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O TESOURO DOS CZARES / Heinz Konsalik
O TESOURO DOS CZARES / Heinz Konsalik

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O TESOURO DOS CZARES

Primeira Parte

 

Ela não era verdadeiramente aquilo a que se poderia chamar uma bonita rapariga. Os cabelos negros hirsutos caíam-lhe em madeixas gordurosas pela cara, a roupa estava suja de terra e de ervas secas, e estas, como folhas de livros queimadas pelo sol, tinham-se metido nas pregas do tecido... Nada de atraente, nem mesmo num breve relance. Porém, quando se afastavam os tufos de cabelo do rosto, deparavam-se-nos uns olhos muito escuros, quase pretos, a fitarem-nos. As maçãs do rosto salientes faziam pensar nos retratos das mulheres tártaras, mas do conjunto de particularidades da sua face sobressaía um nariz pequeno e uma boca trémula, que, não obstante sugerir uma curva cheia de suavidade, se apresentava com os lábios deformados pelo medo e pelo desespero.

O alferes Lev Semionovitch Vechaiev não tinha tempo para observar tais características. Nem sequer se deu ao trabalho de limpar o sangue que corria da têmpora esquerda da rapariga, o qual descia ao longo da face e formava um risco vermelho no pescoço: pessoalmente, não tinha qualquer razão para ajudar aquela jovem que se embrulhava num capote alemão. Por baixo do capote, ela trazia as roupas de enfermeira da Cruz Vermelha, tão sujas como o resto, com a gola fechada por um broche redondo onde se reconheciam facilmente as insígnias inimigas. Cheio de uma cólera impiedosa, Lev Semionovith gritou:

— Para que havemos de perder tempo, camaradas? — Sopesou com uma mão a pistola que tirou do coldre que trazia à cintura, como se quisesse verificar o peso. — Trata-se de uma espia. Tem ou não um uniforme alemão? Estava ou não escondida num buraco da floresta? Acabemos com ela e partamos! Não há motivo para perdermos tempo com palavras.

Só o acaso levara aquele pequeno grupo de soldados soviéticos a pararem precisamente naquele canto da floresta. A unidade especial, composta por dezanove homens e dez camiões vazios, dirigia-se para a 3.a Companhia do II Regimento da Guarda para salvar o que fosse ainda possível dos castelos ao redor de Leninegrado. Nessa manhã aprazível e ensolarada de 22 de Junho de 1941, o Exército alemão tinha bruscamente invadido a Rússia numa vasta frente. Aviões de combate Stuka surgiram inopinadamente no céu com a missão de bombardear as aldeias e as cidades cheias de habitantes. Vira-se então aparecer um material de guerra até essa altura desconhecido do mundo. Aproveitando o choque e o efeito paralisante, as tropas inimigas lançavam-se irresistivelmente sobre a imensidão do país russo, empurrando na sua frente as divisões soviéticas, com a certeza de que tudo se decidiria numa guerra-relâmpago, como, aliás, sucedera já na Polónia. Os seus carros rompiam as posições, seguidos por uma interminável coluna de soldados de infantaria. A artilharia preparava-lhes o caminho através das localidades em chamas e dos campos devastados.

Os alemães marchavam agora sobre Leninegrado, enquanto os seus bombardeiros despedaçavam a cidade e os seus arredores. Milhares de pessoas, incluindo velhos, mulheres e até crianças, cavavam largas trincheiras, construíam barreiras anticarros, linhas de defesa subterrâneas e fortins no solo. Por toda a frente, a resistência heróica das divisões soviéticas cedia perante o ataque das tropas alemãs e o chefe do Estado-Maior de Leninegrado, general Nikichev, anunciou ao chefe do Estado-Maior do Exército Vermelho, general Boris M. Chapochnikov:

— Não tenho mais reservas. Só as acções rápidas de pequenas unidades são capazes de repelir alguns ataques do inimigo.

A 8 de Setembro, o marechal Gheorgi Zhukov recebeu ordens de Estaline para se dirigir ao Kremlin, em Moscovo. Estaline recebeu-o imediatamente e saudou-o estendendo-lhe as duas mãos:

— Gheorgi Constantinovitch, as minhas felicitações e o meu respeito. Deteve os agressores fascistas no meio do ataque. Que sucesso! Agora, os alemães irão ver do que somos capazes. Quais são as suas intenções?

— Voltar para a frente.

Zhukov lançou a Estaline um olhar espantado. Tê-lo-ia mandado vir a Moscovo unicamente para o felicitar? Para quem conhecia Estaline tão bem como ele, isso era inconcebível.

— A frente? — Estaline fez um gesto benevolente com a cabeça. — Que frente?

Zhukov ficou um momento silencioso, perplexo. Foi então que compreendeu por que razão se encontrava ali no Kremlin, o bastião da defesa russa.

— A frente em que me julgar necessário, camarada secretário-geral.

— Então meta-se no primeiro avião para Leninegrado, Gheorgi Constantinovitch. — O rosto de Estaline ensombrou-se e os seus olhos reflectiram uma tristeza inusitada. — A situação ali é, por assim dizer, desesperada.

A 9 de Setembro, o marechal Zhukov aterrava no aeroporto de Leninegrado. Pouco antes, dois Messerschmitt alemães tinham perseguido o seu avião por cima do lago Ládoga, até à intervenção da cobertura militar aérea, que os obrigou a mudar de rumo. O comandante da Frente Noroeste — assim se chamava o grupo de exércitos norte do Exército Soviético —, marechal Vorochilov, recebeu, com ar sombrio, o seu sucessor, Zhukov, assim como os três generais que o acompanhavam. Leu-lhes a carta de Estaline e abanou tristemente a cabeça.

— Sou, na verdade, um velho — suspirou com ar cansado. — Trata-se de uma coisa diferente de uma guerra civil. Deve ser conduzida de outra maneira. Gheorgi Constantinovitch... que vai Estaline fazer?

— O senhor é um dos seus velhos amigos...

— Mas, na opinião dele, falhei na minha frente.

— Não... Apenas os alemães foram mais rápidos. Nada mais. Que irá suceder a Leninegrado? Talvez eu o siga em breve, Klement lefremovitch. Contudo, agirei de modo diferente. Falta, no entanto, provar a oportunidade das minhas decisões. Poderemos ainda salvar esta cidade? Poderemos suportar um cerco?

— E preciso esperar o pior.

Vorochilov dirigiu-se para a janela do seu grande gabinete e olhou o céu ensombrado pelas nuvens. «Vai chover», pensou ele. «Os campos vão-se transformar em pântanos, as estradas em caminhos lamacentos... Seria preciso agora uma boa chuva para afogar os exércitos alemães. Eles ainda não conhecem a Rússia quando a terra molhada não deixa caminhar e nela se atolam carros, cavalos, homens e máquinas...»

— Comecei a tirar dos castelos os tesouros mais preciosos. Esculturas, quadros, colecções de moedas, móveis de valor, tapetes, cristais, jóias... Não me olhe com esse olhar admirado, camarada Zhukov. Recebi instruções precisas de Moscovo.

— Quadros! Tapetes! Móveis! Precisamos de todas as mãos capazes de empunhar uma espingarda, e você manda tirar das vitrinas as antigas jóias dos boiardos.

— De resto, não tenho viaturas suficientes para isso. - Vorochilov encolheu os ombros, como transido de frio.

«É realmente um velho», pensou Zhukov, tomado por uma certa compaixão pelo marechal.

— Neste mesmo momento, mulheres, sobretudo mulheres, trabalham dia e noite para embalar os objectos mais preciosos do Palácio de Catarina, em Puchkine, a fim de os trazerem para aqui, para os subterrâneos da Catedral de Santo Isaac. Já foram embaladas perto de vinte mil peças. Mas se o avanço alemão continua, os fascistas chegarão a Puchkine antes de termos tido tempo de desmontar tudo. Ser-nos-á sobretudo impossível salvar um dos maiores tesouros, a Sala de Âmbar...

— A Sala de Âmbar?

Zhukov ergueu o queixo. Ouvira já falar, sem nunca a ter visto, dessa sala com os seus mosaicos, quadros, espelhos e paredes ornadas de frisos de âmbar esculpido. Vira fotografias dessa sala num jornal, sem compreender a emoção visível dos autores dessa reportagem. Sentira apenas cólera — lembrava-se agora — ao pensar na vida de luxo que os príncipes e os czares tinham levado em detrimento do povo, dos camponeses e dos servos, dos pobres mujiques que eram explorados até à morte.

— Não se pode salvar?

— Os alemães preparam-se para marchar sobre Puchkine e eu não tenho camiões suficientes. Além disso, é completamente impossível para as mulheres desmontarem inteiramente a sala. Arriscam-se a destruí-la, em vez de a preservar. A minha alma chora, Gheorgi Constantinovitch.

— vou dar ordem ao general Popov para enviar uma unidade especial a Puchkine para se proceder ao desmantelamento da Sala de Âmbar. — Zhukov sentiu a sua piedade por Vorochilov aumentar ao ver os lábios dele tremerem. — Retiraremos doze divisões do Báltico e formaremos os Quadragésimo Segundo e Quadragésimo Oitavo Exércitos. Poderemos destacar um pequeno grupo de tropa especial.

— Se os alemães não chegarem a Puchkine primeiro...

— Não faço ideia nenhuma. Sei apenas que nos agarraremos a cada metro de terra. Leninegrado é um símbolo. Nunca a entregaremos nas mãos dos alemães, nunca, apesar de Estaline dizer que a situação é quase desesperada. Quase. Dou muita importância a esse «quase».

No entanto, Zhukov teve de reconhecer, nos dias seguintes, que lhe era impossível transportar a tempo a Sala de Âmbar para Leninegrado. As mulheres que trabalhavam por turnos no Palácio de Catarina, a antiga residência de Verão dos czares, chamado de Tsarskoie Selo antes de Pedro, o Grande, receberam ordem para salvar a preciosa sala do aniquilamento. Fixaram grandes painéis de madeira diante das paredes de âmbar para as proteger e cobriram com papel as grandes superfícies que brilhavam ao sol em todos os cambiantes de amarelo. Queria-se assim evitar que as trepidações partissem os mosaicos e que pedaços de âmbar saltassem das paredes. Finalmente, as mulheres retiraram os tesouros mais fáceis de transportar — bustos de âmbar, uma grande secretária, mesas e armários graciosos —, que foram levados para os últimos camiões, bem mais úteis ao exército para o transporte de víveres, de munições, de peças de artilharia e de cimento.

— Devo salvar também milhares de homens, de mulheres e de crianças! — protestou um dia Zhukov quando, numa reunião, o general Sinoviev criticou o facto de se ter abandonado o salvamento da Sala. — Caixas de tabaco com pedras preciosas não podem disparar! Deixem de se lamentar por causa de uma cadeira dourada, pensem antes nas pessoas.

— Os fascistas vão levar tudo. Eles roubarão quadros insubstituíveis, esculturas, livros. Mesmo que ganhemos a guerra, a Rússia será um país pobre.

Sinoviev tirou um pedaço de papel do bolso do seu uniforme. Era um grande amador de arte, capaz de ficar sentado durante horas num museu diante de um Rembrandt, ou de passear pelas numerosas salas do Ermitage, em Leninegrado. Uma vez, durante três dias seguidos, dirigira-se aí para apreciar todo o esplendor do museu que abrigava os mais preciosos tesouros do mundo, apenas comparável ao Louvre, em Paris. Finalmente, voltara a casa como que embriagado com tudo o que vira.

— Tenho informações dos nossos espiões. Por todo o lado onde os alemães passam, logo atrás das tropas combatentes, vêm comandos especiais que chegam às cidades e aos castelos com a missão de transportar todas as obras de arte. Até agora, os alemães roubaram quatrocentos e vinte e sete museus, mil seiscentas e setenta igrejas ortodoxas russas, duzentas e trinta e sete igrejas católicas romanas, sessenta e nove capelas, quinhentas e trinta e duas sinagogas e duzentos e cinquenta e oito outros edifícios religiosos. Levaram também obras de trezentas e trinta e quatro grandes escolas e de quarenta e três mil bibliotecas públicas. Nunca mais voltaremos a ver o que nos foi tirado.

— São zelosos, os seus espiões, verdadeiramente zelosos! — disse Zhukov, com uma ponta de ironia. Retirou o papel das mãos de Sinoviev, amarrotou-o e atirou a bola de papel para cima da secretária. — E que contam os seus valentes espiões sobre as tropas inimigas, os seus armamentos, as suas provisões, o seu moral, as suas perdas reais?

O general Sinoviev calou-se. «O marechal tem razão», pensou. «Tenho de deixar de o provocar. O cerco de Leninegrado define-se, a nossa resistência é heróica, sim, é a palavra justa, heróica, mas os alemães continuam a avançar. É impossível contê-los. Dentro de dez ou quinze dias desfilarão nas ruas da cidade com as suas bandeiras e as suas fanfarras, como sucedeu há um ano em Paris. E saquearão por toda a parte, apropriar-se-áo da arte do mundo inteiro, do Louvre, do Ermitage, tesouro da Rússia. Faço ainda parte daqueles que acreditam em Deus. Deus do Céu, não permitas que isso aconteça! Protege a nossa Leninegrado, apesar de ela dever o seu nome a um homem que afirmava: «A religião é o ópio do povo.» Não esqueças Senhor, que esta cidade se chamava outrora Sampetersburgo. Uma cidade sagrada... Estende o Teu braço e detém os alemães. Concede-nos um novo milagre.»

— Em que pensa, Vitalli Bogdanovitch? — A voz de Zhukov trouxe-o à realidade. — Tem um ar ausente...

— Penso no que acabou de dizer, camarada marechal. O general Sinoviev debruçou-se sobre o grande mapa de

Leninegrado e dos seus arredores. Um mapa notável. Ali estavam indicados todos os riachos, cada chaminé de fábrica, cada pequeno atalho de floresta. E também Tsarskoie Selo, que se chamava agora Puchkine, o Palácio de Catarina, com a Sala de Âmbar.

— Os reforços são mais importantes do que um quadro de Tintoreto.

Nesse dia 12 de Setembro de 1941, a pequena coluna comandada pelo alferes Vechaiev tinha parado num atalho florestal que seguia para oeste de Puchkine. Lev Semionovitch proferia pragas tão grosseiras, obscenas mesmo, que os seus soldados do Exército Vermelho estavam assombrados. Um rapaz tão novo a dizer tais coisas! Já se ouvira falar assim? Ô eixo traseiro de um camião partira-se e fora chamado de «puta beijada pelo diabo» e o ingénuo condutor do camião, o cabo Slivka, fora apelidado de «macaco embrutecido à força de se masturbar». Que palavras aquelas! E para quê? O eixo estava partido, o camião meio voltado sobre o flanco esquerdo, e não havia peças para substituição. Para quê arrancar os cabelos e gritar? Era impossível prender o eixo com cabos e ninguém sabia o que fazer. Deviam simplesmente deixar o camião e continuar, ou procurar a ajuda da primeira oficina militar que encontrassem? Estavam a uns nove quilómetros de distância e isso significava que se passariam muitas horas antes de receberem uma nova peça.

Vechaiev decidiu começar por se sentar na orla da floresta, comer uma fatia de pão com uma camada de pasta de fígado e de cebolas, e fumar uma papyrossa antes de tomar uma decisão. Os seus homens espalharam-se, secretamente encantados por aquela interrupção, pois não era agradável ficarem sentados durante horas numa cabina exígua, sentindo os solavancos provocados pelas estradas pedregosas, ao ponto de cada abanão lhes parecer sacudir até o crânio. Desabotoaram as calças ou puxaram-nas para baixo, a fim de se aliviarem junto das árvores e dos arbustos.

O soldado Victor lanissovitch sentiu também uma necessidade premente, ele que corava quando os outros contavam, enquanto comiam ruidosamente, o que haviam feito, e como, com a sua Olga ou a sua Varva, na granja, na palha, atrás de uma meda de feno ou ainda — que porco, aquele Nikita — sobre a banca de trabalho da oficina do pai, que era carpinteiro. Embrenhou-se, então, na floresta, justamente por ser tão tímido que não gostava de mostrar as nádegas.

Lentamente, com os dedos já na cintura, procurava um bom lugar, de preferência atrás de uns arbustos, quando, de súbito, viu algo de insólito naquele local.

Era terra. Terra remexida, como se alguém tivesse cavado ali um buraco. Era uma extensão de cerca de três metros onde a terra fora visivelmente calcada com os pés para ficar lisa. Aquilo não podia ser obra de uma lebre ou de uma raposa e as martas ou os ratos do campo não alisavam a terra de uma maneira tão regular. Tratava-se da obra de um ser humano, sem dúvida, mas o que Victor lanissovitch não podia entender era o motivo por que um homem cavara um buraco no meio daquela floresta isolada, coberta de um espesso matagal.

Esqueceu-se imediatamente de que precisava de baixar as calças. Sentiu-se invadido por uma sensação de perigo. Pensou se deveria voltar imediatamente para trás e ir avisar o seu alferes. Contudo, se não houvesse a assinalar nada de invulgar, ele seria não só ridicularizado, como corria o risco de Vechaiev fazer recair sobre si toda a cólera provocada pelo eixo partido. Era melhor calar-se, pensou lanissovitch, verificar do que se tratava e só depois falar, se fosse caso disso. Ele não era um cobarde, sabia-o, e os alemães estavam ainda longe. Mas que poderia então ser?

Não, Victor lanissovitch não era um cobarde; simplesmente, não tivera ocasião de revelar a sua bravura. Não disparara sobre qualquer soldado alemão, já que nem sequer vira um só. Limitara-se a visar alvos de madeira e acertara neles, o que lhe valera elogios dos seus superiores. No entanto, para ser sincero, devia confessar que tinha um certo receio, pois sentia contracções no estômago à ideia de fazer desaparecer deste mundo um ser de carne e osso, pela simples pressão de um dedo. Por isso, desejava em segredo conservar a sua inocência, o que decerto seria cobardia e traição em relação ao seu povo. A falar verdade, só indirectamente entravam em contacto com o inimigo, pois a missão deles conduzia-os a sítios onde tudo se mantinha ainda tranquilo, se se exceptuassem os ataques aéreos dos fascistas. Ele pertencia a uma «unidade especial» que surgia sempre que se esperava um ataque de pilhagem por parte dos alemães. Esse grupo estava encarregado de levar para lugar seguro os tesouros que ainda era possível salvar nos conventos, castelos e museus. Três oficiais peritos em arte chegavam sempre um dia antes para seleccionar e marcar os objectos mais preciosos. O próximo destino seria a pequena cidade de Puchkine, que incluía apenas, a bem dizer, o Palácio de Alexandre e o Palácio de Catarina, grandes parques e lagos com jorros de água e grutas. As casas de habitação em redor desses palácios não apresentavam qualquer interesse e podiam deixá-las cair nas mãos dos alemães, como sucedera já com centenas de outras.

Mas havia o Palácio de Catarina, esse magnífico edifício, com as suas colunas e as suas estátuas de mármore, as abóbadas cobertas de ouro, ou os campanários em forma de cúpula da sua igreja, as suas janelas de ferro forjado, com cornijas ricamente adornadas de esculturas, e os soberbos jardins de estilo francês inspirados em Versalhes. O valor das obras de arte que ali se encontravam era difícil de calcular. E entre elas encontrava-se uma obra única no mundo, impossível de reconstituir: uma sala de 11,5 por 10,5 metros e com a altura de 6 metros. Ali podiam ver-se vinte e duas maravilhosas obras em madeira, cento e cinquenta mosaicos, grinaldas, esculturas e armários, tudo composto numa só pedra com tons que variavam entre o ouro mais brilhante e o castanho tremeluzente: a Sala de Âmbar. Durante mais de duzentos anos, esta sala do Palácio de Catarina, apreciada por todas as czarinas e por todos os czares, continuara a ser embelezada com novas obras de âmbar, quadros e frescos, de putti, assim como com mosaicos de jaspe multicolor adornados com âmbar, obra de Rastrelli, o arquitecto imperial, amante da czarina Isabel.

A Sala de Âmbar.

Uma sala inteira construída de «pedra de sol».

Depois de se ter visto uma vez era impossível esquecê-la. A beleza incrustara-se nela, a luz refractava-se nos seus milhares de mosaicos e de esculturas.

Os três oficiais do Exército Vermelho peritos em arte tinham chegado a Puchkine dois dias antes. Em contacto telefónico constante com o general Sinoviev, informaram-no de que os bombardeiros alemães atacavam os arredores de Leninegrado, assim como Puchkine, embora Sinoviev já o soubesse há muito tempo.

— O que se passa na frente não me interessa! — gritou ele ao telefone, batendo com o punho fechado sobre a secretária, de tal modo que isso se ouviu distintamente em Puchkine. — Pode salvar a Sala de Âmbar? É tudo quanto tem a comunicar-me. Consegue fazê-lo?

— Dificilmente... — confessou o mais antigo dos oficiais, um militar que trabalhava como historiador de arte no Museu Nacional Russo, sobretudo encarregado da segurança das salas onde se expunham as mais belas peças. — Podemos apenas proteger as paredes. Já tinham começado a fazê-lo antes da nossa chegada.

— O que é que o impede de desmontar a sala? — gritou Sinoviev, exaltado.

— O tempo, camarada general.

— Mas os alemães não estão ainda em Puchkine!

— Mas estarão daqui a três ou quatro dias, o mais tardar. Três dias não são suficientes para tirar tudo.

— Temos braços suficientes! — gritou Sinoviev, incapaz de se dominar. — A Sala de Âmbar nas mãos dos alemães! — Esta ideia despedaçava-lhe o coração! — Arranje todos os trabalhadores de que precisar.

— Todos os homens e mulheres ainda válidos foram requisitados para trabalhos de terraplanagem. Estão previstas três cinturas de defesa.

— Estou ao corrente disso!

O general Sinoviev esfregou a nuca e os olhos. A última entrevista com o general Zhukov permanecia ainda fresca na sua memória. — Basta-lhe apanhar mulheres na rua e fazê-las ir trabalhar na Sala de Âmbar! É preciso salvá-la! Compreenda-me: É preciso!

— Tenho também necessidade de dezoito a vinte camiões...

Sinoviev respirou fundo. Vinte camiões.

— Perdeu a cabeça? — disse num tom mais calmo. — Sabe bem que...

— Preciso de vinte viaturas para transportar a Sala, camarada general. Tal é a situação. Acha que devemos levar os mosaicos aos pedações em sacos, quebrar os frisos, cortar as cabeças, retirar os quadros das suas molduras, rasgar as pinturas dos tectos? Os painéis de madeira devem ser desmontados em bloco, as portas, as estatuetas, os frisos, as máscaras... Se não for assim, mais vale fazer ir imediatamente pelos ares a Sala de Âmbar.

— vou ver o que posso fazer — respondeu o general Sinoviev com voz cansada, pesada pelo desgosto e pelo desespero.

Tinha a cabeça apoiada na mão direita, enquanto com a esquerda segurava o auscultador. A sua Divisão da Guarda encontrava-se metida em buracos, alimentando com o seu sangue cada metro de solo sagrado da Rússia, mas a pressão das tropas alemãs continuava demasiado poderosa. Na zona de Puchkine e de Peterhof, o inimigo, que constituía o Grupo de Exército da Frente Norte, sob o comando do general-marechal-de-campo Wilhelm von Leeb —, integrando o 28.º Corpo de Exército, o 41.º Corpo Blindado, as 96.a e

121.a Divisões de Infantaria e o 50.º Corpo de Exército —, reforçado com a 1.” Divisão Blindada e, sobretudo, com uma das mais temidas divisões das SS, atacava sem descanso.

Ao todo, quinze divisões do Exército Vermelho opunham-se a vinte e nove divisões alemãs. Os russos descobriam pela primeira vez a superioridade numérica dos fascistas.

Leninegrado — um símbolo para Hitler.

E, mesmo no meio de toda a frente, a avalancha alemã lançava-se já sobre Moscovo.

O general Sinoviev fechou os olhos por um momento.

«Isto não pode ser», gritou interiormente. «Não, não é possível!» Mais de 500 000 crianças encontravam-se ainda na cidade, havia abrigos para 980 000 pessoas, 672 000 podiam esconder-se em trincheiras abertas à pressa, mas, em Leninegrado, o dobro dos habitantes esperava um milagre... não cair nas mãos dos alemães. E Sinoviev lembrou-se igualmente do general de divisão F. S. Ivanov. Quando Zhukov lhe perguntara como evoluía a frente em torno de Leninegrado, Ivanov, desesperado, respondera-lhe:

— Não sei até onde se estende a frente. Não sei coisa alguma!

Zhukov demitira-o imediatamente das suas funções.

O marechal tornara-se implacável, um oficial muito duro, um ser que desejara tornar possível o impossível: Leninegrado, que nunca fora vencida desde a sua fundação, em Maio de 1703, por Pedro, o Grande, Leninegrado devia permanecer vitoriosa.

Um exemplo para o imenso império russo.

Sinoviev inspirou e respirou fundo.

— Receberá camiões, camarada comandante, todos aqueles de que eu puder dispor — acabou por dizer, limpando novamente os olhos. — Se Zhukov vier a sabê-lo, terei a mesma sorte que Ivanov. Serei vergonhosamente demitido. Os camiões chegarão a Puchkine amanhã ou depois de amanhã, o mais tardar.

— Quantas viaturas, camarada general?

— Não sei. Há um grupo de tropa especial que eu já utilizei várias vezes... Alguns soldados que já salvaram milhões de objectos de valor. Vá, desmonte a Sala de Âmbar!

Pousou o auscultador e ficou sentado à sua secretária, cruzando as mãos e apoiando o queixo sobre elas. «Chegaremos demasiado tarde», pensou, cheio de tristeza. Os últimos relatórios diziam que o cerco dos alemães se apertava. O «colar de pérolas», os arredores de Leninegrado com os seus castelos em Petrodvorets, Puchkine e Pavlovsk, onde existia uma das mais ricas bibliotecas da Rússia, ficaria perdido para sempre.

— Que posso eu fazer? Meu Deus, ajuda-me! Que fazer?

Finalmente, Sinoviev enviou dez camiões para Puchkine, sem informar disso Zhukov.

— Avancem com isso dia e noite! — recomendara ao alferes Vechaiev, um rapaz robusto. — Cada hora conta. Se salvarem a Sala de Âmbar, a Rússia fará de vocês os heróis de Puchkine. Avancem... Avancem... Avancem!

E agora um dos camiões tinha um eixo partido. Encontravam-se espalhados na floresta, à beira de um atalho, dezanove soldados do Exército Vermelho, Lev Semionovitch que praguejava impiedosamente, e o tímido soldado Victor lanissovitch Solotvin, que queria aliviar-se atrás de uns arbustos e que acabava de descobrir terra recentemente remexida e alisada.

Prudentemente, olhando em todas as direcções, como um cabrito, de ouvido à escuta e com o coração a bater desordenadamente, Solotvin avançou de árvore em árvore através da floresta, para se esconder, pronto a gritar em caso de ataque.

Que outra coisa poderia fazer? A sua metralhadora encontrava-se no fundo do quinto camião. Só Vechaiev levava uma pistola à cintura; ele, Solotvin, trazia apenas consigo um pequeno canivete, que só servia para cortar um pedaço de salsicha ou um pão, e mesmo assim com dificuldade, pois a lâmina, com pelo menos uns vinte anos de uso, estava gasta. Seu pai, lanis Sergueievitch, oferecera-lho quando ele envergara o uniforme para deter os agressores, aqueles a quem o pai chamava «os bandidos alemães».

— Um canivete pode servir — dissera-lhe lanis —, para abrir latas com a ponta, para fazer um orifício ou para cortar. Não o percas, meu filho. Esse canivete pode salvar-te a vida.

Victor lanissovitch tirou então o canivete paterno das calças sujas, abriu a lâmina ridiculamente pequena e continuou a seguir os rastos da terra remexida. A uns quarenta metros da estrada, chegou a um grande buraco, com cerca de dois metros de profundidade. Encontrava-se coberto por arbustos, e dos lados saíam raízes como uma barba hirsuta... Sim, e Victor lanissovitch viu então um monte de folhas secas... um pouco estranho para um fosso que cheirava a mofo e a terra húmida.

Solotvin apertou ainda com mais força o cabo de madeira do seu canivete, com a ponta para a frente, prestes a bater-se, com as pernas afastadas. Para ele, era claro: aqueles ramos secos escondiam qualquer coisa, deviam proteger qualquer coisa que ali se encontrava.

— Sai daí! — ordenou, espantado com a sua voz brusca e firme. — Mãos ao ar e fora daí! Não vale a pena esconderes-te!

Ficou à espera de pé atrás de uma árvore, com o canivete afastado do corpo. «Se for um espião», pensava Victor com o coração a bater aceleradamente, «irá compreender-me? Conhecerá o russo? Mas os alemães não cometerão certamente o disparate de enviar agentes que não saibam o russo. Ou será um cidadão soviético? Um desses de que cada vez ouvimos falar mais, um derrotista, um traidor, um membro da sinistra Quinta Coluna, colaborador, uma pessoa que trabalhe para os alemães, que envie sinais luminosos durante a noite para indicar aos bombardeiros inimigos, locais particularmente estratégicos?» Uma mulher de Leninegrado — falara-se dela por toda a parte, como exemplo — escrevera no seu diário íntimo, que fora descoberto: «Seremos realmente libertados em breve? Pouco importa como são os alemães. Não pode ser pior do que é agora. Perdoai-me, Senhor...»

Uma inimiga do comunismo. Fora fuzilada, a traidora.

Mas quem se esconderia naquele buraco?

Repetiu com uma voz ainda mais cortante:

— Sai daí!

Dizendo isto, Solotvin desejava secretamente que ninguém se encontrasse ali, que a cova estivesse abandonada e que ele não precisasse de se bater. Mas não teve essa sorte. Os ramos secos começaram a mexer-se, foram afastados dos lados, pondo assim a descoberto uma pequena entrada redonda de um fosso cavado na terra. uma mão suja afastou os ramos, depois uma cabeça apareceu na abertura e um corpo frágil içou-se para fora.

Solotvin baixou-se atrás da árvore que o protegia e esperou. Pôde depois distinguir um capote alemão, cabelos desgrenhados, vestuário manchado de terra seca e um rosto sujo, de maçãs de rosto salientes. «Olha, olha», pensou Victor lanissovitch, e o seu medo desapareceu tão depressa como aparecera. «Um espião alemão! De verdade. E com uniforme. Eles estão tão certos de conquistar o nosso país que se escondem entre nós de uniforme. Mas nós ainda aqui estamos, meu amigo, e ficaremos. Não sabes o que Estaline nos disse, no dia três de Julho às seis e meia da manhã, na Rádio Moscovo? ”Nem um único vagão, nem uma locomotiva, nem um quilo de cereal ou um litro de combustível devem cair nas mãos do inimigo. Nos territórios ocupados, é preciso que grupos de resistentes, a pé ou a cavalo, se organizem para conduzir uma guerra de desgaste, fazendo saltar pontes e estradas, incendiar os depósitos, as casas e as florestas. É preciso perseguir o inimigo até à sua destruição...”»

Solotvin respirava ruidosamente pelo nariz.

— Mãos ao ar! — gritou de novo. — Atrás da nuca! Aproxima-te, aproxima-te devagar. Disparo imediatamente, se desobedeceres...

O alemão parecia não compreender. Julgava que Solotvin estava armado. Da estrada chegava agora o bater de martelos e uma grande algazarra. Vechaiev fazia içar o camião acidentado para cima de umas tábuas. O alemão aproximou-se lentamente de Victor lanissovitch, com as mãos cruzadas sobre a nuca. Subiu até à beira do fosso, erguendo-se então. Solotvin ordenou-lhe:

— Por aqui. Não percas tempo, meu rapaz. A guerra acabou para ti. Se te deixarem vivo...

O alemão indicou com um sinal de cabeça que compreendia o russo, continuando a avançar, e foi nessa altura que Solotvin, espantado, descobriu que, sob o capote alemão, o soldado trazia uma saia em vez de calças, que os cabelos lhe chegavam aos ombros e que por detrás das madeixas de cabelos que lhe caíam sobre as faces havia um rosto mais feminino do que masculino.

Victor lanissovitch saiu de trás do tronco da árvore, sempre com o canivete na mão, e abanou a cabeça à espera que aquele enigma germânico se aproximasse dele até a uma distância de três passos. Examinou novamente o vulto de alto a baixo, o seu olhar deslizou pelo vestido de riscas azuis e brancas e pelo avental branco completamente sujo. Na gola, bem visível, um broche redondo com a insígnia da Cruz Vermelha.

— Olhem para isto! — exclamou Solotvin, baixando o seu canivete. — Disfarçada de enfermeira! E conhece o russo. Vocês já são muitos, espiões alemães!

— Eu não sou uma espia — replicou a rapariga num russo irrepreensível.

Solotvin sacudiu a cabeça várias vezes com um grande sorriso. — Fala o russo como se o tivesse aprendido de nascença. Que fazias naquele buraco? Porque o cavaste?

— Espero os alemães, soldado do Exército Vermelho.

— Ah! Ah!

Solotvin estava satisfeito. Ao procurar um lugar bom para defecar, descobrira e capturara uma espia. Era preciso abrir os olhos em toda a parte por onde se passava. Sim, ele iria agora ser citado no quadro de honra, talvez mesmo receber uma condecoração ou uma promoção como soldado de primeira classe. Isso dependia da importância daquela espia para a União Soviética.

O alferes Vechaiev abriu muito os olhos ao ver Victor lanissovitch sair da floresta acompanhado por um soldado alemão.

— Um inimigo entre nós! — gritou imediatamente levando a mão à pistola.

Mas precisou de menos tempo que Solotvin para ver a saia e o avental, para reconhecer de imediato que se tratava de uma mulher. Estendeu para ela o punho fechado.

— O que é isto? — vociferou ele.

— Uma espia alemã — respondeu Solotvin. — Estava metida num buraco. Descobri-a no fundo de um fosso...

— E ainda está viva, ty merzavkal

Será necessário traduzir esta expressão? É melhor não o fazer. Poder-se-ia esperar de Vechaiev outra coisa que não fosse a pior grosseria?

Solotvin corou ligeiramente e baixou a cabeça envergonhado diante da rapariga, mesmo tratando-se de uma inimiga.

— Estou desarmado, camarada — confessou, acabrunhado. — Tenho apenas comigo um canivete.

— E isso não basta, ty chlioukhal

Victor lanissovitch corou ainda mais com o insulto.

— Os dez dedos bastavam para a estrangular, soldado Solotvin! Andas a passear com uma espia alemã. Talvez quisesses limpá-la para a beijares.

Respirou fundo e, sem se preocupar com o ferimento na testa da rapariga, tirou a pistola do coldre e declarou brutalmente:

— Não há tempo a perder com discussões...

— Não sou uma espia — repetiu a rapariga, olhando para o cano da arma que Vechaiev lhe apontava. Uma simples pressão do dedo separava-a da noite eterna. — Quero falar a um oficial.

— Um oficial — repetiu Vechaiev, imitando-a. — Muito simples. Que género de oficial, minha pombinha? Talvez um comandante, ou um coronel, ou talvez mesmo um general? Temos todos à mão. Basta-te escolher.

— Um general seria preferível — respondeu ela. — Conduzam-me junto do vosso.

— Era uma sorte termos aqui um general! — A voz de Vechaiev estava cheia de um desprezo glacial. — Não queres também uma limusina para te transportar? Volta-te! Volta-te!

A rapariga ficou imóvel. Voltar-se... Receberia uma bala na nuca, pura e simplesmente, era o que isso significava. O método mais expedito.

Limpou o rosto com a mão, afastou os cabelos degrenhados e fitou o olhar implacável de Vechaiev. Compreendeu então que ele seria capaz de lhe disparar para a testa.

— Não sou alemã — insistiu com voz forte mas cheia de medo. — Sou russa. Vossa camarada...

— Muito bem! — exclamou Vechaiev com a boca torcida, numa expressão de repugnância. — E eu sou irmão de Estaline. No entanto, ele não acreditaria nas minhas palavras, se as ouvisse, assim como eu não acredito em ti. Se queres mentir, pelo menos diz coisas verosímeis. Volta-te!

— Venho de Puchkine, camarada.

— com um uniforme alemão! Queres que te cuspa na cara, grande traidora? Nós vamos a caminho de Puchkine, e ela vem de lá e esconde-se na floresta. Espia! Espia nojenta!

— Tenho uma missão! Conduzam-me junto do vosso general. Depressa! Dentro de dois dias os alemães ocuparão a cidade. A artilharia deles já está a bombardeá-la. Posso explicar tudo. Foi por acidente que fui descoberta por este soldado do Exército Vermelho — apontou para Solotvin. — É preciso que eu fale com o vosso general.

— Eu é que decido o que tu deves fazer! — A voz de Vechaiev tomou uma entoação metálica. — Volta-te! Nem mais uma palavra! Para mim, um espião não é um ser humano.

O general Vitalii Bogdanovitch Sinoviev ligara para Puchkine. O oficial perito em arte informou-o de que os alemães bombardeavam já a cidade, que os seus aviões tinham feito grandes estragos no Palácio de Catarina e que era impossível continuar a desmantelar a Sala de Âmbar para a salvar.

— Devemos sair de Puchkine hoje mesmo — admitiu o perito.

Sinoviev ouviu pelo telefone as explosões dos obuses alemães. Não recebera quaisquer notícias da frente. Pareciam estar em pânico ali.

— O avanço dos fascistas é irresistível. Uma divisão das SS dirige-se já sobre Puchkine.

— Sei tudo isso!

Sinoviev varreu com o olhar a carta estendida na sua frente, sobre a secretária. Instalara o seu quartel-general num pequeno castelo do campo que em vida do czar pertencera a um rico boiardo, um certo príncipe Vladimir Nikolaievitch Tchepikov. O Estado-Maior preparava-se já para fazer as malas. O general Popov, encarregado de defender a cidade com doze divisões reunidas à pressa, esperava-o em Leninegrado. Zhukov fez saber que se impunha a retirada imediata. E quanto a isto não havia alternativa possível. Tinham agora necessidade de todos os homens disponíveis para defender Leninegrado. Uma retirada estratégica. Que triunfo se a Sala de Âmbar, carregada em dez camiões, chegasse a Leninegrado com a divisão!

— Vem um comboio a caminho, camarada general.

— Nunca é demasiado tarde! — gritou Sinoviev, quase histérico. — E se sairmos de Puchkine só cinco minutos antes da chegada dos alemães?

— Não conseguiremos. Um desmantelamento apropriado leva pelo menos três ou quatro dias. Não temos tempo. Deixaremos o Palácio de Catarina dentro de três horas. O meu coração sangra, camarada General, mas isso não basta para deter os alemães.

Sinoviev pousou o auscultador. Kovaliov, seu ajudante-de-campo, entrou e anunciou-lhe uma visita.

— É uma rapariga — disse com ar perplexo. Traz um capote alemão e a farda de enfermeira da Cruz Vermelha por baixo. Foi descoberta escondida num buraco da floresta, fala russo e exige falar ao camarada general.

— Trata-se de uma espia, Igor Ivanovitch? — O general apoiou o queixo no colarinho do uniforme. — Por que motivo a trazem para aqui? Onde está ela?

— Espera em frente da porta.

— Fuzilem-na!

— Ela quer falar-lhe primeiro, camarada general. Sabe o que a espera. Mas...

— Mande-a entrar, Igor Ivanovitch.

Na floresta, antes que o alferes Vechaiev disparasse a sua pistola para atingir a cabeça da prisioneira, passara-se algo de inesperado.

Com efeito, a espia dissera:

— Venho da Sala de Âmbar.

E essa pequena frase alterara completamente a situação. Lev Semionovitch baixara a sua arma e engoliu várias vezes em seco, como se tivesse a garganta apertada. Depois lançou um olhar furtivo a Solotvin e aos outros soldados do Exército Vermelho que o rodeavam, prestes a assistir à execução, e decidiu não revelar a sua fraqueza, mostrando-se impiedoso.

— E então! — replicou com voz aborrecida. — Agora ou dentro de algumas horas não faz qualquer diferença! De qualquer maneira, será fuzilada; Victor lanissovitch e levgueni Nikitovitch, levem-na ao comandante.

Cedeu até um camião para esse efeito, com risco de ser censurado pelo general Sinoviev. A Sala de Âmbar. Um nome mágico. Se realmente havia qualquer relação entre aquela rapariga e a Sala de Âmbar, era necessário que o general a ouvisse. Seria ele a decidir sobre a sorte dela.

— Se tentares escapar... — disse como aviso.

Mas a rapariga limitou-se a abanar a cabeça. O ferimento deixara de sangrar e uma crosta de sangue seco sulcava-lhe a testa.

— Porque havia de fugir, camarada?

— Não me chames camarada, puta ordinária! — gritou Vechaiev. Sabes o que é ser um camarada? É uma honra! Proíbo-te de manchares a minha honra...

Deu-lhe então uma bofetada tão brutal que chegou a recear que a cabeça da prisioneira lhe saltasse do pescoço. Mas esse gesto permitiu a Vechaiev não ficar malvisto. Voltou-se, dirigiu-se com passos pesados para o camião acidentado e decidiu continuar a marcha na direcção de Puchkine. Contudo, os outros oito camiões eram agora inúteis, mas o alferes não o sabia.

Deu ordens para a partida e instalou-se na cabina do primeiro camião. Logo de seguida, tocou longamente a buzina, dando assim sinal para que se reiniciasse o movimento da coluna.

O que ele também não sabia era que se dirigia directamente para as tropas alemãs.

A porta do gabinete de Sinoviev abriu-se, o ajudante-de-campo Kovaliov fez sinal à prisioneira para se aproximar e ela entrou. A rapariga continuava a ter a mesma aparência, pois não pudera lavar-se ou limpar-se e encontrava-se coberta de lama.

Sinoviev fez uma careta e indicou-lhe, com um gesto, que ficasse à porta. Julgou sentir um cheiro horrível a podre, mas isso devia-se certamente à sua imaginação. Reparou no capote alemão, no traje de enfermeira, nos cabelos gordurosos colados à cara, no rosto de maçãs salientes, nas pernas cobertas por meias grossas e nos sapatos pesados. «Como será ela depois de lavada?», pensou. «Liberta daquele traje horrível, penteada e mesmo um pouco maquilhada, poderia até ser bonita.»

— Então? — começou por dizer com voz rude. — Que queres? Desejas fazer uma confissão? Compreendes o russo?

— É a minha língua materna. — Voltou a cabeça para Kovaliov. — Posso tirar o capote? Só o vesti porque fazia muito frio no buraco.

— És uma colaboracionista, não és? — perguntou Sinoviev com ar glacial. — Querias passar para o lado dos fascistas!

— A minha intenção era deixar-me surpreender. Dentro de dois dias os alemães estarão lá...

— Oh, como ela está bem informada. — O general voltara-se para o seu ajudante. — Queria fazer-se surpreender. Uma maneira como qualquer outra de desertar. Olhou novamente para o rosto da rapariga. — Por que motivo estás aqui? Esperas ser agraciada? Desengana-te, traidora.

— Chamo-me Jana Petrovna Rogovskaia.

— És filha adoptiva ou verdadeira?

— Verdadeira. O meu pai era Piotr Borissovitch Rogovski.

Um leve arrepio, quase imperceptível, passou pelo corpo do general Sinoviev. Inclinou-se sobre a secretária e examinou de novo a rapariga dos pés à cabeça.

«Não posso acreditar», pensou, «ela deve mentir com a mesma facilidade com que respira.»

— Rogovski? O perito em pintura do século dezanove no Ermitage?

— Sim, era meu pai.

A rapariga deixou cair o capote alemão no chão e ficou em frente de Sinoviev com o seu traje de enfermeira. Desembaraçada do capote sujo, tinha agora melhor aspecto. Estava suja de lama, é certo, mas a sua silhueta era bela. com uma cintura estreita e os seus seios bem identificados por baixo da blusa, mostrava-se extremamente atraente.

— Morreu há três anos com uma crise cardíaca. A invasão do nosso país pelos alemães revoltou-o até ao mais íntimo do seu ser.

O general Sinoviev cruzou as mãos por cima do grande mapa da cidade de Leninegrado e dos seus arredores. Conhecera Rogovski. Encontrara o famoso perito e conversara com ele por três vezes. Uma delas quando ele estava sentado, recolhido, diante de um retrato da czarina, a segunda quando o perito se achava na sala dos impressionistas e a última quando o descobrira perante um quadro de Leonardo da Vinci. Nessa altura, falaram longamente sobre os quadros e sobre os grandes génios que os tinham pintado. Nesse género de conversa, quem se iria lembrar de fazer confidências e dizer que tinha uma filha chamada Jana?

— Continua — convidou Sinoviev com voz mais suave. — Que procura a filha de Rogovski entre os alemães?

— Sou noiva de Nikolai Mikhailovitch Wachterovski.

— Nunca ouvi esse nome.

— É o filho de Mikhail Igorovitch Wachterovski.

— Também não o conheço.

— com efeito, chama-se Michael Watcher. É o responsável pela Sala de Âmbar, em Puchkine.

A cabeça de Sinoviev inclinou-se para a frente, como se estivesse prestes a saltar por cima do mapa, e os músculos em torno dos seus olhos puseram-se a tremer.

— Responsável pela Sala de Âmbar? Que queres dizer com isso?

Kovaliov verificou, surpreso, que o general falava mais alto do que habitualmente.

— vou explicar-lhe, camarada general.

Jana olhou à sua volta. Os seus joelhos puseram-se bruscamente a tremer. Mal se tinha de pé. «Ele acredita em mim», pensou, agarrando-se a Kovaliov. «Não serei fuzilada; tenho o direito de continuar a viver, posso realizar a minha missão.» De repente, tudo começou a girar à volta dela: o general, a secretária, as janelas, os motivos que decoravam o tecto e as paredes. Antes mesmo que Sinoviev pudesse reagir, Jana afastou-se de Kovaliov, aproximou-se de uma das cadeiras douradas cobertas de brocado vermelho e deixou-se cair sobre ela.

— É... é uma longa história — murmurou Jana esforçando-se por falar com clareza apesar da sua debilidade. — Uma velha herança que remonta a duzentos e vinte e cinco anos exactamente.

— Conte, Jana Petrovna.

Sinoviev fez um sinal a Kovaliov.

— Traga-nos vodca e qualquer coisa para comer. Depressa.

Kovaliov aquiesceu com um gesto de cabeça, deu meia volta e saiu da sala. «Que se está a passar aqui?» pensou, chamando um ordenança para lhe transmitir os desejos do general. «Como é que a situação se alterou tão bruscamente? Ela trazia um uniforme alemão e estava escondida num buraco. Como esquecer tal coisa? Mesmo que fosse filha de Estaline, se se passasse para o inimigo devia ser fuzilada.»

— Deixar-me surpreender pelos alemães fazia parte do nosso plano — disse a rapariga, encostando a cabeça à parede forrada de damasco. — Nikolai partiu para Leninegrado, a fim de cumprir o seu dever como defensor da cidade. Tem vinte e três anos...

— E você, Jana?

— Dezanove. Conhecemo-nos há dois anos, quando Nikolai e o meu pai foram examinar os armários de âmbar do Ermitage. Apaixonámo-nos imediatamente um pelo outro e o meu pai não se opôs ao descobrir quem era Michael Wachter, o pai de Nikolai. Há um ano que vivemos juntos em Puchkine, numa das alas do Palácio de Catarina, onde a família Wachterovski habita há duzentos e vinte e cinco anos, desde a época da czarina Isabel. — Jana fechou os olhos um instante, quase não acreditando que tinha escapado à execução. Gostaria de poder chorar, mas apenas permitiu a si própria estremecer dos pés à cabeça. — E eis que, de repente, os alemães se encontram em frente de Puchkine. O pai Mikhail sempre predisse que os alemães se apoderariam do lago Ilmen e de Novgorod, que transporiam o Louga e que seguiriam ao longo do Volkhov em direcção a Leninegrado. «Não pouparão Puchkine», disse ele. «Levarão a Sala de Âmbar e mais ninguém saberá o que será dela. Ficará perdida para sempre. Por que motivo não vem ninguém a Puchkine para a desmontar e a levar para longe?» Telefonou muitas vezes e foi a Leninegrado, mas toda a gente estava ocupada a salvaguardar os tesouros mais preciosos do Ermitage nos subterrâneos da Catedral de Santo Isaac. Quando chegaram, demasiado tarde, a Puchkine (os alemães foram mais rápidos) os nossos só puderam salvar os quadros, as esculturas, os móveis, os livros, os tapetes e as porcelanas. Já não havia tempo para desmontar a Sala de Âmbar.

— Eu sei.

Sinoviev lançou um olhar impaciente para a porta, onde estava a vodca e a comida? Não era assim tão complicado levar qualquer coisa para comer!

— Falei com o marechal Zhukov. Só os atiradores lhe interessam e não aqueles que salvam obras de arte. Talvez tenha razão. Certamente que a tem. Devemos conseguir deter a agressão alemã.

— É exactamente o que dizia o paizinho Mikhail. — Jana dominara a sua fraqueza, a sua respiração voltara a ser regular e fitava Sinoviev. — Foi então que elaborámos um plano. Se os alemães matassem o paizinho, não restava ninguém para velar pela Sala de Âmbar. Eu era a única pessoa que podia permanecer na proximidade dela, segui-la para onde a levassem, não a perder de vista um momento. Bastava para isso transformar-me numa enfermeira alemã, pouco susceptível de ser controlada, com a possibilidade de ir para qualquer sítio sem me fazer notar. A nossa ideia era a seguinte: devia deixar-me ultrapassar pelas tropas alemãs, bem escondida no fundo de um buraco, e, após a passagem deles, voltar a Puchkine, dizendo que me tinha perdido. E ficaria de novo junto da Sala de Âmbar, que nunca devia perder de vista. Não acha que é um plano judicioso, camarada general?

Jana respirou fundo. Logo a seguir, viu o ordenança trazer uma bandeja com vodca, chá e biscoitos. Kovaliov colocou-a sobre uma mesinha do outro lado da sala.

— O paizinho arranjou, não sei como, o uniforme da Cruz Vermelha e um capote alemão, aquando de um ataque no Louga, segundo ele disse. Depois dirigimo-nos para a floresta. Ali abrimos um buraco, onde eu me meti e fiquei à espera. O paizinho disse-me que não seriam mais do que quatro dias, talvez menos. «Que Deus te abençoe, minha filhinha», disse-me ele. «Se não voltarmos a ver-nos e se Nikolai sobreviver à guerra, tenta ser uma boa esposa para ele. E não deixes nunca a Sala de Âmbar, seja qual for o destino dela. Uma enfermeira pode meter-se por toda a parte.» Era esta a minha situação quando fui descoberta pelo soldado Solotvin, que me levou junto do alferes Vechaiev. Este queria fuzilar-me como espia.

Jana lançou sobre a mesa um olhar esfomeado. O chá cheirava deliciosamente bem, os biscoitos difundiam um aroma a canela e a mel. Ela sentia água na boca.

— Acredita em mim, camarada general?

— Acredito, Jana.

A voz de Sinoviev era apaziguadora.

— Coma e beba primeiro. Depois conte-me o que sabe a respeito da família Wachter ou Wachterovski.

Passou-se um longo dia e depois uma noite. Na manhã seguinte, o comando da divisão retirou-se, o pequeno castelo ficou abandonado no parque, as colunas de soldados dirigiram-se apressadamente para Leninegrado.

Jana Petrovna voltou de bicicleta para a floresta e ocultou-se novamente no fundo do buraco.

As tropas alemãs estavam apenas a nove quilómetros.

Como seria de esperar, a unidade especial do alferes Vechaiev, última esperança do general Sinoviev, chegou demasiado tarde a Puchkine, pelo menos para salvar os elementos mais preciosos, como as decorações murais da Sala de Âmbar. O alferes nem sequer chegou a Puchkine. Os oito camiões com a estrela vermelha avançavam despreocupadamente quando foram surpreendidos pelo avanço dos alemães e se viram confrontados directamente com a 1.a Divisão de Blindados, que se encontrava às portas da cidade. Os aviões tinham atingido o Palácio de Catarina, assim como a Grande Sala. Já nada restava dessa sala magnífica e cheia de fausto, uma das mais notáveis obras-primas de Rastrelli, o arquitecto da corte. Um grande número de salas vizinhas tinha sido também gravemente danificado. A Sala de Âmbar, protegida pelas placas de madeira colocadas pelas mulheres, ficou intacta.

