Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O TESTAMENTO
Primeira Parte
Até ao último dia, e agora até mesmo à última hora. Sou um homem velho, solitário e carente de amor, doente, sofredor e farto de viver. Estou preparado para o outro mundo; tem forçosamente de ser melhor do que este.
Sou proprietário do arranha-céus de vidro onde me encontro sentado, bem como de noventa e sete por cento da empresa nele sediada; abaixo de mim, sou dono dos terrenos circundantes que se estendem por um raio de oitocentos metros em três direcções, o que abrange as duas mil pessoas que trabalham aqui e outras vinte mil algures; sou igualmente proprietário da rede de condutas subterrâneas de abastecimento de gás ao edifício, que é fornecido pelas minhas explorações no Texas; a rede de abastecimento de energia eléctrica também é minha; o satélite, que não se avista a quilómetros de distância acima de nós, através do qual, em tempos idos, dei ordens a um império que se estende pelas sete partidas do mundo, é meu por meio de um sistema de leasing. Os meus bens excedem os onze mil milhões de dólares. Sou dono de minas de prata no Nevada e de cobre no estado de Montana, sem esquecer as plantações de café no Quénia e as minas de carvão em Angola, de borracha na Malásia e de gás natural no Texas, explorações petrolíferas na Indonésia e aço na China. A minha empresa é proprietária de companhias que produzem electricidade, fabricam computadores e constróem barragens, possuindo ainda outros empreendimentos cujos sinais são captados pelo meu satélite. Sou ainda dono de várias subsidiárias com escritórios espalhados por mais países do que alguém possa imaginar.
Outrora, fui dono de todos os brinquedos apropriados a um homem com o meu estatuto - os iates, os aviões a jacto e as louras, as casas na Europa e as quintas na Argentina, uma ilha no Pacífico, cavalos puro-sangue e até mesmo uma equipa de hóquei. Contudo, comecei a ficar velho de mais para estes brinquedos.
O dinheiro é a raiz da minha infelicidade.
Tive três famílias - três ex-mulheres que me deram sete filhos, dos quais seis continuam vivos, empenhando-se em fazer tudo o que podem para me atormentar. Tanto quanto me é dado saber, sou o pai dos sete e já sepultei um deles. Melhor dizendo, a sua mãe é que lhe fez o funeral. Na altura, encontrava-me fora do país.
Vivo separado de todas estas mulheres e filhos. Hoje, reunir-se-ão aqui porque estou prestes a morrer, tendo chegado a altura de dividir os dinheiros.
Há muito tempo que tenho vindo a planear este dia. O meu edifício tem catorze andares, todos muito espaçosos quer em comprimento quer em largura, formando uma estrutura quadrada em redor de um pátio frondoso nas traseiras, onde, antigamente, costumava dar almoços ao ar livre em dias soalheiros. Habito e trabalho no último andar - em cerca de três mil e quinhentos metros quadrados de uma opulência que poderá parecer obscena aos olhos de muitos, facto que não me enfada minimamente. À força de suor, inteligência e sorte ganhei cada cêntimo da minha fortuna. Gastar dinheiro é uma prerrogativa que me assiste. Dá-lo a quem bem entender também deve ser uma opção a que tenho direito, mas acontece que estou a ser acossado por todos os lados.
Por que razão haveria eu de me incomodar por causa de quem quer que seja que venha a herdar o meu dinheiro? Com ele já fiz tudo o que se possa conceber. Enquanto aqui estou, sentado na minha cadeira de rodas, sozinho e à espera, não sou capaz de pensar numa única coisa que queira comprar, ou ver, ou ainda num só lugar que deseje visitar, tão-pouco me ocorre uma outra aventura que pretenda levar a cabo.
Já fiz tudo o que se possa imaginar e sinto-me extremamente cansado.
Não me interessa quem é que ficará com o meu dinheiro. Por outro lado, interessa-me muitíssimo quem não o vai receber.
Cada um dos metros quadrados que este edifício ocupa foi desenhado por mim, o que me permite saber com exactidão onde colocar todos os que assistirão a esta pequena cerimónia. Estão todos aqui, aguardando e aguardando, embora não se incomodem com esta espera. Em virtude do que estou prestes a fazer, estariam dispostos a ficar completamente nus sob uma tempestade de neve.
A primeira família é constituída por Lillian e respectiva prole - quatro dos meus descendentes dados à luz por uma mulher que só raramente me permitia que lhe tocasse. Casámos na nossa juventude - eu tinha vinte anos e ela dezoito -, razão por que Lillian também é velha. Há muitos anos que não a vejo, e hoje também não terei oportunidade de a ver.
Tenho a certeza de que ela continua a desempenhar o papel de primeira mulher, abandonada e mortificada: ainda que cumpridora dos seus deveres, foi trocada por um troféu. Nunca voltou a casar, e estou certo de que durante cinquenta anos nunca teve relações sexuais. Ainda estou para saber como é que fomos capazes de procriar.
O seu filho mais velho tem actualmente quarenta e sete anos, Troy Júnior, um idiota sem o mínimo préstimo que está amaldiçoado pelo meu nome. Em rapaz, adoptou o diminutivo de TJ, continuando a preferi-lo ao nome de Troy. Dos seis filhos que neste momento se reúnem aqui, TJ é o mais burro, apesar de os outros não lhe ficarem muito atrás. Quando tinha dezanove anos, foi expulso da faculdade por vender estupefacientes.
TJ, à semelhança dos outros filhos, quando fez vinte e um anos recebeu cinco milhões de dólares. E, tal como aconteceu com os outros, esse dinheiro escoou-se-lhe pelos dedos como se fosse água.
Não sou capaz de suportar o relato das existências deploráveis que os filhos de Lillian vivem. Bastará dizer que todos, sem excepção, se encontram sobrecarregados de dívidas e virtualmente desempregados, com muito poucas esperanças de que esta situação se venha a alterar; por conseguinte, a minha assinatura neste testamento é o acontecimento mais crítico das suas vidas.
Retomando o tema das minhas ex-mulheres, acrescento que da frigidez de Lillian passei para a paixão escaldante de Janie, uma coisinha jovem de grande beleza que foi contratada como secretária para o Departamento de Contabilidade, mas que foi rapidamente promovida quando decidi que necessitava da sua presença aquando das minhas viagens de negócios. Divorciei-me de Lillian e casei-me com Janie que era vinte e dois anos mais nova do que eu era então, estando ela decidida a manter-me satisfeito. Com toda a rapidez que lhe foi possível, deu à luz dois filhos. Servia-se deles como âncoras que me mantinham por perto. Rocky, o mais novo, morreu num acidente ao volante de um automóvel desportivo, juntamente com dois dos seus compinchas, acidente esse que me custou seis milhões para se chegar a um acordo sem a intervenção de um tribunal.
Quando tinha sessenta e quatro anos casei com Tira. Ela tinha vinte e três e eu já a tinha engravidado, na sequência do que nasceu um pequeno monstro a que chamou Ramble por qualquer razão que, na minha perspectiva, nunca foi muito clara. Actualmente, Ramble tem catorze anos e já conta com uma estadia na prisão por furto em lojas, além de uma outra detenção por posse de marijuana. Os cabelos sebosos deste rapaz colam-se-lhe ao pescoço, caindo-lhe bastante pelas costas abaixo; adorna-se com argolas nas orelhas, nos sobrolhos e no nariz. Dizem-me que só vai à escola quando muito bem lhe apetece.
Ramble sente-se envergonhado por o seu pai ter quase oitenta anos; por outro lado, o seu pai sente vergonha por o filho usar contas presas na língua. Além de que ele, de parceria com o resto destes meus familiares, espera que eu aponha o meu nome neste testamento, fazendo assim com que as suas vidas sejam substancialmente melhoradas. Não obstante o incomensurável valor da minha fortuna, o dinheiro não durará muito tempo nas mãos destes mentecaptos.
Um velho prestes a morrer não deveria sentir tanto ódio, mas este sentimento é mais forte do que eu. São um bando deplorável, todos eles. As mães odeiam-me, consequentemente os filhos também foram ensinados a odiar-me.
São abutres que circulam com as garras abertas, dentes aguçados e olhos avaros, atordoados perante a expectativa de uma riqueza ilimitada.
A minha sanidade mental, devido à peculiaridade desta situação, é um assunto da maior importância. Estão todos convencidos de que tenho um tumor, uma vez que digo coisas estranhas. Durante as reuniões, e quando falo ao telefone, o meu discurso é tartamudeado e incoerente, o que leva os meus assistentes, posicionados atrás de mim, a murmurar e a acenar com a cabeça pensando para si próprios: Sim, é verdade. É o tumor.
Há dois anos fiz um testamento onde legava toda a minha fortuna à última parceira de coabitação, a qual, na altura, se saracoteava pelo meu apartamento usando umas cuequinhas de um tecido com pintas de leopardo e mais nada; e, sim, imagino que sou louco por louras de vinte anos, desde que tenham todas as curvas apropriadas. Mas a última foi posta na rua. O testamento foi parar à retalhadora de papéis. Pondo as coisas em termos simples, fiquei farto dela.
Há três anos fiz outro testamento, apenas pelo mero prazer de o fazer, deixando tudo a obras de caridade que ultrapassavam a centena. Num belo dia em que eu praguejava contra TJ, que me retribuía exactamente da mesma maneira, falei-lhe deste novo testamento. Sem estarem com meias medidas, ele, a mãe e os irmãos apressaram-se a contratar um monte de advogados vigaristas, indo a correr para o tribunal, numa tentativa de me darem por mentalmente incapaz, o que me teria remetido a uma instituição para avaliação e tratamento. Na realidade, esta medida mostrou esperteza da parte dos advogados, uma vez que se eu tivesse sido dado como mentalmente incompetente o meu testamento seria anulado.
Mas acontece que eu também tenho os meus advogados, a quem pago mil dólares à hora com o objectivo de manipularem o sistema jurídico em meu benefício. Acabei por não ser internado, apesar de, nessa altura, ser muito provável que estivesse um tudo nada passado dos carretos.
Não nos devemos esquecer de que tenho uma máquina de destruir papéis para meu uso exclusivo, que não hesitei em utilizar para todos os testamentos anteriores. Já desapareceram todos, tragados por esta máquina que tanto jeito me dá.
Costumo usar longas túnicas brancas feitas de seda tai, para além de rapar a cabeça como se fosse um monge budista, e, dado que como pouco, o meu corpo ficou pequeno e mirrado. Eles pensam que sou budista, mas na realidade sou um estudioso de Zoroastro. Eles não sabem qual é a diferença. Não me custa muito a compreender o motivo que os leva a pensar que a minha capacidade mental se encontra diminuída.
Lillian e a primeira família estão na sala de reuniões da administração, situada no décimo terceiro andar, exactamente abaixo de mim. É uma sala espaçosa com mármores e madeiras de mogno, carpetes ricas e uma comprida mesa oval colocada no centro, em redor da qual, neste preciso momento, se sentam pessoas deveras nervosas. Não é de surpreender que estejam presentes mais advogados do que membros da família. Lillian tem o seu advogado, o mesmo acontecendo em relação a cada um dos seus quatro filhos, excepção feita a TJ que se fez acompanhar de três para mostrar a sua importância e garantir que todos os cenários possíveis serão devidamente analisados. TJ tem mais problemas com a lei do que a maior parte dos encarcerados que aguardam no corredor da morte. Perto de uma das cabeceiras da mesa foi instalado um enorme quadro digital que servirá para reproduzir os trâmites legais.
O irmão de TJ, Rex, com quarenta e um anos, o meu segundo filho, está presentemente casado com uma stripper. O seu nome é Amber, uma pobre criatura desmiolada mas que, em contrapartida, é senhora de uns grandes seios fruto de implantes. É, penso eu, a sua terceira mulher. Será a segunda ou terceira, mas quem sou eu para fazer juízos de valor? Ela também se encontra presente, juntamente com o resto dos cônjuges actuais e/ou parceiros de coabitação, tudo gente nervosamente irrequieta perante a perspectiva iminente da partilha de onze mil milhões de dólares.
A primeira filha de Lillian, a minha mais velha, é Libbigail, uma criança que amei desesperadamente até que começou a frequentar a faculdade, altura em que se esqueceu completamente da minha existência. Pouco depois casou com um africano e, acto contínuo, eliminei-a dos meus testamentos.
Mary Ross foi a última criança que Lillian deu à luz. É casada com um médico que aspira a ser super-rico, se bem que o casal esteja fortemente endividado.
Janie e a segunda família aguardam numa sala no décimo andar. Desde o nosso divórcio, há já muitos anos, Janie teve dois maridos.
Tenho quase a certeza de que actualmente vive sozinha. Costumo contratar os serviços de investigadores que me mantêm a par de tudo, mas nem sequer o FBI teria capacidade para se pôr ao corrente de todas as camas em que ela se deita. Tal como já mencionei, Rocky, o seu filho, morreu. A minha filha Geena está presente com o seu segundo marido, um idiota com um curso de pós-graduação, que é suficientemente perigoso para agarrar em quinhentos milhões de dólares, ou coisa parecida, e, de forma magistral, vir a perdê-los no prazo de três anos.
E depois temos Ramble, sentado sem um mínimo de postura numa cadeira no quinto andar, a lamber a argola de ouro que tem ao canto do lábio, passando a mão pelos cabelos sebosos e esverdeados, com um ar embezerrado dirigido à mãe, por esta hoje ter tido o desplante de aparecer aqui com um chulo baixinho e cabeludo. A partir de hoje, Ramble está à espera de ficar rico, contando que lhe seja entregue uma fortuna, pura e simplesmente porque eu sou seu pai. E Ramble também veio com um advogado, um fulano tipo hippie radical que Tira viu na televisão, tendo contratado os seus serviços jurídicos logo depois de se ter deitado com ele. Também estão à espera, juntamente com o resto da cambada. Conheço bem esta gente. Observo-os.
Snead apareceu, vindo das traseiras do meu apartamento. Há quase trinta anos que é o meu moço de recados. É um homenzinho rotundo, um tanto tosco, com o seu colete branco, dócil e humilde, perpetuamente inclinado pela cintura como se fizesse uma vénia ao rei. Snead parou à minha frente com as mãos traçadas à altura da barriga, como é seu hábito, mantendo a cabeça inclinada de lado e com um sorriso untuoso.
- Como está o senhor? - pergunta numa cadência afectada e rítmica que adquiriu há alguns anos, aquando da nossa estadia na Irlanda.
Não lhe respondo porque Snead não espera, nem de mim é exigido, que lhe dê réplica.
- Um pouco de café, senhor doutor?
- O almoço.
Snead pisca os dois olhos fazendo uma vénia ainda mais acentuada, após o que vai de divisão em divisão no seu andar gingado, com a dobra das calças a roçarem o soalho. Ele também espera ficar rico depois de eu morrer; suponho que, à semelhança dos outros, ande a contar os dias que ainda faltam.
O problema com o facto de termos dinheiro é que toda a gente deseja receber algum. Somente uma pequena porção, um quinhão. O que é um milhão de dólares para um homem que possui milhares de milhões'? Dá-me um milhão, meu velho, e nunca notarás a diferença. Passa para cá um empréstimo e ambos nos esqueceremos do assunto. Vê lá se pões o meu nome algures no testamento; existe muito espaço para isso.
Snead é bisbilhoteiro que se farta e, há alguns anos, apanhei-o a remexer na minha mesa de trabalho, procurando, penso eu, o testamento mais actualizado. Quer que eu morra porque espera vir a receber uns quantos milhões.
Que direito é que ele tem para esperar seja o que for? Há muitos anos que eu devia tê-lo posto no olho da rua.
O seu nome não é mencionado no meu último testamento.
Coloca um tabuleiro defronte de mim: uma caixa por abrir de bolachas de água e sal Ritz, um pequeno boião de mel selado com uma tira de plástico à volta da tampa, assim como uma lata de trinta e três centilitros de Fresca, à temperatura ambiente. Qualquer variação e Snead seria despedido sem apelo nem agravo.
Depois de dispensar os seus serviços, começo a molhar as bolachas dentro do mel. A derradeira refeição.
Fico sentado a olhar fixamente através das paredes de vidros foscos. Nos dias límpidos, consigo avistar o topo do monumento a Washington, a quase dez quilómetros de distância, mas hoje não é um desses dias. Hoje, o tempo está agreste e frio, ventoso e encoberto; não é um mau dia para se morrer. O vento sopra as últimas folhas que restam nas ramagens das árvores, espalhando-as pelo parque de estacionamento mais abaixo.
O que é que me leva a preocupar-me com as dores? Qual é o problema com um pouco de sofrimento? Causei mais infelicidade do que a maior parte dos meus semelhantes.
Carreguei num botão e Snead apareceu. Faz uma vénia e começa a empurrar a cadeira de rodas transpondo a porta do meu apartamento, entrando no vestíbulo de mármore e percorrendo o corredor também em pedra-mármore; passamos por outra porta. Estamos cada vez mais próximos, todavia, não sinto a mais pequena ansiedade.
Mantive os psiquiatras à espera mais de duas horas.
Atravessamos o meu gabinete e aceno a Nicolette, a minha última secretária, uma coisinha jovem de quem gosto muito. Dispusesse eu de mais algum tempo e seria muito possível que ela se tornasse na número quatro.
Mas o tempo de que disponho não é muito. Limita-se a uns escassos
minutos.
A cambada continua a aguardar - bandos de advogados e alguns psiquiatras, que têm a incumbência de determinar se estou são ou demente. Apinham-se em redor da longa mesa na minha sala de reuniões, e quando entro, abruptamente, todas as conversas cessam e todos os presentes prendem o olhar em mim. Snead coloca-me num dos lados da mesa, perto do meu advogado, Stafford.
Na sala foram colocadas câmaras de vídeo que apontam em todas as direcções; os técnicos andam numa grande azáfama focando as lentes no melhor ângulo.
Todos os sussurros, cada movimento, qualquer sopro de respiração ficarão gravados, uma vez que há uma grande fortuna em jogo.
O último testamento que assinei providenciava pouca coisa para os meus filhos. Foi elaborado por John Stafford, como sempre. Esta mesma manhã, foi parar à máquina de destruir papel.
Encontro-me sentado aqui com a finalidade de provar ao mundo que estou de posse de todas as minhas faculdades mentais, o que me permitirá assinar um novo testamento. Uma vez que isso fique comprovado, o destino que darei aos meus bens nunca será posto em questão.
Directamente à minha frente estão sentados três psiquiatras - cada um presta os seus serviços a uma das famílias. Em fichas de arquivo dobradas defronte destes homens, alguém inscreveu os seus nomes - doutor Zadel, doutor Flowe e doutor Theishen. Examino atentamente os seus olhares e rostos. Dado que se espera que eu mostre uma aparência de sanidade mental, é importante que estabeleça contacto visual com eles.
Estão todos na expectativa que eu faça qualquer coisa de destrambelhado, mas estou prestes a comê-los ao almoço.
Stafford será o mestre-de-cerimónias. Depois de todos devidamente instalados e de as câmaras de filmar estarem a postos, ele dá início à sessão.
- O meu nome é Josh Stafford e sou o advogado do senhor Troy Phelan, que se encontra sentado aqui, à minha direita.
Comecei a avaliar os psiquiatras, um de cada vez, olhos nos olhos, a troca de olhares penetrantes, até que, à vez, cada um afasta o olhar. Os três usam fatos escuros. Zadel e Flowe têm barbas mal cuidadas. Theishen usa laço no colarinho, não aparentando ter mais de trinta anos. Às famílias foi dado o direito de contratarem os serviços de quem bem lhes aprouvesse.
- O objectivo desta reunião é submeter o senhor Phelan à avaliação de um painel de psiquiatras, que determinarão as suas capacidades testamentárias - continuou Stafford. - Assumindo que esta junta médica venha a considerá-lo são de mente, então, ele tenciona assinar um testamento onde ficará estabelecido o destino a dar aos seus bens aquando da sua morte.
Stafford bateu com o lápis sobre um testamento com a espessura de cerca de dois centímetros e meio que colocara defronte de nós. Tenho a certeza de que as câmaras de filmar foram ajustadas para um grande plano, e estou certo de que a mera visão do documento provoca calafrios que percorrem a espinha dos meus filhos e das respectivas mães, todos espalhados pelos vários andares do meu prédio.
Não tiveram oportunidade de ver este testamento, tão-pouco lhes assiste o direito a tal. Um testamento é um documento pessoal que só é revelado após a morte do testador.
Aos testamentários só resta especular quanto ao conteúdo do mesmo. Os meus herdeiros já receberam alguns palpites, pequenas mentiras que eu próprio magiquei cuidadosamente.
Foram levados a acreditar que o grosso dos meus bens será dividido equitativamente pelos filhos, se bem que não saibam de que maneira, enquanto as minhas ex-mulheres serão contempladas com doações generosas. Estão bem cientes deste facto; sentem-no na pele. Há várias semanas, mesmo meses, que têm vindo a rezar fervorosamente por isto. No que lhes diz respeito, este assunto é de vida ou de morte, posto que todos eles se encontram endividados. O testamento à minha frente é suposto fazer com que venham a ficar ricos, pondo cobro a todas as questiúnculas. Foi elaborado por Stafford e, em conversas com os advogados dos herdeiros, ele descreveu a traços largos, com minha autorização, o suposto conteúdo do testamento. Cada um dos meus descendentes receberá qualquer coisa que ronda os trezentos a quinhentos milhões, enquanto cada uma das três ex-mulheres herdará cinquenta milhões de dólares. Na sequência dos divórcios, estas três mulheres foram generosamente contempladas em termos monetários, mas, como é evidente, esse pormenor já foi esquecido.
O total dos legados destinados às famílias seria de, aproximadamente, três mil milhões de dólares. Depois de o governo ter arrecadado os respectivos impostos sucessórios, no valor de vários milhões de dólares, o resto seria doado a obras de caridade.
Portanto, podem ver por que motivo eles estão aqui, todos aprumados, radiantes e sóbrios (na sua maioria), olhando para os monitores com uma expressão de avidez, aguardando esperançados que eu, um homem velho, possa manter-me à altura da situação. Tenho a certeza de que disseram aos respectivos psiquiatras: «Não sejam muito duros para com o velhote. Queremos que esteja bom do juízo.»
Uma vez que todos estão tão felizes, porquê o incómodo desta avaliação psiquiátrica? Porque os vou lixar pela última vez, o que pretendo fazer com todos os preceitos.
A presença dos psiquiatras é da minha lavra, contudo, os meus filhos e os seus advogados são de compreensão lenta, não se apercebendo desta realidade.
O primeiro a tomar a palavra é Zadel.
- Senhor Phelan, é capaz de nos indicar a data, hora e local onde nos
encontramos'?
Senti-me como se ainda andasse na primeira classe. Deixei cair o queixo sobre o peito, como se fosse um imbecil, ponderando a pergunta durante o tempo necessário para fazer com que se sentassem à beira das cadeiras murmurando entredentes:
- Vamos lá, sacana velho e amalucado. Com certeza que sabes que dia é hoje.
- Segunda-feira - respondi em voz baixa. - Segunda-feira, dia nove de Dezembro de mil novecentos e noventa e seis. O local é o meu escritório.
- E a hora?
- Mais ou menos duas e meia da tarde - acrescentando: - Não costumo usar relógio.
- E onde é que o seu escritório está localizado?
- Em McLean, Virgínia.
- É capaz de nos indicar os nomes e datas de nascimento dos seus filhos? - perguntou Flowe, aproximando-se mais do microfone.
- Não. Os nomes, talvez, mas não me recordo das datas de nascimento.
- Muito bem, diga-nos quais os nomes.
Levo o meu tempo a responder. Ainda é cedo de mais para começar com astúcias. Quero que eles suem.
- Troy Phelan Júnior, Rex, Libbigail, Mary Ross, Geena e Ramble. - Articulo os nomes como se me fosse extremamente doloroso pensar neles sequer.
É permitido a Flowe um acompanhamento da questão.
- Mas havia uma sétima criança, não é verdade?
- Certo.
- Está recordado do seu nome?
- Rocky.
- E o que é que lhe aconteceu?
- Morreu num acidente de viação. - Sentei-me mais a direito na minha cadeira de rodas, cabeça bem erguida, com um olhar vivaz que ia de um psiquiatra ao outro, manifestando a maior sanidade mental possível perante as câmaras. Tenho a certeza de que os meus filhos e ex-mulheres se sentem orgulhosos de mim, observando-me atentamente através dos monitores instalados próximo dos seus pequenos grupos, apertando a mão dos cônjuges actuais e sorrindo para os seus advogados esfomeados porque, até ao momento, o velho Troy tem estado a lidar lindamente com os preliminares.
É possível que a minha voz seja baixa e cava e posso ter o aspecto de um lunático com a minha túnica de seda branca, faces mirradas e turbante verde, mas o certo é que respondi às perguntas que os psiquiatras me fizeram.
Vamos lá, meu velho, eles imploram-te.
- Qual é o seu estado físico actual? - pergunta Theishen.
- Já me senti melhor.
- Diz-se que sofre de um tumor canceroso. «Importas-te de ir direito ao assunto?»
- Pensei que estava a ser submetido a uma avaliação mental - repliquei olhando de relance Stafford que é incapaz de conter um sorriso. Mas as regras permitem qualquer pergunta. Não estamos num tribunal.
- E está - confirmou Theishen com cortesia. - No entanto, todas as perguntas são relevantes.
- Estou a ver.
- Importa-se de responder à pergunta?
- Sobre o quê? - perguntei.
- Sobre o tumor.
- Certamente. É na região da cabeça, do tamanho de uma bola de golfe, todos os dias se expande um pouco mais; é inoperável e o meu médico diz que não terei mais de três meses de vida.
Quase consigo ouvir nos andares abaixo de mim o estalar das rolhas de cortiça das garrafas de champanhe. A existência do tumor fora confirmada!
- Neste momento encontra-se sob a influência de qualquer medicação
que lhe alivie as dores, estupefacientes ou álcool?
- Não - respondi.
- Tem em seu poder algum género de medicação para lhe aliviar as
dores?
- Ainda não.
- Senhor Phelan - Zadel tomou a palavra -, há três meses, a revista Forbes classificou o valor líquido da sua fortuna em oito mil milhões de dólares. Esta estimativa encontra-se próxima da realidade?
- Desde quando é que a Forbes é conhecida pela exactidão dos seus
artigos?
- Portanto, não é exacta?
- Cifra-se entre os onze e os onze mil milhões e meio, dependendo da flutuação dos mercados financeiros. - Dou esta informação numa voz muito lenta, apesar de o meu timbre ser bastante claro e de as minhas palavras terem sido ditas com autoridade. Ninguém duvida da dimensão da
minha fortuna.
Flowe decide dar continuidade ao tema do dinheiro.
- Senhor Phelan, é capaz de descrever, de uma maneira generalizada, o organograma das suas holdings?
- Sim, sou.
- Importa-se de me dar essa informação? - perguntou Zadel.
- Não vejo qualquer inconveniente. - Fiz uma pausa, fazendo com que suassem as estopinhas. Stafford tinha-me tranquilizado dizendo-me que, naquelas circunstâncias, eu não era forçado a divulgar informações de carácter pessoal. Acrescentando ainda que só era obrigado a dar-lhes uma panorâmica geral.
- O Grupo Phelan é uma empresa privada de cujos bens fazem parte setenta outras empresas diversificadas, e algumas destas estão cotadas nos mercados financeiros.
- Que percentagem do Grupo Phelan é que o senhor detém?
- Cerca de noventa e sete por cento. Os restantes três por cento pertencem a uma mão-cheia de funcionários.
Theishen junta-se à caçada. Não foi preciso muito tempo para se concentrarem no filão de ouro.
- Senhor Phelan, a sua empresa tem direito a alguns dos lucros da Spin Computer?
- Sim - respondi com lentidão numa tentativa para posicionar a Spin Computer na minha selva corporativa.
- Que percentagem de acções é que controla?
- Oitenta por cento.
- E a Spin Computer é uma companhia de capitais cotados em bolsa?
- Exactamente - confirmei.
Theishen começa a remexer numa pilha de documentos de aspecto oficial; do lugar onde estou sentado vejo que ele tem o relatório anual da empresa, assim como os balanços trimestrais, documentos que qualquer estudante de faculdade semi-analfabeto poderia obter.
- Quando é que adquiriu a Spin? - pergunta ele.
- Há mais ou menos quatro anos.
- Quanto é que pagou por essa empresa?
- Vinte dólares por acção, num total de trezentos milhões. - Quero responder a estas perguntas mais lentamente, mas sou incapaz de me refrear. O meu olhar parece perfurar Theishen, tal a ânsia que sinto pela próxima pergunta.
- E actualmente quanto é que vale? - pergunta ele.
- Bem... ontem fechou a quarenta e três e meio, desceu um ponto. Desde que a comprei as acções desdobraram-se por duas vezes, por conseguinte o investimento passou a valer cerca de oito-cinquenta.
- Oitocentos e cinquenta milhões?
- Precisamente.
Nesta altura, a avaliação encontra-se basicamente concluída. Caso a minha capacidade mental consiga apreender o valor de fecho das acções no dia anterior, então, sem dúvida alguma que os meus adversários ficarão satisfeitos. Até me parece que estou a ver os seus sorrisos apalermados. Tenho a impressão de que ouço os hurras! de júbilo em surdina. Assim é que é, Troy. Fá-los passar as passas-do-algarve.
Zadel quer o passado. Trata-se de um esforço para pôr à prova os limites da minha memória.
- Senhor Phelan, onde é que nasceu?
- Em Montclair, Nova Jérsia.
- Quando?
- A doze de Maio de mil novecentos e dezoito - respondi.
- Qual era o apelido de solteira da sua mãe?
- Shaw.
- Em que data é que ela morreu?
- Dois dias antes do ataque a Pearl Harbor.
- E o seu pai?
- O quê?
- Quando é que ele faleceu?
- Não sei. Desapareceu quando eu ainda era miúdo.
Zadel olha para Flowe que entretanto reunira algumas perguntas que anotou num bloco-notas.
- Quem é a sua filha mais nova? - perguntou Flowe.
- De que família?
- Hum, da primeira - clarificou ele.
- Nesse caso é a Mary Ross.
- Certo...
- Claro que está certo.
- Onde é que ela frequentou a faculdade?
- Tulane, em Nova Orleães.
- Que curso é que ela tirou?
- Qualquer coisa relacionada com a Era Medieval. Em seguida fez um mau casamento, tal como os outros. Calculo que tenham herdado esse talento de mim. - Parece que estou a vê-los a retraírem-se, todos eriçados. Também consigo imaginar os advogados e os actuais parceiros de coabitação e/ou cônjuges ocultando pequenos sorrisos, uma vez que ninguém pode contestar o facto de que, efectivamente, fiz maus casamentos.
Com a agravante de me ter reproduzido de forma ainda mais deplorável. De súbito, Flowe dá esta rodada por terminada. Por seu turno, Theishen sente-se enamorado pelo dinheiro.
- Detém um número de acções suficiente para controlar a Mountain-Com?
- Sim, tenho a certeza de que esse amontoado de papelada contém essa informação. Trata-se de uma empresa de capitais cotados em bolsa.
- Qual foi o seu investimento inicial?
- À volta de dezoito dólares por acção, para um montante de dez milhões de acções.
