenos — anunciou.

— Espero que te tenhas divertido — comentou Frances.

— Uma podridão. Os gregos são uma merda. Bem, vou-me instalar lá em baixo.

— Não podes. Por que não nos avisaste? O apartamento está ocupado.

Rose deixou-se cair numa cadeira, tão arrasada que pela primeira vez pareceu indefesa.

— Mas... porquê?... eu disse... não é justo!

— O que nos disseste foi que te ias embora. Definitivamente, pensámos. E não tentaste comunicar connosco e dizer-nos quais eram os teus planos.

— Mas é o meu apartamento.

— Rose, lamento.

— Posso acampar e dormir na sala.

— Não, Rose, não podes.

— Já tenho os resultados dos exames. Nota máxima em tudo.

— Parabéns.

— Vou para a universidade. Vou para a LSE.

— Mas fizeste, de facto, alguma coisa para seres aceite?

— Oh, merda.

— Os teus pais não sabem nada a esse respeito.

— Estou a ver, há uma conspiração contra mim.

Rose sentou-se toda encolhida e, caso raro, havia vulnerabilidade no seu rosto miúdo. Confrontava — talvez pela primeira vez, mas com certeza não pela última — a sua verdadeira natureza, que só podia tê-la lançado naquela espécie de...

— Merda — repetiu. — Merda. — E depois: — Tive quatro notas máximas.

— Aconselho-te a perguntar aos teus pais se pagarão. Em caso afirmativo, vai à escola e pede que metam uma cunha a teu favor, e depois pede à LSE. Mas já é muito tarde para este ano.

— Que se foda tudo.

Levantou-se, com a dificuldade de uma ave atingida a tiro, pegou no grande saco preto, arrastou-se para a porta, saiu e seguiu-se um longo silêncio vindo do átrio. Estaria a recompor-se. Estaria a reconsiderar? Depois a porta da frente bateu. Não foi à escola nem falou com os pais, mas foi vista em Londres, nos clubes e em manifestações e encontros políticos.

Mal Phyllida acabara de se instalar, apareceu Jill. Foi num fim-de-semana e Andrew estava presente. Frances e ele estavam a jantar e convidaram-na para lhes fazer companhia.

Não lhe perguntaram o que andara a fazer. Agora tinha cicatrizes em ambos os pulsos e estava doentiamente gorda. Fora uma loura esguia e esbelta, bem arranjada, mas agora não cabia na roupa e as suas feições tinham-se tornado opadas. Eles não lhe perguntaram, mas ela contou-lhes. Estivera num hospital psiquiátrico, fugira, regressara voluntariamente e acabara por ajudar as enfermeiras com os outros pacientes. Achou que estava curada e eles concordaram.

— Acham que podiam convencer a escola a aceitar-me de novo? Se ao menos puder fazer os meus exames... Tenho a certeza de que ficaria bem. Até estudei um bocado, no manicómio.

Frances voltou a dizer que era um pouco tarde para aquele ano.

— E se lhes pedisse? — sugeriu Jill, e Frances pediu e foi aberta uma excepção para a jovem, que esperavam conseguiria fazer os seus exames se trabalhasse para isso.

Mas onde iria viver? Perguntaram a Phyllida se Jill podia ficar com o quarto que Franklin ocupara, ao que ela respondeu que «quem precisa não escolhe».

Mal Jill se instalou, Phyllida recomeçou com as suas acusações, usando-a como alvo. Na cozinha, em cima, ouviam a pesada voz queixosa de Phyllida, sem descanso, e passado apenas um dia Jill pediu ajuda a Sylvia e as duas raparigas foram falar com Frances e Andrew.

— Ninguém pode suportar aquilo — disse Sylvia. — Não a censurem.

— Não estou a censurá-la — disse Frances.

— Não estamos a censurá-la — corrigiu Andrew.

— Eu podia acampar na sala — sugeriu Jill.

— Podias usar a nossa casa de banho — disse Andrew.

O que fora impossível para Rose foi aceite para Jill, que não encheria o centro da casa com nuvens negras, borrascosas de fúria e desconfiança. E Julia disse:

— Eu sabia. Sempre o soube. E agora, finalmente, esta bela casa transformou-se num albergue nocturno. O que me surpreende é que não tenha acontecido antes.

— Nós quase nunca usamos a sala — lembrou Andrew.

— A questão não é essa, Andrew.

— Eu sei que não é, avó.

E foi essa a situação, a partir do Outono de 1964, com Andrew a ir e vir de Cambridge, Jill a estudar com afinco e a ser responsável e boa, Sylvia a estudar tanto que Julia chorava e dizia que ela ainda adoeceria, e Colin ora em casa, ora não. Frances trabalhava a partir de casa e cada vez mais em empreendimentos atraentes com Rupert Boland, e frequentemente a partir do Cosmo. Phyllida estava na cave, a comportar-se bem e sem atormentar Sylvia, que se mantinha bem longe dela.

Em 1965 Jill fez as pazes com os pais e foi para a LSE, «para estar com todos os meus parceiros». Disse que jamais esqueceria a bondade que a tinha salvo. «Vocês salvaram-me», dizia sinceramente. «Sem vocês, estaria perdida.» A partir daí, passaram a ouvir falar dela por intermédio de outras pessoas: estava no centro de toda a nova vaga da política e via muito Johnny e os seus camaradas.

Chegara o Verão de 1968 e tinham decorrido quatro anos. Era um fim-de-semana. Nem Andrew nem Sylvia tinham saído para se distraírem; precisavam de estudar. Colin viera a casa e tinha dito que ia escrever um romance. Julia comentara, de maneira que ele não ouvisse, mas alguém se encarregara de lho comunicar: «Claro! A ocupação dos falhados!» O que significava que o primeiro requisito para romancistas principiantes, o desencorajamento dos seus entes mais queridos e chegados, não tinha faltado, embora Frances tivesse o cuidado de se mostrar reservada e Andrew de parecer irónico.

Johnny telefonou a dizer que ia passar por lá. «Não, não te preocupes a cozinhar, nós já vamos comidos.» Este aviso surpreendente era, pensou Frances — enquanto a sua pressão arterial subia em flecha e depois baixava —, provavelmente uma maneira de Johnny se querer mostrar simpático. Intrigante, aquele «nós». Não podia referir-se a Stella, que estava nos Estados Unidos. Fora para participar nas grandes batalhas que poriam termo ao pior da discriminação contra as pessoas negras do Sul e tornara-se conhecida pela sua coragem e as suas capacidades organizadoras. Ameaçada com o fim do seu visto de visitante, casara com um americano e telefonara a Johnny a dizer que se tratava apenas de uma formalidade e que ele devia compreender que obedecera ao seu dever revolucionário. Regressaria quando a batalha estivesse ganha. Entretanto, boatos chegados do outro lado do Atlântico diziam que esse casamento pró-forma estava a correr muito bem, melhor do que o tempo que ela passara com Johnny, que fora em certa medida um desastre. Ela era muito mais nova do que Johhny e ao princípio admirara-o e respeitara-o muito, mas não tardara a ver com os seus próprios olhos. Não lhe faltara tempo para reflectir, porque ficava sozinha enquanto ele ia a reuniões e participava em delegações a países camaradas.

Johnny teria gostado de ter aderido às grandes batalhas americanas, ansiava por elas como uma criança a quem não tinham convidado para uma festa, mas não conseguira arranjar um visto. Tratou de fazer crer que tal se devia aos seus antecedentes na Guerra Civil de Espanha. Mas em breve seguiu-se a França e ele esteve em cada frente de batalha, à medida que elas se iam tornando notícia. Na realidade, porém, os acontecimentos de 68 foram punitivos para ele. Surgiam por todo o lado novos heróis jovens, e as suas bíblias também eram novas. Johnny tivera muito que ler.

Não foi o único membro da Velha Guarda que deu consigo a regressar às páginas do Manifesto Comunista, para refrescar a memória. «Aquilo sim, é escrita revolucionária», talvez murmurasse.

Em França cada herói tinha um grupo de raparigas que o servia, dormiam todos juntos por causa da nova prancha da plataforma revolucionária: a liberdade sexual. Não havia raparigas a cortejá-lo: era visto não só como inglês, mas também como mais velho. Mil novecentos e sessenta e oito, ano que seria recordado por centenas de milhares de políticos que tinham participado nas lutas de rua, nos confrontos com a polícia, no arremesso de pedras, nas correrias, na construção de barricadas e no vale tudo sexual, como o pico cintilante das suas proezas juvenis, não foi um ano em que Johnny viria a gostar de pensar.

Vendo que Stella não tinha intenção alguma de voltar para ele, regressara ao andar abandonado por Phyllida que se tornou numa espécie de comuna, lar de revolucionários de todo o lado, alguns esquivando-se à Guerra do Vietname e muitos da América do Sul, e geralmente ficavam com eles políticos africanos.

Quando Johnny chegou, a cozinha pareceu imediatamente transbordante e os três que estavam sentados à mesa a jantar sentiram-se baços e descoloridos, pois os recém-chegados, que tinham acabado de vir de uma reunião, pareciam eufóricos e cheios de vigor. O camarada Mo e Johnny estavam divertidos com uma piada qualquer, e depois o camarada Mo disse a Frances, enquanto a abraçava: «Danny Cohn-Bendit disse que não teremos socialismo enquanto o último capitalista não for enforcado com as tripas do último burocrata.»

Franklin — ela não reconhecera imediatamente o jovem negro corpulento, com um bom fato — disse ao homem negro que o acompanhava:

— Esta é Frances, já te falei dela; foi uma mãe para mim. Frances, este é o camarada Matthew, o nosso líder.

— É uma honra conhecê-la — disse o camarada Matthew, sem sorrir, formal, no estilo mais antigo dos camaradas, em que a severidade leninista tinha sido moda. (E voltaria a ser, muito em breve.)

Era fácil perceber que o homem se sentia pouco à vontade e não gostava de estar ali. Manteve-se sério e até olhou de relance para o seu relógio, enquanto Franklin estava a ser saudado pelos «miúdos», agora adultos. Franklin parou defronte de Sylvia, que se levantara, hesitante, e depois ela abriu os braços para um abraço e ele fechou os olhos enquanto a abraçava, e quando os abriu tinha-os cheios de lágrimas.

— Sentem-se — convidou Andrew, e puxou cadeiras que estavam alinhadas ao longo da parede. O camarada Matthew sentou-se, de testa franzida: olhou de novo para o relógio.

O camarada Mo, que desde a última vez que ali estivera tinha ido à China dar a bênção à Revolução Cultural (como a dera ao Grande Salto em Frente e a Deixai Florir Todas as Flores), fazia agora conferências em universidades à volta do mundo sobre os seus benefícios para a China e para toda a humanidade. Agora sentou-se e pegou num bocado de pão.

— O camarada Matthew é meu primo — disse Franklin a Frances.

— Somos da mesma tribo — corrigiu-o o homem mais velho.

— Ah, mas deves reconhecer que «tribo» parece atrasado — disse Franklin, que tinha evidentemente um certo medo de confrontar o líder.

— Estou ao corrente de que «primo» é o termo inglês.

Agora estavam todos sentados, excepto Johnny, que disse aos seus filhos:

— Ouviram, o Danny Cohn-Bendit acaba de dizer... — como a frase ameaçava reacender os acessos de gargalhadas do camarada Mo, Frances interveio:

— Nós ouvimos, a primeira vez. Pobre rapaz, teve uma infância terrível. Pai alemão... mãe francesa... falta de dinheiro... foi um bebé da guerra... ela teve de criar os filhos sozinha.

Sim, ela estava, sem sombra de dúvida, a dizer aquilo de propósito, enquanto sorria amigavelmente, e primeiro Andrew e depois Colin desataram a rir

Johnny comentou, aborrecido:

— Lamento que a minha mulher nunca tenha começado, sequer, a compreender a política.

— A tua ex-mulher — emendou Frances. — Antes de várias outras ex.

— Estes são os meus filhos — continuou Johnny e Andrew pegou no copo do vinho e despejou-o, enquanto Colin dizia:

— Temos esse privilégio.

Os três negros pareciam pouco à vontade, mas depois o camarada Mo, que andava pelo mundo fora havia cerca de uma década, sorriu com gosto e disse:

— A minha mulher também me censura. Não compreende que o Combate deve estar à frente da família e das obrigações.

— Pergunto-me se ela alguma vez o verá — comentou Frances.

— E fica satisfeita, quando o vê? — indagou Colin.

O camarada Mo olhou fixamente para Colin, mas viu apenas um rosto sorridente.

— São os meus filhos — disse, a abanar a cabeça. — Isso é muito difícil para mim. Às vezes, quando os vejo, mal os reconheço.

Entretanto, Sylvia estava a fazer café e a pôr bolo e biscoitos na mesa. Era evidente que os visitantes tinham esperado mais. Como já fizera tantas vezes, Frances tirou tudo quanto havia no frigorífico e o que sobrara da própria refeição deles, e pô-lo na mesa.

— Oh, senta-te — disse a Johnny, que se sentou com dignidade e começou a servir-se.

— Não perguntou pela Phyllida — disse-lhe Sylvia. — Não perguntou como a minha mãe está.

— Sim, eu também estava a pensar nisso — disse Frances.

— Faço-o daqui a pouco — respondeu Johnny.

— Quando o Johnny disse que vinha visitá-los, hoje — disse Franklin —, eu pensei que tinha de os voltar a ver, a todos. Nunca esquecerei a vossa bondade para comigo.

— Voltaste a casa? — perguntou-lhe Frances. — Afinal, não foste para a universidade.

— Fui para a universidade da vida — respondeu o rapaz.

— Frances — interveio Johnny —, não se pergunta à liderança negra o que está a fazer, agora não se pergunta. Até tu deves ver isso.

— Não — concordou o camarada Matthew. — Esta não é a altura para perguntar isso. — E acrescentou: — Não nos podemos esquecer de que tenho de falar numa reunião, daqui a uma hora.

Os camaradas Johnny, Franklin e Mo começaram a comer o mais depressa que podiam, mas o camarada Matthew já acabara: era um comedor frugal, um daqueles homens que comem porque têm de comer.

— Antes de nos irmos embora — disse Johnny —, tenho um recado do Geoffrey. Ele esteve nas barricadas comigo, em Paris, e manda cumprimentos.

— Santo Deus — admirou-se Colin —, o nosso pequeno Geoffrey, de rosto simpático e limpo, nas barricadas!

— Ele é um camarada muito sério e muito valioso — declarou Johnny. — Tem um canto em minha casa.

— Fala à maneira de um antigo romance russo — disse Andrew. — Um canto, o que é isso traduzido em inglês?

— Ele e o Daniel. Eles acampam com frequência uma ou duas noites comigo. Tenho dois sacos-cama para eles. E agora, antes de nos irmos embora, tenho de lhes perguntar se sabem o que anda a Phyllida a tramar.

— E o que anda ela a tramar? — perguntou Sylvia, revelando tanta antipatia por ele que todos viram aquela outra Sylvia. Foi um choque. Ficaram abalados. Franklin riu-se, nervosamente. Johnny fez um esforço para a enfrentar e respondeu:

— A tua mãe anda a ler a sina. Tem anúncios em painéis de agências noticiosas como cartomante, com a indicação desta morada.

Andrew riu-se. Colin riu-se. E depois foi a vez de Frances também se rir.

— Onde está a graça? — perguntou Sylvia.

Achando que este choque cultural estava a ficar descontrolado, o camarada Mo disse:

— Hei-de passar por cá um destes dias para ela me ler a sina.

— Se ela tem o dom, os antepassados devem gostar dela — opinou Franklin. — A minha avó era uma sábia. Vocês chamar-lhe-iam feiticeira. Era uma riganga.

— Uma xamane — elucidou Johnny a todos em geral.

— Concordo com o camarada Johnny — disse o camarada Matthew. Este tipo de superstição é reaccionário e devia ser proibido. — E levantou-se para sair.

— Se ela está a ganhar algum dinheiro, devias esperar que eu ficasse satisfeita — lembrou Frances a Johnny, que também se levantou.

— Vamos, camaradas, são horas de irmos andando.

Antes de sair, porém, hesitou e depois disse, para retomar o comando da situação:

— Diz à Julia que diga à Phyllida que não pode fazer este tipo de coisas.

Mas Frances deu consigo a ter pena dele. Parecia tão envelhecido... bem, tinham ambos quase cinquenta anos. O casaco à Mao parecia estar-lhe largo. Pelo seu ar desconsolado, percebeu que as coisas não estavam a correr-lhe bem em Paris. Está ultrapassado, pensou. E eu também.

Enganava-se a respeito de ambos.