Vendo os primeiros carros alemães avançarem sobre ele, Vechaiev não pensou em resistir nem em fugir. Depois de ter decidido abandonar o camião com o eixo partido e ter enviado outro com Solotvin e a espia alemã, sabia, no fundo de si mesmo, que esta acção se arriscava a ser a última daquela guerra, pelo menos no que lhe dizia respeito. Desejava apenas, secretamente, nunca cair nas mãos dos SS. Aquilo que ouvira contar deles causava-lhe calafrios. Agora acabara-se tudo, mas, pelo menos, tratava-se de blindados alemães, não de SS... Vechaiev deu ordem à sua coluna para parar e desceu do camião, seguido pelos outros soldados do Exército Vermelho; afinal, era ele o chefe e tinha de dar o exemplo. Ergueu os braços e os seus homens imitaram-no, conservando-se junto das suas viaturas. Os seus rostos denotavam inquietação e nos seus corações havia a esperança de serem tratados humanamente e de irem enfrentar um cativeiro suportável. Sádicos impiedosos havia-os em todos os povos. Esperava que nem todos os alemães fossem assim.

— Meus caros camaradas — gritou Vechaiev aos seus homens — conservem os braços bem no ar. A guerra, para nós, acabou. Nada podemos fazer. Eu ficaria muito feliz por poder defender a pátria. Mas como podemos opor-nos ao destino? Permaneçamos corajosos, mesmo no cativeiro. No fundo, continuamos a pertencer à Guarda.

O primeiro carro alemão parou mesmo diante deles, enquanto Vechaiev pensava, com o coração prestes a rebentar: «Eles vêm sobre nós. Vão esmagar-nos! Será preciso saltar para a estrada e fugir para a floresta? Dispararão sobre nós, mas sempre será melhor do que ficarmos esmagados pelos carros.»

No entanto, permaneceu imóvel, cerrando os dentes e mantendo uma expressão impassível. E quando o carro de combate parou mesmo junto dele, com um ruído ensurdecedor, e a cabeça do comandante, um jovem tenente, apareceu no alto da torre, Vechaiev soltou um suspiro de alívio e pensou no destino. «Obrigado», disse ele muito baixo. «Obrigado, destino. Agora sei o que significa olhar a morte de frente. Nunca o esquecerei, se sobreviver a esta guerra. Nunca.»

Uma divisão de blindados não sabe que fazer com prisioneiros. Para onde ir com eles? Levá-los nos carros é impossível. Deixar alguns soldados para trás para os vigiar... também não é solução, pois cada homem é necessário na tripulação de um carro. Vechaiev continuava a reflectir enquanto o jovem tenente descia da torre e um civil aparecia atrás dele, a correr. Adivinhava-se imediatamente que este último era russo. Usava um boné com pala, um fato banal, botas grosseiras e, por cima das calças, uma camisa azul e ampla, o traje tradicional dos aldeões aos domingos.

Conservando as mãos no ar, Vechaiev franziu os sobrolhos e olhou-o com ar desaprovador. O russo, um homem dos seus sessenta anos, colocou-se junto do oficial e ficou à espera. Os alemães tinham-no levado como intérprete quando verificaram que Stepan Fiodorovitch Pivoianov — era o seu nome — compreendia a língua deles. Trabalhara de 1927 a 1932 numa quinta da Prússia Oriental, onde aprendera não só a falar o alemão corrente, mas também a praguejar alegremente, dado o bom reportório dos camponeses dessa região.

Vechaiev fez uma careta de repugnância e conteve-se para não cuspir sobre Pivoianov. Um colaboracionista, cúmplice daqueles salteadores, que traduzia as ordens deles, traía a pátria e os seus para encher a barriga sem escrúpulos e talvez mesmo para roubar também qualquer coisa. Porco! Havia traidores por toda a parte. Vechaiev pensou na espia alemã que encontrara escondida e a sua respiração alterou-se.

— Vamos, cabeça-de-nabo, diz então o que quer o fascista! — exclamou Vechaiev, olhando o tenente com um ar inofensivo, como para o saudar amigavelmente.

Sem nada compreender, o oficial reconheceu perfeitamente a palavra fascista, uma expressão internacional. Afastou as pernas e meteu os dedos no cós das calças.

— Se ele tornar a repetir «fascista», faço-lhe saltar os miolos — ameaçou o jovem tenente. — Vamos, traduz!

Stepan Fiodorovitch obedeceu e repetiu as palavras dele em russo. Pouco impressionado, Vechaiev contentou-se em dominar a sua cólera.

— Traduz — insistiu o tenente. — Agora são prisioneiros e vão continuar o vosso caminho para sul. A infantaria alemã segue-nos a três quilómetros de distância. Vão apresentar-se a ela. Fugir é absurdo, seriam apanhados. É inútil arranjarem fatos civis! Seriam tratados como resistentes e imediatamente fuzilados. Como soldados, terão possibilidades de sobreviver.

Pivoianov traduziu com zelo. Vechaiev deixou cair os braços e humedeceu os lábios.

— Vais acompanhar-nos? — perguntou ao intérprete.

— Não. Continuarei com eles.

— Que pena! Teríamos muito prazer em te enforcar.

— Que diz ele? — perguntou o jovem tenente desconfiado.

— Vai obedecer às ordens, senhor oficial. — Pivoianov sentiu subitamente pressa de se ir refugiar no carro. — Irá com os seus homens ao encontro da infantaria.

— Muito bem.

O jovem oficial fez um sinal. Três dos seus artilheiros avançaram com granadas na mão. Petrificado, Vechaiev viu-os levantarem os capots dos camiões, lançarem para lá as granadas e saltarem para o lado. Os motores explodiram com uma detonação surda que arrancou as chapas metálicas. As peças dos motores saltaram no ar. Em poucos segundos, os camiões 4, 6 e 7 transformaram-se em braseiros ardentes. Os homens de Vechaiev atiraram-se ao chão e afastaram-se da estrada, rolando sobre si mesmos. O camião 7 desintegrou-se com um estrondo ensurdecedor. Um calor horrível irradiava da viatura em chamas e chegava até Vechaiev.

O tenente fez novamente sinal.

— Descansar! — disse aos seus homens. Pivoianov baixou-se e olhou para Vechaiev.

— Também eu sou prisioneiro de guerra — disse como que a desculpar-se. — Pense de mim o que quiser. Deverei deixar-me fuzilar? Tenho uma boa esposa e nove filhos, três dos quais se encontram em Leninegrado para defender a cidade. Que hei-de fazer? Sou um pobre homem, camarada, talvez você tenha mais sorte. Irá para um campo de prisioneiros e poderá comer e ficar tranquilo. Pode dizer-se que tem sorte.

— Que o céu te amaldiçoe! — replicou Vechaiev com desprezo, numa voz surda. — Nem sequer mereces que te cuspam em cima. Nem mesmo que te urinem em cima. A urina soviética é demasiado boa para ti.

Afastou-se para um lado da estrada e viu com ar sombrio os soldados alemães voltarem a ocupar os seus lugares nos tanques, fecharem as escotilhas e prepararem-se para partir, enquanto Pivoianov corria até ao último blindado e se instalava junto do canhão. Depois, os motores começaram a trabalhar e os monstros de aço puseram-se em movimento, esmagando sob as suas lagartas o que restava dos camiões. Quando o último tanque passou em frente de Vechaiev, com um ruído infernal, Stepan Pivoianov trocou um último olhar cheio de ódio com o alferes. Pivoianov tinha vontade de chorar de vergonha. Mas achava que tinha o direito de sobreviver, levado pela esperança de voltar um dia a ver os seus nove filhos, sobretudo os três que se encontravam entrincheirados em frente de Leninegrado, esperando os alemães. Eles queriam participar na defesa da cidade.

Vechaiev reuniu os seus homens. Os carros alemães tinham desaparecido na floresta e até eles chegava apenas o ruído das lagartas de aço. Os camiões continuavam a arder dos dois lados da estrada, formando um quadro desolador.

— Camaradas — começou o alferes com voz comovida e grave—, ouviram o que foi dito. A infantaria alemã segue de perto os blindados. Pode estar aqui dentro de uma hora. Quem quiser pode fugir e esconder-se. A nossa missão terminou. Cada um é livre de decidir.

— Fugir é uma boa ideia. — O sargento Yemelian Mironovitch Sotov esfregou a testa com as duas mãos, com ar indeciso. — Mas depois, se nos apanham, fuzilam-nos como resistentes. Lev Semionovitch, que vais tu fazer?

Vechaiev tomara já uma decisão.

— Ficar na estrada e ir ao encontro dos fascistas — respondeu. — Mais vale um russo vivo, mesmo prisioneiro, do que um herói morto. O tempo da vingança chegará um dia. Esperá-lo-ei.

— Então, caros amigos, essa é também a minha opinião. — O sargento Sotov esfregou as mãos. — Ficar vivo é mais importante do que ser um corpo perfurado por balas a apodrecer. Talvez venhamos um dia a encontrar de novo Pivoianov e ele há-de pagar. Será fácil encontrar esse grande traidor. Terá de pagar a sua dívida. Vamos, a caminho.

Puseram-se em marcha, com Vechaiev na frente, no meio da estrada, depois de terem abandonado as armas, para mostrarem que não eram inimigos combatentes. Caminharam pela floresta durante três quartos de hora, antes de desembocarem num grande campo plantado com batatas e que estava a ser sobrevoado por uma enorme nuvem de corvos que crocitavam. Um sol pálido absorvia a humidade da última chuvada.

Ao verem a primeira viatura alemã descoberta, com uma camuflagem verde-acastanhada — um desses Kúbelwagen1 construídos pela Volkswagen —, Vechaiev ergueu as mãos e os seus homens pararam. A viatura deteve-se e dois oficiais saltaram de lá, de pistola em punho, enquanto o motorista apontava uma metralhadora ao pequeno grupo.

— Mãos no ar! — ordenou Vechaiev, e todos os braços se ergueram.

 

1 Viatura ligeira todo-o-terreno, descapotável e anfíbia. (N. da T.)

 

O primeiro oficial alemão, o comandante, começou a rir e baixou a sua arma.

— Os heróis são cada vez mais raros — disse para o outro oficial, um capitão. — Veja estes homens! Se isto continua assim, daqui a poucos dias poderemos banhar-nos no Neva.

Vechaiev não compreendeu uma palavra, como sucedera antes ao falar com o tenente dos blindados, mas foi o suficiente.

«O Neva», pensou. O rio divide-se em vários braços que atravessam Leninegrado. A Veneza do Leste! Recordou-se das pontes e das passagens com o seu velho esplendor, dos palácios dos príncipes e dos favoritos dos czares, do Palácio de Inverno, do Almirantado, das igrejas e das catedrais, da imensa e esplêndida perspectiva Nevski, do Ermitage, dos cais de granito com as suas largas escadarias que conduziam às margens do rio, decoradas com leões de pedra, com esfinges e imensos vasos e colunas. Evocou o Palácio de Mármore, a Praça dos Dezembristas, a soberba Avenida Rossi, onde as casas de colunas tinham conhecido a criação da primeira Escola de Bailados Russos, o Teatro Kirov, onde cantara Fedor Chaliapine, um baixo já lendário, e onde Tchaikovski apresentara o seu bailado O Lago dos Cisnes. Leninegrado e o Neva, a beleza feita pedra, o orgulho dos séculos passados. E agora um oficial alemão falava do Neva. Por outras palavras, queria apoderar-se da cidade situada à beira do rio. Mãezinha Rússia, defende-te!

— Nunca entrarão na cidade! — gritou Vechaiev. — Nunca enquanto houver o coração de um russo a bater.

— Que diz o palhaço?

O capitão lançou a Vechaiev um olhar de desprezo.

— Não faço ideia.

O comandante fez um sinal para trás. Aproximou-se uma segunda viatura.

— Tragam esses tipos. Eles que se vão juntar aos outros. Verifiquem a que unidade pertencem.

Um ajudante desceu da segunda viatura e fez um sinal enérgico a Vechaiev.

— A caminho! — gritou. — Não te faças caro! Vamos, recua! Vamos! — Depois gritou umas palavras que mortificaram profundamente cada um dos russos: — Davai! Davai! Biejatl A passo de corrida!

E Vechaiev pôs-se a correr pela estrada, na direcção da infantaria a que chegava, seguido dos seus homens, com os braços no ar e ofegantes, com o olhar fixo e olhando em frente até ouvir:

— Parem!

E pararam.

Daí em diante eram prisioneiros, a guerra terminara para eles. Talvez pudessem sobreviver, mas, entretanto, as lágrimas corriam pelos seus rostos sujos... e sentiam as gargantas apertadas.

Extractos de comunicados da Wehrmacht1:

Domingo, 14 de Setembro de 1941.

O desenrolar favorável das operações prepara novas vitórias a leste. Desde que as valorosas forças alemãs abriram uma brecha na frente fortificada de Leninegrado, o cerco da cidade progride irresistivelmente, apesar de uma resistência encarniçada...

Segunda-feira, 15 de Setembro de 1941.

Grandes operações ofensivas desenrolam-se a leste com êxito. O cerco de Leninegrado fechou-se em volta das linhas de defesa recentemente neutralizadas. As repetidas contra-ofensivas do inimigo, apoiadas por blindados pesados, fracassaram...

Michael Wachter deslizou para fora do abrigo situado dois andares abaixo da terra e abriu caminho pelo meio de pedaços de paus e de pedras. Havia mantas a cobrirem móveis quebrados e o soalho apresentava inúmeras fendas. Chegou, com o coração a bater, à famosa Sala de Âmbar.

A sala resistira sem danos ao bombardeamento. Os aviões alemães que sobrevoavam Puchkine acabavam de mudar de rumo, quando as mulheres requisitadas na cidade saíram da cave para continuarem a embalar as obras-primas insubstituíveis do palácio. Trabalhavam febrilmente, com os cabelos presos por lenços, sempre de ouvido à escuta para detectarem a chegada de outra vaga mortal por cima da cidade.

Já não se podia pensar no transporte dos tesouros que

 

1 Forças Armadas Alemãs. (N. do E.)

 

ainda se conservavam no Palácio de Catarina. A 1.” Divisão de Blindados encontrava-se apenas a alguns quilómetros de Tsarskoie Selo e preparava-se para a ofensiva decisiva. A divisão SS avançava para o lado norte da cidade, e as cabeças das colunas dos blindados disparavam já sobre Puchkine. Nada mais se podia salvar. Era apenas possível proteger os tesouros da destruição. As mulheres cobriram o soalho de embutidos com areia, encheram os grandes vasos chineses com água, protegeram com cartão grosso as paredes de seda e de brocado, envolveram com tecido os móveis históricos, assim como as prateleiras e os armários da biblioteca imperial, única no mundo. Oficiais soviéticos, em plena retirada, ocuparam algumas salas durante um momento, permanentemente ligados às tropas combatentes. Atravessaram à pressa as salas e os corredores, prestes a saltarem para as viaturas que os esperavam diante do palácio, a fim de se dirigirem para Leninegrado.

Ofegante, Michael Wachter apoiou-se numa das paredes da Sala de Âmbar, protegidas pelos painéis de madeira, e viu as mulheres cobrirem de areia o solo magnífico. Amanhã, ou depois de amanhã o mais tardar, pensou ele, os soldados alemães estariam ali. Descobririam, assombrados, os frescos do tecto e arrancariam os painéis para ver o que havia debaixo. Certamente que iriam ficar mudos perante aquele esplendor de âmbar, talvez até mesmo comovidos, mas depois começaria a pilhagem, o aniquilamento da mais bela sala que o mundo terá conhecido.

Wachter, um homem de cerca de cinquenta anos, era de estatura mediana, ligeiramente corpulento. Os seus cabelos, de um louro-escuro, não eram ainda grisalhos. Uma camisa de riscas azuis e brancas, com as mangas arregaçadas até aos cotovelos, envolvia o seu dorso poderoso. Quando falava alemão notava-se que a sua pronúncia era muito rude, fazendo lembrar aqueles que cresceram no Leste e que tinham como segunda língua o russo. Mergulhado nas suas meditações, Michael sobressaltou-se ao ouvir alguém falar russo.

— Quer realmente ficar aqui, Mikhail Igorovitch?

Wachter disse que sim com a cabeça. Tinha na sua frente o coronel Nikolai Mikhailovitch Limonov, o comandante de brigada cuja missão era cobrir a retirada das tropas soviéticas de Puchkine para Leninegrado. Os seus soldados formavam um grupo de desesperados, esgotados por combates defensivos encarniçados: homens contra os blindados alemães, canhões anticarros e minas contra os monstros de aço. Mas sabiam que só o sacrifício deles salvaria a cidade. Cada dia, cada hora contavam. Às centenas de milhares, construíram em volta de Leninegrado novas trincheiras, casamatas, barreiras anticarro e linhas de artilharia, tudo formando três círculos de defesa uns atrás dos outros, perante os quais os alemães deviam ser derrotados. Estava-se a 15 de Setembro de 1941. Os homens olhavam para o céu e rezavam em silêncio: «Senhor, faz com que chova. Que chova mais do que de costume. Não esperes por Outubro para que as grandes chuvas tornem todas as estradas e caminhos impraticáveis, que as viaturas se atolem nos lamaçais e que os tanques patinhem na lama e se imobilizem. Então terminará o avanço dos alemães, que, assim, não poderão atingir Leninegrado. E como à chuva sucederá o Inverno, as tempestades de neve varrerão a região e gelarão as tropas alemãs que se confrontarão com um adversário invencível: a Natureza. Leninegrado será salva... Faz com que chova, Senhor, rasga as nuvens para afogar os alemães. Faz com que chova agora, meu Deus, e não em Outubro! Ajuda-nos, meu Deus!»

— É meu dever, camarada coronel — respondeu Wachter, afastando-se da parede. — Devo ficar perto da Sala de Âmbar.

— Será fuzilado.

— Porquê? Posso provar que sou alemão.

— Ao serviço dos russos?

— Muitos alemães serviram os czares nos séculos passados. Generais, almirantes, sábios, filósofos, médicos e conselheiros políticos eram alemães... como os meus antepassados. Unidos meus avós, Friedrich Theodor Wachter, seguiu a Sala de Âmbar em mil setecentos e dezasseis até Sampetersburgo. Desde então, um Wachter tem estado sempre perto dela para a proteger e conservar, passando essa missão de pais para filhos. A tradição foi assim transmitida de geração em geração.

— E você, Mikhail Igorovitch, julga agora conseguir sobreviver, você e a Sala de Âmbar? Que ilusão! Você é o último Wachterovski.

— Não, Nikolai Mikhailovitch, tenho um filho protestou Wachter com orgulho. — Não faltei à tradição. Ele encontra-se actualmente em Leninegrado para defender a cidade, vela pelos tesouros que tivemos tempo de transportar. Sinto orgulho nele. Mesmo que me fuzilem, ficará ainda um Wachter para viver com a Sala de Âmbar.

O coronel Limonov ergueu a cabeça. Ouvia-se o fragor dos canhões ao longe. Tinha a impressão de sentir o impacte nas solas dos pés, como se um ligeiro tremor tivesse percorrido o solo.

— Amanhã, os alemães estarão neste castelo. Limonov dominou a sua cólera. Certamente o soalho do

castelo não tremia. Eram os nervos! Um comandante de brigada também tem nervos, mas não tem o direito de se deixar enervar.

— Que vai fazer, Mikhail Igorovitch?

— vou apresentar-me ao comandante das tropas alemãs. Estou certo de que ele instalará o seu quartel-general aqui. Não existe local mais belo em Puchkine. E suplicar-lhe-ei, sim, suplicar-lhe-ei, que proteja a Sala de Âmbar dos actos de vandalismo.

— Vandalismo? É o que quer dizer? Wachterovski, você será espancado se disser tal coisa. Os soldados alemães não são vândalos. Nunca esteve na tropa?

— Não, nunca. Nós, os Wachter, beneficiámos sempre de um estatuto especial. Quem teria velado pela Sala de Âmbar se não fosse assim? Nós tínhamos o privilégio, reconhecido por escrito, de nunca a abandonar. com a chancela do czar Pedro Primeiro. Tenho esse documento escrito emoldurado na sala da minha casa, e os senhores da Rússia sempre o honraram... mesmo Lenine e Estaline. Não, eu nunca fui soldado, nem nenhum dos Wachter. Temos vivido exclusivamente para a Sala de Âmbar.

— Uma história interessante, a da família Wachterovski. Continue a contar, Mikhail Igorovitch.

— Não tenho muito tempo. Preciso de salvar a Sala de Âmbar. Mais tarde, camarada coronel.

— Acredita num «mais tarde»?

— Poderemos não acreditar? — Michael Wachter estremeceu. Explosões em qualquer local das proximidades fizeram vibrar os vidros das janelas. — Vai para Leninegrado, camarada coronel?

— Sim.

Limonov olhava fixamente em frente, com o rosto impassível. A partir dessa noite, o estado-maior da sua brigada cessaria as actividades e deixaria o Palácio de Catarina.

— Mesmo para a cidade?

— Irei ter reuniões com o general Sinoviev e com o marechal Zhukov.

— Se tiver tempo, poderá visitar o meu filho Nikolai? Há-de encontrá-lo no Ermitage, junto dos tesouros que salvámos do castelo. Se o vir, diga-lhe, por favor, que estou muito orgulhoso dele. Muito orgulhoso. Dar-lhe-ei notícias para lhe indicar onde estarei, e comigo a Sala de Âmbar. Irei dando notícias como puder. E havemos de voltar a ver-nos se a guerra o permitir. Diga-lhe isto, por favor.

— Farei o possível por lho dizer, Mikhail Igorovitch. Coragem. — Limonov apertou a mão a Wachter, conservou-a muito tempo entre as suas e acrescentou num tom quase solene: — Que vai fazer se os alemães destruírem a Sala de Âmbar?

— Não sobreviverei a tamanho desastre. Desde há duzentos e vinte e cinco anos que o destino da Sala de Âmbar e o dos Wachter se encontram indissociáveis. Estão ligados para sempre.

As últimas tropas soviéticas abandonaram o Palácio de Catarina durante a noite. Wachter encontrava-se debaixo da varanda, com as suas colunas e altas estátuas de mármore, mesmo junto da grande escadaria que conduzia aos jardins. Ficou ali muito tempo a olhar para o sítio onde desaparecera a última viatura. A noite estava clara, húmida e límpida, o ar puro, impregnado do perfume de milhares de flores e do bom aroma das árvores. Depois do ruído dos motores, reinava um silêncio profundo. Parecia que a Natureza queria ter tempo para respirar fundo antes que, de manhã, o rebentamento das granadas devastasse a terra e que as lagartas dos tanques esmagassem tudo à sua passagem.

As mulheres haviam também abandonado o castelo, a fim de se refugiar nas suas casas, na expectativa de verem chegar os alemães, aterrorizadas com a ideia do primeiro encontro com os invasores, Como seriam eles? Seria verdade o que se dizia, o que se lia nos jornais? Violavam as mulheres, quebravam os crânios dos bebés contra os muros, fuzilavam todos os homens, incendiavam as casas? Era essa a opinião da maioria dos habitantes de Puchkine, que se apressaram a seguir os soldados em retirada. Nos carrinhos de mão, empurrados pelas mulheres, levavam aquilo de que mais necessitavam: caçarolas, colchões, mantas, vestuário, arcas com roupa, bem como os crucifixos que tinham em casa e as respeitadas imagens de Cristo fazendo o gesto de abençoar. Os mais felizes possuíam um cavalo que atrelavam a uma carroça, podendo assim transportar alguns móveis e objectos que tinham acumulado ao longo das suas vidas. E levavam também batatas, couves, pepinos em vinagre e cebolas, mesmo algum presunto que conseguiam esconder. Havia quem tivesse morto um porco e o trouxesse escondido debaixo dos móveis. Era provável que viesse a haver fome em Leninegrado. Os alemães avançavam por todos os lados e o cerco à cidade apertava-se cada vez mais. Como receberiam víveres para tanta gente? E, sobretudo, quem poderia dizer quanto tempo iria durar esse cerco, antes que a cidade caísse ou os alemães fossem repelidos, que se afogassem sob a chuva ou que gelassem com as neves...? Precisavam de ser pacientes. Era o que tinham aprendido no decorrer dos séculos. A serem pacientes e a esperarem.

Michael Wachter permaneceu toda a noite sentado num banco na Sala de Âmbar, na escuridão, sozinho no meio de todos aqueles tesouros que nessa noite pertenciam ainda à Rússia. Teve tempo de se recordar do último czar, Nicolau II, que em 1916 estivera naquela sala, com a czarina, o czaréviche e as suas quatro lindas filhas, reunidos junto dos restos mortais de Rasputine, o monge demoníaco assassinado pelo príncipe loussoupov e os seus amigos. Ele, Wachter, tinha então trinta anos, e o seu pai, Igor, levara à czarina e às suas filhas lenços perfumados para elas limparem as lágrimas. E na véspera do Aano novo de 1917, dois séculos após a chegada da Sala de Âmbar, vinda de Berlim, a Sampetersburgo, o czar dera a sua última festa, no decorrer da qual condecorara Igor Germanovitch Wachterovski, como se pressentisse que a revolução de Fevereiro de 1917 o fosse tirar do trono. Ele fora o último czar da dinastia dos Romanov.

Sim, e depois... o pai, Igor, morrera de tuberculose, e ele, Michael Wachter sucedera-lhe. Um dia, Lenine visitara o castelo e detivera-se na Sala de Âmbar, deixando, quase com recolhimento, que o seu olhar deslizasse sobre o esplendor deslumbrante da «pedra de sol», dizendo-lhe:

— Odeio os czares e a maneira como eles exploraram o povo, mas esta obra-prima irá, infelizmente, torná-los imortais.

E ele, Wachter, respondera:

— Foi um presente de um rei alemão, camarada Lenine. Nós apenas temos cuidado dela.

— E tu vais continuar.

Lenine estendera-lhe a mão, com grande espanto dos comissários presentes, pois era uma grande honra apertar a mão do grande Vladimir Ilitch Ulianov, o pai da nova Rússia, dos bolcheviques e do Estado dos camponeses.

Isso passara-se há vinte e um anos. O tempo correra depressa, e no entanto essa recordação parecia-lhe longínqua. Seu filho, Nikolai, nascera a 17 de Julho de 1918, precisamente no dia em que a família real fora morta pelos bolcheviques na Vivenda Ipatiev, perto de lekaterinburg. À morte seguiu-se o processo de fazer desaparecer os corpos. Para isso, cortaram-nos em pedaços que depois foram incinerados na clareira chamada «dos Quatro Irmãos». Dera a seu filho o nome de Nikolai para prestar homenagem ao czar, dando como explicação o facto de ser um nome de família entre os Wachter.

Como estava longe tudo isso...

E em 1929? Estaline estivera ali, com as suas botas e calças tufadas, com a camisa à moda dos camponeses e um cinto largo. O poderoso lossif Vissarionovich Djugatchvili batera-lhe no ombro dizendo:

— Contaram-me a tua história, Mkhail Igorovitch. O czar Pedro recebeu de presente, juntamente com a Sala de Âmbar, o primeiro Wachterovski. Isso deve continuar. Já tens algum filho?

— Sim. Tem onze anos.

— Onde está ele?

— Está escondido. Meteu-se em qualquer sítio do palácio. O rapaz tem medo.

— Medo? De mim? — Estaline começara a rir. O seu bigode farfalhudo tremera e os olhos escuros do georgiano lançaram clarões. — Manda-o procurar. Quero vê-lo. Ninguém deve ter medo de mim!

Procuraram Nikolai, sem o encontrar. O imenso palácio de Catarina possuía inúmeros recantos e esconderijos, ideais para uma criança se refugiar. Só mais tarde, em 1937, é que Nikolai estivera na presença de Estaline. Era então um rapaz de dezanove anos, alto, louro como a mãe, Lydia Alexandrovna, com os mesmos olhos azuis. E Estaline dissera, ali mesmo naquela Sala de Âmbar, diante de um vaso de mosaico de âmbar, com reflexos de ouro:

— És então, de momento, o último Wachterovski. Desta vez não te escondes, pois não? — Não esquecera o incidente de outrora, o que petrificara Nikolai. — Não tens razão para teres medo de mim, jovem camarada.

Alguns dias depois, Estaline mandava fuzilar o marechal Mikhail Toukhatchevki e outros oficiais, sob pretexto de fazerem espionagem. Mas eles apenas tinham indisposto Estaline, a quem era fácil livrar-se dos que o incomodavam.

Estaline, homem que lutava agora contra os alemães, queria deter os exércitos deles, salvar a Rússia e fazer com que Leninegrado se transformasse numa imensa fortaleza. Fora há quatro anos que Estaline visitara pela última vez a Sala de Âmbar.

De madrugada, a artilharia alemã recomeçou a disparar. Os obuses pouparam o castelo, mas destruíram a cidade de Puchkine. As unidades germânicas seguiram pelas estradas e caminhos que iam dar a Leninegrado, perseguindo as tropas soviéticas que recuavam. Os carros da 1.a Divisão de Blindados lançaram-se sobre Puchkine e o Palácio de Catarina. Chegaram à entrada da cidade sem encontrarem resistência e entraram pela bela e larga avenida que conduzia ao palácio.

Michael Wachter saiu da Sala de Âmbar e dirigiu-se para a entrada de colunas, de onde vira partir o coronel Limonov na noite anterior. O seu coração apertou-se quando viu os colossos verde-acinzentados aproximarem-se com os seus canhões e as suas torres com a cruz gamada. Os comandantes dos tanques mantinham-se de pé nas escotilhas abertas e contemplavam como num sonho o magnífico palácio. Pararam diante da grande escadaria, saltaram em terra e dirigiram-se para Wachter. Os soldados passaram a correr em frente deles e precipitaram-se para o interior do palácio.

— Que fazes aqui? — perguntou-lhe um oficial. — Onde estão os outros? Os russkil

— Eu não sou russo, capitão — respondeu tranquilamente Wachter. — Sou alemão como o senhor. Bem-vindo a Tsarskoie Selo.

À tarde, o castelo encheu-se de uniformes alemães — as salas de recepção, a intendência, o escritório, os aposentos dos czares e as bibliotecas. Tinham chegado de toda a parte para se instalarem naquele castelo, o mais belo de toda a Rússia. Os estados-maiores, sobretudo, instalaram-se nas salas mais faustosas. Nas portas esculpidas e decoradas a ouro, os soldados pregaram cartões indicando as suas unidades, com setas para a esquerda ou para a direita, com o nome dos comandantes, ou apresentando simplesmente a palavra «Bureau», ou ainda «WuG» (Waffen und Gerate), que significa «Armas e Material».

Ficaram instalados no Palácio de Catarina os estados-maiores: do 28.º Corpo de Exército, do 16.º Exército, do 41.º Corpo de Blindados, da 96.a e da 121.a Divisões de Infantaria. A divisão SS e a 1.” Divisão de Blindados, que tinham sido as primeiras a chegar a Puchkine, haviam prosseguido o seu avanço em perseguição das tropas soviéticas. O troar dos canhões pairava sobre o campo como uma trovoada distante, e as esquadrilhas de bombardeiros alemães, que se dirigiam para Leninegrado, zumbiam no céu.

Michael Wachter sentira-se aliviado quando a divisão passara perto do castelo na direcção da parte norte da cidade, onde ainda resistiam os últimos soldados do Exército Vermelho, uma barreira precária que servia apenas para ganhar tempo, pois cada hora ganha significa mais um troço de trincheira, mais um muro de casamata, ou mais uma linha de artilharia que integrava o anel de defesa em torno de Leninegrado.

A 16 de Setembro de 1941 a Sala de Âmbar encontrava-se nas mãos dos alemães, mas continuava intacta por detrás dos painéis de madeira e da espessura do cartão. A batalha passara... mas continuava a travar-se. Michael Wachter era um homem feliz. A 17 de Setembro, as tropas soviéticas acabaram de evacuar a parte norte de Puchkine. A divisão SS penetrou na cidade e o seu estado-maior apareceu diante do Palácio de Catarina para aí instalar também o seu quartel-general. Wachter olhou com receio para os uniformes com a caveira.

Via pela primeira vez os oficiais e os soldados dessa divisão de elite, sobre a qual tanto se escrevera, antes e depois de a guerra ter começado. Esses homens com a caveira, tão temidos, eram os mais bem equipados: todo o assalto empreendido por eles significava a destruição total do objectivo.

Um chefe SS — equivalente a um general — subiu os degraus da escadaria, enquanto o estado-maior passava pelo portão como se estivesse numa parada, com as suas viaturas alinhadas a distâncias iguais. O general SS ia a meio das escadas quando apareceu à entrada do palácio o comandante do 28.º Corpo de Exército, que o saudou rapidamente, levando a mão ao boné. O chefe SS respondeu com a saudação hitleriana.

— Suponho que tem intenção de se instalar aqui com o seu estado-maior — disse secamente o general.

O oficial SS lançou um olhar para a fachada imponente do palácio e fez um sinal afirmativo com a cabeça.

— Braunfeld1 — apresentou-se. — Heinrich Braunfeld.

O general de blindados sorriu interiormente. O outro tinha um ar tão sombrio como o seu nome. E, além disso, chamava-se Heinrich, como o chefe dele, Heinrich Himmler. Não podia ser melhor.

— Von Kortte — respondeu altivamente. — Lamento ter de lhe dizer que não temos espaço para outro estado-maior.

O chefe SS olhou novamente para toda a fachada do palácio e abanou a cabeça. «Que quer este palhaço com calças de lista vermelha?» perguntou-se.

— O castelo é bastante grande. Não quer que eu acredite que o seu estado-maior tem necessidade de mais de cem salas...

— Cinco estados-maiores ocupam actualmente todo o palácio. Além de todas as bagagens. E amanhã chegarão dois corpos de blindados. Aconselho-o, portanto, a instalar-se no Palácio de Alexandre, que está menos ocupado. — O general encolheu os ombros com um ar quase aborrecido. — Sinto-me desolado. O actual senhor deste castelo, o comandante-chefe do 16.º Exército, general de corpo de exército Busch, tomou esta decisão.

 

1 Campo castanho. (N. do E.)

 

— Quero falar com Busch — ripostou Braunfeld, encolerizado.

E dizia simplesmente «Busch», com insolência, grosseria e brutalidade, como reparou Von Kortte.

— O general encontra-se ocupado — retorquiu com frieza. — Queira dirigir-se ao Palácio de Alexandre.

— Deixa de fora um estado-maior SS? — Braunfeld recuperou o fôlego. — General Von Kortte, isto trará consequências para si. Informaremos o chefe das SS sobre o caso! O tratamento que reservam a tropas de combate é inaudito! Terá notícias minhas vindas de altas instâncias!

O oficial SS Braunfeld deu meia volta e desceu as escadas sem fazer a continência. Von Kortte não conseguiu perceber o que ele disse ao seu chefe do Estado-Maior quando regressou à viatura. Reparou apenas que aquele voltava a cabeça para o olhar. Braunfeld fez o mesmo. Dez minutos mais tarde, o local à entrada das colunas encontrava-se novamente deserto. Restava apenas uma grande mancha de óleo. Uma das viaturas tinha sem dúvida uma ruptura.

Michael Wachter encontrava-se junto da porta quando Von Kortte ia novamente a entrar.

— Obrigado, meu general — disse num alemão rude, visivelmente comovido.

O general Von Kortte parou, surpreendido.

— Obrigado porquê? — perguntou, fitando Wachter.

— Afastou os SS do castelo.

— Isso não lhe diz respeito!

Von Kortte falou com voz dura. Franziu os olhos, como se visasse Wachter.

— Haveria salas suficientes, meu general.

— Mas, de facto, você não tem que se meter nisto!

— com certeza que não.

— Então que quer?

— Agradecer-lhe por ter salvo a Sala de Âmbar. O general Von Kortte voltou-se.

— A Sala de Âmbar? Aquela que está coberta de madeira, onde você passa o tempo sentado?

— Sim, meu general.

— E todas as paredes são de âmbar?

— Sim. As paredes, as estatuetas, as grinaldas, os enquadramentos das portas, as molduras dos quadros, as flores e os ramos... Tudo de âmbar.

— Tenho de ver isso! — exclamou Von Kortte, impressionado. — Precisa de ma mostrar. Como se chama você?

— Michael Wachter.

— Mas isso é um nome alemão.

— Eu sou alemão, meu general.

— E trabalha para os bolcheviques?

— Há duzentos e vinte e cinco anos, meu general.

— Ninguém diria, olhando para si. — Von Kortte riu da sua própria graça, apenas durante uns segundos; depois, voltou a ficar sério.

— Sou uma nulidade em matéria de arte — confessou sinceramente. — A Sala de Âmbar... Nunca ouvi falar nela. É conhecida nos círculos artísticos?

— É uma das obras de arte mais preciosas do mundo. É insubstituível. Nunca voltará a existir uma tal obra de arte.

— E julga que nas altas esferas ignoram isso? Que as suas tábuas ainda são úteis... agora que Puchkine se encontra nas nossas mãos e assim ficará? Não faltará muito tempo para que apareça aí uma comissão que arranque os painéis de madeira para se extasiar com a beleza dessa sala. Vão telefonar para todos os lados, ao Fúhrer, a Bormann, ao chefe da Chancelaria, a Von Ribbentrop, o ministro dos Negócios Estrangeiros, ao marechal Goering, a Rosenberg. Conhece estes nomes?

— Apenas os de Hitler e de Goering, meu general. Aqui, em Puchkine, vivíamos muito fechados sobre nós mesmos. A Alemanha interessava-nos pouco. Trabalhávamos no castelo, ocupando-nos com as suas numerosas salas, com os móveis, os soalhos e os tapetes, com a restauração de interiores e exteriores, com os jardins... Que nos podia importar o que se passava fora do Palácio de Catarina?

— É um grande erro andar com antolhos e olhar só numa direcção.

O general Von Kortte voltou ao sumptuoso vestíbulo com as suas estátuas de mármore e a sua soberba escadaria, os tectos de estuque, ornados com pinturas, e o extraordinário pavimento com marchetaria. Wachter seguiu-o de perto. As palavras de Von Kortte não o haviam acalmado. Pelo contrário. A inquietação fazia-lhe apertar o coração.

— Pensa, meu general, que Hitler, Goering ou algum dos outros...

— Não penso coisa alguma. — Von Kortte parou novamente e deixou Wachter aproximar-se. — Além disso, a minha opinião importa pouco. Só conta aquilo que o Fúhrer pensa.

— Que quer Hitler fazer da Sala de Âmbar?

— Se ela é tão única como você afirma, Wachter, nesse caso representa uma obra cobiçada. Temos suficientes museus no Reich para a reconstruir num deles. Meu velho, você despertou a minha curiosidade. Quando poderei ver a sala sem o seu revestimento?

— Amanhã mandarei tirar um dos painéis.

— Muito bem.

O general fez um sinal com a cabeça a Wachter quando apareceram dois jovens oficiais que se aproximaram e se puseram em sentido.

— Só mais uma pergunta: onde se encontra o pessoal do castelo? Certamente você não estava aqui sozinho.

— Fugiram, meu general.

— Fugiram por nossa causa? — Von Kortte franziu o sobrolho. — Ninguém tem necessidade de fugir diante de nós!

— As mulheres temiam ser violadas.

— Por nós? Pelos nossos soldados? — A voz do general subiu de tom e tornou-se cortante. — Um soldado alemão é um homem de honra. Nós não somos de maneira alguma os mongóis de Gengição! Desejo que as mulheres voltem a ocupar-se do castelo.

Sem esperar pela resposta, Von Kortte dirigiu-se à escadaria de mármore que conduzia às salas onde trabalhava o seu estado-maior. Reservara para si o salão chinês, uma maravilha com as paredes e as portas pintadas, mobilada com móveis asiáticos esculpidos. Os soldados pareciam não se aperceber disso. Tinham prendido o fio do telefone à parede e feito buracos para o passar de uma sala para outra. Era também ali que se encontravam os escritórios do oficial da Administração Militar, responsável pela intendência, e os quartos dos oficiais do estado-maior.

Michael Wachter seguiu Von Kortte com o olhar e limpou o rosto com a mão direita. Não compreendia o general. Falava com ele e, de repente, fechava-se e tornava-se frio como mármore. No entanto... não permitira aos SS instalarem-se no castelo. Fora uma atitude muito corajosa, e estava-lhe reconhecido por isso.

Na manhã seguinte, as coisas passaram-se de maneira diferente.

Tinham chegado ali, durante a noite, duas companhias de infantaria. Os homens vinham sujos, esgotados pelo avanço rápido. Foram substituídas por outras duas companhias frescas e bem-dispostas. Essas duas companhias instalaram-se no castelo, em salas ainda livres.

Wachter não as ouvira chegar, pois dormia nos seus alojamentos, no vestíbulo. Na sua porta havia sido colocado um cartão que dizia «Administração», única forma de ter paz e poder descansar sem ser importunado. Constatava, com espanto, o pequeno milagre que podia fazer um simples cartão. Ninguém procurava saber o que se passava atrás daquela porta... Só o cartão bastava. Era algo de oficial. Um bom alemão respeitava isso e não fazia mais perguntas.

Quando Michael Wachter chegou junto da Sala de Âmbar, ficou, antes de mais, perplexo diante da magnífica porta. Também ali havia um bilhete, grosseiramente escrito, que dizia «Ocupado pela 2.a Companhia», e para o fixar tinha sido utilizado um sólido prego de cinco centímetros espetado no meio de esculturas e de grinaldas douradas.

Wachter respirou fundo, abriu violentamente a porta e entrou na sala. Dois soldados encontravam-se ocupados em arrancar um pedaço do painel para ver o que se encontrava por baixo. Os outros tinham-se espalhado um pouco por toda a parte e dormiam sobre as poltronas, divãs e canapés preciosos. Esfregavam as suas botas sujas e lamacentas sobre os tecidos de brocado e de seda, fumavam e atiravam o que restava dos cigarros para a areia que cobria o pavimento insubstituível. Os dois soldados, bastante mais curiosos do que os seus camaradas, acabavam de arrancar um pedaço de cartão. Apercebeu-se de imediato que os dois soldados se tinham imobilizado, por um instante, perante o esplendor que surgira na frente deles. Contemplavam uma paisagem idealizada com colunas romanas e ruínas rodeadas de colinas semelhantes às da Toscânia, tudo isto esculpido em mosaicos, com deslumbrante quadro em pedra de âmbar, com incrustações de grinaldas de flores e medalhões que variavam desde o amarelo-sol ao castanho-quente. Uma ode de Virgílio traduzida em cores!

— Isto é qualquer coisa! — exclamou um dos soldados entusiasmado. — vou levar um bocado a Ema. Isto é âmbar!

Pegou na baioneta, espetou a extremidade no âmbar, bateu várias vezes e fez cair um grande bocado.

Em três saltos, Wachter lançou-se sobre o soldado, que dizia, com um sorriso:

— Erna sempre gostou muito de âmbar. Parece que temos aqui uma mina de ouro, rapazes.

— Para trás! — gritou Wachter.

Tirou a baioneta das mãos do soldado, atirou-a para longe, agarrou o homem pelos ombros e fê-lo afastar-se da parede.

— Que se passa? — perguntou o soldado, espantado. Só então se apercebeu de que fora atacado e que a sua baioneta se encontrava caída na areia no meio da sala, e que era um civil, já de certa idade, que o agarrara.

— Perdeste a cabeça, paizinho? — gritou, apertando os punhos como um boxeur. — Tem cuidado com o teu queixo...

Mas não chegou a atingi-lo. O outro soldado que se encontrava atrás de Wachter bateu duas vezes com o punho da baioneta na sua cabeça, enquanto os outros saltavam das suas poltronas.

Michael Wachter não chegou sequer a sentir a segunda pancada. Foi atravessado por uma dor forte que lhe chegou aos calcanhares. «Estou morto», teve ainda tempo de pensar. Depois, caiu numa escuridão sem fundo onde era impossível reflectir.

No fundo da cova, Jana Petrovna esperava ver chegar as tropas alemãs. Escondera, entre os arbustos espessos, a bicicleta que lhe emprestara o ajudante-de-campo do general Sinoviev, um oficial que não conseguia compreender por que motivo aquela espia não fora imediatamente fuzilada. E, ainda por cima, haviam-lhe dado uma bicicleta para poder fugir. Mas quem iria perguntar a um general o porquê das suas ordens? Não seria demasiado arriscado?

Os oficiais e os soldados encontravam-se todos muito ocupados a evacuar o quartel-general da divisão. A artilharia alemã disparava sobre os soldados do Exército Vermelho em plena retirada. Os ataques-surpresa dos blindados abriam largas brechas nas linhas de defesa. Mesmo os contra-ataques dos temíveis carros soviéticos, os T34, fracassavam debaixo do fogo das novas peças de artilharia alemãs.

Os Stuka e os bombardeiros pesados Heinkel lançavam a sua carga mortífera sobre as aldeias e as pequenas cidades. Havia incêndios por toda a parte e o céu estava negro com o fumo da devastação.

O general Sinoviev não voltara a ter notícias do seu grupo de salvamento de obras de arte. A ligação com o alferes Vechaiev fora interrompida. Não esperava mesmo mais notícias, pois os comunicados da frente assinalavam que o pequeno grupo devia ter sido esmagado pelo inimigo. As posições adversárias, delimitadas na carta, mostravam-lhe que Vechaiev não pudera de modo algum evitar os alemães ou escapar-lhes. De resto, chegara ordem de Leninegrado para retirarem para a cintura exterior de defesa — onde milhares de mulheres, soldados de engenharia e velhos cavavam ainda trincheiras, faziam novas barreiras anticarro de betão e levantavam abrigos. Até crianças arrastavam sacos e pedras, vigas e tábuas para construírem uma muralha contra os agressores.

O «delfim» de Estaline, Andrei A. Jdanov, membro do Politburo, dirigira-se a Leninegrado para assumir as altas funções de comandante da resistência, o que significava ser ele o novo chefe da organização do partido em Leninegrado. Num apelo, proclamou:

«Ou a classe dos trabalhadores de Leninegrado será reduzida à escravatura e a sua mais bela flor destruída, ou nós abriremos um túmulo ao fascismo diante da cidade.»

Toda a população foi, portanto, armada e incitada a combater e a lançar granadas. Ruas e casas transformaram-se em fortalezas nas quais o inimigo iria morrer. Se os alemães queriam apoderar-se de Leninegrado, só o poderiam fazer à custa do seu próprio sangue. A 17 de Setembro, o próprio marechal Zhukov deu pessoalmente ordem a todos os comandantes dos exércitos, empenhados na defesa de Leninegrado, para não cederem um único metro aos fascistas.

«Considero, a partir de agora, qualquer movimento de retirada como um crime contra a pátria soviética — mandou proclamar. — Esses traidores serão condenados à morte.»

Por todo o lado, em particular no Sul da cidade, onde o perigo era grande depois da tomada de Puchkine, surgiram sebes de arame farpado e pequenos bunkers em betão chamados «hotéis Vorochilov». Os aviões alemães inundavam a cidade com falsas senhas de racionamento e com notas de rublos falsas, bem como com panfletos explicando que poupariam a vida a todos os que matassem os seus chefes e se rendessem. Patrulhas de polícia percorriam as ruas e quem fosse surpreendido com um deles poderia ser imediatamente fuzilado.

Um milhão e meio de habitantes estava prestes a interditar, com os seus corpos, o acesso à mais bela cidade da Rússia.

A 17 de Setembro, de manhã cedo, Jana Petrovna ouviu o ruído das lagartas dos tanques na estrada da floresta. Os elementos de ataque do 4.º Corpo de Blindados, sob o comando do general de corpo de exército Hoeppner, tinham chegado até ela. O cerco de Leninegrado começara.

Jana Petrovna permaneceu dois dias no seu esconderijo subterrâneo.

Depois, aventurou-se para fora do fosso, lavou-se num pequeno riacho e tirou o melhor possível a lama do seu uniforme de enfermeira. Deixou no fundo do buraco o capote enrolado, e logo depois tirou a bicicleta do meio dos arbustos e empurrou-a para a estrada. Era a parte mais arriscada do seu plano. Mas, por sorte, não havia uma única viatura, nem um soldado alemão à vista. A floresta estendia-se debaixo de um sol ainda quente, aprazível sob o belo sol de Outono.

Montou na bicicleta, arranjou a sua touca de enfermeira, suspendeu do guiador um grande saco em tela encerada, castanha, e seguiu o mesmo caminho que Vechaiev.

Ia voltar a Puchkine. Ao Palácio de Catarina. Enquanto pedalava vigorosamente, pensamentos tumultuosos agitavam-se na sua cabeça.

O paizinho Michael ainda estaria vivo? O castelo teria sido destruído? Teriam saqueado os tesouros? Quem ocuparia agora as salas sumptuosas? Iriam acreditar na sua história e deixá-la-iam trabalhar no hospital mais próximo? Que teria sucedido a Nikolai, o seu apaixonado? Ele partira de Tsarskoie Selo com o último camião carregado de vasos preciosos, de jóias, de móveis e de tapetes, assim como de quadros com dois séculos de existência e de recordações pessoais dos czares e das czarinas que devia colocar em lugar seguro, em Leninegrado. Teria chegado ao seu destino ou acabara despedaçado pelas bombas e obuses alemães? O paizinho Michael saberia... se estivesse ainda vivo... A Sala de Âmbar ainda existiria?

Depois de ter pedalado solitariamente durante duas horas, Jana viu virem ao seu encontro as primeiras tropas alemãs, um batalhão de infantaria que parecia estar a fazer manobras. Os comandantes de companhia iam a cavalo à frente. O comandante, um capitão, encontrava-se sentado num Kubelwagen com o ordenança e um capitão-médico. As colunas de viaturas seguiam atrás com o equipamento da companhia, o material e a cozinha.

Consideravam-se de tal maneira em segurança que nem sequer eram precedidos por nenhuma patrulha de batedores.

Ao ver, pela primeira vez, soldados alemães, Jana experimentou uma estranha sensação que lhe fez apertar o coração. O medo só se fez sentir um instante perante a longa coluna cinzenta. Inclinou-se para a frente e continuou a pedalar sem se deixar perturbar. Sentia o coração a bater desordenadamente. Iriam fazê-la parar? Perguntar-lhe-iam de onde vinha?

Seguiu completamente a direito. O Kubelwagen do comandante abrandou, o condutor dirigiu-lhe um largo sorriso e atirou-lhe um beijo na ponta dos dedos. O capitão-médico, espantado, inclinou-se para fora. O comandante bateu-lhe no ombro.

— Calma, doutor! — Soltou uma risadinha vendo Jana que se aproximava deles. — Deixe aquela ratinha do fenol em paz. Não temos tempo.

O capitão-médico voltou a sentar-se e abanou a cabeça.

— De onde terá ela vindo, meu comandante? Não há qualquer hospital à nossa frente, apenas um posto de socorro avançado.

— Trata-se sem dúvida desse.

— Impossível! Nesses postos há apenas maqueiros e médicos nas proximidades do campo de combate. As enfermeiras da Cruz Vermelha só intervêm no Centro onde fazem a triagem dos feridos, o qual fica para trás de nós. E ela vai de bicicleta como se se dirigisse alegremente para o hospital mais próximo.

— Doutor, o senhor procura apenas um pretexto para a abordar. Recuso-me a parar. — O comandante riu novamente e fez um sinal a Jana quando ela passou junto deles. — É uma bela ratinha, com mil raios...

Jana Petrovna cumprimentou-os, sorriu para eles e pedalou com todas as suas forças. Apitos estridentes e um concerto de aclamações saudaram a passagem dela.

— Eh, enfermeira, tenho uma fogueira cá dentro!

— Minha menina, onde escondes tu a injecção contra as doenças venéreas? Tenho comichão... vem ver...

E quando passou diante da cozinha, o cozinheiro agitou uma colher de pau e gritou:

— Troco uma ração de sopa contra umas pernas para o ar...

— Não sei se reparou — disse o capitão-médico, alarmado — que a roupa dela está cheia de manchas! Uma enfermeira alemã não anda naquela figura! Há qualquer coisa de estranho. Devíamos examiná-la mais de perto...

— Isso fazia-lhe jeito, doutor. Que poderá haver debaixo da saia? — O comandante riu de novo. — Nada a fazer, meu amigo. Estamos todos com falta. Mas vocês, os médicos, têm mais oportunidades do que nós, que estamos na frente.

Jana Petrovna ultrapassou, finalmente, o batalhão alemão e encontrou-se novamente sozinha na estrada que ia dar a Puchkine. Ouvia ao longe as canções que os soldados cantavam para ganharem coragem. Marchavam com o capacete preso ao cinturão, o colarinho desapertado, cobertos de suor e de poeira, e tinham a missão de reforçarem o cerco a Leninegrado.

Ainda ligeiramente trémula, Jana desmontou e deitou-se de costas para recuperar o fôlego. Era fatigante rolar pela estrada sem alcatrão, onde cinco dias de chuva haviam levado a que ficassem cavados sulcos profundos.

Passou a noite numa quinta meio queimada. Deitada sobre o feno que juntara à pressa, entre as vigas carbonizadas, encostada à parede da imensa sala de estar e abrigada pela chaminé quebrada, feita de argila e de pedra, ela respirava o odor acre do queimado e um perfume adocicado que não conhecia. Só de manhã é que descobriu três cadáveres separados dela pela parede em ruínas, duas mulheres e um velho, com os rostos carbonizados pelas chamas que os tinham queimado. O cheiro da putrefacção deu-lhe volta ao estômago e ela apoiou-se à parede enegrecida para vomitar. Depois correu para a bicicleta e partiu pela estrada esburacada.