- E agora estão a...?
- Ontem fecharam ao preço de vinte e um por acção. Uma permuta e um desdobramento durante os últimos seis anos e a empresa titular, presentemente, vale quase quatrocentos milhões. Isto responde à sua pergunta?
- Sim, estou em crer que sim. Quantas empresas cotadas em bolsa é que controla?
- Cinco - respondi.
Flowe trocou um olhar fugidio com Zadel; pergunto a mim mesmo quanto tempo mais é que isto vai durar. Subitamente, sinto-me cansado.
- Mais alguma pergunta? - interroga Stafford. Não tencionamos exercer a mínima pressão sobre eles, dado que desejamos que se sintam inteiramente satisfeitos.
- Tem a intenção de assinar algum novo testamento hoje? - pergunta Zadel.
- Sim, é o que tenciono fazer.
- É o testamento que tem sobre a mesa, diante de si?
- Sim, é - concordei.
- De acordo com as cláusulas desse testamento, os seus filhos herdarão uma porção substancial dos seus bens?
- De facto, assim é.
- Está preparado para assinar o testamento neste momento?
- Estou sim.
Com gestos meticulosos, Zadel coloca a caneta em cima da mesa, cruza os dedos mostrando uma expressão pensativa, e fita Stafford.
- Em minha opinião, o senhor Phelan, nesta altura, encontra-se de posse das capacidades testamentárias suficientes para poder dispor dos seus bens. - Pronuncia estas palavras com grande ênfase, como se o meu comportamento os houvesse mantido numa espécie de limbo.
Os outros dois psiquiatras apressam-se a mostrar a sua aquiescência.
- Não me restam dúvidas nenhumas quanto à sua sanidade mental - diz Flowe a Stafford. - No que me diz respeito, o estado psíquico do senhor Phelan mantém-se inacreditavelmente arguto.
- Não lhe resta a menor dúvida? - pergunta Stafford.
- Nenhuma, seja de que espécie for.
- Doutor Theishen?
- Deixemo-nos de charadas. O senhor Phelan sabe exactamente o que é que está a fazer. O seu raciocínio é bastante mais rápido do que o
nosso.
«Oh, muito obrigado.» Aquilo tem tanto significado para tuim. «Vocês são um bando de psiquiatras de pacotilha que se esforçam por ganhar cem mil dólares por ano. Eu já fiz milhares de milhões, e contudo dão-me palmadinhas na cabeça enquanto me dizem que esperto que eu sou.»
- Portanto, a opinião é unânime? - finaliza Stafford.
- Sim. Absolutamente. - Não conseguem concordar com um acenar de cabeça à velocidade que desejariam.
Stafford faz deslizar o testamento pelo tampo da mesa na minha direcção, entregando-me a caneta.
- Este é o último testamento onde se expressam as últimas vontades de Troy. Phelan - começa ele a dizer -, o qual revoga todos os anteriores testamentos e codicilos. É composto por noventa páginas e foi elaborado por Stafford e outra pessoa do seu escritório de advogados.
Compreendo o conceito, embora as especificidades escapem à minha capacidade de percepção. Não o li, nem tão-pouco tenciono fazê-lo. Procuro a última folha do documento, rabisco um nome ilegível aos olhos de qualquer pessoa, após o que, pelo menos para já, coloco as mãos sobre a folha de rosto.
Jamais será visto pelos abutres.
- A reunião está encerrada - declara Stafford, e todos começam a arrumar as suas coisas. De acordo com as minhas instruções, as três famílias são apressadamente conduzidas para fora das salas onde se encontravam, tendo-lhes sido pedido que abandonassem o edifício de imediato.
Uma das câmaras de filmar continua apontada a mim; o único destino destas imagens em filme são os arquivos. Num passo apressado, os psiquiatras e os advogados também saem do edifício. Digo a Snead que se sente à mesa. Stafford e um dos seus associados, Durban, permanecem na sala; também estão sentados à mesa. Depois de termos ficado sozinhos meto a mão por baixo da orla da túnica de onde retiro um sobrescrito que abro. Do interior tiro três folhas amarelas com linhas de um bloco de apontamentos, colocando-as defronte de mim sobre a mesa.
Naquele momento, com o meu objectivo a escassos segundos de vir a ser concretizado, sinto-me invadido por um vago frémito de medo. Aquela acção irá necessitar de mais força do que a que consegui reunir de há algumas semanas a esta parte.
Stafford, Durban e Snead olham atentamente para as folhas de papel amarelo, mostrando-se profundamente desnorteados.
- Estas são as minhas últimas vontades - anunciei agarrando numa caneta. - Um testamento holografado por mim, todas as palavras são da minha lavra, passadas a papel apenas há algumas horas. É datado de hoje e é hoje que o assino. - Uma vez mais, rabisquei a minha assinatura. Stafford mostra-se demasiado perplexo para poder reagir.
- Este testamento revoga todos os que o precederam, incluindo o que assinei há menos de cinco minutos. - Voltei a dobrar as folhas de papel, após o que as meti de novo dentro do sobrescrito.
Cerrei os dentes com força recordando a mim próprio o quão desesperadamente desejava morrer.
Empurrei o sobrescrito fazendo-o deslizar na direcção de Stafford, ao mesmo tempo que me levantei da cadeira de rodas. Sinto as pernas a tremer. O meu coração bate a um ritmo acelerado. Já só faltam alguns segundos. Com certeza que terei morrido antes de aterrar.
- Ei! - gritou alguém, penso que foi Snead. Mas eu estou a afastar-me deles.
O homem paralítico começou a caminhar, quase que corre, passa por uma correnteza de cadeirões em pele, passa por um dos quadros a óleo que me retratam, por sinal é um de má qualidade que foi encomendado por uma das minhas mulheres, passando por tudo o mais, em direcção às portas corrediças de vidro, que não estão trancadas. O que eu sei porque ensaiei esta cena há apenas algumas horas.
- Pare! - grita alguém, e eles correm atrás de mim. No espaço de um ano ninguém me viu andar. Agarro na maçaneta e abro a porta.
O ar é de um frio agreste; descalço, piso o chão da varanda estreita que circunda o último andar. Sem olhar para baixo, lanço-me por cima do gradeamento.
Snead encontrava-se dois passos atrás do senhor Phelan, e, por uma fracção de segundos, pensou que poderia detê-lo. O choque que sentiu ao ver o homem de idade, não só a levantar-se e caminhar mas também, praticamente, a correr para a morte, imobilizou-o. Havia muitos anos que o senhor Phelan perdera a capacidade de se deslocar com tanta rapidez.
Chegou junto do gradeamento limitando-se a soltar um grito de horror, após o que, sentindo-se impotente, ficou a olhar para o senhor Phelan que caía silenciosamente, contorcendo-se e a esbracejar à medida que cada vez ia ficando mais pequeno, e mais pequeno, até que acabou por se estatelar no pavimento. Snead enclavinhou as mãos no topo do gradeamento, olhando sem querer acreditar no que via, e então, começou a chorar.
Josh Stafford chegou à varanda um passo atrás de Snead, testemunhando a maior parte da queda. Tudo aquilo aconteceu com enorme rapidez, pelo menos o salto; a queda, por si só, deu a impressão de ter durado uma hora. Um homem que pese aproximadamente setenta e cinco quilos cairá de uma altura de cerca de noventa metros em menos de cinco segundos; todavia, mais tarde, Stafford contou a algumas pessoas que o velho flutuara por uma eternidade, qual pena rodopiante levada ao sabor do vento.
Logo atrás de Stafford, Tip Durban chegou perto do gradeamento, tendo assistido apenas ao impacte da queda do corpo contra o pátio de tijoleira situado entre a entrada da frente e um caminho circular. Por qualquer razão que lhe era desconhecida, Durban segurava no sobrescrito de que, num gesto abstracto, se apoderara durante o tumulto que a tentativa de agarrar Troy tinha provocado.
Sentindo os efeitos do ar gélido, teve a sensação de que o sobrescrito era bastante mais pesado, enquanto mais abaixo avistava uma cena que parecia ter sido tirada de um filme macabro, observando os primeiros mirones que se aproximavam do local da tragédia.
A queda em flecha de Troy Phelan não atingiu o elevado nível de dramatização com que este sonhara. Ao invés de ter flutuado até ao solo como um anjo, num mergulho perfeito de cisne, com a túnica de seda adejando atrás de si perante as famílias que, havia ele imaginado, estariam a abandonar o edifício precisamente no momento certo, em choque à vista de todo aquele horror; a única testemunha da sua queda foi um empregado de escritório de um escalão inferior, que trabalhava na secção de pessoal e que, num passo apressado, atravessava o parque de estacionamento depois de um almoço bastante prolongado num bar. O homem ouviu uma voz que o levou a olhar para o último andar, observando aterrorizado um corpo desnudado, de pele pálida, que tombava e esbracejava com o que parecia ser um lençol em redor do pescoço. Estatelou-se de costas sobre o piso de tijoleira, produzindo o estrondo abafado que qualquer pessoa esperaria de um impacte com aquelas características.
O empregado de escritório correu para o local ao mesmo tempo que um dos seguranças reparava em algo anómalo, saindo disparado do seu posto próximo da entrada principal da Torre Phelan. Nem o empregado de escritório nem o segurança conheciam o senhor Troy Phelan, consequentemente, nenhum dos dois identificou, de início, os restos mortais que olhavam estupidificados. O corpo, descalço, contorcido e nu, sangrava à vista de todos com um lençol amarfanhado nos braços. De facto, estava bastante morto.
Uns escassos trinta segundos depois, e Troy teria tido o seu desejo satisfeito. Dado que haviam sido conduzidos a uma sala no quinto andar, Tira, Ramble e respectiva comitiva de advogados, acompanhados do doutor Theishen, foram os primeiros a abandonar o edifício. Por conseguinte, os primeiros a depararem com o suicídio. Tira gritou, não de dor, nem tão-pouco por amor ou por um sentimento de perda, mas sim devido ao choque de ver o velho Troy estatelado no pavimento de tijoleira. Soltou um berro capaz de perfurar os tímpanos de qualquer pessoa, que foi ouvido com toda a clareza por Snead, Stafford e Durban catorze andares mais acima.
Ramble pensou que a cena era bastante porreira. Uma criança que era um produto da televisão, viciado em jogos de vídeo, achou que aquele derramamento de sangue era como um íman que o atraía. Afastou-se da mãe que continuava a gritar ajoelhando-se junto do pai morto. O segurança de serviço colocou-lhe uma mão firme sobre o ombro.
- É Troy Phelan - disse um dos advogados mantendo-se inclinado por cima do cadáver.
- Não me diga - retorquiu o segurança.
- Ena! - exclamou o empregado de escritório.
Do interior do prédio começaram a sair mais pessoas que corriam para o local do acidente.
Janie, Geena e Cody, com o seu psiquiatra, o doutor Flowe, e respectivos advogados foram os próximos a sair. Desta feita, não se ouviram gritos nem desfalecimentos. Mantinham-se juntos formando um grupo apertado, bastante afastados de Tira e comitiva, olhando embasbacados para o pobre Troy, a exemplo de todos os outros.
Começaram a ouvir-se os ruídos emitidos pelos walkie-talkies, quando chegou outro segurança que assumiu o controlo da situação. Este último chamou uma ambulância.
- De que é que isso serve? - perguntou o empregado da secção de pessoal que, em virtude de ter sido o primeiro a chegar ao local do incidente, assumia um papel mais preponderante no desenrolar da situação.
- Queres levá-lo no teu automóvel? - inquiriu o último segurança.
Ramble mantinha-se atento ao sangue a encher as fissuras entre a tijoleira, correndo em ângulos perfeitos por um declive pouco acentuado, na direcção de uma fonte de água congelada ao pé de um mastro de bandeira.
Entretanto, chegou um elevador apinhado ao átrio do piso térreo do prédio; as portas abriram-se dando saída a Lillian e à primeira família acompanhados da sua comitiva. Porque TJ e Rex, em tempos, haviam sido autorizados a manter gabinetes no edifício, estes tinham estacionado nas traseiras. Todos os elementos do grupo viraram à esquerda dirigindo-se a uma saída, até que alguém perto da entrada principal começou a gritar.
- O senhor Phelan saltou! - Inverteram a direcção dos seus passos, transpondo apressadamente a porta principal; saíram para o pátio de tijoleira, perto da fonte, onde depararam com o cadáver.
Bem vistas as coisas, não teriam de esperar pelo tumor.
Joshua Stafford necessitou de um minuto, mais ou menos, para se recompor do choque, recomeçando a raciocinar como advogado que era. Aguardou até que a terceira e última família surgiu no piso térreo, após o que pediu a Snead e a Durban que voltassem a entrar no prédio.
A câmara de filmar continuava ligada. Snead colocou-se de frente para a máquina, ergueu a mão direita, e jurou dizer a verdade; em seguida, esforçando-se por conter as lágrimas, descreveu o que acabara de testemunhar. Stafford abriu o sobrescrito de onde retirou as folhas de papel amarelo, que colocou suficientemente perto da câmara para que pudessem ser filmadas.
- Sim, eu vi-o assinar estes papéis - afirmou Snead. - Há apenas alguns segundos.
- E esta é a assinatura dele? - perguntou Stafford, mostrando-lhe os papéis.
- Sim, é.
- Confirma que ele declarou que este é o seu último testamento e que contém as suas últimas vontades?
- Ele disse que isso era o seu testamento.
Stafford recolheu os papéis antes que Snead pudesse lê-los. Repetiu o mesmo processo de testemunho com Durban, após o que se colocou em frente da câmara de filmar apresentando a sua versão dos acontecimentos. A câmara foi desligada e os três desceram no ascensor até ao piso térreo, a fim de prestarem, respeitosamente, as últimas homenagens ao senhor Phelan. O elevador estava apinhado de empregados do Grupo Phelan que se mostravam abismados, embora ansiosos por aquele último olhar de relance, tão raro, ao homem de idade. O edifício começara a esvaziar-se. O choro soluçado de Snead, que se colocara a um canto, era abafado.
Os seguranças haviam obrigado a multidão a recuar, deixando Troy sozinho no seu charco de sangue. Começou a ouvir-se o som de uma sirene que se aproximava. Houve alguém que tirou fotografias para imortalizar o momento da morte daquele homem; em seguida, o corpo foi coberto por um cobertor negro.
Pouco depois, o choque provocado por aquela morte, que as famílias sentiram, foi suplantado por ligeiras ferroadas de pesar. Mantinham-se de cabeça baixa, com olhos que fitavam tristemente o cobertor negro, enquanto organizavam os seus pensamentos em preparação para os assuntos que se avizinhavam. Era impossível olhar para Troy sem pensar em dinheiro. A tristeza pela morte de um familiar com quem não se mantinha contacto, até mesmo em relação a um pai, não pode ser obstáculo a quinhentos milhões de dólares.
No tocante aos empregados, o choque deu lugar à confusão.
Ele fora um indivíduo excêntrico, louco e enfermo - os rumores abrangiam todas as hipóteses. Nunca gostara das pessoas. No edifício trabalhavam alguns vice-administradores que ocupavam cargos importantes que o viam apenas uma vez por ano. Uma vez que a empresa era gerida tão eficazmente sem ele, com certeza que os seus postos de trabalho se encontravam assegurados.
Para os psiquiatras - Zadel, Flowe e Theishen - o momento estava cheio de tensão. Declara-se que um homem está são de mente e minutos depois ele salta para a morte. E, contudo, até mesmo um homem tresloucado pode ter um intervalo de lucidez - esse era o termo legal que eles repetiam a si próprios tremendo de frio entre a multidão que se juntara.
Doido varrido, mas com um intervalo nitidamente lúcido no meio de toda a sua loucura, podia-se pois dar execução a um testamento válido. Estavam decididos a defender com firmeza as suas opiniões. Graças a Deus que fora tudo gravado em filme. O velho Troy era astuto. E estivera lúcido.
Quanto aos advogados, o choque passou-lhes com rapidez, não havendo lugar para qualquer sentimento de desgosto. Com expressões soturnas, permaneciam junto dos seus clientes mantendo-se atentos àquela cena digna de dó. Os honorários seriam avultados.
Entretanto, surgiu uma ambulância que atravessou o pavimento de tijoleira, detendo-se perto do cadáver de Troy. Stafford passou por baixo do cordão que interditava o local, murmurando algumas palavras aos seguranças.
Com rapidez, o corpo foi colocado sobre uma maca onde seria transportado.
Troy Phelan mudara a sua sede para a região norte da Virgínia, mudança que se efectuara há vinte e dois anos, com a finalidade de fugir aos impostos aplicados em Nova Iorque. Dispendera quarenta milhões na sua torre e terrenos circundantes, montante que duplicou muitas vezes por ter domiciliado os seus negócios na Virgínia.
Conhecera Joshua Stafford, um advogado de D. C.(1) em franca ascensão, no decurso de um desagradável processo litigioso que Troy perdeu e que Stafford ganhou. Troy admirava o seu estilo e tenacidade, o que o levou a contratar os seus serviços. Ao longo da última década, Stafford duplicara o volume de negócios do seu escritório, enriquecendo à custa do dinheiro que auferia por defender as causas de Troy.
Durante os últimos anos da sua vida, ninguém fora tão íntimo do senhor Phelan como Josh Stafford. Ele e Durban regressaram à sala de reuniões do décimo quarto andar, fechando a porta à chave. Snead foi dispensado com instruções para que não desse nas vistas.
Ligando a câmara de filmar, Stafford abriu o sobrescrito de onde retirou as três folhas de papel amarelo. A primeira página era uma carta que Troy lhe endereçara. Começou a falar para a câmara.
- Esta carta tem a data de hoje, segunda-feira, dia nove de Dezembro de mil novecentos e noventa e seis. Foi escrita à mão e eu sou o destinatário,
*1. Iniciais que significam Distrito da Colúmbia; referem-se concretamente a Washington D. C. a capital dos Estados Unidos coextensiva a esse distrito federal. (N. da T.)
tendo-me sido remetida por Troy Phelan. É composta por cinco parágrafos. Passo a lê-los sem qualquer omissão:
«Caro Josh: Neste momento já morri. Estas são as minhas instruções e quero que as sigas escrupulosamente. Caso seja necessário, deves recorrer ao litígio para que os meus desejos sejam inteiramente cumpridos.
Em primeiro lugar, quero que me façam uma autópsia rápida, o que se deve a razões que mais tarde serão da maior importância.
Em segundo lugar, não haverá funeral, nem qualquer serviço religioso, seja este de que espécie for. Quero ser cremado e as minhas cinzas devem ser espalhadas pelo ar por cima do meu rancho no Wyoming.
Em terceiro lugar, quero que o meu testamento seja mantido em segredo até 15 de Janeiro de 1997. A lei não exige que o apresentes imediatamente. Deves guardá-lo durante um mês.
Até mais ver. Troy.»
Com lentidão, Stafford colocou a primeira folha de papel sobre a mesa e, cuidadosamente, agarrou na segunda. Ficou a examiná-la por um momento, após o que recomeçou a falar para a câmara.
- Este é um documento composto por uma página que substancia o último testamento de Troy Phelan. Vou proceder à sua leitura integral.
«O último testamento de Troy L. Phelan. Eu, Troy L. Phelan, de posse de todas as minhas faculdades mentais, expresso, por este meio, a revogação de todos os testamentos e codicilos anteriores por mim executados, dispondo dos meus bens da seguinte maneira:
Aos meus filhos, Troy Phelan Júnior, Rex Phelan, Libbigail Jeter, Mary Ross Jackman, Geena Strong e Ramble Phelan, deixo a cada um uma soma em dinheiro necessária para pagar todas as suas dívidas até à data. Quaisquer dívidas em que incorram a partir de hoje não serão abrangidas por esta doação. No caso de qualquer destes meus descendentes tentar impugnar a validade deste testamento, a doação que lhe cabia será automaticamente anulada.
Às minhas ex-mulheres, Lillian, Janie e Tira não deixo nada. Na sequência dos processos de divórcio todas foram adequadamente providas em termos monetários.
O remanescente dos meus bens será herdado pela minha filha Rachel Lane, nascida a 2 de Novembro de 1954, no Hospital Católico, em Nova Orleães, Louisiana, de uma mulher de nome Evelyn Cunningham, que já faleceu.»
Stafford nunca ouvira falar daquelas duas mulheres. Foi obrigado a recuperar o fôlego antes de poder prosseguir.
«Nomeio o meu advogado, Joshua Stafford, depositário de toda a minha confiança, como testamenteiro deste testamento, concedendo-lhe plenos poderes, sem quaisquer restrições, na execução do mesmo.
Este documento foi holografado por mim e contém as minhas últimas vontades. Todas as palavras foram escritas pelo meu punho e passo a assiná-lo.
Assinado no dia 9 de Dezembro de 1996, às quinze horas, por Troy L. Phelan.»
Stafford colocou o documento em cima da mesa pestanejando para a câmara. Estava a precisar de dar um passeio em redor do edifício, talvez uma rajada daquele ar gélido lhe fizesse bem, mas obrigou-se a continuar. Agarrou na terceira folha de papel dando seguimento ao assunto.
- Esta é uma nota composta por um parágrafo que, uma vez mais, me é endereçada. Vou proceder à sua leitura. «Josh: Rachel Lane é uma missionária da organização Tribos Universais, presentemente em missão na fronteira Brasil-Bolívia. Trabalha junto de uma tribo índia numa região remota conhecida pelo nome de Pantanal. A cidade mais próxima é Corumbá. Foi-me impossível descobrir o seu paradeiro. Durante os últimos vinte anos não mantive qualquer contacto com ela. Assinado por Troy Phelan.»
Durban desligou a câmara de filmar começando a andar em redor da mesa, cujo perímetro percorreu duas vezes, enquanto Stafford lia e relia aquele documento.
- Sabias que ele tinha uma filha ilegítima?
Com um olhar abstracto, Stafford fitava uma das paredes da sala.
- Não. Elaborei doze testamentos a pedido de Troy e ele nunca mencionou a existência dessa filha.
- Calculo que não nos devíamos sentir surpreendidos.
Stafford declarara em várias ocasiões que era incapaz de ser surpreendido por Troy Phelan. Tanto nos negócios como na sua vida particular, o homem mostrara-se sempre extravagante e caótico. Stafford ganhara milhões correndo atrás do seu cliente para apagar os fogos que ele ateava.
Mas, de facto, sentia-se abismado. Tinha acabado de testemunhar um suicídio em circunstâncias bastante dramáticas, durante o qual um homem que estivera confinado a uma cadeira de rodas inopinadamente se erguera, começando a correr. Naquele momento, encontrava-se de posse de um testamento válido que, nuns escassos parágrafos redigidos apressadamente, nomeava como herdeira de uma das maiores fortunas do mundo uma desconhecida, sem a menor indicação de planeamento em relação aos bens. O imposto sucessório seria brutal.
- Estou a precisar de uma bebida, Tip - disse Stafford.
- Ainda é um bocado cedo.
Ambos se dirigiram para a porta contígua entrando no gabinete do senhor Phelan, onde encontraram tudo aberto. A actual secretária, e todos os outros que trabalhavam no décimo quarto andar, continuavam no piso térreo.
Depois de terem entrado trancaram a porta e, apressadamente, começaram a inspeccionar as gavetas de secretárias e armários-arquivo. Troy havia esperado que procedessem daquela maneira. Noutras circunstâncias, nunca teria deixado os seus espaços particulares por fechar. Soubera de antemão que Stafford agiria de imediato. Na gaveta do meio da sua mesa de trabalho, encontraram um contrato celebrado com um crematório em Alexandria, com data de há cinco semanas. Por baixo deste havia uma pasta com documentação relativa às Missões Tribos Universais.
Reuniram tudo o que pudessem levar consigo e foram à procura de Snead, instruindo-o para que fechasse o gabinete à chave.
- O que é que o último testamento contém? - perguntou este. Estava pálido e tinha os olhos inchados. O senhor Phelan não podia morrer daquela maneira sem que lhe legasse qualquer coisa, alguns meios que lhe permitissem sobreviver. Fora um serviçal fiel ao longo de trinta anos.
- Não lhe posso dizer - respondeu Stafford. - Voltarei amanhã para inventariar tudo isto. Não permita a entrada a quem quer que seja.
- Claro que não - anuiu Snead numa voz sussurrada, recomeçando a chorar.
Stafford e Durban passaram a meia hora seguinte com um polícia numa situação de rotina. Mostraram-lhe o local onde Troy saltara por cima do gradeamento, facultando-lhe o nome das testemunhas e descrevendo, sem grandes pormenores, o conteúdo da última carta e testamento. Não restava a mais pequena dúvida de que se tratava de um suicídio. Antes de sair do edifício, o polícia deu o caso por encerrado assim que recebesse o relatório da autópsia.
Foram encontrar o cadáver nas instalações do médico-legista, onde se inteiraram da forma como a autópsia seria efectuada.
- Por que é que estamos tão interessados nesta autópsia? - perguntou Durban numa voz segredada enquanto aguardavam por alguns papéis.
- Para que a inexistência de estupefacientes fique comprovada, assim como de álcool. Nada que pudesse ter afectado as capacidades de raciocínio de Troy Phelan. Ele pensou em tudo.
Eram quase dezoito horas quando conseguiram ir a um bar no hotel Willard, próximo da Casa Branca, a dois quarteirões do escritório dos dois advogados. Só depois de uma bebida bem forte é que Stafford conseguiu esboçar o primeiro sorriso.
- Ele pensou em tudo, não é verdade?
- Ele é um homem deveras cruel - comentou Durban, embrenhado nos seus pensamentos. O choque já começara a dissipar-se, contudo, a realidade começava a instalar-se.
- Era, queres tu dizer.
- Não. Ele continua connosco. Troy continua a puxar os cordelinhos todos.
- És capaz de imaginar o dinheiro que aqueles idiotas vão gastar no próximo mês?
- Na minha opinião, é um crime não lhes darmos conhecimento.
- Não podemos. Recebemos as nossas ordens.
Para os advogados cujos clientes só raramente falam uns com os outros, a reunião foi um momento de insólita cooperação. O maior egocentrista presente na sala era Hark Gettys, um litigante turbulento que representava os interesses de Rex Phelan havia já vários anos. Hark insistira para que aquela reunião se realizasse pouco depois de ter regressado ao seu escritório na Avenida Massachusetts. De facto, ele segredara uma ideia aos advogados que representavam TJ e Libbigail na altura em que estes observavam o corpo do velho que era colocado na ambulância.
Era uma ideia tão boa que os outros advogados não podiam apresentar quaisquer objecções. Chegaram aos escritórios de Gettys depois das dezassete horas, acompanhados de Flowe, Zadel e Theishen. Eram aguardados por um estenógrafo do tribunal e por duas câmaras de vídeo.
Por razões mais que evidentes, o suicídio era responsável pelo nervosismo que sentiam. Cada um dos psiquiatras foi interrogado separada e individualmente durante muito tempo, a fim de darem as suas impressões quanto ao estado do senhor Phelan antes de saltar da varanda.
Entre os três não havia resquício de dúvida quanto ao facto de o senhor Phelan ter sabido com toda a exactidão o que se propusera fazer, afirmando que ele se encontrara de posse de todas as suas faculdades mentais, pelo que a sua competência testamentária era mais do que suficiente para o efeito. A insanidade mental não é um requisito indispensável para que alguém cometa suicídio, fizeram eles questão de acentuar, à cautela.
Quando os advogados, em número de treze, conseguiram reunir todas as informações possíveis, Gettys deu a reunião por encerrada. Eram quase vinte horas.
De acordo com o que a Forbes dizia, Troy Phelan fora o décimo homem mais rico dos Estados Unidos. A sua morte era uma notícia digna de relevo; a maneira que escolhera para morrer era absolutamente sensacional.
No exterior, na rua da mansão onde Lillian morava, em Falis Church, reunira-se um grande grupo de repórteres que aguardavam quaisquer declarações que fossem feitas por um porta-voz da família. Filmavam amigos e vizinhos à medida que estes entravam e saíam, atirando para o ar perguntas banais quanto ao estado de espírito dos familiares.
No interior da casa, os filhos mais velhos de Phelan reuniam-se com as respectivas mulheres e filhos, recebendo as condolências que lhes eram apresentadas. Sempre que os visitantes se encontravam presentes os ânimos mostravam-se acabrunhados. Logo que estes partiam, a disposição alterava-se dramaticamente. A presença dos netos de Troy - em número de onze - forçava TJ, Rex, Libbigail e Mary Ross a, no mínimo dos mínimos, tentarem suprimir os sentimentos de júbilo. Era uma tarefa difícil. Eram servidos champanhe e vinhos finos em quantidades abundantes. O velho Troy não teria desejado que eles chorassem a sua morte, não seria verdade? Os netos mais velhos bebiam mais do que os progenitores.
Na sala onde a família costumava fazer as refeições havia um televisor sintonizado para o canal da CNN; de trinta em trinta minutos, reuniam-se junto do televisor para se inteirarem das últimas notícias da dramática morte de Troy. Houve um correspondente financeiro que apresentou uma peça de dez minutos onde abordou a imensidão da fortuna de Phelan, o que fez com que todos sorrissem.
Lillian conseguia manter o lábio superior num trejeito de rigidez, uma façanha bastante credível em que se apresentava como a viúva sofredora. Amanhã trataria das providências necessárias.
Hark Gettys chegou por volta das dez horas, explicando à família que tinha falado com Josh Stafford. Não haveria lugar a funeral, nem tão-pouco a qualquer tipo de serviço religioso; somente uma autópsia seguida da cremação e uma disseminação das cinzas. Eram instruções dadas por escrito, e Stafford estava preparado para se bater em tribunal com o intuito de proteger os últimos desejos do seu cliente.
Lillian estava-se positivamente nas tintas para o destino que dessem ao corpo de Troy Phelan, atitude que também era partilhada pelos seus filhos. No entanto, tinham de protestar e levantar objecções ao que Gettys lhes dizia. Não lhes parecia que fosse correcto mandá-lo para o outro mundo sem um serviço religioso. Libbigail até chegou ao ponto de verter uma lágrima enquanto falava numa voz entrecortada.
- No vosso lugar, não me oporia ao que ele quis - aconselhou Gettys mostrando uma expressão solene. - O senhor Phelan deu estas instruções por escrito momentos antes de morrer, pelo que os tribunais farão cumprir a sua última vontade
Rapidamente, a família mudou de opinião. Não fazia qualquer sentido perder muito tempo e dinheiro em despesas de carácter judicial. Era desnecessário prolongar o sofrimento. Por que haveriam eles de piorar a situação? Em qualquer dos casos, Troy levara sempre a sua avante. Além do mais, já tinham aprendido à sua custa que não valia a pena entrar em complicações com Josh Stafford.
- Estamos dispostos a obedecer aos desejos dele - disse Lillian; os outros quatro, por detrás da mãe, acenaram com a cabeça mostrando uma expressão de tristeza.
Não foi feita menção alguma ao testamento nem quanto à data em que poderiam examiná-lo, se bem que a questão se mantivesse latente no pensamento de todos. Era preferível que se mostrassem adequadamente pesarosos durante mais algumas horas, após o que poderiam meter mãos à obra. Uma vez que não haveria um velório, funeral, ou serviço religioso, talvez fosse possível encontrarem-se logo no dia seguinte, a fim de discutirem os bens deixados pelo falecido.