Estavam à porta os anos 70 que, de uma ponta a outra do mundo (do mundo não comunista), iam gerar uma raça de clones de Che Guevara, e em que as universidades, em particular as de Londres, iam ser uma celebração quase contínua da Revolução, com manifestações, distúrbios, ocupações, lock-outs, combates de toda a espécie. Fosse para onde fosse que se olhasse, lá estavam esses jovens heróis, e Johnny tornara-se um grande velho homem, e o facto de ser um estalinista quase inteiramente impenitente tinha um certo chique comedido entre aqueles jovens que acreditavam, acima de tudo, que se Trotski tivesse ganho a batalha pelo poder a Estaline então o comunismo teria adquirido um rosto beatífico. E ele tinha outra desvantagem, que consistia no facto de o seu entourage ser formado geralmente por homens jovens e não por raparigas entusiastas. O seu estilo estava todo errado. O certo era quando o camarada Tom, ou Billy, ou Jimmy chamavam uma rapariga com um desdenhoso estalar de dedos e lhe diziam: «És escumalha burguesa», no que estava implícito: deixa tudo o que tens e vem comigo. (Ou antes: dá-me tudo o que tens.) E continua a ser assim até hoje. É irresistível. Mas havia pior. Se a limpeza viera, em tempos, logo a seguir à santidade, a sujidade e o mau cheiro valiam agora tanto como um cartão do Partido. Abraços malcheirosos: eis uma coisa que Johnny não podia proporcionar, visto que fora criado por Julia — ou melhor, pelas criadas dela. O vocabulário... sim, com isso podia alinhar. Merda e foda-se, vendido e fascista, eram palavras que tinham de constituir uma boa parte de qualquer discurso político.

Mas estas divertidas delícias ainda pertenciam ao futuro.

Wilhelm Stein, que com tanta frequência subia a escada para visitar Julia, inclinando gravemente a cabeça a quem encontrava pelo caminho, esta noite bateu à porta da cozinha, esperou até ouvir o «Entre», e entrou com uma pequena vénia. O cabelo e a barba brancos prateados, o punho de prata da bengala, o seu fato e até a própria armação dos seus óculos, constituíam uma censura para a cozinha e para as três pessoas sentadas à mesa a jantar. Convidado a sentar-se por Frances, Andrew e Colin, aceitou e sentou-se, mantendo a bengala verticalmente a seu lado, segura por uma mão maravilhosamente cuidada e adornada por um anel com uma pedra azul-escura.

— Tomei a liberdade de vir falar-lhes a respeito de Julia — disse, olhando-os um após outro para lhes demonstrar a seriedade do assunto. Eles esperaram.

— A vossa avó não está bem — disse aos dois jovens, e acrescentou dirigindo-se a Frances: — Tenho perfeita consciência da dificuldade de persuadir Julia a fazer coisas que devia fazer, para seu próprio bem.

Os três pares de olhos que o fitavam diziam-lhe que se enganara a seu respeito. Suspirou, quase se levantou, mudou de ideias e tossiu.

— Não quero dizer que pense que foram negligentes com ela.

Colin pegou-lhe na palavra. Era agora um jovem homem corpulento, com o rosto redondo ainda agarotado e cujos óculos de aros grossos e pretos pareciam tentar manter na ordem aquelas feições que ameaçavam, com excessiva frequência, rir sardonicamente.

— Eu sei que ela não é feliz — disse. — Nós sabemos isso.

— Penso que ela deve estar doente.

O problema era que Julia perdera Sylvia. Sim, a rapariga continuava lá em casa, que era a sua casa, mas os acontecimentos tinham levado Julia a concluir que desta vez a perdera para sempre. Wilhelm conseguia, com certeza, perceber isso?

— Julia tem o coração partido por causa da Sylvia — disse Andrew. — É tão simples como isso.

— Não sou um velho tão estúpido que não tenha consciência dos sentimentos de Julia. Mas simples é que o caso não é.

Começou a levantar-se, decepcionado com eles.

— O que quer que façamos? — perguntou Frances.

— Julia devia estar menos só. Devia andar mais. Ela agora sai muito pouco e eu insisto que não é por causa da sua idade. Sou dez anos mais velho do que ela e não desisti. Temo que Julia tenha feito precisamente isso.

Frances estava a pensar que durante todos aqueles anos Julia nunca respondera sim quando convidada para ir jantar fora, ou passear, ou ao teatro, ou a uma galeria de pintura. Obrigada, Frances, é muito amável, era sempre a resposta.

— Quero pedir-lhes permissão para dar um cão a Julia. Não, não me refiro a nenhum grande cão rosnador, mas sim a um cãozinho. Ela terá de sair com ele e de o tratar.

Uma vez mais, os três rostos disseram-lhe que não ia ser informado daquilo em que estavam realmente a pensar.

O idoso senhor imaginava, realmente, que um cãozinho preencheria o vazio que havia em Julia? Uma troca: um cãozinho por Sylvia!

— É claro que lhe deve dar um cão — respondeu Frances —, se pensa que ela vai gostar.

E Wilhelm, que acabara de lhes confessar aquilo que nunca teriam imaginado, ou seja, que era um octogenário, explicou:

— Não se trata de uma questão do que eu penso que seria bom para ela. Devo dizer-lhe... que não sei o que hei-de fazer. — E agora a gravidade, a extrema seriedade dos seus modos, o seu estilo, tudo isso desapareceu e viram à sua frente um velho humilde, com lágrimas a correrem-lhe para a barba. — Não deve ser segredo para nenhum de vocês que sou muito amigo de Julia. Custa vê-la tão... tão... — E saiu. — Desculpem, peço-lhes que me desculpem.

— E qual é o primeiro a dizer: Eu não vou tomar conta do cão? — perguntou Frances.

Wilhelm chegou com um terrier minúsculo, ao qual já dera o nome de Stuckschel — migalha, coisinha — e em cujo pescoço pusera, de brincadeira, uma fita azul. A reacção imediata de Julia foi afastar-se a recuar, quando o animalzinho latiu à volta das suas saias, mas depois, vendo a ansiedade do seu velho amigo para que gostasse dele, fez um esforço e deu umas palmadinhas no cãozinho, tentando acalmá-lo. Representou muito bem o seu papel, para que Wilhelm pensasse que ela aprenderia a gostar do animal, mas quando ele saiu e ela teve de pensar na comida para o cão e nos problemas de higiene, sentou-se a tremer na cadeira e pensou: Ele é o meu melhor amigo, mas sabe tão pouco a meu respeito que pensa que quero um cão.

Seguiram-se dias desagradáveis: comida para o cão, porcarias no chão, cheiros e a incansável criaturinha a latir e a levá-la às lágrimas. Como pôde ele?, murmurava, e quando Wilhelm chegava para ver como iam as coisas, os esforços dela para ser agradável faziam-lhe ver o grande erro que cometera.

— Mas, minha querida, far-lhe-ia bem sair com ele para andar um pouco. Que nome lhe pôs? Espalhafato? Compreendo. — E saiu, magoado, de modo que ela passou a ter de se preocupar também com ele.

Espalhafato, que sabia que a dona o detestava, arranjou maneira de se aproximar de Colin, que gostava do animalzinho porque ele o fazia rir. Espalhafato passou a chamar-se Fera, dado o absurdo daquela coisinha minúscula rosnar e defender-se, e ameaçar morder com as mandíbulas do tamanho da pinça para açúcar de Julia. As suas patas pareciam tufos de algodão em rama, os seus olhos pequenas sementes pretas de papaia e a sua cauda uma rosca de seda prateada. Fera passou a ir para todo o lado com Colin, de tal modo que o cão que se destinara a fazer bem a Julia se tornou bom para Colin, que não tinha amigos, dava passeios solitários pelo parque e andava a beber demais. Nada de grave, mas o suficiente para Frances lhe dizer que estava preocupada, ao que ele respondeu, explodindo: «Não gosto de ser espiado.» O verdadeiro problema residia no facto de detestar depender de Julia e da mãe. Escrevera dois romances, que sabia não prestarem, e estava a trabalhar num terceiro, com Wilhelm Stein como mentor. Agradava-lhe o facto de Andrew ter regressado à condição de dependente. Concluídos os exames com êxito, Andrew saíra de casa para se estabelecer com um grupo de advogados, mas depois decidira que queria dedicar-se a Direito Internacional. Voltou para casa e decidiu ir para Oxford, para o Brasenose College, e fazer um curso de dois anos.

Sylvia era médica estagiária, muito mais nova do que a maioria dos colegas e a trabalhar tão arduamente como eles. Quando ia a casa subia a escada num transe de exaustão, sem ver nada nem ninguém: mentalmente, já estava na cama, enfim a dormir. Era capaz de dormir vinte e quatro horas seguidas e depois tomar um duche e partir. Muitas vezes nem sequer dizia olá a Julia, quanto mais um beijo de boas-noites.

Mas havia outra coisa. O pai de Sylvia, o verdadeiro, o camarada Alan Johnson, morrera e deixara-lhe uma boa quantidade de dinheiro. A carta do advogado chegou acompanhada de uma carta dele, visivelmente escrita quando estava bêbado, na qual dizia que ela, Tilly, era a única coisa autêntica da sua vida. «És o meu legado para o mundo», considerando aparentemente o substancial legado uma mera e irrisória contribuição material. Ela não se lembrava de alguma vez o ter visto.

Sylvia passou lá por casa para ver Julia, dar-lhe a notícia e dizer: «Foi muito boa para mim, mas agora não preciso mais de esmolas.» Julia ficara calada, a torcer as mãos no colo, como se Sylvia lhe tivesse batido.

A culpa da indelicadeza fora a exaustão. Sylvia não tinha sido, simplesmente, ela própria. Não tinha arcaboiço para excesso de tensão e stress continuados, ainda era uma amostra de gente com os grandes olhos azuis sempre um pouco avermelhados. Além disso, andava com um pouco de tosse.

Wilhelm encontrou-a quando ela subia a escada, após uma semana de trabalho e quase nenhum sono, e pediu-lhe conselho, como médica, a respeito de Julia, mas Sylvia respondeu: «Lamento, mas não estudei geriatria» — e passou à frente dele direita à sua cama, onde caiu e adormeceu.

Julia ouvira a conversa do patamar do andar de cima. Geriatria. Cismou, sofreu, tudo constituía uma afronta para ela no estado de paranóia em que se encontrava — pois era disso que se tratava. Achava que a rapariga se voltara contra ela.

Sylvia lera a carta do advogado quando estava ansiosa por dormir como um prisioneiro sob tortura ou uma jovem mãe com um novo bebé. Desceu com a carta na mão ao apartamento de Phyllida e encontrou-a de um lado para o outro, com um quimono coberto de signos astrais. Interrompeu o acolhimento sarcástico de Phyllida — «A que devo a honra...» — com:

— Mãe, ele deixou-lhe dinheiro?

— Quem? De que estás a falar?

— O meu pai. Ele deixou-me dinheiro.

Acto contínuo, o rosto de Phyllida pareceu que ia estoirar de fúria, mas Sylvia antecipou-se:

— Ouça-me, é só o que lhe peço, ouça-me.

Mas Phyllida estava lançada, a sua voz abandonada ao sobe-e-desce da onda dos seus lamentos.

— Quer dizer que eu não conto para nada, é claro, eu não conto, ele deixou-te o dinheiro...

Mas Sylvia atirara-se para uma cadeira e estava a dormir: mole, completamente apagada para o mundo.

Phyllida desconfiou de que isso se tratava de um truque ou uma armadilha. Olhou com atenção para a filha, chegou mesmo a levantar-lhe uma mão flácida e a deixá-la cair de novo. Sentou-se pesadamente, espantada, chocada — e silenciada. Sabia que Sylvia trabalhava muito — toda a gente sabia o que se passava com os jovens médicos... mas que pudesse ter adormecido assim, sem mais nem menos... Phyllida apanhou a carta que caíra para o chão, leu-a e sentou-se com ela na mão. Havia anos que não tinha a oportunidade de olhar para a filha, olhar realmente, com olhos de ver. E agora olhou. Tilly estava tão magra e pálida e extenuada... era um crime o que esperavam dos jovens médicos, alguém deveria pagar isso...

Estes pensamentos desenrolavam-se em silêncio. Os pesados cortinados estavam corridos, a casa inteira silenciosa. Talvez devesse acordar Tilly? Podia atrasar-se para o trabalho. Aquele rosto... não era nada parecido com o seu. A boca de Tilly era a do pai, vermelha e delicada. Vermelho e delicado descreveria bem o camarada Alan, um herói... deixá-los pensar assim, se quisessem. Ela casara com dois heróis comunistas, primeiro com um e depois com outro. Que se passara com ela, nessa altura? (Esta autocrítica até agora atípica conduzi-la-ia em breve à Via Dolorosa da psicoterapia e, a partir daí, a uma nova vida.)

Tilly teria descido para lhe falar da herança, para se vangloriar? Para a provocar? Mas o seu sentido de justiça disse-lhe que não. Sylvia dava-se ares, era toda cheia de nove horas e detestava a mãe, mas Phyllida nunca dera por que ela fosse rancorosa.

Sylvia acordou sobressaltada e pensou que estava a ter um pesadelo. O rosto da mãe, rude, vermelho e com acusadores olhos desvairados, estava muito perto do dela e, daí a um momento, aquela voz começaria, como sempre, a falar-lhe, a gritar-lhe. Arruinaste a minha vida. Se não te tivesse a minha vida teria sido... És a minha maldição, a minha cruz...

Sylvia gritou, empurrou a mãe e endireitou-se. Viu a carta na mão de Phyllida e arrancou-lha. Levantou-se e disse-lhe:

— Ouça, mãe, mas não diga nada, não diga nada, por favor. Foi injusto ele deixar-me o dinheiro todo, mas eu dar-lhe-ei metade. Falarei com o advogado.

E saiu a correr, a tapar os ouvidos com as mãos.

Sylvia informou os advogados, depois de ter consultado Andrew, e foram tomadas as providências necessárias. Dar metade a Phyllida significava que uma herança substancial se transformava numa quantia útil, suficiente para comprar uma boa casa, fazer um seguro, ter segurança. Andrew recomendou-lhe que procurasse aconselhamento financeiro.

De súbito, havia apenas umas propinas a pagar: as de Andrew. Frances decidiu que da próxima vez que lhe oferecessem um bom papel o aceitaria.

Wilhelm voltou a bater à porta da cozinha, mas desta vez o Dr. Stein mostrava-se todo sorrisos e tímido como um rapazinho. Era, de novo, uma noite de domingo e Frances e os dois filhos formavam uma cena familiar à mesa do jantar.

— Tenho novidades — anunciou Wilhelm a Frances. — Colin e eu temos novidades. — Mostrou uma carta e agitou-a. — Colin, deves lê-la em voz alta... não? Nesse caso, leio-a eu.

E leu uma carta de um bom editor informando que o romance de Colin, O Enteado, seria publicado em breve, e que se esperava tivesse muito êxito.

Beijos, abraços, parabéns, e Colin incapaz de falar, de contentamento. Na realidade, a carta tinha sido esperada. Wilhelm lera e desaprovara as duas anteriores tentativas de Colin, mas esta recebera a sua aprovação e ele arranjara-lhe o editor, que era seu amigo. Chegara assim ao fim o longo aprendizado de paciência e obstinação de Colin. Enquanto os humanos se beijavam, soltavam exclamações e se abraçavam, a amostra de cão pulava e ladrava, soltando minúsculos latidos impregnados da necessidade de se juntar à festa. Depois saltou para o ombro de Colin e empoleirou-se lá, com o penacho da cauda a abanar como um limpa-pára-brisas pelo rosto de Colin e ameaçando-lhe os óculos.

— Para baixo, Fera — ordenou-lhe o jovem, e o absurdo da situação sufocou-o de lágrimas e riso, enquanto repetia: Fera, Fera... — Depois correu pela escada acima com o cãozinho nos braços.

— Maravilhoso — disse Wilhelm Stein —, maravilhoso — e, após beijar o ar por cima da mão de Frances, correu, sorridente, para Julia que, depois de ouvir a notícia dada pelo amigo, ficou uns momentos silenciosa, antes de dizer:

— Então eu estava enganada. Estava muito enganada. Wilhelm, que sabia como ela detestava estar enganada, virou-se

para não ver as lágrimas de autocrítica nos olhos da amiga. Deitou vinho da Madeira em dois copos, vagarosamente, e disse:

— Ele tem muito talento, Julia. Mas o mais importante é que sabe ser perseverante.

— Nesse caso, pedir-lhe-ei desculpa, pois não fui amável.

— E talvez amanhã queiras ir comigo ao Cosmo, não? Um pequeno passeio não te fará mal nenhum, Julia.