Só mais tarde é que conseguiu comer e beber qualquer coisa. Instalou-se debaixo de uma árvore, junto da estrada, com o grande saco de tela castanha sobre os joelhos e mastigou sementes de girassol. Cortou uma grande cebola e começou a comê-la juntamente com duas grossas fatias de pão seco e com um pedaço de salsichão. O gosto era um pouco rançoso, mas ela comeu com apetite. Em seguida, bebeu a água que levava dentro de uma garrafa de cerveja, isto depois de se ter lavado no riacho da floresta. Deitou o resto da água da garrafa numa mão, lavou a cara, tirou um pente do saco e penteou os cabelos, após o que se olhou num pequeno espelho emoldurado em falso cabedal castanho.

A sua própria imagem agradava-lhe. O rosto com a touca de enfermeira, as maçãs do rosto salientes, os olhos límpidos, os lábios cheios... Era bela, podia dizê-lo.

Chegou, finalmente, a Puchkine e aos castelos de Tsarskoie Selo na noite do segundo dia. Os alemães com quem se cruzava no caminho não lhe prestavam atenção, não mencionando as interpelações habituais, os comentários ou os sinais inevitáveis da parte de homens que viam uma bonita rapariga com o uniforme da Cruz Vermelha. A presença dela não despertava nem surpresa, nem desconfiança. Na véspera, haviam instalado em Puchkine um centro de cuidados militares, numa escola. Nove médicos e catorze enfermeiras tratavam dos feridos e dos doentes trazidos da frente em ambulâncias Sanka. Nos postos de primeiros-socorros só tinham recebido os cuidados mais urgentes e encontravam-se agora ali, com pensos ensanguentados e um letreiro preso ao pescoço com informações.

Ficha de acompanhamento para os feridos e outros doentes a operar.

Intransportável: dois traços vermelhos.

Transportável: um traço vermelho.

Capaz de caminhar: nenhum traço vermelho.

Seguia-se o nome, o posto, a unidade e o tipo de ferimento.

Para muitos deles, era um passaporte para a eternidade.

E em cada um dos letreiros, um carimbo, com o inevitável «despar asilado».

Tinham chegado também a Puchkine três enfermeiras para o Centro de Cuidados Militares. Por que motivo não poderia uma delas ir de bicicleta ao Palácio de Catarina? Havia sempre qualquer coisa a fazer nos numerosos gabinetes do comando ou dos estados-maiores instalados no castelo.

Estava com mais sorte do que esperara. Enveredou sem problemas pelos caminhos que lhe eram familiares, atravessou os parques e os maravilhosos jardins, arrumando depois a sua bicicleta junto do muro. Por uma janela aberta, ouvia o ruído das máquinas de escrever e sentia o fumo de numerosos cigarros.

Continuou a pé sem se fazer notar, penetrou pela entrada anexa ao castelo, na ala onde habitava dantes o pessoal e onde Michael Wachter ainda vivia. Os oficiais que encontrava sorriam-lhe, alguns fitavam-na com insolência e um capitão fê-la mesmo parar e agarrou-a por um braço.

— Onde vai, minha doçura? — disse ele. — com certeza que é a mim que procura.

— Certamente que não. Eu procuro o general.

Contentou-se em dizer «general». Isso bastava. Certamente que havia um general no palácio, o nome dele pouco importava. Ninguém ousaria então detê-la. O temerário capitão largou-lhe o braço e encolheu os ombros.

— O general... não posso rivalizar com ele — disse com ar despreocupado. — E na sala dezassete, mas não aqui. É lá em baixo, no edifício principal. Desejo-lhe boa sorte.

Jana parou junto da porta de Wachter, onde se lia «Administração», e bateu. O paizinho Michael não respondeu. Bateu outra vez. Bateu mais três vezes e depois fez rodar a maçaneta. A porta não estava fechada à chave e abriu com um ligeiro rangido. Jana Petrovna olhou à sua volta. Encontrava-se sozinha no corredor. Entrou rapidamente para o interior da sala.

O que notou em primeiro lugar foi um forte cheiro a fenol. De pé, no meio do vestíbulo, levou a mão ao peito, invadida por uma sensação indescritível de medo que a paralisou. Depois gritou com uma voz mais aguda do que habitualmente:

— Paizinho, onde estás tu? Paizinho...

Falava russo sem dar por isso. Teve sorte em não se encontrar ninguém ali para a ouvir.

Atordoado com uma forte dor no crânio, Michael Wachter constatou que ainda estava vivo. Respirou o cheiro enjoativo do desinfectante, sentiu a pressão na cabeça, ouviu vozes e um ruído de motor. Manteve os olhos fechados, admirado por estar deitado na cama, a sua, ao que parecia, pois todos os ruídos vinham do lado esquerdo, onde ficava a janela que dava para uma grande alameda.

A memória voltou-lhe pouco a pouco. Tinha a impressão de não se poder mexer. Lembrou-se então da Sala de Âmbar, do soldado que arrancara o painel de protecção com a sua baioneta, para arrancar um pedaço do mosaico, como um assassino a espetar um punhal num peito. Ele lançara-se sobre o militar e arrancara-lhe a lâmina das mãos... Sim, fora assim que as coisas se tinham passado. Via o rosto espantado do soldado, com uma expressão impotente e depois a sua cabeça começara a latejar e não se lembrava de mais nada.

A Sala de Âmbar!

Franziu os olhos e sobressaltou-se ao ouvir uma voz aguda soar aos seus ouvidos.

— Paizinho! — gritava uma voz de mulher. — Paizinho! Estás vivo... não vais morrer!

Depois ouviu chorar e as outras palavras transformaram-se em soluços. Apareceu na sua frente uma cabeça, um rosto lavado em lágrimas, enquadrado por cabelos negros, com uma pequena touca de enfermeira, que se debruçou sobre ele e lhe beijou a testa, os olhos e os lábios.

— Paizinho, fica tranquilo, não te mexas, estás mal. Queres beber alguma coisa?...

— Fala alemão — murmurou ele com a língua ainda pastosa. — Janachka, tu és uma enfermeira alemã. Nunca o esqueças! Nasceste na Prússia Oriental... na Prússia Oriental perto dos lagos Mazures.

— Sim, paizinho — respondeu ela, continuando a soluçar.

— Jana!

— Eu sei. — Agora ela falava alemão com sotaque. — Tem de se deixar ficar estendido, senhor Wachter.

— Preciso de ir ver a Sala de Âmbar.

Tentou erguer-se, mas teve a sensação de que a cabeça lhe ardia e que dela saíam chamas. Deixou-se cair sobre a almofada e fechou novamente os olhos.

— A minha Sala de Âmbar...

Jana puxou-lhe a coberta até ao queixo e segurou-o para ele ficar imóvel.

— Está vivo... É o que importa neste instante. Embora não se encontrasse ninguém no apartamento para os observar, eles continuavam a desempenhar os seus papéis: ela o de uma enfermeira alemã desconhecida, e ele o de um empregado administrativo do castelo de Tsarskoie Selo. Nunca se tinham visto antes... a mais pequena palavra em russo podia deitar por terra todo o plano que tinham gizado.

Wachter estava cada vez mais inquieto. Quando Jana lhe quis endireitar a almofada, ele agarrou-lhe a mão com uma força espantosa.

— Preciso de a ver. Não compreendes? Preciso de saber o que fizeram à Sala de Âmbar depois de me atacarem. Ninguém tocou nas paredes desde há duzentos e vinte e cinco anos, porque os Wachter estavam de guarda, porque um de nós se encontrava sempre lá... e agora fazem saltar os mosaicos... para Erna, como «recordação» de Puchkine. Jana, deixa-me levantar, peço-te.

— Tens de ficar na cama, paizinho.

— Jana.

— Fique deitado, senhor Wachter — emendou ela logo a seguir. — Eu é que irei ver a Sala de Âmbar. Como enfermeira, posso andar por todo o castelo. — Debruçou-se sobre ele e acariciou-lhe o rosto invadido por uma barba de vários dias. — Foi uma boa ideia — murmurou-lhe ela ao ouvido.

— Jana!

— Ninguém nos ouve.

— Não se trata disso. Deves habituar-te a mostrar que não me conheces. Viste-me hoje pela primeira vez.

Bateram à porta. Logo a seguir, entrou um oficial alto. Hesitou ao ver a enfermeira da Cruz Vermelha junto do doente. Depois aproximou-se.

Wendler apresentou-se delicadamente.

— Sou médico. Como está senhor Wachter? Como se sente? Vejo que se encontra em boas mãos.

Um olhar cintilante pousou sobre Jana. Esta baixou os olhos e voltou as costas ao médico. Era um oficial médico do 28.º Corpo de Exército.

— Ligou-me a cabeça, doutor? — perguntou Wachter. — Como vai a minha ferida?

— É um ferimento aberto, de tamanho médio... O crânio não foi atingido, graças a Deus. Em seguida, um enfermeiro fez-lhe um penso. — O doutor Wendler pigarreou, inclinou-se sobre a cabeça de Wachter e observou o penso. Estava impecável. — Parece um muçulmano — gracejou. — Este turbante fica-lhe bem. Não acha, enfermeira?

— Sim — respondeu Jana secamente.

— Tenho ainda de desempenhar uma missão. — O doutor Wendler utilizava uma linguagem muito formal. — O general von Kortte pediu-me para lhe apresentar desculpas pelo procedimento escandaloso dos seus soldados para consigo. Pediremos contas aos culpados. A supressão das licenças, no mínimo. Devo, portanto, apresentar-lhe as desculpas sinceras do general.

— Muito obrigado, doutor.

— O general virá visitá-lo hoje mesmo.

— Que sucedeu à minha Sala de Âmbar?

— Não faço ideia.

Wendler encolheu os ombros. A Sala de Âmbar interessava-lhe muito menos do que a bela enfermeira que se encontrava à cabeceira de Wachter. Olhou-a, mas Jana ignorou-o e manteve uma postura reservada.

— Que poderia suceder à sala?

— Podem destruí-la, pilhá-la...

— Um momento. — Wendler franziu as sobrancelhas. — Que me está a dizer, Wachter? Um soldado alemão não destrói coisa alguma e muito menos rouba. A sua opinião sobre os nossos soldados...

— Peço desculpa, doutor. — Wachter percebeu com receio que não devia exprimir-se assim. Um bom alemão não criticava nunca a Wehrmacht do Fuhrer. Chamavam a isso desmoralização. Desmoralização das tropas. — Mas bateram-me na cabeça porque eu estava a impedir um soldado de arrancar um pedaço da parede de âmbar.

— Meu Deus, uma pequena recordação. Aquilo não se notava no meio de uma tal quantidade de âmbar. É então verdade que o senhor atacou primeiro o soldado?

— Sim, ele espetava a sua baioneta...

— bom, bom! — replicou Wendler com impaciência. — Faremos um inquérito. Para que serve o nosso tribunal marcial?

— Um tribunal militar? — admirou-se Wachter. A pressão dentro da cabeça aumentava. O soldado seria certamente ilibado. Retirar um pedacinho de âmbar nem merecia ser mencionado. — Isso será necessário, doutor?

— O general decidirá. — Wendler continuava a observar Jana Petrovna e apoiou-se à cabeceira da cama. — Que faz por aqui, enfermeira?

— Venho do hospital. Chamaram-nos do Estado-Maior como reforço. — Ela reagia admiravelmente. Ergueu a cabeça e fitou directamente o médico, mas os seus olhos eram frios e hostis. — Vim até aqui de bicicleta. Está lá fora, encostada ao muro.

— Insensatos! Como se não tivéssemos pessoal suficiente para cuidar dos nossos feridos! Aqueles que chegam da frente são feridos graves e requerem os melhores cuidados. Retirar uma enfermeira para se ocupar de um civil. Que idiotice!

— Basta dirigir-se ao general — retorquiu Jana com frieza. O coração dela batia furiosamente, mas isso não se via. — A chamada foi do Estado-Maior.

— Já sei isso. — O doutor Wendler afastou-se da parede. — Quanto tempo vai ficar no castelo?

— Enquanto precisarem de mim.

— Como se chama?

— Jana Rogovski.

— Parece-me um nome russo.

— Nasci na Mazúria. Em Lyck, na Prússia Oriental.

— Sei perfeitamente onde fica a Mazúria — interrompeu Wendler com ar vexado. — A batalha dos lagos Mazures. Hindenburg aniquilou o Exército russo... Mil novecentos e catorze... A Primeira Guerra Mundial. Jana Rogovski. Tem então algumas gotas de sangue russo.

— Nem uma. — Depois Jana acrescentou uma coisa que Wachter nunca julgaria possível. — Tenho uma árvore genealógica que remonta a mil seiscentos e oitenta. Os meus antepassados foram colonos em Brandeburgo. Quer vê-la? vou buscá-la.

— Obrigado! Obrigado!

O doutor Wendler recusou com um gesto, dirigiu um sinal amigável a Wachter e saiu do apartamento fazendo estalar as botas. Wachter ficou estendido sem se mexer durante um momento e depois soergueu-se da almofada.

— Essa é boa! Quem te ensinou isso da árvore genealógica?

— Mantenha-se estendido, senhor Wachter. — Os olhos negros de Jana brilhavam de alegria. — Li um dia no Pravda que os alemães são muito ciosos dos seus documentos. Todos querem provar que são arianos e que não há judeus nas famílias deles. Então, de repente lembrei-me...

— Tu... perdão... você é uma rapariga maravilhosa, Jana. E agora seja-o ainda mais e deixe-me levantar e ir à Sala de Âmbar.

Alguns minutos mais tarde, Wachter encontrava-se de pé na Sala de Âmbar, apoiado ao ombro de Jana. Paralisado pela emoção, não podia falar. Só os seus olhos comovidos diziam qualquer coisa.

Os painéis de protecção tinham sido arrancados em vários sítios e feios buracos desfiguravam as paredes de âmbar. Faltavam rosáceas e fragmentos de grinaldas. Um espectáculo dilacerante. Mas a sala encontrava-se deserta. Os soldados alemães haviam sido obrigados a evacuá-la. Da passagem deles restava apenas a lama e a sujidade que tinham deixado nas poltronas e canapés, o soalho danificado pelas botas com pregos, uma grande quantidade de papéis, latas de conservas e garrafas, assim como um letreiro posto ao pescoço de uma estatueta de mulher, de âmbar, onde tinham escrito: «É proibido menear-se.»

— Um soldado alemão não destrói coisa alguma... — Wachter repetia as palavras do doutor Wendler. — Quando penso que sempre tivemos orgulho em conservar a nacionalidade alemã, sinto-me envergonhado.

Baixou a cabeça, fechou os olhos e Jana deixou-o sozinho com a sua dor, sem nada dizer, de lábios cerrados.

Que havia de resto a dizer? Era a guerra e todos os conquistadores se assemelhavam... desde há séculos.

De repente, sobressaltaram-se. A porta abrira-se e fechara-se. Voltaram-se e viram então o general Von Kortte. Este observou rapidamente a sala e encolheu os ombros com ar resignado.

— Passei pelo seu quarto, senhor Wachter, mas não o encontrei lá. Pensei que só poderia encontrar-se aqui, na Sala de Âmbar. Sei o que vai dizer... resta-me apenas o dever humilhante de pedir desculpa pelos meus soldados. Isso não lhe devolve os pedaços arrancados. Quatro soldados foram acusados de o fazerem, quanto aos outros não temos provas. Uma guerra exige todo o género de sacrifícios.

O general Von Kortte caminhou junto das paredes, observou as ombreiras das portas cobertas de âmbar, as estatuetas, os quadros, as rosáceas e as grinaldas. No fim, depois de ter dado a volta à sala, voltou para junto de Michael Wachter e Jana Petrovna.

— Não sou grande apreciador de arte. Sempre tive horror aos museus. Uma acumulação de objectos mortos... Prefiro lidar com os vivos. Mas compreendo que tudo quanto aqui se encontra é de um valor inestimável. Esta obra de arte não pode deixar ninguém indiferente. — Hesitou e acabou por acrescentar: — Como já lhe tinha dito, no Reich parecem ter a mesma opinião.

— Que... que quer dizer, meu general? — Wachter deu à sua voz um certo torn irónico. — Que ouviu dizer?

— Esperamos para amanhã a chegada de duas comissões especiais: um Sonderkommando1 emanado do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e alguns senhores do grupo de intervenção Rosenberg. São todos especialistas, conservadores de museus, peritos portanto. Por que motivo vêm eles de toda a parte para se dirigirem para Puchkine, mais precisamente para o Palácio de Catarina?

— Sim, é um enigma complicado, meu general. — Wachter apoiou-se fortemente sobre o ombro de Jana como se as pernas estivessem a perder as forças. — Que me aconselha a fazer?

— Nada.

— É realmente pouco.

— Não tem alternativa, senhor Wachter.

O general Von Kortte olhou para Jana com ar interrogativo.

Uma enfermeira da Cruz Vermelha para tratar de um civil ferido... Quem teria permitido um tal luxo? Mas as suas interrogações ficaram por aí, pois a presença de uma enfermeira naquele contexto era uma coisa habitual.

— Posso fazer alguma coisa por si?

— Não permitir que as comissões especializadas entrem no castelo, meu general.

— Que pensa? Não posso dizer ao general Von Kúchler, o comandante do Oitavo Exército que me anunciou a vinda deles, para os mandar retroceder.

 

1 Comando Especial. (N, do E.)

 

— Porquê?

— Só um civil é que faria uma pergunta dessas. Em primeiro lugar, não posso dar ordens ao Comandante-Chefe e, em segundo lugar, as comissões especiais não dependem do Exército, mas sim dos ministérios. Não posso dirigir-me nem a Von Ribbentrop nem a Rosenberg.

O general Von Kortte abriu energicamente a porta, mas voltou-se ainda uma vez, emoldurado pela ombreira decorada a ouro.

— Não cometa disparates — recomendou gravemente. — Pode substituir-se um ser humano, mas não essa obra de arte. A sua família sempre desempenhou o seu dever de uma maneira exemplar. Mas nem isso existe já.

No quartel-general do Fúhrer, o «Covil do Lobo», perto de Rastenburgo, na Prússia Oriental, a norte do planalto dos lagos Mazures, Martin Bormann, chefe da chancelaria do partido, e alguns íntimos de Hitler preparavam-se para a refeição do meio-dia, uma refeição obrigatória.

Apesar de Hitler comer pouco e ser essencialmente vegetariano, isso em nada diminuía a tensão habitual que presidia a esse ritual. Hitler mantinha monólogos sobre os seus prognósticos, os seus objectivos, as suas esperanças, os seus pontos de vista sobre a arte e a ciência, a estratégia e a política mundial, a economia e a reforma do nacional-socialismo, a política estrangeira e a arquitectura, e as suas afirmações revelavam cada vez mais o carácter desse guia que começara a modificar o conjunto do mundo.

A 22 de Setembro de 1941, foi estabelecido que Leninegrado não seria tomada de assalto, mas que seria muito mais urgente atacar Moscovo. O cerco terminara, o bloqueio destinado a fazer passar fome a um milhão de seres humanos podia começar. Tiraram dessa frente tudo o que não era indispensável, a fim de empenhar essas forças na batalha de Moscovo, e, antes de mais, o 4.º Corpo de Blindados do general Hoeppner. Nem Estaline nem Zhukov queriam acreditar nisso. Tratava-se, julgavam eles, de uma manobra de diversão, mas o 4.º Corpo de Blindados surgiu a norte de Moscovo e confirmou que Leninegrado não seria tomada pelas armas... morreria de fome.

Martin Bormann guardou algumas cartas numa pasta, meteu-a debaixo do braço e entrou na sala de jantar do Fiihrer pouco antes dele. O briefing terminara, os relatórios sobre as diferentes frentes tinham alegrado Hitler, pois, com efeito, os exércitos alemães avançavam vigorosamente por toda a parte; a resistência dos soviéticos intensificava-se de dia para dia, mas o grande objectivo, a entrada das tropas alemãs em Moscovo aproximava-se cada vez mais. Onde Napoleão falhara, Hitler prometia a si próprio anunciar em breve ao povo alemão, e ao mundo inteiro, que os seus exércitos tinham conquistado a capital da Rússia.

Nesse dia, Hitler estava contente consigo mesmo, com o mundo e com os seus generais. Podia consagrar-se a ocupações mais nobres; à arte, por exemplo.

Entre aqueles que rodeavam Hitler, poucos conheciam o Fiihrer tão bem como Bormann, os seus humores e as suas fraquezas. Adivinhava quase sempre com antecedência o que ocupava o espírito de Hitler, para além das situações estratégicas. Por vezes, orientava a conversa para tal ou tal assunto que achava que Hitler considerava importante nesse dia.

O almoço decorreu como de costume. Hitler comeu pouco, bebeu uma chávena de chá à sobremesa, falou por breves momentos com o seu médico pessoal, o doutor Morell, e depois voltou-se para Bormann após um longo monólogo. com grande alegria daquele, falara da sua intenção de mandar construir, depois da vitória final, um gigantesco museu em Linz, a sua cidade preferida à beira do Danúbio, e cuja realização ocupava já o espírito do seu arquitecto, Albert Speer. Esse edifício seria imenso e ultrapassaria tudo o que já fora visto. Acrescente-se que o Fuhrer desejava que, ao lado da sede do partido, em Nuremberga, esta parecesse ridícula. Os tesouros mais preciosos do mundo inteiro seriam reunidos nesse museu, enorme Valhalla1 artístico. Ficaria cheio de esculturas e de quadros, de tapetes, de peças de ourivesaria e de porcelanas, de móveis e de livros, de ícones e de esculturas em madeira. Os bens mais preciosos da Europa seriam propriedade dos alemães durante os próximos mil anos. Uma herança para centenas de gerações... pois a Europa pertencia ao Império Alemão, Hitler

 

1 Para a mitologia germânica, Valhalla era o lugar de residência de Wodan, paraíso dos heróis para onde eram levados os caídos no campo de batalha nos braços das valquírias.

 

não duvidava um instante disso. As maravilhas desse museu seriam provenientes sobretudo dos inestimáveis tesouros do Leste, dos castelos, mosteiros e igrejas, dos palácios dos czares, dos príncipes e da grande nobreza russa.

Logo no início da guerra fora publicado um decreto, ordenando que todas as obras de arte, provenientes dos territórios conquistados, fossem observadas e seleccionadas por peritos. Os objectos mais preciosos foram, portanto, escolhidos e encaminhados para Linz para aí ficarem depois da vitória final, e classificados como «reservados para o Fúhrer». Hitler deitava a mão a tudo o que de mais belo a arte produzira desde há mil anos.

Nesse dia 22 de Setembro, o Fuhrer expusera aos convivas o seu grande sonho de Linz. Longas listas de tesouros «postos em segurança» chegavam dos territórios ocupados do Leste e tinham-no entusiasmado. Hitler deitou um olhar furtivo a Bormann e encostou-se para trás na cadeira, com as mãos cruzadas sobre a barriga.

— Deseja fazer-nos uma exposição? — perguntou, vendo a pasta vermelha colocada ao lado de Bormann. — Diga.

— Meu Fuhrer — começou Bormann abrindo a pasta e olhando de relance para as informações que reunira. — O Sonderkommando de Hamburgo, do Ministério dos Negócios Estrangeiros, associado ao Décimo Oitavo Exército, enviou um relatório preliminar. Uma grande parte dos tesouros de Puchkine, de Gatchina, de Pavlovsk e de Peterhof foram salvos e estão, na sua maior parte, intactos. Há, nomeadamente, o Palácio de Catarina, em Puchkine, que encerra o monumento mais belo e mais precioso: a Sala de Âmbar. Merecia ter em Linz uma sala à parte. Estão aqui as fotografias dessa maravilha. Permita, meu Fuhrer...

Bormann estendeu a Hitler quatro fotografias de formato grande. Mostravam a Sala de Âmbar sob todos os ângulos, incluindo os frescos do tecto e o pavimento em marchetaria. As fotografias datavam de antes da guerra e mostravam todos os móveis e armários de âmbar, assim como a grande estátua equestre de Frederico, o Grande, rodeada por soldados de mármore. Podiam igualmente admirar-se ali vasos da China, pequenas mesas com embutidos e em pedra de âmbar, assim como as soberbas escrivaninhas.

Hitler estudou demoradamente as fotografias. Depois devolveu-as a Bormann, aquiesceu com um sinal de cabeça e disse:

— Colocarei a sala em Linz, no centro do museu. Trate de fazer com que as operações necessárias sejam feitas com o maior cuidado. Quem vai dirigir as operações?

— Penso no doutor Herbert Wollters ou no doutor Hans-Heinz Runnefeldt, ambos peritos, sobretudo em matéria de âmbar.

— De preferência os dois. — Hitler bebeu um gole de chá, mostrando-se encantado. Esfregou as mãos. — Que comecem imediatamente! E as outras obras de arte?

— Serão postas em lugar seguro no quadro da operação Sala de Âmbar. — Bormann folheou de novo as suas notas. — Os castelos de Puchkine e de Pavlovsk encerram sobretudo livros raros com quatrocentos anos de existência... Calcula-se que há mais de cinquenta mil. Além disso, foi descoberta uma extraordinária colecção de ícones. Também ficaria muito bem em Linz, meu Fúhrer.

Hitler fez novo gesto de aprovação com a cabeça.

— Faça o que for necessário — ordenou, ícones... toda a alma da Rússia.

Iniciou então um longo monólogo sobre os ícones, os tesouros da arte sacra e a formidável influência do cristianismo sobre a arte medieval.

Bormann pediu desculpa e retirou-se. Eram pouco numerosos os que tinham o direito de sair antes de Hitler.

A 26 de Setembro, o comandante do grupo de exércitos recebeu uma carta do elemento da Wehrmacht junto do Fiihrer. Os termos dessa carta eram os seguintes:

Depois do relatório do chefe da chancelaria do partido, Bormann, o Fiihrer designou o doutor Hans-Heinz Runnefeldt, chefe do serviço exterior dos museus do Estado, actualmente Sonderfúhrer, em Reval, para outras missões no território, como por exemplo a salvaguarda dos tesouros de Tsarskoie Selo, Peterhof e Oranienbaum, e mais tarde igualmente de Leninegrado.

«O ouro alemão do mar Báltico», como Hitler sempre chamara ao âmbar, a Sala de Âmbar de Puchkine, tornara-se «reservada ao Fúhrer» e devia ornar o maior museu do mundo, o «museu eterno» de Linz, à beira do Danúbio.

Foram precisos dois dias aos dois grupos de peritos, o Sonderkommando do Ministério dos Negócios Estrangeiros e o Grupo de Intervenção Rosenberg, para chegarem ao Palácio de Catarina. Apresentaram-se ao general Von Kortte e mostraram-lhe uma carta do general de Corpo de Exército Von Kúchler, comandante-chefe do 18.º Exército que cercava Leninegrado e que presentemente administrava Puchkine. Von Kortte leu a missiva e convidou-os, com um gesto amplo, a visitar o local, murmurando:

— Posso apenas inclinar-me.

O chefe do Sonderkommando, que fora o primeiro a chegar a Puchkine, fingiu delicadamente não reparar no sarcasmo do general.

— Doutor Herbert Wollters — apresentou-se ele. — Estou sob ordens de Von Ribbentrop, ministro dos Negócios Estrangeiros do Reich, e em virtude de um pleno poder especial, da chancelaria do partido.

— Acabo de ser informado disso por escrito, capitão. — O tom de Von Kortte era hostil. — Tomei conhecimento.

— Capitão de cavalaria, meu general.

— Perdão?

O general franziu o sobrolho. O seu tom era glacial.

— Sou capitão de cavalaria, meu general.

— Não é a mesma coisa? — O tom era cortante, as palavras bem pronunciadas. — Não preciso das suas lições. Eu próprio era capitão de cavalaria quando você ainda usava cueiros.

— Peço-lhe desculpa, meu general.

— Muito bem. — Von Kortte agitou a mão. -— vou mandar que um ordenança o guie na sua visita ao castelo. Por onde deseja começar?

— Tenho os planos comigo — respondeu o doutor Wollters, batendo na pasta de cabedal. — Veremos em primeiro lugar a Sala de Âmbar.

— Já esperava.

Von Kortte dirigiu-se para o telefone colocado sobre a sua secretária, marcou um número e disse secamente:

— Viebig, chegue aqui.

Um jovem alferes entrou imediatamente, como se estivesse à espera atrás da porta.

— Meu general? — disse da entrada.

— O capitão de cavalaria do Ministério dos Negócios Estrangeiros — Von Kortte deu ênfase ao posto com satisfação — gostaria de se dirigir à Sala de Âmbar e em seguida visitar todo o castelo. Acompanhe-o.

O doutor Wollters despediu-se militarmente, batendo os calcanhares e fazendo a saudação hitleriana. Era a primeira vez que Von Kortte via um oficial saudar assim, em vez de fazer a continência. Conteve-se para não fazer outra observação e voltou as costas a Wollters. Uma maneira silenciosa mas clara de lhe mostrar que a entrevista terminara.

Michael Wachter encontrava-se sentado num tamborete, na Sala de Âmbar. Reparara provisoriamente os painéis de protecção de madeira e cartão, retirara a areia do pavimento magnífico e limpara-o. Esforçara-se também por tirar as manchas das cadeiras forradas de seda e de damasco, com a ajuda de Jana Petrovna. Esta continuava a viver no Palácio de Catarina e habitava no apartamento do seu futuro sogro — se Nikolai sobrevivesse ao cerco de Leninegrado e à guerra. Pouco antes, removera a ligadura que ligava a cabeça de Wachter, que agora tinha apenas um grande penso no sítio onde os cabelos lhe tinham sido rapados na nuca. Desde então, alguns brincalhões chamavam-lhe «padre Michaelus» e pediam-lhe para os confessar. Wachter fazia o jogo deles. O que importava era que não questionassem a presença dele ali e que o considerassem como se fizesse parte das paredes.

Wollters ficou parado no meio da sala e olhou à sua volta. O pavimento em marchetaria poderia ser desmontado, pensou ele. As grandes paredes de âmbar, as estátuas dos guerreiros e das deusas também, nomeadamente as máscaras dos «guerreiros na agonia» no friso superior, provavelmente obra de Andreas Schlueter, o maior escultor da sua época. Poderiam transportar-se sem dificuldade. Só os frescos do tecto o preocupavam. A camada pintada seria particularmente delicada para descolar.

Wollters conhecia aquela sala nos seus mínimos pormenores, e não só a partir de fotografias. Estivera em Leninegrado em 1937, convidado pelo conservador-chefe dos museus municipais. Admirara os tesouros expostos nas salas, e depois dirigira-se a Puchkine, para o Palácio de Catarina, em companhia do conservador. Ficara de pé no meio da Sala de Âmbar, admirando-a em silêncio, com uma verdadeira emoção e deixara-se prender pelo encanto provocado pelo jogo dourado das cores.

— bom dia — disse Wachter em voz alta.

Wollters, que entrara na sala sem cumprimentar, como se não tivesse visto o homem sentado no tamborete, lançou-lhe um olhar oblíquo, tal como se lhe tivessem cuspido em cima. Não retribuiu a saudação, mas perguntou com ar altivo:

— Quem é você?

— Devia conhecer-me — respondeu Wachter sem se levantar.

— Conhecê-lo, eu? Que eu saiba não. Em que ocasião?

— Já aqui esteve uma vez. com o conservador-chefe dos museus da cidade de Leninegrado. Foi em mil novecentos e trinta e sete... Já não sei muito bem. Mas não me esqueci da sua cara.

— Lembra-se dos milhares de rostos das pessoas que visitaram a Sala de Âmbar? — troçou Wollters.

— Não. Lembro-me apenas de alguns. Do seu, por exemplo. Nessa altura ouvi-o dizer: «É o que existe de mais maravilhoso no mundo em pedra de âmbar!» Encontrava-se mais ou menos no mesmo sítio em que se encontra agora. Não me esqueci.

— É um dos empregados do museu?

— Sou o guardião da Sala de Âmbar. O meu antepassado, Friedrich Theodor Wachter, recebeu esta missão do rei Frederico Guilherme Primeiro, e chegou aqui ao mesmo tempo que a Sala de Âmbar, que foi oferecida ao czar Pedro Primeiro, em Sampetersburgo.

— É o último de uma dinastia de criados, na verdade! — Nada parecia fazer diminuir o desprezo de Wollters. — As gerações futuras ficar-lhe-ão reconhecidas por ter velado tão bem pela Sala de Âmbar.

— Que vai suceder agora à Sala? — perguntou Wachter sem se deixar perturbar.

A arrogância de Wollters não o atingia. Talvez que no lugar dele, seu pai, Igor Germanovitch, tivesse atacado e expulsado dali aquele homem. Mas para quê? Daí só resultaria ele ser preso e afastado de Puchkine. Provavelmente, seria enviado para um batalhão disciplinar, na Alemanha ou mesmo na frente, apesar dos seus cinquenta e cinco anos, visto ser alemão.

— Que lhe interessa isso?

Wollters contemplou novamente os frescos do tecto. Nunca conseguiria arrancá-los sem os danificar. Seria necessária uma grande habilidade para em seguida os restaurar.

«Se for necessário, podemos inspirar-nos nas fotos detalhadas que possuímos. Mas por vezes há limites. Todos os peritos concordarão comigo.»

— O meu dever é permanecer junto da Sala de Âmbar.

— Surpreender-me-ia que o Fiihrer fosse dessa opinião. Mas poderá apresentar-lhe a sua candidatura. — Essa questão não é da minha competência. No entanto, acho que tem poucas probabilidades de ser enviado para Linz.

— A sala parte para Linz? — perguntou Wachter com voz apagada.

— Depois da vitória final. Dentro de pouco tempo, portanto.

— E onde fica Linz?

Wollters olhou para Wachter como se ele fosse um macaco e se exprimisse por grunhidos. Aquele tipo não conhecia Linz? Seria possível? Uma espécie de analfabeto para vigiar um dos maiores museus do mundo! Uma tal aberração só podia existir entre os bolcheviques.

— Linz fica à beira do Danúbio — retorquiu Wollters de má vontade. — Na antiga Áustria. Faz hoje parte do grande Reich alemão. Não percebeu ainda que o Fiihrer anexou a sua pátria? Passou o ano de mil novecentos e trinta e oito a dormir? Linz será um dia a capital artística do mundo. O Fiihrer tem projectos gigantescos. Mas para que estou eu a contar-lhe tudo isto? Você não compreende.

— Não, com efeito. — Wachter pousou as mãos sobre os joelhos, sentindo o coração apertado. — Não compreendo grande coisa.

— Também me parece.

Wollters voltou-se para o ordenança que esperava à entrada da porta e cujo olhar denotava repugnância por aquele perito de arte. A Sala de Âmbar não interessava minimamente ao alferes Viebig — era apenas o que Wollters dizia que lhe desagradava. «Julga-se superior», pensava ele, «porque vem do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Calma, senhor capitão de cavalaria. Pode perder as peneiras.»

— Vejamos o resto! — ordenou secamente Wollters. — As outras salas e as caves. Os meus homens devem fazer o inventário. É espantoso o que os russos deixaram ficar para trás. — Riu com desprezo. — Nós fomos mais rápidos do que eles, graças a Deus.

Wachter esperou ainda dez minutos após a partida do doutor Wollters, e depois deixou precipitadamente a Sala de Âmbar, certificando-se primeiro de que o perito não se encontrava nas proximidades. Em seguida, correu para o seu apartamento, fechou a porta e trancou-a. Depois apoiou-se contra ela para recuperar o fôlego.

Jana Petrovna olhou-o, espantada. O rosto de Wachter dava a entender o pior. Ela encontrava-se nesse momento a tentar limpar com água e sabão — era tudo de que dispunha — as manchas de uma poltrona coberta por uma tapeçaria de Gobelins1.

— Pára! — gritou Wachter deixando-se cair sobre uma cadeira. — Pára. Mais vale cortar tudo, rasgar tudo...

— Que... que se passou, paizinho? — perguntou ela, assustada.

Wachter respirou fundo várias vezes, começou a acalmar-se e passou a mão pelos olhos.

— Eles vão desmontar a sala — respondeu com voz surda. — Querem levá-la para Linz. Para um museu. — Linz, uma cidade que fica na margem do Danúbio. Muito longe daqui. Hitler quer recuperar a Sala de Âmbar. Sei-o, por assim dizer, oficialmente. Oh, Senhor, não permitas que tal coisa suceda. Faz um milagre...

— Quando vão começar?

— Não sei, Janachka. Em breve, e ninguém poderá opor-se.

— Tu irás com a Sala, paizinho.

— Eles não me querem. Poderão até fuzilar-me. Não viste o olhar glacial dele, o seu rosto petrificado.

— Não te matarão, paizinho. Deixar-te-ão simplesmente ficar para trás.

— Isso não é o suficiente? — Wachter fitou Jana Petrovna como se estivesse em plena agonia. — Isso é a morte para mim.

— Então irei eu com a Sala de Âmbar, como estava previsto — respondeu ela tentando apaziguá-lo com um sorriso. — Confia em mim, paizinho. Eu não a perderei de vista.

— Eles não te quererão, Jana.

— Tenho um traje de enfermeira da Cruz Vermelha...

 

1 Célebre manufactura de tapetes em Paris. (N. do E.)

 

Sou intocável para um alemão. Subirei para o primeiro camião de transporte e seguirei a Sala de Âmbar por toda a parte. E durante muito tempo ninguém se admirará com a minha presença.

Wachter recusou com um sinal de cabeça. Era uma loucura, dizia para consigo. Mesmo se, como dizia Jana, o traje de enfermeira a protegesse... Sim, insensato. Olhou tristemente Jana Petrovna, assustado com a determinação dela.

— É demasiado perigoso, Jana.

— Não tenho medo.

Dois dias mais tarde — o doutor Wollters e o seu Sonderkommando do Ministério dos Negócios Estrangeiros tinham partido prometendo voltar em breve —, os peritos do grupo de intervenção Rosenberg chegaram ao Palácio de Catarina. O seu chefe, um comandante perito e historiador de arte, fez-se anunciar ao general Von Kortte. O oficial de guarda informou o general pelo telefone, enquanto um ajudante conduzia os visitantes ao salão chinês.

Von Kortte declarou quando os viu chegar:

— Meus senhores, poderiam ter-se poupado a este trabalho. O Ministério dos Negócios Estrangeiros antecipou-se-lhes. Chegam dois dias tarde de mais. Todos os objectos de arte foram assinalados. Talvez queiram tomar um conhaque para se recomporem.

O comandante, Heinrich Miiller-Giessen, não dissimulou a sua decepção. Inclinou-se ao de leve diante de Von Kortte.

— Agradeço-lhe infinitamente, meu general — disse. — Ignorávamos que os nossos colegas do Ministério dos Negócios Estrangeiros já tinham vindo.

— Então existem vários grupos encarregados de examinar as obras de arte? É necessária uma melhor coordenação para evitar o jogo do gato e do rato.

O comandante Muller-Giessen fingiu não perceber a troça, mas prometeu interiormente a si próprio mencionar aqueles comentários no seu próximo relatório para Rosenberg, o novo ministro do Reich para os territórios ocupados do Leste. Fora ele o primeiro a ser encarregado de realizar o projecto grandioso do Fuhrer, o museu de Linz. Uma proposta de Rosenberg estava a ser estudada por Hitler reservar ao seu grupo o direito exclusivo de colectar o conjunto dos objectos de arte e de gerir todos aqueles que já haviam sido examinados por outros organismos.

— Mesmo assim, gostaríamos de visitar o castelo — continuou Muller-Giessen sem se deixar perturbar. — A nossa missão foi ordenada por alguém que se encontra nas altas esferas.

— Faça favor, não me oponho. — O general Von Kortte fez, como com Wollters, um largo gesto. — Registe, conte, avalie à vontade.

Dessa vez, Wachter não se encontrava sentado no seu tamborete na Sala de Âmbar. Quando Muller-Giessen e os outros peritos entraram, encontraram Jana Petrovna. com as sobrancelhas erguidas, ela observou os uniformes verdes acinzentados.

— Olha, uma enfermeira apreciadora de arte! — exclamou Muller-Giessen subitamente de bom humor. Para ele, como para a maior parte dos soldados, uma enfermeira da Cruz Vermelha era, antes de mais, um objecto sexual. — Todo o palácio é uma obra-prima. Mas esta Sala de Âmbar é única. No entanto, o que está a ver agora nada é. Só poderemos mostrar todo o seu esplendor em Linz, após a vitória final. Valerá a pena ser visto.

— Certamente que irei a Linz... se a Sala de Âmbar lá estiver.

O sorriso de Jana enfeitiçou imediatamente Muller-Giessen. Desde o início dos anos trinta que ele era professor de História de Arte, e na terra dele, em Wúrtzburg, esperava-o uma esposa um pouco gorducha e uma filha professora. O sorriso de uma bela enfermeira não podia deixar de perturbar aquele homem maduro. Muller-Giessen, julgando-se espirituoso, murmurou num tom insinuante:

— Sente-se prisioneira da arte, enfermeira? Devo fazer o papel de guarda da prisão? De boa vontade lhe daria indicações sobre os tesouros deste palácio. Pode ficar surpreendida. Que diz esta noite?

— Hoje estou de serviço!

O sorriso de Jana acentuou-se. Compreendeu instintivamente que aquele homem, com o uniforme de oficial, era alguém importante.

— Então amanhã?

— Quanto tempo ficará em Puchkine?

— com certeza uns cinco dias. Temos ainda outros castelos a inventariar e a catalogar.

Múller-Giessen sentiu um arrepio agradável. Lembrou-se do dia 29 de Agosto de 1940, quando visitara a catedral de Chartres. Conhecera ali Lucienne Dambrous, uma encantadora rapariga de dezanove anos, de cabelos louros e compridos. Subjugara-o completamente nas noites em que ficara com ele. Oferecera-lhe chocolates, vinhos, conhaques e pequenos objectos de arte que ele submetia à sua «peritagem» nos museus e nas igrejas dos arredores. Agora, era uma beldade morena que tinha na sua frente...

— Então amanhã à noite — propôs Miiller-Giessen, cheio de entusiasmo. — Mostrar-lhe-ei tudo o que quiser.

Aqueles que o acompanhavam, todos os peritos de arte, sorriam. Sabiam como o comandante era atiradiço...

Michael Wachter encontrava-se na sua sala sentado no sofá Biedermeier, o seu móvel preferido, que levara para sua casa tirado do jardim de Inverno, mais pelo seu conforto que pelo seu valor, pois havia móveis mais preciosos no castelo. Podia-se estender nele e as costas ficavam bem encostadas ao estofo macio. Folheava um velho catálogo com todos os objectos de arte de outrora, do tempo em que o conjunto de Tsarskoie Selo formava um imenso museu, único no mundo. Mesmo agora, depois das unidades especiais russas terem retirado os objectos e os móveis mais preciosos, restavam ainda tesouros suficientes para alegrar o coração de qualquer perito de arte.

Quando Jana entrou, Wachter ergueu os olhos.

— Estás aqui, paizinho — disse ela, deixando-se cair numa cadeira.

— Jana!

Ela fez uma careta, dizendo que sim com a cabeça.

— Senhor Wachter, eu sei. Eles são comandados por um velho oficial lúbrico e repugante. Quer vir buscar-me amanhã à noite para me mostrar tudo. Sei bem o que ele entende por isso!

— Claro que não irás. — Wachter observou-a. — Ou então?

— Esconder-me-ei. — Engoliu um golo de chá frio que havia numa chávena colocada em cima da mesa. Surpreendida, ela ergueu o queixo e inspirou profundamente: — Mas tem vodca!

— Sim, um pouco.

— O bastante para fazer arder a garganta!

— Minha filhinha...

— Senhor Wachter! — rectificou ela num tom reprovador, rindo.

— Menina Rogovski... Um chá como este acalma os nervos. Tenho necessidade disso. — Wachter pousou o catálogo sobre a mesa. — Que soubeste?

— Parecem querer desmontar a Sala de Âmbar amanhã.

— Foi o que disseram?

— Ouvi um dos oficiais murmurar para outro: «Como é que vamos recuperar os frescos do tecto?» Isso quer dizer que vão levar a Sala.

Wachter levantou-se e vestiu um casaco leve por cima da camisa.

— vou ver o que se passa — declarou com voz alterada. — Talvez haja uma hipótese para nós com esses dois nazis que disputam entre si a mesma coisa. Até que se ponham de acordo... quem sabe o que sucederá. O mundo está sempre a mudar.

Saiu do apartamento e atravessou lentamente o castelo. Os soldados apressados que passavam por ele — sobretudo oficiais do estado-maior — não lhes prestaram qualquer atenção. Ouviu risos que partiam das duas salas onde os soldados se tinham instalado, bem como o ruído de vozes. Até ele chegava também o cheiro dos cigarros que flutuava nos corredores. Encontrou o ordenança do general Von Kortte que o cumprimentou amavelmente, e depois entrou na Sala de Âmbar. Ficou parado no limiar e olhou por momentos em silêncio os peritos do Grupo de Intervenção Rosenberg que admiravam as paredes que se encontravam sem a protecção dos painéis de madeira. Descobriam a Sala de Âmbar pela primeira vez. Só a conheciam por fotografias e descrições.

Múller-Giessen sentiu que o observavam como se lhe tivessem assestado uma lupa sobre a nuca. Voltou-se, de repente, e olhou Wachter com uma expressão malévola.

— Quem é você? — interpelou-o brutalmente. — Como entrou aqui?

— Pela porta, meu comandante.

— Poupe-me as suas observações estúpidas! — berrou Muller-Giessen. — Alto! Não se mexa. Como é que um civil pode estar neste castelo?

— Faço parte do palácio. Moro aqui — respondeu Wachter sem se mexer.

— Desde quando?

— Desde que nasci.

— Aaaaah! — disse Muller-Giessen que prolongou a admiração de uma maneira agressiva. — Então é russo?

— Não. Sou alemão. — Wachter envolveu a sala num gesto amplo. — Ocupo-me da Sala de Âmbar.

— Desde quando?

— Desde mil setecentos e dezasseis...

Muller-Giessen respondeu com uma careta, como se tivesse bebido vinagre. Depois começou a gritar, o que sabia fazer maravilhosamente, utilizando o diafragma, como os cantores.

— Espécie de imbecil! Por quem me toma, maldito civil? vou fazer-lhe perder o hábito de se rir à custa das pessoas. Quem é o seu superior?

— Não tenho superior.

— Sim? Então como vive? Quem o alimenta?

— Actualmente, vivo na terra de ninguém.

— Você está na Alemanha! — vociferou Muller-Giessen prestes a ter uma apoplexia. — É onde estamos. Precisa de meter isso na cabeça. — Respirou fundo. — Vigia a Sala de Âmbar, não é? Pois bem, ela vai ser desmantelada dentro de dias.

— Por quem?

— Isso não lhe diz respeito.

— Mas eu sei quem vai fazê-lo, meu comandante. É o do Ministério dos Negócios Estrangeiros...

Muller-Giessen pareceu apanhar um soco no estômago. Os outros tinham-se voltado e seguiam com atenção a altercação entre o seu chefe e aquele civil de aspecto insignificante.

— Isso é certo? — berrou Muller-Giessen.

— Um certo doutor Wollters, capitão de cavalaria, ao que parece.

— Wollters! Logo ele! — murmurou Muller-Giessen. Era alérgico àquele nome. Sentia dores de estômago só

de pensar nele. Já por sete vezes o seu rival fora mais rápido, e Bormann dera-lhe sempre razão. Ninguém era capaz de enfrentar Bormann, e Rosenberg ainda menos do que os outros. Havia uma porção de membros do Partido que Bormann aparentemente respeitava, mas que detestava em segredo. Era o que se passava em relação a Goebbels. Mas no que dizia respeito à Sala de Âmbar, Muller-Giessen queria sair vencedor. Precisava apenas de alguns camiões, talvez uns vinte ou vinte e dois... e, de momento, não podia resolver esse problema. Mas o Ministério dos Negócios Estrangeiros também não, isso era certo. Era quase tão complicado obter esses vinte camiões como recuperar os frescos do tecto.

— Que lhe disse mais Wollters?

Muller-Giessen pronunciou esse nome com repugnância, prestes a vomitar.

— Nada.

— Datas?

— Nenhuma. Apenas «o mais depressa possível».

— O «possível» tranquiliza-me um pouco. Ele não é mágico.

— Os homens de Von Ribbentrop têm uma carta do quartel-general do Fiihrer. Ordem de Bormann.

— Oh, merda! Merda! — Muller-Giessen bateu com os punhos um contra o outro. Os seus colegas arvoraram uma expressão compungida. Iriam assistir ao oitavo round do combate entre os dois coleccionadores de arte? — Que exclamou Ricardo Terceiro na batalha de Bosworth? «Um cavalo! Um cavalo! O meu reino por um cavalo!» Eu não preciso de um cavalo. Preciso de vinte camiões para o Fuhrer!

Parecia que Muller-Giessen não avaliara bem a situação. O duche frio começou logo junto do general Von Kortte, quando Muller-Giessen lhe anunciou:

— Preciso imediatamente, imediatamente, de vinte camiões.

O general Kortte olhou-o quase com comiseração, batendo na testa.

— Não sabe o que está a dizer — respondeu.

— O seu corpo de exército dispõe certamente de vinte viaturas.

— Para o transporte de munições, o abastecimento, a transferência rápida das tropas para a frente, o repatriamento dos feridos, mas não certamente para transportar paredes de âmbar!

— Trata-se de bens pessoais do Fúhrer!

— Então compete ao Fúhrer dar-me pessoalmente a ordem para os fornecer.

— O ministro do Reich, Rosenberg...

— O meu superior é o comandante do corpo de exército e o comandante-chefe da Werhmacht.

— A nossa missão especial está claramente definida, meu General.

— Não me compete a mim julgar. Dirija-se ao comandante supremo do Décimo Oitavo Exército, o general Kúchler. Se houver camiões disponíveis, preciso da autorização dele.

— Isso significa que não quer ceder-mos?

— Que não posso fazê-lo — retorquiu Von Kortte. Estava encantado por contrariar Múller-Giessen, assim como o presunçoso doutor Wollters. — Como universitário, deve perceber a diferença entre querer e poder. Lamento, comandante.

Miiller-Giessen saiu depois de fazer uma breve continência. Os seus colegas esperavam-no no patamar. O comandante vociferou:

— Que pretensioso! Um sabotador! Trata-nos como se fôssemos um monte de merda! vou fazer um relatório para o chefe da Chancelaria. Esse Von Kortte nem vai acreditar quando souber! Vão ocupar-se dele! Vai aprender a conhecer-nos! A caminho, meus senhores!

Olhou à sua volta. Wachter, que o acompanhara, já não se encontrava ali.

— Onde se meteu esse civil germano-russo?

— Foi-se embora. Era preciso que ele esperasse, meu comandante? — Um perito em arte, um tenente, encolheu os ombros. — Nós não sabíamos que...

— Bem. Não tem importância. Devemos dirigir-nos imediatamente ao Quartel-General do Décimo Oitavo Exército. E, desta vez, temos de lá chegar em primeiro lugar!

Mas, mais uma vez, chegaram demasiado tarde. Wollters precedera-os. Von Kiichler fez saber a Múller-Giessen, como já fizera com Wollters, por um seu ajudante-de-campo que, durante os combates em torno de Leninegrado, nem uma única viatura estaria disponível para fins não militares.

— E agora, a caminho! — ordenou Múller-Giessen num tom agressivo. — O primeiro que tiver os camiões será o vencedor. Nós vamos arranjá-los.

O Gauleiter1 Koch instalara a sua «Administração da Prússia Oriental» no castelo de Kõnigsberg. Para ele, era o único local concebível para trabalhar e residir.

Esse administrador da Prússia Oriental e comissário do Reich para a Ucrânia, outrora um artista — pintor e pintor de edifícios — gostava de três coisas: do poder, das mulheres e do fausto. Precisamente nessa ordem. Reinava sobre a Prússia Oriental e a Ucrânia como senhor absoluto. Era de uma crueldade sem limites. Arrastava para a morte milhares de homens, mulheres e crianças, levados para campos de concentração. Por sua ordem, foram destruídas, queimadas e varridas do mapa aldeias inteiras. Possuía um tal poder, e o seu ódio contra os «sub-homens» eslavos era tal, que até Rosenberg e o chefe da polícia ucraniana, o oficial SS Hans Prutzmann, se queixavam dele a Hitler. No entanto, as suas vozes não eram ouvidas... Koch era mais poderoso.