- Qual o motivo da autópsia? - perguntou Rex.
- Não faço a mais pequena ideia - redarguiu Gettys. - Stafford disse que foi indicada por escrito, mas até ele mesmo não tinha a certeza.
Depois de Gettys se ter ido embora, todos beberam um pouco mais. As visitas deixaram de aparecer e Lillian decidiu ir para a cama. Libbigail e Mary Ross saíram com as suas famílias. TJ e Rex foram para a sala de bilhar na cave, onde trancaram a porta e mudaram para o whisky. À meia-noite, batiam bolas em redor da mesa, bêbedos que nem um cacho, celebrando a fabulosa fortuna que lhes coubera em sorte.
Às oito horas do dia seguinte ao da morte do senhor Phelan, Josh Stafford dirigiu-se aos ansiosos directores do Grupo Phelan. Dois anos antes, o próprio Josh fora nomeado pelo senhor Phelan para membro do conselho de administração, embora aquele fosse um cargo que não lhe agradava desempenhar.
Ao longo dos últimos seis anos, o Grupo Phelan operara de maneira bastante rentável, sem necessidade de grande assistência por parte do seu fundador. Por qualquer razão, provavelmente devido a um estado de depressão, Troy perdera todo o interesse na gestão do dia-a-dia do seu império empresarial. Dava-se por satisfeito com a simples tarefa de se manter ao corrente dos mercados financeiros e relatórios de rendimentos.
O administrador actual era Pat Solomon, um homem de confiança da companhia, que Troy contratara há quase vinte anos. Este mostrava tanto nervosismo quanto os outros sete quando Stafford entrou na sala.
Existiam sobejas razões para aquela ansiedade. No âmbito da cultura da empresa haviam sido acumuladas inúmeras informações referentes às mulheres e filhos de Troy. A mais vaga alusão que indicasse uma transferência de propriedade do Grupo Phelan, fosse de que maneira fosse, para as mãos dessa gente, aterrorizaria qualquer conselho de administração.
Josh começou por anunciar a última vontade do senhor Phelan com referência à sua sepultura.
- Não haverá nenhum funeral - esclareceu sombriamente. - Para vos ser franco, devo dizer-vos que não há maneira de se poder apresentar uma última homenagem.
Todos apreenderam o significado daquelas palavras sem fazerem qualquer comentário. Na eventualidade do falecimento de qualquer pessoa normal, essa lacuna seria vista com estranheza. Mas dado que se tratava de Troy Phelan, era difícil que alguém se mostrasse desconcertado.
- Quem é que passará a deter o controlo do grupo? - perguntou Solomon.
- Neste momento, não posso adiantar nada sobre esse assunto - respondeu Stafford bem ciente do quanto a sua resposta era evasiva e pouco satisfatória. - Momentos antes de saltar pela varanda, Troy assinou um testamento, instruindo-me para que não o divulgasse por um determinado período de tempo. Não posso, seja em que circunstâncias for, dar a conhecer o seu conteúdo. Pelo menos, de momento.
- Então quando?
- Dentro em breve. Mas não agora.
- Sendo assim, os negócios continuam a decorrer como até à data, certo?
- Exactamente. Este conselho de administração não sofrerá alteração alguma; toda a gente deve continuar a ocupar os seus postos. Amanhã proceder-se-á na companhia tal como se fez na semana passada.
Ninguém via o mínimo inconveniente naquilo, todavia, ninguém acreditava. A titularidade da empresa estava prestes a mudar de mãos. Troy nunca fora apologista da partilha de acções dentro do Grupo Phelan. Pagara generosamente aos seus empregados, mas não acompanhou a tendência de permitir que fossem, ainda que parcialmente, donos da empresa. Existiam uns escassos funcionários, merecedores da sua preferência, que detinham três por cento das acções. Passaram uma hora a discutir a redacção de um comunicado à imprensa, após o que deram a reunião por encerrada até dali a um mês.
Stafford encontrou-se com Tip Durban no vestíbulo, e juntos seguiram de automóvel para o escritório do médico-legista, em McLean. A autópsia fora concluída.
A causa da morte era óbvia. Não haviam sido encontrados vestígios de doença cancerosa. À altura da sua morte, Troy Phelan estava de boa saúde, embora um tudo-nada mal alimentado.
Tip quebrou o silêncio enquanto atravessavam o rio Potomac através da ponte Roosevelt.
- Ele disse-te que tinha um tumor cerebral?
- Sim, em várias ocasiões. - Stafford continuava a conduzir, apesar de ser evidente que se encontrava alheado das estradas, pontes, ruas e dos outros automóveis. Quantas mais surpresas é que Troy lhes reservaria?
- Por que é que ele terá mentido?
- Quem sabe? Estás a tentar analisar um homem que há pouco saltou do último andar de um prédio. A existência de um tumor cerebral imprimiu uma grande urgência a tudo. Todos, incluindo eu, pensávamos que ele estava à beira da morte. A excentricidade fez com que o painel de psiquiatras parecesse uma bela ideia. Ele armou a cilada, estes apressaram-se a cair nela, e agora são os próprios psiquiatras, contratados pelos familiares, que juram que Troy estava de posse de todas as suas faculdades mentais. Mais ainda, ele pretendia que lamentassem a sua pouca sorte.
- Mas o certo é que ele era louco, não achas? Ao fim e ao cabo, não esqueçamos que ele deu o salto.
- Em muitos aspectos, Troy era desarranjado do juízo, mas sabia exactamente o que é que estava a fazer.
- O que é que o terá levado a saltar?
- Um estado depressivo. Era um homem de idade avançada e extremamente solitário.
Haviam chegado à Avenida Constitution, ficando parados no meio de um trânsito intenso; ambos olhavam abstractamente para as luzes traseiras das viaturas diante de si, tentando destrinçar aquele assunto.
- Dá a impressão de se tratar de um caso fraudulento - adiantou Durban. - Ele atraiu-os mediante a promessa de dinheiro; satisfez as dúvidas dos psiquiatras das famílias, e depois, no último instante, assina um testamento que os ludibria completamente.
- De facto, foi fraudulento, mas há que levar em consideração que se trata de um testamento e não de um contrato. Um testamento é uma doação. Ao abrigo da lei em vigor na Virgínia, ninguém é obrigado a deixar um cêntimoaos filhos.
- Mas eles vão contra-atacar, não te parece?
- Provavelmente. Eles têm muitos advogados. Há demasiado dinheiro em jogo.
- Por que razão é que ele os teria odiado tanto?
- Estava convencido de que eles eram como sanguessugas. Faziam com que se envergonhasse deles. Estavam sempre em discussão com ele. Jamais ganharam um cêntimo honesto, e não obstante conseguiram desbaratar muitos dos seus milhões. Troy nunca planeou deixar-lhes fosse o que fosse. Concluiu que se eles eram capazes de dilapidar milhões, também estariam aptos a esbanjar milhares de milhões. E tinha toda a razão.
- Até que ponto é que lhe cabia a responsabilidade das discussões familiares?
- Em muito. Troy era um homem de quem era difícil gostar. Houve uma altura em que me disse ter sido um mau pai e um marido execrável. Era incapaz de manter as mãos afastadas das outras mulheres, especialmente das que trabalhavam para ele. Pensava que elas eram propriedade sua.
- Estou recordado de algumas queixas de assédio sexual.
- Sem grandes alardes, conseguimos chegar sempre a um acordo. E por grandes montantes. Troy não desejava passar por constrangimentos dessa natureza.
- Achas que existe alguma possibilidade de haver mais herdeiros desconhecidos por aí?
- Duvido muito. Mas quem sou eu para saber? Jamais me passou pela cabeça que ele tivesse outra herdeira, e a ideia de lhe deixar tudo o que possuía é algo que escapa à minha compreensão. Troy e eu passámos horas a falar dos seus bens e na melhor maneira de os partilhar.
- Como é que vamos conseguir encontrá-la?
- Não sei. Ainda não comecei a pensar nela.
O escritório de advogados Stafford encontrava-se num estado frenético quando Josh regressou ao escritório. De acordo com os padrões de Washington, era considerada de pequena dimensão - apenas sessenta advogados. Josh era o fundador e sócio maioritário. Tip Durban e outros quatro eram apelidados de sócios, o que significava que, ocasionalmente, Josh ouvia o que estes tinham para dizer, dando-lhes a partilhar uma fatia dos lucros. Durante trinta anos fora uma firma um tanto anárquica que defendia processos litigiosos, mas ao aproximar-se dos sessenta anos, Josh passara a dispender menos tempo na sala dos tribunais e mais sentado à sua secretária sempre apinhada de papéis. Poderia ter tido a colaboração de uma centena de advogados, caso desejasse ex-senadores, defensores de grupos de interesses, analistas legislativos, enfim, a formação característica de D. C. Todavia, Josh adorava julgamentos e salas de tribunal, contratando apenas jovens associados que no mínimo já tinham defendido dez casos na presença de um júri.
A média de carreira de um litigante é de vinte e cinco anos. Geralmente, o primeiro ataque cardíaco esfria-lhes o ímpeto o suficiente para atrasar o segundo. Josh evitara chegar ao ponto de exaustão tratando das necessidades labirínticas, em termos jurídicos, do senhor Phelan - aplicações financeiras, antimonopólios, fusões empresariais e assuntos de natureza pessoal.
Deparou com três grupos de associados que aguardavam na vasta sala de recepção do seu escritório. Duas secretárias empurraram memorandos e mensagens telefónicas na sua direcção, enquanto despia o sobretudo e se instalava à sua mesa de trabalho.
- Quais é que são as mais urgentes? - perguntou Stafford.
- Esta, penso eu - respondeu uma das secretárias.
Era de Hark Gettys, um homem com quem Josh tivera oportunidade de falar, pelo menos três vezes por semana, ao longo do último mês. Ligou o número tendo sido imediatamente atendido por Hark. Com brevidade deram por terminadas as habituais trocas de saudações, após o que Hark foi logo direito ao assunto.
- Ouve, Josh, podes imaginar como é que eu tenho a família Phelan à perna.
- Tenho a certeza disso.
- Eles querem ver o diabo do testamento, Josh. Ou, no mínimo, pretendem inteirar-se do conteúdo.
As poucas frases que seriam ditas a seguir eram cruciais, o que levara Josh a planeá-las com todo o cuidado.
- Não andes tão depressa, Hark.
- Porquê? Existe algum problema? - perguntou Hark depois de uma pequeníssima pausa.
- O suicídio deixou-me um certo mal-estar - respondeu Josh.
- O quê! O que é que pretendes dizer?
- Vê bem, Hark, como é que qualquer homem poderá estar são de mente segundos antes de saltar para a morte?
A voz irritadiça de Hark subiu uma oitava deixando transparecer nas palavras um acréscimo de ansiedade.
- Mas tu ouviste os nossos psiquiatras. Que raio, está tudo gravado em fita magnética.
- À luz do suicídio, eles continuam a manter as opiniões que deram?
- Podes apostar que sim!
- Podes provar isso? Eu ando à procura de ajuda para este assunto, Hark.
- Josh, ontem à noite voltámos a pôr à prova a opinião dos nossos três psiquiatras, e eles mantêm-se firmes como uma rocha. Cada um deles assinou um depoimento ajuramentado composto por oito páginas, no qual juram que o senhor Phelan se encontrava inteiramente de posse das suas capacidades mentais.
- Permites-me que veja esses depoimentos?
- Vou enviá-los imediatamente ao teu cuidado através de um estafeta.
- Por favor, faz isso. - Josh desligou o telefone sorrindo para ninguém em particular. Os associados receberam ordem de entrada, três grupos de jovens advogados, brilhantes e ousados. Sentaram-se em redor de uma mesa de mogno situada a um canto do gabinete.
Josh começou por sumariar o conteúdo do testamento de Troy Phelan, escrito pelo seu punho, abordando os obstáculos de ordem jurídica a que, plausivelmente, daria origem. A primeira equipa foi destacada para se ocupar da pesada tarefa referente à capacidade testamentária. Josh sentia-se preocupado com a questão do tempo, o período que mediara entre a lucidez e a insanidade. Queria uma análise de todos os casos que se relacionassem, ainda que remotamente, com a assinatura de um testamento por uma pessoa que fosse considerada mentalmente incapaz.
A segunda equipa foi despachada com a incumbência de investigar testamentos holografados; especificamente, as melhores maneiras de os atacar e defender.
Quando ficou a sós com a terceira equipa, Stafford sentou-se relaxando-se. Aqueles eram os que tinham sorte, uma vez que não seriam forçados a passar os três dias seguintes enfiados numa biblioteca.
- Vou confiar-vos a missão de encontrarem uma pessoa que, desconfio bastante, não deseja ser encontrada.
Pô-los ao corrente de tudo o que sabia sobre Rachel Lane. Não era muito. A pasta com documentação que encontrara na secretária de Troy proporcionava poucas informações.
- Em primeiro lugar, há que investigar a organização Missões Tribos Universais. Quem são? Como é que operam? Como é que seleccionam as pessoas que trabalham com eles? Para onde é que as enviam? Em suma, tudo. Em segundo lugar, existem algumas agências excelentes especializadas em descobrir o paradeiro de pessoas desaparecidas, sediadas em D. C. Habitualmente, são formadas por antigos agentes do FBI, assim como por pessoas que trabalharam em outros organismos governamentais. Seleccionem as duas melhores e amanhã tomaremos uma decisão. Em terceiro lugar, saibam que o nome da mãe de Rachel era Evelyn Cunningham, já falecida. Vamos compilar dados biográficos sobre ela. Vamos supor que ela e o senhor Phelan se envolveram num romance de onde nasceu uma criança.
- Vamos supor? - perguntou um dos associados.
- Sim. Não tomamos nada por garantido.
Stafford dispensou os jovens advogados, após o que se dirigiu a uma sala onde Tip Durban organizara uma pequena conferência de imprensa. Nada de câmaras de filmar, somente a imprensa escrita. Estavam presentes doze repórteres, ávidos de notícias, sentados à volta de uma mesa redonda, munidos de gravadores e microfones espalhados um pouco por todo o lado. Pertenciam a jornais de grande tiragem, assim como a publicações financeiras de renome.
As perguntas tiveram início. Sim, existia um testamento que fora apresentado no último minuto, mas ele não podia revelar o conteúdo. Sim, tinha havido uma autópsia, mas não podia abordar esse assunto. A companhia continuaria a ser gerida sem quaisquer alterações. Não podia pronunciar-se sobre quem seriam os novos proprietários.
Não constituindo surpresa para ninguém, ficou bem patente que as famílias tinham passado o dia a falar em particular com os repórteres.
- Existe um forte rumor que diz que o último testamento do senhor Phelan divide a sua fortuna entre os seis filhos. Pode confirmar, ou negar, este boato?
- Não posso. Não passa de um boato.
- Confirma que ele estava a morrer de doença cancerosa?
- Isso ficará apurado aquando da autópsia; até lá, não posso tecer qualquer comentário.
- Chegou-nos informação de que ele foi examinado por um painel de psiquiatras pouco antes da sua morte, os quais concluíram que ele se encontrava mentalmente são. Pode confirmar esta informação?
- Sim - respondeu Stafford -, é verdade. - Em face daquela resposta, os repórteres passaram os vinte minutos seguintes a tentar esmiuçar o exame mental até à exaustão. Josh manteve-se firme, permitindo-se dizer apenas que o senhor Phelan «parecera» estar de posse das suas faculdades mentais.
Por seu lado, os repórteres especializados em assuntos financeiros queriam números. Porque o Grupo Phelan era uma empresa privada, que se rodeava de grande sigilo, sempre fora difícil obter esse tipo de informações. Esta era uma oportunidade para abrir uma brecha na muralha, ou assim pensavam. Contudo, Josh deu-lhes muito pouco.
Decorrida uma hora, pediu que o desculpassem e regressou ao seu gabinete, onde foi informado por uma secretária que tinham telefonado do crematório. Os restos mortais do senhor Phelan aguardavam que alguém os reclamasse.
TJ tratou da sua ressaca até ao meio-dia, altura em que bebeu uma cerveja decidindo que estava na hora de impor a sua vontade. Ligou para o seu advogado principal para que este o pusesse a par dos últimos acontecimentos, ao que o advogado o aconselhou a ter paciência.
- Este assunto vai levar algum tempo, TJ - disse-lhe este.
- Talvez eu não esteja com disposição para esperar - ripostou TJ sentindo uma dor de cabeça lancinante.
- Vamos esperar uns dias.
TJ bateu com o auscultador no descanso e encaminhou-se para as traseiras do andar sujo onde vivia, sentindo-se grato por não ter esbarrado com a sua mulher. Já tinham discutido três vezes e pouco passava do meio-dia. Talvez ela tivesse ido às compras para gastar uma fracção da fortuna que lhes coubera recentemente. A partir de agora, as compras não o incomodariam.
- O bode velho morreu - disse ele em voz alta. Estava sozinho em casa.
Os seus dois filhos encontravam-se longe, na faculdade; os estudos eram custeados por Lillian, que ainda possuía algum do dinheiro que extorquira a Troy aquando do divórcio, há uns anos largos atrás. Portanto, TJ vivia sozinho com Biff, uma divorciada de trinta anos cujos dois filhos viviam com o pai. Biff era uma mediadora certificada de bens imobiliários, vendendo pequenos apartamentos feitos à medida dos recém-casados.
Abriu outra cerveja e começou a mirar-se no espelho de corpo inteiro do vestíbulo.
- Troy Phelan Júnior - proclamou. - Filho de Troy Phelan, o décimo homem mais rico da América, com um valor líquido de onze mil milhões de dólares, já falecido, que deixou esposas queridas e filhos amantíssimos; todos passaremos a amá-lo ainda mais depois de o testamento ter sido legitimado!
Naquele preciso momento decidiu que a partir dessa data TJ desapareceria, passando a viver o resto da sua vida sob o nome de Troy Phelan Júnior. Aquele nome era pura magia.
Do interior do andar emanava um certo cheiro desagradável porque Biff se recusava a executar qualquer tarefa doméstica. Andava muito ocupada com os seus telefones celulares. Os soalhos estavam cobertos de lixo, mas as paredes não tinham nada. O mobiliário fora alugado a uma empresa que já contratara advogados para se reapossar de tudo. TJ deu um pontapé num sofá.
- Venham buscar esta trampa! - gritou. - Não há-de faltar muito tempo para eu poder contratar os serviços de vários decoradores.
Estava quase a sentir vontade de deitar fogo à casa. Mais uma cerveja ou duas e era possível que começasse a brincar com fósforos.
Vestiu o seu melhor fato, um cinzento que usara no dia anterior quando o Querido Velho Papá enfrentara os psiquiatras, tendo-se saído maravilhosamente da situação. Dado que não haveria funeral, não seria obrigado a sair para comprar precipitadamente um fato preto.
- Amiani, aqui vou eu. - Assobiou cheio de contentamento enquanto fechava o fecho de correr das calças.
Pelo menos tinha um BMW. Era possível que vivesse num pardieiro, mas o mundo jamais teria oportunidade de o visitar. No entanto, o seu carro não passava despercebido ao mundo, consequentemente, todos os meses se esforçava por arranjar seiscentos e oitenta dólares para pagar a prestação do carro que comprara em sistema de leasing. Amaldiçoou o andar ao mesmo tempo que fazia marcha-atrás no parque de estacionamento. Era um de oitenta novos apartamentos construídos em redor de uma piscina pouco funda, numa zona de Manassas excessivamente populosa.
Fora criado em condições bastante melhores. Durante os seus primeiros vinte anos, a vida fora de bem-aventurança, rodeada de luxo, e depois entrara de posse do seu legado. Todavia, os cinco milhões dissiparam-se antes de ter atingido os trinta anos, o que lhe merecera o desprezo do pai.
Costumavam discutir ardorosa e regularmente. Júnior tivera vários empregos nas empresas do Grupo Phelan, mas todos haviam terminado em desastre. O pai despedira-o em numerosas ocasiões. Quando Troy Sénior tinha uma ideia para um negócio qualquer, dois anos mais tarde, essa mesma ideia passara a valer milhões. Por seu lado, as ideias de Júnior terminavam sempre na falência e em processos litigiosos.
Nos últimos anos, as discussões quase tinham deixado de existir. Nenhum dos dois conseguia mudar, assim limitavam-se a ignorar-se mutuamente. Mas quando o pai começou a sofrer de um suposto tumor, TJ voltou a reatar relações com ele.
A mansão que iria construir! E já sabia quem seria o arquitecto, uma mulher japonesa de Manhattan de quem tivera conhecimento através de uma revista. Dentro de um ano, muito provavelmente, mudar-se-ia para Malibu, Aspen ou Palm Beach, locais onde poderia exibir o seu dinheiro passando a ser levado a sério.
- O que é que uma pessoa poderá fazer com quinhentos milhões de dólares? - perguntou a si próprio ao rolar velozmente pela estrada interestadual. - Quinhentos milhões de dólares livres de impostos. - Começou a rir-se.
Fora um conhecido quem lhe tratara do contrato de leasing do seu automóvel, junto de um concessionário das marcas BMW-Porsche. Júnior entrou no salão de exposição como se fosse o rei do mundo, caminhando todo empertigado e sorrindo presunçosamente. Poderia comprar todo o estabelecimento se lhe apetecesse. Avistou o jornal da manhã em cima da secretária de um dos vendedores; leu um título de um negro carregado que lhe deu muita satisfação; noticiava a morte do pai. Nem uma centelha de desgosto.
O gerente, Dickie, saiu apressadamente do seu gabinete.
- TJ, lamento muito - disse à guisa de pêsames.
- Obrigado - retorquiu Troy Júnior com um ligeiro franzir do sobrolho. - Sabe, para ele foi melhor assim.
- Seja como for, lamento muito.
- Esqueça o assunto. - Ambos entraram no gabinete fechando a porta.
- O jornal diz que ele assinou um testamento momentos antes de morrer - acrescentou Dickie. - Isso é verdade?
Troy Júnior já começara a examinar as elegantes brochuras que apresentavam os últimos modelos.
- Sim. Eu estive presente. Ele dividiu todos os bens em seis partes iguais, uma para cada um de nós. - TJ disse aquilo sem erguer o olhar, num timbre de voz assaz casual, como se o dinheiro já estivesse na sua mão, tendo começado, desde já, a transformar-se num fardo.
Dickie ficou de queixo descaído, afundando-se mais na cadeira. Estaria ele, de súbito, na presença de uma verdadeira abastança? Aquele fulano, TJ Phelan, um inútil sem qualquer mérito, seria agora um milionário? À semelhança de todos os que conheciam TJ, Dickie sempre partira do princípio de que o velho o tinha eliminado para sempre do seu testamento.
- A Biff gostaria de ter um Porsche - informou TJ Júnior continuando a examinar as brochuras. - Um turbo Carrela 911 vermelho equipado com os dois tejadilhos.
- Quando?
- Agora - respondeu TJ olhando fixamente para o vendedor.
- Com certeza, TJ. E quanto ao pagamento?
- Tenciono pagá-lo na mesma altura em que pagar pelo meu, em preto, também um novecentos e onze. Quanto é que os dois custam?
- Aproximadamente noventa mil cada um.
- Isso não constitui problema algum. Quando é que pode fazer a entrega?
- Primeiro tenho de os encomendar, o que deve levar um dia ou dois. Pagamento em dinheiro?
- Evidentemente.
- Quando é que recebe o dinheiro?
- Dentro de mais ou menos um mês. Mas quero os dois carros agora. Dickie ficou com a respiração suspensa mostrando-se um pouco
agitado.
- Veja uma coisa, TJ, eu não posso entregar dois carros novos, assim sem mais nem menos, sem que haja uma entrada qualquer.
- Muito bem. Nesse caso, vamos ver Jaguars. A Biff sempre quis um Jaguar.
- Deixe-se disso, TJ.
- Não sei se sabe que eu podia comprar tudo isto. Neste preciso momento, posso ir a qualquer banco e pedir dez ou vinte milhões, qualquer que fosse o montante para comprar este lugar, e seria com toda a satisfação que eles me dariam esse dinheiro por sessenta dias. Está a compreender o que acabei de lhe dizer?
A cabeça de Dickie abanou para cima e para baixo, os olhos estreitaram-se. Sim, compreendia.
- Quanto é que ele lhe deixou?
- O suficiente para poder comprar, também, o banco. Tenciona entregar-me os carros ou vou ter de ir a outro lado?
- Vou ver o que posso fazer.
- Um homem esperto - retorquiu TJ. - Despache-se. Volto cá esta tarde. Comece já a telefonar. - Lançou as brochuras para cima da secretária de Dickie e, com uma postura empertigada, saiu do gabinete.
A noção que Ramble tinha de um período de luto era passar o dia fechado na cave a fumar erva, ouvindo música rap e ignorando todos os que batessem à porta ou telefonassem. A mãe permitira-lhe que faltasse à escola devido à tragédia que se abatera sobre a família; de facto, autorizara-o a faltar durante o resto da semana. Se se mantivesse minimamente a par da vida escolar do filho, teria sabido que há um mês que ele não punha os pés nas aulas.
No dia anterior, depois de terem saído da Torre Phelan, e já dentro do automóvel, o advogado de Ramble dissera-lhe que o dinheiro iria para um fideicomisso até ele fazer os dezoito ou vinte e um anos de idade, dependendo dos termos estipulados no testamento. E embora ele não pudesse, para já, tocar no dinheiro, certamente que teria direito a uma generosa mesada.
Tencionava formar uma banda e com o dinheiro gravariam discos. Tinha amigos que faziam parte de bandas que não conseguiam chegar a lado nenhum porque não tinham dinheiro para alugar tempo de estúdio, mas o caso dele seria diferente. A sua banda teria o nome de Ramble, decidiu ele, tocaria baixo e seria o vocalista principal, passando a ser perseguido pelas raparigas. Dedicar-se-ia a um tipo de música rock alternativo com fortes influências de rap, algo de novo na cena musical. Qualquer coisa que já se encontrava em estado embrionário.
Dois pisos mais acima, no escritório da sua espaçosa casa, Tira, a mãe, passara o dia todo a tagarelar ao telefone com as amigas, que lhe ligaram para lhe apresentar umas condolências pouco sentidas. A maior parte das amigas tagarelaram durante o tempo suficiente para perguntarem quanto é que ela poderia receber de herança, mas ela receara pôr-se a adivinhar. Casara-se com Troy em 1982, quando tinha vinte e três anos; antes da realização da cerimónia assinara um acordo pré-nupcial, bastante denso, ao abrigo do qual teria direito a apenas dez milhões e uma vivenda, no caso de divórcio.
Há seis anos que o casal se separara. Já só lhe restavam dois milhões.
As suas necessidades eram imensas. Todas as suas amigas possuíam casas de praia aninhadas em encostas junto de enseadas tranquilas, nas Bahamas; ela via-se relegada para hotéis de luxo. As outras compravam as suas roupas de marca em Nova Iorque; ela era forçada a fazer as suas compras nas lojas locais. Os filhos das amigas viviam distanciados em colégios internos; Ramble encontrava-se na cave de onde se recusava a sair.
Com toda a certeza que Troy lhe teria deixado mais ou menos cinquenta milhões. Um por cento de todos os bens do ex-marido rondaria uma centena de milhões. Um mero um por cento. Tira fez o cálculo num guardanapo de papel enquanto falava ao telefone com o advogado.
Geena Phelan Strong tinha trinta anos, tendo sobrevivido ao que se havia transformado num casamento tumultuoso com Cody, o marido número dois. Ele era de uma família com pergaminhos da região Leste, presumivelmente endinheirada, mas até à data esse dinheiro não passava de meros rumores. Era inquestionável que ela ainda não tinha visto nenhum. Cody recebera uma educação primorosa - Taft e Dartmouth, a par de um curso pós-graduação da Universidade Northwest -, considerando-se um visionário no mundo dos negócios. Fora incapaz de se manter num único emprego. Os seus talentos não podiam estar confinados às paredes de um escritório. Os seus sonhos não seriam restringidos pelas ordens e caprichos de meros patrões. Cody haveria de ser milionário, o que faria à sua custa, e como é evidente, muito provavelmente o mais novo em toda a história.
Mas ao cabo de seis anos de vida a dois, Cody ainda não encontrara o seu nicho. De facto, as suas perdas financeiras deixavam qualquer pessoa siderada. Arriscara-se na especulação de uma mina de cobre, em 1992, um negócio que dera para o torto e que tinha custado mais de um milhão do dinheiro de Geena. E, dois anos mais tarde, ficara escaldado com algumas aplicações financeiras especulativas, quando os mercados de acções desceram drasticamente. Nessa altura, Geena deixara-o durante quatro meses, regressando depois de se submeter a aconselhamento matrimonial. Uma outra ideia, a «Snow-Packed Chickens»(1) também redundou num descalabro financeiro, em que Cody conseguiu escapar com um prejuízo de apenas meio milhão.
O casal gastava muito dinheiro. O conselheiro matrimonial recomendara-lhes que viajassem como meio terapêutico e, por conseguinte, já tinham visto o mundo. O facto de serem jovens e ricos atenuava muitos dos problemas, mas o dinheiro estava prestes a acabar. Os cinco milhões que Troy lhe havia dado por ocasião do seu vigésimo primeiro aniversário estava reduzido a menos de um milhão; simultaneamente, as dívidas de ambos não paravam de aumentar. A pressão a que o casamento se encontrava sujeito chegara ao ponto de rotura, quando Troy Phelan tinha achado por bem saltar da varanda.
Portanto, ambos tiveram uma manhã bastante preenchida à procura de casas em Swinks Mill, o local que traduzia os sonhos mais grandiosos de Geena. À medida que o dia avançava, os sonhos iam progredindo e, por volta da hora do almoço, já haviam começado a pedir informações sobre casas que custavam mais de dois milhões de dólares. Às duas da tarde, encontraram-se com uma agente de bens imobiliários desejosa de lhes agradar, uma mulher de nome Lee, com cabelos frisados, vários anéis de ouro, dois telefones móveis e um Cadillac com uma pintura cintilante.
*1. Literalmente, traduzido do inglês, Galinhas Embaladas em Neve. (N. da T.)
Geena apresentou-se como sendo «Geena Phelan», pronunciando acentuadamente o último nome sem mostrar qualquer pejo. Era evidente que Lee não tinha por hábito ler as publicações financeiras, pelo que o nome não causou qualquer impacto; quando visitavam a terceira casa que a mulher tinha para lhes mostrar, Cody viu-se forçado a chamá-la de parte, segredando-lhe a verdade sobre o seu sogro.
- Esse fulano rico que saltou do último andar de um prédio? - perguntou Lee tapando a boca com a mão. Entretanto, Geena inspeccionava uma pequena divisão num corredor onde fora instalada uma pequena sauna.
Cody confirmou com um acenar de cabeça pesaroso.
Com a chegada do crepúsculo, ambos inspeccionavam uma vivenda vazia cujo preço era de quatro milhões e meio; os compradores em perspectiva pensavam seriamente em fazer uma oferta. Lee jamais vira clientes tão endinheirados que a pusessem num tal frenesi.