E foi assim que Julia pediu desculpa a Colin, o qual devido à evidente perturbação emocional em que ela se encontrava, gastou tempo e trabalho a tranquilizá-la. Depois, com o braço no de Wilhelm, Julia desceu devagar a encosta para o Cosmo, onde ele a cortejou com bolos e elogios, enquanto à volta deles ora se atiçavam, ora amorteciam, as labaredas do debate político.

Frances leu O Enteado e depois deu-o a Andrew, que comentou: «Interessante. Muito interessante.»

Anos antes, Frances tivera de se sentar e ouvir as críticas que Colin lhe fazia, e ao pai, tão furioso e implacável que ela tinha a sensação de estar a ser encarquilhada por rios de lava. Ali, no romance, estava toda essa cólera destilada. Era a história de um rapazinho cuja mãe casara com um charlatão, um patife com uma língua mágica, que ocultava os seus crimes atrás de biombos de palavras persuasivas prometendo toda a espécie de paraísos. Era agressivo com o rapazinho, ou então ignorava-o. Sempre que a criança pensava que o seu atormentador desaparecera, ele voltava de novo e de novo a mãe sucumbia aos seus encantos. Sim, porque ele era encantador, embora de uma maneira sinistra. A história era contada pela criança a um amigo imaginário, o companheiro tradicional das crianças solitárias, e era triste e divertida, porque a visão distorcida de uma criança podia ser interpretada pelo leitor adulto como uma coisa exagerada, deturpada: as cenas de quase pesadelo, lembrando sombras de uma luz de vela numa parede, eram na realidade triviais e até espalhafatosas. Um leitor do editor descrevera o livro como uma pequena obra-prima, e talvez fosse. Mas a mãe e o irmão mais velho viam nela outra coisa, como a terrível infelicidade fora posta à distância pela magia da história:

— Colin mostrava-se neste livro como adulto, e Andrew comentou: «Sabes, acho que o meu irmão mais novo me ultrapassou: Não creio que eu fosse capaz de conseguir algo semelhante a este grau de distanciamento.

— Foi assim tão mau? — perguntou Frances, receosa da sua resposta, que foi:

— Sim, foi, não creio que avalies... Não vejo que fosse possível ele ter sido pior pai, e tu, vês?

— Não lhes batia — disse Frances em voz fraca, tentando encontrar alguma coisa que tornasse a história melhor.

Andrew respondeu-lhe que há coisas piores do que a pancada. Mas quando ficou decidido fazer um pequeno jantar para celebrar O Enteado, o próprio Colin acrescentou o nome do pai aos convidados. A grande mesa voltaria, portanto, a ter «todos» sentados à sua volta.

— Convidei toda a gente — anunciou Colin.

Sophie foi a primeira a ser convidada e a aceitar. Geoffrey, Daniel e James, todos habitués da casa de Johnny, disseram que compareceriam, mas chegariam tarde — uma reunião. Johnny disse o mesmo. Jill, que Colin encontrou na rua, disse que iria. Julia disse que ninguém quereria aturar uma velha maçadora, ao que Wilhelm respondeu: «Minha querida, estás a dizer tolices.» Sylvia disse que tentaria vir, se o seu horário permitisse.

A mesa foi posta para onze. Wilhelm contribuíra com um bolo maravilhoso e muito pouco inglês, com a forma de uma espiral roliça e sem arestas, com uma superfície que parecia tule estaladiço e reluzente, mas que na verdade era uma cobertura de natas e merengue salpicada por minúsculos flocos dourados. Sophie comentou que devia ser para usar e não para comer.

Sentaram-se à mesa com metade dos lugares desocupados, e depois Sophie chegou apressada, com Roland. O belo jovem actor, desferindo raios de potente encanto a cada um deles, apressou-se a esclarecer:

— Não, não me vou sentar, vim apenas felicitar-te, Colin. Como sabes, sou um arrivista social inveterado e se tu vais ser um escritor importante, eu não podia deixar de marcar presença. — Beijou Frances e depois Andrew — que levou o gesto com bom-humor —, apertou a mão a Colin, inclinou-se diante de Julia e fez uma vénia rápida a Wilhelm. — Até logo, amor — disse a Sophie, e acrescentou: — Tenho de estar em cena dentro de vinte minutos.

Ficaram sentados, a ouvir o carro arrancar ruidosamente.

Sophie e Colin, sentados ao lado um do outro, beijavam-se, abraçavam-se e juntavam as faces. Todos os presentes se permitiram pensar que Sophie acabaria, finalmente, por deixar Roland, que a tornava infeliz, e que Colin e ela poderiam...

Brindou-se. A comida foi servida. A refeição ia a meio quando Sylvia chegou. Estava, como sempre nos últimos tempos, apenas metade presente: pronta para sair, e todos sabiam que em breve o faria. Trouxera um jovem colega, que descreveu como vítima, como ela, do sistema. Sentaram-se ambos, aceitaram copos de vinho e permitiram que lhes pusessem comida nos pratos, mas pareciam prestes a cair de sono, ali sentados.

— É melhor irem para a cama — disse Frances, e eles levantaram-se como fantasmas e saíram e subiram a escada a tropeçar.

— Que sistema tão estranho — disse a voz ríspida de Julia, que ultimamente tinha um som ameaçador e magoado. — Como é possível que tratem estes jovens tão mal?

Jill chegou tarde e a desculpar-se. Era agora uma jovem mulher forte, com farta cabeleira frisada e amarela e roupas que pareciam feitas para lhe dar um aspecto público e competente — o que era compreensível, visto ela dizer que ia candidatar-se a vereadora nas próximas eleições municipais. Mostrava-se efusiva, não se cansava de repetir como era maravilhoso estar ali outra vez: morava a uns quinhentos metros de distância. Informou, sem que ninguém lho pedisse, que Rose era uma jornalista freelance e «politicamente muito activa».

— É-me permitido perguntar que causa reclama a atenção dela? — perguntou Julia.

Sem compreender a pergunta, pois, evidentemente, só podia haver uma causa possível — a Revolução —, Jill disse que Rose estava envolvida «com tudo».

Johnny chegou perto do fim da alegre refeição. Ultimamente, tinha uma postura ainda mais militar, austera, sisuda. Vestia um casaco camuflado dos excedentes do exército e, por baixo, uma camisola preta, justa, de gola alta dobrada, ejeans pretos. O seu cabelo grisalho pouco mais tinha do que um centímetro de altura. Estendeu a mão a Colin, inclinou a cabeça e disse «Parabéns», e, dirigindo-se à mãe: «Espero que esteja bem, Mutti.» «Estou bem», respondeu Julia. E a Wilhelm: «Ah, também aqui está. Excelente.» Acenou com a cabeça a Frances e disse a Andrew: «Estou satisfeito por estares a tirar Direito Internacional. Deve vir a ser útil.» Lembrou-se de Sophie, pois fez-lhe uma pequena vénia, e Jill, que conhecia bem, recebeu uma saudação de camarada.

Sentou-se e Frances encheu-lhe o prato. Wilhelm serviu-lhe vinho e o camarada Johnny brindou aos trabalhadores do mundo, e depois prosseguiu com um discurso que acabara de fazer na reunião de onde viera. Antes, porém, apresentou desculpas de Geoffrey, James e Daniel, que estavam certos de que todos compreenderiam que a Luta tinha de estar em primeiro lugar. O imperialismo americano... a engrenagem militar-industrial... o papel de lacaio da Grã-Bretanha... a Guerra do Vietname...

Mas Julia andava angustiada com a Guerra do Vietname e interrompeu-o, para perguntar:

— Johnny, importavas-te, por favor, de dar mais pormenores... Gostava, realmente, de saber o que se passa. Não compreendo, pura e simplesmente, porque há esta guerra.

— Porquê? Com certeza não precisa de perguntar, Mutti. Por causa dos lucros, é claro. — E continuou com o seu discurso, que interrompia para meter garfadas de comida na boca.

Colin interrompeu-o:

— Um momento. Apenas um momento. Leste o meu livro? Ainda não disseste.

Johnny pousou a faca e o garfo e disse gravemente ao filho:

— Li, sim.

— Nesse caso, o que pensas dele?

Este atrevimento causou incredulidade a Frances, a Andrew em especial e também a Julia, como se Colin tivesse decidido espicaçar com uma vara um leão até agora não provocado. E o que receavam aconteceu. Johnny disse:

— Colin, se estás sinceramente interessado na minha opinião, eu dou-ta. Mas preciso de regressar aos princípios. Não estou interessado nos subprodutos de um sistema podre. E é isso que o teu livro é. É subjectivo, é pessoal, não há nenhuma tentativa para colocar os acontecimentos numa perspectiva política. Toda esta escrita classista, a chamada literatura, é a borra do capitalismo, e escritores como tu são lacaios burgueses.

— Oh, cala-te! — interveio Frances. — Comporta-te como um ser humano, ao menos uma vez.

— Deveras? Como tu te denuncias, Frances. Um ser humano. E para que pensas tu que eu e todos os outros camaradas estamos a trabalhar, a não ser para a humanidade?

— Pai — disse Colin, que já estava branco e a sofrer —, pondo de parte toda a propaganda, gostava de saber o que pensas do livro.

O pai e o filho estavam inclinados um para o outro por cima da mesa. Colin dir-se-ia alguém ameaçado de espancamento; o seu pai estava triunfante e dono da razão. Ter-se-ia reconhecido no livro? Provavelmente não.

— Já te disse. Li o livro. Estou a dizer-te o que penso. Se há uma classe de pessoas que desprezo, é a liberal. E é isso que tu és, que todos vocês são. São os sendeiros gerados pelo decadente sistema capitalista.

Colin levantou-se e saiu da cozinha. Ouviram-no subir a escada aos tropeções. Julia disse:

— E agora, Johnny, sai. Vai-te embora.

Johnny ficou sentado, aparentemente pensativo: estaria a ocorrer-lhe que podia ter-se comportado de maneira diferente? Meteu apressadamente na boca o que restava no seu prato, emborcou o resto do vinho do copo, e disse:

— Muito bem, Mutti. Está a pôr-me fora da minha casa. — Levantou-se e, um momento depois, ouviram a porta da frente bater.

Sophie estava em pranto. Saiu atrás de Colin, a dizer:

— Oh, aquilo foi tão horrível] Jill disse, falando para o silêncio:

— Mas ele é um grande homem, é tão maravilhoso... — Olhou à sua volta, só viu angústia e cólera, e acrescentou: — Acho que tenho de ir. — Ninguém a deteve. Acrescentou, ao sair: — Muito obrigada por me terem convidado.

Frances fez menção de cortar o bolo, mas Julia estava a levantar-se, ajudada por Wilhelm.

— Estou tão envergonhada — disse. — Tão envergonhada. — E subiu a escada a chorar, com Wilhelm.

Restaram Andrew e a mãe.

De súbito, Frances começou a bater com os punhos na mesa, de rosto erguido e lágrimas a cair pelas faces.

— Eu mato-o. Um destes dias, mato-o! Como foi capaz de fazer aquilo? Não compreendo como foi capaz.

— Mãe, escuta... — pediu Andrew.

Mas Frances não se podia conter e começou mesmo a puxar o cabelo, como se quisesse arrancá-lo.

— Eu mato-o. Como pôde ele magoar o Colin daquela maneira? O teu irmão teria ficado feliz apenas com uma pequena palavra amável.

— Mãe, escuta-me. Acaba com isso e escuta-me.

Frances deixou pender as mãos, descansou os punhos em cima da mesa e ficou sentada à espera.

— Sabes o que nunca compreendeste? E eu confesso que não sei por que não compreendeste. Johnny é estúpido. Ele é um homem estúpido. Como é possível que nunca tenhas percebido isso?

— Estúpido — repetiu Frances. Tinha a sensação de que dentro da sua cabeça se agitavam e mudavam de posição pesos e contrapesos. Bem, é claro que ele era estúpido. Mas ela nunca o admitira. E nunca o admitira por causa do grande sonho. Depois de tudo o que lhe aturara, de toda aquela conversa fiada, nunca fora capaz de dizer a si mesma, simplesmente, que Johnny era estúpido.

— O que dói é a insensibilidade — persistiu. — Foi uma coisa tão brutal...

— Mas, mãe, o que é que eles são, a não ser brutais? Por que admirariam tudo aquilo se não fossem pessoas brutais?

E então, numa surpresa para ela própria, Frances apoiou a cabeça nos braços, sobre a mesa e entre os pratos, e soluçou. Andrew esperou, observando o renovar das lágrimas da mãe de cada vez que pensava que ela se refizera. Agora também ele estava branco, abalado. Nunca vira a mãe chorar, nunca a ouvira criticar o seu pai daquela maneira. Compreendera que ela não atacara Johnny para o proteger e a Colin do pior daquela vida, mas não tivera realmente consciência do oceano de lágrimas furiosas que não eram choradas — pelo menos onde ele ou o irmão pudessem dar-se conta delas. E ela fizera bem, pensava agora, não chorando nem se enfurecendo na presença deles. Sentia-se agoniado. No fim de contas, Johnny era seu pai... e Andrew sabia que em alguns aspectos se parecia com o seu pai. Johnny jamais alcançaria um ínfimo grão da autocompreensão do seu filho. Andrew estava condenado a viver sempre com um olhar crítico fixo em si mesmo: um olhar benévolo e até humorístico, mas que não obstante não deixava de ser um julgamento.

Sentou-se, a girar o seu copo de vinho entre os dedos, enquanto a mãe chorava. Depois bebeu o vinho, levantou-se e pôs a mão no ombro de Frances.

— Mãe, deixa esta tralha toda. Nós arrumamos tudo de manhã. E vai-te deitar. Sabes que não vale a pena: ele será sempre assim.

E saiu da cozinha. Bateu à porta da avó e Wilhelm abriu e disse, em voz alta:

— Julia tomou um Valium. Está muito transtornada.

Hesitou do lado de fora da porta de Colin e ouviu Sophie cantar: ela estava a cantar para Colin.

Depois espreitou para o quarto de Sylvia. Ela adormecera em cima da cama, vestida, e o jovem colega estava deitado no chão, com a cabeça numa almofada. Não lhe pareceu uma posição agradável, mas ele estava claramente para além dessas minudências.

Entrou no seu quarto e acendeu um charro: usava erva e ouvia jazz tradicional, sobretudo blues, para emergências emocionais. A música clássica era para momentos de boa disposição. Ou recitava para si mesmo todos os poemas que sabia — e eram muitos —, para ter a certeza de que permaneciam ali, intactos. Ou lia Montaigne, mas a este respeito guardava segredo, pois sentia que se tratava de consolo para um velho e não para um jovem.

Wilhelm deixara Julia aconchegada com uma manta na sua grande poltrona e insistindo que não tinha sono. Mas dormitou um pouco e depois acordou com a ansiedade a levar a melhor ao Valium, afastou a manta, irritada, a ouvir o cão a fazer um alarido mesmo por baixo dela. Também ouviu Sophie a cantar, mas pensou que fosse o rádio. Saía luz debaixo da porta de Andrew. Desceu silenciosamente a escada, hesitou em ir ter com ele, mas em vez disso desceu mais um lanço e chegou ao patamar do lado de fora do quarto de Sylvia. Uma faixa de luz indicava que Frances ainda estava acordada. Achou que devia ir ter com Frances e dizer alguma coisa, encontrar as palavras certas, sentar-se com ela, fazer alguma coisa... mas que palavras?

Julia girou de mansinho o puxador da porta de Sylvia e entrou num quarto onde o luar atravessava o corpo da rapariga e chegava junto do jovem deitado no chão. Esquecera-se dele, e agora o seu coração recordou-lhe a sua terrível e insuportável infelicidade. Wilhelm dissera-lhe, havia pouco tempo, que Sylvia casaria e que ela, Julia, não se deveria importar com isso. Com que então, é só isso que ele pensa de mim, protestara para consigo, mas sabia que ele tinha razão. Sylvia casaria, mas não provavelmente com este homem. Caso contrário, não estaria ele deitado na cama, ao lado dela? Achava terrível que qualquer jovem, «um colega», fosse para casa com Sylvia e dormisse no seu quarto. São como cachorrinhos num cesto, pensou, lambem-se e acabam por adormecer. Devia ter importância um homem encontrar-se no quarto de uma jovem. Devia significar alguma coisa. Julia sentou-se cautelosamente na cadeira onde — mas isso parecia ter sido há séculos — se sentara a tentar convencer a pequena Sylvia a comer. Agora podia ver o rosto dela claramente e, à medida que o luar avançava pelo chão, o do jovem. Bem, se não fosse ele, se não fosse aquele jovem tão bem-parecido, seria outro.