As mulheres raramente resistiam ao Gauleiter, e isto não era por ele ser belo e sedutor. Koch tinha estatura mediana, possuía grandes orelhas ligeiramente salientes e, sob o grosso nariz, um pequeno bigode semelhante ao de Adolfo Hitler, o seu bem-amado Fúhrer. Bebia como uma esponja. Devia as suas conquistas eróticas ao medo que inspirava às mulheres que receavam resistir-lhe. De uma maneira geral, chamava fêmeas às mulheres, ou, quando estava de bom humor, «cus oscilantes lúbricos» ou «mamas com patas». Instalara bordéis em Kõnigsberg e por toda a região. O mais luxuoso era o Nasza Polska (Nossa Polónia), situado entre Varsóvia e Nasielsk. Koch tinha as paredes do quarto cobertas com espelhos, e ainda um no tecto, gigantesco, por cima da cama, nos quais se podia ver de todos os lados. O quarto ficava cheio de pares a copular. Erich Koch sentia-se bem ali, era o rei-sol do império do Leste.

Tinha uma relação muito mais mitigada com a sua

 

1 Administrador de província. (N. do E.)

 

terceira paixão: o luxo. Era com dificuldade que ele conseguia realizar a sua ambição de se rodear de tesouros preciosos como um grande senhor. Havia demasiada gente a querer apoderar-se de quadros, de Gobelins, de móveis, de tapetes, de objectos de ourivesaria, de bibliotecas e de porcelanas. Goering roubava para a sua sumptuosa mansão de Karinhall e de Schorfheide, Rosenberg roubava para Hitler e para o seu prestigioso museu de Linz. Himmler fazia o mesmo para a sua vila Obersalzberg. Von Ribbentrop saqueava como coleccionador do Fúhrer, e o governador-geral, Frank, para as suas casas. Só Martin Bormann mostrava pouco interesse pela arte, mas ocupava-se com a paixão dos outros coleccionadores. Censurava sempre o transporte de obras de arte insubstituíveis, «reservadas ao Fúhrer». Exigia uma obediência incondicional, fazia saber a todas as instâncias superiores do Reich que podia estar ao corrente de tudo e ameaçava intervir em nome do Fúhrer.

Particularmente, o Gauleiter Koch lamentava a sua sorte, que o levava a ficar apenas com as migalhas que os grandes lhe deixavam. Era certo que essas obras bastavam para encher as suas casas com peças magníficas, mas não eram de primeira escolha. O orgulho de Koch sentia-se ferido...

Ali, no Leste, ele era o número um da Prússia Oriental, a mais bela das províncias. Por consequência, a quem deviam pertencer os mais belos tesouros dos castelos, das bibliotecas, dos conventos e dos museus?

A 19 de Setembro de 1941, quando Leninegrado ficou completamente cercada, o marechal-de-campo Wilhelm von Leeb, comandante-chefe do Grupo de Exércitos do Norte, ordenou à artilharia que bombardeasse a cidade para desmoralizar a população — uma chuva de obuses que durou dezoito horas. Nessa altura, o Gauleiter Koch convidara os amigos para beberem um copo em sua casa, entre eles o seu chefe de gabinete Bruno Wellenschlag e o doutor Findling, conservador do museu de Kõnigsberg. Este último, um homem austero e pouco falador, comera com sólido apetite antes de se dirigir para casa do Gauleiter, e metera no bolso alguns saquinhos com magnésia, dizendo à mulher:

«vou a casa de Koch beber um copo. Ele telefonou-me.»

Encontravam-se agora enterrados em profundos cadeirões e, para começar um serão agradável, bebiam uma garrafa de conhaque, ouvindo Koch que não lhes dizia nada de novo nem de entusiasmante: louvava a energia do Fúhrer, capaz de dominar a Rússia, atacando-a de uma maneira admirável. De repente, interrompeu-se e voltou-se para o doutor Findling.

— Conhece Puchkine? — perguntou.

— Sim. O antigo Tsarskoie Selo, Gauleiter.

— Uma porção de castelos, não é?

— Apenas dois. O Palácio de Catarina e o Palácio de Alexandre.

— Já lá esteve?

— Três vezes, Gauleiter.

— Então, conhece também a Sala de Âmbar?

— Perfeitamente. Nunca mais se fará uma tal obra-prima. A maior alguma vez realizada em âmbar. Como disse o Fúhrer: «O ouro alemão do mar Báltico.» Desde há séculos que lhe chamam também a «pedra de sol».

Findling engoliu um prolongado gole de conhaque. O âmbar produzia em Koch o mesmo efeito que uma linda mulher. A célebre colecção de âmbar de Kõnigsberg encontrava-se nas suas colecções de arte. Eram objectos de tal beleza que até faziam cortar a respiração, e uma só dessas jóias valia milhões. Tratava-se de um armário com portas duplas e gavetas, tudo em mosaicos de âmbar cintilante. Redigira alguns livros entusiásticos e desde então consideravam-no um perito internacional em matéria de âmbar.

— Sei a que se refere, Gauleiter.

— Bem visto, doutor Findling.

Koch encontrava-se em plena forma. O conhaque era bom, e a mulher que Bruno Wellenschlag lhe levara para acabar o dia era maravilhosa. Esperava-o no castelo, num quarto afastado a que Koch chamava a sua cavalariça.

— A Sala de Âmbar! Gostaria de a ter em Kõnigsberg?

— Se gostaria? QUERO! Ela é parte integrante deste castelo! Pode imaginar a Sala de Âmbar aqui, no castelo?

— Um verdadeiro conto de fadas, Gauleiter.

— Não se trata de um conto. Encarrego-me de o tornar real!

— Sabe bem que as obras de arte excepcionais são reservadas para o Fúhrer. A sala pertence certamente a essa categoria.

— E então... Falarei disso a Bormann. Sou o único a poder fazê-lo. Não fiz já promulgar um decreto, a três de Maio de mil novecentos e trinta e três, para proteger o âmbar?

— Isso foi épico, Gauleiter.

Findling estava a ser sincero. Quando se tratava de âmbar, o seu entusiasmo superava todas as suas outras preocupações e transcendia até as suas opiniões políticas. Ele não era membro do partido e não pertencia a qualquer outra organização, a não ser ao sindicato dos funcionários nazis, e isso unicamente para conservar as suas funções de conservador do museu e para não ver cair os seus tesouros nas mãos de algum nazi dedicado a Hitler. Não tinha qualquer posto e nunca envergara o uniforme, excepto durante a Primeira Guerra Mundial, onde chegara a ser alferes, porque, ao que parecia, era demasiado parvo para ser capaz de ir mais além. Olhava com mais gosto para um quadro de Van Gogh do que para uma metralhadora — o que estava longe de ser o perfil ideal para um soldado. Pelo menos, no Exército Imperial. A única coisa que o ligava a Koch era a paixão pelo âmbar. Fora disso, mantinha as distâncias, mesmo nas noites de bebedeira às quais nem sempre podia escapar, para não despertar a desconfiança de Koch.

Todavia, Findling sobressaltou-se quando Koch lhe disse com grande insistência:

— Parta para Puchkine e faça com que mais ninguém se apodere da nossa Sala de Âmbar.

Disse, efectivamente, a «nossa Sala de Âmbar», como se já fosse dele.

— Antes de mais, não me deixarão lá chegar. — Findling engoliu outro gole de álcool. — Ninguém lá pode entrar. Pelo menos um civil. Serei detido no primeiro controlo.

— Eu encarrego-me de o fazer chegar a Puchkine. — Erich Koch ergueu-se para ir buscar o balde com gelo que se encontrava noutra mesa, junto das garrafas, e abanou a cabeça ao ver Bruno Wellenschlag levantar-se de um salto para o ajudar a pegar no balde. Preferia renunciar aos serviços do seu adjunto. Gostava de evitar olhares estranhos e orelhas indiscretas, tal como sucedia na cama, quando se via reflectido nos espelhos. — vou telefonar a Bormann, ou talvez seja preferível dirigir-me logo ao quartel-general do Fúhrer. Ao «Covil do Lobo». A porta está sempre aberta para mim. E que significa «reservada para o Fuhrer»? Claro que o Fúhrer receberá da nossa parte a Sala de Âmbar para o seu projecto grandioso de Linz. A não ser que eu o consiga convencer que a maior obra-prima jamais realizada em pedra de âmbar deva ficar onde nasceu... na Prússia Oriental, portanto, em Konigsberg!

— Sabe o que é preciso para a transportar, Gauleiterl

— Diga, diga, doutor Findling.

— Pelo menos, vinte camiões

— Nós temo-los! — Koch desatou a rir inclinando-se para trás na cadeira. — Ninguém os tem, a não ser eu! O mais oficialmente possível. vou constituir um «comboio Koch» e, em seguida, meu caro, a caminho!

Abriu a primeira garrafa, um Riidesheimer, uma grande colheita, a de 1931, aspirou o seu aroma, deitou uma gota no copo, pôs na boca uma pequena porção e saboreou-a antes de a engolir.

— Um bocadinho do paraíso, na verdade! — exclamou com vivacidade. — Que pode haver de melhor na vida? Uma mulher desenvolta, um vinho sumptuoso e...

— A virilidade que se impõe — afirmou Wellenschlag esquecendo-se de com quem falava.

— Bruno, já alguma vez falhei? — Koch encheu os copos e deu uma palmada nas costas de Wellenschlag. — Tu estás é com inveja. Logo à primeira rodada vais-te abaixo e ressonas. Eu só depois da quarta rodada é que começo a estar em forma! À saúde! À nossa Sala de Âmbar!

Ergueram os copos para brindar. Findling suspirou interiormente. Não gostava daqueles discursos obscenos e vulgares, mas para estar bem com Koch mais valia habituar-se. Nem sequer a sua sobrinha escapava aos gracejos ordinários de Koch a respeito das mulheres, que reduzia à sua função de reprodutoras que ele aliás achava maravilhosa e natural.

A patuscada durou até às três da manhã.

Para voltar ao seu apartamento, Findling seguiu encostado às paredes ao longo dos corredores do palácio, pois tinha dificuldade em manter-se de pé. Conseguiu chegar a casa sem se magoar. Logo em seguida, deixou-se cair sobre a cama ao lado da mulher, incapaz de se despir, tendo apenas força para balbuciar:

— Se resultar... se resultar...

Adormeceu imediatamente com um sorriso quase infantil a pairar-lhe nos lábios.

Bruno Wellenschlag acompanhou o chefe até ao quarto de amor, no qual a mulher esperava há horas. Dormia meio despida em cima da cama. Era uma bonita mulher com uma bela cabeleira ruiva.

— Tu és um especialista, Bruno — declarou Koch tirando o casaco. Fez deslizar os suspensórios e começou a desabotoar as calças. — Perfeito como sobremesa. E agora fora daqui, espécie de alcoviteiro.

Wellenschlag retirou-se rapidamente. Tornara-se insensível às humilhações. Tantos anos ao serviço de Koch tinham-lhe ensinado a não se perturbar. O facto de se sentir inamovível ajudava-o a acalmar-se. Sabia de mais. Só a morte podia desatar o elo que os unia, mas, para o Gauleiter, isso não era problema.

No quarto, Koch pôs-se nu diante da mulher que dormia, balouçando-se sobre os calcanhares. Sentia-se descontraído. O álcool tinha-o tornado, como de costume, operacional.

Mas o Gauleiter Koch não conseguiu avançar mais para a conquista da «sua» Sala de Âmbar. Não encontrou Martin Bormann, nem em Rastenburg, nem no quartel-general do Fúhrer, nem mesmo na chancelaria do partido. E não ousou telefonar para casa dele, para a sua vila sobre o Obersalzberg, onde Bormann habitava ao lado de Goering e de Himmler, numa colina com uma vista deslumbrante.

Só a 22 de Setembro, após uma viva troca de palavras com um adjunto, é que Koch conseguiu, finalmente, falar com Martin Bormann ao telefone e fazer-lhe as suas propostas. Bormann, que acabara de sair de um almoço ritual com Hitler, pareceu muito receptivo às ideias de Koch.

— O Fúhrer acaba justamente de falar dos museus de Leninegrado e dos arredores. Os tesouros que ainda se encontram aí devem ser salvos, bem entendido. A pedido de Hitler, o marechal Keitel deu imediatamente ordem ao Grupo de Exércitos do norte para desmontar a fonte de Neptuno em bronze, do jardim superior do castelo de Peterhof. E obra de um escultor de Nuremberga, do século dezassete, e o Fúhrer disse que essa obra de arte devia estar em Nuremberga! Vai, portanto, ser desmontada imediatamente, ao mesmo tempo que a famosa estátua de Sansão e outras alegorias que se encontram em redor da grande cascata. A Sala de Âmbar... vou falar dela ao Fúhrer. Espere por instruções, Gauleiter.

Koch desligou, cheio de esperança. Não se tratava de um não categórico... era quase um sim. Rosenberg, Von Ribbentrop, Goering e todos os outros rivais pareciam afastados. O «rei da Prússia Oriental» tinha os melhores contactos com o quartel-general do Fúhrer.

Entretanto, o comandante Muller-Giessen estava furioso e não se resignava à sua decepção. Instalara-se com os seus peritos nalgumas salas do Palácio de Alexandre, tomara um banho e mandara escovar o seu uniforme. Comera quatro ovos estrelados e bebera meia garrafa de vinho tinto. Em seguida, sentiu-se suficientemente revigorado para ir ter com a bonita enfermeira e mostrar-lhe tudo, como prometera. A recordação das suas aventuras francesas tornava-o particularmente alegre.

Mas a bela enfermeira não se encontrava na Sala de Âmbar. O odioso civil, esse Wachter germano-soviético, esperava-o sentado num tamborete perto da porta. Múller-Giessen de teve-se junto dele.

— Que faz aqui? Dispenso-o do seu dever de vigiar a sala!

Michael Wachter recusou-se a entrar em discussão sobre esse assunto. Levantou-se delicadamente e disse:

— Lamento informá-lo, meu comandante, mas a enfermeira Jana não pode vir.

— Não podia ser ela própria a dizer-mo? — protestou o comandante.

— Nesse caso estaria aqui.

— Onde está ela?

— Não sei. Disse que a reclamavam com urgência num hospital.

— Em qual?

— Não mo disse. Também não lhe perguntei. Ela estava com muita pressa.

— Merda!

Muller-Giessen começou a andar de um lado para o outro na Sala de Âmbar, tentando visivelmente dominar a sua decepção, saindo depois sem nada dizer. Atravessou pensativamente o castelo até encontrar o oficial médico no Estado-Maior da Divisão, a quem perguntou:

— Quantos hospitais temos em Puchkine?

— Mesmo em Puchkine ou nos arredores?

— Nas proximidades, meu Comandante.

— Olhe, não posso improvisar a resposta. Contando os principais centros hospitalares na retaguarda, os locais onde se agrupam os feridos e os postos de socorro, poderão ser uns dezanove no território em torno de Puchkine. — O oficial médico olhou Miiller-Giessen com um ar admirado. — Porque deseja saber isso?

— Procuro saber se os hospitais estão instalados nos castelos onde ainda há objectos de arte — respondeu Miiller-Giessen com ar convincente.

Estava cada vez mais desiludido. Pelo menos, dezanove... era impossível visitá-los a todos, a fim de procurar a pequena enfermeira. Jana era o nome dela. Um lindo nome que lhe assentava perfeitamente. Jana...

— Os nossos médicos interessam-se pelos feridos, não pelos quadros ou antiguidades.

O oficial médico tornou-se menos comunicativo. Múller-Giessen compreendeu que não valia a pena continuar a fazer tais perguntas. Estava acabado, pensou amargamente. Acabado mesmo antes de começar. No dia seguinte, teria de partir para Peterhof, onde o Sonderfuhrer, Hans-Heinz Runnefeldt, superintendia à desmontagem da fonte de Neptuno. Obtivera do 18.º Exército os camiões necessários. O próprio Fuhrer dera ordem para isso.

O perito de arte cumprimentou e disse amavelmente:

— Muito obrigado, meu comandante.

Depois saiu da sala. Na entrada, repetiu a sua palavra favorita — «merda» — e saiu do Palácio de Catarina. O carro encontrava-se parado junto da escadaria. O motorista lia Die Wehrmacht, a revista dos soldados, com as reportagens ilustradas, as fotografias e os desenhos dos correspondentes de guerra que se encontravam em todas as frentes. Ao ver Miiller-Giessen sair do castelo, atirou precipitadamente a revista para o assento do lado.

— Voltamos ao Palácio de Alexandre! — resmungou o perito de arte deixando-se cair sobre o banco de trás. — Não... Vamos em direcção à cidade e pare em Bolchaia, a praça grande. Mas depressa, depressa, antes que seja completamente noite.

Passou o serão com uma camponesa avantajada que encontrou no caminho para Puchkine. Ela não o excitava particularmente. Estava ali como se fosse uma tábua, com os olhos fechados, a suportar o oficial alemão suado. «Um simulacro de amor», pensou Muller-Giessen perturbado. Ofereceu à rapariga três chocolates, um pacote de biscoitos e um pacote de pasta de fígado. Ela beijou-lhe a mão de satisfação e apressou-se a partir. «Ela fez isto unicamente por interesse», disse para consigo Muller-Giessen, indo depois lavar-se para tirar o cheiro da mulher. Como teria sido diferente com Jana. Um enorme júbilo. Mas percorrer dezanove hospitais... uma loucura.

— E amanhã — disse ele em voz alta no quarto — terei vinte camiões para carregar. Falarei pessoalmente com Kiichler!

Um desejo piedoso. O general de corpo de exército nem sequer quis recebê-lo.

Foi-se embora — anunciou Wachter esfregando as mãos de contente. — Espumava de raiva como um touro. Não voltará.

Jana Petrovna encontrava-se sentada diante do pequeno rádio quando Wachter regressou. Ouvia-o muito baixinho e inclinava-se sobre ele. Escutava a Rádio Leninegrado, os apelos à população, os relatos das medidas tomadas para defesa e dos combates na frente. Nada era oculto ou censurado. Os habitantes de Leninegrado sabiam o que o cerco lhes reservava: a fome, a morte, as bombas, os obuses e o frio Inverno que se aproximava. Mas nunca, nunca, eles ergueriam as mãos para se render. Leninegrado permaneceria russa.

Jana desligou o pequeno aparelho, endireitou-se e passou a mão pelos cabelos como fazia sempre que estava preocupada.

— Obrigada, senhor Wachter — respondeu ela, cumprindo as regras.

Teria preferido correr para ele e saltar-lhe ao pescoço.

Jana ficou três dias em casa de Wachter sem se atrever a sair. Recomeçou a passear nos jardins do Palácio de Catarina vestida de enfermeira apenas quando lhe pareceu que o perito de arte já não se encontrava em Puchkine com o seu Grupo de Intervenção Rosenberg.

Como já era costume, ninguém lhe prestou atenção. Preocupavam-se apenas em saber se ela tinha vagar para... Eram numerosos os oficiais que lhe propunham tornar atraentes os longos serões monótonos. Ela mantinha-se inacessível a todas as demonstrações de amizade e a todos os sorrisos insinuantes e passou assim a ser objecto de apostas na messe dos oficiais. Quem conseguiria fazer com que a adorável enfermeira cedesse? Quem seria o vencedor? Louvavam os médicos que deixavam circular por ali aquele anjo virginal! E todos se mostravam «sempre prontos a entrar em acção»!

A 28 de Setembro, o castelo mudou de ocupantes. O general Von Kortte despediu-se de Wachter como se deixasse um bom amigo. O seu corpo de Exército fora transferido para leste da linha do cerco, o que explicava a instalação do 50° Corpo de Exército no Palácio de Catarina.

— Desejo-lhe boa sorte — disse Von Kortte à despedida. — Talvez voltemos a encontrar-nos em qualquer parte... Você é fácil de encontrar. Basta procurar a Sala de Âmbar.

— Se sobrevivermos à guerra, meu general. — Wachter engoliu a saliva, com voz comovida. — Agradeço-lhe por tudo. Rezarei por si. Talvez Deus acorde... agora dorme...

— Não diga isso tão alto. É derrotismo. Desmoralização das tropas. Isso acarreta a pena de morte. Para sobreviver, Apense e fale apenas em termos de vitória final. A Sala de Âmbar tem verdadeiramente necessidade de si. — Von Kortte bateu no ombro de Wachter. — Você não tem filhos, não tem herdeiros?

— Nenhum, meu general. — Afectou um ar despreocupado. — Mas ainda não é demasiado tarde. Tenho apenas cinquenta e cinco anos.

— Tem que se despachar, meu caro! — respondeu Von Kortte, rindo e estendendo de novo a mão a Wachter.

— E quem vem para aqui agora, meu general?

— O Quinquagésimo Corpo. O general Jobs von Haldenberge, comandante do corpo de exército.

— Conhece-o?

— Mais ou menos. É um homem com quem se pode falar. Hei-de falar-lhe de si. É um homem sério mas agradável. Poderá convencê-lo da importância da Sala de Âmbar. Comigo conseguiu fazê-lo...

A longa coluna do Estado-Maior do 50.º Corpo de Exército chegou nessa noite ao Palácio de Catarina. O general instalou-se, como Von Kortte, no salão chinês. Para dormir, escolheu-se o quarto de Catarina II, uma sala que vira desfilar os inúmeros amantes da czarina, cujas paredes teriam muito que contar.

No dia seguinte de manhã, Wachter pediu que o anunciassem ao general Von Haldenberge. com grande espanto do ordenança, o general recebeu imediatamente Wachter. Haldenberge tinha fama de considerar qualquer incómodo inútil como uma ofensa pessoal.

— Já me foi recomendado, senhor Wachter — disse, sem no entanto lhe estender a mão, pois isso seria já demasiada familiaridade. — Disponho de meia hora. Pode mostrar-me a lendária Sala de Âmbar.

Jana, que se encontrava na sala para ficar a conhecer o general Von Haldenberge, mal atraiu a atenção dele. Não a considerou mais do que uma enfermeira que admirava obras de arte durante o seu tempo livre...

— Fenomenal! — exclamou Von Haldenberge quando Wachter afastou um dos painéis de protecção e pôs a descoberto algumas estatuetas. — Nunca vi nada semelhante. Não admira que o Fuhrer deseje salvá-la. Nunca existirá outra igual.

— O Fuhrer? — repetiu Wachter, inquieto.

— Sim. Von Kortte não o informou? — O general Haldenberge contemplou os frescos esplêndidos do tecto. — O Fuhrer enviou uma ordem, que eu recebi igualmente, como novo ocupante de Puchkine, para o marechal-de-campo Wilhelm von Leeb e o general de corpo de exército Von Kiichler. — Wachter estremeceu, encolhendo os ombros. — Dentro de dois ou três dias, o Sonderkommando Hamburgo, do Ministério dos Negócios Estrangeiros, estará aqui no castelo.

— O capitão de cavalaria, doutor Wollters?

— Já o conhece? Sim, faz parte do grupo. O comando encontra-se sob as ordens do Sonderfiihrer Runnefeldt, se bem compreendi o nome dele. Esse Runnefeldt tem certamente plenos poderes dados pelo Fuhrer. Isso consta igualmente das instruções do quartel-general do Fuhrer. Segundo me fez saber o general Von Kúchler, o comando vem encarregado de desmontar a Sala de Âmbar.

Von Haldenberge olhava para o tecto. O pavimento em marchetaria, composto por madeira de palmeira e de jacarandá rosa e negra e com embutidos de âmbar de reflexos amarelos, arrancou uma exclamação de admiração ao general.

— Incrível! Eram uns verdadeiros artistas, senhor Wachter. E tinham tempo de se consagrar à sua arte. Não havia pressas.

Saiu da Sala de Âmbar sem um olhar para Jana Petrovna, com ar pensativo. Von Kortte parecia tê-lo informado bem, pois ele tirou um papel do bolso, desdobrou-o agitando-o no ar e ajustou um monóculo no olho esquerdo.

— vou ler-lhe isto para lhe fazer ver a gravidade dos tempos que estão para vir. É uma nota do Décimo Oitavo Exército ao qual está ligado o meu Corpo de Exército:

Vinte e oito de Setembro de mil novecentos e quarenta e um, dezasseis horas. O capitão de cavalaria doutor Wollters, encarregado pelo Alto Quartel-General do recenseamento dos objectos de arte nos castelos dos czares, pede que se proteja o palácio de Puchkine, que foi ligeiramente danificado pelos bombardeamentos e se encontra actualmente ameaçado pelo comportamento negligente das tropas. O corpo de exército está encarregue da sua salvaguarda. A Intendência fornecerá a mão-de-obra e as viaturas de transporte para pôr a salvo os tesouros mais preciosos, sob a direcção do capitão de cavalaria doutor Wollters.

Von Haldenberge pousou a folha.

— É muito claro, não é? As tropas vão deixar o castelo hoje mesmo. Só os estados-maiores ficarão aqui. Vinte homens, ou mais, da unidade de reabastecimento permanecerão como reforço. Só me falta arranjar os camiões.

Von Haldenberge voltou a guardar o papel no bolso. Reparou na expressão de pânico de Wachter, teve pena dele, mas nada mais podia fazer. O Alto Quartel-General dera uma ordem que exprimia os desejos de Bormann e de Hitler. Apenas lhe restava obedecer.

— É para que toda a operação se desenrole conforme os votos do Fiihrer, será superintendida pelo doutor Runnefeldt em pessoa. Ele foi especialmente encarregue desta missão por proposta de Bormann.

— O senhor... o senhor tem a intenção de roubar a Sala de Âmbar? — murmurou Wachter.

O general Von Haldenberge franziu os sobrolhos e lançou a Wachter um olhar quase assustado.

— Que está a dizer? Eu prefiro não ter ouvido. A Sala de Âmbar é reintegrada no Reich... Pertencia a Frederico Guilherme Primeiro. É obra de artistas alemães. É assim que as coisas devem ser consideradas. E é este o ponto de vista do Fúhrer.

Wachter fez um aceno afirmativo com a cabeça. Pensava no destino da família Wachter, nos duzentos e vinte e cinco anos passados e no testemunho do seu antepassado, Friedrich Theodor Wachter:

«O rei ofereceu a Sala de Âmbar ao czar Pedro Primeiro. Devia estar embriagado. A única consolação que nos restava era acompanhar a sala até Sampetersburgo. O rei prometeu-nos isso. Qual vai ser agora a nossa vida?

«Sim, qual irá ser a nossa existência? Que vai ser de nós sem a Sala de Âmbar?»

— Estou desolado por ter de lhe dizer isto — disse Von Haldenberge, bem-intencionado, batendo no ombro de Wachter, o que não o acalmou. — De qualquer modo, a Sala de Âmbar será salva. Isso deve animá-lo.

Wachter anuiu, em silêncio. Esperou que Von Haldenberge partisse, e depois voltou para a Sala de Âmbar. Jana Petrovna olhou-o com um ar assustado, correu para ele, esquecendo toda a prudência, e abraçou-o.

Wachter chorava. Grossas lágrimas corriam-lhe pelo rosto.

— Eles... eles vêm? — disse ela, abraçando-o.

— Sim.

Então ela começou também a chorar. Agarrados um ao outro, pareciam dois náufragos prestes a irem ao fundo, incapazes de se consolarem mutuamente.

— Oh, não, não pode ser! Ainda estou cheio de dores de cabeça!

O doutor Findling acabara de receber, trazido por um ajudante-de-campo do Gauleiter Koch, um novo convite para essa mesma noite. Horas mortais em perspectiva com mais uma bebedeira.

— vou arranjar uma desculpa. A minha gripe outonal. Tens de ir em meu lugar, Marta.

— Eu? Sozinha para casa de Koch? Nem pensar nisso! — protestou Marta Findling. — Koch é teu amigo. Tens de tratar do assunto com ele, Wilhelm.

— Quantas vezes tenho de te dizer que ele não é meu amigo?

— Mas ele procede como se fosses.

— Se tiver a infelicidade de ofender Koch, serei demitido das minhas funções dentro de vinte e quatro horas e enviado para a frente. Eles chamam a isso «a prova da frente»! Koch possui um orgulho doentio e, além disso, é muito rancoroso. Só aceitará a desculpa da doença, Marta.

— Não! Não! Não! A última vez chegou-me. Ele agarrou-me pelos seios...

— Eu não sabia disso! Tu nunca me tinhas dito. Esse filho da puta!

— Que fazias se eu te tivesse contado? Nada! Koch é mais poderoso.

Marta Findling não exagerava. Koch era o senhor. Quando Findling se apresentou em casa dele com ar contrito — Bruno Wellenschlag, o braço-direito de Koch, também se encontrava presente — e se desculpou por estar com gripe, Koch exclamou jovialmente:

— Então comece por beber um triplo, doutor! É o que eu faço sempre. Afogo os micróbios em conhaque. Depois, quando lhe tiver dito por que motivo o chamei, vai dançar a java. Primeiro o triplo...

Estoicamente, Findling esvaziou o seu copo. Koch e Wellenschlag, que nenhuma gripe afligia, fizeram-lhe companhia. Em seguida, Koch lançou a primeira notícia com o rosto triunfante de um gladiador.

— O contacto com o general de corpo de exército Von Kuchler e o Décimo Oitavo Exército foi perfeito. A ideia do comboio Koch foi muito bem acolhida e caminha sobre rodas. Os camiões levarão munições e abastecimentos para a Frente, o que aliviará as viaturas militares propriamente ditas, que asseguram actualmente os movimentos rápidos de tropas. No regresso, para não voltarem vazios, estarão à disposição da nossa Gauleitung1.

— Os meus cumprimentos — disse Findling.

Sentia a cabeça a andar à roda, o conhaque assentava-lhe

 

1 Administração da província. (N. da T.)

 

mal no estômago. «Gauleiter», pensou subitamente agoniado, «se eu vomitar em cima do tapete, o senhor será o único responsável.» Não compreendera ainda o que significava a informação de Koch. Este olhou para Wellenschlag, recostado num dos grandes cadeirões.

— Em segundo lugar — prosseguiu Koch esfregando as mãos —, dirigi-me ao «Covil do Lobo», e falei com Bormann. Expliquei-lhe qual era o melhor lugar, o mais seguro para guardar a Sala de Âmbar até que o Fúhrer a possa instalar em Linz, após a vitória final. Exactamente no local onde ela foi criada, aqui em Kõnigsberg, neste castelo! E Bormann concordou. A sala ficará nas suas mãos, doutor Findling!

Findling olhou para o Gauleiter Koch com um ar espantado. As suas dores de estômago desapareceram como por encanto. A cabeça já não estava pesada e o álcool volatizara-se.

— Meu Deus... — balbuciou. — Aqui... Meu Deus...

— O que é que Deus tem a ver com tudo isto? — Koch agitou o ar com as duas mãos, como se quisesse afastar um enxame de abelhas. — Não foi Ele que o ajudou. Fui EU que tratei de tudo como estava previsto. EU!

— É formidável, Gauleiter — apressou-se a observar Wellenschlag. Conhecia muito bem a vaidade de Koch. Não o lisonjear seria uma espécie de suicídio. — Simplesmente formidável! Os outros, desde Berlim e Berchtesgaden vão ficar furiosos!

O fiel Bruno Wellenschlag deu-se mesmo ao trabalho de aplaudir, como se Koch tivesse acabado de cantar uma ária de Wagner.

— Quando? — perguntou Findling sentindo as pernas fraquejarem. — Quando, Gauleiter!

— Vêm já a caminho. Dezoito camiões com os meus melhores condutores. Os peritos do Sonderkommando Hamburgo, encarregado da missão, ligado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, partiram de Pleskau. Sob a chefia do capitão de cavalaria doutor Wollters, e do Sonderfúhrer Runnefeldt... O general Von Haldenberge, comandante do Quinquagésimo Corpo de Exército, dar-nos-á todo o auxílio necessário. Receberemos a Sala de Âmbar aqui no castelo dentro de quinze dias. — Para beber a esse triunfo, Koch serviu-se de outro copo de conhaque que esvaziou de um trago, sem respirar. — Que tem a dizer, doutor Findling?

— Nada.

— Nada?

— Não encontro palavras, Gauleiter. Estou demasiado impressionado. — Findling era sincero. A ideia de ir ter no seu museu, dentro de duas semanas, o maior tesouro existente em pedra de âmbar, cortava-lhe a respiração. — Eu não poderia ir também a Puchkine?

— Isso seria inoportuno. A desmontagem e o transporte da Sala são tarefas militares. Foi o que se combinou com o general de corpo de exército Von Kííchler. Pelo menos, por causa de Rosenberg. Ele está à espreita, como o diabo diante de uma alma de cardeal. Só quando a Sala de Âmbar estiver em Kónigsberg e instalada, é que ela ficará, de facto, nas suas mãos. — Erich Koch começou a andar de um lado para o outro na sala, com as mãos cruzadas atrás das costas. — Daqui até lá, pode ir pensando no local onde montar a Sala.

— Só vejo um local possível, no terceiro andar da ala sul.

A voz de Findling continuava alterada. O coração batia-lhe desordenadamente. — Deitando abaixo uma parede, o espaço poderá ficar aproximadamente com as dimensões da sala de Puchkine.

— E que se encontra lá actualmente?

— Uma parte da galeria de quadros. Encontram-se expostos quadros de Liebermann, de Modersohn-Becker e de Corinth.

— Arte judia e degenerada — apressou-se a acrescentar Wellenschlag. — É uma montra de horrores, Gauleiter.

— Deitem isso tudo fora! — rugiu Koch apontando um dedo ameaçador para Findling. — Como é que ainda se encontram aqui tais porcarias? Por que motivo não foram todas queimadas?

— A Casa de Arte Alemã, em Munique, comporta igualmente uma sala com pinturas e esculturas degeneradas. A pedido do Fuhrer. Para dissuadir as pessoas e criar uma arte popular sã. Só se pode reconhecer a verdadeira arte comparando-a com essas degenerescências.

— Concordo com isso, doutor Findling — aprovou Koch abanando a cabeça várias vezes. — O Fuhrer tem razão.

Ele próprio pintou. Que tenciona fazer dessas obras judias?

— Irão para a cave, Gauleiter.

Findling inspirou profundamente. Estivera perto da catástrofe, pensou. Koch seria capaz de mandar queimar tudo. Fora uma sorte ter-se lembrado de contar aquela história acerca de Hitler. Era excelente referir-se sempre a ele em situações críticas. Não poderia haver melhor argumento.

Koch parou em frente de Findling e inclinou a cabeça, fazendo aparecer um duplo queixo que lhe dava um falso ar de bonomia.

— Vai escrever um artigo, doutor: «O regresso da Sala de Âmbar à pátria.»

— Como desejar, Gauleiter.

Findling sentia-se quase pronto para tudo, desde que aquela maravilha ficasse no seu museu. Era o apogeu da sua vida, um sonho que se realizava, um conto de fadas que se tornava realidade. Imaginou-se a acariciar os mosaicos deslumbrantes, as esculturas e as grinaldas. Que sensação prodigiosa! Ficou outra vez sem poder respirar.

— Trata-se apenas de proceder à desmontagem com prudência... com sensibilidade, por assim dizer.

— O doutor Runnefeldt saberá ocupar-se disso. — O Gauleiter Koch deixou-se cair sobre uma cadeira e estendeu as pernas. Nessa noite envergava o uniforme, com calças tufadas e botas de montar em cabedal envernizado. — Bormann não podia fazer melhor proposta.

— A Sala de Âmbar vai então ficar exposta ao público? — Findling estendeu o seu copo a Wellenschlag. O álcool transformava-se agora num remédio. Começava a sentir-se inflamado. — Vai ser aberta ao público?

— Porque não? — Koch ergueu os sobrolhos. — É com esse objectivo que vamos buscá-la! Primeiro em Kónigsberg, depois em Linz... a não ser que eu consiga fazer com que o Fuhrer mude de opinião e a possa conservar em Kõnigsberg. Como símbolo do «ouro alemão».

O velho ditado segundo o qual os ladrões não se gabam daquilo que fazem parecia já não se aplicar. Os ladrões sentiam-se orgulhosos dos seus saques, toda a gente devia vê-los e admirá-los. O povo dos vencedores podia ficar entusiasmado.

Honra de bandidos.

Quem duvidava ainda da vitória final? Apenas os que sabotavam a moral das tropas... e esses eram executados.

No dia 1 de Outubro, a pequena coluna do Sonderkommando Hamburgo, enviada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, entrou em Puchkine. Conheciam bem o caminho até ao Palácio de Catarina. Toda essa gente parou diante da escada exterior, desceu das viaturas, ligeiramente anquilosada pelo longo trajecto, descarregou as bagagens e alinhou numa formação perfeita ao lado das escadas.

— Ei-los... — suspirou Michael Wachter.

Estava com Jana Petrovna perto da janela de uma pequena sala decorada com esmalte azul e branco, a que chamavam «Caixa de Tabaco». O seu único móvel era um largo divã oriental. A czarina Catarina II recebera aí os seus amantes que ela esgotava com a sua insaciável sensualidade. Depois... fumavam nesse pequeno salão, que por isso ficara com aquele nome.

— Efectivamente, o doutor Wollters chegou — constatou Jana. — Preciso de me esconder. Ele não pode ver-me.

— O melhor é esperares, Jana.

Wachter ficou a ver os camiões serem descarregados. Uma ordenança do general Von Haldenberge saíra do castelo e falava agora com um dos homens em uniforme das SS, com galões prateados, mais estreitos que os habituais galões de oficial.

— É, com certeza, o doutor Runnefeldt — observou Wachter, crispando os dedos. — Em que é que isto diz respeito aos SS? Suponho que são mandatados pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros. — Jana, tudo isto me parece inquietante...

— Que vais fazer, paizinho? — Os seus olhos escuros observavam o rosto dele para procurarem um sinal de emoção, mas Wachter arvorara uma expressão impassível, como que petrificada. — Não podes fazer coisa alguma.

— vou ajudá-los — respondeu Wachter com voz surda.

— Ajudá-los, paizinho?

— A tirar os painéis e a protecção, a embalar e a carregar. É preciso que não haja mais estragos. Já houve os suficientes.

— Se eles te deixarem entrar na sala...

— Falarei com o doutor Runnefeldt. O general acha que ele é mais acessível do que Wollters.

Continuou a olhar para as viaturas e fitou o homem com o uniforme das SS. Este afastara ligeiramente as pernas e com a cabeça inclinada para trás contemplava a bela fachada do palácio. Era visível que se sentia impressionado.

— Deve-se poder falar com ele. Tem uma expressão bondosa.

— Um oficial das SS...

— Há tigres que se deixam acariciar. — Wachter afastou-se da janela. — vou descer para o cumprimentar. É preciso que toda a gente fique a saber que faço parte da Sala de Âmbar do mesmo modo que as rosas esculpidas ou as rosáceas.

Wachter vestiu o casaco, acariciou o rosto pálido de Jana, que estremeceu, e saiu rapidamente da sala.

Entretanto, o general Von Haldenberge recebera os enviados do Ministério dos Negócios Estrangeiros e lera a ordem onde constava a missão que traziam. Em seguida, pedira-lhes que se sentassem nas cadeiras chinesas com incrustações de nácar.

— O Estado-Maior já me tinha anunciado a vossa chegada, mas não os esperava tão cedo — disse. — Vieram montados numa bala de canhão como Miinchhausen1?

Runnefeldt riu do gracejo. Wollters ficou impassível. Totalmente desprovido de sentido de humor, não achou graça. Pensou tratar-se de uma alusão ao seu posto de capitão de cavalaria. Primeiro, Von Kortte e agora Von Haldenberge... era espantoso como aquele tipo de pessoas podia estar espalhado entre os generais!

— Cada dia conta — replicou com a seriedade que se impunha. — Puchkine encontra-se na zona de combate. Tudo pode acontecer.

— Isso é bem visto — ironizou Von Haldenberge, oferecendo cigarros que Wollters recusou. Runnefeldt aceitou imediatamente um. — Onde há tiros qualquer coisa pode suceder.

A zombaria era tão evidente que Wollters se sentiu injuriado.

 

1 Alusão ao famoso barão de Munchhausen (1720-1797), oficial alemão que, ao serviço da Rússia, lutou contra os turcos. As suas fantasias e aventuras foram reescritas com incríveis patranhas. (N. do E.)

 

— Vão começar imediatamente? — continuou Von Haldenberge.

— Sim, a partir de amanhã, meu general.

— De quantos auxiliares precisam?

— Apenas de alguns homens. — Runnefeldt aspirou três grandes baforadas, engoliu o fumo e depois deixou-o sair aos poucos. — Se houver pessoas a mais, acabam por se incomodar umas às outras. Seis, dez homens no máximo. Mas muito hábeis. Trata-se de um trabalho delicado que exige uma grande sensibilidade nas pontas dos dedos. Talvez tenha artistas entre os seus soldados?

— Só vendo. Inquirirei também nos hospitais. Mas isso levará mais de um dia.

Wollters preparava-se para perguntar porquê quando Runnefeldt lhe tirou a palavra.

— Entretanto iremos tirando os painéis de protecção. Para isso não são necessários especialistas. Olhou de relance para Wollters. Ia dizer alguma coisa, meu capitão?

— Não!

Wollters, vexado, ergueu o queixo anguloso. «Quem julga que é este Sonderfuhrerl» pensou, furioso. «Nem sequer é um oficial. É um posto criado para permitir aos civis terem a honra de usar um uniforme. Uma ofensa para todos os oficiais. Para todos os antigos cadetes. E um tipo destes julga ditar leis aqui? Dá-se ares e pavoneia-se como um pavão. Passeia-se por aí com uma ordem de missão no bolso. Apesar disso o autorizar a realizar acções por ordem de altos postos, não lhe dá o direito de tratar um capitão de cavalaria como se fosse um empregado de estrebaria.»

Um ordenança trouxe café e biscoitos sobre uma bandeja. Cafeteiras e açucareiros de prata e chávenas de delicada porcelana de Meissen, tudo fora propriedade da czarina Isabel. As salas estavam cheias delas.

O doutor Wollters pegou na sua colher de café e aproximou-a dos olhos. Depois voltou a chávena e viu as espadas cruzadas. Efectivamente, eram Meissen autêntico.

— E as cafeteiras e açucareiros foram feitos pelos maiores ourives de Sampetersburgo — comentou ironicamente Von Haldenberge ajustando o monóculo. — Pertenceram ao czar Pedro, o Grande.

«Tanto isso como o resto», pensou Wollters sem se dar ao trabalho de responder ao general. Como os ícones, a colecção de pedras preciosas, os lustres de cristal com incrustações de ouro das salas de recepção. «Nada aqui vai ficar. Eu sei, meu caro general, que tesouros preciosos se encontram neste castelo. O doutor Runnefeldt não está ao corrente disso, o que me tranquiliza. Um dia terei no meu escritório três ou quatro dos ícones mais antigos e mais preciosos... e não me envergonharei disso.»

Mergulhado nestes pensamentos agradáveis, Wollters sobressaltou-se ao ouvir Haldenberge dizer:

— Uma ordenança vai conduzi-los junto do senhor Wachter.

— Quem é Wachter? — perguntou Runnefeldt.

— Um casmurro — respondeu Wollters com um gesto desenvolto. — Guarda a Sala de Âmbar... há duzentos anos, segundo afirma. Uma tradição familiar. Comporta-se como um verdadeiro proprietário.

— Apesar de tudo, gostaria de o conhecer. — Runnefeldt levantou-se e foi apagar o seu cigarro num cinzeiro dourado que pertencera outrora ao czar Alexandre II. — Talvez ele nos possa aconselhar.

— Aconselhar? Um empregado de museu? Um lacaio? — disse com desprezo Wollters, mostrando-se indignado.

— Porque não? Um guarda de museu sabe às vezes mais a respeito dos tesouros que lhe estão confiados do que um conservador. Conheci um guarda que detectou uma falsificação. Nós, os grandes peritos, achávamos que se tratava de um original e assinámos todos o certificado.

Antes de saírem, fizeram a continência. O general Von Haldenberge contentou-se em levar a mão à testa, gesto ambíguo que podia significar uma saudação ou outra coisa.

Na Sala de Âmbar encontraram apenas um homem de uma certa idade. A ordenança, que os acompanhara girou sobre os calcanhares e deixou-os sós. Runnefeldt estendeu a mão a Michael Wachter, mas Wollters aproximou-se dos painéis deslocados e começou a assobiar baixinho uma velha canção alemã.

— O senhor chama-se Wachter, não é verdade? — perguntou amavelmente Runnefeldt...

— com efeito. — Wachter aquiesceu com um sinal de cabeça, com ar admirado. — E o senhor é o doutor Runnefeldt...

— Sim.

— Pertence às SS?

— Não. Porquê? Ah, sim, por causa do meu uniforme. Dirijo o serviço externo do Museu de Berlim. O Fúhrer encarregou-me de uma missão especial. Não sou oficial nem soldado e não posso por isso vestir a farda de honra. Deram-me a aparência de um SS e chamaram-me Sonderfúhrer. — O doutor Runnefeldt encolheu os ombros. — Era preciso um uniforme.

Wollters assobiou com mais força. Era espantoso! Tanta familiaridade com um subalterno. «E mesmo debaixo do meu nariz, eu, um oficial de cavalaria. E sobretudo com este Wachter! Quem estará encarregado de o controlar? Onde se encontra o dossier dele? Pode estar a contar-nos mentiras e ser, na realidade, um agente soviético. Duzentos e vinte e cinco anos ao serviço dos russos... é mais que estranho! E afirma nunca ter tomado a nacionalidade russa, assim como os seus antepassados. Como hei-de acreditar? Se não existe dossier sobre ele, nós arranjaremos um e investigaremos o seu passado! Talvez fiquemos então a saber quem ele é.»

— Querem então desmontar a Sala de Âmbar e transportá-la? — perguntou Wachter, inquieto, mas um pouco mais tranquilo por saber que não era um SS que levaria a Sala de Âmbar para a fazer desaparecer para sempre.

— Sim — respondeu Runnefeldt. — Começamos amanhã. Desmontaremos a sala com precaução, em painéis separados que embalaremos com cuidado em caixotes, que serão também cuidadosamente transportados. Esperamos dezoito camiões para esse efeito.

Runnefeldt lançou um olhar aborrecido a Wollters, que continuava a assobiar.

— Vai ajudar-nos, senhor Wachter? — perguntou, num tom de voz um pouco mais alto.

— Se me autorizarem.

— Ninguém conhece a Sala melhor do que o senhor.

— Poucas pessoas se conhecem a si mesmas, doutor.

— Tem razão. Muitas são cegas.

Aquilo destinava-se a Wollters, que compreendeu imediatamente e franziu os lábios. O assobio terminou abruptamente.

— E... e para onde vão transportar a Sala? Wachter arriscou-se a fazer a pergunta sem grande esperança de obter resposta. Mas Runnefeldt não fez qualquer segredo.

— Para Kõnigsberg.

— Kõnigsberg.

O cérebro de Wachter começou a trabalhar febrilmente. Kõnigsberg, na Prússia Oriental. A Sala de Âmbar ficava no Leste! Sentiu-se invadir por uma ínfima esperança. Era possível que ele pudesse ir também para Kõnigsberg. Runnefeldt não era pessoa para lhe recusar completamente isso. A tensão existente entre Runnefeldt e Wollters dava-lhe esperanças para o futuro.

— Mais tarde, após a vitória final, a sala será reconstituída no maior museu do mundo. — Runnefeldt abriu os braços. — A Sala de Âmbar será a mais preciosa jóia desse museu. Vai ser mandado construir pelo Fíihrer, em Linz. Um templo dedicado à arte para os próximos mil anos.

— Já ouvi falar. Trata-se de uma cidade nas margens do Danúbio, na Áustria.

— Nas fronteiras orientais, meu caro Wachter. Mas o senhor não conhece ainda esses cambiantes. — Runnefeldt começou bruscamente a rir. — A sua família esteve sempre ao serviço dos russos. Porque não se naturalizou russo?

— Foi o rei Frederico Guilherme Primeiro quem ordenou que onde se encontrasse a Sala de Âmbar estaria sempre um Wachter alemão.

— E agora você é o último?

— Sim. — Wachter hesitou em responder. — Sim, Doutor. Nunca consegui ter filhos. A minha mulher morreu prematuramente. Amava-a muito e não voltei a casar. Sei que é lamentável. Há duzentos e vinte e cinco anos que os Wachter têm tido sempre filhos. A missão ordenada pelo rei acabará comigo.

Calou-se. Pensou em Nikolai que, nesse momento, talvez estivesse no Ermitage e que, com sorte, sobreviveria à guerra. Caso contrário, então... não teria mentido.

Reuniu toda a sua coragem para fitar Runnefeldt nos olhos. «Tem um olhar bondoso», pensou novamente. «Só o uniforme é que o faz parecer perigoso.»

— Por isso... tenho um favor a pedir-lhe — prosseguiu Wachter com uma inspiração súbita. — Visto ser o último Wachter... porque não utilizar os meus serviços? Poderei ir também para Kõnigsberg?

Wollters girou sobre os calcanhares. As solas das suas botas de montar rangeram sobre o pavimento de marchetaria.

— É incrível! — interveio ele. — Quem julga este homem que é? Contente-se em ficar no castelo vazio a apanhar ratos, percevejos e baratas.

Calou-se bruscamente e percebeu que acabara de cometer um grande erro. A reacção de Runnefeldt não se fez esperar.

— vou interferir a seu favor, senhor Wachter. Mas só posso fazer alguma coisa até à chegada a Kõnigsberg. Depois disso, só o doutor Findling, o conservador do museu, poderá tomar decisões. Trata-se de uma pessoa encantadora e, sobretudo, é o maior perito em matéria de âmbar.

— Então posso continuar a ter esperanças?

— Sem esperança a vida não teria sentido.

— E o senhor levar-me-á para Kõnigsberg?

— Não sei ainda. — Runnefeldt pousou uma mão sobre o ombro de Wachter, como se lhe estivesse a fazer uma promessa silenciosa. — De qualquer modo, prepare-se para isso.

Depois dessa entrevista, Wachter entrou em casa, abraçou Jana Petrovna e fê-la rodopiar nos seus braços, louco de alegria.

— vou partir com eles, minha filhinha! — exclamou radiante de felicidade. — vou para Kõnigsberg com a minha sala... Ficarei junto dela até ao regresso de Nikolai e até que vocês tenham um filho. Talvez seja melhor a Sala deixar o castelo. Será salva em vez de ficar enterrada debaixo dos escombros. Jana, minha filhinha, o destino protege-nos!

Nesse dia, o oficial encarregado do jornal do 50.º Corpo de Exército anotou:

Krasnogvardeisk, 1-10-1941

O capitão de cavalaria doutor Wollters e o Sonderfúhrer, doutor Runnefeldt foram designados pelo Alto Quartel-General para transportarem para local seguro as obras de arte situadas na zona de comando do 50.” Corpo do Exército.

Nessa noite, muito naturalmente, Wachter embriagou-se. Tirou do quarto da czarina Maria Feodorovna a sua última garrafa de vodca, que escondera debaixo da cama feita de madeira de ácer.

Diário de guerra do 50.º Corpo de Exército:

Krasnogvardeisk 14-10-1941

O capitão de cavalaria doutor Wollters e o Sonderfúhrer doutor Runnefeldt, peritos em arte, procedem ao transporte de objectos de arte, nomeadamente das paredes da Sala de Âmbar do castelo de Puchkine (Tsarskoie Selo) para Kõnigsberg...

Durante esses quinze dias, Michael Wachter não teve praticamente um momento de repouso. Dormia na Sala de Âmbar, onde se estendia sobre uma cama de campanha, para dormir apenas três horas com um sono agitado. Fora buscar essa cama atrás de um cortinado do quarto barroco do czar Alexandre I, local de repouso um tanto espartano dos czares guerreiros.

A falar verdade, o pedido do doutor Runnefeldt de se arranjarem homens com mãos delicadas deu lugar a alguns incidentes.

Assim, o sargento-mor mandou reunir uma companhia, retirada da frente, para repousar em Puchkine, o que deu ocasião a um estranho diálogo.

— Ouçam-me todos! — gritou o sargento Max Himmerich, percorrendo com o olhar as fileiras de soldados. — Há algum artesão entre vocês?

Ninguém se denunciou. Conheciam muito bem Himmerich. Se se fizessem notar, arriscavam-se a ouvir a seguinte frase: «Que género de artista? Escultor? Vá, depressa para as latrinas para tirarem a merda seca das paredes.»

— O quê? — gritou Himmerich. — Não há nenhum artista na minha companhia? Só analfabetos? Avancem todos os artistas!

Três homens saíram das fileiras e deram hesitantemente um passo em frente. O sargento-mor franziu os olhos. Três, era sempre assim.

Aproximou-se do primeiro voluntário e fitou-o. Os três rapazes não tinham ar de artistas, apesar de Himmerich não saber muito bem qual o aspecto de um artista.

— O que é que tu és? — resmungou ele.

— Atirador Eberhard Gneist, meu sargento.

— Perguntei o que é que tu és, não quem! — berrou Himmerich.

— Impressionista.

— Ah! — Himmerich ergueu as sobrancelhas. — Irnpre... quê? O que é isso? com certeza inutilizável... Para trás! — gritou.

O seguinte fez uma expressão de riso quando Himmerich se aproximou dele.

— E tu?

— Sou oleiro, meu sargento. Himmerich inspirou profundamente.

— Espécie de idiota! — vociferou. — Faz tachos e diz-se artista!