Rex, de quarenta e quatro anos, irmão de TJ, era, no momento da morte de Troy, o único dos seus seis filhos que se encontrava sob investigação criminal. Os seus problemas financeiros advinham de um banco que deixara de financiá-lo, o que dera lugar a vários processos judiciais e investigações consequentes, numa catadupa desenfreada. Os auditores bancários e o FBI há três anos que vinham a realizar indagações sem lhe darem tréguas.
A fim de poder custear as despesas com a sua defesa, bem como o dispendioso estilo de vida que levava, Rex adquirira parte do espólio de um homem que fora morto durante um tiroteio: uma cadeia de bares onde as empregadas andavam nuas da cintura para cima e clubes de strippers situados na área de Fort Lauderdale. O negócio da carne humana era lucrativo; o tráfico era sempre bom e o dinheiro chegava-lhe às mãos com facilidade. Sem ser excessivamente ganancioso, embolsava cerca de vinte e quatro mil dólares por mês, livres de impostos; grosso modo, um rendimento de quatro mil por cada um dos seus clubes.
Os clubes funcionavam sob o nome de Amber Rockwell, a sua mulher e antiga stripper, em quem ele reparara pela primeira vez numa bela noite, num bar onde tinha ido. De facto, todos os seus bens se encontravam em nome dela, o que lhe causava bastante ansiedade. Desde que não usasse roupas esquisitas, e na ausência de maquilhagem e sapatos aberrantes, Amber conseguia passar por uma mulher respeitável nos círculos de Washington que ambos frequentavam. As pessoas que estavam a par do passado dela eram em número bastante reduzido. Mas bem no fundo do seu coração, ela era uma prostituta, o que, aliado ao facto de ser a única titular de todos os negócios de Rex, proporcionava ao pobre homem muitas noites de insónia.
Aquando da morte do pai, Rex conseguira acumular contra si um montante de mais de sete milhões de dólares, sob a forma de penhoras e sentenças a favor de credores, sócios dos seus negócios e investidores do banco. E esse total não parava de crescer. Todavia, as sentenças não eram cumpridas, uma vez que não havia nada onde os credores pudessem ir buscar o que lhes era devido. Rex não tinha bens nenhuns em seu nome; não possuía nada, nem sequer o seu próprio automóvel. Ele e ela haviam adquirido um andar e dois Corvettes idênticos, através do sistema de leasing com toda a documentação em nome dela. Os bares e os clubes eram propriedade de uma empresa sediada num país estrangeiro, que ela legalizara sem qualquer menção do nome de Rex. Até à data, este mostrara-se demasiado escorregadio para se deixar apanhar pela lei.
O casamento era tão estável quanto seria de esperar de duas pessoas com antecedentes de instabilidade; iam a muitas festas e tinham amigos para quem as convenções nada significavam; as lapas agarravam-se ao nome de Phelan. A vida era divertida, a despeito das pressões económicas. Mas Rex preocupava-se de forma obsessiva com Amber e com os bens que esta tinha em seu nome. Uma discussão mais grave e ela poderia levar sumiço de um momento para o outro.
Todas essas preocupações terminaram com a morte de Troy Phelan. O prato da balança oscilara, e de súbito Rex encontrou-se na mó de cima; finalmente, o seu apelido valia uma fortuna. Venderia os bares e os clubes, e, de uma só penada, pagaria todas as suas dívidas, após o que aplicaria o dinheiro que lhe restasse. Um só passo em falso e Amber voltaria a ver-se a dançar em cima de mesas, com notas de dólar molhadas presas nas cuecas enfiadas no rego do rabo.
Rex passou o dia com Hark Gettys, o seu advogado. Queria o dinheiro com toda a rapidez, desesperadamente, começando a exercer pressão sobre Gettys para que este telefonasse a Josh Stafford, pedindo-lhe que o deixasse ler os termos do testamento. Rex já começara a delinear grandes planos ambiciosos quanto à forma de gerir o dinheiro; Hark acompanhá-lo-ia em todas as fases daquele processo. Rex almejava controlar o Grupo Phelan. A parte que lhe caberia das acções, qualquer que esta fosse, acrescida ao quinhão de TJ e das duas irmãs, certamente que lhe proporcionaria a maioria das acções, tornando-o sócio majoritário. Mas estariam essas acções ao abrigo de um fideicomisso, tomaria ele imediatamente posse delas, ou teriam sido investidas em uma das cem aplicações tortuosas com que Troy, seguramente, se deleitaria da sua campa?
- É imperioso que tenhamos acesso ao raio do testamento! - gritara ele a Hark ao longo de todo o dia. O advogado acalmou-o com um longo almoço regado com um bom vinho, que foi substituído por whisky às primeiras horas da tarde. Amber passou por casa onde deparou com os dois em eStado de embriaguez, mas não se mostrou irritada - Dadas as circunstâncias, não havia maneira nenhuma de Rex fazer com que se sentisse irritada. Amava-o mais do que nunca.
A viagem até à região ocidental seria uma agradável quebra de rotina, que lhe permitiria afastar-se do caos provocado pelo salto para a morte do senhor Phelan. O rancho do falecido ficava perto de Jackson Hole, nas montanhas Tetons, onde o solo já fora coberto por cerca de trinta centímetros de neve, havendo a perspectiva de mais nevões. O que é que a menina Manners diria quanto à dispersão das cinzas por cima das terras atapetadas de neve? Deveria esperar-se até que começasse a derreter? Ou lançá-las, embora não soubesse bem como? Josh estava-se positivamente nas tintas. Estava na disposição de as lançar, nem que houvesse um desastre natural.
Era constantemente assediado pelos advogados dos herdeiros de Phelan. Os comentários prudentes que partilhara com Hark Gettys, a respeito da capacidade testamentária do velho Troy, produziram ondas de choque entre as famílias que haviam reagido com os histerismos previsíveis. E ameaças. Aquela viagem iria proporcionar-lhe umas férias curtas. Ele e Durban poderiam examinar as informações preliminares, fruto das indagações, e traçar planos para acções a serem postas em prática no futuro.
Descolaram do aeroporto nacional a bordo do avião do senhor Phelan, o Corrente do Golfo IV, um aparelho em que Josh tivera o privilégio de se transportar numa única ocasião. Era o mais recente da frota e tinha sido adquirido pelo preço de trinta e cinco milhões de dólares, sendo o brinquedo mais extravagante do senhor Phelan. No Verão anterior tinham voado nele até Nice, uma praia onde o velho Troy se passeara todo nu olhando, com uma expressão um pouco pateta, para as rapariguinhas francesas. Josh e a sua mulher optaram por se manter vestidos, a exemplo dos outros norte-americanos, tomando banhos de Sol junto da piscina.
O pequeno-almoço foi-lhes servido por uma hospedeira que, logo a seguir, desapareceu na copa situada na cauda do avião; terminada a refeição, começaram a espalhar os papéis em cima de uma mesa redonda. O voo duraria quatro horas.
Os depoimentos ajuramentados, que os doutores Flowe, Zadel e Theishen tinham assinado, eram extensos e primavam pela verbosidade, repletos de opiniões e redundâncias que se alargavam por vários parágrafos, não deixando lugar à mínima dúvida quanto ao facto de Troy ter estado de posse de todas as suas faculdades mentais. Nos momentos que antecederam a sua morte, o homem agira, inequivocamente, com todo o brilhantismo, sabendo muitíssimo bem o que é que estava a fazer.
Stafford e Durban começaram a ler os depoimentos desfrutando da comicidade dos documentos. Quando o novo testamento fosse tornado público, os serviços daqueles três especialistas seriam dispensados; evidentemente que seriam contratados mais meia-dúzia de psiquiatras, os quais dariam voz a toda a espécie de suposições calamitosas sobre as doenças mentais do pobre Troy.
Quanto à questão de Rachel Lane, pouco se conseguira saber com respeito à missionária mais rica do mundo. Os investigadores contratados pela firma continuavam a vasculhar, cheios de zelo profissional.
De acordo com as primeiras informações recolhidas através da Internet, a organização Missões Tribos Universais encontrava-se sediada em Houston, no Texas. Fundada em 1920, a organização tinha quatro mil missionários disseminados por todo o mundo, pessoas que trabalhavam exclusivamente com povos indígenas. O seu único propósito e objectivo era espalhar o Evangelho cristão junto de todas as tribos mais remotas a nível mundial. Era óbvio que Rachel não herdara do pai as crenças religiosas que perfilhara.
Actualmente, as tribos índias do Brasil que eram orientadas pelos missionários da Tribos Universais, cifravam-se em vinte e oito, com pelo menos dez na Bolívia. Existiam outras trezentas espalhadas pelo resto do mundo. Porque as tribos que seleccionavam viviam em locais remotos, bastante afastados da civilização moderna, os missionários recebiam cursos exaustivos de formação que abrangiam técnicas de sobrevivência, aprendendo também a viver num meio ambiente inóspito, sendo-lhes dados conhecimentos de línguas e de cuidados médicos.
Josh lia com um interesse indisfarçável uma história escrita por um missionário que passara sete anos a viver sob um telheiro, no interior de uma floresta, tentando aprender o suficiente da linguagem primitiva de uma determinada tribo para poder comunicar com os nativos. Os índios não quiseram manter muitos contactos com ele. Ao fim e ao cabo, ele era um homem branco oriundo do Missouri que chegara a pé ao povoado daqueles indígenas com uma mochila às costas e munido de um vocabulário que se limitava a uns «Olá» e «Obrigado». Se necessitava de uma mesa, tinha de ser ele a construí-la. Se precisava de comida, era forçoso que a caçasse. Decorreram cinco anos até que os índios começaram a confiar no missionário. Já se encontrava bem a meio do sexto ano antes de ter tido oportunidade de narrar a sua primeira história bíblica. A formação que recebera havia-o ensinado a ser paciente, a cimentar relações, a aprender a língua e a cultura locais, e, a pouco e pouco, muito lentamente, começou a espalhar os ensinamentos da Bíblia.
A tribo mantinha muito pouco contacto com o mundo exterior. Num período de mil anos, a vida daquela gente poucas alterações sofrera.
Que espécie de pessoa é que poderia estar imbuída de tanta fé e empenhamento, ao ponto de renunciar à sociedade moderna para poder entrar num mundo tão pré-histórico? Esse missionário escrevera que os índios não o aceitaram até terem compreendido que ele nunca partiria da povoação. Aquele homem da fé decidira viver para sempre com aqueles nativos. Amava-os e desejava vir a ser um deles.
Portanto, Rachel vivia numa palhota, ou sob um telheiro, dormindo numa cama que ela própria construíra e cozinhava sobre as chamas de uma fogueira, alimentando-se da comida que semeara ou de animais que apanhara em armadilhas, que posteriormente abatia com as suas próprias mãos enquanto contava histórias da Bíblia às criancinhas e ensinava o Evangelho aos adultos, sem saber nada, e seguramente sem se preocupar nada, com os acontecimentos, preocupações e pressões a que o mundo estava sujeito. Vivia numa grande felicidade. Era sustida pela sua fé.
Quase dava a impressão que incomodá-la seria uma crueldade.
- É muito possível que nunca a encontremos - disse Durban depois de ter lido a mesma documentação. - Não existem telefones nem electricidade; que diabo, uma pessoa tem de se arrastar penosamente pelas montanhas para se conseguir chegar a esses povos.
- Não nos resta outra alternativa - retorquiu Josh.
- Já entraste em contacto com a Tribos Universais?
- Ainda hoje, mais tarde, tenciono tratar desse assunto.
- O que é que tencionas dizer-lhes?
- Ainda não sei. Mas o que não se lhes diz é que andamos à procura de uma das suas missionárias, porque ela acabou de herdar onze mil milhões de dólares.
- Onze mil milhões ilíquidos.
- Mesmo assim uma maquia bastante jeitosa.
- Então, o que é que estás a pensar dizer-lhes?
- Vamos alegar que se trata de um assunto premente de natureza jurídica. É bastante urgente, pelo que temos forçosamente de falar com Rachel em pessoa.
Uma das máquinas de fax, instaladas a bordo, começou a funcionar e os documentos começaram a sair. O primeiro fora enviado pela secretária de Josh e continha uma listagem dos telefonemas da manhã - eram quase todas mensagens dos advogados dos herdeiros da família Phelan. Duas
eram de repórteres.
Por seu lado, os associados enviavam informações preliminares que tinham obtido sobre vários aspectos da aplicação das leis no estado da Virgínia. À medida que Durban e Josh iam lendo as folhas que chegavam, o testamento que o velho Troy rabiscara apressadamente ia ganhando cada vez mais impacto.
O almoço foi uma refeição ligeira composta de sanduíches e fruta, uma vez mais servido por uma assistente de bordo que continuava a manter-se na cauda do avião, e que, como que por milagre, só aparecia quando as chávenas de café estavam vazias.
Aterraram em Jackson Hole com um tempo limpo, no meio da neve que havia sido removida para os extremos da pista de aterragem. Ambos desembarcaram do avião, percorrendo aproximadamente vinte metros e entrando no Sikorsky S-76C, o helicóptero que Troy preferira. Dez minutos mais tarde sobrevoavam o rancho que ele tanto amara. O aparelho foi agitado por uma rajada de vento forte, o que fez com que Durban empalidecesse. Josh fez deslizar a porta corrediça, lentamente, e com algum nervosismo; o vento forte açoitou-lhe as faces.
O piloto voava em círculos a uma altitude de mais ou menos seiscentos metros enquanto Josh esvaziava uma pequena urna preta. Acto contínuo, o vento começou a soprá-las em todas as direcções, de forma a que os restos mortais de Troy se desvaneceram muito antes de terem tocado no solo. Quando a urna ficou vazia, Josh recolheu a mão e o braço congelados, fechando a porta.
Tecnicamente, a casa era uma cabana de madeira, construída com a quantidade suficiente de vigas de madeira para lhe imprimir uma aparência de alguma rusticidade. Mas com uma superfície de cerca de três mil metros quadrados seria tudo menos uma cabana. Troy comprara-a a um actor cuja carreira fora às malvas.
A porta foi-lhes aberta por um mordomo vestido de bombazina que agarrou nas malas, enquanto uma criada lhes preparava um café. Durban admirava os animais empalhados, troféus de caça pendurados pelas paredes, e Josh ligava para o escritório. Na lareira ardia um bom fogo; a cozinheira perguntou-lhes o que desejavam para o jantar.
O associado chama-se Montgomery, um homem que trabalhava na firma há quatro anos e que fora seleccionado pessoalmente pelo doutor Stafford. Perdeu-se por três vezes na confusão de ruas de Houston, antes de ter encontrado os escritórios da organização Missões Tribais Universais, instalados discretamente no rés-do-chão de um edifício de cinco andares. Estacionou o automóvel de aluguer e endireitou a gravata.
Tinha falado ao telefone com o senhor Trill em duas ocasiões, e, embora tivesse chegado uma hora atrasado para a reunião que haviam combinado, tal facto pareceu não fazer grande diferença. O senhor Trill era um homem cortês, de falas mansas, apesar de não se mostrar muito desejoso em cooperar. Trocaram os preliminares da praxe.
- O que posso fazer por si? - perguntou Trill.
- Preciso de algumas informações acerca de uma das vossas missionárias - esclareceu Montgomery.
Trill meneou a cabeça mas não lhe deu réplica.
- Uma Rachel Lane.
Os olhos do homem divagaram, como se tentasse identificar a pessoa em questão.
- O nome não me diz nada. O que não é de admirar, visto que temos quatro mil pessoas em campo.
- Ela trabalha perto da fronteira entre o Brasil e a Bolívia.
- Quais são os conhecimentos que tem dela?
- Não sei muita coisa. Mas o certo é que precisamos de a encontrar.
- Com que finalidade?
-Trata-se de um assunto de natureza jurídica - informou Montgomery com um ligeiro toque de hesitação que foi o suficiente para o tornar suspeito.
Trill franziu o cenho posicionando os cotovelos mais junto do peito. O seu pequeno sorriso desapareceu.
- Há algum problema? - inquiriu.
- Não. Mas o assunto é bastante urgente. É imperativo que a encontremos.
- Não pode enviar-lhe uma carta ou uma encomenda?
- Receio bem que não. Precisamos da cooperação dela, juntamente com a sua assinatura.
- Presumo que o assunto seja confidencial.
- Extremamente.
Houve qualquer coisa que fez clique na mente de Trill; os sobrolhos franzidos suavizaram-se.
- Peço-lhe que me dê licença por um minuto. - Abandonou o gabinete deixando Durban a inspeccionar o mobiliário espartano. O único motivo decorativo era uma colecção de fotografias ampliadas, penduradas nas paredes, que retratavam crianças índias.
Quando regressou ao gabinete, Trill mostrava-se um homem diferente, com uma postura rígida e sem sorrir, sendo evidente que não desejava colaborar.
- Lamento muito, senhor Montgomery - começou a dizer sem se sentar. - Não temos possibilidade de o ajudar.
- Ela está no Brasil?
- Lamento muito.
- Na Bolívia?
- Lamento muito.
- Será que ela existe?
- Não posso responder às suas perguntas.
- A nada?
- Nada de nada.
- Posso falar com o seu chefe ou supervisor?
- Claro que sim.
- Onde é que ele se encontra?
- No céu.
Depois de um jantar composto por bifes altos cozinhados num molho de cogumelos, Josh Stafford e Tip Durban retiraram-se para a sala de estar onde ardia um bom fogo. Um outro mordomo, um mexicano de casaco branco e calças de ganga bem engomadas, serviu-lhes um whisky escocês de malte, bastante envelhecido, da garrafeira do senhor Phelan. Mandaram vir charutos cubanos. Pavarotti entoava canções de Natal através de uma aparelhagem estereofónica que se ouvia à distância.
- Tive uma ideia - disse Josh olhando para as chamas na lareira. - Temos de enviar alguém que descubra o paradeiro de Rachel Lane, não é?
Tip estava a meio de uma longa fumaça do seu charuto, limitando-se a um acenar de cabeça.
- E não podemos mandar qualquer pessoa. Terá de ser um advogado; alguém com capacidade para lhe explicar as questões jurídicas. Além de que terá de ser alguém da nossa firma por razões de confidencialidade.
Encheu as bochechas de fumo enquanto Tip continuava a acenar com a cabeça.
- Portanto, quem é que havemos de enviar?
Tip exalou o fumo com lentidão, através da boca e das narinas; a nuvem de fumo pairou-lhe diante do rosto antes de começar a evolar-se em direcção ao tecto.
- Qual será a duração prevista para essa expedição? - perguntou Tip finalmente.
- Não sei ao certo, porém, não será uma viagem rápida. O Brasil é um país muito vasto, com uma superfície quase tão grande como os quarenta e oito estados do Sul do nosso país. Sem esquecer que estamos a falar de selvas e montanhas. Essa gente vive em locais tão recônditos que nunca viram um automóvel.
- Eu não vou.
- Podemos contratar guias locais e pessoas desse género, mas mesmo assim é muito possível que leve mais ou menos uma semana.
- Eles não têm canibais por essas terras?
- Não - respondeu Stafford.
- Anacondas?
- Acalma-te, Tip. Não és tu que vais.
- Obrigado.
- Mas estás a ver o problema, não é verdade? Temos sessenta advogados, todos sobrecarregados por um excesso de trabalho que é muito mais do que aquele que está, humanamente, dentro das nossas possibilidades. Nenhum de nós pode, assim sem mais nem menos, largar tudo para ir à procura dessa mulher.
- Manda um dos assistentes jurídicos.
Aquela sugestão não agradava a Josh. Bebeu um gole do seu whisky e expeliu uma baforada de fumo do charuto, ouvindo o crepitar da madeira que ardia na lareira.
- Tem de ser um advogado - disse ele quase como se falasse consigo próprio.
Entretanto, o mordomo voltou a entrar na sala trazendo outros copos com whisky. Perguntou se desejavam sobremesa e café, mas os convidados já tinham o que queriam.
- O que é que dizes da hipótese de enviarmos Nate? - perguntou Durban quando ficaram de novo a sós.
Era óbvio que Josh estivera a pensar em Nate durante toda aquela conversa, o que irritou Tip, ainda que ligeiramente.
- Estás a brincar? - perguntou.
- Não.
Durante algum tempo, ambos ficaram a reflectir na hipótese de enviarem Nate; tanto um como o outro tentavam ultrapassar as objecções e receios iniciais. Nate O'Riley era um dos sócios, um homem que trabalhava para a firma há vinte e três anos e que, de momento, se encontrava internado num centro de desintoxicação nas montanhas Blue Ridge, a oeste de D. C. Ao longo dos últimos dez anos, tinha sido visitante frequente dos estabelecimentos de desintoxicação, onde tentava livrar-se das substâncias nocivas que tinha no organismo, quebrar hábitos, aproximando-se de um poder mais elevado, trabalhando para o bronze e aperfeiçoando o ténis, ao mesmo tempo que jurava que se libertaria de todos os seus vícios de uma vez por todas. E enquanto jurava a pés juntos que a recaída mais recente seria a última, a descida final até ter chegado ao fundo do poço, todas elas eram seguidas de uma queda ainda maior. Agora, com quarenta e oito anos, estava falido, divorciara-se duas vezes e fora recentemente indiciado por evasão fiscal. O futuro que se desenhava à sua frente seria tudo menos brilhante.
- Ele costumava ser um tipo que gostava de actividades ao ar livre, não é verdade? - perguntou Tip.
- Sim. Praticava mergulho, montanhismo, enfim, todas essas coisas disparatadas. Depois começou a queda em que não fazia mais nada além de trabalhar.
A queda tivera início por volta dos trinta e cinco anos, mais ou menos na altura em que conseguiu reunir um conjunto de sentenças de grande relevo contra médicos acusados de negligência clínica. Nate O'Riley viu-se transformado numa celebridade no jogo da negligência médica, começou a beber excessivamente e a consumir cocaína. Descurou a família, tendo começado a sentir-se obcecado pelos seus três vícios - sentenças importantes, álcool e estupefacientes. De uma maneira inexplicável, conseguia equilibrar aquelas facetas da sua vida, embora estivesse permanentemente à beira de um desastre. Então perdeu uma causa e, pela primeira vez, tombou do cimo de um penhasco. A firma ocultou-o numa estância luxuosa até ele ter conseguido libertar-se dos vícios; o seu regresso ao trabalho foi impressionante. O primeiro de vários.
- Quando é que está previsto que ele tenha alta? - perguntou Tip que já não se sentia tão surpreendido perante aquela sugestão que lhe agradava cada vez mais.
- Dentro em breve.
Mas Nate transformara-se num viciado de primeira água. Era capaz de se manter desintoxicado durante meses a fio, até mesmo anos, mas voltava sempre ao mesmo. As substâncias químicas devastavam-lhe a mente e o corpo.
O seu comportamento tornava-se bastante aberrante, e os rumores da sua loucura insinuavam-se no seio da firma e, em última análise, espalhavam-se através da rede de advogados que tinham predilecção por aquele tipo de mexericos.
Há quase quatro meses que ele se fechara no quarto de um motel, acompanhado de uma garrafa de rum e de um saco cheio de comprimidos, no que muitos dos seus colegas consideraram ser uma tentativa de suicídio.
Pela quarta vez no período de dez anos, Josh internou-o compulsivamente.
- É possível que lhe faça bem - comentou Tip. - Percebes, afastar-se durante algum tempo.
Três dias após o senhor Phelan ter cometido suicídio, Hark Gettys chegou ao seu escritório antes do nascer da aurora, já cansado mas ansioso que o dia começasse. No dia anterior jantara, já bastante tarde, com Rex Phelan, ao que se seguiram duas horas passadas num bar, onde, com mostras de alguma agitação, abordaram o assunto do testamento, começando a planear uma estratégia. Devido à noitada, o advogado tinha os olhos vermelhos e inchados, sentindo uma forte dor de cabeça, mas apesar do mal-estar físico movimentava-se com rapidez, às voltas com a máquina de café.
A tabela de honorários que Gettys cobrava à hora tinha algumas variações. No ano passado tinha tratado de um caso de divórcio pela quantia irrisória de duzentos dólares à hora, uma vez que costumava cobrar, a qualquer potencial cliente, trezentos e cinquenta à hora, o que era um pouco baixo para um advogado ambicioso de D. C. como era o seu caso, mas se conseguisse fazer com que eles transpusessem a ombreira da porta do seu escritório a trezentos e cinquenta, sem dúvida que posteriormente poderia manipular a conta de forma a receber o que merecia. Aparecera-lhe uma cimenteira indonésia que lhe pagara quatrocentos e cinquenta à hora por uma questão de somenos importância, após o que tentaram deixá-lo a ver navios quando lhes apresentou a conta. Também chegara a um acordo num caso de morte não acidental do qual auferiu um terço de trezentos e cinquenta mil dólares.
Hark era litigante numa firma onde trabalhavam quarenta advogados, instalados num segundo andar, que tinha um historial de confrontos e altercações internos que haviam prejudicado o seu crescimento, o que o levava a ansiar por abrir o seu próprio estaminé. Quase metade dos seus rendimentos anuais se destinava às despesas gerais do escritório; do seu ponto de vista, esse dinheiro devia ir parar às suas algibeiras.
A certa altura daquela noite em que não dormira, tomara a decisão de aumentar os seus honorários para quinhentos dólares à hora, valor que teria o efeito retroactivo de uma semana. Nos últimos seis dias dedicara-se exclusivamente ao assunto dos Phelan, e agora que o velho tinha morrido a família de doidos que lhe sobrevivera era o sonho de qualquer advogado.
O que Hark queria com todo o desespero era que houvesse uma contestação testamentária - um litígio longo e sórdido, com um grande número de advogados que dariam entrada em tribunal de toneladas de trampa jurídica. Um julgamento seria uma autêntica maravilha, um confronto que atingiria grande celeuma onde estaria em disputa uma das maiores fortunas da América do Norte e em que Hark seria o centro das atenções. Ganhar a causa seria bastante agradável, mas ganhar não era um aspecto crucial. Faria uma fortuna, para além de se tornar famoso, e isso era o cerne da prática da advocacia moderna.
À razão de quinhentos dólares por hora, sessenta horas por semana, cinquenta semanas por ano, a facturação ilíquida anual de Hark atingiria o montante de um milhão e quinhentos mil dólares. As despesas gerais com a instalação de um novo escritório - rendas, secretárias e assistentes jurídicos - no máximo cifrar-se-iam em meio milhão, pelo que Hark poderia arrecadar um milhão só para si, caso abandonasse aquela firma miserável para abrir um novo escritório na mesma rua, um pouco mais abaixo.
Dito e feito. Engoliu o café à pressa e, mentalmente, despediu-se do seu atravancado gabinete. Pôr-se-ia ao fresco levando consigo o processo Phelan e talvez um ou dois dos outros. Também levaria a sua secretária e o seu assistente jurídico, executando rapidamente o plano que arquitectara, antes que a firma tivesse hipótese de reivindicar quaisquer honorários do processo Phelan.
Sentou-se à sua mesa de trabalho sentindo a pulsação acelerada, tal a expectativa pela concretização da sua nova aventura. Começou imediatamente a pensarem todas as maneiras que lhe permitiriam desencadear uma guerra com Josh Stafford. Tinha motivos para se preocupar. Stafford não mostrara a mínima vontade de revelar as disposições do novo testamento. À luz do suicídio ele pusera em questão a sua validade. Hark sentira-se abalado com a alteração que se verificara na atitude de Stafford logo após o suicídio. Agora, Stafford saíra da cidade, recusando-se a retribuir os seus telefonemas.
Oh, tanto que Hark desejava uma luta renhida.
Às nove horas encontrou-se com Libbigail Phelan Jeter e Mary Ross Phelan Jackman, as duas filhas do primeiro casamento de Troy. Fora Rex quem combinara aquela reunião, a instâncias de Hark. Se bem que as duas mulheres já tivessem contratado os seus próprios advogados, Hark desejava tê-las como suas clientes. Quantos mais fossem os clientes, mais influência teria à mesa das negociações e na sala do tribunal, para além de significar que poderia debitara cada um deles quinhentos dólares à hora exactamente pelo mesmo trabalho.
O ambiente da reunião era de constrangimento; nenhuma das mulheres confiava em Hark, um reflexo da falta de confiança que o irmão, Rex, lhes merecia. Só para si, TJ contratara três advogados, e por seu lado a mãe dos três tinha outro exclusivamente ao seu serviço. Por que motivo haveriam eles de juntar esforços quando mais ninguém da família o fazia? Com tanto dinheiro em jogo, não seria preferível que cada um contratasse os seus próprios advogados?
Hark continuava a exercer pressão, apesar de até então não ter conseguido ganhar muito terreno. Sentiu-se desiludido mas apesar disso, mais tarde avançou com os seus planos de abandonar imediatamente a firma. Já lhe chegava às narinas o cheiro do dinheiro.
Libbigail Phelan Jeter havia sido uma criança rebelde que não gostava de Lillian, a sua mãe, ansiando pelas atenções do pai, que só muito raramente é que estava em casa. Quando os pais se divorciaram tinha apenas nove anos.
Ao fazer catorze anos, Lillian empandeirou-a para um colégio interno. Troy não aprovava aquele género de estabelecimentos de ensino, como se tivesse alguns conhecimentos quanto à educação de crianças; durante todo o ensino secundário da filha, fez um esforço, que lhe era pouco característico, para se manter em contacto com ela. Dizia-lhe amiúde que era a sua filha preferida. Sem dúvida que era a mais inteligente.
Todavia, não esteve presente no final do curso, esquecendo-se de lhe enviar uma prenda. No Verão antes de entrar para a faculdade, Libbigail sonhava com maneiras de magoar o pai. Foi para a Universidade de Berkeley, ostensivamente com o propósito de estudar poesia irlandesa da Era Medieval, mas na realidade tencionava estudar muito pouco, se estudasse. Troy detestava a ideia de a filha frequentar qualquer universidade na Califórnia, especialmente num complexo universitário tão radical como aquele. A Guerra do Vietname estava a chegar ao fim. Os estudantes haviam saído vencedores e chegara a hora de celebrarem.
Sem qualquer dificuldade, entrara na cultura das drogas e do sexo acidental. Vivia numa casa com três pisos que partilhava com um grupo de estudantes de todas as etnias, sexos e preferências sexuais. As combinações de parceiros sofriam alterações de semana para semana, assim como o número.
Consideravam que faziam parte de uma comunidade, embora qualquer estrutura ou regras primassem pela ausência. O dinheiro não constituía problema algum, dado que a maior parte provinha de famílias abastadas. Libbigail era conhecida, muito simplesmente, como sendo uma miúda rica oriunda de Connecticut. Nessa época, Troy valia apenas cem milhões ou coisa parecida.
Imbuída de um sentido de aventura, movimentou-se pelo mundo da droga até que a heroína se apossou de si. O seu traficante habitual era um músico de jazz que tocava instrumentos de percussão, de nome Tino, que, sem se saber bem como, passara a residir na comuna. Tino tinha quase quarenta anos e estudara em Memphis sem nunca ter acabado o ensino secundário; ninguém sabia exactamente como ou quando é que ele passara a fazer parte do grupo de estudantes. Contudo, ninguém se interessava muito com o assunto.