Parecia-lhe que nunca gostara de mais ninguém na sua vida a não ser de Sylvia, que a rapariga fora a grande paixão da sua vida — oh, sim, sabia que amava Sylvia porque não lhe fora permitido amar Johnny. Mas isso era um disparate, porque ela sabia — na sua mente — quanto ansiara por Philip durante toda a guerra antiga, e depois quanto o amara. Os feixes de luz na cama e no chão assemelhavam -se à arbitrariedade da memória, ora dando ênfase a isto, ora àquilo. Quando olhava para trás ao longo do caminho da sua vida, períodos de anos que tinham tido um sabor forte e distinto, deles próprios, reduziam-se a algo como uma fórmula: aquilo foram os cinco anos da I Guerra Mundial. Aquela pequena fatia, ali, era a II Guerra Mundial. Mas, imersa nesses cinco anos, leal no seu pensamento e nas suas emoções a um soldado inimigo, eles tinham sido infindáveis. A II Guerra Mundial, agora uma sombra incómoda na sua memória e em que perdera o marido para a fadiga que o abatia e para o facto de ele não lhe poder dizer nada do que fazia, foi uma época terrível e ela pensara muitas vezes que não poderia suportá-la. Deitara-se à noite ao lado de um homem preocupado com a maneira de destruir o país dela, e devia sentir-se grata por ele estar a ser destruído — e sentia, mas às vezes parecia-lhe que as bombas estavam a despedaçar o seu próprio coração. E, no entanto, agora podia dizer a Wilhelm, que fora um refugiado desse regime monstruoso em que ela se recusava a pensar como alemão: «Isso foi durante a guerra... não, a segunda.» Como se falasse de um tema de uma lista que tinha de ser mantida actualizada e certa, de acontecimentos registados um após outro — ou talvez como luar e sombras incidindo sobre um caminho, cada qual com uma validade exacta enquanto passávamos através deles, mas que depois, ao olharmos para trás, eram um risco escuro através de uma floresta riscada por estreitos fulgores de luz. Ich habe gelebt und geliebt, murmurou, o fragmento de Schiller que permanecia na sua mente após sessenta e cinco anos, mas que disse interrogadoramente. Vivi e amei?

O luar chegara aos pés de Julia, o que significava que estava ali sentada há algum tempo. Sylvia não se mexera uma vez sequer. Era como se não respirassem: ser-lhe-ia fácil pensar que estavam ali deitados mortos. Deu consigo a pensar: «Se estivesses morta, Sylvia, não perderias muito: acabarás como eu, uma velha com a vida atrás de mim, fenecendo numa confusão de recordações que doem.» Adormeceu, com o Valium a afundá-la finalmente num sono tão profundo que estava flácida nas mãos de Sylvia, que a sacudia.

Sylvia acordara, com a boca seca, para ir buscar água, e vira um pequeno fantasma ali sentado ao luar, um fantasma que esperava desaparecesse quando acordasse por completo. Mas Julia não desapareceu. Sylvia foi ter com ela, agarrou-a e sacudiu-a enquanto a idosa mulher lamuriava, produzindo um som desolado, de partir o coração.

— Julia, Julia — murmurava Sylvia, pensando no jovem que precisava de dormir. — Acorde, sou eu.

— Oh, Sylvia, não sei o que fazer, não estou em mim.

— Levante-se, minha querida, por favor. Tem de ir para a cama. Julia levantou-se, insegura, e Sylvia, que não o estava menos, pois

encontrava-se apenas meio acordada, levou-a para fora do quarto e pela escada acima. Agora já não saía luz debaixo da porta de Frances nem da de Andrew, ao contrário do que acontecia com a de Colin.

Sylvia deitou-a na cama e cobriu-a. — Acho que estou doente, Sylvia. Sim, devo estar doente.

Este lamento foi direito ao eu profissional de Sylvia, que lhe disse:

— Eu vou olhar por si. Por favor, não esteja tão triste.

Julia adormeceu. Sylvia, a cair de sono, conseguiu endireitar-se e atravessar o quarto apoiando-se nas costas de cadeiras, e desceu finalmente para o seu próprio quarto, onde encontrou o colega sentado.

— Já é de manhã? — perguntou ele.

— Não, não, continua a dormir.

— Graças a Deus por isso.

O colega voltou a deitar-se e ela deixou-se cair na sua cama.

E agora dormiam todos, com excepção de Colin, que estava deitado com os braços à volta da adormecida Sophie e com o cãozinho a dormitar no seu quadril, mas Com o penachinho da cauda a estremecer de vez em quando.

Ele não estava a pensar na bela Sophie adormecida nos seus braços. Como a mãe, horas antes, ameaçava insanemente: «Eu mato-o, juro que o mato.» Mas havia uma questão! Se Johnny se tivesse reconhecido no venenoso debitador de palavras, isso equivaleria a ser-lhe pedido que ascendesse a cumes de imparcial discernimento: só os padrões de excelência literária deveriam alimentar os seus pensamentos: «É um bom romance ou não é? » — talvez as recordações daqueles romances que lera quando fora uma pessoa bem lida, antes de ter sucumbido aos encantos simples do realismo socialista. Como quando se espera que a vítima de uma caricatura selvagem diga: «Oh, muito bom! Que grande talento tem!» Em resumo, estava a ser exigida ao camarada Johnny uma conduta de que a sua família admitira há muito tempo que ele era incapaz. Por outro lado, se não se tivesse reconhecido, então mereceria ser censurado por não ter suspeitado de como pelo menos um dos seus filhos o via.

Pesarosa, pesarosa, embora não soubesse dizer porquê, a não ser por causa de Sylvia, ou de toda a sua vida, Julia lia jornais, largava-os, tentava de novo, e quando Wilhelm a levava ao Cosmo esforçava-se por perceber o que estava a ser dito à sua volta. Da Guerra do Vietname, era disso que falavam. Às vezes, Johnny aparecia com o seu séquito, teatral e enérgico, e podia inclinar-lhe a cabeça ou mesmo saudá-la com o punho cerrado. Era frequente Geoffrey vir com ele, um belo jovem que conhecia tão bem, o Lochinvar do Oeste, como dizia desdenhosamente a Wilhelm. Ou Daniel, com o seu cabelo ruivo como um farol. Ou James, que ia ter com ela e dizia: «Sou o James, lembra-se de mim?» Mas ela não se lembrava de ninguém com sotaque cockney.

— Mas isso hoje é correcto — explicava-lhe Wilhelm. — Falam todos cockney.

— Mas porquê, se é tão feio?

— Para arranjarem emprego. São oportunistas. Se querem arranjar um emprego na televisão ou em filmes, têm de perder a sua voz educada.

A volta deles, fumo de cigarros e, muitas vezes, vozes irritadas.

— Se estão a falar de política, por que é que estão sempre a discutir?

— Ah, minha querida, se nós compreendêssemos isso...

— Recorda-me os velhos tempos, quando eu ia de visita a minha casa, os nazis...

— E os comunistas.

Ela lembrava-se das lutas, da berraria, das pedras arremessadas, dos pés a correr — sim, acordava de noite e ouvia pés a correr, a correr. Depois de alguma coisa atroz, corriam pelas ruas a gritar.

Julia sentava-se na sua cadeira rodeada de jornais, até os seus pensamentos a levarem a levantar-se e rondar pelos seus aposentos, estalando a língua de aborrecimento quando encontrava um ornamento fora do lugar ou um vestido descuidadamente abandonado nas costas de uma cadeira (Em que andava Mrs. Philby a pensar?). Todas as suas preocupações estavam a ficar concentradas na Guerra do Vietname. Era-lhe insuportável. Não bastava aquela guerra antiga, a primeira, tão terrível, e depois a segunda, que mais queriam eles, matar, matar, e agora esta. E os americanos, seriam doidos, para mandarem os seus jovens para a morte, ninguém se importava com os jovens, quando havia uma guerra os jovens eram reunidos em manada e enviados para serem mortos. Como se não servissem para mais nada além disso. Constantemente. Ninguém aprendia nada, era uma mentira dizer que aprendíamos com a história, se tivéssemos aprendido alguma coisa não estariam a cair as bombas no Vietname e os jovens... Julia sonhava com os seus irmãos, pela primeira vez em anos. Tinha pesadelos relacionados com esta guerra. Na televisão, via americanos lutando com a polícia, americanos que não queriam a guerra, e ela também não queria, ela estava do lado dos americanos que se revoltavam em Chicago ou nas universidades, e contudo quando saíra da Alemanha para casar com Philip escolhera a América, estava desse lado. Philip quisera que Andrew fosse estudar nos Estados Unidos, e se ele tivesse ido se calhar agora faria provavelmente parte da América que apontava mangueiras e lançava gás lacrimogéneo contra os americanos que protestavam. (Julia sabia que Andrew era conservador por natureza, ou talvez fosse mais correcto dizer que estava do lado da autoridade.) A nova mulher de Johnny, que aparentemente o abandonara, estava a lutar nas ruas contra a guerra. Julia detestava e temia as lutas de rua, ainda hoje tinha pesadelos acerca do que vira nos anos 30, quando ia de visita, na Alemanha, que estava a ser destruída por bandos que se amotinavam e destruíam e gritavam e corriam pelas ruas à noite. A cabeça, o pensamento e o coração de Julia estavam num turbilhão, agitados por imagens, pensamentos e emoções violentamente contraditórios.

E o seu filho Johnny vinha constantemente nos jornais, a pronunciar-se contra esta guerra, e ela achava que ele tinha razão. No entanto, Johnny nunca tivera razão, disso tinha ela a certeza, mas, e se agora tivesse?

Sem dizer nada a Wilhelm, pôs o chapéu, o que melhor lhe ocultava o rosto, com o seu véu de malha apertada, e escolheu umas luvas que ocultassem todas as manchas — associava a política com sujidade — e foi ouvir Johnny falar num comício contra a Guerra do Vietname.

Foi numa sala que ela considerava comunista. As ruas circundantes estavam apinhadas de jovens. O táxi deixou-a do lado de fora da entrada principal, e quando ela entrou foi alvo dos olhares de jovens vestidos como ciganos ou arruaceiros. Os que a tinham visto chegar de táxi disseram uns aos outros que ela devia ser uma espia da CIA, enquanto outros, ao verem aquela senhora idosa — não havia ali ninguém com mais de cinquenta anos — disseram que devia estar ali por engano. Houve também quem dissesse que, com aquele chapéu, devia ser a senhora da limpeza.

A sala estava a abarrotar. Parecia arfar, expandir-se e oscilar. O cheiro era horrível. Imediatamente à frente de Julia estavam duas cabeças de cabelo louro engordurado e sujo — que raparigas podiam ter tão pouco respeito próprio? Depois viu que afinal eram homens. E fediam. O barulho era tanto e tão alto que ela não percebeu logo que os discursos tinham começado. Lá em cima estavam Johnny e Geoffrey, cujo rosto limpo e sereno ela conhecia tão bem, mas que usava cabelo à viking, tinha as pernas abertas e esmurrava o ar com a mão direita, como se estivesse a bater em alguma coisa, e rosnava palavras de concordância com o que Johnny dizia, e que eram variações daquilo que ela ouvira tantas vezes: imperialismo americano... rugidos de aprovação; o complexo industrial-militar... grunhidos e vaias; lacaios, chacais, exploradores capitalistas, vendidos, fascistas. Os rugidos de aprovação eram tão altos que custava a ouvir. E lá estava James, com os seus ares de homem público, corpulento e afável, que se tornara um cockney; e ao lado de Johnny estava um homem negro que ela tinha a certeza de conhecer. Encontrava-se muita gente lá em cima, no estrado. Todos os rostos intensos, exaltados, cheios de presunção, impostura e triunfo. Que bem conhecia tudo aquilo, e quanto a assustava. Pavoneavam-se de um lado para o outro lá em cima, sob luzes fortes, debitando frases que ela podia prever, cada uma delas, antes de serem proferidas. E o público era uma unidade, era um todo, era uma turba, podia matar ou fazer distúrbios, e ardia em... ódio, sim, era disso que se tratava, de ódio. No entanto, abstraindo-se dos estúpidos lugares-comuns, ela estava de acordo com eles, estava do seu lado — como podia estar, se eles eram reles, se eram assustadores? Mas estava, porque a violência da guerra era tudo quanto ela mais odiava. Sentia dificuldade em manter-se direita — estava encostada a uma parede e cercada por brutamontes que poderiam muito bem estar munidos de cacetes. Lançou um longo e derradeiro olhar ao estrado, viu que o filho a reconhecera e que a sua expressão era ao mesmo tempo triunfante e hostil. Se não se fosse embora, ele seria muito capaz de a transformar no alvo dos seus sarcasmos. Abriu caminho para a porta, através da multidão. Felizmente, não se encontrava muito longe dela. Um piparote pôs-lhe o chapéu à banda, juraria que propositadamente. Tinha razão. Os murmúrios de que era uma espia da CIA seguiam-na. Tentou manter o chapéu na cabeça, e à porta viu uma mulher nova e forte, com um rosto grande avermelhado pela excitação e pelo álcool. Usava um distintivo que a identificava como organizadora. Ao reconhecer Julia, disse alto, para os seus colegas ouvirem:

— Olhem, quem diria? é a mãe do Johnny Lennox.

— Deixem-me passar — disse Julia, que começava a entrar em pânico. — Deixem-me sair.

— O quê, não pode aguentar? Não pode ouvir a verdade? — troçou um homem novo, cujo cheiro estava literalmente a agoniá-la. Tapou a boca com a mão.

— Julia, o Johnny sabe que está aqui? — perguntou Rose. — Que veio cá fazer? Mantê-lo debaixo de olho? — Olhou em redor, sorrindo, à espera de aprovação.

Julia transpusera a porta, mas a sala exterior estava cheia de gente que não conseguira entrar.

— Abram caminho para a mãe do Johnny Lennox — gritou Rose, e a multidão obedeceu. Ali fora, para onde os discursos estavam a ser retransmitidos por altifalantes, a atmosfera era menos tumultuosa, dava menos a sensação de violência iminente. Gente jovem fitava Julia, o seu chapéu às três pancadas e o seu rosto angustiado. Chegou à porta que dava para a rua e, sentindo-se desfalecer, agarrou-se à ombreira. —Julia, quer um táxi? — perguntou Rose.

— Não me lembro de a ter autorizado a tratar-me por Julia — respondeu a idosa senhora.

— Oh, mil desculpas, Mrs. Lennox — respondeu Rose, olhando à sua volta à espera de aprovação, e depois acrescentou, a rir: — Que merda.

— Ancien regime, suponho — disse uma voz americana.

Julia chegara à beira do passeio. Sabia que ia desmaiar. Rose permaneceu nos degraus atrás dela e disse em voz alta:

— É a mãe do Johnny Lennox. Está bêbada. Aproximou-se um táxi e Julia fez sinal, mas ele não ia parar para

receber aquela velha de ar pouco respeitável. Rose correu atrás do carro, a gritar, e ele parou.

— Obrigada — agradeceu Julia, entrando. Continuava a tapar a boca com o lenço.

— Oh, por quem é, não tem de quê — respondeu Rose, delicadamente, e olhou à volta, à espera de gargalhadas, que não faltaram. Enquanto era levada no táxi, Julia ouviu, através das janelas, explosões de aplausos e troça, gritos de «Abaixo o imperialismo americano. Abaixo o...».

Rose aproveitou a feliz oportunidade para, quando Johnny vinha a sair, se atravessar no caminho do camarada Johnny, a estrela, e dizer-lhe, como uma igual: «A tua mãe esteve aqui.»

«Eu vi-a», respondeu ele, sem a olhar: ignorava-a sempre. — «Estava bêbada», atreveu-se ela a dizer, mas ele abriu caminho sem dizer nada.

Sylvia não esquecera a sua promessa. Marcara uma consulta para Julia, com um certo Dr. Lehman. Wilhelm conhecia-o e sabia que era um especialista de problemas de idosos.

— Dos nossos problemas, querida Julia.

— Geriatria — disse ela.

— Que importância tem uma palavra? Podes marcar uma consulta também para mim.

Julia sentou-se defronte do Dr. Lehman, que achou muito simpático, apesar de muito jovem — na realidade, era de meia-idade. Alemão como ela? Com aquele nome? Judeu, talvez? Refugiado como ela? Era extraordinária a frequência com que dava consigo a pensar coisas deste género.

Ele tinha uma voz e um sotaque impecavelmente ingleses: é claro que os médicos não têm de falar cockney.

Julia sabia que ele deduzira muitos factos a seu respeito ao vê-la caminhar para a cadeira, que devia ter ouvido ainda mais de Sylvia e que, em virtude de ter analisado a sua urina, ter medido a sua pressão arterial e observado o seu coração, sabia mais a seu respeito do que ela própria.