O terceiro esperou que o sargento se aproximasse e pôs-se em sentido quando Himmerich chegou junto dele.

— E tu? Também és artista?

— Não, meu sargento. Sou artesão vidreiro. Himmerich sobressaltou-se. Não fazia ideia nenhuma do

que aquilo poderia ser. Em todo o caso, não fazia parte da categoria dos artistas como ele os entendia. Não era pianista, nem cantor, nem pintor, nem sequer de edifícios. Que porcaria de companhia tinha ali!

— Dispersem! — gritou Himmerich. Olhou para a comprida fila de soldados e meteu o indicador no colarinho aberto, debaixo do qual guardava o manual do sargento. — Necessito de alguém que tenha dedos hábeis.

— Eu, meu sargento! — gritou alguém.

— Saia das fileiras!

Um soldado de 1.a classe avançou e colocou-se em frente de Himmerich.

— O que és tu? — perguntou o sargento, pronto para tudo.

— Sou alfaiate, meu sargento.

Ouviram Himmerich respirar ruidosamente. Um alfaiate sem habilidade manual devia fechar a sua loja. Porque é que os alfaiates usavam sempre dedal? Era o homem de que ele precisava.

— Apresenta-te a mim dentro de meia hora, preparado para partir — disse Himmerich, mais apaziguado. — Vais ser transferido para o castelo dos czares. Atenção... companhia, destroçar!

Satisfeito, Himmerich voltou a grandes passadas para o seu gabinete.

Era só um homem, mas, afinal, a honra da companhia estava salva. Os artistas, a falar verdade, eram raros. Para onde diabo teriam sido mobilizados?

Acabaram por descobrir em Puchkine dez homens de dedos delicados que se apresentaram ao doutor Runnefeldt. Como era preciso confiar na boa organização da Wehrmacht, ele não os interrogou um por um, mas reuniu-os na Sala de Âmbar. Tinham já sido retirados três revestimentos de protecção. Diante de tanta magnificência, todos se calaram.

— A Sala de Âmbar — murmurou um deles. Runnefeldt voltou-se para ele.

— Já a conhecia?

— Só por fotografias, mas elas ficam muito aquém da realidade.

— Qual é a sua profissão?

— Escultor, Sonderfiihrer.

— Muito bem. Quando eu e o doutor Wollters estivermos ausentes, é você quem dirige as operações. Como se chama?

— Ludwig Gronau, Sonderfiihrer.

— Pois bem, Gronau, daqui em diante será responsável perante mim. — Indicou Wachter que observava o escultor com ar crítico. — Este é o senhor Wachter. Foi ele que se ocupou da Sala de Âmbar até aqui. Faz parte desta sala. Se tiver perguntas a fazer, dirija-se a ele. Outra coisa: os conselhos do senhor Wachter merecem ser seguidos. Ele conhece cada pedaço destas paredes.

Wollters mantinha-se agora afastado de todas as decisões tomadas por Runnefeldt. Passara um dia inteiro a registar todos os objectos de arte deixados no palácio de Catarina. De hora a hora, ia ficando mais nervoso. Os tesouros que ainda ali se encontravam ultrapassavam tudo o que se podia imaginar. com o coração a bater, ele lia sem cessar a lista interminável:

Mais de duzentas jóias, entre as quais os famosos bouquets primaveris em filigrana de ouro e pedras preciosas, conhecidos dos especialistas, os mais preciosos da colecção; uma colecção grandiosa de porcelanas de Meissen e de França; a colecção de ícones de Catarina II, uns cinquenta, alguns com molduras douradas incrustradas com pedras preciosas; a colecção, única no mundo, de Pedro I, o fundador de Sampetersburgo: incluía, só por si, seiscentos e cinquenta ícones, oferecidos aos grandes czares por igrejas e conventos; todas as escolas se encontravam ali representadas; quarenta e cinco frescos de tecto da escola italiana, e pavimentos preciosos. Nas salas de recepção havia lustres de cristal ornados de pedras preciosas. O quarto de dormir de Catarina II ainda existia e os móveis repartidos pelos aposentos reais mostravam obscenidades únicas, esculpidas e passadas a ouro fino: cadeiras cujos pés representavam pénis em erecção, decorações de madeira em forma de testículos, e a réplica fiel de uma vagina na cabeceira de madeira de um divã.

Wollters ficava assombrado perante a abundância de tais tesouros, assim como ficara Múller-Giessen, que também fizera o inventário.

— É preciso levar tudo! — murmurou Wollters para consigo. — Nada deve ser destruído.

Era evidente que o Fuhrer não iria expor pénis em madeira esculpida no seu museu de Linz. «Mas Himmler, Rosenberg ou Goering também não ficarão com eles», pensou Wollters com as orelhas vermelhas de excitação. «vou reservá-los para mim. Tenho uma casa grande. Porque não hei-de instalar um quarto ’à Catarina’? Aquelas brincadeiras artísticas darão o ambiente. E, além disso, tudo isto tem um valor incalculável.»

À noite, encontrou-se com o doutor Runnefeldt na messe dos oficiais do estado-maior. Comeu metade de um frango regado com um vinho leve e sentiu-se bastante bem. Nem uma vez pensou nos soldados que perdiam as vidas no fundo de buracos e de trincheiras apenas a trinta quilómetros dali. Os soviéticos tinham passado à ofensiva... Os seus 42.º e

54.º Exércitos atacavam a linha de cerco alemã. O 23.º Exército esforçava-se por tomar a margem sul do lago Ládoga, a fim de assegurar uma via de abastecimento por terra e por barco. Em Leninegrado, a fome começara.

— Quando chegarão os camiões? — perguntou Wollters ao doutor Runnefeldt, enquanto ia roendo um osso de frango.

Isso não era incompatível com a boa educação. Afinal, havia um rei inglês, Henrique VIII, que fazia o mesmo e que no fim atirava os restos por cima do ombro.

— No dia doze — respondeu secamente Runnefeldt.

— Teremos acabado o trabalho até lá?

— É preciso que o façamos! O comboio Koch não pode estar à nossa disposição senão durante um tempo muito limitado. Destina-se ao abastecimento do Décimo Oitavo Exército.

— Desde o princípio que tenho dito que isto não me agrada. — Wollters pousou o osso no prato e limpou as mãos gordurosas a um guardanapo de papel. — O que é que Koch tem a ver com isto? O que é que isto esconde?

— A Sala de Âmbar vai para Kõnigsberg, para o castelo onde reside o Gauleiter Koch. Ordens do Fuhrer. Quer afirmar que o Fuhrer procede como um amador?

— Claro que não! — Wollters inclinou-se ligeiramente sobre a mesa. — com franqueza, aqui entre nós, o senhor aprecia Erich Koch, doutor Runnefeldt?

— Eu preocupo-me apenas com a Sala de Âmbar — retorquiu Runnefeldt num tom glacial. — Não me cabe a mim criticar o Gauleiter Koch.

Wollters mudou de assunto. Não conseguira encurralar Runnefeldt.

A desmontagem da Sala de Âmbar foi difícil e levou muito tempo. Foi preciso soltar com precaução os grandes painéis e enfeites sem a perda do menor pedaço de mosaico. As paredes já tinham sido bastante danificadas durante os primeiros dias da ocupação do palácio. Os soldados ousaram tirar como «recordação» grandes pedaços de âmbar e de mosaico. Havia buracos por toda a parte. Algumas estatuetas que tinham resistido às baionetas encontravam-se riscadas ou partidas. Um espectáculo que apertava o coração a Wachter.

— É perturbador! — repetia várias vezes Gronau, observando os estragos.

Travara amizade com Wachter. Nada se partia sob as suas mãos delicadas de artista. Ele parecia acariciar o âmbar.

— Envergonho-me do que os meus camaradas fizeram.

— O general Von Kortte disse exactamente a mesma coisa. — Wachter encolheu os ombros com resignação. — Depois da guerra será tudo restaurado, se o doutor Findling não tratar disso antes, em Kõnigsberg. De qualquer modo, salvaremos a maior parte.

— Se ganharmos a guerra, Michael.

— Duvidas disso?

— Já viste um mapa da Rússia? Da fronteira ocidental até ao cabo Dejnev nos confins da Sibéria. Eis o que nós queremos conquistar... este país infinito! Mesmo que ocupemos Moscovo, os soviéticos retirar-se-ão para trás dos Urales. Depois são os pântanos, a taiga, a tundra e as estepes até à fronteira chinesa. Os generais deviam mostrar a Hitler o mapa completo da Rússia, e não apenas algumas regiões. Perdemos já muitas vidas para irmos até ao Jenissei. Nunca chegaremos ao Lena!

— E que irá ser então da Sala de Âmbar? — inquietou-se Wachter.

— Vocês hão-de recuperá-la. Pode contar com isso. Nós apenas a vamos transferir para impedir que acabe por ser aniquilada. A frente estende-se por toda a parte, o avanço parou. Tu vais ver o que irá suceder... a retirada.

— Se alguém te ouve, estás servido, Ludwig.

— Só a ti digo isto, Michael. Pensa nisto quando o grande pânico começar.

Quando voltou para casa, Wachter falou do assunto com Jana Petrovna. Ela estivera escondida até então, aproveitando apenas a noite para apanhar ar fresco à janela. Estava em segurança no apartamento, onde nem Wollters nem Runnefeldt tinham penetrado. De resto que iriam eles lá fazer? Apenas o general Von Haldenberge fora visitar Wachter. Nessa altura, Jana refugiara-se na casa de banho. Felizmente, o general demorara-se apenas um quarto de hora. Ficara surpreendido com a casa modesta de Wachter, no meio de todo aquele ambiente de tamanha magnificência.

— Em breve, a desmontagem da sala estará terminada. Estamos a fazer caixotes. Mas o doutor Runnefeldt tem um problema difícil de resolver: arranjar suficiente serradura para a protecção do transporte. As duas serrações de Puchkine estão fechadas.

— Talvez os camiões a tragam.

— É o que esperamos, minha filha.

No dia seguinte de manhã, estiveram à beira da catástrofe. Por ordem do general, uma equipa começara a limpar os grandes vidros do exterior. Os soldados deslizavam do telhado apoiados em grossas cordas e aproveitavam para reparar pedaços danificados da fachada. Von Haldenberge não podia fazer outra coisa: um grande bocado de cornija havia já caído e um coronel do estado-maior quase fora atingido.

Foi assim que o soldado de primeira classe Willy Schmidt, suspenso da sua corda, passou diante da janela de Wachter e deitou um olhar rápido para dentro da sala. Jana Petrovna, sempre vestida de enfermeira, encontrava-se sentada no sofá a ler uma obra de Tolstoi. Não se podia ver que era em russo.

— Olha, uma ratinha! — exclamou Schmidt com entusiasmo.

Apoiou-se no parapeito da janela e bateu no vidro. Jana Petrovna deu um salto como se tivesse sido atingida por um tiro. O livro caiu-lhe aos pés com um ruído surdo.

Willy Schmidt fez-lhe alegremente sinal apontando para os lábios.

— Um beijinho! — exclamou ele. — Só um beijinho! Abre a janela, minha linda. O mauzão do Willy está aqui!

Jana não tardou a recuperar a sua presença de espírito. com um sorriso enganador aproximou-se da janela e gritou através do vidro:

— Vai-te embora, macaco.

Willy Schmidt sorriu de uma orelha à outra, fez um gesto manifestamente obsceno e bateu de novo na janela:

— Abre, meu tesouro! — insistiu, comprimindo a testa contra o vidro. — Garanto-te que perdes qualquer coisa. Tenho três quilos de dinamite dentro das calças.

— Primeiro preciso de pedir autorização ao meu noivo, o capitão-médico doutor Reiners — replicou Jana.

— Ah, merda... sempre os oficiais e os médicos! Willy Schmidt deixou-se deslizar para baixo, fez um último sinal a Jana e desapareceu.

«E agora», pensou Jana dirigindo-se de novo para o sofá, «se ele vai contar aos outros? E se alguém vem verificar o que faz uma enfermeira da Cruz Vermelha no castelo?»

Colocou sobre a mesa gaze, adesivo, tesoura e um frasco de desinfectante, como se Wachter precisasse ainda de cuidados, e ficou à espera. Mas ninguém apareceu. Willy Schmidt preferiu calar-se. Não por ser motivo de troça nem por o terem repelido, mas porque a experiência lhe ensinara que era melhor não se meter com amiguinhas de oficiais.

Li arriscara-se a isso uma vez, quando as tropas invadiram a Polónia, no hospital de Sokolov onde ficara uma semana por causa de uma diarreia fenomenal. Dizia então para os seus companheiros de quarto: «Estou desolado, rapazes... Não posso fazer nada... borro-me todo...»

Pouco antes de sair do hospital, conhecera Irma, a quem apenas acariciara os seios. Mas o médico-chefe, o doutor Muthesius, era amante de Irma e, por azar, presenciara esse gesto. Passou uma descompostura a Schmidt e fez com que ele fosse imediatamente para a frente. Tal desventura tornara-o prudente e não mais quisera tocar nas favoritas dos oficiais...

Wachter ficou muito inquieto quando Jana, nessa noite, lhe contou o que se passara.

— A partir de agora, conservaremos as cortinas corridas — disse ele. — Mais vale ficarmos na penumbra do que irmos parar a uma cela. Nunca poderemos ser demasiado prudentes. Quem havia de pensar que os tipos fariam tais acrobacias?

Mas no dia seguinte ninguém foi examinar o apartamento de Wachter, que soltou um suspiro de alívio, tal como Jana. O destino poupara-os.

A 12 de Outubro, como fora previsto, a coluna dos camiões do comboio de Koch chegou a Puchkine. Tiveram acesso ao palácio por uma entrada lateral e alinharam sobre o solo ensaibrado. O chefe do comboio, um tenente, apresentou-se no gabinete do ajudante-de-campo e, em seguida, ao doutor Runnefeldt.

— É verdadeiramente formidável! — cumprimentou Runnefeldt, estendendo-lhe a mão. — A exactidão prussiana em todo o seu esplendor. Trouxeram serradura convosco?

— com certeza. O Gauleiter Koch achou que podia ser preciso. Trazemos vários sacos em cada camião.

— Fantástico! Eis alguém capaz de reflectir!

Na realidade, dizia para consigo: «O interesse manifestado por Koch é inquietante. Que estará ele a preparar? Quais serão as suas intenções relativamente à Sala de Âmbar? É certo que há a ordem do Fúhrer, e Bormann tem a Sala debaixo de olho... mas Koch é capaz de tudo. Sob os seus ares inofensivos, é um escroque. Felizmente, temos o doutor Findling...»

O tenente e os trinta e seis condutores foram conduzidos à messe para serem servidos com abundância de comer e de beber. Dirigiram-se ao cozinheiro e disseram-lhe:

— Vê se nos arranjas aí qualquer coisa boa... Nós fomos escolhidos pelo Fúhrer...

Entretanto, o doutor Runnefeldt anunciava a novidade na Sala de Âmbar, onde já havia vinte e um caixotes. Faltava apenas a serradura. Seis carpinteiros acabavam os restantes.

— Temos serradura em abundância! — exclamou alegremente Runnefeldt. — Isto desliza sobre rodas! Senhor Wachter, pode deixar de se preocupar!

Nessa noite, Wachter informou Jana Petrovna que o trabalho terminara.

— Se Runnefeldt me levar realmente para Kõnigsberg, que vai ser de ti? Vamos ter de nos separar... Onde poderemos voltar a ver-nos? Seja qual for a minha sorte, tu tens de sobreviver à guerra, minha filhinha.

Jana concordou com um baixar de cabeça. Enquanto preparava o jantar a sua mente continuava ocupada com os pensamentos que não a largavam há quatro dias.

Absteve-se de falar. O plano era DELA. É que se o paizinho o conhecesse, opor-se-ia peremptoriamente. De resto, ela queria fazer-lhe uma surpresa, mesmo que depois ele lhe ralhasse.

Wollters encontrava-se totalmente ocupado a embalar os restantes objectos de arte. Mandou fazer um estojo protector para cada um dos ícones antigos, de um valor incalculável, e provenientes na sua maioria da prestigiosa escola de Novgorod. Depois, desmontou os lustres e meteu-os em caixas. A única dificuldade que teve foi com a cama de Catarina II, e com as cadeiras que exibiam pénis, a que já nos referimos. Runnefeldt dera-lhe poucas esperanças de ^conseguir dois camiões suplementares. Primeiro, a Sala de Âmbar... se depois houvesse espaço para mais coisas, então poderiam ir. No Alto Quartel-General não se tinha mencionado qualquer móvel e, de modo algum, nada que dissesse respeito a testículos esculpidos e cobertos com ouro fino. Nada disso estava «reservado para o Fúhrer». Eram coisas que poderiam interessar, com rigor, a Joseph Goebbels.

— Há também vinte mil livros para levar — insistiu Wollters. — Pergaminhos de mosteiros, cartas pintadas à base de cobalto, púrpura e ouro! Páginas inteiras ilustrando a Bíblia. Doutor Runnefeldt, PRECISO absolutamente de espaço.

— A Sala de Âmbar em primeiro lugar — repetiu pacientemente Runnefeldt. Talvez tenha sorte, doutor Wollters.

O laborioso carregamento começou de manhã cedo, no dia treze de Outubro. A Sala de Âmbar, desmontada, encheu vinte e sete grandes caixotes, e Runnefeldt pôs o seu nome sobre a tampa de cada um deles. Pesavam tanto que ele foi pedir ajuda ao general Von Haldenberge. Uma secção do Batalhão de Engenharia dos reservistas acantonados em Puchkine pôs-se a caminho levando consigo uma pequena grua e um guindaste.

— Atenção! — recomendou Runnefeldt ao jovem tenente que comandava a secção. — Tomem todas as precauções. Os caixotes estão cheios de objectos frágeis. Evitem os choques e não deixem cair coisa alguma. Seria catastrófico.

— Os meus rapazes são especialistas — respondeu o tenente erguendo os olhos para as janelas da sala desmontada.

Estavam nesse momento a passar uma grossa viga pela janela para a fixarem solidamente. Era a arte da improvisação militar a funcionar: os soldados contentaram-se em introduzir grossos ganchos de aço no parapeito da janela e nas paredes, a fim de sustentarem o guindaste.

Até mesmo os especialistas têm por vezes falhas. A descida dos caixotes efectuou-se sem incidentes. Mas quando o guindaste fez descer um dos caixotes sobre um dos camiões, uma corda cedeu. Assustado, Runnefeldt levou as mãos à cabeça, o tenente gritou... mas o acidente não pôde ser evitado. O caixote número dezanove deslizou para fora das cordas e foi despenhar-se com grande ruído em cima das pedras.

— Estamos metidos em maus lençóis! — enervou-se o doutor Runnefeldt. — Todo o conteúdo do caixote deve estar partido.

— Faço-lhe notar — observou o tenente — que os caixotes não foram atados por nós. O senhor é que é o responsável.

— Censurei-lhe alguma coisa? — replicou Runnefeldt no mesmo tom, inesperado da sua parte. — Constato apenas que um caixote caiu.

— Só poderá verificar os estragos quando os caixotes forem abertos. Talvez tenha sorte. A queda não foi de grande altura.

— O senhor parece ignorar o que está a transportar.

— Nem me interessa saber.

O carregamento só terminou ao finada tarde. Foram necessários dez camiões para a Sala de Âmbar. Ficaram disponíveis oito. Runnefeldt entrou no castelo e encontrou Wollters na Sala de Âmbar meio demolida.

— Tem muita sorte, doutor Wollters — disse ele, visivelmente contrariado. — Pode dispor de oito viaturas. Não está contente?

— Fabuloso! — Wollters pensou rapidamente no que teria de deixar para trás. — Portanto, vou poder levar os ícones e os quadros da capela e da igreja do castelo. Viu aquele magnífico iconóstase? Um tabique esculpido e coberto de ouro fino e de ícones com inscrustações de pedras preciosas, provenientes das maiores escolas?

— Sim.

— Precisamos de mais um dia, doutor Runnefeldt. vou mandar desmontar esse tabique esta noite.

— A partida está prevista para amanhã de manhã. Terá tempo até lá? Sabe que é impossível modificar o plano do percurso sem o acordo do comandante do Exército. O general Kúchler ficaria furioso.

— Hei-de conseguir.

Wollters tremia de excitação. Oito camiões cheios... Ofertas para o Fiihrer... Se não lhe testemunhassem gratidão, ele poderia ficar aborrecido. E ele, Wollters, poderia guardar para si próprio cinco, talvez dez ícones dos setecentos que iria levar. Quem se aperceberia disso? E os testículos de madeira esculpida não figuravam em qualquer lista... Omitira-os deliberadamente.

— Quando pensa acabar o carregamento?

— Dentro de três horas, creio.

— Poderei dispor então dos seus dez especialistas e dos soldados de engenharia?

— Terá de falar com o tenente, doutor Wollters.

— Doutor Runnefeldt, nós puxamos ambos pela mesma corda... — com efeito, assim é... mas cada um puxa pela sua extremidade.

Quando Runnefeldt voltou para junto dos camiões, Wollters seguiu-o com um olhar mau. «É um presunçoso», pensou. «Hei-de enviar um relatório confidencial a Von Ribbentrop... Nem mesmo Runnefeldt é indispensável... As suas relações com Bormann e o Fuhrer não lhe servirão de coisa alguma. No quartel-general do Fuhrer, muitos caracterizam-se justamente por terem um humor inconstante.»

Saiu rapidamente da sala e dirigiu-se a grandes passadas, através dos corredores do palácio, até à igreja do castelo.

Michael Wachter encontrava-se sentado na sala vazia quando Runnefeldt subiu para o ver.

— Não chegámos a tirar este belo pavimento — disse com ar cansado. — Não o levamos?

— Para a próxima vez...

— Deseja voltar ao Palácio de Catarina, doutor?

— É preciso, senhor Wachter. — Runnefeldt olhou para o tecto evitando fitar Wachter. — Precisamos de arranjar uma solução para tirar os frescos do tecto sem os estragar. O pavimento irá ao mesmo tempo.

— Para quando é a partida?

— Amanhã de manhã muito cedo.

— Estarei lá para dizer adeus à minha Sala de Âmbar.

— A propósito... nós partiremos antes... O doutor Wollters, eu... e você.

Wachter julgou receber uma descarga eléctrica. Teve um sobressalto e levou as duas mãos ao peito. «Não é altura de fraquejares, coração», suplicou interiormente. «Suporta este choque, peço-te... peço-te. Não tens o direito de me abandonar agora.»

— Posso realmente partir também para Konigsberg? Então leva-me, doutor? Posso... posso ficar com a Sala de Âmbar?

— Levo-o até Kônigsberg. A partir daí, nada posso decidir. Isso diz respeito ao doutor Findling e ao Gauleiter Koch, como já lhe disse. Está pronto para partir?

— Sim, doutor. — Wachter respirou fundo com ruído. — As bagagens estão prontas. Três malas. Nada mais tenho a levar. O resto pertence ao castelo.

— Você certamente não voltará a Puchkine. Talvez depois da vitória final, se o palácio ainda estiver de pé.

— Não é o castelo que me importa, doutor, apesar dos Wachter lá terem vivido mais de duzentos anos.

— Eu sei. O senhor e a Sala de Âmbar pertencem um ao outro. Creio que o doutor Findling compreenderá isso.

Runnefeldt apoiou o queixo no peito para esconder a sua emoção. Ao ver os olhos de Wachter brilharem com lágrimas contidas, girou subitamente sobre os calcanhares e saiu da sala devastada.

Os dez camiões encontravam-se alinhados ao longo do caminho de acesso ao Palácio de Catarina, com os encerados solidamente fixos e as cabinas dos condutores fechadas. Os outros oito esperavam perto da igreja do castelo, para serem carregados com os objectos de arte que Wollters conseguira recuperar. Os dez artistas de dedos ágeis e os soldados de engenharia trabalhavam sem descanso, desmontando o iconóstase, tirando os lustres, levando para o exterior os grandes vasos chineses e os móveis barrocos com estofos de brocado. Em seguida, empilhavam os ícones, os quadros, os Gobelins e os tapetes cuidadosamente embalados. Wollters, à entrada, anotava cuidadosamente na sua lista cada peça que saía.

Uma pequena pátera. Riscada! Não voltaria a ver a Rússia.

O graduado Julius Paschke, originário de Berlim, limpa-chaminés de profissão, estava sentado sobre o degrau da viatura número sete e montava guarda. Runnefeldt não queria que o seu precioso carregamento estivesse sem guarda durante a noite. Mesmo sendo sólido, um caixote não podia impedir que alguém tirasse qualquer coisa. Os guardas revezavam-se de duas em duas horas. Só Julius Paschke devia permanecer mais tempo de guarda, pois era responsável pelos camiões numerados de seis a dez e, além disso, era o comandante da guarda de serviço, e logo o cabo de serviço.

Sentado no degrau, ia fumando cigarro após cigarro, bebendo cerveja após cerveja. Mergulhado em pensamentos sombrios, pensava sobretudo na mulher, Johanna, uma bonita rapariga com belos seios e um traseiro encantador, pois desde que Paschke se encontrava na frente — desde o primeiro dia da invasão da Polónia —, não parava de perguntar a si mesmo: «Que estará ela a fazer agora? Estará realmente sozinha na cama? Pensará em mim?» Havia ainda muitos homens no país, nas fábricas de armamento, na Siemens, por exemplo, que considerariam um dever não deixarem que as esposas dos seus camaradas definhassem. Johanna seria dessas?

Durante a sua última licença, Paschke tentara, em vão, fazer-lhe um filho. Por que motivo falhara não fazia ideia. Consagrara quinze dias seguidos a esse objectivo e voltara às fileiras esgotado. E a carta de Johanna, com a sua pequena frase pérfida: «Nada à vista, Julius. As polacas enganaram-te», exprimia ao mesmo tempo censura e zombaria. Nesse momento, ela era muito capaz de estar debaixo de um desses homens considerados indispensáveis para a nação, a soprar-lhe para a cara. «Porca de vida, puta de guerra, que nunca mais tem fim!»

Sobressaltou-se e levantou a cabeça. Viu na sua frente uma figura feminina com o traje de enfermeira da Cruz Vermelha. Chegara até ali sem fazer barulho, como se tivesse vindo a voar pelo espaço.

— Esta agora! — exclamou Julius Paschke deitando fora o cigarro e esmagando-o com a bota. — O que é que a poderá tentar? Tensão arterial, taquicardia ou desinfestação? Tenho tudo o que é preciso, minha bela. O pior é esta tensão que sinto nas calças...

— Gostava de lhe pedir uma coisa.

Jana Petrovna hesitou antes de se sentar ao lado de Julius. Um ligeiro aroma envolveu-o, fazendo-o lembrar-se do bordel de Riga.

«Ai, ai, ai!», pensou ele. «Justamente agora. É impossível porque estou de guarda. Arriscava-me a ir a conselho de guerra. Não farei nada.»

— Vá, minha linda, diga o que quer — disse finalmente para Jana, olhando-a de soslaio.

O seu olhar não largava o seio dela e ele coçava nervosamente o nariz. É sempre assim quando as ocasiões se propiciam.

— Partem amanhã de manhã para Kõnigsberg?

— Isso já se sabe? Bem, partimos nessa direcção.

— A quantos quilómetros fica?

— Daqui? — Paschke franziu os olhos e olhou para o céu pálido. «Amanhã vai chover», disse para consigo. «Mais uma viagem maçadora. As estradas russas são verdadeiramente deploráveis.» — Cerca de oitocentos quilómetros pelo ar. Mas por estrada devem ser mais de novecentos. Um verdadeiro inferno. Se chover, atolamo-nos na lama. É assim.

— Preciso de ir para Kõnigsberg — disse Jana com um ar muito sincero. — Fui colocada no Hospital Dois.

Existiria tal hospital e utilizariam tal expressão? Jana não fazia ideia. Estava simplesmente a inventar.

— Kõnigsberg é um bom sítio. Vai agradar-lhe. Se um dia se banhar nos Kurisches Haff... É qualquer coisa, digo-lhe eu.

— Leva-me?

— Eu, para Kõnigsberg? Numa banheira destas? Quer ficar com o traseiro vermelho como os macacos?

— De comboio é ainda pior. Daqui a Pleskau, depois para Rositten, em seguida para Memel... Já me informei.

— Não há um comboio sanitário que parta para Kõnigsberg?

— Não, amanhã não parte nenhum para a Prússia Oriental e eu preciso de partir amanhã, o mais tardar. Porque não hei-de ir convosco?

— Porque é proibido, minha menina. Missão especial, compreendes? Proibida a civis.

— Mas eu sou enfermeira da Cruz Vermelha.

— Não é possível. — Julius Paschke observou novamente Jana. «Um belo chassis, não há dúvida», pensou ele roído por aquele problema de consciência. — Não posso realmente, minha pequena.

— Suplico-lhe — insistiu Jana, pousando-lhe a mão num braço e acariciando-o.

com a garganta apertada, Paschke sentiu o coração bater apressadamente, como outrora no bordel de Riga, quando se encontrara frente a frente com Eina, a bonita ruiva, e tivera que apresentar a caixa de preservativos para entrar.

— Ninguém poderá ver-me — prosseguiu Jana. — Esconder-me-ei no fundo do seu camião, atrás dos caixotes. Será impossível descobrirem-me.

— Mas a viagem poderá durar dois ou três dias...

— Não me importo.

— Mas se precisas de esvaziar?

Jana não percebia aquela palavra. Que quereria aquilo dizer?, perguntou a si própria. «Perguntarei ao paizinho.» Respondeu com ousadia:

— Não terei necessidade.

— Durante três dias? Isso seria um milagre da medicina. Mas se aguentares poderás agachar-te durante a noite....

— É isso. — Jana Petrovna olhou Paschke com um sorriso enternecedor. — Então, leva-me?

— Não sei... não sei... Se tenho um acidente, adeus galões. Deixa-me reflectir. Volta amanhã de manhã, mas antes de ser dia. Estarei aqui, no mesmo sítio.

Jana passou-lhe os braços em volta do pescoço e deu-lhe um beijo na testa, exclamando:

— Obrigada! Obrigada! Obrigada!

Depois esquivou-se tão silenciosamente como viera. Parecia não tocar no solo ensaibrado.

Paschke ficou a vê-la afastar-se com um ar atordoado, vendo-a desaparecer junto da parede escura onde ela se dissolveu com uma sombra flutuante.

«Não te resta senão sentares-te e fechar as pernas. Não voltarás a encontrar uma ocasião semelhante. Na viagem nada se passará, mas no hospital os oficiais vão roubar-ta.»

Acendeu outro cigarro e fumou-o febrilmente, sonhando...

Nessa noite, Michael Wachter e Jana Petrovna fizeram as suas despedidas. Abraçaram-se demoradamente e beijaram-se à moda russa, três vezes nas faces, sem falarem. Que teriam para dizer? Mas, quando se largaram um ao outro, Wachter colocou as duas mãos em cima da cabeça da rapariga.

— Minha filhinha — disse solenemente —, que Deus te abençoe e te proteja. Ouves-me, Senhor? Não a percas de vista e conserva-lhe a vida, assim como ao meu filho Nikolai. E, se for preciso, leva a minha. Senhor, tende piedade de nós... Ámen.

Prepararam tranquilamente, em silêncio, o saco de tela encerada preta de Jana. Ela não levaria quase nada: roupa interior, meias grossas, pois o Inverno aproximava-se. Wachter dizia que esse Inverno iria ser particularmente rude, pois, segundo ele, os estorninhos e as cegonhas tinham voado para sul mais cedo do que de costume. Os gansos selvagens começavam já a reunir-se e os castores arrastavam alimentos para os seus abrigos no fundo do parque, na previsão dos meses que se aproximavam.

— Então, vais ficar aqui? — perguntou Wachter depois de fechado o saco.

— Provisoriamente, paizinho. vou apresentar-me no hospital instalado na Escola Gorki. De qualquer maneira, hei-de aproximar-me do local onde estiveres. E se a guerra terminar rapidamente, irei ter com Nikolai a Leninegrado.

Wachter viu-a pousar a pequena touca sobre o cabelo, fechar a gola com o broche redondo e envolver-se na grande capa cinzenta. «Que bênção para o meu filho ter uma tal mulher», pensou. Os Wachter sempre tinham tido sorte com as esposas, mesmo um seu trisavô que tivera três filhas naturais. A trisavô perdoara-lhe todos os seus passos em falso, mesmo os amores perigosos com Vassilissa Valentinovna, cozinheira dos czares. Ela ambicionara vir a ser a segunda senhora Wachterovski, mas o trisavô fizera-lhe uma filha e a puritana czarina exilara-a, como cozinheira, para a Fortaleza Pedro e Paulo.

— Que quer dizer esvaziar, paizinho? — perguntou de repente Jana.

— Fazer chichi.

— E agachar?

Wachter olhou para Jana com ar espantado.

— Onde aprendeste essas expressões?

— Ouvi os soldados a falarem... debaixo da janela.

— Abprotzen é quando os soldados se vão aliviar atrás de uns arbustos...

— Ah, bom.

Jana pegou no seu saco e ergueu-o. Wachter sentiu a garganta apertada. O adeus, os últimos minutos, as palavras de separação, os últimos olhares. Talvez para sempre...

— Adeus, paizinho.

— Adeus, minha filhinha. Que Deus esteja contigo.

— E contigo também, paizinho. Ver-nos-emos em breve. Tenho a certeza.

Wachter abriu-lhe a porta, deixou-a sair e fechou-a rapidamente.

Um longo adeus era para ele uma tortura interminável.

Em seguida, dirigiu-se para o sofá e sentou-se pesadamente, olhando as suas três malas.

Kõnigsberg. Meu rei... Os Wachter sempre cumpriram o seu dever. Juraram-no pela sua honra.

Julius Paschke, sentado no mesmo sítio, esperava a bonita enfermeira. Decidira levá-la. Debaixo do oleado, atrás dos caixotes, preparara uma cama, três mantas umas por cima das outras. A um canto, pusera um balde que se poderia despejar à noite. O único problema era o outro condutor, o soldado de primeira classe Heini Doll. Era de Colónia. Quando ele começava a contar anedotas, aqueles que o ouviam ao fim de um quarto de hora tinham dores no diafragma. Era uma das suas boas facetas. De resto, era um nacional-socialista convicto. O pai era dirigente político em Colónia. Trabalhava no serviço de propaganda da cidade e acreditava em todas as mentiras que Goebbels acumulava todas as semanas na revista Das Reich. Se Doll descobrisse a passageira clandestina, seria muito mau.

Jana chegou junto de Paschke sem fazer barulho, como da primeira vez. Surgiu de repente da sombra. Paschke respirou fundo e apontou para o saco preto.

— É tudo?

— Sim. Receberei roupas novas em Kõnigsberg.

— E a fotografia emoldurada do namorado?

— Não tenho.

— Há gente que é cega. — Ergueu o oleado de um lado e atirou o saco para cima do camião. — Vem, vou ajudar-te a subir. O chefe parte dentro de meia hora, antes de nós. Vê se consegues descobrir o teu canto.

— Como te chamas? — perguntou Jana tratando-o por tu como ele fizera.

— Julius. Julius Paschke. Sou de Berlim-Wedding. Limpa-chaminés. Gosto muito do meu trabalho. — Cruzou as mãos em frente da barriga para ajudar Jana Petrovna a subir. — Posso convidá-la, cara menina? E o teu nome qual é?

— Jana. Jana Rogovski.

Apoiando-se nas duas mãos de Paschke que formavam um estribo, Jana ergueu-se à altura do ombro dele e foi sentar-se na parte de trás do camião, com as suas longas pernas junto da cara do soldado. «Johanna não tem umas pernas que se comparem com estas», pensou Julius, apesar de se orgulhar tanto das dela. «Estas são finas como patas de cabrito...»

— Trata de te fazeres muito pequena, lá no fundo! — disse Julius com voz aborrecida. — Pus-te lá um balde.

— Para «despejar» e me «agachar»...

— Muito bem, minha linda. Vamos, depressa, vai lá para trás. E não te mexas sem que eu te diga que podes sair. Compreendes?

Jana Petrovna anuiu e rastejou até à cama improvisada. Os seus olhos habituaram-se rapidamente à escuridão, reparando no balde junto das três mantas deixadas por Paschke, e uma ração de combate numa caixa. Eram as rações que os soldados só deviam abrir em último recurso e que tinham de ser apresentadas em todas as chamadas, tal como os preservativos. com o seu posto, Paschke escapava ao controlo, visto ser ele que inspeccionava os outros.

Jana pôde estender-se ao comprido no espaço entre os caixotes. Depois, com o saco a servir-lhe de almofada debaixo da nuca, fechou os olhos. Foi só então que sentiu o seu corpo a tremer; tentou descontrair-se. «Correu tudo bem», pensou. «Calma, calma, Jana Petrovna.» O essencial era manter a cabeça fria. Nada lhe sucederia. O traje de enfermeira protegê-la-ia.

Mais tarde, num determinado momento, ouviu vozes. Paschke disse com voz forte:

— Está tudo preparado, meu capitão. Depois, a voz de Runnefeldt:

— Pararemos nos locais críticos para esperarmos por vocês. Quando precisarão de combustível?

— Os depósitos estão todos cheios, Sonderfúhrer. Isso deve chegar para quatrocentos quilómetros.

— Então... boa sorte, rapazes.

— Boa viagem, Sonderfúhrer.

Jana ouviu um motor começar a funcionar, o saibro ranger debaixo dos pneus... «Boa viagem, paizinho. vou atrás de ti. Sigo-te.»

Estendeu-se outra vez e apoiou o ouvido contra a parede da cabina. Doll instalou-se ao volante. Seria ele a conduzir em primeiro lugar. Dormira várias horas. Agora, seria a vez de Paschke. Instalou-se confortavelmente no seu lugar.

— Ouve, tenho uma boa para te contar — disse Doll. — A professora entra na sala, senta-se à sua secretária... e não traz cuecas! O pequeno Franz, na primeira fila, vê e começa a rir. «Franz», diz a professora, «de que te ris?» E ele responde: «Senhora professora, ainda não tinha visto umas cuecas em pele de toupeira...» É engraçada, não é?

— Põe o carro em andamento, imbecil — resmungou Paschke. — Deixa-os passar a todos. Nós ficamos para trás.

— Porquê? Até agora...

— Hoje mudamos! Tenho de verificar que ninguém se perca no caminho. E para isso é melhor ser o último. compreendes?

«É o melhor lugar», pensou Paschke. «Ninguém vai atrás de nós. Dessa maneira, a pequena poderá pôr o nariz de fora sem se fazer notar. Na escola era a mesma coisa. No último banco, ao fundo, era onde se estava melhor. Não é verdade, soldado Doll?»

O motor, finalmente, roncou e o pesado camião começou a rolar sobre o solo ensaibrado. Jana sentiu-se estremecer como se o camião passasse sobre bolas de chumbo.

«Kõnigsberg, cá vamos nós», pensou Jana Petrovna. «Nós, os Wachter... com a Sala de Âmbar.»

Embalada pelo balanço da viatura e o roncar regular do motor, Jana sentiu os olhos fecharem-se-lhe e mergulhou num sono profundo com um sorriso a pairar-lhe nos lábios.

Quando acordou, era dia claro, mas chovia. As gotas martelavam o oleado. Paschke ressonava, de boca aberta, sentado ao lado de Doll. Ao meio-dia, trocariam de lugar e comeriam sopa de feijão aquecida nas latas, numa lamparina de álcool. E Doll tencionava vingar-se então daquele ressonar infernal.

Jana Petrovna rastejou para junto da parede da cabina e encostou-se a ela. Tinha sede, mas Paschke não pensara nisso. Esquecera-se de lhe deixar um cantil.

Pôs-se de joelhos para examinar os caixotes que se encontravam em frente dela. Tirou um pedacinho de madeira da tampa e começou a mastigá-la. Era um velho truque: mastigar, mastigar qualquer coisa, apenas mastigar. A saliva diminuía a sensação de sede. O corpo deixava-se enganar, pelo menos durante um certo tempo.

À fraca claridade que atravessava as fendas do oleado, Jana decifrou as inscrições marcadas a lápis pelo doutor Runnefeldt nos lados dos caixotes.

O caixote número 23, de onde arrancara o pedacinho de madeira, encontrava-se mesmo em frente dela: «Quatro anjos, uma cabeça de guerreiro e um grande vaso esculpido.» Depois outra inscrição, visivelmente posterior, pois fora escrita com outro lápis: «Uma virgem em pedra de âmbar, descoberta no quarto de dormir da czarina Isabel Petrovna.»

Petrovna. Jana inclinou-se para a frente, abraçou o caixote e o nome e depois persignou-se.

«Virgem Santa, faz com que tudo corra bem. E peço-te, protege também o paizinho.»

A viatura do doutor Runnefeldt, um Adler descapotável, enfrentava as intempéries russas. A robusta capota protegia-a da chuva, mas a água passava pelos lados. A ligação ao chassis não era suficientemente estanque. Além disso, um vento violento soprava do lado direito e fazia infiltrar a chuva pelas fendas. O capitão de cavalaria Wollters encontrava-se justamente do lado direito, à frente, junto do motorista, e olhava, furioso, o campo cinzento e de aspecto desolador. Recusara-se obstinadamente a sentar-se atrás com Wachter. O doutor Runnefeldt aceitara de boa vontade mudar de lugar e agora alegrava-se por a capota não ser estanque do lado de Wollters, cujo uniforme começava a ficar molhado. O tecido absorvia a água como uma esponja. Um uniforme feito por medida com o melhor tecido de Aix-la-Chapelle.

— Que carro mais podre! — lamentou-se Wollters voltando-se para trás.

A chuva passava também por algumas fendas do lado de Runnefeldt e de Wachter, mas era ainda suportável. Runnefeldt metera um lenço na fenda mais importante e sorria para Wachter com uma espécie de resignação.

— Quem é que lhe distribuiu um carro destes?

— No Verão, um carro descapotável é o ideal — respondeu Runnefeldt, impassível.

— Não se pode sequer respirar por causa da poeira! E no Inverno? Treme de calor?

— Nessa altura, fico no meu escritório, em Berlim.

— Quer dizer que, para si, não há objectos de arte nos territórios ocupados, no Inverno?

— Exacto. Meu caro Wollters... a experiência prova que as guerras começam sempre no Verão ou no Outono, quando o trigo está bem maduro, os campos férteis e os edmuinhos perfeitamente secos e duros. Lembra-se de uma guerra que tenha sido declarada no Inverno? Pense nos séculos passados. Mesmo na nossa guerra: a Polónia a um de Setembro, a França a dez de Março, a Rússia a vinte e dois de Junho... sempre no melhor momento. E sempre temos tido tempo de pôr os objectos de arte a salvo antes do Inverno.

— Mas agora está a chegar o Inverno.

— Não o receio. Se tomarmos Moscovo antes do fim do ano, os objectos de arte poderão esperar pela Primavera para serem transportados. De qualquer modo, teremos de os inventariar. Além de tudo o que se encontra no Kremlin...

Wachter conteve-se para não fazer a pergunta que lhe queimava a língua, que era saber se ele acreditava verdadeiramente que os alemães iam conquistar Moscovo. Mais três semanas, quatro no máximo, e o Inverno chegaria com a neve e o gelo. O «general Inverno» como lhe chamavam desde a derrota de Napoleão. Já algum deles teria conhecido um Inverno russo? Saberiam como se iriam sentir miseráveis, apesar dos seus tanques e dos seus aviões, quando a tempestade de neve fustigasse o país? Ficariam pregados ao solo pelo gelo. Nenhuma ordem de Hitler os ajudaria a avançar, apenas a avançar, sem recuar. O Inverno russo era impiedoso... Ele é que os dominava. E queriam ocupar Moscovo? Não era verdade que a frente diante da cidade se encontrava bloqueada?

O capitão de cavalaria Wollters calou-se. As palavras de Runnefeldt aborreciam-no. Tirou por sua vez um lenço do bolso e tapou a fenda da capota, mas o tecido ficou encharcado em pouco tempo. A água corria dali como de uma torneira.

— Não há então nada para tapar esta maldita capota! — exclamou, furioso. — Estou molhado até aos ossos.

— Aqui atrás é muito suportável — declarou com calma Runnefeldt. — O doutor é que escolheu ir à frente.

Wollters cerrou os dentes.

Ao meio-dia, pararam numa quinta. Os habitantes — uma camponesa, duas crianças, um rapaz e uma rapariga, assim como o avô — não tinham fugido com a chegada dos alemães, deixando abater-se sobre eles a avalancha cinzenta, suportando a artilharia alemã e os terríveis Stuka que caíam do céu uivando para aniquilar a Linha Estaline, a linha de defesa pretensamente intransponível do Exército Vermelho. Seria que preferiam perecer sob os escombros da sua casa a terem que a abandonar?

A cidade de Pskov — que se chamava agora Pleskau — encontrava-se nas proximidades e fora ali que dois séculos antes o primeiro Grimaliouk fora encarregado de ocupar uma quinta. Por fim, os Grimaliouk tiveram o direito de ficar com a terra e a casa, onde viveram modestamente mas satisfeitos, indo muitas vezes pescar ao lago Peipous e louvando sempre o Senhor pela Sua misericórdia. O dono da quinta, o camponês Ilia Trofimovitch, era atirador especial, algures na Frente. Como a cidade estava ocupada, não tinham qualquer notícia dele, nem nenhuma carta, nem sequer sabiam se ainda estava vivo. Todos, melhor ou pior — a camponesa, os dois filhos e sobretudo Trofim, o avô — se tinham adaptado à sua situação. Haviam ceifado o trigo, apanhado as batatas de Verão e, em seguida, limpado a horta para venderem os excedentes ao ocupante alemão. De resto, por duas vezes tinham-nos enganado vergonhosamente. Os alemães compraram-lhes um cordeiro e um pequeno vitelo que pagaram com bilhetes alemães.

— É dinheiro — disseram os soldados. — Rublos germânicos. Tu compreender? Para trocar no Kommandantur. Entendes? Não fiques com um ar tão palerma, meu velho!

O avô Trofim ficara com os bilhetes e, três dias mais tarde, dirigira-se ao comandante do acantonamento de Nostrov, a quem apresentara os bilhetes. Este riu-se na cara dele antes de o pôr fora. Ele colocara em cima da mesa bilhetes de lotaria sem valor. Eram do Inverno de 1940.

Quando o carro do doutor Runnefeldt parou no pátio, Praskovia Nikolaievna encontrava-se em frente da casa, envergando uma blusa deslavada e um saco na cabeça para se proteger da chuva. As crianças espreitavam por detrás dos vidros das janelas e o avô Trofim preparava-se para recusar os bilhetes de lotaria alemães.

O doutor Wollters, com uma disposição execrável, olhou através do vidro para a camponesa e para a velha casa. A chuva caía em cordões grossos. O limpa-pára-brisas era ineficaz contra a água batida pelo vento.

— Aqui? — perguntou voltando-se de novo.

— Sim — respondeu Runnefeldt.

— Nesta espelunca infestada de percevejos? Olha para a mulher. Está bem para se lhe tocar com umapinça...

— Nós não queremos tocar-lhe, meu caro Wolliers. Vamos apenas fazer uma pausa para nos restaurarmos um pouco.

— Eu não como nada. Não quero apanhar icterícia. E sinto repugnância.

— Os camponeses têm por vezes bom queijo branco por aqui — interveio Wachter que Wollters fulminou com um olhar malévolo. — Costumam ter leite, pepinos em conserva, cebolas estaladiças, pão caseiro e talvez também bolos de cereais.

— Que horror! Porque não havemos de continuar o nosso caminho até encontrarmos os nossos? Prefiro uma má ração militar do que esta comida para porcos.

— Devemos esperar aqui pela coluna. — Runnefeldt ajustou o seu boné e avaliou a distância do carro até à porta da casa: eram cerca de trezentos metros. Seria preciso molharem-se e saltarem sobre um solo cheio de lama. — Nós estamos bem, mas como estarão os camiões com este tempo? Isso preocupa-me mais do que comer. Só ficarei tranquilo quando os vir chegar.

Abriu a porta do carro, saltou para fora e correu para junto da camponesa. Wachter seguiu-o. A lama salpicou-lhe as calças e grandes pedaços de terra colaram-se às suas botas. O condutor olhou para o doutor Wollters que se encontrava a seu lado.

— Merda! — disse o capitão com resignação antes de abrir a porta e sair a correr.

Praskovia Nikolaievna sabia o suficiente sobre os alemães para perceber que se encontrava ali um oficial superior. Tirou o saco de batatas da cabeça e pô-lo sobre os ombros de Wollters. Ele arrancou-o com um gesto brutal e atirou-o para a lama.

— Viu aquilo? — exclamou, escandalizado, quando entrou no compartimento onde Runnefeldt e Wachter enfrentavam já o avô Trofim. — Aquela porca ousou pôr-me o seu saco fedorento por cima da cabeça.

Depois deixou subitamente de resmungar, ao ouvir o avô Trofim dizer distintamente:

— Guten Tag. Nix nahme Lotterie... (bom dia... Não querer lotaria...)

— O que é que ele quer? — Wollters observou o velho de aspecto ainda robusto. — É completamente doido, ou quê?

— Deixem-me falar — interrompeu Wachter.

Fez um sinal ao avô, depois pronunciou algumas frases lacónicas em russo. Trofim franziu os olhos pequenos, passou a língua pelos dentes amarelecidos pelo tabaco e escutou em silêncio. «É perigoso», disse para consigo. «Muito perigoso. Há aqui um que fala como nós. Um traidor que anda com os alemães. É preciso ter cuidado com estes tipos sem escrúpulos.»

— Estamos de passagem — explicara Wachter. — Queremos descansar aqui um bocado, até que a chuva pare. Tens alguma coisa que se coma? Uma kacha1 por exemplo, ou qualquer outra coisa? Beterrabas, pepinos ou manteiga de porco? Talvez tenhas leite?

O avô franziu os lábios como se se preparasse para cuspir. Mas não o fez. Era preciso continuar a viver e esperar pelo regresso de Ilia, o filho querido.

— Levaram-nos tudo — lamentou-se ele quando Wachter se calou. — O meu leitão, o meu vitelo, a manteiga, a farinha, os bolos de cereais. E os teus novos amigos pagaram-me com dinheiro a fingir.

— Então de que vivem? — quis saber Wachter.

— Temos ainda algumas batatas. Uma sopinha, umas cebolas... isso basta-nos. Os tempos estão maus.

— O que é que diz o velho? — perguntou Wollters, impaciente.

Tirou o casaco molhado, aproximou-se da lareira feita de pedras do rio e colocou o casaco numa corda estendida sobre o lume. Da lareira, emanava um aroma agradável e a madeira crepitava. «Eu bem disse», pensou Wachter com satisfação. «O Inverno chegará mais cedo este ano. Os camponeses conhecem bem a Natureza, acendem as suas lareiras muito cedo, para as pedras terem armazenado calor suficiente antes das primeiras tempestades de neve.»

Trofim contemplou o oficial com ar espantado. Wollters usava largos suspensórios com motivos bordados e presilhas de cabedal. Nunca vira nada de semelhante. Trofim não

 

Prato popular russo feito à base de caldo de trigo-mourisco. (N. da T.)

 

conseguia afastar o olhar dos suspensórios e pensava na possibilidade de os trocar por um frango.

Restavam-lhe ainda sete galinhas que conseguira esconder dos alemães. Que suspensórios maravilhosos...

— vou ver se ainda arranjo qualquer coisa — sugeriu Trofim sem deixar de olhar Wollters.

Este instalara-se num banco, perto da lareira e admirava-se por verificar que a sala não cheirava nem a suor nem a leite azedo. Praskovia esperava diante da porta. As crianças tinham-se refugiado no compartimento vizinho, onde se encontrava uma grande cama cheia de palha. O avô dormia ali, pois o seu reumatismo impedia-o de subir para a plataforma existente por cima da lareira, onde toda a família dormia durante o Inverno.

Wachter, com ar satisfeito, aprovou meneando a cabeça:

— Procura em todos os cantos, avôzinho — encorajou-o. — Acabarás por encontrar qualquer coisa.

Trofim arrancou-se à contemplação dos suspensórios, deu um estalo com a língua e esfregou a ponta do nariz.

— Posso propor uma troca? — perguntou por fim, piscando um olho a Wachter.

— Qual? — admirou-se Wachter.

— Uma boa refeição contra um empréstimo. Só por um quarto de hora. É uma boa troca, camarada. O que é um quarto de hora na vida de um homem? E isso dar-me-ia um grande prazer.

— Que queres trocar?

— Quero usá-los só uma vez — explicou Trofim com ar astuto. — Quero os suspensórios do senhor oficial.

Wachter olhou para o doutor Wollters. O oficial de cavalaria esperava, junto da lareira, o caldo que lhe poderiam servir.

— Tu és louco! — exclamou Wachter. — Não posso pedir ao capitão de cavalaria que te empreste os suspensórios, mesmo por um quarto de hora. É impossível.