Libbigail lavou-se e arranjou-se o suficiente para uma viagem até à região Leste, aquando do seu vigésimo primeiro aniversário, um dia glorioso para todos os jovens Phelan, porque era nessa ocasião que o velho lhes concedia a Dádiva. Troy não acreditava em fideicomissos quando se tratava dos filhos. Se não fossem pessoas responsáveis quando atingissem os vinte e um anos, por que razão haveriam os pais de acarretar com eles? Os fideicomissos exigiam especialistas fiduciários, advogados e bulhas constantes com os beneficiários, que se ressentiam por receberem o seu dinheiro, como se fosse uma esmola, das mãos de contabilistas. Troy concluíra que era preferível entregar-lhes o dinheiro com que eles se poderiam manter à tona ou afogar-se.
A maior parte dos Phelan afogava-se rapidamente.
Troy não estivera presente no aniversário de Libbigail. Na altura, encontrava-se algures na Ásia numa viagem de negócios. Já havia casado pela segunda vez, com Janie, há alguns anos. Rocky e Geena ainda eram crianças quando ele perdeu todo o interesse que, eventualmente, pudesse ter tido pela sua primeira família.
Libbigail não sentiu a falta do pai. Os advogados trataram de tudo o que se relacionasse com a Dádiva, após o que foi para a cama com Tino num hotel de aspecto espalhafatoso, em Manhattan, onde ficou pedrada durante uma semana.
O dinheiro durou-lhe quase cinco anos, um período de tempo que abrangera dois maridos, numerosos parceiros de coabitação, duas detenções prisionais, três internamentos prolongados, compulsórios, em centros de desintoxicação, e um acidente de automóvel que quase lhe levou a perna esquerda.
O actual marido de Libbigail era um ex-motoqueiro que conhecera durante uma das desintoxicações. Pesava aproximadamente cento e sessenta quilos e tinha umas barbas frisadas e grisalhas, que lhe davam pelo meio do peito. Dava pelo nome de Spike, e, por inacreditável que pudesse parecer, tinha acabado por se tornar num fulano decente. Construía armários numa oficina nas traseiras da casa modesta onde ambos viviam num subúrbio sem grandes pretensões de Lutherville, em Baltimore.
O advogado de Libbigail era um sujeito pouco cuidado que se chamava Wally Bright, para cujo escritório ela se dirigiu imediatamente depois de ter acabado de falar com Hark. Relatou-lhe tudo o que este acabara de lhe dizer. Wally era um advogado de pouca importância que publicava anúncios de divórcios rápidos nas paragens de autocarro da área de Bethesda. Tinha tratado de um dos divórcios de Libbigail, tendo-se visto forçado a esperar um ano pelo pagamento dos seus honorários. Contudo, mostrara-se paciente com ela. Ao fim e ao cabo, convinha não esquecer que era uma Phelan. Ela seria o ingresso que lhe daria acesso aos honorários chorudos que nunca conseguira auferir.
Na presença de Libbigail, Wally ligou para Hark Gettys, dando início a um confronto insidioso, através do telefone, que durou uns acalorados quinze minutos. Mantinha-se num estado de grande agitação por detrás da sua mesa de trabalho, esbracejando enquanto proferia obscenidades ao telefone.
- Estou disposto a matar pela minha cliente! - vociferou ele a certa altura da sua tirada, o que impressionou Libbigail de forma extraordinária.
Depois de ter dado a conversa por terminada, cheio de cortesia, acompanhou-a à porta, dando-lhe um beijo na face. Todo ele era salamaleques com ela. Deu-lhe a atenção por que ela sempre ansiara durante toda a sua vida. Libbigail não era uma mulher desengraçada; talvez um pouco pesada e a denunciar os efeitos de uma vida difícil, mas Wallyjá tinha visto muito pior. Já dormira com mulheres de aspecto bastante pior. Caso a oportunidade se lhe apresentasse, Wally talvez não hesitasse em aproveitá-la.
A pequena montanha de Nate estava coberta por cerca de quinze centímetros de neve acabada de cair quando foi despertado pelos sons melodiosos de Chopin que se ouviam através das paredes. Na semana passada ouvira-se Mozart. Na semana anterior a essa não era capaz de se recordar do autor da música. Vivaldi fizera parte de um passado recente, mas muita da sua música permanecia numa semiobscuridade mental.
À semelhança do que tinha vindo a fazer todas as manhãs durante quase quatro meses, Nate encaminhou-se para a janela do seu quarto admirando o vale Shanandoah que se alargava diante dos seus olhos, quase mil metros abaixo de si. Também estava atapetado de branco, o que fez com que lhe ocorresse que o Natal se encontrava próximo.
Na quadra natalícia já teria saído dali. Eles - os seus médicos e Josh Stafford - haviam-lhe prometido que assim seria. Começou a pensar no Natal sentindo uma tristeza enorme. Num passado não muito distante tinha desfrutado de alguns bastante agradáveis, quando as crianças ainda eram pequenas e tinha uma vida estável. Mas agora os filhos haviam desaparecido, ou porque eram adultos ou porque as respectivas mães os tinham afastado do pai; a última coisa que Nate desejava era passar outro Natal num bar qualquer, na companhia de outros bêbados desgraçados que entoavam cantares de Natal, fingindo que se sentiam felizes.
O vale estava coberto por um manto branco que lhe emprestava uma atmosfera de quietude, avistando-se alguns carros que se deslocavam à distância como se fossem formigas.
Supostamente, Nate deveria meditar por um período de dez minutos, quer fosse a rezar quer dedicando-se à prática de ioga, o que haviam tentado ensinar-lhe em Walnut Hill. Em vez disso, optou por fazer abdominais, após o que foi nadar.
O pequeno-almoço foi café simples e um pãozinho de milho com manteiga, refeição que tomou na companhia de Sérgio, o seu conselheiro, terapeuta e guru. Durante os últimos quatro meses, Sérgio também fora o seu melhor amigo. Estava a par de tudo o que se relacionava com a vida desgraçada de NateO'Riley.
- Hoje tens uma visita - disse Sérgio.
- Quem?
- O doutor Stafford.
- Estupendo.
Qualquer contacto com o mundo exterior era sempre bem-vindo, principalmente porque eram tão restritos. Josh visitava-o uma vez por mês. Dois outros amigos que trabalhavam na firma, também se haviam dado ao incómodo de fazerem a viagem de três horas de D. C. até ali, mas todos eles tinham muito que fazer, o que Nate compreendia.
A televisão estava proibida em Walnut Hill devido à publicidade a marcas de cerveja, e também porque muitos dos programas e filmes glorificavam a ingestão de bebidas alcoólicas e até mesmo o consumo de estupefacientes. As revistas mais populares também estavam interditas pelas mesmas razões. Proibições que, no que dizia respeito a Nate, não tinham a menor importância. Decorridos quatro meses, tudo o que pudesse acontecer no Capitólio, em Wall Street ou no Médio Oriente lhe era absolutamente indiferente.
- Quando? - perguntou Nate.
- Mais ao fim da manhã.
- Depois do exercício físico?
- Evidentemente.
Nada poderia interferir com o exercício físico, uma orgia de duas horas de suor, imprecações e gritos com um monitor pessoal sádico, uma mulher bem musculada e enérgica que Nate adorava em segredo.
Descansava nos seus aposentos, comendo uma laranja sumarenta, e admirava, uma vez mais, a magnífica paisagem do vale, quando Josh chegou.
- Estás com um aspecto excelente - disse Josh. - Quantos quilos perdeste?
- Sete quilos - respondeu Nate batendo no estômago.
- Estás muito elegante. Talvez eu devesse passar algum tempo aqui.
- Recomendo vivamente este lugar. A comida não tem qualquer gordura, para além de não ter o mínimo sabor, e é preparada por um cozinheiro que fala com um sotaque acentuado. As porções cabem em metade de um pires e em duas garfadas acabamos a refeição. Caso mastiguemos devagar, o almoço e o jantar levam cerca de sete minutos.
- Por mil dólares ao dia, seria de esperar que a alimentação fosse espectacular.
- Trouxeste algumas bolachas ou qualquer coisa do género, Josh? Uns quantos ChipsAhoy ou Oreos! Com certeza que tens qualquer coisa escondida na tua pasta.
- Lamento, Nate. Estou liso.
- Ao menos uns Doritos ou uns M & M,s!
- Lamento muito.
Nate deu uma dentada na laranja. Permaneciam sentados lado a lado, desfrutando da panorâmica. Decorreram alguns minutos.
- Como é que tens passado? - perguntou Josh.
- Preciso de sair daqui, Josh. Estou a transformar-me num robô.
- O teu médico diz que terás de ficar apenas mais ou menos uma semana.
- Óptimo. E depois o quê?
- Veremos.
- O que é que queres dizer com isso?
- Quero dizer que veremos.
- Deixa-te disso, Josh.
- Vamos com calma e veremos como é que as coisas correm.
- Posso voltar para a firma, Josh? Diz-me!
- Não te apresses tanto, Nate. Sabes que tens alguns inimigos.
- Quem é que não tem? Mas que diabo, ao fim e ao cabo, estamos a falar da tua firma. Esses tipos terão de concordar com tudo o que disseres.
- Acontece que tu tens um ou dois problemas.
- Na realidade, tenho um milhar de problemas. Mas não me podes pôr no olho da rua.
- A falência é uma coisa que poderemos resolver. Mas a indiciação não é assim tão fácil.
Não, não era nada fácil e Nate não podia limitar-se a pôr o assunto para trás das costas. De 1992 a 1995, não se dera ao trabalho de declarar cerca de sessenta mil dólares de outros rendimentos além dos da firma.
Atirou a casca da laranja para dentro de um caixote do lixo.
- Em face da situação, o que é que, supostamente, deverei fazer? - perguntou Nate. - Ficar sentado todo o dia dentro de casa?
- Tu tens muita sorte.
- O que é que pretendes dizer com isso?
Josh tinha de proceder com diplomacia. O seu amigo estava a sair de um buraco negro. Os choques e as surpresas teriam de ser evitados.
- Estás convencido de que acabarei por ir para a cadeia? - perguntou Nate.
- Troy Phelan morreu - redarguiu Josh, e Nate necessitou de um segundo para mudar o rumo da conversa.
- Oh, o senhor Phelan - disse ele.
Nate ocupara uma pequena ala nas instalações da firma. Ficava ao fundo de um longo corredor, no sexto andar; ele e outro advogado, juntamente com três assistentes jurídicos e meia-dúzia de secretárias trabalhavam em processos instaurados contra médicos, preocupando-se pouco com as outras actividades da firma. Sem dúvida que sabia quem era Troy Phelan, mas nunca tocara em qualquer processo que lhe dissesse respeito.
- Lamento muito - disse Nate.
- Isso quer dizer que não ouviste as notícias?
- Aqui não ouço nada. Quando é que ele morreu?
- Há quatro dias. Saltou de uma varanda.
- Sem pára-quedas?
- Acertaste em cheio.
- Não podia voar.
- Não. Nem sequer tentou. Eu assisti a tudo. Ele tinha acabado de assinar dois testamentos... O primeiro foi preparado por mim; o segundo, e último, foi escrito pelo seu próprio punho. Logo de seguida, lançou-se em frente e saltou.
- E tu viste?
- Sim - confirmou Stafford.
- Ena! Deve ter sido um sacana completamente doido.
Na voz de Nate adivinhava-se um traço de humor. Há quase quatro meses fora encontrado por uma criada num quarto de motel, com o estômago cheio de rum e comprimidos.
- Deixou toda a sua fortuna a uma filha ilegítima de que nunca ouvi falar.
- É casada? Qual é o seu aspecto?
- Quero que descubras o paradeiro dessa mulher.
- Eu?
- Sim - confirmou Stafford.
- Anda desaparecida?
- Não sabemos onde está.
- Quanto é que ele...
- Qualquer coisa na ordem dos onze mil milhões de dólares ilíquidos.
- E ela tem conhecimento dessa herança?
- Não. Nem sequer sabe que ele morreu.
- E sabe que Troy era o seu pai?
- Não sei o que é que ela sabe.
- Onde é que ela está?
- Estou em crer que no Brasil. É missionária e trabalha com uma tribo de índios numa localidade muito remota.
Nate pôs-se de pé, começando a percorrer o quarto.
- Em tempos passei uma semana no Brasil - disse ele. - Acho que foi antes, ou talvez quando entrei, para a faculdade de Direito. Foi durante o Carnaval, as raparigas nuas a dançarem pelas ruas do Rio de Janeiro, as escolas de samba, um milhão de pessoas que passavam a noite em festas. - A voz de Nate baixou de tom quando aquela pequena recordação lhe ocorreu à mente para logo desaparecer.
- Isto não tem nada a ver com o Carnaval.
- Não. Tenho a certeza de que não. Apetece-te tomar um café?
- Sim. Simples.
Nate carregou num botão na parede e encomendou através do inter-comunicador. Um milhar de dólares por dia incluía serviço de quartos.
- Durante quanto tempo é que terei de me ausentar? - perguntou, sentando-se de novo junto dajanela.
- Só podemos fazer uma estimativa, mas eu atrevo-me a dizer que será durante uns dez dias. Não há pressa, além de que é possível que seja difícil encontrá-la.
- Por que zona do país é que devemos começar?
- Pela região ocidental, próximo da Bolívia. A organização a que ela pertence é especializada no envio de pessoas para as florestas tropicais, onde ensinam religião aos índios que continuam a viver na Idade da Pedra. Já efectuámos algumas pesquisas, e ao que tudo indica eles sentem grande orgulho em descobrirem pessoas que vivam nos locais mais recônditos à face da Terra.
- Em primeiro lugar queres que descubra qual a selva em questão, depois queres que vá a pé à procura da tribo de índios em questão, após o que, não sei bem como, pretendes que os convença de que sou um advogado amigo que veio dos Estados Unidos, pelo que eles devem ajudar-me a encontrar uma mulher que, para começar, se calhar nem sequer deseja ser encontrada.
- É mais ou menos isso.
- É capaz de ser divertido - acrescentou Nate.
- Pensa nessa viagem como sendo uma aventura.
- Além do mais, servirá para me manter afastado do escritório, não é verdade, Josh? É disso que estamos a falar? Uma manobra de diversão enquanto solucionas as coisas?
- Alguém terá de ir até lá, Nate. É necessário que seja um advogado da nossa firma que se encontre face a face com esta mulher, para lhe mostrar uma cópia do testamento, explicar-lhe o conteúdo e descobrir o que é que ela tenciona fazer a seguir. É um assunto que não pode ser tratado por um dos nossos assistentes jurídicos, nem tão-pouco por um advogado brasileiro.
- Porquê eu?
- Porque todos os nossos colegas estão assoberbados com trabalho. Tu conheces bem a rotina. Há mais de vinte anos que vives com ela. A vida passada no escritório, os almoços no tribunal, dormir nos comboios. Além do mais, é muito possível que essa viagem te seja benéfica.
- Estás a tentar manter-me afastado das ruas, Josh? Porque se for esse o caso, estás a perder o teu tempo. Estou limpo. Limpo e sóbrio. Acabaram-se os bares e as festas, nada de traficantes. Estou limpo, Josh. Para sempre.
Josh aquiesceu com um acenar de cabeça, porque tinha a certeza que era isso que o amigo esperava de si. Mas aquela situação era-lhe por demais familiar.
- Acredito no que dizes - retorquiu, desejando do fundo do coração poder acreditar.
Entretanto, um auxiliar de enfermagem bateu à porta antes de entrar com o café numa bandeja prateada.
- E quanto à indiciação? - perguntou Nate algum tempo depois. - Supostamente, não devo sair do país até que o assunto esteja solucionado.
- Já falei com o advogado dizendo-lhe que se tratava de um assunto da maior importância. Ele quer ver-te dentro de noventa dias.
- Ele é simpático?
- É um autêntico pai-natal.
- Portanto, se for condenado, achas que ele me dará uma oportunidade?
- Ainda falta um ano até à data do julgamento. Deixemos esse assunto para mais tarde.
Nate sentava-se a uma pequena mesa, inclinado sobre a chávena de café, fitando-a enquanto pensava nas próximas perguntas. Josh encontrava-se no lado oposto continuando a olhar ao longe.
- E se eu me recusar? - perguntou Nate.
Josh encolheu os ombros como se aquilo não tivesse importância.
- Não será nada de especial. Haveremos de encontrar outra pessoa. Pensa nessa viagem como se fosse umas férias. Não estás com medo de ir para a selva, pois não?
- Claro que não.
- Nesse caso, vai e diverte-te.
- Se decidir ir, quando é que partiria?
- Dentro de uma semana. Para entrares no Brasil precisas de um visto, e vamos ter de puxar uns quantos cordelinhos. Além de que ainda há uns assuntos por concluir aqui.
Walnut Hill requeria pelo menos uma semana de período de pré-alta, um espaço de tempo necessário para condicionar os seus clientes de forma a lançá-los de volta aos lobos. Estes haviam sido mimados, mantinham-se sóbrios, tinham sido sujeitos a uma lavagem ao cérebro e, de mansinho, recuperavam um bom estado emocional, físico e mental. O período de pré-alta couraçava-os para a reentrada no mundo real.
- Uma semana - repetiu Nate para si próprio.
- Sim, cerca de uma semana.
- E a viagem terá a duração de dez dias.
- É só um palpite.
- Isso significa que estarei fora durante a quadra natalícia.
- Calculo que sim - confirmou Stafford. -Uma ideia esplêndida.
- Não te apetece festejar o Natal?
- Acertaste em cheio.
- E os teus filhos?
Eram quatro, dois de cada uma das ex-mulheres. Uma que se preparava para entrar na faculdade, um na universidade e dois na primeira fase do ensino secundário.
Nate começou a mexer o café com uma pequena colher.
- Nem uma palavra, Josh - disse ele. - Há quase quatro meses que estou aqui e nem sequer uma única palavra por parte de qualquer deles. - Da sua voz transparecia um sentimento de sofrimento. Mantinha os ombros descaídos. Por um breve segundo, Nate mostrou um aspecto bastante frágil.
- Lamento muito - disse Josh.
No entanto, este tivera notícias das famílias. As duas mulheres tinham advogados que haviam telefonado ao cheiro de dinheiro. O filho mais velho de Nate frequentava a Universidade de Colúmbia e precisava de dinheiro para custear os estudos, e fora ele quem, pessoalmente, telefonara a Josh para se informar do estado de saúde do pai, perguntando-lhe se sabia do seu paradeiro, mas, mais importante, quisera informar-se sobre a quota-parte do pai nos lucros da firma referentes ao ano passado. Era um rapaz atrevido e grosseiro, levando Josh a admoestá-lo depois de ter esgotado a paciência.
- Gostaria de poder evitar todas as festividades e o júbilo desta quadra- disse Nate, recompondo-se e começando a andar descalço pelo quarto.
- Portanto, estás disposto a ir?
- É para a Amazónia?
- Não. Vais para a região pantanosa mais vasta do Pantanal.
- Piranhas, anacondas e crocodilos? - acrescentou Nate.
- Claro que sim.
- Canibais?
- Não mais do que em D. C. - retorquiu Stafford.
- Estou a falar a sério.
- Não me parece que haja lugar para esses receios. Há onze anos que eles não perdem um missionário.
- E quanto a advogados?
- Tenho a certeza que adorariam transformar um deles em bifes. Deixa-te disso, Nate. Esta missão não tem nada de transcendente. Se eu não tivesse tanto trabalho, adoraria poder ir. O Pantanal é uma reserva ecológica magnífica.
- Nunca ouvi falar dessa região.
- O que se deve ao facto de teres deixado de viajar há muitos anos. Entraste no escritório e nunca mais de lá saíste - acrescentou Stafford.
- Excepto para me submeter às desintoxicações.
- Faz umas férias. Terás oportunidade de visitar outra parte do mundo. Nate começou a beber o seu café, permitindo-se tempo suficiente para
mudar o rumo da conversa.
- E o que é que acontecerá quando regressar do Brasil? Continuarei a ter o meu gabinete? Continuarei a ser sócio da firma?
- É isso que queres?
- Claro que sim - respondeu Nate, embora tivesse hesitado um pouco.
- Tens a certeza?
- Que mais é que posso fazer?
- Não sei, Nate, mas a realidade é que esta é a tua quarta desintoxicação em dez anos. As recaídas são cada vez mais graves. Caso saísses agora, poderias ir directamente para o escritório, onde, durante seis meses, serias o maior litigante do mundo em casos de negligência médica. Ignorarias os teus velhos amigos e os velhos bares, evitarias os velhos locais de reunião. Nada além de trabalho, trabalho e mais trabalho. Dentro em pouco terias conseguido duas sentenças de grande impacto, julgamentos importantes, muita pressão. Levarias as coisas um tudo nada longe de mais. Decorrido um ano, haveria algo que acabaria por ceder. Possivelmente, encontrarias um velho amigo. Uma rapariga de uma outra vida. Talvez um júri que não te fosse favorável, que possivelmente daria uma sentença que te fosse adversa.
Com certeza que eu me manteria atento a todos os teus movimentos, mas nunca sou capaz de me aperceber do início do resvalo.
- Não existirão mais resvalos, Josh. Juro-te.
- Eu já ouvi isso em outras ocasiões e só quero poder acreditar em ti. Mas se os teus demónios se mostrarem de novo, Nate? Da última vez, estiveste à beira de te matares.
- Não existirão mais recaídas.
- Nate, a próxima será a última. Faremos um funeral em que nos despediremos de ti enquanto ficaremos a vê-los baixarem o teu corpo à terra. Não quero que isso aconteça.
- Não acontecerá, juro-te que não.
- Nesse caso, esquece-te do escritório. Tem um ambiente em que a pressão é excessiva.
O que Nate mais detestava nas desintoxicações eram os longos períodos de silêncio, ou meditação, o termo que Sérgio utilizava. Esperava-se que os internados se agachassem como monges na semiobscuridade, que fechassem os olhos e que encontrassem paz interior. Nate conseguia agachar-se e tudo o mais, mas por detrás das pálpebras cerradas revia os julgamentos das causas que defendera, confrontando-se com os serviços do IRS e maquinando contra as suas ex-mulheres, e, mais importante que tudo o resto, preocupando-se com o seu futuro. A conversa que naquele momento travava com Josh era uma que efectuara mentalmente em muitas ocasiões. Contudo, as suas réplicas inteligentes e argumentos rápidos falharam-lhe sob pressão. Quase quatro meses passados numa solidão virtual embotaram os seus reflexos. Era capaz de mostrar uma aparência deplorável e mais nada.
- Deixa-te disso, Josh. Não podes limitar-te a pôr-me no olho da rua.
- Há mais de vinte anos que és advogado de defesa, Nate. Uma carreira que é mais ou menos a média. Chegou a altura de começares a fazer qualquer coisa de diferente.
- Sendo assim, tornar-me-ei no porta-voz de grupos de interesses, passando a almoçar com secretários de imprensa de um milhar de congressistas de somenos importância.
- Haveremos de te descobrir uma situação adequada. Mas nunca será na sala de um tribunal.
- Não sou muito bom nesse género de almoços. Quero litigar.
- A resposta é não. Poderás continuar na firma, ganhar rios de dinheiro, começar a jogar golfe e a vida correr-te-á da melhor maneira, partindo do princípio de que o IRS não te põe atrás das grades.
Durante alguns momentos agradáveis, o fisco fora completamente esquecido. Agora encontrava-se presente; Nate voltou a sentar-se. Apertou uma pequena embalagem de mel que deitou no café que entretanto esfriara um pouco; o açúcar e os adoçantes artificiais eram substâncias que não podiam ser permitidas num estabelecimento tão saudável como Walnut Hill.
- A hipótese de umas duas semanas passadas nos pantanais brasileiros começa a agradar-me - disse Nate.
- Isso quer dizer que irás?
- Sim - confirmou Nate.
Em virtude de Nate dispor de muito tempo para ler, Josh deixou-lhe uma pasta espessa de cartolina que continha documentação referente à herança Phelan, assim como sobre a nova herdeira tão misteriosa. Também lhe deixou dois livros cujo tema abordava os índios da América do Sul que viviam em locais remotos.
Durante oito horas, Nate leu sem qualquer interrupção, tendo-se esquecido completamente do jantar. Subitamente, sentia-se ansioso por partir, queria dar início à sua aventura. Quando Sérgio o visitou às vinte e duas horas, deparou com ele sentado, como se fosse um monge, no meio da cama, com vários papéis espalhados em seu redor, perdido num outro mundo.
- Chegou a hora de me ir embora - disse Nate.
- Sim, de facto chegou-replicou Sérgio.-Amanhã mesmo começarei a tratar da papelada.
As disputas internas começaram a piorar à medida que os herdeiros Phelan passavam menos tempo a falar entre si e mais nos escritórios dos seus advogados. Decorreu uma semana sem testamento e sem planos de legitimação oficial do mesmo. Com as respectivas fortunas à vista, embora fora de alcance, os herdeiros mostravam-se cada vez mais agitados. Vários dos advogados foram despedidos, dando lugar a outros que os substituíram.
Mary Ross Phelan Jackman dispensou os serviços do seu porque ele não lhe cobrava o suficiente à hora. O seu marido era um cirurgião-ortopedista bem sucedido que tinha vários interesses empresariais. Todos os dias tinha de tratar com advogados. O mais recente que haviam contratado, de nome Grit, era pura dinamite, tendo entrado na confusão de forma espalhafatosa, a seiscentos dólares à hora.
Enquanto os herdeiros aguardavam o desenrolar da situação, incorriam em dívidas excessivas. Foram feitas escrituras de aquisição de mansões. Os novos automóveis eram entregues. Contratavam-se consultores para tarefas tão variadas como o traçado de anexos de piscinas, descobrirem o avião a jacto mais apropriado, para além de aconselharem qual o puro-sangue que deveria ser adquirido. Quando os herdeiros não discutiam andavam a fazer compras. Ramble era a excepção, mas apenas por ser de menor idade. Andava sempre com o seu advogado, que de certeza absoluta contraía dívidas pelo seu cliente.
As litigações em cadeia começam, com frequência, com uma corrida até ao tribunal. Considerando que Josh se recusava a revelar o conteúdo do testamento, ao mesmo tempo que aqui e ali ia dando palpites misteriosos relativos à falta de capacidade testamentária de Troy Phelan, os advogados dos herdeiros Phelan começaram finalmente a entrar em pânico.
Dez dias após o suicídio, Hark Gettys apresentou-se perante o tribunal civil do condado de Fairfax, na Virgínia, onde deu entrada de uma petição compulsória do último testamento e vontades de Troy L. Phelan. Com toda a finura de um advogado ambicioso, com quem os seus oponentes teriam de se haver, deu uma dica a um repórter do Post. Depois de ter submetido a petição ao tribunal, ambos conversaram durante uma hora, abordando alguns comentários que deveriam ser mantidos em sigilo, enquanto outros se destinavam a glorificar o advogado. Na ocasião, houve um fotógrafo que tirou algumas fotografias.
De maneira bastante peculiar, Hark apresentou a sua petição em nome de todos os herdeiros da família Phelan. Listou todos os nomes e endereços como se fossem seus clientes. Enviou-lhes cópias via fax logo que regressou ao escritório. No espaço de dez minutos, as suas linhas telefónicas estavam todas ocupadas.
O artigo do Post, na manhã seguinte, era complementado por uma grande fotografia de Hark, que o mostrava de sobrolho franzido ao cofiar pensativamente as barbas. A história preenchia ainda mais espaço do que se atrevera a sonhar. Leu o artigo ao nascer do Sol num café em Chevy Chase; terminada a leitura, seguiu apressadamente de automóvel para o seu novo escritório.
Duas horas mais tarde, pouco depois das nove horas, o gabinete do oficial de diligências do tribunal civil do condado de Fairfax estava apinhado de advogados, em número superior ao normal. Chegavam em pequenos grupos coesos, exprimindo-se em frases concisas ao falarem com os funcionários, fazendo todos os esforços para se ignorarem mutuamente. Se bem que as petições fossem variadas, todos eles desejavam as mesmas coisas - serem reconhecidos na questão dos Phelan, para além de quererem passar uma vista de olhos pelo testamento.
Os assuntos de legitimação que decorressem no Condado Fairfax eram distribuídos aleatoriamente por uma dúzia de juízes. O processo Phelan foi parar à secretária do meritíssimo F. Parr Wycliff, de trinta e seis anos, um jurista com pouca experiência mas de grandes ambições. Sentiu-se empolgado por lhe caber um caso de tanto relevo.
O gabinete de Wycliff era no tribunal do condado de Fairfax; durante toda a manhã, manteve-se atento aos processos que davam entrada no gabinete do oficial de diligências. A sua secretária entregava-lhe as petições que ele começava a ler imediatamente.
Quando as coisas se acalmaram mais, telefonou a Josh Stafford, a quem se apresentou. Ambos trocaram as trivialidades da praxe durante alguns minutos, os preliminares habituais da advocacia, cautelosos e rígidos, dado que as matérias de mais peso se encontravam por perto. Josh nunca ouvira qualquer menção ao juiz Wycliff.
- Existe algum testamento? - perguntou este por fim.
- Sim, meritíssimo. Existe um testamento. - Josh escolhia as suas palavras com todo o cuidado. No estado da Virgínia, a sonegação de um testamento era considerada um delito grave. Se o juiz desejasse saber, certamente que Josh estaria disposto a cooperar.
- Onde é que se encontra?
- No meu escritório.
- Quem é o testamenteiro?
- Eu - respondeu Stafford.
- Quando é que tenciona proceder à homologação?
- O meu cliente pediu-me que esperasse até ao dia quinze de Janeiro.
- Hum. Por alguma razão em particular?
Existia uma razão muito simples. Troy desejara que os seus filhos gananciosos desfrutassem de uma última orgia de esbanjamento, antes de lhes tirar o tapete de debaixo dos pés. Muito característico de Troy Phelan no seu melhor, mesquinho e cruel.
- Não faço a mais pequena ideia - respondeu Josh. - O testamento é holografado. O senhor Phelan assinou-o segundos antes de ter saltado.
- Um testamento holografado?
- Sim - replicou Josh.
- O doutor não se encontrava junto dele?
- Sim. É uma história muito comprida.
- Talvez eu devesse ouvi-la.
- Talvez devesse.
Josh tinha pela frente um dia bastante ocupado. O que não era o caso com Wycliff, embora este desse a impressão de que todos os seus minutos haviam sido bem planeados. Concordaram em se encontrar para almoçarem juntos, uma sanduíche rápida no gabinete de Wycliff.
A Sérgio não agradava em nada a perspectiva da viagem de Nate à América do Sul. Depois de quase quatro meses passados num lugar extremamente estruturado, como Walnut Hill, onde as portas e portões se mantinham fechadas à chave, havendo um segurança, que não se deixava ver, munido de uma arma enquanto vigiava a estrada numa extensão de mil e seiscentos metros pela montanha abaixo, e onde os televisores, filmes, jogos, revistas e telefones eram mantidos sob uma vigilância apertada, a reentrada numa sociedade familiar era, amiudadas vezes, uma situação traumática. A hipótese de uma reentrada através do Brasil era mais do que perturbadora.
Nate não se sentia incomodado com aquilo. Não fora internado em Walnut Hill por ordem do tribunal. Tinha sido Josh quem o levara para lá, e se Josh lhe pedia que jogasse às escondidas pelas selvas brasileiras, pois que assim fosse. Sérgio podia implicar e resmungar até se fartar.