Ele disse-lhe, a sorrir:

— Mrs. Lennox, foi-me enviada devido a problemas relacionados com a idade avançada.

— Assim parece — respondeu, consciente de que o ressentimento não escapara ao médico, que sorriu um pouco.

— Tem setenta e cinco anos.

— É verdade.

— Isso não é muito, hoje em dia. Ela rendeu-se, ao responder:

— Senhor doutor, às vezes tenho a sensação de ter cem anos.

— Permite-se pensar que os tem.

Não fora isto que esperara e, tranquilizada, sorriu àquele homem que não ia oprimi-la com a sua idade.

— Fisicamente, está tudo bem consigo. Parabéns. Quem me dera estar em tão boa forma. Mas, como toda a gente sabe, os médicos não seguem os seus próprios conselhos.

Ela permitiu-se rir e acenar com a cabeça, como se quisesse dizer: muito bem, agora vamos ao que interessa.

— Vejo casos assim com muita frequência, Mrs. Lennox. Pessoas que foram convencidas a sentir-se velhas quando ainda é cedo demais para isso.

Wilhelm? — perguntou-se Julia. — Terá ele...

— Ou que se convenceram a si mesmas a sentirem-se velhas.

— Eu fiz isso? Bem... talvez tenha feito.

— Vou dizer uma coisa que pode parecer chocante.

— Não, senhor doutor, eu não me choco com facilidade.

— Óptimo. Pode decidir tornar-se velha. Está numa encruzilhada, Mrs. Lennox. Pode decidir envelhecer e depois morre. Mas pode decidir não envelhecer. Por enquanto.

Ela ficou a pensar, e depois acenou com a cabeça.

— Creio que sofreu um choque de qualquer espécie. Uma morte? Mas não importa o que tenha sido. Parece-me evidenciar sinais de sofrimento por uma perda.

— É um jovem muito inteligente.

— Obrigado, mas não sou jovem. Tenho cinquenta e cinco anos.

— Podia ser meu filho.

— Pois podia. Mrs. Lennox, quero que se levante dessa cadeira e se afaste da... da situação em que se encontra agora. Pode resolver fazê-lo. Não é uma mulher velha. Não precisa de um médico. Vou receitar-lhe vitaminas e minerais.

— Vitaminas!

— Por que não? Eu tomo-as. E volte daqui a cinco anos para discutirmos se é altura para ser velha.

Obscuras nuvens douradas jorravam brilhantes que se espalhavam em cima e à roda do táxi e explodiam em cristais mais pequenos, ou escorriam pelas janelas, e as suas sombras faziam pontos e manchas que imitavam o desenho do pequeno véu sarapintado de Julia, preso no alto da cabeça por um sóbrio alfinete de jade. O céu de Abril, com sol e aguaceiros, era um logro, pois o facto é que estavam em Setembro. Julia estava vestida como sempre. Wilhelm dissera-lhe:

«Minha querida, liebling, queridíssima Julia, vou comprar-te um vestido novo.» Protestando e resmungando, mas contente, ela foi levada às melhores lojas, onde ele solicitou a ajuda de jovens mulheres de ar superior, mas que depois se mostraram encantadas, e Julia acabou com um conjunto de veludo cor de vinho clarete, que em nada se distinguia dos que ela usava há décadas. Rígida dentro dele, animava-a a ideia dos minúsculos pontos de seda da gola e dos punhos e o forro perfeito de seda rosa-escuro, que sentia como uma defesa contra os bárbaros. No lugar a seu lado, Frances estava inclinada, a mudar as meias e os sapatos práticos por outros de salto alto e meias de seda transparentes. Tirando isso, a sua roupa de trabalho — Julia fora buscá-la ao jornal — fora considerada adequada. Andrew tinha dito que haveria uma pequena celebração, mas que não deviam vestir-se a rigor. A que se referiria ele? Celebração de quê?

Faziam o inevitavelmente lento progresso ao encontro de Andrew, ao lado uma da outra, num silêncio ao mesmo tempo amistoso e cauteloso. Frances ia a pensar que durante todos os anos em que vivera em casa de Julia tinham sido tão poucas as ocasiões em que tinham viajado juntas num táxi que as sabia de cor. E Julia pensava que não havia qualquer intimidade entre as duas, mas que mesmo assim a jovem mulher — vamos, Julia, ela não é isso, com certeza! — conseguia descalçar as meias na sua presença, expondo as sólidas pernas brancas, sem um momento de embaraço. Era muito provável que ninguém tivesse visto as pernas nuas de Julia, excepto o marido e médicos, desde que ela se tornara adulta. E Wilhelm? Ninguém sabia. Tinham chegado a acordo de que a celebração se devia provavelmente ao facto de Andrew ter sido convidado para trabalhar numa das grandes organizações internacionais que inalam e exalam dinheiro e gerem os negócios do mundo. Quando ele obtivera o seu segundo diploma em Direito — muito bem classificado —, saíra de casa da avó pela segunda vez e fora viver num andar partilhado com outros jovens, mas não esperava ficar lá muito tempo.

Quando chegaram a Gordon Square, a luz desaparecera. Grandes pingos de chuva desciam do céu escuro e caíam invisivelmente à volta delas. Era uma boa casa, ninguém precisava de se envergonhar dela: Julia perguntara-se se o motivo por que Andrew não as convidara antes se deveria a ter vergonha do lugar onde morava e, nesse caso, por que saíra, sequer, de casa? Não lhe passara pela cabeça que ele as achasse, a ela e a Frances, um peso esmagador de autoridade ou, pelo menos, de competência. «O quê, eu... estás a brincar!», dizem os pais quando esta situação se repete ao longo das gerações. «Eu?

Uma ameaça? Esta coisa ínfima, tão facilmente esmagável, que eu sou, sempre agarrado às arestas da vida.» Andrew tivera de sair de casa para sobreviver, mas as coisas tinham corrido melhor durante o seu regresso, para obter um segundo diploma, porque descobrira que tinha deixado de temer a rigorosa e desaprovadora avó ou os pensamentos que a vida insatisfatória da mãe despertavam nele.

Não havia elevador, mas Julia subiu ligeiramente a escada íngreme, cuja alcatifa fora em tempos de boa qualidade, e o apartamento, quando lhes foi aberto por Andrew, prosseguiu o mesmo tema, pois era grande e estava cheio de móveis variados, alguns dos quais tinham sido imponentes, embora estivessem no fim dos seus dias. Há décadas que se tratava de um andar para estudantes, ou para pessoas jovens que iniciavam a sua vida de trabalho, e o passo seguinte para a maioria das coisas ali existentes seria o lixo. Andrew não as levou à grande sala comum, mas a outra mais pequena, num dos extremos, separada da anterior por uma parede de vidro. Na sala grande estavam dois homens novos e uma rapariga a ler, ou a ver televisão, mas ali encontrava-se uma mesa muito bem posta para quatro pessoas — toalha branca, vidro, flores, prata e guardanapos como devia ser.

— Vamos ter de beber os nossos aperitivos à mesa — explicou Andrew —, caso contrário não ouviremos o que dissermos.

Por isso sentaram-se, os três, enquanto o lugar vazio esperava pelo seu ocupante.

Andrew, pensou a mãe, parecia cansado. Nos adolescentes, as olheiras escuras, a palidez, a gordura, borbulhas ou um certo autodomínio trémulo, à beira do colapso, são tudo sinais de transtorno emocional, mas quando os adultos têm o aspecto de Andrew, não podemos deixar de pensar: A vida agora é tão difícil que se torna cruel... Andrew sorria, era todo ele encanto, como sempre, estava suficientemente bem vestido para uma ocasião importante, mas respirava ansiedade. A mãe estava decidida a não perguntar nada, mas Julia não se conteve:

— Estás a manter-nos na expectativa. Quais são as notícias? Andrew permitiu-se uma pequena gargalhada — um som delicioso — e disse:

— Preparem-se para uma surpresa.

Neste momento veio da cozinha, na porta ao lado, uma mulher nova com uma bandeja de bebidas. Sorria e parecia à vontade, e disse a Andrew:

— Andy, estamos um pouco desfalcados no que respeita a álcool. Isto é o que resta do xerez decente.

— Esta é a Rosemary — apresentou Andrew. — Esta noite cozinha para nós.

— Cozinho para me manter — explicou Rosemary.

— Está a estudar Direito na Universidade de Londres. Ela fez um vénia brincalhona e disse:

— Avisem-me, quando quiserem que sirva a sopa.

— O assunto não tem que ver com o meu emprego — explicou Andrew. — Estou à espera da confirmação. — Hesitou, indeciso: estava prestes a tornar-se realidade uma coisa que ainda era um fantasma etéreo ou sombrio: dizê-lo à família, sim, ia torná-lo real. — Trata-se da Sophie — disse por fim. — Da Sophie e de mim... Estamos...

As mulheres estavam atordoadas. Sophie e Andrew! Durante anos, Frances perguntara-se se Colin e Sophie... mas eles davam passeios sozinhos, ele comparecia sempre às noites de estreia dela e ela vinha chorar no seu ombro quando Roland estava a ser de novo impossível. Companheiros. Irmãos. Era o que diziam.

Os mesmos pensamentos práticos percorriam a mente das duas mulheres. Andrew ia trabalhar para o estrangeiro, provavelmente para Nova Iorque, e Sophie era uma actriz cada vez mais considerada em Londres. Planearia ela abandonar a sua carreira pela dele? As mulheres costumavam fazer isso, faziam-no até muito frequentemente, e não deveriam. Pensavam ambas, também, que Sophie era inadequada como consorte de um homem público, visto ser tão emotiva e dramática.

— Bem, obrigado — disse Andrew, por fim.

— Desculpa — pediu Frances. — É a surpresa, mais nada. Julia pensava nos anos que passara afastada do seu amor, Philip,

esperando por ele. E valera tudo isso a pena? O pequeno pensamento sedicioso surgia cada vez mais frequentemente, claro e franco, e não lhe era recusada a admissão. O facto era — e Julia estava agora preparada para pensar isso — que Philip devia ter casado com aquela rapariga inglesa, tão certa para ele, e ela... mas o seu pensamento entrava em pânico quando imaginava o que ela poderia ter feito nesse caso, com a Alemanha em ruínas, uma tragédia tão grande, e depois a política, e depois e II Guerra Mundial... Não. A sua conclusão era, tinha sido havia já algum tempo, que ela fizera bem em ter casado com Philip, mas que ele não devia ter casado com ela.

— Deves compreender que é um choque — disse, por fim. — Ela é tão chegada ao Colin.

— Eu sei. Mas eles são como irmão e irmã. Eles nunca... — Neste momento chamou: — Rosie, traz o champanhe. — Sem olhar para a mãe nem para a avó, acrescentou: — Acho melhor começarmos... ela está atrasada.

— Talvez alguma coisa a esteja a demorar... o teatro... qualquer coisa — disse Frances, tentando encontrar palavras para apaziguar a angústia — porque era disso que se tratava — que contraía o rosto do filho.

— Não. É o Roland. Não lhe liga importância quando a tem, mas é ciumento. Não quer que ela o deixe.

— Ela ainda não o deixou?

— Não, ainda não.

Ao ouvir esta resposta, Frances sentiu-se melhor. Sabia que Sophie não deixaria facilmente o feiticeiro que Roland era. «Ele é a minha condenação, Colin», dissera, a chorar. «É a minha sina.» No fim de contas, tentara deixá-lo várias vezes. E se ela viesse para Andrew... bem, bastava olhar para ele para o ver como um peso-leve emocional, reconfortante, talvez, depois do emproado Roland, mas não um contrabalanço. Cenas, gritos, atirar de louça — um vez, uma jarra pesada, que lhe fracturara o dedo mindinho —, lágrimas, súplicas de perdão: que podia o civilizado e irónico Andrew oferecer a Sophie, que com certeza sentiria a falta de tudo isso... Mas talvez eu esteja enganada, advertiu-se Frances. Tenho uma tendência excessiva para ver o fim de uma história antes de ela ter sequer começado devidamente.

Julia falou:

— Andrew, não será uma boa ideia pedir-lhe que abandone o seu trabalho.

— Não tenho intenção alguma de o fazer, avó.

— E estarás tanto tempo ausente.

— Havemos de arranjar uma maneira — disse Andrew, e levantou-se para abrir a porta a Rosemary, que trazia a sopa.

Por consentimento mútuo, o champanhe não foi aberto. Comeram a sopa. Demoraram a pedir o segundo prato, mas Rosemary disse que ficaria sem graça e, por isso, comeram-no, enquanto Andrew estava atento ao toque da campainha da porta ou do telefone. Por fim o telefone tocou, de facto, e Andrew foi a outra parte da casa para falar com Sophie.

As duas mulheres continuaram sentadas, unidas por maus presságios.

— Talvez Sophie seja uma jovem que precisa de infelicidade — disse, por fim, Julia.

— Mas eu espero que o Andrew não precise.

— E há a questão dos filhos...

— Netos, Julia. — Frances falou de ânimo leve e não reparou que Julia estava a sorrir porque lhe cheirava a cabelo de bebé acabado de lavar e junto dela parecia estar o fantasma de... quem?... uma jovem criaturinha, talvez uma menina.

— Sim — disse Julia —, netos. Acho Andrew uma pessoa que gostaria de ter filhos.

Andrew regressou e ouviu estas palavras.

— Gostaria, e muito. Mas a Sophie manda desculpas. Foi... retida. — Parecia à beira das lágrimas.

— Bem, ele fechou-a à chave? — perguntou a sua mãe.

— Ele exerce... pressão.

Tudo aquilo era horrível, não poderia ser pior, e eles sabiam-no. Andrew disse com voz entrecortada, como numa despedida:

— Não consigo imaginar-me a continuar sem a Sophie. Ela tem sido tão... — E agora estava a ir-se realmente abaixo. Saiu da sala a correr.

— Não acontecerá — disse Frances.

— Espero que não.

— Acho que devíamos ir para casa.

— Esperemos até ele voltar.

Passou uma boa meia hora antes de ele voltar, e os jovens que se encontravam na sala do outro lado do vidro convidaram as visitas que se encontravam sozinhas a juntar-se-lhes. Julia e Frances aceitaram com prazer. Sentiam-se prestes a ir-se elas próprias a baixo.

Entretanto, estavam lá meia dúzia de homens jovens e duas raparigas, uma das quais era Rosemary. Ela sabia que acontecera uma tragédia — grande? pequena? — e travou conversa, usando de tacto. Era uma jovem encantadora, pensou Julia: bonita, inteligente e, sem dúvida, uma boa cozinheira. Estudava Direito, como Andrew. Estavam, com certeza, certos um para o outro?

Os jovens, homens e mulheres, falavam do que tinham feito durante as longas férias de Verão: ainda frequentavam todos a universidade. Dir-se-ia que, entre todos, tinham visitado a maioria dos países do mundo. Falavam do que se passava na Nicarágua, em Espanha, no México, na Alemanha, na Finlândia e no Quénia. Tinham-se divertido todos muito, mas também tinham ido em busca de informação, eram viajantes sérios. Frances pensava no bem que contrastava com o que se passava em casa de Julia havia dez anos ou mais. Estas pessoas pareciam muito mais felizes — seria esta a palavra adequada?

Recordou um passado de tensão, dificuldade, criaturas perturbadas. Estas, não eram assim. Bem, é claro que eram mais velhas... mas mesmo assim. Julia diria, evidentemente, que nenhumas destas eram filhos da guerra: as sombras da guerra encontravam-se muito para trás delas.

Esta meia hora, que poderia ter sido agradável, foi perturbada pela preocupação com Andrew, que chegou pouco depois para dizer que tinha chamado um táxi para elas. E que lhe perdoassem. Pelo modo como os outros o olharam, surpreendidos, as mulheres compreenderam que não estavam habituados a ver o afável Andrew perturbado. Na rua, beijou-as e deu um abraço a Julia e outro a Frances. Segurou a porta do táxi, para entrarem, mas não era nelas que estava a pensar. Logo a seguir correu pela escada acima.

— Aqueles jovens saberão quanto são afortunados? — perguntou Julia.

— Têm com certeza muito mais sorte do que qualquer de nós.

— Pobre Frances, não teve muita oportunidade de correr pelo mundo.

— Nesse caso, pobre Julia, também.

Com um sentimento de afabilidade mútua, terminaram a viagem em silêncio.

— Não vai acontecer, Frances — foram as últimas palavras de Julia.

— Não, eu sei que não.

— Portanto, não precisamos de passar a noite inteira acordadas, a preocupar-nos com isso.