— Pergunta-lhe, irmãozinho. Não ficarão com a mais pequena mancha, nem com poeira.

Wachter passou as duas mãos pelo rosto e voltou-se para o doutor Runnefeldt, que contemplava um ícone muito antigo a um canto da sala, duas personagens altas, de rostos alongados e grandes olhos redondos, grosseiramente pintados. «Data de cerca do ano de mil e seiscentos», pensou.

«Ninguém reparou nele. É uma verdadeira jóia. Um objecto muito raro. Devíamos levá-lo.» Mas viu o olhar assustado de Praskovia. Aquele ícone era tudo o que lhe restava como testemunho da sua fé. O crucifixo esculpido fora levado pelos soldados do Exército Vermelho a caminho da Linha Estaline. Haviam-no arrancado da parede quando passaram por ali. Tinham igualmente apagado a pequena vela, símbolo da luz eterna.

— Agora, vão pôr aí Estaline! — gritara um sargento. — Porcos cristãos hipócritas!

Mas não tocaram no ícone, o qual representava Pedro e Paulo rodeados de discípulos ricamente vestidos como boiardes.

«vou deixá-lo ficar aqui», pensou Runnefeldt afastando-se do objecto precioso. «Temos mais de quinhentos ícones connosco. Faz de conta que nunca vi este.»

— Doutor — sussurrou Wachter para que Wollters não o ouvisse —, o velho promete-nos uma boa refeição com a condição de poder experimentar os suspensórios do Doutor Wollters. Só por uns minutos...

— Está a brincar! — exclamou Runnefeldt, assombrado.

— Não estou, não. Quer fazer o pedido ao doutor Wollters?

— Mas é ridículo!

— Uma pequena troca. Uma boa refeição contra... — Engoliu a saliva. — Caso contrário, só teremos direito a pepinos em vinagre. Nunca conseguiremos descobrir onde eles guardam as provisões.

— Nunca vi coisa tão insensata!

Runnefeldt aproximou-se de Wollters e olhou para os horrorosos suspensórios. Wollters parecia ter-se instalado confortavelmente... para secar.

— Há problemas? — perguntou ele. — Era o que eu dizia. Isto é um verdadeiro chiqueiro. Não tocarei em coisa alguma!

— Quer emprestar os seus suspensórios por uns instantes?

— Como? — Wollters fitou Runnefeldt com um ar quase assustado. — Isso dá-lhe muitas vezes?

— O avô queria usá-los uma vez... em troca de uma boa refeição.

— Mas é verdadeiramente... — Wollters respirou fundo. — É inaudito! — exclamou, indignado, fulminando Trofim com o olhar.

O avô, cheio de esperança, sorriu-lhe amavelmente.

O senhor atreve-se a dizer tamanha idiotice, doutor Runnefeldt?

— Acho que a troca é correcta.

— Não ficará com manchas, nem poeira — apressou-se a acrescentar Wachter. — Se isso o pode fazer feliz...

— Estamos em guerra ou em missão filantrópica? — berrou Wollters.

— Temos por missão tornar as pessoas felizes. — Runnefeldt acabava de dar o golpe de misericórdia. — Segundo o Fiihrer, estamos aqui para libertar os homens escravizados pelo bolchevismo. O nosso futuro encontra-se aqui, neste vasto país do Leste, o prolongamento do grande Reich.

Wollters levantou-se do banco sem nada dizer, tirou os suspensórios e atirou-os a Trofim. O avô apanhou-os no ar, girou sobre os calcanhares e entrou no quarto vizinho com uma agilidade de rapaz.

Uns minutos mais tarde voltava. Os suspensórios coloridos, colocados por cima da sua camisa de camponês, prendiam as calças cinzentas, cheias de nódoas.

Deu a volta à sala com ar radiante e parou diante da nora, esticando os suspensórios com os polegares. Caminhava orgulhosamente, de cabeça erguida, e, como as crianças o olhassem boquiabertas, deu meia volta, foi até junto da lareira e voltou, a passo, como se estivesse num desfile. Tão feliz e comovido que até esqueceu o seu reumatismo.

Depois, sempre digno, desapareceu no seu quarto, abriu um grande armário e passou por lá, para uma porta que dava directamente para um estábulo. Ao vê-lo, as sete galinhas começaram a cacarejar alegremente, esticando os pescoços. Seria já a hora do milho?

— É a vida, minhas queridas — declarou solenemente Trofim. Examinou as galinhas antes de escolher uma, redonda e gorda, encolhendo os ombros. — Lydia, é preciso que sejas tu. Foste um valente animal.

Tirou um pequeno machado da parede, agarrou Lydia pelas asas, levou a ave que cacarejava até junto de um cepo e cortou-lhe a cabeça. Aproveitou o sangue, com o braço estendido para não manchar os suspensórios e depois voltou pelo mesmo caminho.

Wollters, que voltara a sentar-se, olhou para o relógio.

— É altura de acabarmos com isto — observou secamente. — Porque não tirou os seus suspensórios, doutor Runnefeldt?

— Porque não os uso. Tenho apenas um cinto. Ah, aí vem o avô.

Trofim apareceu, com os suspensórios na mão direita e a galinha na outra. Praskovia soltou um grande suspiro. Justamente Lydia, a melhor poedeira! O avô perdera a cabeça.

Wollters recuperou os seus suspensórios que voltou a pôr imediatamente.

— O velho matou realmente uma galinha — observou.

— Foi a troca — Runnefeldt encorajou Trofim com um aceno de cabeça. — Não acha que foi um bom negócio, doutor Wollters? Agradecemos-lhe o festim que nos vai proporcionar.

Teve então início uma grande actividade. A dona da casa depenou a galinha, ajudada pelos filhos. Trofim ofereceu-lhes um tabaco grosseiro e tirou, como por encanto, uma garrafa escondida debaixo de uma tábua do soalho. Era licor de groselha.

— Diga à dona da casa que a galinha deve alimentar quarenta pessoas — recomendou Runnefeldt a Wachter. — Nós os três, o motorista e os trinta e seis condutores dos camiões. O caldo será sem dúvida magro, mas servirá para confortar os estômagos.

Praskovia pôs ao lume um enorme caldeirão e encheu-o de água que deixou ferver. Ninguém sabia que era ali que se preparava habitualmente a comida para os porcos. Wachter desconfiava, mas preferiu calar-se.

O caldo estava longe de ser magro: depois de ter partido a galinha, Praskovia deitou-lhe para dentro uns bons punhados de cereais, acrescentou-lhe quatro grandes cebolas e deixou ferver. Trofim aspirou o aroma delicioso e, com os olhinhos a brilhar, declarou:

— Cheira exactamente ao mesmo que o caldo feito pela minha mãezinha!

E se aquele homem com mais de setenta anos o dizia, era sem dúvida verdade, e representava um grande cumprimento.

Quatro horas mais tarde, os camiões surgiram da chuva, enlameados e cavando profundos sulcos na lama, vacilando como pesados gigantes enlameados. O pior era para Julius Paschke, que viajava na cauda da coluna, pois tinha de passar pelas covas deixadas pelas viaturas precedentes.

— Isto é de enlouquecer! — exclamara Doll várias vezes. — Que triste ideia a tua de vires atrás! Os que vão à frente dão cabo da estrada e eu apanho com a merda toda! Depois da refeição, passamos para a frente...

— Vamos continuar na cauda — retorquiu Paschke. Tinha pena de Jana, sacudida em todos os sentidos. Pensava nos ossinhos tenros da rapariga, que ele nem sequer podia massajar. — Sei melhor do que tu o que é preciso fazer.

— Merda!

Foi então que os dezoito camiões pesados chegaram à quinta. Do camião número um propagara-se a notícia de que «o automóvel do chefe se encontrava parado diante de uma cabana», e Paschke dera ordem para que parassem aí. Era a pausa para o almoço.

Os motoristas um pouco anquilosados desceram das suas viaturas e dirigiram-se para a casa. Uma grande vaga de uniformes verde-acinzentados invadiu a sala, que rapidamente se encheu com o cheiro dos fatos molhados e outros odores. O avô, sentado no banco perto da lareira, ao lado de Wollters, observava com interesse a vaga de soldados. Wollters tirou o seu uniforme da corda e vestiu-o.

— Sonderkommando Hamburgo apresenta-se! — anunciou Paschke batendo os calcanhares. — Nada a assinalar.

O doutor Runnefeldt fez um sinal de concordância com a cabeça. Paschke descansou. O bom aroma do caldo de galinha chegava-lhe às narinas.

— Como está a estrada? — informou-se Runnefeldt.

— Até aqui, ainda se suportou, mas se continua a chover assim... Ainda são uns bons seiscentos quilómetros até Konigsberg.

— O Reich encarregar-se-á de melhorar as estradas, Paschke. Tem fome, não?

— Tenho o estômago colado às costas, Sonderfuhrer.

— Então tirem as gamelas. Está à vossa espera um bom caldo de frango!

— O meu avô, que não tinha dentes, costumava dizer: «Aquilo que se engole sem mastigar é sempre bom!» — Paschke voltou-se. Os trinta e cinco condutores comprimiam-se atrás dele. — Preparem-se para a sopa!

Vinte minutos mais tarde, cada um dos soldados tinha na mão uma tigela cheia de sopa. Comiam de pé, encostados à parede, ou sentados no chão, e, durante uns momentos, ouviram-se apenas os talheres de campanha a entrechocarem-se.

Runnefeldt, Wollters e Wachter, sentados à mesa, comiam em pratos de barro. Praskovia, as crianças e o avô olhavam-nos em silêncio. Nesse dia, o avô era um homem feliz. Usara os mais bonitos suspensórios do mundo.

Paschke comeu apenas uma pequena parte da sua ração e voltando-se para Doll, que bebia ruidosamente o caldo e aproveitava bem as cebolas e o cereal, disse-lhe:

— Preciso de ir lá fora. Hei-de arranjar um canto qualquer.

Em seguida, saiu da casa.

Dobrado em dois correu para o seu camião, trepou pelo pára-choques e subiu para o interior. Os poucos metros percorridos faziam lembrar uma corrida debaixo de uma cascata.

— Sou eu, pequena — murmurou na penumbra. — Não tenhas medo. Está a correr tudo bem. Trouxe-te de comer. Caldo de galinha. Não é grande coisa, mas podia ser pior.

Abriu caminho por entre os caixotes e parou diante de Jana, sentada com as costas apoiadas na cabina. A rapariga estendeu a mão direita para segurar na tigela que ele lhe estendia.

— És uma boa pessoa.

— Já comi com essa colher — respondeu ele, perturbado com o que acabara de dizer. — Mas podes servir-te dela. Não tenho sífilis.

Paschke apoiou-se ao caixote que continha a Virgem e as cabeças de anjos e ficou um momento a ver Jana comer a sopa.

Ela comeu apenas umas colheradas e devolveu-lhe a tigela.

— Obrigada, Julius.

— Podes comer tudo, Jana.

— E tu?

— Cá me arranjarei. Estou habituado a desembaraçar-me. Não gostas?

— Já não tenho fome, Julius.

— O meu porquinho-da-índia come mais do que isso.

Tenho um em casa. Chama-se Emma, como a minha sogra. Ao princípio, Johanna, a minha mulher, ficou muito zangada. Depois comprou um canário e deu-lhe o nome de Clara. É o nome da minha mãe. Ficámos quites.

Pegou na gamela e acabou de comer o resto da sopa. Tinha-se lembrado de lhe levar o seu cantil que destapou antes de lho passar para a mão.

— É chá — explicou. — com uma espécie de pó de limão. É bom.

Cheia de sede, Jana bebeu por três vezes grandes goladas de chá antes de devolver o cantil a Paschke.

— És uma rapariga formidável. E pensar que se servem de ti para a guerra.

— A guerra terminará em breve, Julius.

— Achas que sim? Não sei. Veremos.

Paschke voltou à quinta correndo debaixo da chuva que continuava a cair com violência, ocupando depois o seu lugar ao lado de Doll.

— Levaste tempo a encontrar um canto — disse Doll em dialecto.

— Já te disse para falares sempre em alemão.

— Arranjaste um canto molhado, não foi? — rectificou Doll esforçando-se por falar correctamente. — Foi uma lavagem celeste, não foi?

— Que é que achas?

Runnefeldt olhara várias vezes para fora. A chuva parecia não ir parar.

— Não há nada a fazer — disse a Wollters. — Temos de continuar. É impossível continuarmos aqui. A chuva... bem... afinal, não somos feitos de açúcar. Depois de Dvina, na Lituânia, será melhor. As estradas estarão em melhor estado. — Voltou-se para os soldados e bateu palmas. — A caminho! Não vamos capitular perante as estradas russas. Poderão descansar em Kõnigsberg.

Wollters e Runnefeldt foram os últimos a deixar a quinta. Wachter ocupara já o seu lugar no banco de trás do Adler. O motorista tapara os orifícios da capota com pedaços do saco de batatas.

— Agora podemos mudar — propôs Runnefeldt a Wollters. — Você vai atrás e eu à frente.

— Não — respondeu Wollters obstinado.

— Então vai Wachter à frente...

— Eu fico no meu lugar!

Wollters baixou a cabeça, abriu a porta do carro com violência e sentou-se. Runnefeldt estendeu a mão a Trofim que ficou de tal modo assombrado que até acariciou os dedos.

— Boa sorte, avô — disse Runnefeldt, afastando Praskovia que queria beijar-lhe a outra mão.

Como a partida foi fácil dessa vez! Nem perseguições, nem ordens de requisições. Apenas Lydia fora imolada, um preço modesto em troca da clemência dos oficiais alemães. E o avô pudera usar os suspensórios. Que história. Não seria de agradecer, como nos velhos tempos?

— E tem cuidado com o teu ícone. Data do século dezasseis. com ele poderás construir uma casa nova, depois da guerra.

Claro que Trofim não compreendeu nada do que ele dizia, mas percebeu pelo tom de voz que era para seu bem. Por prudência, fez um gesto de concordância com a cabeça, após o que acompanhou Runnefeldt até à porta, ficando depois a seguir com o olhar, durante muito tempo, o longo comboio de camiões que avançava com dificuldade pela estrada batida pela chuva.

Nesse dia, o oficial de serviço anotou no diário de campanha do 50.º Corpo de Exército:

Krasnogvardeisk, 16-10

O capitão de cavalaria doutor Wollters e o doutor Runnefeldt deixam o Estado-Maior-General depois de terem levado a bom termo a sua missão (salvaguarda dos objectos de arte).

E foi assim que ficou assinalado um dos maiores desvios de obras de arte da História.

A viagem durou dois dias e duas noites. Novecentos e trinta quilómetros através da chuva e da lama escorregadia. Em Kauen, três camiões tiveram de parar numa garagem depois de serem dificilmente rebocados com cabos. O chefe da oficina, da 3.a Companhia de Reabastecimento, encontrou duas rupturas em molas, uma engrenagem danificada e um eixo inutilizado. Declarou que a reparação duraria três dias e que era necessário descarregar os camiões.

— A reparação demorará três horas! — vociferou Wollters. E não descarregaremos coisa alguma! Não faltava mais nada!

Pôde então verificar-se que um capitão de cavalaria tinha mais autoridade que um Sonderfuhrer, oficial da segunda linha. Wollters fez-se anunciar ao comandante do Batalhão de Reabastecimento, apresentou-lhe as suas justificações e esperou pela reacção. O oficial — um capitão — levou imenso tempo a ler a carta.

— Vamos em missão para o Fiihrer! — explicou Wollters num tom cortante. — Ficar aqui três dias é insensato. No quartel-general do Fúhrer esperam que eu anuncie o fim da missão. Devo dizer que fui atrasado aqui?

O capitão devolveu o papel a Wollters com ar aborrecido. «Espécie de macaco presunçoso», pensou. Nem mesmo o Fiihrer seria capaz de reparar o eixo de um camião carregado.

— Faremos o possível — respondeu com frieza. — Trabalharemos toda a noite.

— Era o que eu pensava.

Wollters fez a continência e saiu do gabinete com ar triunfante. A oficina fora já avisada por telefone e estavam nesse momento a erguer a primeira viatura com um macaco. Julius Paschke, muito preocupado com Jana, rodeava Runnefeldt com uma agitação febril e tentava convencê-lo.

— Os outros quinze camiões podiam prosseguir o caminho para Kõnigsberg — sugeriu ele. — Ou ainda melhor, Sonderfuhrer, o senhor parte com os catorze camiões e eu fico aqui com o meu à espera dos outros três. Não há qualquer risco. — Olhou de frente Runnefeldt, com ar cândido. — Pode confiar em mim — insistiu.

— Iremos todos juntos — replicou Runnefeldt abanando a cabeça. — Um dia a mais não tem qualquer importância. O doutor Wollters é que decidiu fazer valer a sua autoridade.

«Que vou eu fazer com Jana?», pensava Paschke, assustado. «Ela não pode apanhar ar e eu não posso dar-lhe de comer. Seria muito arriscado. Já é perigoso quando ela sai do camião durante a noite. Mas aqui, no pátio da garagem... Que poderei fazer?»

Tentou continuar a persuadir Runnefeldt com as suas palavras, dizendo-lhe ser preferível o atraso de apenas três camiões do que de todos. E a chuva continuava a cair.

— Iremos sem problemas, Sonderfuhrer — repetiu. — será a lama que me impedirá de prosseguir...

— Depois de Kauen, todas as estradas serão melhores, Paschke. Continuo a dizer o mesmo: iremos todos juntos.

Era inútil continuar a tentar influenciar Runnefeldt. Paschke saiu da oficina e dirigiu-se tranquilamente para os camiões estacionados uns ao lado dos outros. Em seguida, subiu para a parte de trás. Ia verificar o carregamento, como sempre fizera.

— Sou eu — murmurou ele. — Há uma pequena dificuldade...

Passou por entre os caixotes e encostou-se de novo ao caixote com a Virgem esculpida. Jana, acocorada, olhava-o com os seus grandes olhos. O balde continuava no mesmo sítio, a um canto. Não se tinha ainda servido dele.

— Temos de esperar aqui — lamentou-se Paschke, encolhendo os ombros. — Eu queria ir adiante. Nada a fazer. Que se irá passar agora?

— Quanto tempo? — perguntou tranquilamente Jana. Nada parecia perturbá-la, pelo menos na aparência.

— Quem sabe? Pelo menos uma noite... Posso trazer-te de comer. Ninguém dará por isso. Mas para urinares e o resto... não podes sair. Terás de utilizar o balde. Não poderás sair, nem mesmo de noite. Isto está cheio de soldados.

— Tudo se há-de arranjar, Julius — disse Jana para acalmar o pobre Paschke, nervoso e agitado. — Em breve chegaremos a Kõnigsberg, não é?

— Faltam ainda cento e setenta quilómetros.

— Só um dia...

— Onde queres descer?

— Em qualquer sítio da cidade. Na periferia, talvez, na altura de uma paragem.

— Para que toda a gente te veja? Não. Sairás durante a noite.

— Então antes de Kõnigsberg, Julius.

— Isso depende do momento em que sairmos daqui. Paschke levou a mão ao bolso do casaco e tirou de lá

duas fatias de pão barradas com queijo e uma garrafa de água mineral.

— É tudo o que consegui arranjar na cantina. Talvez ainda te possa trazer uma ração de sopa, pequena. Agora é mais difícil do que dantes. Há olhos por toda a parte.

Desceu do camião, foi inspeccionar mais três para não dar nas vistas, voltou à oficina e ficou a olhar para os mecânicos que trabalhavam nos poços ou debaixo dos elevadores, atarefados no conserto dos camiões avariados. O capitão de cavalaria Wollters e o Sonderfúhrer tinham ido de Kubelwagen até à messe do Batalhão de Reabastecimento para se refrescarem e comerem qualquer coisa. Um novo conflito os opunha.

— Esse Wachter tem de vir connosco? — perguntara Wollters num tom desdenhoso. — É um civil, não pode frequentar uma messe de oficiais.

— É nosso convidado, doutor Wollters.

— SEU convidado. Uma distinção importante. Um guarda de museu na messe! Não exagere, doutor Runnefeldt.

— Wachter pode vir a ser-nos precioso. O doutor Findling ficará satisfeito com a presença dele.

— Porquê, pode dizer-me?

— Wachter cresceu junto da Sala de Âmbar. Ninguém a conhece melhor do que ele. Isso pode ser muito útil quando da instalação em Kõnigsberg ou mesmo em Linz. Devemos pensar no futuro.

— Obrigado pela lição!

Wollters estava cheio de azedume e não o ocultava. Não dirigiu uma única palavra a Wachter e entrou à frente dele na messe, como para mostrar que ele, capitão de cavalaria, tinha sempre prioridade.

No entanto, a reparação dos três camiões durou mais tempo do que o previsto. Só na noite seguinte é que o chefe da oficina pôde anunciar:

— Está tudo pronto.

— Já não é sem tempo — resmungou Wollters.

— Conseguimos fazer algo de extraordinário, meu capitão. Onde foi desencantar estas carripanas? Estão desengonçados e têm ferrugem por toda a parte.

— Foi o Gauleiter Koch em pessoa que os arranjou.

— Então eu não disse coisa alguma — rectificou o chefe das oficinas erguendo as mãos e rindo. — São viaturas perfeitas, muito bem tratadas. É verdade que mesmo a viatura de mais confiança pode reservar surpresas...

— Partimos imediatamente! — disse Runnefeldt despedindo-se do chefe da oficina com uma palmada amigável na mão, o que Wollters considerou indigno do seu posto. — Penso que chegaremos a Kõnigsberg por volta da uma hora da manhã.

— Tenciona tirar o Gauleiter da cama?

— Suponho que ele não estará lá — retorquiu Runnefeldt reprimindo o riso. — vou telefonar-lhe antes de partirmos. Se bem o conheço, Koch renunciará a deitar-se, mesmo que tenha alguém à espera dele...

Wollters olhou Runnefeldt com um ar admirado. Que afirmações! Depois olhou para o seu relógio.

— Temos ainda tempo de ir jantar?

— com certeza.

— Na ementa há salsichas com couve-roxa. — Wollters ergueu os sobrolhos. — Esse guarda de museu continua a acompanhar-nos?

— Acha que o senhor Wachter deverá ficar a chuchar no dedo?

Wollters não respondeu e a cena repetiu-se. Ele foi o primeiro a entrar na messe, seguido por Wachter e depois de Runnefeldt. Os condutores encontravam-se na cantina da oficina e regalavam-se com uma sopa de massa com pedacinhos de carne. Paschke foi à cozinha e pediu uma segunda dose.

Ao cair da noite, entrou de novo no seu camião e apresentou a Jana a sopa fumegante. Ela tivera que utilizar o balde que cheirava fortemente a urina.

— Estou desolada — disse Jana, embaraçada. — Mas não foi possível de outra maneira.

— Claro. É a natureza. Mais tarde, hei-de tirar daqui o balde. Estaremos em Kõnigsberg por volta da meia-noite. Em seguida ficarás livre, pequena.

— Como te hei-de agradecer, Julius?

— Eu tinha uma ideia. — O olhar de Paschke deslizou pelo corpo de Jana e demorou-se sobre a parte superior do seu traje de enfermeira. — Mas não é possível. Mais tarde irei visitar-te ao hospital. Para onde vais?

— Para o hospital municipal — declarou ela sem pensar. — É aí que me devo apresentar. Não sei para onde me mandarão.

— Hei-de encontrar-te.

Paschke pegou na asa do balde e levou-o. Quando saiu do camião, despejou-o num esgoto e lavou-o com água que tirou de uma torneira.

«É a primeira vez que despejo urina de uma rapariga. Mas o que não faz uma pessoa por amor? Amor? Bem, simpatia. Johanna espera-me em casa. Mesmo que eu neste momento esteja a ser infiel... depois da guerra as coisas entrarão na ordem. E esquecerei tudo, incluindo a aventura com Jana.»

Pouco antes da partida, quando Runnefeldt e Wollters se encontravam já no Kúbelwagen com Wachter, ele deslizou mais uma vez por baixo do oleado do seu camião para recuperar a sua gamela. Um soldado sem gamela era apenas meio soldado. Para sobreviver em tempo de guerra, era preciso um pouco de sorte e a barriga cheia. Um soldado podia perder tudo, excepto a sua gamela, suspensa da cintura ou batendo-lhe nas nádegas.

— Vamos partir agora — murmurou Paschke. — Em Kõnigsberg, baterei nas costas da cabina. Depois terás de te desembaraçar. Boa sorte, pequena. E podes ter a certeza de que tentarei encontrar-te em Kõnigsberg.

Jana disse que sim com a cabeça, ergueu-se bruscamente apoiando-se à cabina, passou os braços em torno do pescoço de Paschke e beijou-o na boca. Ele ficou completamente atarantado. Quando Jana se afastou, ele ficou de pé, com os olhos franzidos. As suas têmporas, o seu coração, o seu corpo inteiro zumbiam como uma colmeia.

— Não sabes o que fizeste, Julius — disse ela. — Nunca o esquecerei. Que Deus te proteja... e tenta sobreviver à guerra.

— Tu... tu também — balbuciou Paschke passando a mão pelos olhos. Depois dirigiu-se para o sítio onde o oleado estava levantado.

Uma vez fora do camião, sacudiu-se como um cão molhado e soltou um profundo suspiro. Tinha nos lábios uma sensação de queimadura.

«Uma bela rapariga», pensou ele, ligeiramente atordoado. «Se conseguires levá-la para a cama, podes depois fingir-te doente. Amolecimento dos ossos. Bem, meu velho...»

Dirigiu-se para a frente, subiu para a sua cabina e sentou-se ao pé de Doll que saudou a sua chegada com um arroto surdo.

— Porco! — contentou-se em observar Paschke.

— Depois da sopa de massa, tenho sempre necessidade de fazer isto. Desculpa. — Doll pôs o motor em andamento, pois o Kubelwagen partira já. — Continuamos na cauda?

— Sim.

— Porquê? Agora a estrada está melhor. Estou farto de apanhar com merda na cara. Sempre atrás...

— Cala-te e espera.

Paschke encostou-se para trás. Aquele beijo atravessara-o de lado a lado. «A pressão do peito dela contra o meu. Nunca senti tal coisa, pequena. Mais tarde, quando Johanna me beijar, pensarei que és tu. Tenta também sobreviver e que Deus te abençoe...»

Quando partiram, em último lugar, aos solavancos sobre o pavimento em mau estado, Paschke compreendeu que falara com Jana pela última vez e que não voltaria a vê-la. Olhou fixamente para a noite, rangendo os dentes, admirado por aquele adeus lhe custar tanto. com Johanna, as coisas tinham sido diferentes. Ele rira e dissera: «Voltarei quando os polacos me enviarem.»

Mas depois da Polónia, fora a França e agora a Rússia. E a seguir?

— Em que pensas, Julius? — perguntou Doll.

— Num bordel em Kõnigsberg.

— Tenho um bom endereço — retorquiu Doll, rindo. — Conheço uma cantiga assim: «Tunnes e Schall atravessam o mercado para comprar manteiga e...»

— Cala essa boca! — interrompeu Paschke com grosseria.

— Vem atrás de nós alguém a correr com um balde na mão que nos faz sinais.

— com o quê?

— com um balde de ferro.

— Há doidos por toda a parte! — disse Julius, encolhendo os ombros.

O Gauleiter Erich Koch recomendava a si mesmo calma e paciência. Logo que recebeu o telefonema do doutor Runnefeldt, de Kauen, alertara o doutor Findling, assim como o seu companheiro de bebedeira, o chefe de gabinete Bruno Wellenschlag, e dissera-lhes com voz triunfante:

— É preciso que venham aqui imediatamente. A Sala de Âmbar chega esta noite!

O doutor Findling despediu-se da mulher como se fosse partir para uma longa viagem.

— Vais com certeza beber.

Certamente, Marta, certamente. A Sala de Âmbar aqui! O Gauleiter vai com certeza beber a isso.

— E amanhã sentirás a cabeça a estalar e estarás cheio

de azia. — Reflectiu rapidamente e depois acrescentou: .

Antes de ires ter com Koch, vais beber um copinho de óleo.

— O que queres tu que eu beba, Marta? — perguntou Findling, inquieto.

— Só um pequeno cálice de óleo. É para lubrificar as paredes do estômago, Wilhelm. O óleo é uma velha receita familiar. O meu avô bebia sempre um copo antes de ir para as reuniões da Biirgerverein1. Nunca o vi embriagado.

— Era porque estava habituado. Podia beber como uma esponja.

O doutor Findling, com os lábios franzidos, viu Marta dirigir-se para a cozinha e deitar óleo num copo de licor que depois lhe entregou.

— Tenho a impressão de voltar quarenta e sete anos atrás... quando me obrigavam a engolir uma colher de óleo de fígado de bacalhau todas as manhãs. Desde então, nunca mais suportei o cheiro do peixe. Marta, achas que é mesmo necessário?

— Sim, verás que ajuda.

Findling esvaziou corajosamente o copo, engoliu convulsivamente e admirou-se por não vomitar tudo imediatamente.

— É horrível! — contentou-se em dizer.

— Esperemos pelos efeitos, Wilhelm. Estarás de regresso para o pequeno-almoço?

— com certeza que não.

— Então para o almoço?

— Se calhar também não. Quero mandar tirar imediatamente dos caixotes a Sala de Âmbar e registar tudo. A instalação na sala trinta e sete irá levar semanas. A sala deve ficar reconstituída como no tempo da czarina Isabel em Tsarskoie Selo. Felizmente, na desmontagem, fizeram desenhos precisos dos lambrins e dos frisos.

 

1 Associação dos Cidadãos. (N. do E.)

 

— O doutor Runnefeldt e o doutor Wollters são peritos mundialmente conhecidos.

— Mas falta saber se são capazes de numerar correctamente.

Lançou um último olhar céptico ao copo que Marta tinha na mão, beijando-a depois na testa, e foi-se embora.

Como era de esperar, Wellenschlag já se encontrava com Koch e já bebera os primeiros copos de conhaque em companhia do Gauleiter. Uma garrafa de champanhe francês refrescava num balde de gelo. O Gauleiter Koch queria receber a Sala de Âmbar com todas as honras.

— Estarão aqui por volta da meia-noite! — exclamou Koch acolhendo Findling com um gesto amplo dos braços. — Meu caro, deve estar radiante de felicidade.

— É o dia mais feliz da minha vida, Gauleiter.

Engoliu o seu primeiro copo de conhaque, com a sensação de estar prestes a vomitar para cima das botas de Koch. Mas o seu estômago acalmou-se rapidamente. Não tinha a sensação de ardor que habitualmente experimentava quando bebia. O óleo do avô parecia estar a produzir os seus efeitos.

— Experimentamos todos sentimentos análogos... sobretudo porque recuperámos este tesouro único, mesmo nas barbas de Rosenberg. Onde meteria ele a Sala? O lugar dela é aqui, no castelo de Kõnigsberg! Persuadirei igualmente o Fuhrer que a Sala de Âmbar nada tem a fazer em Linz, à beira do Danúbio. É aqui, nas margens do Báltico, que se encontra a pedra de âmbar, a pedra de Sol, o ouro alemão, e a maior obra de arte alguma vez realizada nesta pedra deve ficar na Prússia Oriental. Como é que um rei da Prússia pôde oferecer uma tal maravilha a um czar russo? Frederico Guilherme Primeiro devia estar bêbado nesse dia. Nós devolvemo-la à Alemanha. A Sala de Âmbar reencontra a sua pátria. Será o que diremos à imprensa.

— Não esqueça que ela é «reservada ao Fuhrer», Gauleiter — interveio Findling, tomando lugar num dos profundo cadeirões. — Bormann insistirá para que a sala vá para Linz.

— Falarei com Bormann — respondeu Koch. Preparava-se para uma grande polémica. Não gostava

de Bormann e sabia que isso era recíproco. O «pequeno rei da Prússia Oriental» era profundamente antipático ao íntimo do Fuhrer.

— A missão vai ser difícil, Gauleiter — interveio Wellenschlag.

— Bormann sempre esteve aberto aos argumentos lógico. Se for necessário, dirigir-me-ei pessoalmente ao Fiihrer. Ele sempre me escutou.

Depois a espera começou. A contagem dos minutos. E persistia a pergunta, cada vez mais impaciente: Onde estarão? Porque se atrasam? Passar-se-ia qualquer coisa no caminho? Por que motivo o doutor Runnefeldt não voltara a telefonar? Não era natural... era já meia-noite e meia-hora e ele tinha dito que chegariam à meia-noite...

A inquietação de Koch apoderou-se também de Findling e de Wellenschlag. Mantinham-se à janela, a olhar para o pátio do castelo, iam até à escada e depois voltavam, encolhendo os ombros. Koch percorria a sala com grandes passadas, com as mãos atrás das costas, a cabeça metida entre os ombros... Um touro prestes a entrar na arena.

— Se há coisa que eu deteste é a falta de pontualidade! — exclamou, irritado. — De Kauen a Kõnigsberg não é grande distância! E as estradas são boas. Não há buracos como na Rússia. Há qualquer coisa que não corre bem!

Contudo, nada de anormal se passou até à paragem na estação principal, quando Julius Paschke deu uma cotovelada a Doll, dizendo-lhe:

— Pára, meu velho.

— Para quê?

— Porque preciso de urinar.

— Aqui? Em frente da estação? Vai haver um ajuntamento.

— Todas as estações têm urinóis, idiota! Até aqui, pude conter-me, mas já não aguento mais. Digo-te que pares.

Para dar mais peso às suas palavras, bateu três vezes nas costas da cabina. Era o sinal para Jana. «Desce pequena. Chegámos. Boa sorte. Pensarei em ti.»

Esperou mais um minuto, deixou Doll estacionar o camião em frente da entrada principal e saiu.

— Não estarás já molhado? — perguntou Doll com solicitude.

— O quê?

— Pergunto se não terás as calças molhadas... Paschke fez sinal que não e correu para o lado de trás

do camião. O oleado estava solto num ponto e flutuava ao vento nocturno. Chamou Jana em voz baixa, mas ela não respondeu. A viatura estava vazia. Paschke olhou à sua volta com desespero. Queria voltar a vê-la uma vez mais, ou pelo menos a sombra dela a afastar-se rapidamente, mas não a viu em parte alguma. Viu apenas soldados e civis a entrarem e saírem apressadamente da estação, assim como três soldados da Polícia Militar aos quais chamavam kettenhunde1 por causa do brasão de armas reluzente que traziam preso a uma corrente em volta do pescoço. Faziam o controlo à entrada, detendo os soldados a fim de verificarem os papéis, as suas licenças, ou as guias de marcha.

Paschke atravessou lentamente a estação à procura dos lavabos, urinou algumas gotas apenas e sentiu-se só e desamparado. Quando voltou para o camião, o Kubelwagen encontrava-se já junto dele. Toda a coluna o esperava. O último camião parara e todo o comboio recebera ordem para fazer o mesmo.

— Que se passa? — gritou Wollters da janela. Paschke pôs-se em sentido.

— Uma necessidade premente, meu capitão — respondeu Paschke fazendo a continência e subindo rapidamente para a cabina da sua viatura. — A caminho —- disse a Doll que o olhava furtivamente.

Doll voltou a pôr o motor em andamento.

— Ela foi-se embora? — perguntou num tom despreocupado.

— Quem?

Paschke sentiu a garganta seca. Olhou Doll com desconfiança.

— A tua ratinha do fenol — respondeu Doll. — É muito lesta...

— O que é que viste, Doll?

— Lembra-te que tenho um retrovisor.

— Sabias tudo?

— Sim. Não sou cego. Estava com curiosidade de saber como iria terminar. Mas correu tudo bem.

— Tu não viste coisa alguma, Doll! Compreendes?

— Como condutor, vejo a estrada e nada mais — respondeu Doll sorrindo. Depois partiu. O Kubelwagen já se

 

1 «Cães com corrente». (N. da T.)

 

encontrava novamente à cabeça da coluna. — Mas amanhã vais oferecer-me uma garrafa de Schaubau...

O quê?

— Uma garrafa de aguardente, camarada.

Paschke disse que sim com a cabeça e encostou-se de novo às costas do assento. Pensava em Jana com uma sensação dolorosa. E continuava a não compreender por que motivo fizera ela aquela difícil viagem de vários dias, em vez de se meter no comboio para Kõnigsberg.

Pouco antes da uma hora da manhã, o Kubelwagen passou finalmente pelo posto da guarda do castelo de Kõnigs berg. O oficial de serviço, um jovem tenente que fora ferido na Polónia, controlou minuciosamente os papéis que Wollters lhe apresentou pela janela. A lentidão do tenente enervou Wollters.

— Talvez julgue que trazemos dezoito camiões com dinamite para fazer o castelo ir pelos ares? — resmungou. — Ou tem dificuldade em ler?

— O conteúdo das viaturas? — perguntou secamente o oficial.

— Vinte e sete caixotes com capotas inglesas — berrou Wollters, furioso. — O Gauleiter espera-nos. Não foram dadas ordens para a chegada de camiões?

— Sim, esperávamos alguns camiões. Mas dezoito?...

— Faço-lhe uma proposta — disse Wollters respirando fundo. — Deixa-nos passar e eu não o faço ir para frente.

— Já sou um «ferido especial». Fui gravemente ferido na Polónia. Uma bala nos pulmões. Também foi ferido, meu capitão:

A pergunta foi acompanhada por um ligeiro sorriso. Wollters arrancou os papéis das mãos do jovem tenente e não respondeu.

— Podemos passar agora? — perguntou Runnefeldt com voz suave.

— com certeza. — disse o tenente, fazendo continência e afastando-se para lhes dar passagem. — Cumpro apenas o meu dever..

Quando o Kubelwagen entrou velozmente no pátio do castelo, Wellenschlag, que se encontrava à janela, disse tranquilamente, com o ar de quem não esperara horas:

— Cá estão eles.

O Gauleiter e o doutor Findlíng saltaram das suas cadeiras como se os tivessem picado. Koch pegou no boné e enterrou-o na cabeça. Apertou o cinturão, ajustando o casaco do uniforme cheio de condecorações que cintilavam à luz dos lustres de cristal, e declarou com uma voz trémula de excitação:

— É a altura de bebermos a nossa taça de champanhe! Ainda temos tempo. Daqui a pouco, estaremos muito ocupados.

Tirou a rolha à garrafa, fazendo-a saltar até ao tecto com um ligeiro estalido e encheu as taças.

— À nossa Sala de Âmbar! — exclamou erguendo a taça. — Que ela permaneça sempre na pátria!

Findling e Wellenschlag brindaram com Koch.

— Agradeço-lhe, Gauleiter — disse Findling sinceramente comovido. — No futuro, o mundo há-de ficar-lhe reconhecido por ter trazido para Kõnigsberg um novo tesouro.

Beberam de um trago, em silêncio, e depois imitaram Ench Koch que atirou a sua taça para um canto da sala, à velha moda eslava. As taças foram partir-se contra o precioso papel pintado da parede.

— E agora vamos ver a nossa maravilha! Propôs o Gauleiter Koch dirigindo-se para a porta que abriu violentamente. — A filha pródiga está de volta.

— A filha? — exclamou Findling, espantado, voltando-se para Wellenschlag que corria a seu lado.

— Koch acha que tudo quanto é belo e digno de ser amado é essencialmente feminino — respondeu o adjunto rindo e dando uma palmada nas costas de Findling. — Julgava que já sabia isso.

No pátio do castelo, os dezoito camiões formavam um quadrado aberto, alinhados como para uma parada, com o Kubelwagen na frente. Wollters, Runnefeldt e Wachter tinham descido e esperavam que o último camião, o de Paschke e de Doll, parasse. Os pára-choques e os capots encontravam-se alinhados. Alguns homens com uniformes castanho-amarelados destinados aos homens ligados à Gauleitung entraram subitamente no pátio. Uma ordenança

correu para a ala onde o Gauleiter habitava e quase chocou

com ele.

— Gauleiter! — exclamou o homem.

— É verdade! — replicou Koch com um gesto. Ficou de pé no limiar da porta e envolveu o comboio com um só olhar. Ninguém percebia como ele estava comovido. — Transmita ao marechal-de-campo Willelm von Leeb e ao comandante-chefe do Décimo Oitavo Exército, Von Kúchler, a seguinte mensagem: «O transporte proveniente de Puchkine chegou a Kõnigsberg. Em nome do Fiihrer, agradeço-lhe este acontecimento histórico.»

— Imediatamente, Gauleiter — disse a ordenança, afastando-se rapidamente.

Koch endireitou-se e tomou uma atitude altaneira para esperar os três homens que se dirigiam para ele. Dado o seu posto inferior, o doutor Runnefeldt aproximou-se de Koch e ficou a três passos dele fazer a continência, levando a mão à pala do boné.

— Gauleiter — começou, reparando num clarão nos olhos de Koch —, eis o meu relatório: a Sala de Âmbar chegou, por ordem do Comando Supremo da Wehrmacht e do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Reich. Nada a assinalar.

— Obrigado, doutor Runnefeldt. — Koch estendeu-lhe a mão, olhou para Wollters e fez-lhe sinal para se aproximar. — É o doutor Wollters, não é verdade?

— Sim, Gauleiter — respondeu Wollters batendo os calcanhares.

— E você? — quis saber Koch vendo ali um civil. Runnefeldt esperava aquela pergunta.

— Gauleiter, permite que lhe apresente o senhor Jvilchael Wachter. O senhor Wachter cuidava da Sala de Âmbar em Puchkine. Uma tradição familiar com duzentos e vinte e cinco anos.

— E trouxe-o consigo? Interessante. — Koch fez um sinal amigável a Wachter e esboçou um ligeiro sorriso. — Voltaremos a falar do assunto, senhor...

— Wachter, Gauleiter.

Wachter observava com a maior atenção o homem de estatura mediana, com um uniforme castanho-amarelado, que se encontrava em frente dele. «É então ele Erich Koch», pensava. «O tirano da Prússia Oriental e dos territórios ocupados. O comissário do Reich. O homem tão temido de cuja assinatura depende a vida e a morte de tanta gente. É o novo dono da Sala de Âmbar. Vai também estar ligado ao meu destino.»

Afastou-se para deixar passar Koch, seguindo-o depois, tal como Wollters e Runnefeldt. Koch passou vagarosamente pelos camiões, como se estivesse a passar revista às tropas, levando a mão à pala diante de cada uma das viaturas cobertas de lama. Então, parou junto da última em frente da qual Doll e Paschke se mantinham em sentido.

— É você o comandante do comboio? — perguntou num tom autoritário, dirigindo-se a Paschke.

— Sim, Gauleiter.

— Fê-lo muito bem. — Olhou para o peito de Paschke, sem condecorações. — Não tem ainda a Cruz de Ferro?

— Não, Gauleiter. Tenho andado sempre a conduzir um camião como fiz agora com o comboio Koch.

— vou propô-lo para a Cruz de Ferro — anunciou Koch antes de se voltar.

Paschke ficou muito vermelho e todo o seu corpo foi assaltado por um formigueiro. A Cruz de Ferro. Johanna iria ficar orgulhosa.

— Duas garrafas de aguardente — sussurrou Doll. — As minhas felicitações.

Koch voltara para junto do Kubelwagen, e designava agora o doutor Findling e Wellenschlag, aquele como sendo o seu braço direito.

— Apresento-lhes o doutor Findling, conservador do museu de Kõnigsberg.

— Nós já nos conhecemos — informou Runnefeldt apertando vigorosamente a mão a Findling. — o seu livro sobre a pedra de âmbar deve ser lido por todos os peritos.

— Muito obrigado — respondeu modestamente Findling.

— E Wellenschlag, o meu adjunto.

Os homens cumprimentaram-se baixando a cabeça, sem um aperto de mão. Wellenschlag, de resto, esperava isso. O bobo do rei pode ser citado e utilizado, mas não deixa de ser um súbdito e não um igual.

— Mandem entrar os condutores — propôs amavelmente Koch. — O comandante da Guarda ocupar-se-á deles. Quanto a vós, meus senhores, peço-vos que sejam meus convidados.

Entraram no castelo. O responsável pelo serviço cometido às sentinelas, um sargento, deitou um olhar aos trinta e seis homens que se encontravam diante dele num grupo compacto.

— Vocês cheiram mal como um rebanho de cabras! — exclamou. — vou mostrar-lhes os vossos alojamentos e podem começar por tomar um duche!

— E quando haverá de comer? — gritou um dos homens.

— Amanhã de manhã, às sete horas. Bem o sabem!

— Merda!

— Estão agora entre gente civilizada! Têm de se habituar

— Civilizada? Que quer isso dizer? Eu visto um uniforme! com efeito, quem é você?

Paschke e o sargento da guarda trocaram um olhar. Havia no ar uma atmosfera tempestuosa. «Dá uma lição a esse presunçoso.»

— Eu sou o sargento da Guarda! — repetiu o homem. — E se eu digo...

— Sou EU que digo — retorquiu Paschke — que vamos beber imediatamente um café ou uma cerveja! Caso contrário, irei ter com o Gauleiter para lhe dizer: «Camarada do partido, está lá em baixo um aldrabão que quer impressionar-me.» Que julga que se passará, meu velho?

O sargento, aparentemente inteligente, renunciou a uma altercação com Paschke e contentou-se em dizer:

— Vão começar por se lavar!

Depois marchou à frente dos soldados para lhes mostrar os alojamentos.

Em casa de Koch, brindaram com conhaque francês. O Gauleiter estava de muito bom humor e Wellenschlag não se lembrava de o ter visto tão bem disposto, mesmo depois de lhe ter arranjado uma mulher especialmente bela.

— Vamos proceder ao desencaixotamento a partir de amanhã — propôs Findling. — Mal tenho paciência para esperar!

— É como quando se despe uma mulher! — exclamou ruidosamente o Gauleiter. — Tenha paciência, doutor Findling.

«Isto é bem dele», pensou Findling. «Só pensa nas mulheres...» Runnefeldt permaneceu calado.

— Sabe-se o que vai ser da Sala de Âmbar?

— Como o que vai ser? — Koch esvaziou o seu copo, com o rosto radiante. — Vai ficar aqui! Pedirei ao Fúhrer que a entregue nas mãos da Administração dos Castelos e Jardins. Assim ficará em segurança. E vou propor o Doutor Findling como administrador dos tesouros de Kõnigsberg. Pensei em tudo.

O alegre bando de ladrões só se separou por volta das cinco horas da manhã. Findling entrou em sua casa ligeiramente embriagado, mas não tanto como habitualmente depois das recepções de Koch. Marta acordou e sentou-se na cama. Findling sentou-se também, mas logo de imediato tombou para trás completamente vestido.

— As minhas felicitações ao teu avô — balbuciou com a língua pastosa. — O óleo é uma panaceia. Os outros estão completamente bêbados. Mas eu... aguento-me de pé...

— Estou a ver! — ironizou Marta.

Mas o marido já não a ouvia. Adormecera. Era um homem feliz. O cúmplice entusiasmado de um roubo.

Logo a seguir a ouvir as três pancadas dadas por Paschke na cabina, Jana correra para o fundo do camião e levantara o oleado que já se encontrava desatado. Como se estivesse perfeitamente treinada para aquele exercício, deixou-se deslizar e saltou para a estrada. com o saco de tela preta encostado ao peito, julgou por momentos que centenas de olhos a observavam. Mas ninguém parecia ter reparado nela. Começou então a correr na direcção da estação, como se fosse apanhar um comboio. Depois, ofegante, encostou-se a uma coluna. Esperava que a detivessem paia o controlo, mas ninguém pareceu dar-lhe atenção, além de alguns soldados que passaram por ela e sorriram. Vinham de casa de licença, e estavam carregados com embrulhos de provisões preparadas pelas mães e pelas esposas.

Jana permaneceu imóvel durante alguns minutos e dei xou o seu ritmo cardíaco abrandar. Conseguira! Chegar até ali, pelo menos. «Estou em Kõnigsberg», pensou. Olhou para o lado oposto da estação, onde os Kettenhunde controlavam todos os viajantes, examinando os seus documentos, e alegrou-se por não se ter metido no comboio. Sem papéis, nunca a deixariam passar. Para os civis, bastava um bilhete de comboio, mas todos os que vestiam um uniforme deviam provar a sua identidade. Ignorava se o traje de enfermeira era considerado um uniforme. Teria de sair depressa dali, pensou. Desaparecer em Kõnigsberg como fizera em Puchkine. Kõnigsberg era uma cidade importante, cheia de gente, e nesse mar de casas haveria certamente um esconderijo para ela.

Pegou no saco, atravessou o grande átrio da estação e deteve um funcionário com um boné.

— Para onde deseja ir, enfermeira? — perguntou o homem que era mais idoso que Wachter. — Para Este ou para Oeste?

— Como poderei chegar ao hospital municipal?

— Pelo eléctrico número um. Mas só parte às cinco horas e é apenas uma hora.

— E a pé?

— É muito longe. E ainda por cima carregada como está. Mas talvez um carro da Wehrmacht a leve. Se fosse a si, via se encontrava algum.

— Obrigada.

— O prazer foi meu.

Deixou o empregado desaparecer na multidão, depois leu os letreiros e decidiu seguir a flecha que indicava: «Salas de espera». Havia duas: da primeira e da segunda classe. Olhou pela larga porta envidraçada da primeira, onde viu sobretudo oficiais sentados a pequenas mesas, ao lado de alguns civis, e optou pela sala da segunda. Arriscava-se menos a ser abordada ali. Apesar do adiantado da hora, os viajantes que esperavam ocupavam todas as mesas e cadeiras. Havia soldados sentados no chão, encostados às paredes, e alguns dormiam apesar do barulho, com os sacos a servirem de almofadas. Não havia qualquer lugar vago e ninguém se levantou para dar lugar a uma enfermeira da Cruz Vermelha. Era preciso ficar de pé encostada a uma parede durante quatro horas. Encolhendo os ombros, Jana escolheu um bom sítio e encostou-se à parede, deixando o saco no chão, a seus pés. Um homem sentado no chão ao lado dela, que fumava um cigarro com um cheiro detestável, olhou-a.

— Para onde tenciona ir, enfermeira?

Era um homem de uma certa idade, tendo do lado esquerdo do casaco a insígnia de prata dos feridos. A pequena fita metida na lapela indicava que ele recebera a Cruz de Ferro de segunda classe.

— vou para a cidade, de eléctrico. Mas o próximo só parte às cinco horas.

— E vai ficar aqui durante esse tempo todo?

— Que hei-de fazer?

— A sala de espera da primeira também está cheia?

— Há lá demasiados oficiais para o meu gosto.

— Ah, bom — respondeu o soldado com um sorriso de conivência. — Porque não vai para a missão da estação?

— Missão da estação? — repetiu Jana, surpreendida.

— Nunca ouviu falar? É verdade que a vossa formação se degrada cada vez mais. Um curso acelerado e depois vão logo para o hospital, não é? Na missão acolhem todas as enfermeiras. Sobretudo as morenas... Aceitam-na de certeza.

— Obrigada.

Jana pegou no saco, baixou a cabeça ao soldado, como despedida e saiu da sala de espera.

Procurou no átrio da estação. Por fim, lá encontrou o letreiro que dizia «Missão da estação». Parou então em frente da porta pela qual saíam e entravam jovens enfermeiras. Quase todas acompanhavam feridos ligeiros. «Deverei ir?», perguntava Jana a si própria. «Que perguntas me farão? Acreditarão no que lhes vou contar?»

Encheu-se de coragem, pegou no saco e dirigiu-se para a primeira sala, pondo-se atrás de um soldado com a cabeça ligada. Um aroma agradável a sopa de feijão chegou às suas narinas. Vinha do canto onde uma enfermeira ia servindo conchas de sopa que deitava nas gamelas que lhe apresentavam. A fila de feridos ia passando diante dela, dizendo gracejos.

A enfermeira da cozinha olhou para Jana que observava o que se passava à sua volta, com ar perdido e indeciso e com a concha indicou-lhe uma porta.

— Ali...

— Obrigada.

Jana empurrou a porta com o pé e encontrou-se numa grande sala onde se viam alguns feridos sentados em compridas mesas, ocupados a beber café ou chá e a comer Dauerwurst1. Na parede do fundo havia quatro beliches ocupados de onde partia um ligeiro ressonar. Uma enfermeira morena dirigiu-se para Jana e perguntou-lhe:

 

1 Espécie de salsicha fumada (N. da T.)

 

— De onde vens?

— Da frente de Leninegrado — respondeu Jana, sem mentir.

— Vens de licença?

— Não. Tenho de me apresentar no hospital municipal. Posso ficar aqui quatro horas? O próximo eléctrico é só às cinco horas.

— com certeza que podes. Mas não há ninguém que te leve? Há sempre muitas viaturas militares que vão para esses lados.

— Ainda não pedi a ninguém. E... prefiro ir de eléctrico.

— Porque são sempre atrevidos, não é? — gracejou a enfermeira. — Umas não se importam, mas outras não gostam. Que se há-de fazer quando um jovem tenente elegante nos acaricia a coxa?

— Os velhos ainda são piores.