O período de pré-alta transformou-se numa semana verdadeiramente infernal. O regime alimentar alterou-se de zero gorduras para gorduras de baixo teor, acompanhado dos inevitáveis ingredientes como o sal, a pimenta, o queijo e pequenas porções de manteiga acrescentados aos alimentos, numa preparação do sistema para os malefícios que existiam fora dos muros do estabelecimento hospitalar. O estômago de Nate rebelou-se e, como resultado, perdeu mais quilo e meio.
- Isso é só uma amostra do que te espera lá fora - dissera Sérgio presunçosamente.
Ambos se confrontavam durante a terapia, prática que era comum em Walnut Hill. As sensibilidades tinham de ser atenuadas, as têmperas acalmadas. Sérgio começou a distanciar-se do seu paciente. Regra geral, era difícil dizer adeus, o que levou Sérgio a abreviar as sessões de terapia, mostrando-se indiferente.
Com o fim à vista, Nate começou a contar as horas.
O juiz Wycliff perguntou quais eram as disposições testamentárias e Josh, com toda a cortesia, recusou-se a informá-lo. Comeram sandes de carnes frias sentados a uma pequena mesa no pequeno gabinete de Sua Excelência. A lei não exigia que Josh revelasse o conteúdo de um testamento, pelo menos de momento. Wycliff mostrava-se ligeiramente fora dos trâmites normais ao insistir na pergunta, mas a sua curiosidade era compreensível.
- De certa maneira, sinto alguma simpatia pelos requerentes - alegou ele. - Assiste-lhes o direito de saberem o que está escrito no testamento. Por que motivo é que isso deverá ser atrasado?
- Limito-me a seguir os desejos do meu cliente - replicou Josh.
- Mais cedo ou mais tarde terá de tratar da homologação do testamento.
- Evidentemente que sim - concordou Stafford.
Wycliff fez deslizar a sua agenda para mais próximo do prato de plástico, olhando com um piscar de olhos por cima das lentes dos óculos de ver ao perto.
- Estamos a vinte de Dezembro. Não existe a mínima possibilidade de reunirmos todos os interessados antes do Dia de Natal. O que é que lhe parece se marcarmos para o dia vinte e sete?
- O que é que tem em mente?
- Uma leitura do testamento - respondeu o juiz.
Aquela hipótese deixou Josh atordoado, tendo estado prestes a engasgar-se com um pedaço de pepino em conserva. Juntá-los a todos, os Phelan e respectivas comitivas, novos amigos e os que não os largavam, assim como todos os seus folgazões advogados, apinhando toda a gente dentro da sala de tribunal de Wycliff. Tinha de se certificar de que a imprensa seria informada do acontecimento. Enquanto mastigava outro bocado de pickles, examinando o seu pequeno livro de capa negra, Josh conteve um sorriso. Imaginava ouvir os arquejos e os gemidos, as ondas de choque, a extrema incredulidade feita de azedume, ao que se seguiriam as imprecações entre-dentes. Depois, talvez uma fungadela e um soluço chorado, ou dois, enquanto os Phelan tentavam absorver o que o seu amado pai lhes reservara.
Seria um momento absolutamente único na história da jurisprudência norte-americana, perverso e glorioso; de súbito, Josh sentiu que não poderia adiar aquele momento por mais tempo.
- No que me diz respeito, o dia vinte e sete é óptimo.
- Esplêndido. Vou notificar os interessados logo que me seja possível identificar todos. São representados por um grande número de advogados.
- O que é compreensível se não nos esquecermos de que existem seis filhos e três ex-mulheres, o que dá lugar a nove conjuntos principais de advogados.
- Só espero que a minha sala de tribunal seja suficientemente espaçosa
para acomodar todos.
«Só se ficarem de pé», esteve Josh quase a dizer. Imaginava as pessoas apinhadas, sem que se fizesse ouvir um único som enquanto o sobrescrito era aberto, o testamento começava a ser desdobrado e as palavras inacreditáveis a serem lidas.
- Sugiro-lhe que leia o testamento - alvitrou Josh.
Sem a menor dúvida que era o que Wycliff tencionava fazer. Mentalmente, imaginava a mesma cena que preenchia os pensamentos de Josh. Seria um dos seus momentos mais altos, a leitura de um testamento que dispunha de onze mil milhões de dólares.
- Suponho que esse testamento seja um tanto ou quanto controverso - disse o juiz.
- É perverso.
Na realidade, Sua Excelência chegou a esboçar um sorriso.
Antes da sua recaída mais recente, Nate vivera num andar de um prédio antigo em Georgetown, apartamento que alugara depois do seu último divórcio. Mas naquele momento, essa casa esfumara-se, vítima da sua falência pessoal. Assim, literalmente, não havia lugar nenhum onde Nate pudesse passar a sua primeira noite de liberdade.
Tal como era seu costume, Josh planeara cuidadosamente a saída do amigo do centro de desintoxicação. Chegou a Walnut Hill à hora combinada, levando um saco de tecido maleável cheio de calções novos J. Crew bem passados a ferro, que se destinavam à viagem até terras do hemisfério sul. Tinha o passaporte e respectivo visto de entrada, dinheiro em abundância, e montes de instruções e bilhetes de avião, assim como um plano de acção. Até mesmo um estojo de primeiros socorros.
Nate nunca chegou a ter a oportunidade de sentir ansiedade. Despediu-se de alguns membros do pessoal médico, embora a maior parte estivesse ocupada nas suas tarefas algures, o que se devia ao facto de terem por hábito evitar as despedidas. Nate transpôs a porta principal com uma postura orgulhosa depois de cento e quarenta dias de uma sobriedade maravilhosa; desintoxicado, bronzeado, em boa forma física, tendo perdido cerca de oito quilos, com um peso de mais ou menos setenta e dois quilos, um peso de que não se pudera gabar durante os últimos vinte e anos.
Josh era quem conduzia o automóvel; ao longo dos primeiros cinco minutos, os dois homens não trocaram palavra. A neve cobrira as pastagens com um manto branco, mas, de um momento para o outro, começou a ficar menos espessa à medida que se afastavam de Blue Ridge. Era o dia vinte e dois de Dezembro. No rádio do carro ouviam-se canções alusivas ao Natal num volume de som reduzido.
- Podes desligar isso? - perguntou Nate por fim.
- O quê?
- O rádio.
Josh premiu um botão e a música a que não prestara atenção deixou de se ouvir.
- Como é que te sentes? - inquiriu Josh.
- Podes parar na primeira loja de conveniência por que passarmos?
- Com certeza. Porquê?
- Quero comprar uma embalagem de seis latas de cerveja.
- Muito engraçado.
- Estou capaz de matar por uma Coca-Cola.
Compraram refrigerantes e amendoins numa loja rural. A senhora de serviço à caixa registadora brindou-os com um jovial «Feliz Natal», que Nate se sentiu incapaz de retribuir. De volta ao automóvel, Josh tomou a direcção do Aeroporto de Dulles, a duas horas de distância.
- O teu voo aterrará em São Paulo, onde farás uma escala de três horas antes de apanhares outro voo que te levará a uma cidade de nome Campo Grande.
- Essa gente fala inglês?
- Não. São brasileiros. Falam português.
- Claro que falam.
- Mas no aeroporto encontrarás pessoas que sabem falar inglês.
- Qual é o tamanho de Campo Grande?
- Tem meio milhão de habitantes, mas não é o teu destino final. A partir daí, seguirás num voo doméstico que te levará a um lugar chamado Corumbá. A partir daí, as cidades são cada vez mais pequenas.
- Tal como os aviões.
- Sim, à semelhança do que acontece aqui.
- Por qualquer razão que desconheço, a ideia de um voo doméstico brasileiro não me atrai por aí além. Dá-me uma ajuda, Josh. Estou nervoso.
- Ou é esse voo ou uma viagem de seis horas numa camioneta de carreira.
- Continua.
- Em Corumbá, encontrar-te-ás com um advogado de nome Valdir Ruiz. Ele sabe falar inglês.
- Já falaste com ele?
- Sim - confirmou Josh.
- Conseguiste compreender o que ele disse?
- Sim, pelo menos a maior parte do que disse. É um homem muito simpático. Trabalha por mais ou menos cinquenta dólares à hora, se é que consegues acreditar nisso.
- De que tamanho é Corumbá?
- Tem uma população de noventa mil pessoas.
- Isso quer dizer que haverá água e comida, bem como um lugar onde se poderá dormir.
- Sim, Nate, terás um quarto reservado para ti. O que é mais do que podes dizer aqui.
- Ah!
- Desculpa. Queres mudar de ideias?
- Quero, mas não tenciono fazê-lo. Nesta altura, o meu objectivo é fugir deste país antes de ouvir Jingle Bells outra vez. Estaria disposto a dormir numa vala durante as próximas duas semanas, só para evitar a canção Frosty the Snowman.
- Esquece-te da vala. Trata-se de um hotel muito agradável.
- Supostamente, o que é que devo fazer com Valdir?
- Ele tem andado à procura de um guia que te leve até ao Pantanal.
- Como? De avião. De helicóptero?
- Mais provavelmente de barco. Pelo que me é dado saber, essa região só tem pântanos e rios.
- E cobras, crocodilos e piranhas.
- Mas que cobardolas que tu me saíste. Estava convencido de que querias ir.
- E quero. Guia mais depressa.
- Acalma-te. - Josh apontou para uma pasta no assento de trás. - Abre-a - disse ele. - É a tua bagagem de mão.
- Pesa uma tonelada - comentou Nate num resmungo depois de puxar a pasta para si. - O que é que tem dentro?
- Coisas boas.
Era de couro castanho, recém-adquirida, embora tivesse sido manufacturada de molde a parecer usada; era suficientemente espaçosa para conter uma pequena biblioteca de natureza jurídica. Nate colocou-a sobre os joelhos abrindo o fecho.
- Brinquedos - disse ele.
- Esse instrumento pequeníssimo cinzento é um telefone digital de topo de gama - explicou Josh, todo inchado pelas coisas que conseguira reunir. - Assim que chegares a Corumbá, Valdir tratará de te arranjar uma linha local.
- Portanto, há telefones no Brasil.
- Uma data deles. De facto, os serviços de telecomunicações brasileiros atravessam uma fase de grande desenvolvimento. Toda a gente tem um telefone celular.
- Coitadas dessas pessoas. O que é isto?
- Um microcomputador.
- Para que diabo é que eu quero isto?
- É da última geração tecnológica. Repara como é pequeno.
- Nem sequer sou capaz de ler o teclado.
- Podes ligá-lo ao telefone, o que te permitirá receberes o teu correio electrónico.
- Ena! E é suposto que faça isso no meio dos pantanais, com as serpentes e os crocodilos a olharem para mim?
- Isso depende de ti.
- Josh, nem sequer me sirvo do correio electrónico quando estou no escritório - adiantou Nate.
- Não se destina a ti, mas a mim. Quero manter-me ao corrente de tudo o que fazes. Quando a encontrares quero que me informes imediatamente.
- O que é isto?
- O melhor brinquedo de todos. É um telefone-satélite. Podes utilizá-lo em qualquer lugar à face da Terra. Se mantiveres o acumulador de energia carregado, poderás entrar em contacto comigo a qualquer momento.
- Acabaste de dizer que os brasileiros têm uma rede telefónica magnífica.
- Não no Pantanal. É uma região pantanosa com uma superfície de cento e sessenta mil quilómetros quadrados, onde não existe qualquer cidade e a população é escassa. Esse telefone-satélite será o teu único meio de comunicação depois de saíres de Corumbá.
Nate abriu a caixa de plástico rígido examinando o pequeno telefone com um revestimento lustroso.
- Quanto é que isto custou? - perguntou.
- A mim, nem um cêntimo.
- Muito bem, quanto é que custou ao património Phelan?
- Quatro mil e quinhentos dólares. Mas vale todos os cêntimos que custou.
- Os meus índios têm electricidade? - Nate folheava o manual de instruções do utilizador.
- Claro que não.
- Nesse caso, como é que estás à espera que mantenha as baterias carregadas?
- Vem acompanhado de um conjunto suplementar. Tenho a certeza que hás-de pensar em alguma coisa.
- Lá se vai a hipótese de uma estada tranquila.
- Verás que a tua missão decorrerá na maior tranquilidade. Quando chegares ao Brasil, ainda me vais agradecer por estes brinquedos.
- Posso agradecer-te agora?
- Não - respondeu Josh.
- Obrigado, Josh. Por tudo.
- Não tens de quê.
No terminal cheio de gente, sentados a uma pequena mesa do lado de fora de um bar com muito movimento, ambos bebiam um café expresso enquanto liam o jornal. Josh sentia-se muito consciente da existência do bar; Nate dava a impressão de estar alheado. Era difícil não reparar no anúncio em luzes de néon à cerveja Heineken.
Perto deles, passou um pai-natal magricela num passo vagaroso, procurando crianças que tirassem da sua saca prendas de pouco valor. Elvis entoava Blue Christmas, canção que era emitida pela jukebox do bar. O movimento de pessoas era intenso e o barulho enervante; toda a gente queria apanhar um voo que os levasse de regresso a casa, onde passariam a quadra natalícia.
- Estás a sentir-te bem? - perguntou Josh.
- Sim, estou óptimo. Por que é que não te vais embora? Tenho a certeza de que tens mais que fazer.
- Tenciono ficar até que partas.
- Josh, garanto-te que me sinto lindamente. Se estás a pensar que estou à espera de que te vás embora para ir logo a correr para o bar emborcar uns quantos vodkas, estás muito enganado. Não sinto vontade nenhuma de tomar bebidas alcoólicas. Estou limpo, o que me faz sentir muito orgulhoso de mim próprio.
Josh mostrou uma expressão um tanto quanto acanhada, principalmente porque Nate lhe adivinhara os pensamentos. As orgias de álcool a que ele se entregava eram lendárias. Caso cedesse ao vício, em todo o aeroporto não existiriam bebidas suficientes para o satisfazer.
- Não estou preocupado com isso - retorquiu Josh, mentindo.
- Sendo assim, vai-te embora. Já sou muito crescidinho.
Despediram-se junto da porta de embarque, trocando um abraço caloroso e promessas de telefonemas logo que fosse possível. Nate sentia-se ansioso por se instalar no seu pequeno nicho na primeira classe. Por seu lado, Josh tinha um milhar de coisas que o aguardavam no escritório.
Em segredo, Josh tomara duas pequenas precauções. Em primeiro lugar, reservara dois lugares contíguos no avião. Nate poderia viajar sentado junto da janela; o lugar da coxia ficaria desocupado. Não havia necessidade nenhuma de que esse lugar fosse ocupado por qualquer executivo sequioso, que se sentaria junto de Nate emborcando whisky e vinho. Cada passagem de ida e volta custara mais de sete mil dólares, mas o dinheiro não constituía obstáculo nenhum.
Em segundo lugar, Josh falara demoradamente com um funcionário da companhia aérea sobre a desintoxicação de Nate. Ninguém lhe deveria servir qualquer bebida alcoólica, fossem quais fossem as circunstâncias. Josh tinha escrito uma carta que fora enviada para bordo do avião, na eventualidade de ser necessário apresentá-la a fim de convencer Nate.
Entretanto, uma das assistentes de bordo serviu-lhe um sumo de laranja e café. Envolveu-se num cobertor fino admirando a panorâmica de D. C. que desaparecia abaixo de si, enquanto o avião da Varig se elevava por entre o manto de nuvens.
Aquela fuga proporcionava-lhe um sentimento de alívio, permitindo-lhe escapar a Walnut Hill e a Sérgio, à cidade e ao seu movimento desgastante, à última das suas mulheres e à falência, à actual situação confrangedora em que se encontrava por causa das autoridades fiscais. A uma altitude de mais ou menos nove mil metros, Nate já quase decidira que nunca mais regressaria.
Mas o certo era que todas as reentradas se faziam sob um extremo desgaste de nervos. O receio de outra recaída estava sempre presente, logo abaixo da superfície. O aspecto mais assustador com que Nate se defrontava de momento era o terem existido muitas reentradas, o que o levava a sentir-se como se houvesse alcançado o estado de veterano. À semelhança do que acontecia com as ex-mulheres e as sentenças de maior relevo, encontrava-se plenamente habilitado a estabelecer comparações. Será que haveria sempre uma outra?
Durante o jantar, compreendeu que Josh se mantivera activo nos bastidores. Ninguém lhe ofereceu vinho. Limitou-se a debicar a comida com a cautela de alguém que acabara de passar quase quatro meses a desfrutar das melhores alfaces do mundo; até há quatro dias, nada de gorduras, manteiga, banha ou açúcar. A última coisa que desejava era uma indisposição de estômago.
Nate passou pelas brasas, mas sentiu-se farto de dormir. Na qualidade de advogado extremamente ocupado e frequentador da noite, aprendera a viver com poucas horas de sono. Durante o primeiro mês que passara em Walnut Hill haviam-no drogado com pílulas ao ponto de dormir dez horas por dia. Não tinha possibilidade de lhes fazer frente quando se encontrava num estado de semi-coma.
Começou a reunir todos os seus brinquedos em cima do assento desocupado ao seu lado, começando a ler a colecção de manuais de instruções do utilizador.
O telefone-satélite intrigava-o, apesar de lhe ser difícil acreditar que viesse a ser forçado a utilizá-lo.
Havia um outro telefone que despertou a sua atenção. Era o engenho tecnológico mais recente das viagens aéreas, um pequeno dispositivo maneirinho praticamente dissimulado na parede junto do seu assento. Utilizou-o telefonando para casa de Sérgio. Este comia um jantar tardio, mas apesar disso mostrou-se contente por ter notícias de Nate.
- Onde é que estás? - perguntou.
- Num bar - replicou Nate em voz baixa, uma vez que a intensidade das luzes no interior da cabina havia sido reduzida.
- Muito engraçado.
-Provavelmente, neste momento estou a sobrevoar Miami, com a perspectiva de mais oito horas de viagem. Acabei de descobrir este telefone a bordo e só queria saber como é que estás.
- Portanto, está tudo bem contigo?
- Estou óptimo. Tens saudades minhas?
- Ainda não. E tu, tens saudades minhas?
- Estás a brincar comigo? Eu sou um homem livre a caminho da selva, rumo a uma aventura maravilhosa. Mais tarde sentirei saudades tuas, de acordo?
- De acordo. Se tiveres algum problema, não hesites em me telefonar.
- Não haverá problema nenhum, Sérgio. Desta vez isso não acontecerá.
- Assim é que é, Nate.
- Obrigado, Sérgio.
- Não tens de quê. Sempre que te apetecer, telefona-me. Entretanto, começou a ser exibido um filme, embora ninguém lhe prestasse atenção. A assistente de bordo serviu-lhe outro café.
A secretária de Nate era uma mulher chamada Alice, que suportava pacificamente os seus desaires e que, há quase dez anos, tentava imprimir um mínimo de ordem aos seus papéis. Vivia com a irmã numa casa antiga em Arlington. Foi para ela que ligou a seguir. Ao longo dos últimos quatro meses tinham conversado apenas uma vez.
A conversa durou meia hora. Ela sentira-se deleitada ao ouvir a voz de Nate e ao saber que ele tivera alta do centro de desintoxicação. Não tinha conhecimento algum da sua viagem à América do Sul, o que era um tudo nada estranho uma vez que, habitualmente, se mantinha ao corrente de tudo. Todavia, Alice mostrou-se reservada ao telefone, até mesmo cautelosa. Nate, com a perspicácia característica de um advogado de defesa, começou a pensar que ali havia gato, passando ao ataque como se tentasse impugnar o testemunho de alguém em tribunal.
Ela continuava a trabalhar no departamento de causas litigiosas, ocupando a mesma secretária, desempenhando mais ou menos as mesmas funções para um outro advogado.
- Quem? - perguntou Nate num tom de exigência.
Um tipo que começara a trabalhar para a firma há pouco tempo. Um novo litigante. As palavras de Alice eram estudadas, pelo que Nate se apercebeu que ela fora cuidadosamente instruída pelo próprio Josh. Seria inevitável que Nate acabasse por lhe telefonar assim que tivesse alta.
Em que gabinete é que o novo fulano fora instalado? Quem era o seu assistente jurídico? De onde é que ele viera? Qual a experiência que tinha em casos de negligência médica?
Ela mostrou-se bastante vaga.
- Quem é que ocupou o meu gabinete? - perguntou Nate.
- Ninguém. Ninguém lhe tocou. Continua a ter pilhas de processos por todo o lado.
- O que é que o Kerry tem andado a fazer?
- Continua muito ocupado. À sua espera. - Kerry era o assistente jurídico que Nate preferia.
Alice dava-lhe as respostas mais adequadas, embora pouco revelasse. Mostrava-se especialmente reservada a respeito do novo litigante.
- Comece a preparar-se - disse Nate quando a conversa começou a esmorecer. - Está na hora do meu regresso.
- As coisas têm andado bastante enfadonhas por aqui, Nate.
Com gestos lentos, este desligou o telefone, revendo mentalmente as palavras de Alice. Havia algo que lhe soava de forma diferente. Pela calada, Josh reestruturava o seu escritório de advocacia. No meio das alterações, seria Nate dispensado? Não era plausível, contudo os seus dias de sessões no tribunal haviam chegado ao fim.
Decidiu que se preocuparia com aquele assunto mais tarde. Havia tantas pessoas a quem queria telefonar, e tantos telefones com que poderia fazê-lo. Conhecia um juiz que conseguira libertar-se do vício do álcool há dez anos, o que levava Nate a desejar inteirar-se um pouco mais sobre aquele maravilhoso caso de desintoxicação. A sua primeira ex-mulher merecia um telefonema acrimonioso, todavia Nate não estava com disposição para isso. Além de que pretendia telefonar aos seus quatro filhos, para lhes perguntar por que motivo é que não lhe haviam ligado ou escrito.
Não obstante essa intenção, agarrou numa das pastas de cartolina que tinha na pasta, começando a ler acerca do senhor Troy Phelan e do caso que tinha em mãos. À meia-noite, algures por cima das Caraíbas, o sono apoderou-se de Nate.
Uma hora antes do nascer do Sol, o avião iniciou as manobras de aterragem. Nate dormira enquanto o pequeno-almoço era servido; quando despertou, houve uma hospedeira que se apressou a levar-lhe uma chávena de café.
A cidade de São Paulo surgiu abaixo de si, estendendo-se por uma superfície de cerca de mil e trezentos quilómetros quadrados. Nate mantinha-se atento ao mar de luzes abaixo de si, perguntando a si mesmo como é que uma só cidade poderia ter vinte milhões de habitantes.
Num português apressado, o piloto deu os bons-dias seguidos de vários parágrafos de saudações que escaparam inteiramente à compreensão de Nate. A tradução em inglês que se seguiu não foi muito mais perceptível. Certamente que esperava não ser obrigado a apontar e a grunhir pedindo que lhe indicassem o caminho através do país. A barreira linguística provocou-lhe um pequeno baque de ansiedade, que terminou quando uma bonita assistente de bordo lhe pediu que pusesse o cinto de segurança.
A atmosfera no aeroporto era quente e fervilhante de pessoas. Nate pegou no seu saco maleável e atravessou os serviços alfandegários sem que ninguém lhe lançasse um só olhar, após o que se dirigiu ao balcão da Varig validando a passagem para Campo Grande. Em seguida, descobriu um café cuja ementa estava afixada na parede.
- Café expresso - disse, apontando. A empregada de serviço à caixa registadora deu entrada do preço. Franziu as sobrancelhas ao ver o dinheiro em moeda norte-americana, mas ainda assim entregou-lhe o troco correcto. Nessa altura, um real brasileiro valia tanto como um dólar. Naquele momento, Nate passara a ser possuidor de uns quantos reais.
Bebeu o café de pé, ombro a ombro com alguns turistas japoneses barulhentos. Em seu redor, ouvia outras línguas; alemão e espanhol de mistura com o português que era emitido através dos altifalantes.
Desejou ter comprado um dicionário de frases idiomáticas, de forma a poder compreender uma ou duas palavras.
A sensação de isolamento instalou-se dentro dele, inicialmente, a pouco e pouco. No meio de multidões, era um homem solitário. Não conhecia ninguém. Eram muito poucas as pessoas que sabiam onde se encontrava no momento presente, sendo bastante escassas as que se interessavam por ele. Estava envolvido pelo fumo dos cigarros que os turistas fumavam, o que o levou a afastar-se num passo apressado, dirigindo-se para a área principal do aeroporto, de onde podia avistar o tecto dois andares mais acima, assim como o piso abaixo de si. Sem destino certo, começou a caminhar entre a multidão levando a pasta que tão pesada estava, motivo que o levou a praguejar mentalmente contra Josh por a ter enchido com tanta tralha.
Começou a ouvir uma conversa em inglês travada em voz alta que o levou a dirigir-se nessa direcção. Avistou alguns homens de negócios que esperavam próximo do balcão da United Airlines. Ao lado havia uma cadeira vazia e ele sentou-se. Nevava em Detroit e os homens estavam ansiosos por regressar a casa, onde queriam passar o Natal. Tinham ido ao Brasil por causa do negócio de um oleoduto; passado pouco tempo, Nate já estava enfastiado com as tolices que eles diziam. Quaisquer saudades que pudesse sentir da sua terra natal, foram dissipadas por aqueles indivíduos.
Sentia a falta de Sérgio. Depois do último período de desintoxicação, a clínica decidira instalar Nate, pelo período de uma semana, numa casa onde gozara de liberdade parcial, situação que tivera a finalidade de lhe facilitar a reentrada. Tinha detestado tanto o lugar quanto a rotina; contudo, em retrospectiva, tinha de admitir que a ideia tivera algum mérito. Eram necessários alguns dias para que uma pessoa voltasse a adquirir o sentido de orientação. Talvez a razão estivesse do lado de Sérgio. Telefonou-lhe de uma cabina pública a uma hora que o despertou. Em São Paulo eram seis e trinta, mas na Virgínia eram apenas quatro e meia da manhã.
Sérgio não se mostrou incomodado. Fazia parte das suas funções.
No voo para Campo Grande não havia primeira classe, nem sequer lugares desocupados. Nate sentiu-se satisfeito ao constatar que todos os rostos se mantinham ocultos por detrás dos primeiros jornais do dia, bastante diversificados. A imprensa diária era de tendência tão popular e moderna como qualquer jornal publicado nos Estados Unidos, jornais que eram lidos por pessoas ávidas de notícias. Talvez o Brasil não fosse um país tão atrasado como ele tinha pensado que fosse. Aquelas pessoas sabiam ler! O interior do avião, um 727, estava limpo, sendo evidente que a decoração havia sido renovada recentemente.
O carrinho das bebidas estava bem fornecido com Coca-Cola e Sprite; sentia-se quase como se estivesse no seu país de origem. Sentado junto da janela à distância de vinte filas de assentos da carlinga, Nate alheou-se do memorando acerca dos índios que tinha sobre as pernas, admirando a paisagem rural que se estendia abaixo de si. Era vasta e luxuriante, verdejante e cheia de colinas, pontilhada por explorações de gado atravessadas por estradas de terra batida de tons avermelhados. O solo mostrava uma tonalidade laranja-queimado; os caminhos haviam sido abertos como que por acaso, saindo de um pequeno povoado até ao que lhe ficava adjacente. As auto-estradas eram praticamente inexistentes.
No ângulo de visão de Nate surgiu uma estrada pavimentada com bastante tráfego automóvel. O piloto preparou o avião para a aterragem, dando as boas-vindas a Campo Grande aos passageiros a bordo. A cidade tinha arranha-céus, uma baixa com muito movimento, o campo de futebol, que não poderia faltar, e muitas ruas cheias de automóveis; todas as residências tinham telhados de telhas vermelhas. Graças à eficiência típica de uma grande firma, Nate estava de posse de um memorando, que sem dúvida alguma fora preparado pelos associados mais novatos que trabalhavam por trezentos dólares à hora, no qual a cidade de Campo Grande era analisada como se a sua existência fosse crucial para os assuntos em questão. Tinha seiscentos mil habitantes e um entreposto de comercialização de gado. Um grande número de vaqueiros. Um crescimento fulminante. Todas as conveniências modernas. Elementos que era bom possuir, mas o que é que isso lhe interessaria? Nate nem sequer pernoitaria naquela cidade.
O aeroporto dava a impressão de ser excessivamente pequeno para uma cidade com aquelas dimensões; Nate apercebeu-se de imediato que estava a comparar tudo o que via em termos dos Estados Unidos. Tinha de parar com aquilo. Logo que saiu do avião, sentiu uma onda de calor. A temperatura era de trinta e dois graus centígrados. Dois dias antes do Natal sentia o calor sufocante do hemisfério sul. Semicerrou os olhos perante a radiância do Sol, começando a descer as escadas mantendo uma mão firme sobre o corrimão.
Com alguma dificuldade, conseguiu encomendar o almoço num restaurante do aeroporto; quando a refeição chegou à mesa, sentiu-se agradavelmente surpreendido ao constatar que era algo que podia ingerir. Uma sanduíche de frango grelhado num pãozinho que nunca vira antes, acompanhada de umas batatas fritas tão quebradiças como as que habitualmente eram servidas nos restaurantes de comida rápida nos Estados Unidos. Nate comeu lentamente enquanto observava a pista de aterragem à distância. A meio do almoço, avistou um bimotor propulsionado por motores turbo da Air Pantanal que aterrou, aproximando-se do terminal. Desse aparelho, desembarcaram seis pessoas.
Parou de mastigar enquanto se debatia com um súbito ataque de medo. Os voos domésticos eram os que faziam as notícias dos jornais, aqueles que eram noticiados pela CNN, com a diferença de que ninguém na sua terra natal alguma vez ouviria falar de um desses aparelhos caso se despenhasse.
Mas o avião parecia-lhe ser resistente e estar em bom estado, até mesmo, em certa medida, moderno, além de que os pilotos, nas suas fardas impecáveis, mostravam profissionalismo. Nate continuou a comer. «Pensamentos positivos», disse a si mesmo. Terminada a refeição, deambulou pelo pequeno terminal durante uma hora. Num dos quiosques comprou um dicionário de frases idiomáticas em português, começando a memorizar as palavras. Mas a sua atenção foi despertada pela publicidade a viagens aventurosas por terras do Pantanal - ecoturismo, era o nome que lhes eram atribuídas em inglês. Também avistou um balcão de aluguer de automóveis. Outro destinava-se ao câmbio de moeda, assim como um bar com tabuletas de marcas de cerveja e garrafas de whisky alinhadas sobre uma prateleira. Próximo da entrada, alguém colocara uma árvore de Natal artificial, de aspecto raquítico, enfeitada com uma única correnteza de luzes. Nate olhava para as pequenas luzes intermitentes ao som de uma canção brasileira alusiva às festividades; a despeito de todos os seus esforços em contrário, Nate pensou nos seus filhos.
Era o dia que antecedia a véspera de Natal. Nem todas as recordações eram dolorosas.
Com os dentes cerrados e postura rígida, entrou a bordo do avião onde dormiu durante a maior parte da hora de viagem até Corumbá. A atmosfera no pequeno aeroporto da cidade, apinhado de bolivianos que aguardavam um voo que os levasse para Santa Cruz, era de uma humidade opressiva. Aqueles passageiros estavam carregados de caixas e sacos com prendas de Natal.
Depois de aterrar, entrou num táxi, cujo motorista não falava uma única palavra de inglês. Nate mostrou-lhe as palavras «Hotel Palace» que constavam do seu itinerário de viagem, após o que o homem arrancou a toda a velocidade no seu Mazda antigo e sujo.