Sentada sozinha à mesa da cozinha, que hoje em dia tinha metade do tamanho, Frances bebia chá e esperava que Colin pudesse aparecer. Sylvia quase nunca aparecia. Tendo deixado de ser uma estagiária e passado a ser uma médica de pleno direito, já não adormecia de repente mal se sentava, mas trabalhava muito e o quarto do patamar, defronte do de Frances, quase nunca a via. Podia aparecer para tomar banho e mudar de roupa, ou às vezes para passar a noite, podia ou não correr pela escada acima para abraçar Julia, mas mais nada. Por isso, de todos «os miúdos», era Colin quem Frances via, nos tempos que corriam.

Não sabia nada a respeito da sua vida fora daquela casa. Um dia, um indivíduo de aspecto esquisito, acompanhado por um grande rafeiro preto, tocou à campainha e perguntou por Colin, que desceu a correr para combinar um encontro com ele no parque. Frances começou imediatamente a preocupar-se: seria Colin homossexual? Improvável, sem dúvida... mas já estava a pensar nas atitudes apropriadamente correctas a adoptar, no caso de ser, quando apareceu uma rapariga de ar lânguido, e depois outra, às quais teve de dizer que ele tinha saído. Mas se ele não está aqui, então por que não está comigo — percebeu Frances que elas pensaram porque, no caso delas, seria o que ela pensaria. Estes incidentes eram sugestões da vida de Colin. Ele percorria o Parque a todas as horas com o Fera, conversava com pessoas sentadas em bancos, travava amizade com outros donos de cães e às vezes ia até um bar. Julia, que lhe dissera: «Colin, não é saudável para um homem jovem não ter vida sexual», recebera a resposta irónica: »Mas, avó, eu levo uma vida secreta negra e perigosa, cheia de loucos encontros românticos; por isso, não se preocupe comigo.»

Nesta noite chegou, como sempre com o cãozinho, viu Frances e disse:

— Vou fazer uma chávena de chá para mim. O cão saltou para cima da mesa.

— Tira-me esse pequeno estorvo de cima da mesa — disse Frances.

— Oh, Fera, ouviste? — Pegou no cão, levou-o para uma cadeira e disse-lhe que ficasse lá, e ele ficou, a abanar a cauda e a observá-los com os inquiridores olhos pretos.

— Sei que queres falar a respeito do Andrew — disse Colin, sentando-se com o seu chá.

— É claro. Seria uma tragédia.

— Não podemos ter tragédias nesta família.

O seu sorriso informou a mãe de que estava com disposição para o combate. Ela preparou-se, pensando que poderia dizer o que quisesse a Andrew, mas que com Colin havia sempre um momento de apreensão, enquanto ela tentava perceber com que disposição ele se encontrava. Esteve quase a dizer-lhe: «Esquece... fica para outra ocasião.» Mas ele continuou:

— A Julia também tem andado a falar-me nisso. O que esperam que eu faça? Que diga, Não sejas idiota, Andrew, não sejas precipitada, Sophie? A questão é que ela precisa do Andrew para se livrar do Roland.

Calou-se à espera, sorrindo. Tornara-se agora um homem corpulento, com cabelo preto encaracolado e olhos com aros escuros que lhe davam um ar estudioso. Estava sempre pronto para jogar ao ataque, entre outras coisas porque, em parte, ainda dependia financeiramente de Julia. Esta dissera a Frances: «É melhor ser eu a dar-lhe uma mesada do que a Frances — é psicologicamente melhor.» Tinha razão, mas era na mãe que ele se desforrava. Frances esperou, também. O combate estava prestes a começar.

— Se queres uma bola de cristal, deves consultar a querida Phyllida, lá de baixo, mas usando o meu vasto conhecimento da natureza humana — o Suplemento Literário do Times diz que o tenho —, posso dizer que ela ficará com o Andrew apenas o tempo suficiente para deixar Roland acalmar e depois deixa o Andrew por outro qualquer.

— Pobre Andrew.

— Pobre Sophie. Bem, ela é masoquista. Devias compreender isso.

— Queres dizer que eu o sou?

— Tens um certo talento para a resignação, não achas?

— Agora não. Há muito tempo que não.

Colin hesitou. Aquela cena podia ter terminado ali, mas ele levantou-se, pôs outro saquinho de chá na sua chávena, deitou-lhe água que não estava a ferver, deu-se conta do erro, tirou o saquinho e deitou-o no lava-louça, praguejou, apanhou-o para o deitar no caixote do lixo, deixou ferver a água, pegou noutro saquinho e deitou-lhe água a ferver em cima — tudo isto numa pressa desastrada que demonstrava a Frances que não estava a gostar daquele encontro. Voltou, pôs a chávena na mesa. Levantou-se, foi fazer uma festa rápida ao cãozinho e sentou-se.

— Não se trata de nada pessoal — declarou. — Mas tenho andado a pensar no assunto. É a tua geração. São todos vocês.

— Ah — disse Frances, aliviada por terem escolhido o terreno familiar dos princípios abstractos.

— Salvar o mundo. O paraíso em cada nova agenda.

— Estás a confundir-me com o teu pai — respondeu ela, e depois decidiu passar pessoalmente ao ataque. — Estou farta disso. Implicam-me constantemente nos crimes do Johnny. — Meditou na palavra crimes. — Sim, crimes. Nesta altura, já se pode chamar-lhes isso.

— Quando foi que não pudemos chamar-lhes isso? E sabe que mais? Li, de facto, no The Times que ele admitiu: Sim, foram cometidos erros.

— Pois sim. Mas eu não cometi os crimes, nem os desculpei.

— Não, mas é uma salvadora do mundo, do mesmo modo. Exactamente como ele. Todos vocês. Quanta arrogância. Sabes isso? A vossa deve ser a geração mais arrogante e presunçosa que jamais existiu. — Continuava a sorrir: estava a gostar deste ataque, mas também a sentir-se culpado. — O Johnny sempre a fazer discursos e tu a encheres a casa de vagabundos e tresmalhados.

Ah, agora tinha chegado ao âmago da questão.

— Peço desculpa, mas não vejo o que tem isso a ver com o assunto. Não me lembro de ele ter alguma vez ajudado alguém.

— Ajudado? É isso que lhe chamas? Bem, a casa dele está sempre cheia de americanos fugidos ao recrutamento — não que eu tenha alguma coisa contra isso — e camaradas de todos os sítios.

— Não é a mesma coisa.

— Alguma vez te ocorreu perguntar a ti mesma o que te teria acontecido se não tivesses recolhido todo o mundo e mais alguém?

— Um deles foi a tua Sophie.

— Ela nunca se mudou realmente para cá.

— Ela morava praticamente aqui. E o Franklin? Esteve aqui mais de um ano. Era teu amigo.

— E aquele maldito Geoffrey. Durante anos e anos tive de o aturar na escola, de noite e de dia e depois as férias inteiras aqui.

— Mas eu nunca imaginei que antipatizasses tanto com ele. Por que não o disseste? Por que é que os filhos nunca dizem que estão infelizes por causa de alguma coisa?

— Aí tens: não tinhas sequer o discernimento suficiente para perceber isso.

— Oh, Colin... Não me venhas dizer que não devia ter deixado a Sylvia ficar aqui.

— Eu nunca diria isso.

— Podes não dizer agora, mas costumavas dizer, com toda a certeza. Transformavas a minha vida num inferno com as tuas queixas. De qualquer maneira, estou farta disto. Foi há muito tempo.

— Os resultados não foram há muito tempo. Sabias que a cabra da Rose anda a dizer por aí que a Julia é uma borrachona e tu uma ninfomaníaca?

Frances riu-se. Foi um riso colérico, mas genuíno. Colin detestava aquela gargalhada: a maneira como a olhava só exprimia acusação angustiada.

— Colin, se soubesses a vida casta que levava... — Mas, invocando o espírito desses tempos, acrescentou — E de qualquer modo, se eu tivesse um novo homem cada fim-de-semana, estaria no meu direito, por que não? Tu não terias o direito de dizer uma maldita palavra.

O absurdo daquilo tornou-se de imediato evidente. Colin empalideceu e ficou calado.

— Colin, pelo amor de Deus, sabes perfeitamente... O cão interveio: béu-béu, béu-béu.

Frances desatou a rir. Colin sorriu, amargamente. A verdade é que o peso da principal acusação dele continuava ali entre eles, uma coisa envenenada.

— Onde foram buscar toda essa confiança? O pai a salvar o mundo, alguns milhões de mortos aqui, alguns milhões de mortos ali, e a mãe: «Entrem e sintam-se em casa, eu dou uns beijinhos nas feridas e elas melhoram.» — Parecia espancado, lançado por terra por anos da sua miserável infância, e lembrava mesmo um rapazinho, com os olhos marejados, os lábios a tremer. E o Fera saiu da sua cadeira, foi ter com o dono, saltou-lhe para o joelho e começou a lamber-lhe a cara.

Colin colocou a cara — na medida em que lá cabia — nas costas do cãozinho, para a esconder. Depois levantou-se e perguntou:

— Onde foram vocês todos buscar essa força? Quem diabo são vocês: salvadores do mundo, todos, e fazedores de desertos... Dás-te conta disso? Estamos todos lixados. Sabias que a Sophie sonha com câmaras de gás e ninguém da sua família esteve sequer perto delas? — E levantou-se, a afagar o cão.

— Espera um momento, Colin...

— Já discutimos o artigo principal da agenda: Sophie. Ela é infeliz. E continuará a ser infeliz. E fará o Andrew infeliz. Depois conhecerá outro qualquer e continuará a ser infeliz.

Saiu da cozinha a correr e subiu a escada com o cãozinho a ladrar nos seus braços o seu alto e absurdo béu-béu.

Em casa de Julia passava-se algo de que ninguém da família estava ao corrente. Wilhelm e Julia queriam casar ou, pelo menos, que Wilhelm se mudasse para lá. Ele queixava-se, bem-humoradamente, ao princípio, de que estava a ser obrigado a viver como um adolescente, com pequenos encontros com o seu amor no Cosmo ou visitas a restaurantes; podia passar todo o dia e metade da noite com Julia, mas depois tinha de ir para casa. Julia fintava a situação com ditos brincalhões de que pelo menos não estavam ansiosos como adolescentes por uma cama. Ao que ele respondia que uma cama servia para mais coisas do que para sexo. Parecia recordar-se de afagos e conversas no escuro, acerca do que ia pelo mundo. Julia tinha dúvidas quanto a partilhar um leito depois de tantos anos de viuvez, mas pouco a pouco, e cada vez mais, ia vendo o ponto de vista dele. Sentia-se sempre mal, confortavelmente instalada no seu quarto, quando ele tinha de ir para casa fizesse o tempo que fizesse. A casa dele era um andar muito grande onde outrora a sua mulher, que morrera há muito tempo, e dois filhos, agora na América, tinham vivido. Ele quase nunca lá estava. Não era um homem pobre, mas não lhe parecia sensato manter aquele andar com o seu porteiro e o pequeno jardim, enquanto havia aquela grande casa de Julia. Conversaram, argumentaram e depois brigaram a respeito de como podiam arranjar as coisas.

Wilhelm ir viver com Julia nas quatro pequenas divisões que chegavam para ela, estava fora de questão. E o que faria ele com os seus livros? Tinha milhares deles, alguns parte do seu stock como livreiro. Colin ocupara o piso por baixo de Julia e colonizara o quarto de Andrew. Não podia pedir-se-lhe que se mudasse — por que haveria de se mudar? De todas as pessoas daquela casa, exceptuando a própria Julia, era o que precisava mais do seu espaço, o seu pequeno lugar seguro no mundo. Por baixo de Colin ficava Frances, com duas boas divisões e uma mais pequena. E nesse piso ficava o quarto de Sylvia, mesmo que ela só lá ficasse uma vez por mês. Era o seu lar e deveria continuar a ser.

Mas por que não pedir a Frances que se mudasse? — quis saber Wilhelm. Hoje em dia, ela ganhava bem, não ganhava? Mas Julia recusava. Via Frances como uma mulher usada pela família Lennox para fazer o trabalho de criar dois filhos, e agora: rua. Julia nunca esquecera como Johnny exigira que ela se fosse embora, para uma pequena casa qualquer, quando Philip morrera.

Por baixo de Frances ficava a grande sala que se prolongava da frente às traseiras da casa. Poderia acolher mais prateleiras para os livros de Wilhelm? Mas ele sabia que Julia não queria aquela sala sacrificada. Restava Phyllida. Ela agora podia muito bem arranjar casa própria. Tinha o dinheiro que Sylvia lhe dera e ganhava bem como médio e cartomante e, cada vez mais, como terapeuta. Quando a família soube que Phyllida era agora terapeuta, os gracejos, sobretudo do género de «mas a ela não pode curar-se», não paravam. Mas a verdade é que estava a atrair pacientes. Ninguém da casa se oporia à ideia de se ver livre de Phyllida e dos seus persistentes clientes. Ou melhor, uma pessoa opor-se-ia: Sylvia, cuja atitude para com a mãe era agora maternal. Preocupava-se com ela. E de que serviria Phyllida mudar-se? Só seria útil se Frances se mudasse lá para baixo, ou então Colin. E por que o fariam eles? E havia algo mais, uma coisa muito forte de que Wilhelm tinha apenas uma vaga ideia: o sonho de Julia de que quando Sylvia casasse ou arranjasse um companheiro — uma frase idiota, na sua opinião — ela se mudasse para a casa. Para onde? Phyllida podia deixar a cave e depois...

Wilhelm começou a dizer que, finalmente, compreendera: Julia não o queria, de facto, ali. «Sempre te amei mais do que tu a mim.»

Julia nunca pensara naquele amor em termos de o pesar e medir. Era, simplesmente, aquilo com que contara. Wilhelm era o seu amparo, o seu arrimo, e agora que estava a envelhecer (sentia que estava, apesar das palavras do Dr. Lehman) sabia que não poderia arranjar-se sem ele. Isso significava que não o amava? Bem, certamente que não, comparado com Philip. Este rumo de pensamento era muito desconfortável; não queria continuar a segui-lo nem ouvir as censuras de Wilhelm. Teria gostado de que ele se mudasse para lá se as coisas não fossem tão difíceis, que mais não fosse para tranquilizar a sua consciência acerca do grande e sub-usado casarão dele. Estava até preparada para encarar a possibilidade de abracinhos e conversas na hora de dormir no seu outrora leito conjugal. Mas só partilhara a sua cama com um homem em toda a sua longa vida e o que lhe estava a ser pedido era demasiado — não era? As censuras de Wilhelm tornaram-se acusações, Julia chorou e ele ficou com remorsos.

Frances planeava sair de casa de Julia. Teria finalmente a sua própria casa. Agora que, finalmente, não havia despesas escolares ou universitárias, estava, de facto, a economizar dinheiro. Uma casa sua, não de Johnny nem de Julia. E onde teria lugar para todo o seu material de investigação e para os seus livros, agora divididos entre o The Defender e a casa de Julia. Um andar grande. Como é agradável ter um ordenado regular: só alguém que nunca teve esse prazer pode dizer isto com o sentimento sincero que lhe é devido. Frances lembrava-se de trabalhar como freelancer e de pequenos empregos precários no teatro. Mas quando juntasse dinheiro suficiente para a substancial entrada inicial, demitir-se-ia daquilo que considerava cada vez mais a sua falsa posição no The Defender e acabar-se-ia a chegada regular de importâncias em dinheiro à sua conta bancária.

Fizera sempre a maior parte do trabalho em casa, nunca se sentira parte do jornal. Os colegas censuravam-lhe o facto de apenas entrar e sair, como se o seu comportamento fosse uma crítica ao The Defender. E era. Era uma intrusa numa instituição que se via como sitiada por hordas hostis e forças reaccionárias, como se nada tivesse mudado desde os grandes tempos do século passado em que o The Defender se erguera quase sozinho como um bastião de valores sadios e generosos: não houvera uma boa causa honesta que o The Defender não tivesse defendido. Hoje em dia, o jornal defendia os insultados e ofendidos, mas procedia como se isso fossem questões de minorias em vez de — de modo geral — «opiniões recebidas».

Frances deixara de ser a Tia Vera (O meu rapazinho molha a cama, o que devo fazer?) e em vez disso escrevia artigos sólidos e bem investigados sobre questões como a discrepância entre os ordenados das mulheres e dos homens, oportunidades de emprego desiguais, creches: quase tudo quanto escrevia tinha que ver com a diferença entre a situação dos homens e a das mulheres.