— Bem o podes dizer! Pelos vistos, já passaste por algumas experiências. — A enfermeira morena estendeu a mão a Jana e mostrou-lhe uma porta lateral. — Entra para ali. É a nossa sala. Estarás confortável e ninguém te incomodará. Vens da frente de Leninegrado! Como estão as coisas por lá?

— Há muitos feridos.

— É verdade. Bem o vemos nos comboios sanitários que passam por aqui. Não se fala nisso nem nos jornais nem na rádio. De resto, está bem assim. O que importa é a vitória final.

— Exactamente — concordou Jana, sentindo a garganta apertada.

— O Fuhrer acabará por a conseguir.

— É uma sorte... tê-lo.

Fora uma das frases mais difíceis que Jana alguma vez tivera de pronunciar. Pegou novamente no saco e encaminhou-se para a sala indicada. Duas enfermeiras exaustas dormiam em dois sofás encostados à parede. Não acordaram com a entrada de Jana. As suas dez horas de serviço garantiam-lhes um sono de chumbo.

Jana instalou-se numa cadeira perto da secretária cheia de papéis, escondeu a cabeça nas mãos e pensou na maneira como deveria proceder. Tinha duas hipóteses: ou desaparecer para qualquer sítio e viver na clandestinidade, ou apresentar-se no hospital e trabalhar lá. «Só tenho duzentos marcos», pensou. Não vão durar muito tempo. Como havia de pagar um quarto e viver? «Não posso passar o tempo a ser uma enfermeira em viagem e a deslocar-me de um centro de acolhimento para outro... Este jogo das escondidas vai em breve esgotar-se. E depois?»

O seu olhar pousou sobre a pilha de papéis. Na beira da secretária, à esquerda, encontrava-se um monte de impressos cujo título, em grandes caracteres, Jana leu: Certificado de contrato.

Jana sentiu-se como se tivesse sido atravessada por uma corrente eléctrica. Deitou um olhar rápido para as duas enfermeiras adormecidas, aproximou de si o bloco com os impressos e constatou que o formulário não se encontrava preenchido. Mas estava assinado e carimbado. Precisava de lhe juntar apenas o nome e a data.

Percorreu apressadamente o texto. Nome, data de nascimento, domicílio, número do bilhete de identidade e designação do serviço. Apresentando aquele certificado, ela escaparia a todas as perguntas supérfluas. Era um passaporte para a segurança.

Jana Petrovna arrancou rapidamente uma folha do bloco, verificou se as enfermeiras estavam a dormir amarrotando ruidosamente alguns papéis, tirou uma caneta de uma caixa e preencheu o formulário com maiúsculas... sem ousar utilizar a máquina de escrever que se encontrava em frente dela, por causa do barulho. Depois dobrou o certificado que acabara de preencher e meteu-o no saco. com um suspiro de alívio, recostou-se para trás e fechou os olhos durante um momento.

Foi nessa posição que uma responsável da missão a foi encontrar quando espreitou para dentro da sala.

— Estás cansada? — perguntou. — Durante quanto tempo viajaste?

— Viajei durante dois dias e uma noite e meia, desde Puchkine a Konigsberg.

— Tens ali atrás um pequeno fogão eléctrico, uma cafeteira com água e café. Café verdadeiro. Podes preparar um para ti. Nós não bebemos muckefuck1.

— Muito obrigada.

 

1 Café de cevada. (N. do E.)

 

«O que será muckefuck?» perguntou-se Jana Petrovna. A responsável pelo serviço saiu e fechou a porta. As duas enfermeiras continuavam a dormir. Jana não fez café. Preferiu esperar pela chegada de duas outras enfermeiras que, depois de lhe apertarem a mão, se apressaram a ir fazer uma cafeteira cheia de um café com um aroma delicioso. Jana bebeu duas chávenas com grande prazer, quase avidamente.

— Ah! É muito diferente do muckefuck — afirmou astutamente.

Uma das enfermeiras aprovou com um olhar de cabeça, bebendo o líquido escaldante a pequenos goles.

— Os cereais são feitos para fazer farinha, mas não para café — declarou ela. — Mas o dinheiro do café é mais importante para o armamento. Depois da guerra, poderemos tomar banho em café.

— É verdade — concordou Jana Petrovna, compreendendo que o muckefuck era um sucedâneo do café feito com cereais torrados. Qualquer alemã devia saber isso. — E como arranjam café?

— São conhecimentos... — explicou a jovem colega, rindo e continuando a beber o café. — O que é preciso é ter conhecimentos. E sabermos organizar-nos.

Jana riu por sua vez e fingiu compreender. Outra coisa que devia saber, pensou. «Organizar-se» significava obter por outros meios aquilo que não se podia obter normalmente. E muckefuck é uma imitação de café à base de malte. E à cerveja ligeira davam ali o nome de «urinol» ou «urinária». Eram coisas que não se encontravam em nenhum dicionário, mas que era preciso conhecer para não se fazer notada. Será que terei ainda de aprender muitas expressões deste género?

As horas de espera passaram rapidamente... Apesar do café forte, Jana dormitou na sua cadeira. Quando lhe tocaram num ombro acordou sobressaltada.

Ergueu rapidamente a cabeça. A enfermeira morena encontrava-se diante dela.

— Estou desolada por te arrancar aos teus sonhos, mas o primeiro eléctrico está quase a chegar. Para o apanhares tens de sair agora. A paragem fica mesmo junto da entrada principal.

— Obrigada! — disse Jana pondo-se de pé e pegando no saco. — Hei-de lembrar-me muito tempo do vosso café.

Hesitou e depois beijou ao de leve a face da enfermeira morena antes de se afastar a correr.

O eléctrico estava quase vazio. Só ia um grupo de operários à frente. Fumavam e discutiam o comunicado da Wehrmacht da véspera, apostando a respeito das datas em que Leninegrado e Moscovo iriam ser conquistadas. Um deles declarou «nunca» e foi vaiado pelos outros.

Paragem: hospital municipal.

Jana Petrovna desceu, ficou parada e olhou demoradamente para as janelas do hospital por cima dos muros. Tinha-se preparado perfeitamente para aquela aventura. Decorara algumas noções básicas num manual de enfermeiras que Michael Wachter lhe arranjara. O livro era em russo. Ela traduzira o essencial para alemão. Possuía um pequeno conhecimento teórico dos instrumentos e treinara-se com Wachter a erguer os doentes na cama, a fazer um penso, a apalpar o pulso. E aprendera a dar injecções intramusculares servindo-se para isso de uma velha boneca.

— Isto deverá chegar — dissera um dia Wachter. — De qualquer maneira, não terás outra coisa a fazer. Não vão logo pôr-te a trabalhar como enfermeira de cirurgia. Terás de mudar pensos, mudar os lençóis, dar uma injecção de tempos a tempos. Apenas intramusculares. As intravenosas são dadas unicamente pelos médicos ou pelas enfermeiras de serviço com o acordo dos médicos. Terás de amparar os doentes ao darem os seus primeiros passos, distribuirás as refeições, ajudarás os doentes graves a comer, verificarás a temperatura... Não haverá qualquer problema para ti. E fala o menos possível, Janachka. A pessoa denuncia-se por vezes mais por palavras do que por actos. E mantém os olhos bem abertos. É preciso aprender, aprender em toda a parte... e tu acabarás por saber tanto como uma enfermeira verdadeira.

Jana endireitou-se e dirigiu-se para a passagem por onde entravam as ambulâncias. A porta de batentes duplos do serviço de urgências estava debilmente iluminada por duas lâmpadas. Um silêncio profundo envolvia os edifícios.

A porta estava fechada, mas na parede, do lado esquerdo, havia o botão de uma campainha. Jana carregou no botão e como não ouvisse ninguém, tocou mais três vezes. O grande vestíbulo iluminou-se finalmente e apareceu um enfermeiro ainda com ar sonolento.

— Que se passa? Lá vou — resmungou ele. — É o cozinheiro que está na Sanha?

Foi então que ele descobriu que se encontrava ali uma enfermeira da Cruz Vermelha completamente só. Era uma linda boneca muito fresca, exactamente o que convinha aos médicos.

«Sanha?», disse Jana para consigo. «Que será isso?»

— Não sou uma Sanha — declarou Jana.

— Não, realmente não és — respondeu o enfermeiro com um largo sorriso, afastando-se para a deixar entrar. — Seria uma pena que te parecesses com uma ambulância.

Sanha era, portanto, uma ambulância. Uma palavra nova. E importante. Jana esperou que o enfermeiro fechasse a porta para observar o que a rodeava. Paredes nuas, pavimento coberto de oleado, um forte cheiro a desinfectante. Reparou em várias portas. Ao longo do corredor, viam-se macas e duas cadeiras de rodas.

— Então, andaste na paródia e entras agora à socapa pela porta das traseiras. Correu tudo bem? — Desafou a rir ao ver a expressão espantada de Jana e passou-lhe um braço por cima dos ombros. Jana não sabia se devia consentir esse gesto ou repeli-lo. — Olhas-me com um ar verdadeiramente angélico e inocente. Vá, depressa para cama, antes que a vigilante nocturna te veja,

— Tenho de me apresentar à vigilante — respondeu Jana Petrovna como se estivesse habituada a dizê-lo.

— Agora? Às cinco e meia? — Observou Jana com muita atenção e reparou no grande saco em tela encerada.

— Meu Deus! És nova aqui? Devo inscrever-te?

— Sim. Cheguei de comboio.

— De onde?

— Da frente. De Leninegrado.

— A sério? Das primeiras linhas?

— Sim. Do posto de socorros principal.

— E que vens fazer aqui?

— Estive doente. Tifo. Vim aqui para me restabelecer um pouco. E para trabalhar, claro. Deram-me uma guia de marcha e enviaram-me para aqui.

— Ah, bem! — O enfermeiro agarrou Jana por um braço e levou-a para uma sala. — Eu fui ferido na Polónia. Uma bala atingiu-me num calcanhar e, quando fui atirado ao ar, outra apanhou-me num ombro. Parti a clavícula.

Desde então arrasto-me por aqui. Este é o meu gabinete. Senta-te no sofá, pequena. Queres uma cerveja? Podemos conversar até às oito. Antes disso, não há ninguém nos gabinetes. Quanto a Frieda, a vigilante, ninguém a vê antes das oito e meia. Frieda Wilhelmi é, por assim dizer, o comandante aqui. Até os médicos se põem em sentido com ela. O que ela diz é justo e tem de ser feito. Ninguém pode fazer coisa alguma. Mas vai ser difícil... Tu és muito bonita e ela vai imaginar o pior. Segundo ela diz, todos os médicos são cães atrás de uma cadela com cio.

— Isto aqui é assim tão terrível?

— O quê? Nunca foste incomodada por um médico?

— Na Frente tínhamos outros problemas. Estávamos no meio de um amontoado de corpos dilacerados. Como te chamas?

— Karl Bludecker... E tu?

— Chamo-me Jana Rogovski.

— Pura nobreza da Prússia Oriental. Não é verdade? Bludecker sorriu, pegou numa garrafa de cerveja, mas

Jana recusou.

— Obrigada, Karl. Não posso beber a tua cerveja diante de Frieda Wilhelmi.

— Frieda também bebe. Às escondidas. Eu sei. Mas seja como queres. — Ergueu a garrafa e fez um brinde. — Viva a navegação!

Bebeu uma grande golada, pousou a garrafa e arrotou discretamente. Jana, sentada no sofá, cruzara os braços.

— Porque falas em navegação? — perguntou, admirada.

— Não conheces este trocadilho? com meio litro de «urinol» podes schiffen1 um litro... Evacuar.

— Ou urinar... — acrescentou Jana.

— Também se diz, mas é menos elegante. Tu és espantosa; pequena.

As oito horas, Bludecker conduziu Jana ao gabinete da vigilante. Frieda Wilhelmi não se encontrava ainda ali. Jana sentou-se ajuizadamente a um canto e ficou à espera.

Às oito e meia, a porta abriu-se e uma torre maciça entrou na sala. Envolvia-a um fato de enfermeira, encimado por uma cabeça com óculos. Os olhos de um azul límpido

 

1 Jogo de palavras. Schiffen vem da palavra alemã Schiff (navio). (N. da T.)

 

perscrutavam Jana que se erguera imediatamente. Depois a torre aproximou-se da secretária e os seus braços apoiaram-se nela. Ao primeiro olhar, Jana sentiu-se invadir pelo medo. Era uma mulher que ninguém poderia dominar, habituada a mandar e que só esperava submissão da parte dos outros.

— De que se trata? — perguntou ela sem preâmbulos.

Jana estremeceu e olhou fixamente a montanha de carne. «Que voz», pensou, surpreendida. Agradável, profunda, sonora, ligeiramente cantante. Inspirava confiança. Bastava, apenas, fechar os olhos.

— A que serviço pertence?

— Ainda a nenhum, senhora vigilante.

— Como?

— Tenho de me inscrever aqui. — Jana tirou do saco o formulário que preenchera e entregou-o a Frieda Wilhelmi. Apelou para todas as suas forças para reprimir a ligeira tremura das mãos. «Agora é que se vai ver», pensou. «Só Deus pode ajudar-me... se puder fazê-lo.» — Venho da frente. De Leninegrado.

— Da frente! — Frieda Wilhelmi envolveu de novo Jana num olhar penetrante. — Leninegrado. — Frieda percorreu o formulário e atirou-o para cima da secretária. — Os seus papéis...

— Tenho apenas esse certificado.

— Mas deve ter os seus documentos. O seu cartão de enfermeira da Cruz Vermelha, a guia de transferência...

— Não tenho nada, senhora vigilante. Explodiram três granadas sobre o posto, uma das quais mesmo por cima dos nossos alojamentos. Ardeu tudo. Isso passou-se uma hora antes da minha partida. Fiquei com o saco porque o tinha comigo.

Frieda Wilhelmi voltou a pegar no formulário para o reler, depois encolheu os ombros. Jana suspirou interiormente. Um encolher de ombros era já uma capitulação.

— E enviaram-na para o nosso hospital? — continuou a vigilante, colocando de novo o papel sobre a secretária. — Já viu o Serviço de Pessoal?

— Não. Queria primeiro apresentar-me a si, senhora vigilante.

Frieda aprovou com um gesto da cabeça e depois daquela resposta achou a jovem simpática. Em seguida, sentou-se numa cadeira que desapareceu completamente debaixo da massa do seu corpo.

— Então deve lá ir imediatamente, enfermeira Jana. Caso contrário não receberá o seu vencimento. — Novamente o olhar inquisidor. — Onde vou metê-la? Estava num posto de socorros, portanto deve estar habituada à cirurgia. Já tem experiência. Este é o maior hospital da cidade. vou levá-la imediatamente ao responsável pela cirurgia, o doutor Pankratz, capitão-médico. Ele está ansioso por ter uma enfermeira competente. Vá agora ao Serviço de Pessoal e depois volte aqui.

— Sim, senhora vigilante.

Frieda Wilhelmi ficou a ver Jana sair da sala. «Uma rapariga bonita», pensou. «Bem-educada. Tem um olhar franco e ainda não corrompido. Isso vê-se imediatamente. Será preciso velar por ela para que não a estraguem. Ocupar-me-ei pessoalmente disso. Jana Rogovski, nascida em Lyck... perto dos lagos Mazures, muito perto da fronteira russa. Vigiarei os médicos e os outros que tentem tocar-te. Tomarei conta de ti, Jana.»

No Serviço de Pessoal, Jana encontrou um rapaz louro, sentado a uma mesa com a perna estendida em cima da mesa. Só ao segundo olhar é que Jana reparou que se tratava de uma prótese. O homem fez-lhe sinal para se aproximar e endireitou-se um pouco na cadeira.

— Foi em França — explicou. — Temporal na Linha Maginot. Estilhaços de granada. O osso por cima do joelho ficou metido para dentro. — Estendeu a mão para receber o impresso. — Vem trabalhar para aqui?

— Fui transferida para cá — respondeu Jana com ar confiante. — A vigilante Frieda mandou-me aqui. vou começar a trabalhar na cirurgia. Foi tudo verificado apesar de faltarem documentos. Venho da frente de Leninegrado.

— Ah! bom! — O homem dos cabelos louros observou Jana como uma ave rara. — Se Frieda acha que sim, então está tudo em ordem. — Agitou a folha de papel no ar. — É tudo quanto tem?

— Isso não basta?

— Adivinhou. Mas se Frieda está de acordo... bem, vou inscrevê-la na lista do pessoal. — O homem guardou o papel numa pasta azul. — Mas tente recuperar os papéis que lhe faltam.

— Se for possível. — Jana ficou à espera, mas as formalidades pareciam estar terminadas. — Como é a vigilante Frieda? — perguntou.

— Conhece o dragão que é morto por Siegfried? Infelizmente, não podemos abater Frieda... Não há nenhum Siegfried à vista.

— Realmente?

— Aqui nada se faz sem a Frieda. Ela vê tudo, ouve tudo, apercebe-se de tudo. Se ela diz que você deve ser inscrita, então inscreve-se! Não seria eu que iria decidir outra coisa, por causa dos seus papéis. — Fez uma careta e acrescentou com ironia: — Desejo-lhe felicidades no seu trabalho, enfermeira. Uma semana metida no fundo de um buraco não é nada em comparação com um dia de trabalho com Frieda. Mas tudo gira sobre rodas. É o lado vantajoso.

Meia hora mais tarde, Jana bateu novamente à porta da vigilante. Um «sim» atroador disse-lhe para entrar.

Frieda ergueu a cabeça e indicou uma cadeira a Jana. Esta sentou-se com a sensação de ser uma pobre pecadora perante o julgamento divino.

— Minha filha... — Sempre aquela voz quente, tão pouco condizente com a montanha de carne, além daquele «minha filha» quase maternal, de que Jana se apercebeu fisicamente. — Antes de irmos ter com o doutor Pankratz, quero dizer-lhe mais uma coisa: fique sabendo que não gosto de negócios do coração na minha casa.

Ela dizia «minha casa» para mostrar bem que nada lhe escapava. Jana aprovou sensatamente com um baixar de cabeça.

— No que me diz respeito, nada disso sucederá, senhora vigilante.

— Oh, meu Deus, dizem todas o mesmo. «Estou noiva. Não quero uma ligação passageira. Mereço melhor do que isso.» E mil outras afirmações. Depois caem nas patas do doutor Philip e esquecem tudo.

— Está a acautelar-me contra o doutor Philip?

— Entre outros. É apenas um exemplo. Todos os homens vão ficar loucos ao verem uma rapariga bonita como você.

— Peço-lhe, senhora vigilante, para me tratar por tu. Era uma boa táctica. Frieda lançou a Jana um olhar

cheio de benevolência, esboçando mesmo um leve sorriso.

— Os teus pais ainda vivem?

— Não. A minha mãe morreu com um cancro em mil novecentos e trinta e oito, e o meu pai... — Jana tomou uma expressão compungida. — O meu pai... desapareceu em França. Mas tenho a sensação de que ele não voltará mais.

— Sabes escrever à máquina?

— Muito mal, senhora vigilante.

— Isso aprende-se. Tudo se aprende quando se quer e se tem um pouco de inteligência. Tu vais estudar dactilografia.

— Sim, senhora vigilante.

— A partir de agora. Aqui. — Frieda apontou para uma pesada Adler com um grande carreto que permitia escrever listas. — É tudo uma questão de treino

Frieda envolveu Jana num olhar quase maternal e apontou para a máquina de escrever.

— Senta-te aí, minha filha, e começa a escrever

— Mas... senhora vigilante... — Jana levantou-se, instalou-se em frente do teclado da máquina com olhar perdido. — Só experimentei duas vezes... com dois dedos... apenas para verificar o estado da máquina do meu pai ..

— Não faz mal! Qualquer pessoa pode escrever à máquina. Hoje com dois dedos, amanhã com quatro e dentro de um mês com os dedos todos. Exercício... exercício é que é preciso.

Frieda Wilhelmi encorajou Jana com um gesto e depois disse uma frase que iria ser determinante para a situação de Jana:

— Não vou enviar-te para o serviço de cirurgia. Imaginei outra coisa. Eles têm pessoal suficiente. Vais ficar comigo e ocupares-te da papelada. Até aqui, era a secretária que se encarregava disso. Ela ajudar-te-á enquanto não souberes fazer tudo sozinha. Achas bem, minha filha?

— com certeza, senhora vigilante.

— Então mete uma folha na máquina e começa a escrever.

Frieda esperou que o papel estivesse na máquina e ditou muito lentamente:

«Nota interna para a farmácia do hospital. Constatei que os Serviços Dois, Seis e Sete têm falta de cânulas. Apesar dos pedidos, nada foi feito até agora. Exijo a entrega imediata de novas seringas, pois se tal não acontecer não poderemos assegurar os cuidados necessários aos doentes. Frieda Wilhelmi, vigilante.»

Jana escrevia com muita dificuldade, falhando muitas letras, procurando as teclas. No fim do ditado, parecia estar quase a chorar.

Frieda ergueu-se com dificuldade da cadeira, dirigiu-se para Jana e leu por cima do ombro. No fim, resmungou:

— Pelo menos, está legível — disse com indulgência. — Agora vais voltar a escrever’tudo. Verás como amanhã já escreves melhor.

— com certeza, senhora vigilante. — Jana tirou a folha da máquina. — Posso treinar-me aqui, no seu gabinete, fora das horas de serviço? Não... não quero desiludi-la.

— com certeza. — Uma porta até então fechada parecia ter-se aberto no coração de Frieda Wilhelmi. A sua gorda mão acariciou pesadamente a cabeça de Jana; depois voltou para a sua secretária e acrescentou: — Não vais dormir no pavilhão das enfermeiras, mas sim na sala contígua. É uma espécie de arrecadação. A casa de banho fica ao lado.

— Obrigada, senhora vigilante — disse Jana docilmente. «Um quarto sem vigilância», pensou. E não ia para o

serviço de cirurgia. «Rapidamente saberão que trabalho apenas para a vigilante. Vão talvez invejar-me, mas beneficiarei de uma certa autoridade. Ninguém me controlará. Ficarei sob a protecção dela. Senhor... ajudaste-me verdadeiramente.»

No Serviço Dois, na Cirurgia, reinava uma viva impaciência. O empregado louro do Serviço de Pessoal, logo a seguir à partida de Jana Petrovna, tinha telefonado para lá e fora atendido justamente pelo doutor Philip. Hans Philip, com um ar muito juvenil dos seus vinte e oito anos, era o queridinho do hospital. com o seu ar desportivo e os seus cabelos louro-avermelhados, era exactamente o tipo germânico moderno apresentado nas revistas e conforme com a nova raça alemã que o Reichsfuhrer SS Heinrich Himmler queria educar em estabelecimentos especiais, os Lebensbom. As suas aventuras amorosas ultrapassavam largamente o quadro do serviço. As enfermeiras de cirurgia estavam longe de serem as únicas a ficar pasmadas ao vê-lo passar.

Eram também as da Medicina Interna, da Pediatria, da Ginecologia e do Serviço ORL.1 Amaldiçoavam-no e odiavam-no, continuando, no entanto, a amá-lo em segredo, Um médico das radiografias ameaçara bater-lhe e um outro da ginecologia quisera bater-se com ele num duelo à pistola, no Kurisches Haff, à beira do mar Báltico, que não chegara a ter lugar, pois tais combates tinham sido proibidos no In Reich. O mesmo acontecera com tudo o que se relacionava com as associações de estudantes ligadas aos desportos de combate, como a esgrima. Isto equivalia a dizer a [espada, o florete e o sabre...

Incitado a bater-se às escondidas, o doutor Philip respondera com um gesto amplo:

— Se tenho de ser ferido, então que o seja na frente e não por causa de uma rapariga.

Nessa altura, o doutor Philip ouvia com atenção aquilo que o empregado dos cabelos louros lhe dizia.

— Vai apresentar-se imediatamente? — perguntou, satisfeito. — Muito bonita, diz você? Cabelos negros como azeviche e olhos a condizer? E tudo o que é preciso no corpete? Veio da frente de Leninegrado? Obrigado, Robert... «Então a pequena tem experiência de combate. Está agora com Frieda? Obrigado pela informação. Ainda vou qualificar-me como matador do dragão.

O chefe do serviço, o capitão-médico Pankratz, não regressara ainda. Estivera a operar, na véspera, até cerca da meia-noite. Chegara um comboio sanitário e nove Sanhas haviam transportado os feridos graves para o hospital. Metade deles precisaram de tratamento de urgência. Chegaram directamente da frente de Leninegrado com pensos ensanguentados, feridas abertas, febres altas... Nove ambulâncias cheias de corpos dilacerados.

Philip esperava pela bonita enfermeira. Preparara um bom café no seu gabinete, com biscoitos cobertos de chocolate e licor de Dantzig, uma mistura que parecia abrir o coração das jovens, e também outra coisa...

Esperou uma hora, fez uma ronda pelo serviço, visitou três casos difíceis, beliscou as nádegas à enfermeira Angelika ao passar, e depois, impaciente, telefonou para o gabinete

 

1 ORL — Otorrinolaringologia (N. do E.)

 

do Serviço de Pessoal. O empregado — posto 009 ficou admirado.

— O quê? Ela ainda não se encontra aí? Não compreendo. Talvez se tenha perdido.

— Durante uma hora?

— Devia informar-se junto de Frieda, doutor Philip.

— Prefiro não o fazer. Quem se lembraria de ir despertar um leão adormecido?

— Ninguém.

Philip deixou decorrer outra hora, achando aquela história estranha e incompreensível. Então, com uma coragem heróica, dirigiu-se ao Serviço de Pessoal e depois ao gabinete da vigilante Frieda Wilhelmi. Afinal, tinha o direito de perguntar onde se encontrava a nova colaboradora.

O empregado do Serviço de Pessoal nada sabia e também achava muito estranho aquele desaparecimento.

— Talvez a pequena não pudesse evitar o escolho Frieda? — disse prudentemente. — Às vezes, basta uma frase estúpida e está tudo estragado.

— Não é uma vergonha para nós tolerarmos isso?

— Tente então alterar as coisas, doutor — respondeu o empregado com ar embaraçado. — Em França, quando os blindados atacaram, eu pus-me em pé na trincheira sem ter medo, esperei até ficar num ângulo morto, colei a carga explosiva na torre, carreguei no detonador, corri a abrigar-me e a torre saltou... mas quando Frieda passa diante desta porta, sinto palpitações.

Philip exortou-se a não ser um cobarde. Dirigiu-se então ao gabinete da vigilante, bateu à porta e entrou. Frieda Wilhelmi encontrava-se à sua secretária a ler um dossier. Lançou ao médico um olhar inquisidor. Uma jovem enfermeira da Cruz Vermelha, morena, escrevia à máquina com dois dedos.

«Deve ser esta», pensou imediatamente Philip. «Exactamente como Robert a descreveu. Há muito tempo que não via nada tão bonito. Uma verdadeira jóia. Que faz ela no gabinete de Frieda, em frente da máquina de escrever?»

com o rosto radiante sob os caracóis louros, Siegfried, o herói, aproximou-se sem temor.

— Que se passa? — perguntou Frieda fechando o seu dossier.

Espantada, Jana Petrovna ergueu os olhos. A voz da vigilante mudara completamente. A tonalidade quente e maternal transformara-se numa trombeta fria e penetrante. Philip parecia estar habituado. Ficou de pé.

— Senhora vigilante, anunciaram ao Serviço de Cirurgia a chegada de uma nova colaboradora. Ela ainda não se apresentou. Há algum problema?

— Resolvi de maneira diferente. É tudo.

— Seria bom que a cirurgia fosse também informada.

— O doutor Pankratz já chegou?

— Não.

— Então espere!

A resposta foi como um tiro de canhão. Philip teve a impressão de apanhar uma bofetada retumbante. A bonita e jovem enfermeira ergueu os olhos da sua máquina de escrever. Os olhos de ambos cruzaram-se apenas por um segundo, mas isso foi o suficiente para perturbar interiormente Philip.

— Informarei o médico-chefe.

— Vigilante Frieda...

— QUE MAIS DESEJA?

Cada uma daquelas palavras atingiu dolorosamente Philip. Quis responder no mesmo tom, mas para quê? Ninguém conseguia desafiar aquela massa de poder consciente. Até o doutor Pankratz tentara fazê-lo, ao princípio, mas isso tivera como resultado Frieda Wilhelmi ter negligenciado o Serviço de Cirurgia e tirado dali enfermeiras em proveito do Serviço de Medicina Interna e de Ginecologia, repelindo friamente todos os protestos. Até que, por fim, o doutor Pankratz falara com Frieda com frases adocicadas que se assemelhavam muito a um pedido de desculpas. Frieda aceitara a capitulação oculta e, a partir desse momento, a Cirurgia voltara a funcionar sem problemas.

— É permitido perguntar se poderemos contar em breve com a nova colaboradora? — insistiu Philip, oprimido e dissimulando com dificuldade a raiva que sentia.

— Não. Não conte com isso. Não compreendeu o que eu disse. Tomei outras disposições.

Philip percebeu que se tratava de uma maneira disfarçada de lhe dizer para sair. Deu meia volta, lançou um olhar a Jana, cujos olhos negros o observavam, e saiu sem uma palavra, batendo com a porta.

— Malcriado! — exclamou Frieda.

— Quem era? — perguntou Jana, perturbada. Compreendia agora por que motivo o enfermeiro lhe dissera que toda a gente tinha medo de Frieda Wilhelmi.

— Era o doutor Philip. Tem má fama. É um rapaz que vive na ilusão de que o homem é o ponto mais alto da criação. — Frieda voltou a abrir o dossier. — Continua a treinar-te, minha filha. Não te preocupes com ele. E se ele vier ter contigo, diz-me imediatamente. Quem quer que vista saias corre perigo diante dele.

Jana Petrovna anuiu e continuou a escrever, procurando laboriosamente as letras e copiando com lentidão o texto. Conhecia perfeitamente o perigo que o doutor Philip representava. Não duvidava de que ele tentaria aproximar-se de si e abordá-la por todos os meios. Mas, com Frieda Wilhelmi, estaria em segurança e sabia que tudo iria depender da benevolência maternal da vigilante para com ela. Jana tinha a impressão de ser um animal que se tivesse escondido no fundo de uma nova cova quente para sobreviver. Dispunha agora de uma cama, de um armário, de uma cadeira, de uma mesa e de um candeeiro, na sala contígua. Tinha de comer e de beber. Não passaria frio no Inverno que se aproximava e teria uma protectora. Se tudo continuasse assim, poderia esperar pelo fim da guerra.

E, dentro de alguns dias, voltaria a ver o paizinho. Ele encontrava-se no castelo com a Sala de Âmbar, fiel ao juramento que o seu antepassado prestara perante o rei: onde estivesse a Sala de Âmbar estaria sempre um Wachter.

«Senhor, faz com que Nikolai Michailovitch sobreviva a Leninegrado. Nós devemos ter também um filho, para que haja sempre um Wachter junto da Sala de Âmbar.»

— Em que pensas, minha filha? — perguntou Frieda, cuja voz a arrancou aos seus pensamentos.

— Não gosto desse doutor Philip, senhora vigilante.

— Tenta dizer sempre isso. — Frieda olhou para o relógio de parede. O almoço iria ser servido em breve, um momento muito importante para ela, como para todos no hospital. — E não penses mais nele. Não merece a pena.

No dia seguinte, às dez horas da manhã, teve lugar a primeira reunião entre o Gaulelter Koch, o doutor Findling, o doutor Runnefeldt e o doutor Wollters. Como sempre, Bruno Wellenschlag estava presente, se bem que não fizesse qualquer ideia sobre a questão. Ouvia em silêncio, sentado à mesa. Koch mandara-o estar ali como testemunha, com conhecimento de causa, para poder assegurar a sua posição em relação a Hitler, a Bormann, a Von Ribbentrop e a Rosenberg.

Era certo que tinham o consentimento do Quartel-General do Fiihrer para a reconstrução da Sala de Âmbar em Konigsberg, mas bastava uma intervenção de Bormann para que se modificasse completamente a situação.

Findling compareceu a essa reunião ligeiramente pálido e visivelmente abatido. O ólei» do avô evitara as queimaduras no estômago e as náuseas, mas não lhe poupara as dores de cabeça. Os outros pareciam estar na mesma situação, excepto Koch, tão fresco e bem disposto como se tivesse dormido doze horas e bebido apenas água. Passara a noite nos seus aposentos do castelo e não fora para a sua luxuosa vila, um palácio que provocara a indignação da população, [cujo descontentamento fora, no entanto, silencioso e contido. Criticar o Gauleiter equivalia a ofendê-lo e Koch reagia imediatamente com a mais brutal repressão. O «rei da Prússia Oriental» não tolerava qualquer contestação.

Koch iniciou a discussão fazendo uma pergunta de base a Findling:

— Quanto tempo será necessário para reconstruir a Sala de Âmbar? — quis saber.

— Entre cinco a seis meses, Gauleiterl — respondeu imediatamente Findling.

Esperava aquela pergunta e previra igualmente a reação de Koch. Por isso, não se assustou quando ele o olhou [fixamente e gritou:

— Seis meses! Deve estar doido. Dou-lhe seis semanas...

— Impossível.

— Nada é impossível! Doutor Runnefeldt, quanto tempo demorou a desmontagem em Puchkine?

— Seis dias.

Runnefeldt lançou um olhar de encorajamento a Finjdling.

— E você, Findling, fala em seis meses. Ainda está embriagado!

— Devo dar razão ao doutor Findling. — Runnefeldt, que não receava Koch, não se deixou desconcertar pelo seu olhar venenoso, pois os seus superiores eram Hitler, Bormann e o Ministério dos Negócios Estrangeiros. — Desmontar é infinitamente mais fácil do que reconstituir. Pode-se demolir uma casa em poucas horas, mas é impossível construí-la em tão pouco tempo. Não basta instalar os lambrins. A Sala deve ficar conforme ao original, painel por painel, escultura por escultura...

«E visto que a temos à nossa disposição desmontada, será preciso estudá-la e inventariá-la do ponto de vista histórico e científico. Trabalharam em Tsarskoie Selo muitos artistas, em épocas diferentes: o cortador de âmbar, Gottfried Wolffram, e os mestres de Dantzig, Ernst Schacht e Gottfried Tourov, estes em mil setecentos e sete, Rastrelli em mil setecentos e sessenta, ano da instalação definitiva da Sala de Âmbar, já no reinado da czarina Isabel. E depois, a partir de mil setecentos e sessenta e três, cinco mestres de Kõnigsberg continuaram a fazer outros lambrins: Friedrich e Johann Roggenbuch, Clemens e Heinrich Wilhelm Friedrich, assim como Johann Welpendorf. Devemos estabelecer tais factos com precisão antes de voltarmos a montar a Sala de Âmbar.

— O nosso superespecialista! — Koch coçou o nariz e depois cofiou o seu pequeno bigode. — Que diz, doutor Wollters?

— Estou de acordo com os argumentos do doutor Runnefeldt, Gauleiter — respondeu com prudência o capitão de cavalaria. — Temos agora a melhor ocasião, e creio que a única, para examinar em pormenor a Sala de Âmbar, no interesse da história de arte.

— É um castigo trabalhar com peritos científicos! — Koch dirigiu-se de novo a Findling: — Desejo que todos os trabalhos sejam executados o mais depressa possível. Senão, arriscamo-nos a ser ultrapassados pelo tempo e a guerra será ganha antes que a Sala seja reconstituída no castelo. Devem saber, meus senhores, que a Sala de Âmbar se arrisca a ir para Linz. Aspiro a guardar este Besouro único aqui, no castelo... para sempre! Se a Sala de Âmbar estiver desmontada, será mais fácil de transportar e poderá sofrer novos estragos. É preciso, portanto, despacharmo-nos, doutor Findling. A questão de saber se uma escultura é obra de determinado mestre e uma grinalda de outro, no fundo não tem importância!

— Tem para a ciência, Gauleiter — respondeu corajosamente Runnefeldt.

— Eu bem digo: vocês, os peritos científicos, são um castigo de Deus! — Koch bateu com o punho sobre a mesa, fazendo tremer as chávenas de café que uma ordenança levara. — Quando poderei ver pelo menos um lambrim? Isso é permitido?

— Vamos abrir alguns caixotes e reunir um painel, mas no chão, Gauleiter.

— É muito amável. — Koch levantou-se bruscamente, pondo fim à primeira reunião a propósito da Sala de Âmbar. Os outros levantaram-se imediatamente das suas cadeiras. — Quando? — perguntou ele.

— vou esforçar-me por fazê-lo para esta tarde.

— Pois bem, faça-o — retorquiu Koch. — Onde devo dirigir-me?

— Proponho-me estender o painel sobre o pavimento da sala trinta e sete, prevista para a montagem.

— E a que horas deseja a minha presença?

— Avisá-lo-ei, Gauleiter.

— É muita bondade sua! — Koch dirigiu-se para a porta. Bruno Wellenschlag seguiu-o como uma sombra. — Não esqueça que janto às sete da tarde...

Abriu a porta com violência e saiu pesadamente. Só quando a porta se fechou é que se notou um alívio visível. Runnefeldt olhou para Findling que estava lívido, apoiado à beira da mesa. Wollters mordiscava o lábio inferior.

— Você enfrentou-o corajosamente! — exclamou Runnefeldt. — Claro que tem razão... mas não teme represálias da parte dele?

— Era preciso mais diplomacia — objectou Wollters. — Nós conhecemos a susceptibilidade do Gauleiter. Isto irá ter consequências, doutor Findling.

— Não se trata de mim, mas sim da Sala de Âmbar — retorquiu Findling, afastando-se da mesa. — Até mesmo um Gauleiter deve aprender a ser paciente diante de uma tal obra de arte. — Àproximou-se da janela e olhou para o pátio do castelo com os dezoito camiões guardados por cinco soldados. — Quanto tempo vão permanecer aqui, caros colegas?

— Tenho de partir para Riga depois de amanhã — respondeu Wollters. — Creio que terei de voltar a Pavlovsk mais uma vez. O proveito a tirar dos tesouros do castelo é inimaginável!

Koch deteve-se um instante no largo corredor que ia dar à escadaria e bateu no peito de Wellenschlag.

— Ouviste, Bruno? Aqueles diplomados querem dar-me uma lição!

— com efeito, Gauleiter — Wellenschlag conhecia Koch melhor do que ninguém. — Mas...

— Mas o quê? vou fazer esse Findling correr como um coelho.

— A falar verdade, Gauleiter, não há nada a censurar-lhe.

— Deixa de dizer idiotices, Bruno. — Koch dirigiu-se pesadamente para a escada. — Tu percebes muito de bebidas, mas nada sobre a maneira de tratar as pessoas. Findling é um lacaio como todos os que me rodeiam, e deve aprender a fazer o que lhe dizem e a ficar calado.

Subitamente, calou-se, surpreendido. Um homem de uma certa idade encaminhava-se para eles. Koch lembrava-se de já o ter visto em qualquer sítio. Pensou aonde teria sido, mas em vão. O homem estava mal vestido e muito longe para o poder reconhecer. Mas que faria aquele tipo na ala particular do castelo?

O homem hesitou um instante e depois fez a saudação hitleriana.

— Heil Hitler, Gauleiterl — acrescentou ele.

— Quem é você? — perguntou Koch sem responder à saudação. — De onde o conheço eu? Já nos encontrámos uma vez...

— Foi esta noite, à uma hora da madrugada, Gauleiter. Eu vim com a Sala de Âmbar.

— O guarda! — exclamou Wellenschlag. — O empregado do museu de Puchkine, Gauleiter. O que tem antepassados desde há duzentos e vinte e cinco anos...

— Exacto! — Koch aproximou-se e examinou Wachter atentamente. — Você é uma das raras pessoas que conhecem perfeitamente a Sala de Âmbar, não é assim?

— Talvez seja a única, Gauleiter. Conheço o mais pequeno pedaço de mosaico. Cresci junto da Sala. Ela faz parte da minha vida.

— Siga-me! — ordenou Koch, fazendo-lhe sinal. — É preciso que falemos sobre o assunto. Quais são os seus projectos?

— Projectos? — repetiu Wachter, espantado, sem compreender.

— A Sala vai ficar aqui, agora... e VOCÊ, que vai fazer? Precisa de arranjar trabalho...

— Pensei, Gauleiter, que talvez precisassem de mim

aqui. Isto é... como guarda da Sala de Âmbar. Empregado do museu. Não há ninguém para,...

— Eu sei! Eu sei! A Sala de Âmbar serviu-lhe de leite materno.

— Por assim dizer, Gauleiter.

— Quanto tempo é necessário, segundo a sua opinião, para instalar a Sala neste castelo?

— Alguns meses.

— Ele também, Bruno! — Koch apontou para a escalda. — Venha comigo, Wachter. Tenho uma quantidade de perguntas a fazer-lhe. E quanto às suas funções de guarida... vou pensar nisso. Preciso de um homem de confiança.

— Agradecido, Gauleiter. — Wachter engoliu a saliva. A garganta apertada alterava-lhe a respiração. — Seria uma grande honra para mim poder trabalhar no castelo.

Dirigiram-se para uma vasta sala com uma fila de armaduras alinhadas ao longo das paredes e algumas vitrinas no meio contendo armas antigas, adagas, bolas com pontas de ferro, machados e alabardas. No canto, à esquerda, encontrava-se um jogo de sofás moderno, completamente anacrónico nesse ambiente de Idade Média da história da Prússia Oriental.

Koch sentou-se e convidou Wachter a fazer o mesmo.

— Por que motivo os russos não o obrigaram a renunciar à nacionalidade alemã? — começou por perguntar. — Como é que um alemão pôde ser o guarda da Sala de Âmbar?

A conversa assemelhava-se a um interrogatório.

— Isso foi regulamentado por um tratado de mil setecentos e dezasseis, Gauleiter.

Wachter falava com todo o cuidado. Pesava cada palavra antes de falar. Um simples erro, o mais pequeno momento de falta de atenção, podia significar a sua perda.

— Mil setecentos e dezasseis... — Koch encostou-se à cadeira, cruzou as mãos sobre a barriga e observou Wachter com um olhar penetrante. — E Estaline respeitou-a?

— Toda a gente a respeitou, Gauleiter. Os czares, as czarinas, Kerenski, Lenine e Estaline também.

— E agora espera o mesmo do Fúhrer...

— De si, Gauleiter. Pouco importa ao Fúhrer saber quem velará pela Sala de Âmbar. Enquanto ela estiver em Kõnigsberg, o senhor é que será o responsável por ela.

— A Sala ficará sempre em Kõnigsberg! — exclamou Koch.

O homem — como se chamava ele? Wachter — causava-lhe boa impressão. Poderia vigiar permanentemente Findling, fornecendo-lhe informações. Nada que dissesse respeito à Sala de Âmbar se poderia fazer sem Wachter. Tratava-se de um homem verdadeiramente importante.

— Onde vivia você em Puchkine, Wachter?

— No Palácio de Catarina, perto da Sala de Âmbar.

— Pois bem, aqui viverá também no castelo.

— Gauleiter... isso significa que... posso ficar? Que posso continuar a ocupar-me da Sala?... Que...

Koch fez um sinal afirmativo com a cabeça. Fazia-lhe impressão ver lágrimas nos olhos de Wachter. Apesar de poder compreender a situação, achava-o pouco viril.

— Acalme-se! Dedique-se ao que tem a fazer! — resmungou Koch num tom aborrecido, mas compadecido. — Quero que me faça um relatório completo. Tem família?

— A minha mulher morreu há muito tempo.

— Não tem filhos?

— Um filho. Chamava-se Nikolai. Morreu num acidente de motorizada, Gauleiter. Fractura de crânio.

— Se calhar, tinha bebido...

— Os jovens... — suspirou Wachter encolhendo os ombros com ar resignado. — Felizmente que a mãe não o viu naquele estado. Ele representava uma grande esperança para mim. A família Wachter vai desaparecer comigo.

— Que idade tem você, Wachter?

— Cinquenta e cinco anos, Gauleiter.

— Mais dez anos do que eu! Ainda não é velho, Wachter. Ainda pode ter um filho... com uma mulher nova cheia de temperamento. Pense nisso! Um homem pode sempre. O que é preciso é ousadia! — Koch desatou a rir. O seu tema favorito levava-o a fazer confidências. — Não vai certamente quebrar a cadeia de duzentos e vinte e cinco anos? As entranhas dos homens contém a imortalidade da Alemanha. Olhe bem à sua volta, Wachter, e repare que, em seu redor, há muitas mulheres sozinhas e com apetites suficientes...

— vou pensar nisso, Gauleiter.

Koch cruzou as pernas e tirou o boné. Wachter voltou a estar vigilante. «O interrogatório vai, portanto, continuar», pensou. «Não se pode convencer Koch tão depressa.»

— Conte-me um pouco da história da Sala de Âmbar.

— Isso vai levar muitos dias, Gauleiter.

— E então? Temos muito tempo. Uma hora agora... outra amanhã. Por exemplo, que disse Lenine ao ver a Sala pela primeira vez?

— Que foi construída sobre as costas dos trabalhadores!

— Isso é mesmo dele! — respondeu Koch rindo ruidosamente. — Continue, meu caro Wachter. Continue,

Ao fim de três dias, Jana Petrovna aprendera a escrever à máquina quase correntemente com dois dedos. A falar verdade, treinara-se durante dez horas seguidas, procurando as letras no teclado. Experimentara até fazê-lo com os olhos fechados, mas era ainda demasiado cedo. Ao fim do terceiro dia, desenhou o teclado num grande bocado de cartão, do tamanho exacto do original. Frieda Wilhelmi deu a sua opinião sobre o desenho ao voltar de uma das suas rondas. Como sempre, encolerizara-se, a sua voz fizera-se ouvir pelos corredores e algumas enfermeiras tinham ficado a chorar. Ela achava que um pouco de pressão de tempos a tempos não lhes fazia mal e tinha como efeito que tudo se fizesse melhor.

— Para que é isso, minha filha? — perguntou numa voz quase afectuosa, observando o cartão. — Para decorares as letras mais facilmente?

— Não. É que assim posso treinar-me em qualquer sítio.

— Muito inteligente! Mas não te apetece apanhares um pouco de ar?

— Está sempre a chover, senhora vigilante.

— E se fosses ao cinema? No Ufa-Palast vai um novo filme com Zarah Leander, O Caminho da Liberdade. E no Tivoli levam O Judeu Súss... Precisas de ir ver esse, minha filha.

— Se posso...

— Claro que podes! Não estás na prisão. Fora do teu tempo de trabalho, podes fazer o que bem entenderes. Claro que dentro da decência e da moralidade.

— Gostava, sobretudo, de ir uma vez ao museu do castelo, senhora vigilante. — Jana fitou a máquina de escrever para não ter de olhar para Frieda Wilhelmi. — Gosto de pintura e de escultura. Quando tive uma curta licença, na frente, cheguei a visitar o museu de Peterhof. Fiquei muito impressionada.

— Então vai visitar o museu, minha filha.

— Só está aberto durante o dia e não à noite quando acabo o meu trabalho.

— É verdade. — Frieda Wilhelmi reflectiu rapidamente. — Amanhã tens o dia livre.

— De verdade, senhora vigilante? Oh, obrigada... obrigada...

Quis levantar-se e ir beijar Frieda, mas deixou-se cair na cadeira e limpou os olhos.

— Nada de choraminguices! — exclamou Frieda num tom brusco, mas com a sua voz normal. — Tens direito a um dia livre. Irás, portanto, ao museu amanhã e contar-me-ás o que lá se pode ver. Acompanhar-te-ia de boa vontade, mas não posso ausentar-me. E depois de amanhã, à noite, iremos ver Zarah Leander.

Nessa noite, Jana Petrovna foi importunada. Uma pancada na porta arrancou-a ao sono e ela pensou que fizera bem em se ter fechado à chave. Sabia quem estava do outro lado da porta, embora ninguém se tivesse anunciado.

— Sim? — gritou à maneira de Frieda.

Lá fora, alguém tossiu. Depois uma voz murmurou:

— Abra, peço-lhe...

— Quem está aí? — perguntou Jana superfluamente.

— Hans.

— Não conheço nenhum Hans.

— Hans Philip.

— Ah, é o doutor? Trata-se de alguma urgência? Eu não estou de serviço. Bem o sabe.

— Pode dizer-se que é uma urgência. Abra a porta.

— Não.

— Vá. Não se faça cara!

— Sou Virgem.

— Como?

— Sou do signo da Virgem.

— Você não deixa de ter humor! Isso agrada-me. Devíamos travar mais amplo conhecimento, mas não através da porta.

— Não vejo a utilidade disso.

— Podia explicar-lhe se me deixasse entrar.

— Não conseguiria convencer-me.

— Podíamos fazer uma tentativa, Jana. Na vida, o «nunca é raro.

— Então, eu pertenço a essa espécie rara, doutor. Agora, peço-lhe que me deixe dormir. De resto, por que motivo está ainda no hospital?

- Estou de serviço esta noite, Jana. Abra. Trouxe duas garrafas de cerveja.

— Da «urinol»?

Silêncio. Philip pestanejou, estupefacto. «Esta agora», disse para consigo, «mostra-se tão recatada e tem um vocabulário destes? Não é de maneira nenhuma uma menina frágil e ’não me toques’. Anda apenas a brincar ao gato e ao rato comigo.»

— Pequena — disse, pondo a boca junto da porta —, tu és uma mulher boa. Vem dar a volta à chave...

— Não. Boa noite, doutor.

Jana Petrovna deitou-se e puxou os cobertores para cima da cabeça. Não ouviu mais nada e, por isso, não soube quanto tempo o médico esteve a sacudir a maçaneta, a faltar, a implorar e a seduzir. Acabou por desistir. Era a primeira vez que uma mulher resistia aos seus avanços — uma sensação que lhe era totalmente desconhecida — e ele voltara ao Serviço de Cirurgia desiludido. «bom», pensou, «não é para hoje. Temos tempo. Ela acabará por ceder. Quem está de serviço esta noite? A enfermeira Veronika. Vroni, a das nádegas redondas. É melhor que nada.»

Meteu as garrafas de cerveja no bolso da bata e dirigiu-se ao Serviço Dois, onde se achava instalada a sala das enfermeiras de serviço.

— Olá, Vroni — disse ele para a bonita rapariga que ali se encontrava. Inclinou-se para ela e acariciou-lhe o

peito. — Vamos pôr-nos à vontade. Senão, a noite vai ser aborrecida.

E a enfermeira Vroni desabotoou a sua bata...

Jana Petrovna chegou ao museu do castelo de Kõnigsberg por volta das dez horas. Comprou um bilhete sem se atrever a perguntar onde estaria exposta a Sala de Âmbar. Além de alguns iniciados, ninguém tinha conhecimento da chegada do tesouro. E a visitante nada devia saber a esse respeito.

Para não atrair as atenções, Jana deambulou de sala em sala, parou em frente de alguns quadros, subiu ao primeiro andar sem ver a Sala de Âmbar em parte alguma, e sem se aperceber de qualquer actividade que indicasse que estava a ser montada. Mas quando quis subir para o segundo andar, deparou com uma grossa corda que impedia o acesso à escada. Viu também um letreiro que dizia «Encerrado» e outro onde se lia. «Entrada proibida até nova ordem.» Jana imobilizou-se e ficou de ouvido à escuta. «É então lá em cima», disse para consigo. «É lá que deve estar o paizinho. Que irá dizer ao ver-me bruscamente diante dele?» Ouvia martelar e algumas vozes a falar. Depois ouviu uma voz mais nítida:

— Karl, ajuda-me! Atenção, idiota! E agora levanta! Jana Petrovna levantou a corda, passou por baixo dela e

subiu a escada. De um dos lados do corredor largo, partia mais distintamente o barulho. Dois homens surgiram do lado esquerdo e pararam ao verem a enfermeira da Cruz Vermelha.

— Para onde quer ir, enfermeira? — perguntou um deles. — De momento, nada há para ver aqui.

— O letreiro não está lá em baixo? — perguntou o outro.

— Vim em serviço. Telefonaram para o hospital. Não sei o que se passa.

— Alguém cortou um dedo na porcaria dos caixotes — comentou alegremente um deles.

— Não deve ser outra coisa, esperemos — disse o segundo. Apontou para um corredor lateral. — A passagem está livre, enfermeira. E, sobretudo, trate-o com carinho, seja quem for...

Os dois homens afastaram-se a rir. Jana hesitou um instante e depois continuou a avançar, comprimindo os lábios. Parou em frente de uma porta larga com o número 37. Lá dentro, ouvia-se martelar e o ruído de vozes. Reunindo toda a sua coragem, Jana abriu a porta e encontrou-se numa sala vazia.

Um painel da Sala de Âmbar estava a ser reconstituído, no solo. Dois homens com uniformes de oficiais observavam um anjo de âmbar que um deles agarrava com as duas mãos. Ao fundo, três homens enterravam ganchos na parede nua, enquanto um quarto homem desenhava com um lápis outros orifícios que deviam ser abertos.

E, diante do painel estendido no solo, Wachter, de joelhos, observava com uma lupa um mosaico de âmbar cintilante.