A fazer fé num outro memorando elaborado pelos funcionários de Josh. Corumbá tinha uma população de noventa mil pessoas. Situada junto do rio Paraguai, na fronteira com a Bolívia, há muito que se declarara a capital de Pantanal. O tráfego fluvial e o comércio haviam fundado aquela cidade actividades que continuavam a mantê-la viva.
Sentindo os efeitos do calor sufocante que reinava no assento traseiro do táxi, Nate ficou com a sensação de que Corumbá era uma pequena cidade agradável com um ritmo de vida um tanto indolente. As ruas eram pavimentadas e amplas, bordejadas por árvores.
Os comerciantes sentavam-se à sombra, na entrada dos seus estabelecimentos, esperando pelos clientes enquanto trocavam trivialidades entre si. Os adolescentes passavam por entre o tráfego automóvel nas suas lambretas, quais flechas céleres. As crianças descalças comiam sorvete sentados às mesas das esplanadas nos passeios.
À medida que se aproximavam da zona onde se concentravam as actividades empresariais, os carros iam-se aglomerando para ficarem engarrafados sob o calor escaldante. Embora tivesse resmungado qualquer coisa, o taxista não parecia estar particularmente incomodado com a paragem. Qualquer motorista de táxi, em Nova Iorque ou D. C, já estaria prestes a atingir um paroxismo de violência.
Mas aquilo era o Brasil, e o Brasil era na América do Sul. Os ponteiros dos relógios avançavam com menor lentidão. Nada era urgente. O tempo não era um elemento crucial. «Livra-te do teu relógio», disse Nate a si próprio. Ao invés, cerrou os olhos e respirou o ar pesado.
O hotel Palace localizava-se no centro da baixa, numa rua que tinha um ligeiro declive em direcção ao rio Paraguai, cujas águas majestosas se avistavam ao longe. Pagou ao taxista com uma mão-cheia de reais, aguardando pacientemente que o homem lhe desse o troco. Agradeceu-lhe em português com um «Obrigado» um tanto frouxo. O homem sorriu-lhe dizendo-lhe qualquer coisa que Nate não entendeu. As portas que davam acesso ao átrio mantínham-se abertas, tal como acontecia com todas as portas que davam para os passeios das ruas de Corumbá.
As primeiras palavras que ouviu, assim que transpôs as portas do hotel, foram gritadas por alguém que se expressava com o sotaque característico do Texas. Nate deparou com um bando de trabalhadores da indústria petrolífera que se preparavam para abandonar o hotel, pagando as suas contas. Tinham estado a beber, o que justificava a expansividade que mostravam, ansiosos por chegar à sua terra natal, onde passariam a quadra natalícia. Nate sentou-se junto de um televisor à espera que os homens se fossem embora.
O seu quarto ficava no oitavo andar. Por dezoito dólares diários coube-lhe um quarto com doze por doze onde havia uma cama estreita excessivamente baixa. Se tivesse colchão, este deveria ser pouco alto. A estrutura de molas era coisa que não valia a pena mencionar. Também viu uma mesa e respectiva cadeira, e um aparelho de ar condicionado encastrado no vidro da janela, um pequeno frigorífico que continha água engarrafada, colas e cerveja; também dispunha de uma casa de banho limpa com sabonete e muitas toalhas. Nate pensou para consigo que as acomodações não eram nada más. Aquilo era uma aventura. Certamente que não era o Four Seasons, mas era habitável.
Durante meia hora Nate tentou estabelecer ligação telefónica com Josh. Contudo, a barreira linguística frustrou os seus intentos. O recepcionista do hotel sabia inglês suficiente para o pôr em contacto com uma telefonista da companhia dos telefones, mas a partir daí a língua portuguesa passou a ser dona e senhora. Tentou telefonar através do seu novo telefone celular, concluindo que a ligação à rede local ainda não fora estabelecida.
Nate estendeu o corpo cansado a todo o comprimento da sua pequena cama de aspecto tão periclitante, adormecendo quase de imediato.
Valdir Ruiz era um homem baixo com uma cintura muitíssimo fina, pele ligeiramente trigueira e com uma pequena cabeça lustrosa, onde faltava grande parte do cabelo, à excepção de uns quantos a que aplicara brilhantina, penteando-os para trás. Tinha uns olhos negros rodeados por inúmeras rugas, o resultado de trinta anos a fumar cigarros em excesso. Tinha cinquenta e dois anos; com dezassete deixara a casa paterna para passar um ano com uma família em Iowa, como estudante de intercâmbio, estadia que lhe fora arranjada por um clube de rotários. Sentia-se orgulhoso do seu inglês, apesar de não ter muitas oportunidades de usar essa língua em Corumbá. Passava a maior parte dos seus serões a ver a CNN e outros canais norte-americanos, num esforço para se manter fluente nessa língua estrangeira.
Decorrido o ano passado em Iowa, fizera os últimos anos do ensino secundário em Campo Grande, após o que frequentara a Universidade de Direito no Rio de Janeiro. Com alguma relutância, regressara a Corumbá com a finalidade de trabalhar num pequeno escritório de advocacia do tio, assim como para cuidar dos progenitores já idosos. Ao longo de mais anos do que lhe interessava recordar, Valdir fora obrigado a suportar a passada lânguida a que a prática de advocacia em Corumbá avançava, ao mesmo tempo que sonhava com o rumo que a sua vida poderia ter levado na cidade grande.
Todavia, era um homem com uma personalidade simpática, feliz com a vida, à semelhança da maneira de ser característica da maior parte dos brasileiros. Trabalhava com eficiência no seu pequeno escritório, coadjuvado por uma secretária que tinha a função de atender o telefone e dactilografar a correspondência. Valdir gostava das actividades que se prendiam com o negócio das imobiliárias, de escrituras, contratos e coisas no género. Nunca trabalhava em tribunais, em primeiro lugar porque as salas de tribunal não constituíam parte integrante da prática jurídica no Brasil. Os julgamentos eram raros. O estilo norte-americano de processos litigiosos ainda não desbravara o caminho até sul; na realidade, continuava confinado aos cinquenta estados que formavam o país. Valdir sentia-se maravilhado com as façanhas e as conversas dos advogados que via na CNN. «Por que motivo é que eles clamam tanto por atenção?», interrogava-se ele frequentemente. Eram advogados que davam conferências de imprensa, participando em todos os debates televisivos onde falavam sobre os seus clientes. Era uma prática de advocacia absolutamente inexistente no Brasil.
O escritório de Valdir situava-se a três quarteirões do hotel Palace, numa área ampla e frondosa que o tio adquirira há várias décadas. O telhado era coberto pelos ramos de árvores de grande porte, o que permitia, fosse qual fosse a intensidade do calor, que Valdir mantivesse as janelas sempre abertas. Agradava-lhe o ruído abafado que vinha da rua. Passava um quarto de hora das quinze quando avistou um homem que nunca tinha visto, que parou em frente do seu escritório começando a examiná-lo. Apercebeu-se logo de que o indivíduo era estrangeiro, de facto um norte-americano. Valdir adivinhou imediatamente que se tratava do doutor O'Riley.
A secretária serviu-lhes um cafezinho, o café forte e negro, bem açucarado, que se bebe no Brasil em pequenas chávenas ao longo de todo o dia; Nate sentiu-se imediatamente viciado por aquela bebida. Encontrava-se sentado no escritório de Valdir, onde os dois já se tratavam pelos respectivos nomes, admirando tudo o que o rodeava: a ventoinha de tecto que rangia acima dele, as janelas abertas que deixavam entrar os sons ensurdecedores da rua, as correntezas bem alinhadas de pastas de arquivo poeirentas sobre as prateleiras atrás de Valdir, as tábuas riscadas do soalho antigo que ambos pisavam. Estava bastante calor no escritório, embora não causasse desconforto. Nate tinha a sensação de que participava num filme rodado há cinquenta anos.
Valdir ligou para D. C. estabelecendo comunicação com Josh. Trocaram algumas palavras antes de entregar o telefone a Nate, sentado do outro lado da mesa.
- Olá, Josh - saudou este. Ficou bem patente que Josh sentiu um alívio enorme ao ouvir a sua voz. Nate contou-lhe os pormenores da viagem até Corumbá, dando ênfase ao facto de estar a sentir-se bem, continuando sóbrio e ansioso pelo desenrolar da sua aventura.
Entretanto, Valdir mostrava-se ocupado a um canto folheando uma pasta de arquivo, enquanto tentava dar a impressão de que não tinha o mínimo interesse na conversa que decorria junto de si, se bem que não lhe escapasse uma só palavra.
Por que razão é que Nate O'Riley se sentiria tão orgulhoso da sua sobriedade?
Terminada a conversa telefónica, Valdir apresentou uma carta de navegação aérea, que começou a desdobrar, referente ao estado de Mato Grosso do Sul, que tinha aproximadamente a mesma superfície territorial do Texas, apontando para o Pantanal. Era uma região que abrangia toda a região noroeste do estado, alargando-se até ao interior de Mato Grosso, a norte, e à Bolívia a ocidente. Os rios e respectivos afluentes eram às centenas, espalhando-se como se fossem artérias através das terras pantanosas. Tinha uma coloração amarela, não havendo nenhuma indicação de quaisquer cidades no Pantanal. Tão-pouco se viam redes viárias ou auto-estradas. Um território pantanoso que abrangia cento e sessenta mil quilómetros quadrados, recordou-se Nate que lera essa informação num dos inúmeros memorandos que Josh lhe tinha preparado.
Enquanto examinavam o mapa, Valdir acendeu um cigarro. Já tinha feito algum trabalho preliminar. Viam-se três X traçados no mapa a vermelho ao longo da linha limítrofe próximo da Bolívia.
- Aqui vivem algumas tribos - indicou Valdir apontando para as marcas a vermelho. - Os Guató e os Ipicas.
- Qual é o tamanho da população? - perguntou Nate, aproximando-se mais; as primeiras olhadelas genuínas que dava a um terreno que se esperava que ele passasse a pente fino à procura de Rachel Lane.
- Na verdade, não se sabe bem quantos são - replicou Valdir em palavras espaçadas e precisas. Esforçava-se com todo o denodo em impressionar o norte-americano com o conhecimento que tinha da língua inglesa. - Há cem anos eram em número muito maior. Mas em cada geração as tribos ficam mais pequenas.
- Até que ponto é que esses nativos mantêm contacto com o mundo exterior? - inquiriu Nate.
- Os contactos são bastante reduzidos. Há mil anos que a cultura destes povos não sofre qualquer alteração. Costumam efectuar pequenas permutas com os barcos fluviais, mas não mostram o mínimo desejo de alterar o seu estilo de vida.
- Por acaso eles saberão onde é que os missionários se encontram?
- É difícil dizer. Tive oportunidade de falar com o ministro da saúde do estado de Mato Grosso do Sul. Conheço-o pessoalmente. O ministério tem uma ideia geral do local onde os missionários trabalham. Também já falei com o representante da FUNAI(1); é a nossa secretaria para os assuntos indígenas.
*1. Fundação Nacional do índio. (N. da T.)
- Valdir apontou para dois dos «X» antes de prosseguir. - Estes são os Guató. Muito provavelmente alguns dos missionários terão sido destacados para esta região.
- Tem informação de alguns dos nomes desses missionários? - perguntou Nate, embora aquela pergunta fosse um tiro no escuro. De acordo com um dos memorandos de Josh, Valdir não fora informado do nome de Rachel Lane. Fora-lhe dito apenas que a mulher em questão trabalhava para a organização Tribos Universais, sem qualquer outro pormenor.
Valdir sorriu abanando a cabeça.
- Isso seria fácil de mais. Tem de compreender que existem pelo menos vinte organizações diversas de missionários, tanto canadianas como norte-americanas, que trabalham no Brasil. É fácil entrar no nosso país, não sendo nada difícil que se desloquem por toda a parte. Especialmente, nas regiões menos desenvolvidas. Ninguém se interessa verdadeiramente com quem anda por aí, assim como pelo que possam fazer. Concluímos que se são missionários, então, terão de ser pessoas de bem.
Nate apontou para Corumbá, e em seguida para o X vermelho mais próximo. , - Quanto tempo é que leva para se ir daqui para ali?
- Depende. Caso se vá de avião, cerca de uma hora. Por barco, de três a cinco dias.
- Nesse caso, onde é que está o meu avião?
- As coisas não são assim tão fáceis - adiantou Valdir recorrendo a outro mapa. Desdobrou-o e alisou-o em cima do primeiro. - Este é um mapa topográfico de Pantanal. Estas são as fazendas.
- As quê?
- Fazendas. Quintas de grande dimensão.
- Eu pensava que só existiam pântanos.
- Não. Há muitas áreas em terrenos suficientemente elevados para se poder criar gado. As fazendas foram fundadas há duzentos anos e os pantaneiros continuam a trabalhar nelas. Somente um escasso número de fazendas é que têm acesso pelo rio, pelo que a maioria utiliza pequenos aviões. As pistas de aterragem estão assinaladas a azul.
Nate apercebeu-se de que havia muito poucas pistas de aterragem nas cercanias dos povoados índios.
- Ainda que decidisse ir de avião para essa região - continuou Valdir -, continuaria a ter de recorrer a um barco para poder chegar aos índios.
- Qual é o estado das pistas de aterragem?
- Os pisos são todos de erva. Por vezes é cortada, mas em alguns casos isso não se verifica. O maior problema são as vacas.
- As vacas?!
- Sim. O gado bovino gosta de erva. Em algumas ocasiões é difícil aterrar porque as vacas pastam nas pistas - acrescentou Valdir sem tentar fazer humor.
- E o gado não pode ser deslocado?
- Sim, quando se espera a chegada de alguém. Mas o problema é que não existem linhas telefónicas.
- Nas fazendas não há telefones?
- Nenhum. Estão muito isoladas.
- Isso quer dizer que não posso ir de avião até ao Pantanal, e depois alugar um barco para descobrir o paradeiro dos índios?
- Não. Os barcos estão aqui, em Corumbá. Tal como os guias. Nate olhou atentamente para o mapa, em especial para o rio Paraguai,
cujo curso sinuoso corria para Norte, na direcção dos povoados dos índios. Algures ao longo do rio, esperava que na sua proximidade, entre todos aqueles vastos terrenos pantanosos, estaria uma simples serva de Deus que vivia cada dia em paz e tranquilidade, pensando muito pouco sobre o futuro, enquanto, sossegadamente, ia ministrando o seu rebanho. Tinha de a encontrar.
- Pelo menos, gostaria de poder sobrevoar essa área - acrescentou Nate.
Valdir voltou a enrolar o segundo mapa.
- Posso contratar um piloto com o respectivo avião.
- E quanto ao barco?
- Tenho andado a tratar disso. Estamos na estação das chuvas, o que significa que a maioria das embarcações está a ser utilizada. Os rios estão cheios. Nesta altura do ano existe mais tráfego fluvial.
Fora muito simpático da parte de Troy Phelan ter decidido suicidar-se durante a estação das cheias. De acordo com o trabalho de investigação que a firma levara a cabo, as chuvas começavam em Novembro, prolongando-se até Fevereiro; consequentemente, todas as terras baixas e muitas das fazendas ficavam submersas.
-No entanto, devo adverti-lo de uma coisa - continuou Valdir, acendendo outro cigarro e enrolando o primeiro mapa-, as viagens aéreas não são isentas de riscos. Os aparelhos são pequenos e, no caso de avaria no motor, bem... - interrompeu-se revirando os olhos com um encolher de ombros, como se não houvesse a mínima esperança de sobrevivência.
- O que é que quer dizer com isso?
- Não existe lugar nenhum onde se possa efectuar uma aterragem de emergência, nenhum sítio onde se possa descer. Há um mês, houve um avião que se despenhou. Encontraram o que restou do aparelho perto da margem do rio, rodeado por crocodilos.
- O que é que aconteceu aos passageiros? - perguntou Nate, sentindo-se aterrorizado com a resposta.
- Pergunte aos crocodilos.
- Mudemos de assunto.
- Mais café? - ofereceu Valdir.
- Sim, por favor.
Valdir gritou chamando a secretária. Os dois homens aproximaram-se da janela observando o movimento dos automóveis.
- Estou em crer que descobri um guia - disse Valdir pouco depois.
- Óptimo. Ele fala inglês?
- Sim, e muito bem. É um homem novo que acabou de sair do exército. Um rapaz esplêndido. O pai era barqueiro no rio.
- Isso é magnífico.
Valdir dirigiu-se à sua mesa de trabalho agarrando no telefone. A secretária ofereceu a Nate outra chávena pequena de cafezinho que ele bebeu de pé junto da janela. No outro lado da rua havia um pequeno bar com três mesas no passeio encimadas por um toldo. Um anúncio vermelho publicitava cerveja Antárctica. Avistou dois homens em mangas de camisa que partilhavam uma mesa, tendo uma garrafa de litro da mesma cerveja entre os dois. Aquele era um ambiente perfeito - um dia de calor, um estado de espírito jovial e uma bebida gelada de que desfrutavam dois amigos sentados à sombra.
Subitamente, Nate começou a sentir tonturas. O anúncio à cerveja passou a estar desfocado; viu aquela cena numa escassa fracção de segundos em que surgiu e desapareceu, regressando logo a seguir ao mesmo tempo que o seu coração batia desordenadamente, cortando-lhe a respiração. Apoiou-se ao de leve contra o peitoril da janela, receando perder o equilíbrio. As mãos tremiam-lhe, e à cautela colocou o cafezinho em cima de uma mesa. Apesar de Valdir se encontrar atrás de Nate não se apercebeu, enquanto mantinha uma conversa em português, que Nate não compreendia.
O suor começou a escorrer-lhe em fileiras alinhadas acima das sobrancelhas. Sentia o sabor da cerveja. O resvalo estava prestes a iniciar-se. Uma fissura na armadura. Uma fenda na barragem. Uma agitação na montanha de resoluções que arquitectara durante os últimos quatro meses, com a ajuda de Sérgio. Nate respirou fundo tentando recompor-se. Aquele momento haveria de passar; sabia que assim seria. Já passara por aquela situação vezes sem conta.
Agarrou na chávena de café que começou a beber com frenesi, enquanto Valdir desligava o telefone anunciando que o piloto se mostrava hesitante, não desejando voar para onde quer que fosse na véspera de Natal. Nate voltou para a cadeira onde estivera sentado debaixo da ventoinha que continuava a ranger.
- Ofereça-lhe mais algum dinheiro - sugeriu Nate.
Valdir fora informado pelo doutor Josh Stafford de que o dinheiro não constituía obstáculo algum em tudo o que se relacionasse com aquela missão.
- Ele ficou de me telefonar dentro de uma hora - retorquiu Valdir. Nate estava pronto para se ir embora. Sacou do seu telefone celular
novinho em folha; Valdir começou a explicar-lhe como é que poderia entrar em contacto com um operador da AT & T que falasse inglês. Depois de aquela operação ter sido concluída, e à guisa de experiência, Nate ligou o número de Sérgio mas foi o atendedor de chamadas que ouviu do outro lado da linha. Em seguida ligou para Alice, a sua secretária, desejando-lhe as boas-festas.
O telemóvel estava a funcionar na perfeição; sentia-se muito orgulhoso do aparelho. Agradeceu a Valdir, dirigindo-se para a porta do escritório. Antes de aquele dia chegar ao fim, ambos voltariam a travar outra conversa.
Encaminhou-se na direcção do rio um pouco mais abaixo, a escassos quarteirões do escritório de Valdir, passando por um pequeno parque onde alguns trabalhadores dispunham cadeiras para um concerto. O fim de tarde estava húmido; sentia a camisa encharcada de suor colada ao peito. O pequeno episódio de há pouco assustara-o mais do que queria admitir. Sentou-se na extremidade de uma mesa de piqueniques, admirando a vastidão do Pantanal que se estendia diante de si. Vindo de nenhures, surgiu-lhe um adolescente esfarrapado que se ofereceu para lhe vender marijuana. Tinha droga dentro de sacos de tamanho ínfimo, numa pequena caixa de madeira. Com um gesto da mão, Nate mandou-o embora. Talvez numa outra vida.
Entretanto, um músico começou a tocar viola; um grupo de gente começou ajuntar-se vagarosamente, à medida que o Sol se punha por detrás das montanhas da Bolívia, não muito distantes dali.
O dinheiro deu os seus frutos. Ainda que com alguma relutância, o piloto concordou em efectuar o voo, apesar de ter insistido em que descolassem cedo, a fim de poderem estar de regresso a Corumbá por volta do meio-dia. Tinha filhos ainda pequenos e uma mulher que se irritava com facilidade, para além de que, ao fim e ao cabo, estava-se na véspera de Natal.
Valdir prometeu-lhe que sim, acalmando o homem a quem adiantou um bom depósito em dinheiro.
Jevy, o guia com quem Valdir negociara durante uma semana, também recebeu um adiantamento. Jevy tinha vinte e quatro anos, era solteiro e praticava halterofilismo, o que lhe acrescentara aos braços muita massa muscular suplementar. Quando, num passo gingão, entrou no átrio do hotel Palace, usava um chapéu de mato, calções de zuarte, botas pretas ao estilo do exército, uma camisola de algodão de manga curta e uma faca de lâmina longa e cintilante com ponta de fio duplo, que enfiara por dentro do cinto para o caso de poder vir a necessitar de esfolar qualquer coisa. Quando apertou a mão de Nate quase lhe esmagou os ossos.
- Bom-dia - saudou por entre um sorriso rasgado.
- Bons-dias - retribuiu Nate cerrando os dentes ao sentir o estalar dos dedos. A faca não poderia ser ignorada; a lâmina tinha um comprimento de cerca de vinte centímetros.
- Sabe falar português? - perguntou Jevy.
- Não. Apenas inglês.
- Isso não é problema - retorquiu Jevy largando finalmente a mão que continuava a apertar com toda a força. - Eu sei falar inglês. - Falava com um sotaque deveras acentuado, mas até ao momento Nate conseguira compreender todas as palavras que ele dissera. - Aprendi no exército - adiantou ele cheio de orgulho.
Jevy era uma pessoa de quem se gostava sem hesitação após conhecê-lo. Agarrou na pasta de Nate dizendo uma graçola à recepcionista por detrás do balcão. Ela corou desejando ouvir mais.
A sua camioneta era uma Ford de 1978 de caixa aberta, que podia transportar um peso de três quartos de tonelada, o maior veículo que Nate vira até então em Corumbá. Parecia estar preparada para viagens na selva, com pneus de perfil alto, um guincho fixo ao pára-choques dianteiro, uma grade de barras grossas que cobria os faróis; fora pintada recentemente de um verde-escuro e não tinha pára-lamas. Não estava equipada com ar condicionado.
Percorriam as ruas de Corumbá acompanhados do troar do motor, abrandando de velocidade, ainda que apenas ligeiramente, sempre que se aproximavam das luzes vermelhas dos semáforos, ignorando completamente os sinais de stop e, de uma maneira geral, infringindo os direitos dos condutores dos automóveis e motos, todos eles ansiosos por evitarem o tanque de Jevy. Quer fosse por negligência, quer fosse deliberadamente, a panela do escape não funcionava em boas condições. O motor era barulhento, embora esse pormenor não impedisse Jevy de continuar a conversar ao mesmo tempo que manobrava o volante como se fosse um piloto de corridas de automóvel. Nate não conseguia ouvir uma única palavra. Sorria e acenava, qual imbecil, mantendo-se na mesma posição sem fazer qualquer movimento - pés firmemente apoiados no chão, com uma mão que se agarrava à moldura dajanela, enquanto a outra não largava a pasta. Quando se aproximavam de qualquer cruzamento, o seu coração deixava de bater.
Era evidente que todos os condutores compreendiam um sistema de trânsito onde as regras de condução, se existissem algumas, eram ignoradas. Não se verificou acidente algum, nem tão-pouco qualquer carnificina. Toda a gente, incluindo Jevy, conseguia parar, dar prioridade ou desviar-se no último instante.
O aeroporto estava deserto. Estacionaram junto do pequeno terminal continuando a pé até ao extremo da pista de aterragem, onde se encontravam quatro pequenos aviões presos ao solo. Um destes era preparado pelo piloto, um homem que Jevy não conhecia. As apresentações foram feitas em português. O nome do piloto assemelhava-se a algo parecido com Milton. Mostrava-se assaz cordial, embora fosse por demais evidente que teria preferido não voar, ou ter de trabalhar, na véspera de Natal.
Enquanto os brasileiros travavam um diálogo, Nate examinava o aparelho. A primeira coisa em que reparou foi que estava precisado de uma pintura nova, e isso, por si só, preocupava-o bastante. Se o exterior se encontrava deteriorado, com a pintura a lascar, poderia o interior manter-se em melhores condições? Os pneus estavam carecas. Em redor do compartimento do motor viam-se várias manchas de óleo. Era um Cessna 206, já antigo, um monomotor.
O abastecimento de combustível levou quinze minutos, e a partida, entusiasticamente combinada para uma hora mais cedo, continuava a arrastar-se sem fim à vista, com a aproximação das dez horas. Nate sacou do seu sofisticado telefone celular, que guardara na algibeira mais funda dos calções de caqui, ligando para Sérgio. Este tomava café com a mulher, fazendo planos para as últimas compras de Natal. Uma vez mais, Nate sentiu-se grato por se encontrar fora do país, afastado do frenesi das festividades próprias daquela quadra. A meio do Atlântico estava frio e caía granizo misturado com chuva. Nate garantiu-lhe que continuava a aguentar-se muito bem; não havia qualquer problema.
Pensava que conseguira deter a recaída. Tinha acordado com uma nova força, mais determinado do que nunca; tudo não passara de um momento passageiro de fraqueza. Por conseguinte, não mencionou o assunto a Sérgio. Deveria tê-lo feito, mas por que haveria Nate de o preocupar naquela quadra festiva?
Durante a conversa, o Sol ocultou-se por detrás de uma nuvem escura, ao mesmo tempo que começavam a cair umas quantas gotas esparsas de chuva em redor. Mal reparou naquilo. Desligou depois do tradicional «Feliz Natal».
Entretanto, o piloto anunciou que estava pronto para descolar.
- Não se sente preocupado com a segurança do avião? - perguntou Nate a Jevy quando levaram para bordo a pasta e uma mochila.
- Sem dúvida - respondeu Jevy com uma gargalhada. - Este homem tem quatro filhos pequenos e uma mulher bonita, pelo menos é o que diz. Por que haveria ele de arriscar a vida?
Jevy confiou a Nate que desejava ter lições de voo, o que o levou a oferecer-se para se sentar ao lado de Milton. Nate não viu qualquer inconveniente. Sentou-se atrás dos dois num espaço bastante exíguo, tendo apertado o cinto de segurança e as correias dos ombros tanto quanto lhe foi possível. Com mostras de alguma relutância, demasiada, na óptica de Nate, o motor começou a funcionar; o interior da pequena carlinga transformou-se numa fornalha até Milton ter aberto a janela do seu lado. O ar de retorno do propulsor ajudou-os a respirar. O aparelho começou a rolar aos solavancos até ao fim da pista alcatroada. A autorização de descolagem não oferecia o mínimo obstáculo, dado que não havia mais tráfego aéreo. Depois de terem descolado, a camisa de Nate colara-se-lhe às costas devido à transpiração que lhe escorria do pescoço.
Imediatamente, Corumbá ficou abaixo dos viajantes. Vista do ar, a cidade parecia mais bonita, com as fileiras alinhadas de pequenas casas, em ruas que davam a impressão de terem sido estruturadas de acordo com um plano bem organizado. Naquele momento, havia bastante movimento na baixa, com os automóveis parados devido aos congestionamentos de trânsito, juntamente com os peões que atravessavam as artérias num passo apressado. A cidade ia desaparecendo de vista acima do nível do rio. O avião rumou para norte acompanhando o curso das águas, elevando-se com lentidão enquanto Corumbá se desvanecia atrás do aparelho. Depararam com algumas nuvens pouco densas e uma ligeira turbulência.
A cerca de mil duzentos e vinte metros de altitude, a grandiosidade do Pantanal surgiu inesperadamente à frente deles, no momento em que atravessavam uma nuvem extensa que não augurava nada de bom. A oriente e a norte avistaram dúzias de pequenos cursos de água que descreviam círculos entrecruzados, cujas águas, aparentemente, não seguiam para parte alguma, ligando cada um dos brejos a uma centena de outros. Por causa das inundações, os rios estavam cheios, confluindo em vários lugares. As águas apresentavam diversas tonalidades. Os brejos estagnados eram de um azul-escuro, quase negro em algumas áreas onde a vegetação era mais espessa. Os charcos mais profundos eram verdes. Os afluentes mais pequenos arrastavam uma lama avermelhada, enquanto o grandioso Paraguai estava cheio e tão castanho como o chocolate de malte. No horizonte, tão longe quanto a vista conseguia abranger, toda a extensão de água era azul e a terra verde.
Enquanto Nate olhava para norte e para oriente, os seus dois companheiros observavam o ocidente, em direcção às montanhas distantes da Bolívia. Jevy apontou despertando a atenção de Nate. Para lá das montanhas o firmamento apresentava-se de uma tonalidade mais escura.
Quinze minutos após terem iniciado a viagem, Nate avistou a primeira habitação desde que haviam levantado voo. Era uma fazenda na margem do Paraguai. A casa era pequena e tinha um aspecto cuidado, com o obrigatório telhado de telhas vermelhas. As vacas de pelagem branca pastavam num campo bebendo água à beira do rio. A roupa lavada fora estendida numa corda perto da casa. Não se via nenhum sinal de actividade humana - tão-pouco se via qualquer veículo, antena de televisão ou cabos eléctricos. A pouca distância da casa havia um jardim quadrado todo vedado, um pouco abaixo de um caminho de terra batida. O avião atravessou uma nuvem e a fazenda desapareceu.
Mais formações nublosas. Estas eram mais densas, o que obrigou Milton a descer a cerca de novecentos metros para se manter abaixo das nuvens.
Jevy explicou-lhe que era um posto de visitas turísticas, pelo que se deveriam manter-se tão baixos quanto lhes fosse possível. O primeiro povoado dos Guató situava-se a cerca de uma hora de Corumbá.
O piloto guinou, afastando-se do rio por alguns minutos e começando a sobrevoar uma fazenda. Jevy dobrou o mapa, traçando um círculo em redor de qualquer coisa e entregando-o a Nate atrás de si.
- A Fazenda da Prata - explicou apontando para baixo. No mapa, todas as fazendas estavam assinaladas pelos respectivos nomes, como se fossem grandes propriedades. No solo, a Fazenda da Prata não era muito maior do que a primeira quinta que Nate avistara. Havia mais vacas, umas duas construções pequenas, uma casa ligeiramente maior e uma longa faixa de terra que Nate compreendeu por fim ser uma pista de aterragem. Por perto, não se via qualquer rio nem vestígios de estradas. O acesso só poderia ser feito por via aérea.
Milton mostrava-se cada vez mais preocupado por causa do céu escurecido que via mais para oeste. Deslocava-se para leste e seguiam em direcção ao norte, o encontro parecia ser inevitável.
- Ele não está a gostar da cor do céu mais ali - gritou Jevy, inclinando-se para trás.