As jornalistas do The Defender eram conhecidas nalguns meios, sobretudo masculinos (que se sentiam crescentemente acossados por hordas femininas hostis), como uma espécie de máfia pesada, desprovida de humor e obcecada, mas competente. Frances era sem dúvida competente: todos os seus artigos tinham uma segunda vida como panfletos e até como livros, e terceiras vidas como programas de televisão e de rádio. Concordava secretamente com a opinião de que as suas colegas femininas batiam pesado, mas desconfiava de que podia ser acusada do mesmo. Sentia-se, sem dúvida, pesada, esmagada pelos males do mundo: a acusação de Colin tinha sido certa: ela acreditava no progresso e que um empenho obstinado no ataque à injustiça poria as coisas no seu lugar. Bem, não punha? Pelo menos às vezes? Orgulhava-se de pequenos triunfos. Mas pelo menos nunca levantara voo para os céus ventosos do feminismo em voga: nunca fora capaz, como Julia Hackett, de um ataque de fúria lacrimosa quando ouvira na rádio que o mosquito fêmea era o responsável pela malária. «Os sacanas. Os malditos sacanas fascistas.» Quando finalmente persuadida por Frances de que se tratava de um facto e não de uma calúnia inventada por cientistas masculinos para enxovalharem o sexo feminino — «Perdão, o género» —, acalmara-se e, vertendo lágrimas histéricas, declarara: «É tudo tão cruelmente injusto!» Julia Hackett continuava devotada ao The Defender. Em casa usava aventais The Defender, bebia por canecas The Defender e usava panos para limpar a louça The Defender. Era capaz de se desfazer em lágrimas furiosas se alguém criticava o seu jornal. Sabia que Frances não era tão comprometida — uma palavra de que gostava — como ela e, com frequência, proferia pequenas homilias destinadas a melhorar o seu pensamento. Frances achava-a infinitamente maçadora. Os adeptos das partidas travessas de que a vida é capaz já terão reconhecido esta figura que tantas vezes nos acompanha, aparecendo a todas as horas e em todos os lugares, uma sombra que dispensaríamos, mas que está ali, ela ou ele, qual caricatura zombeteira de nós próprios, mas, ah, sim, um lembrete salutar. No fim de contas, Frances deixara-se levar pela empolada retórica de Johnny, perdera a noção da realidade deixando-se encantar pelo grande sonho, e desde então a sua vida fora condicionada por isso. Não tinha pura e simplesmente sido capaz de se libertar. E agora trabalhava dois ou três dias por semana com uma mulher para quem o The Defender desempenhava o mesmo papel que o Partido representara para os seus pais, que continuavam a ser comunistas ortodoxos e a orgulhar-se muito disso.

Algumas pessoas habituaram-se a pensar que a nossa — do ser humano — maior necessidade é ter alguma coisa ou alguém a quem odiar. Durante décadas, as classes superiores e a classe média desempenharam essa útil função, granjeando (em países comunistas) morte, tortura e aprisionamento, e em países mais equânimes, como a Inglaterra, mero opróbrio ou obrigações irritantes, como ter de adquirir um sotaque cockney. Mas agora este credo dava sinais de esmorecimento. O novo inimigo, os homens, era ainda mais útil, visto abranger metade da espécie humana. De um extremo do mundo ao outro, as mulheres armavam-se em juízes dos homens, e quando Frances estava com mulheres do The Defender sentia-se parte de um júri composto apenas por mulheres que tinha acabado de pronunciar um veredicto unânime de Culpados. Elas sentavam-se aqui e ali, em momentos de ociosidade, solidamente senhoras da razão, e contavam pequenas anedotas da grosseria deste homem, ou da delinquência daquele, trocavam olhares satíricos, comprimiam os lábios e arqueavam as sobrancelhas, e quando estavam homens presentes procuravam indícios de pensamento incorrecto e depois atiravam-se a eles como gatos a bofe. Nunca houve ninguém mais complacente, mais auto-convencido, mais acrítico de si mesmo. Mas, no fim de contas, eram apenas uma etapa desta onda do movimento feminista. O começo do feminismo nos anos 60 assemelhava-se, unicamente e acima de tudo, a uma rapariguinha numa festa, louca de entusiasmo, com as faces escarlates e os olhos vidrados, a dançar e a gritar, esganiçada: «Não trago cuecas, podem ver o meu rabo?» Tem três anos e os adultos fingem não ver: ela vai crescer e aquilo passa-lhe. E assim foi. «O quê, eu? Nunca fiz coisas dessas... oh, bem, era apenas uma garota.»

A sobriedade não tardou a instalar-se, e se o preço a pagar por uma superioridade sólida era um irritante alarde de moralidade, então tratou-se de um baixo preço para uma investigação tão séria e escrupulosa, o enfadonho esgaravatar de factos, números, relatórios governamentais, história, o trabalho, em suma, que muda leis e opiniões e estabelece a justiça.

E, em conformidade com a natureza das coisas, a esta etapa suceder-se-ia outra.

Entretanto, Frances teve de chegar à conclusão de que trabalhar para o The Defender não era diferente de ser mulher do Johnny: tinha de se calar e pensar os seus próprios pensamentos. Era por esse motivo que levava sempre tanto trabalho para casa. No fim de contas, reservar as próprias opiniões cobra o seu preço, é estafante. Por isso demorou muito tempo a compreender que muitos dos jornalistas que trabalhavam para o The Defender eram descendentes dos camaradas, embora uma pessoa precisasse de os conhecer durante algum tempo antes de esse facto vir ao de cima. Se uma pessoa tinha uma educação vermelha, calava-se a esse respeito: era complicado demais explicar. Mas, e se havia outros no mesmo barco? No entanto, isto não acontecia só no jornal. Era surpreendente a frequência com que se ouvia dizer: «Sabes, os meus pais eram do Partido.» Uma geração de Crentes, agora desacreditada, dera origem ao nascimento de crianças que discordavam das crenças dos seus pais, mas admiravam a sua dedicação, ao princípio em segredo e depois às claras. Que fé! Que paixão! Que idealismo! Mas como podiam ter engolido todas aquelas mentiras? Quanto a eles, aos descendentes, possuíam uma mentalidade livre e aberta, incontaminada pela propaganda.

O facto, porém, era que a atmosfera do The Defender e de outros órgãos liberais tinha sido «estabelecida» pelo Partido. A similitude mais imediatamente visível era a hostilidade para com quem não estivesse de acordo. Os filhos esquerdistas ou liberais de pais que podiam descrever como fanáticos mantinham intactos hábitos de mentalidade herdados. «Se não estás connosco, és contra nós.» O hábito da polarização: «Se não pensas como nós, então és fascista.»

E, como no Partido nos velhos tempos, havia um plinto de vultos admirados, heróis e heroínas, geralmente não comunistas hoje em dia, mas o camarada Johnny era uma figura proeminente, um grande homem desse tempo, da Velha Guarda, eternamente exposto numa plataforma de punho cerrado erguido para um céu reaccionário. A União Soviética ainda prendia corações, se não mentalidades. Oh, sim, tinham sido cometidos «erros», e tinham sido reconhecidos «erros», mas isso não impedia que se defendesse essa grande potência, pois esse hábito tornara-se demasiado profundo.

Havia no jornal certas pessoas acerca das quais se murmurava que deviam ser espiões da CIA. Não restavam dúvidas de que a CIA tinha espiões em todo o lado; logo, também os devia ter ali: nunca ninguém disse que a KGB tinha os seus dedos soviéticos espetados naquele bolo, manipulando e influenciando, embora fosse verdade, tivesse, uma verdade que não seria admitida durante vinte anos.

Os EUA eram o principal inimigo: esta era a presunção tácita, mas muitas vezes ruidosamente proclamada. Era um Estado fascista militarista e a sua falta de liberdade e verdadeira democracia era continuamente atacada em artigos e discursos da autoria de pessoas que lá iam de férias, mandavam os filhos para universidades americanas e faziam visitas ao outro lado do «charco» para participarem em manifes, distúrbios, marchas e comícios.

Um certo jovem ingénuo, que entrou para o The Defender devido à admiração que tinha pela sua grande e honrosa história de liberdade e pensamento justo, argumentou ousadamente ser um erro chamar fascista a Stephen Spender por ele fazer campanha contra a União Soviética e tentar fazer as pessoas aceitar «a verdade» — frase que significava o oposto do que os soviéticos pretendiam dizer com ela. Este jovem argumentou que dado todos saberem das eleições fraudulentas, das farsas dos julgamentos, dos campos de escravatura e do emprego de trabalho prisional, e dado que Estaline era manifestamente pior do que Hitler, então estava com certeza certo dizê-lo. Houve apupos, gritos, lágrimas e o caso esteve quase a ser resolvido a murro. O jovem foi-se embora e descreveram-no como tendo sido plantado pela CIA.

Frances não era a única a desejar sair daquele lugar pruriginosamente desonesto. Rupert Boland, o seu bom amigo, era outro. O que primeiro os unira fora a sua secreta antipatia pela instituição para a qual trabalhavam. E depois, quando ambos podiam ter saído para arranjar trabalho noutros jornais, não o fizeram — um por causa do outro. O que nenhum deles sabia, pois não foi confessado durante muito tempo. Frances descobrira que corria o risco de amar este homem, mas depois, quando era tarde demais, amou. E por que não? As coisas progrediam de uma maneira lenta, sem pressas, mas satisfatória. Rupert queria viver com Frances. «Por que não vais morar comigo?», perguntara. Tinha um andar em Marylebone. Frances dissera que, por uma vez na sua vida, queria ter a sua própria casa. Teria dinheiro suficiente para isso dentro de cerca de um ano. «Mas eu empresto-te o dinheiro que falta», ofereceu ele. Ela recusou e apresentou pretextos. Não seria inteiramente a sua casa, o lugar deste mundo onde poderia dizer: Isto é meu. Ele não compreendeu e sentiu-se magoado. Apesar destes desacordos, o amor de ambos florescia. Frances ia passar noites a casa dele, mas não com muita frequência, porque receava transtornar Julia e temia Colin. Rupert perguntava: «Mas porquê? Tens mais de vinte e um anos.»

Quando os anos vão avançando, ocorrem amiúde momentos assim, em que emaranhados de história ferida e sangrando se desprendem e vêm à superfície. Ela não se sentia capaz de lho explicar. Nem queria: era melhor deixar tudo isso em paz. Basta. Acabou. Rupert não compreenderia. Fora casado e tinha dois filhos, que viviam com a mãe. Via-os regularmente e, agora, Frances também. Mas ele não passara pelas selvagens imposições da adolescência. Dizia, do mesmo modo que Wilhelm: «Mas nós não somos adolescentes, que precisemos esconder-nos dos adultos.» «Não sei. Mas entretanto... é divertido.»

Havia algo que podia ter sido um problema, mas não era. Ele tinha menos dez anos do que ela. Ela tinha quase sessenta anos, ele era dez anos mais novo! Depois de uma certa idade, mais dez, menos dez anos, não fazem muita diferença. Independentemente do sexo, que ela estava a recordar como uma coisa agradável, ele era uma excelente companhia. Fazia-a rir, uma coisa de que ela sabia precisar. Estavam ambos a descobrir como era fácil ser feliz e confessavam-no com incredulidade. Como era possível serem agora tão fáceis coisas que tinham sido difíceis, maçadoras, penosas?

Entretanto, não parecia haver acomodação para este amor, que era da espécie quotidiana, do pão nosso de cada dia, e de modo algum um descomedimento de adolescentes.

As multidões para a celebração da independência da Zimlia transbordavam do salão para os degraus e os passeios e ameaçavam congestionar as ruas, como acontecera com festas anteriores pelo Quénia, pela Tanzânia, pelo Uganda e pela Zimlia Setentrional. Provavelmente a maior parte daqueles celebrantes estivera em todos os festejos precedentes. Encontravam-se ali todos os tipos de emoções vitoriosas, da satisfação tranquila de pessoas que tinham trabalhado durante anos à euforia sorridente e transbordante daqueles que se inebriam tanto com as multidões como com o amor, ou o ódio, ou o futebol. Frances estava presente porque Franklin lhe telefonara. «Quero vê-la lá. Não, tem de ir. Quero lá todos os meus velhos amigos.» Era muito gratificante «E onde está Miss Sylvia? Ela também tem de vir, por favor peça-lhe.» Era por isso que Sylvia estava com Frances, a empurrar pelo meio da turba, embora tivesse dito, e continuasse a dizer: «Frances, preciso de lhe falar de uma coisa. É importante.»

Alguém puxava a manga de Frances.

— Mrs. Lennox? É Mrs. Lennox? — perguntava uma jovem mulher insistente, com cabelo ruivo tão desgrenhado como o de uma boneca de trapos e um ar de desorientação geral. — Preciso da sua ajuda.

Frances parou, com Sylvia logo atrás dela.

— Do que se trata? — gritou.

— A senhora foi maravilhosa com a minha irmã. Ela deve-lhe a vida. Por favor, tenho de ir visitá-la. — A rapariga também falava aos gritos.

Fez-se luz, mas muito lentamente.

— Compreendo. Mas acho que é a outra Mrs. Lennox que quer, a Phyllida.

Desconfiança feroz, frustração e depois desânimo desfiguraram as feições da jovem.

— Não quer? Não pode? Não é...

— Enganou-se na Mrs. Lennox — disse Frances, e continuou a andar, com Sylvia agarrada ao seu braço.

Era preciso tempo para apreender que Phyllida podia ser vista daquela maneira.

— Ela estava a falar da Phyllida — disse Frances.

— Eu sei — respondeu Sylvia.

A porta via-se que a sala estava cheia e não havia qualquer possibilidade de entrar, mas Rose era uma das arrumadoras, assim como Jill, e ambas ostentavam rosetas do tamanho de pratos com as cores de Zimlia. Rose exclamou com entusiasmo, ao ver Frances, e gritou-lhe ao ouvido inclinado: «É como uma velha reunião familiar; está aqui toda a gente.» Mas depois viu Sylvia e o seu rosto desfigurou-se de indignação. «Não sei por que pensas que vais conseguir um lugar. Nunca te vi em nenhuma das nossas manifestações.»

— Nem a mim — lembrou-lhe Frances. — Mas espero que isso não signifique que também sou uma ovelha negra.

— Uma ovelha negra — zombou Rose. — Como se não o soubesse. Mas desviou-se para o lado para deixar passar Frances e depois, não

teve outro remédio, também Sylvia, mas disse:

— Frances, tenho de falar com o Franklin.

— Não será melhor pedires ao Johnny? O Franklin fica com ele quando está em Londres.

— O Johnny não parece lembrar-se de mim... mas eu fiz parte da família, não fiz... durante séculos.

Soou um grande alarido. Os oradores estavam a abrir caminho para o estrado, cerca de vinte, entre os quais se contavam Johnny com Franklin e outro negro. Franklin viu Frances, que abrira caminho até à frente, e saltou do estrado, a rir, quase a chorar, e a esfregar as mãos: derretia-se positivamente de contentamento. Abraçou Frances e depois olhou em redor e perguntou:

— Onde está a Sylvia?

Estava a olhar para uma jovem mulher magra, de cabelo louro liso preso atrás da cabeça, rosto pálido e camisola preta de gola alta. O seu olhar desviou-se dela, vagueou e voltou, na dúvida.

— A Sylvia está aqui! — gritou a rapariga numa voz que subiu acima das palmas e dos gritos. No estrado, mesmo por cima deles, os oradores agitavam os braços, levantavam as mãos dadas acima das cabeças, sacudindo-as, saudavam com o punho fechado alguma personalidade aparentemente logo acima das cabeças do público. Sorriam e riam, impregnando-se do amor da multidão e devolvendo-o em raios quentes que se viam, positivamente.

— Estou aqui. Esqueceste-te de mim, Franklin. — Jamais um homem pareceu tão decepcionado, como Franklin, naquele momento. Durante anos guardara no pensamento aquela rapariguinha fofa como um pintainho amarelo, tão doce como a Virgem e as santas dos quadros sagrados da Missão. Esta rapariga severa e grave, que não sorria, magoava-o, não queria olhar para ela. Mas ela saiu de trás de Frances e abraçou-o e sorriu, e durante um momento ele conseguiu pensar: Sim, é a Sylvia...

— Franklin — gritavam do estrado.

Neste momento, Rose aproximou-se e insistiu em abraçá-lo.

— Sou eu, Franklin, a Rose. Lembras-te?

— Sim, sim, sim — disse Franklin, cujas recordações de Rose eram ambíguas.

— Preciso de te ver — disse Rose.

— Pois sim, mas agora tenho de subir.

— Espero por ti depois do comício. É para teu bem, não te esqueças.