O primeiro a reparar em Jana foi Runnefeldt que a olhou, assombrado. Findling deu por isso e voltou-se. Ficou também admirado.

— Deve ter-se perdido, enfermeira — disse delicadamente Runnefeldt.

— Não sei. Alguém telefonou para o hospital. Deve ter havido um pequeno acidente.

Jana mantinha-se calma e continuava a observar o painel diante do qual Wachter estava ajoelhado.

«Estou aqui, paizinho. Não te inquietes mais. Estou muito bem.» Logo que a ouvira falar, Wachter estremecera. Queria mexer-se, saltar, mas a razão dizia-lhe para se manter imóvel. «Jana. É a Janachka. É a voz dela, diferente de qualquer outra, com o seu sotaque russo. É ela. Está bem. Veio até Kõnigsberg.»

Voltou-se também, mas lentamente, o que lhe exigiu um grande esforço, e, ao ver Jana, teve de se conter para não lhe abrir os braços.

«É a minha filhinha», pensou. «Oh, Senhor, a minha filhinha. Eis-nos reunidos de novo! Como estás tu? Onde te escondeste? Como soubeste que eu estava no castelo?»

Levantou-se, sacudiu o pó das calças e levou as duas mãos ao coração.

«Minha filhinha, saúdo-te.»

Entretanto, Runnefeldt abanava a cabeça.

— Um acidente? Aqui? Que eu saiba, não. Está ao corrente de algum acidente, doutor Findling?

— Não. Aqui ninguém se feriu. Talvez lá em baixo, nos camiões?

— Nós saberíamos. — Runnefeldt deu um passo para Jana. — Deve tratar-se de uma brincadeira estúpida, mas banal, enfermeira — disse, desolado. Bruscamente, fez uma expressão de espanto. com a cabeça inclinada, examinou Jana mais atentamente. — Não nos conhecemos já?

— Não. Certamente que não.

— Não nos encontrámos já? Tenho uma boa memória e nunca me enganei. Conheci-a em qualquer parte...

— Talvez na frente? Trabalhei no posto de socorros, junto de Leninegrado. — Afirmou isso com tanta convicção que pareciam não poder subsistir dúvidas. — Esteve na frente?

— Não. É a primeira vez que me engano. Desculpe-me. O meu nome é Runnefeldt.

Findling apresentou-se por sua vez, inclinando-se ligeiramente diante de Jana.

— Como disse, não houve aqui qualquer acidente.

— Então trata-se de uma brincadeira de mau gosto. — Lançou novo olhar a Wachter apertando contra si a sua maleta de primeiros socorros. — Como se pode sair daqui? Uma pessoa perde-se neste castelo.

— Não há qualquer problema, enfermeira. — Wachter adiantou-se fitando mais Runnefeldt do que Jana. — vou indicar-lhe o caminho. Siga-me.

— Obrigada. Desculpem a minha intrusão, mas a culpa não foi minha.

Voltou-se e saiu da sala atrás de Wachter. Encontraram-se sozinhos no corredor. Wachter deu-lhe a mão e puxou-a rapidamente para uma sala com quadros de Liebermann e de Modersohn-Beker, apertando-a nos braços com um soluço.

— Minha filhinha — balbuciou. — Oh, minha filhinha. Estão acabadas as minhas preocupações. Onde vives tu? Onde te escondeste? Tens fome? Precisas de dinheiro? Parece que tens um traje novo. Onde o roubaste? Oh, minha filhinha, como me sinto feliz...

Ficaram um momento estreitamente abraçados na Sala Liebermann, sem nada dizer, totalmente mergulhados na felicidade do reencontro. Só tinham estado separados alguns dias, mas, para Michael Wachter, o adeus a Puchkine significara um salto para o desconhecido. Agora, os seus braços abraçavam Jana Petrovna, pois ela encontrava-se ali em Kónigsberg, no castelo. Era uma espécie de milagre inesperado que o deixava sem voz.

Só quando Wachter respirou fundo e largou Jana, é que ela pôde dizer:

— Paizinho, tenho um bom lugar aqui no hospital municipal. Sou secretária da vigilante. Um lugar honroso. Tenho um quarto para mim, salário e refeições gratuitas. A vigilante protege-me como uma colecção de ícones. Aprendo a escrever à máquina, posso circular livremente, ir ao cinema, ao teatro, ao café, ao restaurante. Vivo como uma cidadã alemã normal e o meu traje de enfermeira evita-me qualquer controlo. Isto que trago vestido é meu, não foi roubado, como o primeiro. Tenho também um bilhete de identidade, senhas de racionamento, de tabaco e de rações especiais. — Afastou os braços e girou sobre si mesma. — Sou uma pessoa respeitável. E tu, paizinho?

— O Gauleiter e o conservador do museu, o doutor Findling, contrataram-me para a Sala de Âmbar. Continuarei a velar por ela, como dantes.

— Então, nada mudou!

— Apenas o local, minha filha. E isso é importante. Quem sabe como irá terminar a guerra? Aqui toda a gente fala da vitória alemã...

— Mas tu és alemão, paizinho.

— Sim. Sou prussiano, como os meus antepassados, mas não sou um alemão como os de hoje, os que acreditam na vitória final e gritam Heil Hitlerí Não pertenço aos super-homens para os quais todos os outros povos são sub-homens, sobretudo vocês, os eslavos, os povos do Leste. Se soubesses tudo o que tenho ouvido nestes últimos dias! Minha filhinha, devia envergonhar-me de ser alemão e de fazer parte desta gente.

Jana pensou um momento em Julius Paschke e respondeu:

— Nem todos são assim. Há outros diferentes. Talvez muitos. Ainda não sabemos.

— Mas quase todos acreditam na vitória. Na destruição da Rússia. Estão diante de Moscovo, em frente de Leninegrado. Invadiram a Crimeia, atravessam o Cáucaso...

— E o Inverno vai chegar... eles ainda não o conhecem. Os Urais estendem-se diante deles e depois a Sibéria infinita, o rio Amor, o Ossouri, a fronteira chinesa, o Kamtchatka, os territórios em redor de Vladivostok e em direcção ao Pacífico... Ninguém pode apoderar-se da Rússia e os alemães também não... O nosso vasto país é a nossa vida eterna.

— Como tu falas com inteligência, minha filhinha. Esperemos o que nos reserva o general Inverno.

Tinham ainda muito que contar um ao outro, mas a ausência prolongada de Wachter poderia tornar-se suspeita. Ele entreabriu a porta e espreitou para o corredor antes de tirar Jana Petrovna da Sala Liebermann. Acompanhou-a até à escada, despediu-se com um baixar de cabeça e só depois dela descer as escadas é que voltou para a Sala de Âmbar.

Ninguém se preocupara com a sua ausência e Wachter foi encontrar Runnefeldt, Wollters e Findling a discutirem diante do grande painel estendido no solo. Comparavam-no às fotografias tiradas dos antigos catálogos do museu do Palácio de Catarina. Findling parecia muito preocupado.

— Se todos os painéis são como este, então estamos mal! Falta o friso superior, os ornamentos entre o friso mural e os frescos do tecto, que ficou em Puchkine, e igualmente uma grande quantidade de pequenos bocados de mosaico. Para mim, isto é um mistério. Estava tudo lá quando desmontaram a Sala, não é verdade?

— Não os tenho no bolso — respondeu Wollters, furioso. — Desmontámos tudo o que lá havia.

— O friso mural com mais de um metro de altura tinha de lá estar! A Sala de Âmbar estava completa — declarou Runnefeldt contornando o painel. Não faltava coisa alguma, posso jurá-lo! Teríamos dado por isso... tudo à volta, uma parte nua de um metro de altura! E se os ornamentos entre o friso e o fresco do tecto não estivessem lá, haveria buracos! Não, a Sala encontrava-se intacta, exceptuando os pequenos estragos...

— Perguntemos a Wachter. Se alguém está ao corrente do assunto, esse alguém é ele.

Wachter voltara nesse momento e ouvira as últimas frases.

— Eles comportaram-se como hunos — disse com voz forte.

— Quem? — quis saber Findling que andava de um lado para o outro.

— Os soldados...

— Aí está. Esses soldados soviéticos... — Wollters fechou os punhos. — Não respeitam coisa alguma.

— Tratou-se de soldados alemães, meu capitão — rectificou Wachter.

Wollters voltou-se vivamente para o conservador do museu como se tivesse sido picado por um moscardo.

— E uma vergonha! — gritou com o rosto congestionado. — O que pretende dizer é a desmoralização das tropas, que é sancionada com a pena de morte se eu o denunciar. Sim, vou denunciá-lo. O soldado alemão é um representante da cultura. Compreende?

— Dificilmente.

— Você... você é um traidor! — gritou Wollters à beira de uma apoplexia. — Você acusa os nossos valorosos combatentes de vandalismo! Eu., eu não tenho palavras...

— Um comunicado seria muito interessante.

Wachter não reparou nos sinais que Findling e Runnefeldt lhe dirigiam. «Por amor de Deus, Wachter», queriam dizer-lhe. «Não sabe o que pode provocar! Se Wollters se enfurece ninguém, mas mesmo ninguém lhe poderá valer, nem mesmo o Gauleiter.»

— Verdadeiramente? — gritou Wollters. — Não se priva desse prazer?

— Posso apresentar uma testemunha digna de fé, meu capitão. O general Von Kortte. Ele mesmo viu os soldados aquartelados na Sala de Âmbar. Deitaram-se nas cadeiras sujos de lama, partiram pedaços de mosaicos e de esculturas com as baionetas, para ficarem com eles ou os enviarem para as mulheres. Riscaram o pavimento de marchetaria, único no mundo, com as solas cheias de pregos. Eu queria impedi-los e que me fizeram eles? Atacaram-me e quase me mataram, como um bando de...

— Agora chega! — vociferou Wollters fora de si. — Descreve os nossos heróicos soldados como um bando de vândalos... Meus senhores, ouviram o que ele disse. São minhas testemunhas!

— Podemos testemunhar que, quando chegámos a Puchkine, o senhor Wachter usava ainda uma ligadura na cabeça e que soubemos pelo general Von Kortte que ele mandara evacuar a Sala depois disso. — Runnefeldt encolheu os ombros. — Infelizmente, tudo isso é verdade, caro colega. E o senhor bem o sabe. EsteveA sempre presente. Os nossos soldados cavaram na Sala de Âmbar como numa pedreira.

— Não se ponha a exagerar, Runnefeldt! — Wollters deu várias vezes a volta ao painel reconstituído no solo.

— Praticamente não dei por coisa alguma.

— Mas eu vi. — Wachter não se deixava intimidar. Estava no seu direito. Durante toda a vida tivera um comportamento irrepreensível. Era um homem leal. — Estava lá e quis opor-me. Quase me mataram por causa disso.

— De qualquer modo, os nossos soldados não tiraram todo o friso mural.

— Não.

— E é dele que se trata agora, não de alguns mosaicos partidos. O friso mural estava intacto, não estava?

— Sim.

— Então cale-se, Wachter, e não exagere pequenas infracções individuais para difamar os soldados alemães. Como se toda a Wehrmacht fosse composta por ladrões.

— Não... Trata-se sem dúvida de casos isolados, meu capitão. Apenas um pequeno grupo...

— Bem vê. Para quê fazer uma montanha desta história? Esqueçamos as suas jeremiadas...

Wollters não reparou que caíra numa armadilha. Findling e Runnefeldt sentiram-se directamente visados, pois compreenderam imediatamente o duplo sentido das palavras. Olharam Michael Wachter com embaraço e Runnefeldt suspirou de alívio quando compreendeu que o capitão não notara nada.

— Deixemos então este assunto, meus senhores — propôs Runnefeldt. — Devemos contentar-nos em nos ocuparmos Com aquilo que recebemos de Puchkine como a Sala de Âmbar. E, de resto, nem todos os caixotes foram ainda abertos.

— De qualquer maneira, é uma indecência! — gritou Wollters, indignado.

— Nada se perdeu durante o transporte. Somos todos testemunhas disso. O que falta deve ter ficado em Puchkine. Como é isso possível? Onde se encontram esses caixotes agora? Ou melhor, falando mais claramente: quem os roubou nestes últimos dias?

— Se desapareceram caixotes, nunca o saberemos, colega. — Runnefeldt sentou-se na beira de um caixote aberto junto da parede. — Podemos apenas fazer a lista do que falta. E, após a vitória final, completaremos e repararemos tudo o que falta com a ajuda de fotografias. Temos artistas eminentes especializados na escultura da pedra de âmbar. Isso não deve ser problema. O que me põe fora de mim é a maneira como nos enganaram!

— Não se trata de uma coisa feita por simples soldados — disse tranquilamente Wachter. — Eles não tinham de modo algum meio de fazer desaparecer tal coisa.

— O senhor parece esquecer outro pormenor da maior importância — objectou Findling. — Das três portas da Sala de Âmbar, preciosas, insubstituíveis, esculpidas e cobertas de folha de ouro, faltam duas. Chegou apenas uma. Porquê?

— Merda! — exclamou Wollters fechando os punhos. — Quando não se vigia tudo...

— Não podiam deixar desaparecer assim duas portas enormes — observou com malícia o conservador do museu. — Quando se abriram os caixotes, apercebi-me imediatamente disso! Devemos telefonar imediatamente para Puchkine.

— Isso não se conseguirá sem uma linha privada. Puchkine faz parte da frente. Desde que o Fúhrer deu ordem para cercar Leninegrado, é a linha de defesa mais avançada. Só temos, portanto, ligações militares. Mesmo que conseguíssemos estabelecer a ligação, entraríamos em contacto com o comandante dos Serviços de Administração Militar do Décimo Oitavo Exército. Deve ser agora a única pessoa capaz de enviar as duas portas para Kõnigsberg — e talvez o friso mural — se as encontrarem.

— Então, tentem fazê-lo, meus senhores! — interveio Findling com um gesto. — Ou devemos limitar-nos a tomar nota de tudo o que faltar?

— É preciso que o Gauleiter nos ajude! — disse Runnefeldt com voz alterada.

— Sim, o Gauleiter — repetiu Wachter aprovando com um gesto com a cabeça. — É a altura dele mostrar o seu poder.

— Não há aqui ninguém que meta este tipo na ordem! — berrou Wollters, furioso. — Atreve-se até a criticar o Gauleiterl Tudo isto é por sua culpa. Tinha por missão vigiar a Sala de Âmbar, desde há duzentos e vinte e cinco anos, como diz constantemente. VOCÊ devia ter dado pelo que faltava. Se não o faz, para que serve?

Como sempre, as pessoas importantes sentem-se impelidas a acusar os subalternos. Atribuem as culpas aos fracos e não dão qualquer importância ao que dizem esses acusados. As vítimas inocentes hão-de existir sempre. Mas Michael Wachter não era dessa raça. Rebateu as palavras do capitão com uma única frase:

— Como o poderia ter feito? — disse sem se enervar e encolhendo os ombros com ar desolado. — Durante a desmontagem da Sala de Âmbar, o senhor pôs-me fora exactamente dez vezes, meu capitão. Por isso, não pude desempenhar a minha missão.

— Pronto! Pronto! — disse apenas Findling.

Nada mais, mas isso foi o bastante para fazer explodir de novo Wollters. Esticou-se, pôs-se em bicos dos pés e lançou a Findling um olhar assassino.

— A sua observação foi totalmente supérflua! — gritou. — Tomo a responsabilidade por tudo o que se passou em Puchkine. Isso basta-lhe?

— Em princípio, sim. — Findling abanou a cabeça, o que contradizia o sim e, a falar verdade, o anulava. — Mas não será isso que irá devolver-me as portas e o friso mural.

Entretanto, dera-se um acontecimento cheio de consequências. Jana, ao descer as escadas, encontrara-se com o Gauleiter Koch que as subia. Ela não o conhecia, mas a descrição que lhe tinham feito dele condizia: um homem de estatura mediana, corpulento, com um olhar frio que tudo examinava e sopesava, com um pequeno bigode por cima do lábio superior e um nariz com narinas largas. Vestia um uniforme de galões dourados e umas calças de montar largas que pareciam formar asas dos dois lados das pernas, o que tornava ainda mais pesada a sua silhueta. «É com certeza ele», pensou Jana Petrovna com a velocidade de um raio. Mais ninguém poderia corresponder de tal maneira a esta descrição.

Como todos os que são um pouco baixos de mais, Koch tinha sempre, e em todas as circunstâncias, tendência para compensar essa inferioridade pelo exercício de um poder absoluto, a arrogância, um tom rude de comando e a mania insuportável de ter sempre razão.

O Gauleiter Koch nunca perdia nem capitulava. Os seus expedientes horríveis e impiedosos justificavam o seu ego desmedido e lisonjeavam a sua necessidade paranóica de ser sempre o maior, o inatacável, aquele que dizia sempre a última palavra. Perto dele, as pessoas sentiam um medo que as sufocava — o que para Koch era uma delícia.

Jana e Koch pararam subitamente nas escadas e os seus olhares cruzaram-se. Para cúmulo da pouca sorte, o Gauleiter encontrava-se dois degraus abaixo de Jana, o que o punha ainda mais em desvantagem, pois é sempre melhor olhar de cima para baixo do que de baixo para cima. Compensou essa situação da maneira habitual.

— Quem é? — perguntou Koch com um entusiasmo visível.

Sem se incomodar, examinou Jana Petrovna como se ela estivesse nua diante dele, explorando o corpo dela desde as pernas finas até aos caracóis negros, para deslizar de novo para os seios dela que se notavam sob o seu traje de enfermeira. O seu olhar ficou suspenso neles.

— Está no castelo uma pequena enfermeira maravilhosa! Há alguém doente? Quem precisa da sua ajuda? Qualquer que seja o problema dessa pessoa, ela deve ficar agora com uma nova doença: tensão arterial e pulsações.

— Foi um falso alarme, Gauleiter. Não há ninguém doente aqui.

— Conhece-me? — perguntou Koch com satisfação, certificando-se de que toda a gente o conhecia na Prússia Oriental.

Os outros Gauleiter não podiam dizer o mesmo, nem Mutschmann do Saxe, nem Grohé de Cologne-Aix, nem Wagner da Vestefália do Sul. Eram conhecidos, mas sem nunca atingirem a popularidade duvidosa de Koch.

— Quem não o conhece, Herr Gauleiter — respondeu Jana Petrovna.

A jovem permaneceu no mesmo sítio, olhando para Koch sem se aproximar. Mas ele também não subiu. A perspectiva que se lhe oferecia era das mais agradáveis.

— Apesar de, como você disse, se tratar de um falso alarme, a sua vinda aqui teve alguma coisa de bom. Encontrei-a. E isso talvez nunca tivesse sucedido... e seria pena. Como se chama, pequena enfermeira?

— Jana Rogovski, Herr Gauleiter.

— O nome parece-me prussiano.

— Nasci em Lyck.

— Fica perto dos lagos Mazures?

— Sim, Herr Gauleiter.

— Jana, ser uma rapariga dos Mazures foi sempre uma obrigação e uma promessa...

— Como devo entender isso?

— Uma rapariga dos Mazures tem o sangue quente e é insaciável no amor. É o céu e o inferno numa só pessoa. Tens o sangue quente, Jana?

Koch começou logo a tratar Jana por tu, após as primeiras frases convencionais, e principiou a observar-lhe o corpo com insolência. Ao mesmo tempo, sorria... parecia ser um encorajamento, mas Jana tornava-se cada vez mais prudente. Que deveria responder? Como reagiriam as outras mulheres? Se sorrisse apenas, poderia parecer um convite. Se abanasse a cabeça, ele poderia fazer-lhe outras perguntas do mesmo género. com outro homem qualquer seria fácil não responder e ir-se embora... mas poderia fazê-lo com o Gauleiterl com um tirano como Erich Koch? Decidiu esquivar-se.

— Não sei, Herr Gauleiter — respondeu Jana fazendo-se ingénua.

Koch achou a resposta normal. O olhar dele tornou-se insistente. Jana sentia-o no seu corpo como se fossem mãos a tocarem-lhe na pele.

— Nunca ninguém to disse?

— Não.

— Temos de verificar esse ditado popular. O temperamento só se vê quando é estimulado. Não traias os Mazures, Jana. Quando é o teu dia de folga?

— A vigilante Wilhelmi é que o determina.

— Engano! Agora sou EU que decido.

Koch acabou por subir os dois degraus e, perto de Jana, continuava a ser mais baixo do que ela alguns centímetros. Estava habituado a isso — a maior parte das mulheres com quem dormia eram mais altas do que ele —, mas não tinha importância. Na cama, ele era o maior.

Tentou enlaçar Jana pela cintura, mas ela recuou numa rejeição silenciosa a que Koch não estava habituado. As mulheres que ele «conquistara» consideravam isso como uma honra, tal como os homens que inclinavam as costas quando lhes atribuíam uma condecoração.

— Que se passa? — admirou-se Koch, ligeiramente perturbado e com uma ponta de maldade na voz.

Os olhos de Jana cintilavam e ele não compreendia porquê.

— Nunca ninguém me tocou, Herr Gauleiter — disse ela num tom quase queixoso.

— Isso é inacreditável! Tens vivido no meio de cegos?

— Toda a gente me vigiava. Em casa, o meu pai e o meu irmão mais velho, na escola de enfermagem a directora, no hospital a vigilante.

— Isso ainda existe?

Koch aproximou-se, estendeu o braço, afastou os dedos e comprimiu-os contra o peito de Jana. Surpreendida, ela fechou os punhos, com uma vontade louca de dar um soco no nariz de Koch. Mas — tinha perfeita consciência disso — tal coisa significaria a sua perda. Seria banida de Konigsberg. E, sobretudo, descobririam a sua verdadeira identidade. E seria mandada para um campo de concentração, ou mesmo condenada à morte. Koch tinha poder para isso. Nenhum juiz «independente» correria o risco de não seguir um conselho de Koch. Os juizes eram também amovíveis...

— Terás a quarta-feira livre — declarou Koch apertando os seios da Jana. A concupiscência do olhar dele tornou-se insuportável. — E depois faremos uma festa de amor à moda da região dos lagos Mazures.

— Eu... eu não sei.

— Mas sei eu... é o suficiente. Quarta-feira à noite, Jana... Mandar-te-ei buscar. Iremos para um magnífico pavilhão de caça. Vai agradar-te.

— Se a vigilante me der licença.

— Não há quaisquer dúvidas a esse respeito. Como se chama esse dragão?

— Frieda Wilhelmi. Hospital municipal.

— Então até quarta-feira, Jana.

— Sim, Herr Gauleiter.

Koch deu-lhe uma palmadinha na face e, enquanto ela descia as escadas, continuou a olhá-la durante muito tempo, entusiasmado com o balouçar das ancas. «Que mulher!», disse para consigo. «Mas que bela mulher!»

De muito bom humor, entrou na sala 37, mesmo na altura em que Wollters gritava, furioso:

— É preciso entrar imediatamente em comunicação com Puchkine. Se o Grupo de Intervenção Rosenberg passou por lá entretanto, pode ter levado os objectos que faltam.

— O que há com Rosenberg?

Ao som da voz cortante de Koch, os peritos voltaram-se bruscamente como ladrões apanhados em flagrante. O bom humor de Koch desapareceu instantaneamente. O nome de Rosenberg bastava para lhe estragar o dia.

— Gauleiter... faltam alguns objectos da Sala de Âmbar. — Findling apontou para o painel reconstituído.

— O friso superior, os ornamentos ligados aos frescos do tecto e duas portas. Certamente, esqueceram-se de os carregar.

— Que porcaria! — gritou Koch batendo com o pé no chão. Vira Hitler fazê-lo e reparara que fazia grande efeito. — Esqueceram-se! Como se pode esquecer tal coisa? Quem é o responsável?

Wollters engoliu a saliva e olhou para Wachter que, no entanto, nada disse a respeito das dez vezes que fora mandado sair da Sala. O capitão de cavalaria enfrentou então, corajosamente, o olhar furioso de Koch.

— Eu assumo a responsabilidade, Gauleiter. O doutor Runnefeldt dirigiu a desmontagem da sala, eu a embalagem e o carregamento. No que diz respeito aos frisos, é para mim um enigma... Quanto às duas portas, foram certamente esquecidas.

— E acham que Rosenberg estará neste momento no Palácio de Catarina?

— Sim. O chefe das operações é o comandante Heinrich Múller-Giessen. Por duas vezes, nós fomos mais rápidos do que ele... mas aquilo que deixámos para trás já deve ter sido levado por eles. Desaparecido. Só tenho esperança quanto às portas. Gauleiter, peço-lhe para estabelecer rapidamente contacto com o castelo de Puchkine. Poderemos, pelo menos, salvar as portas.

— E se não estiverem lá, saberei quem as tem. Assim como os frisos do tecto.

— Mas não o poderá provar — disse prudentemente Wollters. — Há ainda muita coisa no castelo que pode interessar Rosenberg. O salão chinês, as peças da Grande Catarina, numerosos quadros... e se o Grupo Rosenberg começar a fazer a embalagem desses objectos, ninguém se preocupará em saber se os caixotes que esquecemos estão misturados com os deles. Mas a desmontagem das portas não passará despercebida. O Décimo Oitavo Exército deve estar ao corrente, bem como o general Jobs von Haldenberge, comandante do Quinquagésimo Corpo de Exército. Ele habita no castelo com o seu estado-maior. Tentemos.

Koch observou o painel estendido no solo.

— Que obra maravilhosa! — murmurou ele.

Os outros ficaram estupefactos: Koch capaz de sentimentos de emoção perante uma obra de arte. Seria possível?

Runnefeldt estabeleceu um paralelo: Hitler mandava matar centenas de milhares de judeus ao mesmo tempo que idolatrava o seu cão Blondle, um pastor alemão, e choraria se lhe sucedesse qualquer coisa. O ser humano será sempre insondável.

— Tanta beleza é de cortar a respiração — acrescentou Koch em voz baixa. — Mestres escultores de âmbar... há mais de duzentos e trinta anos... e tal tesouro devia permanecer na Rússia? O Fiihrer ficar-me-á eternamente reconhecido por ter salvo esta obra-prima alemã, mandando-a vir para Konigsberg.

Runnefeldt e Wachter tiveram o bom senso de evitar lembrar a Koch que fora o arquitecto da czarina Isabel, o conde Bartolomeu Francesco Rastrelli, que depois da morte de Pedro, o Grande, terminara a Sala de Âmbar, juntando-lhe novas esculturas inspiradas nos seus próprios desenhos, entre os quais o friso mural... Uma sinfonia de beleza, um esplendor deslumbrante que tornava a Sala de Âmbar verdadeiramente inimitável. Fora, portanto, o italiano Rastrelli que criara aquela obra-prima e não os artistas da Prússia Oriental. Mas quem ousaria contradizer o Gauleiter Koch?

— Se Bormann não mandar transportar a Sala para o museu de Linz, depois da guerra — disse Runnefeldt, arrancando assim Koch aos seus pensamentos. — Só Bormann determinará o que é reservado ao Fiihrer. Bem o sabe, Gauleiter.

— Bater-me-ei por esta sala! Ela ficará aqui, no castelo de Kónigsberg! — exclamou Koch com determinação.

— Mesmo contra a opinião de Bormann?

— com certeza! Bormann não é invulnerável. Siegfried também só tinha um ponto entre os ombros onde Hagen podia atingi-lo. — Koch estendeu a mão para o painel que se encontrava na sua frente. — Por causa deste tesouro posso transformar-me em Hagen.

Todos aquiesceram em silêncio, mas sem acreditarem muito nisso. Sabiam que Koch receava Bormann e que, depois da guerra, se travaria uma luta sem quartel, que nada ficaria a dever às intrigas mortíferas do Renascimento, as quais suscitaram tanto rancor entre os príncipes, os papas e os cardeais.

— vou tentar contactar com Puchkine ou com o Décimo Oitavo Exército. Conheço bem o general Von Kúchler.

— Isso seria formidável, Gauleiter — interveio o capitão de cavalaria Wollters, com uma expressão radiante. — De qualquer maneira, tenho de voltar a Riga para a semana. Poderei dirigir-me a Puchkine para vigiar a desmontagem das portas.

— É uma boa ideia — reconheceu Koch, um pouco apaziguado, olhando Wollters. — Tem muitas coisas a trazer, não é verdade?

— Sim, Gauleiter.

— Então, a caminho! Telefone a Von Kúchler ou a Von Haldenberge, para o Palácio de Catarina.

Fez uma breve saudação hitleriana, girou energicamente sobre os calcanhares e saiu da sala 37. Todos ergueram o braço direito excepto Wachter, e conservaram-no estendido até à saída de Koch.

A vigilante Frieda esperava a chegada de Jana como uma mãe preocupada com uma filha que tivesse saído pela primeira vez. Soltou um grande suspiro de alívio ao vê-la chegar.

— Como correu? — perguntou ela. — Estiveste no museu do palácio? Que viste?

— Muitas coisas, senhora vigilante — respondeu Jana, sentando-se. Tirou a touca e sacudiu os caracóis escuros. — Mas não foi boa ideia eu ter lá ido.

— Como é isso? — perguntou a montanha de carne inclinando-se ligeiramente para Jana. — Que viste tu no museu que não te agradasse?

— Encontrei o Gauleiter Koch. Ele quer levar-me na quarta-feira para um pavilhão de caça.

— Esse porco! — exclamou Frieda soprando ruidosamente pelo nariz. — Ficarás aqui!

— O Gauleiter quer falar consigo...

— Que o faça! — resmungou Frieda endireitando-se. — Toda a gente tem medo dele. Mas eu não!

— Ele é mais poderoso do que a senhora vigilante.

— Um imbecil, é o que ele é! Um macaco primitivo! — Observou Jana Petrovna, erguendo as sobrancelhas. — Ou queres dormir com ele? Tornares-te uma das suas inúmeras putas? Ao fim de duas semanas, estará farto de ti e serás transferida para qualquer outro sítio como modo de te afastar.

— E se me recusar, arrisco-me a que suceda o mesmo. Tenho medo, senhora vigilante.

Estava sentada na beira da cama e torcia as mãos, com um ar completamente perdido. Restava apenas uma solução: fugir. Mergulhar de novo no anonimato. Era o único meio de permanecer na proximidade do paizinho Michael e da Sala de Âmbar...

— Esperemos para ver o que se passa, minha pequena — replicou Frieda sem se deixar impressionar.

Ninguém conseguia dominá-la quando das suas cóleras temíveis, e todos os médicos, sem excepção, preferiam bater em retirada.

— Ela é insubstituível — declarara um dia o doutor Pankratz no decorrer de uma reunião de trabalho. — Sem Frieda, isto seria o caos... mas ela é um verdadeiro dragão!

— Quarta-feira! — repetiu com ar pensativo. — Então não estaremos cá. Iremos ao cinema ver o filme com Zarah Leander. E agora, minha filha, prepara um bom café... Consegui arranjar mais uma libra dele.

Na quarta-feira à noite, no entanto, não foi o próprio Koch que foi buscar Jana Petrovna, mas sim o seu braço-direito, Bruno Wellenschlag, que ele encarregava de tudo. Este parou o Adler banalizado diante do hospital e dirigiu-se ao porteiro. Como Wellenschlag estava vestido à civil, passava despercebido.

— Venho buscar a enfermeira Jana Petrovna — disse Bruno.

— Jana? Não conheço. De que serviço? — perguntou o guarda folheando a sua lista telefónica. — Há tantas enfermeiras aqui...

— Ela trabalha com a vigilante.

— com Frieda? Não pode ser nada mais simples?

O porteiro examinou o visitante. Wellenschlag não tinha um ar desagradável. com cerca de quarenta anos, um pouco vermelho do álcool, tinha uns olhos pequenos e astutos e uns lábios cheios. E essa enfermeira Jana devia ter uns vinte anos menos do que ele. Em tempo de guerra, não havia muito por onde escolher. Todos os homens se encontravam algures, na Frente, entre o oceano Árctico e a África.

— vou tentar telefonar-lhe — disse, por fim, o porteiro. — Mas se for Frieda a atender passo-lhe o telefone. E aconselho-o a respirar fundo antes de falar com ela.

Marcou o número de Frieda, esperou e depois encolheu os ombros e desligou.

— Nada, senhor.

— É impossível. A enfermeira Jana sabia que a vinham buscar.

— Mas não está ninguém no gabinete de Frieda.

— Talvez ela se encontre noutro serviço qualquer.

— A esta hora já não. Só aqui estão os que se encontram de serviço nocturno — respondeu o porteiro com um grande sorriso. — Às vezes, sucede que uma rapariga se esquiva. ..

— Neste caso, isso é impossível — retorquiu Wellenschlag ligeiramente desdenhoso. — Experimente telefonar para os diversos serviços...

— Bem, se está tão certo...

— Estou.

Wellenschlag teve um sorriso trocista. «Se soubesses, meu velho, que estou aqui por ordem do Gauleiter, mexias-te mais depressa. Vá, encontra-me essa Jana!»

O guarda fez o possível. Ligou para todos os serviços incluindo a casa da guarda. O que o obrigavam a fazer! Finalmente, largou o telefone com ar resignado.

— Nada a fazer. Nem Frieda, nem Jana se encontram aqui. Lamento. A noite vai-lhe parecer comprida, não?

— Estou admirado.

Bruno pensava em Koch e preparava-se para enfrentar o furor do Gauleiter. Era a primeira vez que via uma mulher recusar-se-lhe. Koch não estava habituado a que lhe dissessem não. «Minha cara Jana... quem quer que sejas, arriscas-te a ter aborrecimentos. Erich não esquecerá tal afronta. Espera-te uma vida difícil.»

— Então, não há mais nada a fazer! — disse Wellenschlag encolhendo os ombros. Ah, as mulheres! Até outra altura!

— Até outra altura? Que quer isso dizer?

— Que voltarei. Amanhã, depois de amanhã, quem sabe? Boa noite.

— Boa noite.

O porteiro ficou a ver Wellenschlag afastar-se. «O melhor era desistires, meu velho», pensou. «Se Frieda tomou essa Jana sob a sua protecção, o melhor é desistires. Estás derrotado desde já.»

Singularmente — isso era novo —, Wellenschlag não viu Coch furioso como um touro picado pelas bandarilhas. Coch ouviu calmamente o relato de Wellenschlag e depois disse:

— Está bem, Bruno. Podes ir para casa.

Depois despiu o casaco e acrescentou com uma voz tranquila, que permitiu a Bruno perceber como ele era perigoso:

— Quero saber tudo sobre essa Jana. Descobre-me o seu dossier pessoal.

Wellenschlag disse que sim com a cabeça e saiu da luxuosa vila do Gauleiter. Se isso se pudesse contabilizar, poderia desde já riscar o nome de Jana da lista.

A calma de Koch nos dias seguintes ainda mais surpreendeu Bruno que se perdeu em conjecturas complicadas. Koch teria relutância em se dirigir directamente à enfermeira Frieda e em mostrar oficialmente o seu interesse por Jana Petrovna?

Desde que fizessem o que ele queria, Koch costumava mostrar-se insensível ao que pensavam dele. Ou estaria a pensar noutra maneira de voltar a ver a bonita enfermeira?

A verdade é que se passou a quinta-feira, a sexta e o sábado sem que Koch interviesse. Também não tinha sido possível estabelecer ligação telefónica com Puchkine. De uma das vezes, tinham conseguido, com grande dificuldade e mudando de comprimento de ondas, comunicar com o Estado-Maior do 50.º Corpo de Exército, mas logo às primeiras palavras a comunicação fora interrompida. Parecia feitiçaria. Wollters falou mesmo em sabotagem — sabiam bem quem queria telefonar e os homens de Rosenberg fariam certamente tudo para se oporem —, até que informaram Koch que as operações de rádio não conseguiam fazer-se devido à chuva que caía sobre a frente de Leninegrado. Tudo se atolava na lama, as ligações de uma companhia para outra estavam interrompidas, as equipas de detecção ficavam impedidas de avançar e tinham de se deslocar a pé, pois as viaturas não podiam praticamente passar. Por outras palavras: nada corria bem!

— Então, escrevamos uma carta — propôs Findling. — Talvez o correio funcione melhor que o telefone.

Na lista do Estado-Maior do 18.º Exército, Koch descobriu o nome do responsável: o comandante Pietschmann, chefe do reabastecimento do 18.º Exército. Findling dirigiu-se a ele em nome do Gauleiter, para o informar de que desejavam mandar desmontar as duas portas ainda existentes na antiga Sala de Âmbar do Palácio de Catarina. A operação precisava de ser feita com precaução. Era trabalho para carpinteiros que, em seguida, as deviam preparar para serem transportadas e enviadas para as colecções de arte da cidade de Konigsberg. Para dar ao seu pedido o impacte necessário, acrescentou:

«Essas portas fazem parte de uma obra de arte que foi salva da destruição pelos nossos cuidados e por ordem do Fiíhrer, a quem temos de prestar contas da operação. O capitão de cavalaria doutor Wollters, que dirigia a expedição, chegará nos próximos dias a Puchkine para velar pelo bom andamento do envio das portas.»

— Por ordem do Fúhrer... ninguém poderá ignorar isso.

— E, de resto, é a verdade.

— Partirei amanhã.

— Tão depressa, doutor Wollters? — Runnefeldt mostrou um dos caixotes ao acaso. — Ainda não abrimos tudo. Não quer esperar que...

— Cada minuto conta, meu caro Runnefeldt. Sobretudo por causa das portas. É preciso ir depressa! Chegarei a Riga sem grande dificuldade e a partir daí, tentarei arranjar lugar num camião-correio do Décimo Oitavo Exército. Puchkine não fica noutro planeta. Deve poder-se lá chegar!

No dia seguinte, Wollters partiu num comboio militar para o Leste. As suas despedidas foram breves... Um aperto de mão a Findling e a Runnefeldt, um olhar de desprezo a Wachter.

Quando a porta se fechou sobre ele, toda a gente suspirou de alívio, sem exprimir verbalmente o que sentia.

Resumindo: a carta chegou às mãos do comandante Pietschmann a 17 de Janeiro de 1942, no dia 20, as portas foram desmontadas e a 25 chegaram a Konigsberg num comboio sanitário proveniente da frente de Leninegrado. Toda a companhia pôs mãos à obra com eficácia. Quem dirigia o 18.º Exército devia ser uma pessoa excepcional.

Um bilhete de Wollters acompanhava as portas. Algumas linhas breves, sem qualquer interesse, apenas para dizer que estava bem.

Foram as últimas notícias a respeito de Wollters, capitão de cavalaria. O quarto da Grande Catarina não mais foi visto, assim como uma série de ícones da Escola de Novgorod, pinturas, objectos de ouro e de prata, tapetes e Gobelins. Os caixotes contendo os frisos em pedra de âmbar, a obra-prima de Rastrelli, também não foram encontrados.

Quando Wollters partiu pela segunda vez do Palácio de Catarina, foi seguido por três camiões que o acompanharam até Riga. Ninguém controlou o que havia debaixo dos oleados e, de resto, quem se teria interessado? Havia outras preocupações na zona de combate: começara um Inverno mortal, a tropa não tinha capotes nem gorros que cobrissem as orelhas, as luvas mal chegavam, não havia praticamente botas forradas. Tudo se petrificava sob o gelo e a neve. Nas florestas, os resistentes atacavam as tropas alemãs, faziam saltar as vias férreas e os comboios, destruíam as pontes, os stocks de víveres e de munições. Quem se preocupava com um capitão de cavalaria com três camiões onde se lia: «Sonderkommando Hamburgo — Ministério dos Negócios Estrangeiros»? Ninguém se iria lembrar de pedir os papéis que confirmassem essa missão.

E para resumir ainda mais: ninguém sabe se o doutor Wollters sobreviveu à guerra ou se ainda vive, como um velho anónimo numa casa cheia de ícones, de tapetes e de quadros, no meio do quarto de dormir de Catarina com os seus pénis e os seus testículos de madeira esculpida e coberta por uma capa de ouro fino.

A verdade é que o friso mural da Sala de Âmbar, a obra-prima de Rastrelli, desapareceu no maior mistério.

Durante três dias o Gauleiter Koch telefonou para o hospital e pediu para falar com a enfermeira Jana, sem dizer quem era. E de todas as vezes, quem atendeu o telefone foi a enfermeira Frieda, que resmungou:

— Que lhe quer? Quem fala?

E Koch desligava sem dizer uma palavra. «Uma coriácea», dizia para consigo, furioso. «Mas hei-de apanhá-la. Sempre obtive o que queria.»

— Outra vez aquele porco! — exclamou Frieda visivelmente irritada. — Se ele voltar a telefonar, dir-lhe-ei: só se passar por cima de mim... Gauleiterl Ele tem de desistir!

— E se ele o fizer? — disse Jana, rindo. Poder-se-ia imaginar algo de mais incongruente?

— O quê? — perguntou Frieda, sem compreender.

— «Só se passar por cima de mim...»

— Tu atreves-te a dizer-me uma coisa dessas? — indignou-se Frieda erguendo o seu pesado corpo da cadeira. — Tu és um lobo disfarçado de cordeiro! Escondes bem o teu jogo! Um camaleão, é o que tu és... Mudas de cor como de camisa, para te tornares invisível!

— Talvez — respondeu Jana subitamente grave. — Gostava bem que a minha touca me tornasse invisível.

«É exactamente isso», pensou. «A minha touca torna-me invisível entre vocês... ninguém saberá nunca que sou Jana Petrovna Rogovskaia. Disseste uma verdade, Frieda... Mudarei de cor sempre que for preciso para não me afastar do paizinho Michael e da Sala de Âmbar.»

Na segunda-feira, Koch teve uma ideia nova. Ligou para o hospital, mandou chamar o médico-chefe, apresentou-se com o nome de Bruno Wellenschlag, director do museu do castelo, contou uma história a respeito de um operário que ferira uma mão, e reclamou uma enfermeira.

— O ideal seria enviar a enfermeira Jana — explicou Koch. — Ela já aqui esteve.

— Seria preferível o ferido vir aqui.

— Por causa de um pequeno ferimento na mão? Koch conteve-se com grande dificuldade para não gritar.

«Pankratz», pensou ele. «Médico-chefe Pankratz, farei com que os teus serviços sejam necessários na frente. Já aqueceste demasiado tempo as nádegas no hospital!»

— Não é assim tão simples. Se se tratar de um prego enferrujado, há o risco de uma infecção. Tétano ou gangrena. Já vi muitos casos desses no hospital de campanha...

— Obrigado — interrompeu Koch, desligando. Levantou-se, apoiando as duas mãos sobre a secretária

para se ir sentar no seu cadeirão. «Esse Pankratz deve ter vindo da frente e ter sido gravemente ferido», pensou. «Mas talvez haja maneira de o transferir para um pequeno hospital. Para Rominten ou então para Lyck. À beira do Weichsel, também não será mau. Poderá entreter-se com as raposas e, no Inverno, uivar com os lobos. Quanto a Frieda Wilhelmi, trataremos de a meter num asilo de alienados onde poderá mandar à sua vontade.

«Jana, minha loba dos Mazures, não me escaparás.» Espreguiçou-se, estendeu a mão para o telefone e ligou para Bruno Wellenschlag. Como sempre, mesmo à distância, este pôs-se em sentido ao ouvir a voz dele.

— Bruno...

— Gauleiter?

— Disseste-me um dia que tinhas encontrado numa loja, na secção dos tecidos, uma bonita vendedora.

— Sim, Gauleiter. Emmi Sonnemann...

— Mais uma brincadeira desse género... e vais parar à Frente!

— Não tenho culpa de que a pequena tenha exactamente o mesmo nome que a mulher de Goering. É o verdadeiro nome dela.

— O prazer será duplo! — exclamou então Koch rindo às gargalhadas e dando palmadas nas coxas. — Traz-me então Emmi Sonnemann esta noite.

Desligou, continuando a rir. Devia contar isto a Goering. Tive uma Emmi Sonnemann na minha cama. Mas o gordo podia não gostar.

Nessa noite, Jana vestiu o seu grosso casaco de lã e pôs um xaile. O vento de leste mergulhara bruscamente Kõnigsberg no frio. Ainda não nevava, mas à noite gelava e uma camada escorregadia cobria os pavimentos das ruas, as paredes e os telhados das casas. As pessoas caminhavam lentamente ou escorregavam e os carros derrapavam. O frio chegara subitamente e poucas pessoas estavam preparadas para ele.

— Onde queres tu ir? — perguntou Frieda vendo Jana com o casaco, xaile e luvas.

— Ao teatro, senhora vigilante. Ver uma opereta, Der Vogelhãndler.

— «Eu sou a Christel do correio»... — murmurou subitamente Frieda.

— Que é isso, senhora vigilante? — perguntou Jana, sobressaltada e embaraçada.

— É uma canção tirada dessa opereta, minha pequena. Meu Deus, Der Vogelhándlerl Vi-a seis vezes. A última vez foi no Teatro Metrópole, de Berlim.

Numa das cenas, os cenários tinham-se desmoronado, mas o rosto de Frieda mostrava-se radiante.

— Vais sozinha ao teatro? — perguntou com ar desconfiado.

— com certeza. Tenho mesmo a intenção de comprar uma assinatura. Quer que compre também para si, senhora vigilante?

— Não, obrigada, minha filha. São dias fixos e eu não quero nada que me prenda.

Era esse o segredo de Frieda, o credo que determinava toda a sua vida: nada de compromissos. Frieda tinha uma necessidade imperiosa de permanecer livre em todos os domínios.

— Quando voltas? — informou-se.

— Ignoro quanto tempo dura a opereta.

— Vejamos... deve durar umas duas horas. — Frieda olhou ostensivamente o seu relógio. — São agora sete horas. O espectáculo começa às oito. Deve acabar às dez. Estarás de volta cerca das onze horas. Se vieres mais tarde, estamos mal.

— Entendido, senhora vigilante.

— Quero apenas o teu bem, minha pequena.

— Eu sei. Boa noite, senhora vigilante.

— Para ti também... «Eu gostava de beijar as mulheres...» Não, isto é de Paganini.

Seguida pela voz de Frieda, Jana saiu da sala e deixou o hospital pela porta lateral de serviço. O enfermeiro Karl Brudecker viu-a e fez-lhe sinal.

— Há muito tempo que não a via. Onde vai? Agarre-se bem ao seu acompanhante. O solo está escorregadio.

— vou sozinha ao teatro. vou ver Der Vogelhãndler.

— Não é a peça em que alguém diz: « Võgel bin ich aufgewachsen. »

— Bludecker, você é um porco! — protestou Jana abanando a cabeça. — Devia ter vergonha.

— Se isso fosse possível — respondeu Bludecker com um largo sorriso. — Divirta-se, enfermeira. Há algum tempo, veio aqui uma pessoa perguntar por si. Um cabo de Berlim.

— Julius Paschke.

— Sim. Foi esse. Um tipo simpático.

— Que lhe disse?

— Que como você trabalhava com Frieda era preciso primeiro assaltar o bunker. «Podes ir falar com Frieda»,

 

1 «Cresci com os pássaros». Jogo de palavras: vogel, «pássaros», e vôgeln, «cópula». (N. da T.)

 

disse-lhe eu, «mas não te esqueças de levar o lança-chamas.» Então ele foi-se embora.

— Estarei de volta às onze horas.

— Muito bem. Eu estou de serviço nocturno. Pode vir à hora que quiser, pequena. Divirta-se.

No guichet do teatro, Jana Petrovna comprou uma assinatura para quatro óperas, duas operetas e três peças, mas não comprou bilhete para assistir nessa noite a Der Vogelhãndler. Voltou ao castelo e bateu à porta de uma entrada anexa. Três toques breves e um prolongado... para o paizinho saber quem se encontrava ali.

Após uma curta espera, a chave rodou na fechadura. No entanto, não foi Wachter, mas sim outro homem de idade quem a abriu. Era um desconhecido. Parecia estar a jantar, pois vinha ainda a comer qualquer coisa.

— Que se passa? — perguntou ele com ar aborrecido. — Está alguém doente? Que vem cá fazer?

— O senhor não é nada delicado — disse Jana Petrovna.

— Porque hei-de ser? — O homem que mastigava olhou-a com um ar doloroso. — Se você tivesse, como eu, de ser guia do museu durante dez horas! A touca caía-lhe, enfermeira. E os visitantes? O que tenho de lhes aturar. Há um quadro na sala nove, Leda e o Cisne, de Martini. Magnífico. Outro dia mostrei-o a um grupo de soldados, e que disse um desses tipos depois de ter observado Leda? «Isto não é nada para mim. Tem as maminhas demasiado pequenas.» São estas coisas que é preciso ouvir e suportar... E tenho de ser delicado com tudo isto?

— Queria ver o senhor Wachter.

— Ele está doente?

— Não. Queria apenas cumprimentá-lo.

O homem mal-disposto afastou-se para ela passar e indicou-lhe uma escada de pedra.

— Lá em cima, no primeiro andar, primeiro corredor à esquerda. Tem um apartamento enorme só para ele. Pode andar de patins de uma sala para outra. É novo aqui, esse Wachter. Contrataram-no para vigiar uma sala que estão a montar. Deve ser enorme, essa sala, para ter um Wachter só para ela.

— Obrigada — disse Jana passando em frente dele e dirigindo-se para a escada. Depois voltou-se: — O senhor não devia enervar-se tanto. A guerra já nos dá bastantes preocupações.

— A quem o diz, enfermeira! — O homem passou a mão pelo rosto sulcado de rugas. — Tenho três filhos na frente. Um já foi feito prisioneiro pelos ingleses. Foi em África, em Marsa Matrouh. Ele, pelo menos, sobreviverá a esta mortandade.

— Espero que fiquem os três vivos.

Ao ouvir bater à porta, Wachter ergueu a cabeça admirado. Acabava justamente de ler no jornal os relatos do terrível Inverno russo que paralisava as tropas alemãs, sobretudo diante de Moscovo. Os soldados estavam enterrados na neve, tremendo de frio, enquanto as divisões russas, perfeitamente equipadas para esse tempo, atacavam incessantemente as posições inimigas. A derrota de Napoleão em Moscovo estaria a ser repetida por Hitler?

Wachter pousou o jornal e dirigiu-se para a porta, que abriu.

— Minha filhinha! — exclamou, cheio de alegria, puxando Jana para dentro e abraçando-a. — Como tenho pensado em ti nestes últimos dias! Vem, tira o casaco. vou preparar um chá ou um grogue. O tempo arrefeceu e vai piorar.

Pendurou o casaco numa patera na entrada e fez entrar Jana no apartamento que era realmente enorme. Vastas salas de tectos altos ornados com decorações em estuque e aquecidas por fogões de faiança. O mobiliário tinha mais de um século e era proveniente do museu. Apesar do tamanho das salas, fazia um calor agradável e o ambiente era requintado, mesmo sumptuoso.

Jana e Wachter sentaram-se um em frente do outro nos cadeirões confortáveis, com um bom grogue de rum junto deles. Jana contou as suas aventuras dos últimos dias.

— Tenho de conhecer essa Frieda Wilhelmi — disse ele. — Para a abraçar! Não podias estar em melhor sítio.

— Penso muitas vezes em Nikolai, paizinho. — Jana engoliu um pequeno gole do líquido escaldante. — Que se passará em Leninegrado? Eles vão ter fome e frio. E morrer aos milhares... Como tudo tem sido fácil para nós, enquanto Nicolai está a sofrer. Terá sido mobilizado para a defesa? Estará no fundo de um bunker na primeira linha?

— Quem pode sabê-lo, Janachka? Havemos de o saber um dia. Nenhuma guerra dura eternamente. Rezo todos os dias para que possamos voltar a ver Nikolai. Temos tido muita sorte até aqui.

Começaram então a falar russo, consolando-se assim com a sua língua comum. Quase que se sentiam em casa no meio daquelas salas e móveis estrangeiros.

— A Sala de Âmbar está salva.

— A Sala — repetiu Jana recostando-se na sua cadeira. — Sempre quiseste falar-me da Sala, paizinho. Ela tem muito valor, é certo, mas para ti significa bem mais do que uma obra de arte. E é também o que Nikolai sente.

— É assim, minha filha. Como é que um Wachterovski poderia viver sem a Sala de Âmbar? Porque... oh, é uma longa história. As suas paredes conheceram destinos prodigiosos. A Sala está impregnada de sangue e de lágrimas, de amor e de ódio, de sofrimento e de felicidade. A Sala de Âmbar conservou tudo o que uma vida humana pode conter. As suas paredes respiram... Nós, os Wachterovski sentimo-lo. Ao contemplar a Sala, vemos desfilar dois séculos de história.

— Conta-me, paizinho, conta-me...

— Isso vai demorar muito tempo, Janachka.

— Nós agora temos tempo. Virei aqui todas as noites. Devo ficar a saber tudo sobre a Sala de Âmbar... Nikolai e eu seremos encarregados dela, um dia. Instala-te confortavelmente, bebe um gole do grogue e conta-me tudo sobre a vida movimentada dos reis, czares e czarinas.

E Michael Wachter começou a contar.

 

                                                                                CONTINUA 

 

                      

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