Ele subiu para o estrado e tornou-se um reluzente rosto negro e sorridente entre os outros, e ao lado de Johnny Lennox, que parecia um velho leão sarnento, mas ao mesmo tempo digno, que saudava os seus admiradores do público com um abanar do punho cerrado. Mas os olhos de Franklin continuavam a percorrer a sala, como se algures, lá em baixo, se encontrasse a antiga Sylvia, e depois, quando fitava tristemente o lugar onde a verdadeira Sylvia se encontrava, num banco da frente, ela acenava-lhe e sorria. O rosto dele inundava-se de novo de felicidade e ele abria os braços, a abraçar a multidão, mas era a ela quem realmente abraçava.

As celebrações de vitória depois de uma guerra não têm muito que dizer a respeito dos soldados mortos, ou melhor, dizem muito ou chegam mesmo a cantar a respeito dos camaradas mortos «que tornaram esta vitória possível», mas as aclamações e os cantos ruidosos destinam-se a fazer com que os vencedores esqueçam os ossos que jazem na fenda de um rochedo, numa kopje(2) ou numa sepultura tão pouco funda que os chacais lá chegaram e espalharam costelas, dedos, um crânio... Atrás do barulho há um silêncio acusador, que em breve será preenchido pelo esquecimento. Na sala, naquela noite, encontravam-se poucas pessoas — eram na sua maioria brancas — que tivessem perdido filhos e filhas numa guerra, ou tivessem combatido em alguma, mas os homens do estrado — alguns deles — tinham estado num exército ou visitado os combatentes. Também havia os que tinham sido treinados para travar guerra política, ou guerra de guerrilha, na União Soviética, ou em campos instalados pela União Soviética em África. E naquele público um bom número conhecera várias partes de África «nos velhos tempos». Entre eles e os activistas abriam-se abismos, mas estavam todos a ovacionar.

Vinte anos de guerra, começando por afloramentos isolados de «descontentamento civil», ou «desobediência», ou greves, ou cóleras enraivecidas que haviam explodido em matanças ou fogo posto, mas todos esses regatos se tinham tornado na enxurrada que era a guerra, vinte anos de guerra que em breve seriam esquecidos, a não ser em ocasiões comemorativas. O barulho na sala era tumultuoso e não abrandava. As pessoas gritavam, choravam, abraçavam-se umas às outras e beijavam desconhecidos, enquanto no estrado os oradores se sucediam, pretos e brancos. Franklin falou, e depois voltou a falar. A multidão gostava dele, daquele homem rotundo e bem-disposto que — dizia-se — faria em breve parte de um governo formado pelo camarada Matthew Mungozi, que obtivera uma maioria inesperada nas recentes eleições: Presidente Mungozi, até recentemente apenas um nome entre meia dúzia de líderes potenciais. E havia também o camarada Mo, que chegou atrasado, sorridente, a acenar, entusiasmado, e saltou para o estrado a fim de contar que acabava de regressar das linhas dos combatentes pela liberdade que abandonavam as suas armas e pensavam na maneira de tornar realidade os doces sonhos que durante anos os tinham mantido no combate. Gesticulando, agitado, chorando, o camarada Mo falou ao público desses sonhos: tinham estado tão ocupados com notícias da guerra que lhes faltara tempo para pensarem que em breve ouviriam: «E agora construiremos um futuro juntos.» O camarada Mo não era, realmente, de Zimlia, mas que importava isso? Nenhum dos presentes estivera de facto, tão recentemente,

 

*2. Colina, sul-africano. (NT)

 

com os combatentes da liberdade, nem sequer o camarada Matthew, que estivera muito ocupado com discussões em Whitehall e em reuniões internacionais. A maioria dos líderes mundiais já lhe tinha assegurado o seu apoio. Da noite para o dia, tornara-se uma figura internacional.

Não havia qualquer possibilidade de Frances e Sylvia saírem, e os gritos, as lágrimas e os discursos continuaram até o encarregado da sala vir informar que restavam dez minutos do tempo de ocupação pago. Soaram grunhidos, vaias e gritos de fascistas. Toda a gente se empurrou na direcção das portas. Frances ficou a olhar para cima, para Johnny, pensando que, pelo menos, ele daria algum sinal de reconhecimento da sua presença — e deu, com uma inclinação de cabeça severa e fechada. Rose subiu ao estrado para saudar Johnny, que lhe retribuiu com outra inclinação de cabeça. Depois ela parou defronte de Franklin, bloqueando o acesso das pessoas que lhe queriam apertar a mão, abraçá-lo ou, até, levá-lo em ombros para fora da sala.

Quando Frances e Sylvia tinham chegado ao átrio, apareceu Rose, impante de triunfo: Franklin prometera-lhe uma entrevista com o camarada Matthew. Sim, imediatamente. Sim, sim, sim, ele prometeu, disse que falaria com o camarada Matthew, o qual estaria em Londres na próxima semana, e Rose teria então a sua entrevista.

— Está a ver? — disse Rose a Frances, ignorando Sylvia. — Estou lançada.

— Para quê? — era a resposta esperada, e Frances deu-a.

— Verá — respondeu Rose. — A única coisa de que precisava era de uma aberta, e ela aí está.

E afastou-se para reatar as suas obrigações de arrumadora. Frances e Sylvia pararam no passeio, cercadas por pessoas felizes que não queriam afastar-se umas das outras.

— Preciso de falar consigo, Frances — disse Sylvia. — É importante... e não só consigo, com todos.

— Todos!

— Sim, depois verá porquê.

Combinaram encontrar-se todos dentro de uma semana e Sylvia prometeu que passaria uma noite inteira em casa.

Rose leu todos os artigos que conseguiu encontrar a respeito do camarada Matthew, o Presidente Mungozi. Mas não muito a respeito de Zimlia. O material era muito, e na sua maioria elogioso, da autoria de pessoas que antes tinham com frequência escrito em seu desabono. Para começar, ele era comunista. Perguntava-se o que iria isso significar no contexto de Zimlia. Rose não tencionava fazer perguntas desse género, ou pelo menos não numa atitude de confronto. Redigira um rascunho da sua entrevista, antes mesmo de conhecer O Líder, tudo retirado de outras entrevistas. Como jornalista freelance escrevera pequenas peças acerca de assuntos locais, baseada sobretudo em informação fornecida por Jill, que pertencia agora a vários comités do Município. Juntara sempre informação, ou artigos de outras pessoas, para fazer os seus próprios artigos, de modo que este caso de agora era a mesma coisa, só com maior peso e — assim esperava — maiores consequências. Não utilizou nenhuma das críticas feitas ao camarada Matthew e terminou com dois parágrafos de eufemismo optimista, do género que ouvira tão amiúde ao camarada Johnny.

Levou este artigo, em rascunho, para a sua entrevista com O Líder no hotel onde estava alojado. Ele não se mostrou um entrevistado comunicativo, pelo menos para começar, mas depois de ler o artigo libertou-se das suas suspeitas e deu-lhe algumas citações úteis. «Como o Presidente Mungozi me disse...»

Tinha passado uma semana. Frances abrira as abas da mesa para a voltar ao seu estado anterior, na esperança de que as visitas dissessem: «Tal e qual como antigamente.» Fizera um guisado e uma sobremesa. Quem viria? Depois de saber que Sylvia viria, Julia dissera que desceria e traria Wilhelm. Colin, ao ouvir dizer que Sylvia falara numa «reunião», tinha garantido que estaria presente. Andrew, que estivera numa lua-de-mel com Sophie — a expressão fora dele, embora não estivessem casados —, dissera que viriam ambos.

Julia e Frances esperaram juntas. Andrew chegou primeiro, mas sozinho. Um olhar bastou: tinha um ar exausto, até mesmo desfigurado, e não restava qualquer vestígio da sua afabilidade. Estava tristonho e tinha os olhos vermelhos.

— A Sophie talvez apareça mais tarde — disse, e serviu-se copiosa e sucessivamente de vinho tinto. — Está bem, mãe, eu sei. Mas levei uma tremenda tareia.

— Ela voltou para o Roland?

— Não sei. Provavelmente. Abrir aspas, os laços do amor são difíceis de quebrar, fechar aspas. Mas se isso é amor, não, muito obrigado.

— Já tinha a voz arrastada. — Vim, realmente, porque nunca vejo a Sylvia, Sylvia... quem é ela? Talvez seja a Sylvia quem eu amo. Mas sabes uma coisa, Frances, acho que, no seu coração, ela é uma freira.

— Continuou a falar deste modo, com as palavras a tornarem-se mais lentas e pastosas, até que se levantou, foi ao lava-louça e molhou o rosto.

— Há uma superstição... — disse «xuprestição» — ... segundo a qual a água fria acalma as chamas do álcool. Não é verdade. — A cabeça pendeu-lhe para a frente, quando se sentou, voltou a levantar-se e acrescentou: — Acho que me vou deitar um bocado.

— Colin está a usar o teu quarto.

— Eu uso a sala — e subiu ruidosamente a escada. Sylvia chegou e abraçou Julia, que não se conteve e disse:

— Hoje em dia, nunca te vejo.

Sylvia sorriu, ocupou a outra extremidade da mesa oposta à de Frances e espalhou papéis à sua volta.

— Não jantas connosco? — perguntou Julia, e Sylvia disse «Desculpem», e empurrou os papéis para um lado.

Colin desceu a escada em grandes passadas. Um sorriso iluminou o rosto pálido da rapariga, ao vê-lo, e ela estendeu-lhe os braços. Abraçaram-se.

Wilhelm bateu, como sempre fazia, perguntou se podia fazer-lhes companhia e sentou-se perto de Julia, depois de lhe ter beijado a mão e a ter envolto num olhar atento e inquiridor. Estava preocupado com ela? Julia tinha o mesmo aspecto de sempre, tinham ambos. Ele podia ir a caminho dos noventa, mas era saudável, era enérgico.

Depois de lhe terem dito que Andrew estava a dormir no andar de cima, Colin comentou:

La belle dame sans merci.(3) Eu disse-te, não disse, mãe?

Neste momento, chegou a própria Sophie, cheia de desculpas. Trazia um vestido branco solto, com o cabelo preto caído em cascata sobre ele. No seu rosto não parecia haver sinais de amor ou sofrimento, mas os seus olhos, bem, os seus olhos eram outra história.

Frances tinha as mãos ocupadas, a servir a comida. Virou a cabeça para Sophie poder beijá-la na face. Sophie sentou-se numa cadeira defronte de Colin e viu que ele a examinava gravemente.

— Meu querido Colin — murmurou.

— A tua vítima está lá em cima, apagada — informou Colin.

— Isso não foi simpático — interveio Frances.

— Nem pretendia ser.

Os olhos de Sophie estavam cheios de lágrimas.

— As mulheres bonitas nunca deviam ser censuradas pelos estragos que causam — observou Wilhelm a Colin. — Elas têm a permissão

 

*3. Título de um poema de John Keats: La Belle Dame Sans Merci Hath thee in thrall... (NT)

 

dos deuses para nos atormentarem. — Pegou na mão de Julia, beijou-a uma, duas vezes, suspirou, pousou a velha mão e deu-lhe umas palmadinhas.

Rupert chegou. Sem uma palavra de explicação, dada ou pedida, fazia parte da casa e — assim esperava Frances — era aceite. Colin lançou-lhe um olhar longo que, não sendo inamistoso, era desolado, como se a solidão acabasse de ser confirmada. Rupert sentou-se no lugar ao lado de Frances e acenou com a cabeça a todos.

— Uma reunião — comentou. — Mas é uma refeição. Frances estava a colocar pratos cheios defronte de todos, estilo familiar, e garrafas de vinho ao longo do meio da mesa.

— Isto é maravilhoso, Frances, é muito maravilhoso... como nos velhos tempos. Oh, penso muito neles, todos nós aqui sentados à volta da mesa, serões maravilhosos — disse Sophie, num tom tagarela, mas estava à beira das lágrimas e a destruir uma fatia de pão com os compridos dedos magros feitos para usarem anéis.

O cãozinho, que escapara de algum lugar onde estivera fechado, irrompeu pela cozinha e saltou para o colo de Colin, onde ficou com a cauda penugenta a lembrar um espanador atarefado.

— Para baixo, Fera — ordenou Colin. — Para baixo, já! — Mas o animal instalara-se no colo de Colin e tentava lamber-lhe a face.

— Não é saudável deixar cães lamber-nos a cara — disse Sylvia.

— Eu sei.

— Esse cão... — observou Julia. — Não podias dar-lhe outro nome qualquer mais sensato? Cada vez que ouço chamar-lhe Fera tenho vontade de rir.

— Uma gargalhada por dia mantém o médico à distância — replicou Colin. — Que dizes a isso, Sylvia?

— Gostaria que acabássemos de jantar — respondeu ela, que mal tocara na comida.

— Isto é tão maravilhoso — repetiu Sophie, a comer como se estivesse esfaimada.

Andrew apareceu, indisposto, mas firme. Ele e Sophie trocaram olhares infelizes. Frances pôs um prato de comida na frente do filho, que disse:

— Não podíamos começar? A Sophie e eu precisamos de sair depressa. — O olhar que lançou à jovem era uma interrogação humilde, mas ela pareceu embaraçada.

— Precisamos de recapitular? — perguntou Sylvia, afastando o prato com alívio e colocando os papéis à sua frente. — Eu enviei um resumo a cada um.

— Um resumo excelente — elogiou Andrew. — Obrigado. A situação era a seguinte: um grupo de jovens médicos queria organizar uma campanha para levar o governo a construir abrigos contra os perigos da radioactividade; primeiro isso e depois, se possível, contra um ataque nuclear em grande escala. O problema residia no facto de a organização em campo, a Campanha pelo Desarmamento Nuclear Unilateral, uma força ruidosa, enérgica e eficiente, se opor a qualquer tentativa de fornecer abrigo de qualquer espécie, ou sequer de informar o povo sobre protecção elementar. O tom da sua polémica desdenhava a crítica, era violento e até histérico.

— Preciso de que me expliquem uma coisa — disse Julia. — Por que motivo essa gente se queixa tanto de o governo estar a tomar providências para se proteger e à Família Real? — Um sarcasmo persistentemente em voga era que «o governo está a tomar todas as providências para estar protegido e está-se nas tintas para nós». — Não compreendo, simplesmente — continuou Julia. — Se houver uma guerra, é essencial manter um governo. Isto é, sem dúvida, lógico, não é?

— Não creio que a lógica ou o bom senso tenham muito que ver com esta campanha — observou Wilhelm. — Há pessoas que nunca souberam o que é uma guerra; caso contrário, não falariam tão estupidamente.

— Eles raciocinam assim: cai uma bomba e morre toda a gente — disse Colin. — Por consequência, não há necessidade nenhuma de abrigos.

— Mas não é lógico — insistiu Julia. — Não é coerente. Frances e Rupert olhavam para as rimas de artigos e recortes, do

The Defender, entreolhavam-se e partilhavam a resignação. The Defender estava comprometido com a «linha» da campanha. Havia membros do seu pessoal nos comités da campanha. Os seus jornalistas escreviam os seus artigos.

— O argumento — disse Colin — é que se o governo pensar que está protegido e em segurança, estará mais preparado para lançar a bomba.

— Que bomba? — perguntou Julia. — Porquê uma bomba? Que bomba é essa de que não param de falar? Numa guerra não há uma bomba.

— A questão é essa, Julia. É essa a questão que temos de resolver

— respondeu Sylvia.

— Talvez o Johnny pudesse esclarecer-nos — alvitrou Wilhelm.

— Faz parte do comité deles.

— De que comité ele não faz parte? — perguntou Colin.

— Por que não lhe telefonamos e pedimos que venha defender-se? — sugeriu Rupert.

Ficaram impressionados com a sugestão; não ocorrera à família. Andrew dirigiu-se para o telefone, marcou e Johnny atendeu. Foi informado de que havia uma reunião e acedeu a comparecer.

Enquanto esperavam, estudaram os recortes de Sylvia e Julia disse:

— Esta é a coisa mais estranha de que alguma vez tive conhecimento. Estas pessoas parecem crianças.

— Concordo — declarou Sylvia. — São.

Grata por esta migalhinha, Julia pegou na mão de Sylvia e apertou-a.

— Ah, minha pobre pequena, não comes, não tratas de ti.

— Estou óptima. Todos nós comemos demais.

Apesar de recusado, o guisado de Frances estava, no entanto, a ser oferecido para quem quisesse servir-se de mais.

Johnny chegou, mas não vinha só. Acompanhava-o James. Usavam ambos casacos pretos à Mao e botas do armazém de excedentes do exército. Johnny, que estivera recentemente em Cuba com Fidel, usava um lenço de pescoço com as cores de Cuba; James era agora um homem corpulento, sorridente, afável e...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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