A Nate também não agradava nada, mas o piloto não era ele. Limitou-se a encolher os ombros, uma vez que não lhe ocorreu mais resposta nenhuma.
- Vamos manter-nos atentos à situação por alguns minutos - acrescentou Jevy. Milton queria regressar a casa. Por seu turno, Nate desejava, no mínimo dos mínimos, ver os povoados índios. Continuava a albergar a esperança ínfima de, não sabia bem como, conseguir voar ao encontro de Rachel, podendo, quiçá, levá-la consigo para Corumbá, onde poderiam almoçar num café simpático enquanto discutiam o espólio que o pai lhe deixara. Esperanças com pouco fundamento que depressa começaram a sumir-se.
A hipótese de um helicóptero não estava fora de questão, com certeza que o património poderia dar-se a esse luxo. Caso Jevy conseguisse encontrar a aldeia dos índios que procuravam, bem como o lugar apropriado onde pudessem aterrar, Nate alugaria um helicóptero sem mais demoras.
Estava a sonhar.
Outra pequena fazenda, esta a pouca distância do rio Paraguai. As gotas de chuva começaram a bater de rijo contra as janelas do avião, o que levou Milton a descer a mais ou menos seiscentos metros. À esquerda, bastante mais próxima, ficava uma impressionante cordilheira, com um rio sinuoso atravessando a floresta densa no sopé das montanhas.
Do cume montanhoso, a tempestade abatia-se sobre eles com toda a sua fúria. De súbito, o firmamento escureceu bastante mais; as rajadas de vento agitavam o Cessna. O aparelho começou a perder muita altitude, fazendo com que a cabeça de Nate batesse no tejadilho da carlinga. Instantaneamente, sentiu-se aterrorizado.
- Vamos inverter a direcção - gritou Jevy para trás. À sua voz faltava a tranquilidade que Nate teria preferido ouvir. Milton afivelara uma expressão empedernida, todavia os óculos de Sol à aviador haviam desaparecido, dando lugar às gotas de suor que lhe cobriam a testa. O avião guinou acentuadamente para a direita, e logo depois para oriente, após o que numa manobra brusca rumou a sueste, e quando completaram a viragem em direcção ao sul foram confrontados por uma visão doentia. O céu entre eles e Corumbá estava enegrecido.
Milton não queria nada com aquelas condições atmosféricas. Sem hesitar tomou rapidamente o rumo que os levaria para oriente, dizendo qualquer coisa a Jevy que Nate não compreendeu.
- Não podemos voltar a Corumbá - gritou Jevy pouco depois voltando-se para trás. - Ele vai tentar encontrar uma fazenda. Vamos aterrar e aguardar que o temporal comece a amainar. - A sua voz era elevada, deixando adivinhar uma grande ansiedade. O sotaque era bastante mais acentuado.
Nate acenou com a cabeça o melhor que lhe foi possível. Sentia a cabeça atordoada devido aos solavancos; as dores foram provocadas pela primeira fissura que se abrira no tejadilho. O seu estômago começara a protestar.
Durante alguns minutos, tudo indicava que aquela corrida seria ganha pelo Cessna. Certamente que um avião de qualquer dimensão poderia deixar para trás uma tempestade. Massajou o topo da cabeça decidindo que não iria olhar para trás. Mas agora as nuvens escuras também se aproximavam dos lados.
Que espécie de piloto idiota e retrógrado é que descolaria sem verificar previamente o radar? Por outro lado, o radar, se é que dispunham dele, muito provavelmente já teria vinte anos, tendo sido desactivado durante a quadra natalícia.
A chuva tamborilava sobre o avião. O ruído das rajadas de vento ouvia-se em redor do aparelho que era ultrapassado pelas nuvens. O temporal desencadeou-se, assenhoreando-se da situação, e o pequeno avião começou a ser empurrado em todas as direcções, impelido tanto para cima como para baixo. Durante um período de dois longuíssimos minutos, Milton ficou incapaz de pilotar o aparelho devido à violência da turbulência.
Tinha a impressão de pilotar um potro do oeste norte-americano, e não um aeroplano.
Nate olhava através da sua janela não avistando fosse o que fosse; nem água, nem sequer brejos ou pequenas fazendas com pistas de aterragem alongadas. Afundou-se mais no assento. Cerrou os dentes jurando a si mesmo que não vomitaria.
Um poço de ar provocou uma descida súbita do avião em cerca de trinta metros em menos de dois segundos; os três homens gritaram algo indiscernível. Nate soltou um elevado «Oh, merda!». Por seu lado, os companheiros brasileiros praguejaram em português. As exclamações manifestavam o muito medo que os três homens sentiam.
Fez-se uma interrupção nas condições climatéricas, muito rápida, e em que o ar se manteve sereno. Milton accionou a alavanca de controlo para a frente começando a mergulhar a pique. Nate assumiu uma posição que o preparava para qualquer impacte, colocando as duas mãos com firmeza sobre as costas do assento de Milton, e, pela primeira vez, e esperava que pela última, sentiu-se como se fosse um piloto kamikaze. A pulsação do seu coração era acelerada e sentia um nó no estômago. Fechou os olhos e pensou em Sérgio, assim como no instrutor de ioga de Walnut Hill que o ensinara a rezar e a meditar.
Tentou orar e meditar, o que lhe foi impossível ao sentir-se encurralado num avião em queda livre. A morte encontrava-se apenas a alguns segundos de distância.
O som estrondoso de um trovão mesmo acima do Cessna deixou-os atordoados, como se tivesse sido um disparo numa sala escura, sobressaltando-os até aos ossos. Nate sentiu os tímpanos prestes a rebentar.
A queda foi interrompida a cerca de cento e cinquenta metros do solo, enquanto Milton tentava resistir à força dos ventos, conseguindo estabilizar o aparelho.
- Veja se descobre uma fazenda! - gritou Jevy do lugar da frente. Nate, com alguma relutância, começou a perscrutar o solo através do vidro da janela. O solo abaixo de si era matraqueado pela chuva e pelo vento. A folhagem das árvores agitava-se enquanto a superfície dos pequenos charcos se encapelava formando cristas de espuma. Jevy examinou o mapa, constatando que estavam irremediavelmente perdidos.
A chuva abatia-se em bátegas brancas, que restringiam a visibilidade a uns escassos metros. Em algumas ocasiões, Nate mal conseguia destrinçar os contornos do solo. Estavam rodeados por torrentes de chuva, açoitados de um lado para o outro por fortes rajadas de vento. O pequeno avião era agitado como se fosse um simples papagaio de papel.
Milton manejava desesperadamente o painel de instrumentos do aparelho, enquanto Jevy, aterrorizado, olhava em todas as direcções. Não estavam dispostos a despenhar-se sem luta contra os elementos.
Contudo, Nate desistiu. Uma vez que nem sequer conseguiam distinguir o solo, como é que poderiam esperar aterrar em segurança? O pior da tempestade ainda não se fizera sentir. Estava tudo acabado.
Não se daria como culpado perante Deus, a fim de reduzir o tempo de pena. Aquilo era o que merecia pelo estilo de vida que levara. Havia centenas de pessoas que morriam em desastres de aviação todos os anos; ele não era melhor do que os outros.
Avistou o rio de relance, precisamente abaixo deles, e de súbito recordou-se dos crocodilos e das anacondas. Sentiu-se horrorizado perante a perspectiva de se despenhar num pântano. Imaginava-se gravemente ferido, mas sem ter morrido agarrando-se à vida, lutando pela sua sobrevivência, tentando activar o raio do telefone-satélite, ao mesmo tempo que se defendia
dos répteis esfaimados.
A carlinga foi abanada por outro trovão de grande intensidade; Nate decidiu, malgrado tudo, lutar contra as inclemências atmosféricas. Perscrutava o solo numa tentativa vã de descobrir uma fazenda. Durante um segundo, ficaram cegos por um forte relâmpago. O motor começou a engasgar-se, mas acabou por retomar um funcionamento regular. Milton desceu a uma altitude de mais ou menos cento e vinte metros, altitude que seria segura em circunstâncias normais. Do mal o menos, não existiam colinas nem montanhas no Pantanal com que tivessem de se preocupar.
Nate apertou ainda mais as correias que lhe prendiam os ombros, após o que começou a vomitar por entre as pernas. Não sentiu o mínimo constrangimento por aquela indisposição. Tudo o que sentia limitava-se a um profundo sentimento de terror.
Foram tragados pela escuridão. Milton e Jevy falavam aos gritos ao mesmo tempo que eram sacudidos de um lado para o outro, esforçando-se por dominar os comandos do avião. Os ombros de ambos roçavam-se e embatiam um contra o outro. Jevy mantinha o mapa preso entre as pernas, inteiramente inútil naquelas circunstâncias.
A tempestade continuava a desencadear-se abaixo dos três homens. Milton desceu a uma altitude de cerca de sessenta metros, o que lhes permitia avistar secções do solo. Houve uma rajada de vento mais forte que os atirou de lado, literalmente, empurrando o Cessna de lado; Nate compreendeu quão desesperada era a situação em que se encontravam. Mas, então, avistou um objecto negro abaixo de si começando a gritar e a apontar. - A cow! A cow!
- Uma vaca! Uma vaca! - berrou Jevy traduzindo para Milton.
Desceram por entre as nuvens a uma altura do solo de pouco mais de nove metros, cercados por bátegas de chuva que os cegavam por breves instantes, sobrevoando directamente por cima das telhas vermelhas do telhado de uma casa. Jevy gritou de novo, apontando para qualquer coisa que vira no seu lado do avião. A pista de aterragem dava a impressão de ter o comprimento igual a um bom caminho de acesso de qualquer casa nos subúrbios, perigosa mesmo em condições climatéricas favoráveis. Não obstante, isso não fazia a mínima diferença. Não lhes restava outra alternativa. Caso se despenhassem, pelo menos, sabiam que haveria gente por perto.
Haviam descoberto a pista tarde de mais para que pudessem aterrar com o vento de feição, o que levou Milton a preparar o avião, pronto para aterrar bem no núcleo do temporal. O vento açoitou o Cessna obrigando-o a descrever um círculo, cujo efeito foi o de praticamente neutralizar o motor. A chuva reduzia o ângulo de visibilidade praticamente a zero. Nate inclinou-se para a frente com o propósito de examinar a pista de aterragem, vendo apenas as bátegas de água que açoitavam violentamente o pára-brisas.
A pouco mais de quinze metros de altitude, o Cessna foi arremessado de lado. Milton conseguiu equilibrá-lo.
- Cows! Vacas! - gritou Jevy. De imediato, Nate compreendeu o significado da palavra. Também viu os animais. Não tiveram oportunidade de avistar o primeiro.
Na rápida sequência de imagens antes da colisão, Nate avistou um garoto que corria com um pau por entre a erva alta, encharcado e assustado. Também viu uma vaca que corria afastando-se da pista de aterragem. Reparou em Jevy que se firmava enquanto olhava através do pára-brisas, com a boca aberta, embora não emitisse qualquer palavra, e olhos arregalados.
Embateram contra as ervas, mas o aparelho não se deteve. Era uma aterragem de emergência e não uma colisão; naquela fracção de segundos, Nate albergou a esperança de que não morreriam. O avião elevou-se do solo a uma altura de mais ou menos três metros, impelido por uma forte rajada de vento, para logo voltar a colidir com o solo.
- Cow! Vaca!
O propulsor golpeou uma enorme vaca curiosamente imóvel. O aparelho capotou com violência e o impacte fez os vidros das janelas em estilhaços; os três homens gritaram as suas derradeiras palavras.
Nate recuperou a consciência, dando consigo deitado de lado e coberto de sangue, sem ter palavras que descrevessem o susto que apanhara, embora se sentisse bem vivo, apercebendo-se inesperadamente que continuava a chover. O vento ululava através do aparelho. Milton e Jevy estavam amontoados, um em cima do outro, apesar de se moverem tentando desprender os cintos de segurança.
Nate viu uma janela por onde meteu a cabeça. O Cessna caíra de lado, com uma das asas quebrada e dobrada sob a carlinga. O sangue espalhava-se por todo o lado, mas era da vaca e não dos passageiros. A chuva, que continuava a cair em fortes bátegas, tratava de o lavar rapidamente.
O rapaz com o pau conduziu-os a um pequeno estábulo próximo da pista de aterragem. Depois de abrigado da tempestade, Milton caiu de joelhos dedicando uma pequena, mas fervorosa, oração à Virgem Maria numa voz entrecortada. Nate observava-o, começando mais ou menos a rezar com ele.
Ninguém ficara gravemente ferido. Milton sofrera um pequeno golpe na fronte. Um dos pulsos de Jevy começara a inchar. As dores far-se-iam sentir mais tarde.
Deixaram-se ficar sentados na terra durante muito tempo, olhando para a chuva, ouvindo o vento, pensando na tragédia que poderia ter acontecido, sem proferirem uma única palavra.
O dono da vaca apareceu aproximadamente uma hora mais tarde, altura em que o temporal começou a amainar um pouco e a chuva parou por uns momentos. Estava descalço; usava uns calções de ganga e uma camisola de algodão de manga curta, toda esfarrapada, com o emblema dos Chicago Bulls. O seu nome era Marco; era evidente que não se sentia imbuído do espírito de alegria característico da quadra natalícia.
Disse ao garoto que se fosse embora, após o que iniciou uma discussão acalorada com Milton e Jevy sobre o valor da vaca. Milton mostrava-se mais preocupado com o seu avião e Jevy com o seu pulso inchado. Nate mantinha-se de pé junto de uma janela, perguntando a si mesmo, exactamente, por que carga d'água é que se encontrava naquela situação, em plena selva brasileira na véspera de Natal, numa manjedoura fedorenta, cheio de dores e hematomas, coberto pelo sangue de uma vaca, ouvindo três homens que discutiam numa língua estrangeira, tendo muita sorte por estar vivo. Não encontrou quaisquer respostas elucidativas.
A julgar pelo aspecto de outras vacas que pastavam por perto, estas não valeriam grande coisa.
- Eu pago pelo raio da criatura! - interveio Nate dirigindo-se a Jevy. Este perguntou ao homem quanto é que a vaca valia.
- Cem reais - informou Jevy.
- Ele aceita o pagamento com o cartão de crédito da American Express? - perguntou Nate, mas o seu sentido de humor perdeu-se. - Eu pago o animal. - Cem dólares. Estaria disposto a pagar essa quantia só para que Marco deixasse de se lamentar.
Depois de o acordo ter sido celebrado, o homem assumiu a posição de anfitrião dos três. Conduziu-os a sua casa, onde o almoço era preparado por uma mulher baixinha e descalça, que sorriu brindando-os com umas boas-vindas calorosas. Por razões que saltavam à vista, convidados era uma coisa de que nunca se ouvira falar no Pantanal, e quando o casal compreendeu que Nate viera dos Estados Unidos chamou os filhos. O rapaz do pau tinha dois irmãos; a mãe disse aos três que examinassem Nate com toda a atenção porque ele era norte-americano.
Pouco depois, agarrou nas camisas dos homens pondo-as de molho numa selha cheia de água da chuva e sabão. Comeram arroz branco e feijão preto sentados a uma pequena mesa, de tronco nu, sem que isso os incomodasse. Nate tinha orgulho nos seus bíceps bem musculados e estômago plano. Jevy tinha o aspecto de um halterofilista a sério. Só o pobre Milton é que mostrava os sinais de quem se aproximava rapidamente da meia-idade, embora fosse bem patente que isso não lhe interessava.
Durante o almoço, os três disseram muito pouco. O horror da colisão ainda estava muito fresco na mente de todos. As crianças sentavam-se no chão perto da mesa, comendo pão achatado e arroz, sem perderem pitada dos movimentos de Nate.
Havia um pequeno rio a cerca de quatrocentos metros ao fundo de um trilho, e Marco tinha um barco a motor. O rio Paraguai encontrava-se a cinco horas de distância. Talvez ele tivesse gasolina suficiente para a viagem, ou talvez não. Mas seria impossível levar os três homens a bordo.
Quando o céu ficou limpo de nuvens, Nate e as crianças dirigiram-se ao local do acidente, retirando a pasta do interior do avião. Durante a pequena caminhada, Nate ensinou os garotos a contar até dez em inglês. Eles retribuíram-lhe, ensinando-o a contar em português. Eram garotos amáveis, muitíssimo tímidos inicialmente, mas à medida que os minutos passavam mostravam-se cada vez mais desinibidos em relação a Nate. Recordou a si mesmo que era véspera de Natal. Teria o Pai-Natal o costume de visitar o Pantanal? Ninguém dava mostras de aguardar a sua chegada.
Em cima de um cepo de árvore, com o maior cuidado, Nate começou a desembalar e a montar o telefone-satélite. A pequena antena parabólica tinha um diâmetro de trinta centímetros, e o telefone, em si, não era maior do que um microcomputador portátil. Os dois instrumentos eram ligados por um fio condutor de energia. Nate ligou o aparelho, dando entrada dos dígitos correspondentes à sua identidade e número PIN, em seguida, lentamente, fez girar a parabólica até conseguir apanhar o sinal emitido pelo satélite Astar-East, que se mantinha em órbita a uma altitude de cento e sessenta quilómetros acima do oceano Atlântico, algures próximo do equador. O sinal era forte, o que era confirmado por um «bip» constante. Marco e a sua família amontoaram-se ainda mais perto de Nate, à sua volta. Perguntou a si mesmo se eles já teriam tido oportunidade de ver um telefone.
Jevy indicou-lhe o número de casa de Milton em Corumbá. Nate marcou os dígitos em gestos vagarosos, após o que susteve a respiração e esperou. Caso não conseguissem estabelecer ligação, seriam forçados a passar o Natal com Marco e família. A casa era pequena; Nate presumia que iriam dormir no estábulo. Perfeito.
O plano «B» era enviar Jevy e Marco no barco. Eram quase treze horas. Cinco horas de viagem até ao rio Paraguai colocá-los-ia aí um pouco antes de escurecer, partindo do princípio de que o combustível seria em quantidade suficiente. Chegados ao grande rio, teriam de se haver com a tarefa de encontrar ajuda, o que poderia levar várias horas. Na hipótese de a gasolina não chegar, ficariam irremediavelmente encalhados no Pantanal. Jevy não tinha vetado esse plano assim que foi conhecido, todavia, ninguém se mostrava muito entusiasmado em dar-lhe execução.
Ainda existiam outros factores a ponderar. Marco não ocultava a relutância que sentia por ter de partir àquela hora do dia, que já ia adiantado. Habitualmente, quando efectuava as suas transacções no rio Paraguai, saía de casa ao nascer do Sol. E se bem que houvesse a possibilidade de encontrar combustível suplementar, em casa de um vizinho a uma hora de distância, estava muito longe de ter a certeza disso.
- Oi - respondeu uma voz feminina através do altifalante, o que desenhou um sorriso nos lábios de todos. Nate entregou o telefone a Milton que saudou a sua mulher, para logo de seguida começar a relatar a história triste da situação adversa em que se encontravam. Jevy segredava a tradução ao ouvido de Nate. As crianças não escondiam o quanto se sentiam maravilhadas ao ouvir falar inglês.
A conversa começou a ficar mais tensa tendo sido abruptamente interrompida.
- Ela foi procurar um número de telefone - explicou Jevy. O número que foi dado era de um piloto que Milton conhecia. Com a promessa de que estaria em casa à hora de jantar, desligou.
O piloto não se encontrava em casa. A mulher informou que o marido fora a Campo Grande tratar de um assunto, esperando que ele regressasse ao fim do dia. Milton indicou-lhe o local onde se encontravam, e ela foi procurar mais números de telefone onde talvez fosse possível encontrar o marido.
- Peça-lhe que fale depressa - indicou Nate enquanto marcava outro número de telefone. - Esta bateria não vai durar para sempre.
Milton não obteve resposta depois de ligar o número seguinte. Após outra ligação, o piloto em questão foi chamado ao telefone; a meio da conversa em que explicava que o seu avião estava a ser reparado, o sinal foi interrompido.
As nuvens, uma vez mais, cobriam o firmamento. Nate olhou para o céu cada vez mais escuro sem querer acreditar no que via. Milton estava à beira de uma crise de lágrimas.
Caiu uma chuvada rápida, uma chuva fria que as crianças aproveitaram para brincar, enquanto os adultos ficavam sentados no alpendre observando-as em silêncio.
Jevy arquitectou outro plano. Nas proximidades de Corumbá havia uma base militar. Não tinha prestado serviço nessas instalações do exército, mas costumava praticar halterofilismo com vários dos oficiais. Quando o céu voltou a clarear, regressaram para junto do cepo colocando-se em redor do telefone. Jevy ligou o número de um amigo que lhe facultou alguns números de telefone.
O exército dispunha de helicópteros. Ao fim e ao cabo, haviam sido vítimas de um acidente aéreo. Quando o segundo-oficial atendeu o telefone, Jevy explicou rapidamente o que lhes acontecera, pedindo-lhe auxílio.
Ouvir apenas a parte da conversa que correspondia a Jevy, para Nate, era uma autêntica tortura. Não compreendia uma única palavra, embora a linguagem corporal lhe contasse o diálogo. Sorrisos e franzires de sobrolho, pedidos ansiosos, pausas frustrantes, ao que se seguiu a repetição de frases que já tinham sido ditas.
- Ele vai telefonar ao seu comandante - explicou Jevy depois de ter terminado a conversa. - Quer que eu lhe ligue dentro de uma hora.
Uma hora pareceu-lhes uma semana. O Sol regressou ressequindo as ervas molhadas. O teor de humidade era bastante elevado. Continuando de tronco nu, Nate começou a sentir o ardor provocado pela exposição excessiva ao Sol.
Acolheram-se à sombra de uma árvore para escaparem aos efeitos da intensidade do Sol. A senhora foi inspeccionar as camisas, que tinham ficado penduradas durante a última chuvada, constatando que ainda estavam molhadas.
Jevy e Milton tinham uma pele com uma pigmentação bastante mais escura do que a de Nate, pelo que não estavam absolutamente nada preocupados com a intensidade dos raios solares. Marco também não se mostrava incomodado; os três brasileiros dirigiram-se ao avião para avaliarem a extensão dos estragos. Nate ficou para trás, procurando a sombra de uma árvore, onde se sentiria mais seguro. O calor da tarde era sufocante. Sentiu que o peito e os ombros começavam a entorpecer, e a hipótese de uma sesta ocorreu-lhe ao pensamento. Mas os garotos tinham outros planos em mente - Luís era o mais velho, aquele que correra com uma das vacas para fora da pista de aterragem segundos antes da colisão. Oli era o irmão do meio e o mais pequeno chamava-se Tomás. Servindo-se do dicionário de frases idiomáticas que guardara na pasta, a pouco e pouco, Nate foi rompendo a barreira linguística. «Olá. Como é que está? Como é que se chama? Boa tarde.» Os rapazes repetiam as frases em português, para que Nate aprendesse a pronunciá-las correctamente, após o que o processo era invertido revertendo ao inglês.
Entretanto, Jevy aproximou-se trazendo alguns mapas; fizeram outro telefonema. Ficaram com a impressão de que o exército mostrava algum interesse pela situação em que se encontravam.
- A Fazenda Esperança - disse Milton apontando para um dos mapas, o que Jevy repetiu com grande entusiasmo. No entanto, o sinal enfraqueceu alguns segundos depois, forçando-o a desligar. - Não consegue encontrar o comandante - informou ele em inglês tentando mostrar-se confiante. - Bem vê, não nos devemos esquecer de que estamos no Natal.
O Natal passado no Pantanal. Trinta e dois graus centígrados e com o teor de humidade ainda mais elevado. Um Sol escaldante sem que Nate pudesse recorrer a um protector solar. Toda a espécie de insectos sem o recurso de um repelente. Garotos vivazes e alegres cuja esperança de receberem quaisquer brinquedos era nula. Nada de música porque não havia energia eléctrica. Tão-pouco havia uma árvore de Natal. A comida, champanhe ou vinhos próprios do Natal também primavam pela ausência.
Aquilo era uma aventura, repetia Nate constantemente para si próprio. «Onde é que está o teu sentido de humor?»
Nate voltou a guardar o telefone no seu estojo que fechou com firmeza. Milton e Jevy abeiraram-se do avião. A senhora foi para dentro de casa. Marco tinha algo a fazer nas traseiras. Por seu turno, Nate voltou a procurar a protecção da sombra que a árvore lhe proporcionava, pensando no quanto seria agradável ouvir um único verso de White Christmas, o que acompanharia com um copo de champanhe.
Os seus pensamentos foram interrompidos por Luís que apareceu com três dos cavalos mais escanzelados que Nate alguma vez vira. Um dos animais estava selado com uma espécie de sela, de aspecto cruel, feita de couro e madeira assente sobre um bocado de tecido de um laranja garrido, que parecia ter sido cortado de uma velha carpete esfarrapada. A sela destinava-se a Nate. Luís e Oli saltaram para a garupa em pêlo do cavalo sem o mais pequeno esforço; com apenas um impulso seguido de um salto, os garotos montaram, mantendo-se perfeitamente equilibrados.
- Where? - perguntou Nate depois de ter examinado o cavalo que lhe coubera em sorte. - Onde?
Luís apontou indicando o trilho. Nate sabia, o que deduzira de vários gestos que apontaram nessa direcção, durante e depois do almoço, que aquele caminho ia ter ao rio onde Marco mantinha o seu barco.
E por que não? Tratava-se de uma aventura. Que mais é que poderia fazer enquanto as horas se arrastavam interminavelmente? Foi buscar a camisa à corda da roupa e depois de a vestir lá conseguiu montar o pobre cavalo, sem cair e sem se magoar.
Em finais de Outubro, Nate, acompanhado de alguns dos outros viciados de Walnut Hill, tinham passado um domingo bastante agradável montados a cavalo, percorrendo um caminho através de Blue Ridge, absorvendo a magnificência daquele Outono. Sentira o traseiro e as coxas doridas durante uma semana; contudo, conseguira ultrapassar o receio que as bestas lhe haviam causado. Até certo ponto.
Debateu-se com os estribos até ter conseguido ajustar os pés, após o que puxou tanto as rédeas que o animal não se mexia. Mostravam-se muito divertidos, cavalgando as suas montadas que seguiam a trote enquanto o observavam. Por fim, o cavalo de Nate também começou a trotar, um trote lento e um tanto acidentado que lhe magoava as virilhas, com solavancos que lhe arremessavam o corpo de um lado para o outro. Preferindo um andamento mais suave, puxou as rédeas e o cavalo abrandou o ritmo do trote. Os rapazes deram a volta para se colocarem junto dele, seguindo ao seu lado.
O trilho atravessava um pequeno terreno de pastagem, após o que descrevia uma curva, pelo que, ao fim de pouco tempo, deixaram de avistar a casa. Mais à frente viram água - um pântano, igual aos inúmeros terrenos pantanosos que Nate tivera oportunidade de ver do ar. Aquilo não constituiu obstáculo para os garotos, uma vez que a vereda atravessava o pântano a meio; os cavalos estavam acostumados a fazer aquela travessia. Nunca abrandaram o ritmo a que seguiam. De início, a água tinha uma profundidade de apenas alguns centímetros, passando a trinta centímetros e pouco depois já lhe chegava aos estribos. Como seria de esperar, os rapazes estavam descalços, dando a impressão que tinham uma pele rija que nem couro, completamente despreocupados com a água e alheados daquilo que pudesse conter. Nate calçara o par de sapatos ténis Nike de que mais gostava, os quais, ao fim de pouco tempo, ficaram todos molhados.
As piranhas, pequenos peixes perversos com dentes afiados que nem lâminas, espalhavam-se por toda a superfície de Pantanal.
Preferia ter invertido a marcha, mas não fazia a mínima ideia de como é que poderia exprimir esse desejo aos garotos.
- Luís - disse numa voz que traía os receios que sentia. Os garotos olharam-no sem deixarem adivinhar a mais pequena preocupação.
Quando a água já chegava ao peito dos cavalos, abrandaram um pouco. Depois de mais alguns passos, Nate recomeçou a ver os seus pés. Os cavalos saíram no outro extremo retomando o mesmo trilho.
Passaram pelo que restava de uma vedação que lhes ficava à esquerda. Em seguida, depararam com uma habitação em escombros. O trilho alargava-se dando lugar ao piso de um antigo caminho de terra batida. Há muitos anos, a fazenda fora mais próspera, mantendo, sem dúvida alguma, uma exploração de gado onde teria trabalhado um grande número de trabalhadores.
A região do Pantanal começara a ser povoada há mais de duzentos anos, o que Nate soubera através da leitura de uma série de publicações, constatando que pouco se alterara desde então. O isolamento em que as pessoas viviam era uma situação surpreendente. Não se viam vestígios de vizinhos ou de outras crianças; a mente de Nate era preenchida por pensamentos de escola e educação. Será que os jovens, ao atingirem a idade suficiente, se escapuliam para Corumbá onde procuravam trabalho e cônjuges? Ou cuidariam das pequenas quintas, criando a geração seguinte de pantaneiros? Saberiam Marco e a mulher ler e escrever, e, se fosse esse o caso, ensinariam os filhos?
Tencionava fazer aquelas perguntas a Jevy. Um pouco mais à frente deparou com mais água, um pântano de maiores dimensões com árvores desenraizadas que formavam uma amálgama nas duas extremidades. É claro que o trilho atravessava aquelas áreas a meio. Estava-se na estação das cheias e um pouco por todo o lado os caudais de água haviam engrossado. Nos meses mais secos, os terrenos pantanosos transformavam-se em lamaçais, pelo que qualquer novato naquelas paragens poderia percorrer o trilho sem temor de vir a ser comido. «Nesse caso, volta cá nessa altura», disse Nate a si próprio. Nem por sombras tencionava fazê-lo.
Os cavalos seguiam o seu percurso como se fossem máquinas, sem se preocuparem com a água que lhes salpicava as pernas. Os rapazes seguiam semiadormecidos. À medida que a água subia, a cadência da passada abrandava. Quando a água chegou aos joelhos de Nate, e já estava pronto para gritar qualquer coisa desesperada a Luís, Oli apontou para a direita numa atitude de grande indiferença, indicando um local onde dois troncos de árvore bastante carcomidos se elevavam cerca de três metros da água. Entre os dois, avistou um réptil enorme que se mantinha muito sereno dentro de água.
- Jacaré - disse Oli um pouco por cima do ombro, como se Nate desejasse inteirar-se daquela presença. Alligator.
Acima do resto do corpo, os olhos eram protuberantes; Nate tinha a certeza de que o seguiam muito em especial. Sentiu as batidas aceleradas do coração, invadido por uma vontade irresistível de gritar, de berrar por ajuda. Então, Luís voltou-se para trás com uma careta sorridente porque sabia que o seu convidado estava aterrorizado. Este tentou esboçar um sorriso, como se estivesse empolgado por finalmente ter tido a oportunidade de ver uma criatura daquelas bem de perto.
Quando a água se elevou mais, os cavalos ergueram a cabeça. Nate esporeou o seu debaixo de água, mas não obteve qualquer reacção. Em movimentos vagarosos, o crocodilo começou a submergir até que a única parte do seu corpo que ficou visível foram os olhos; em seguida, impulsionou-se para a frente, na direcção deles, desaparecendo nas águas escuras. Num movimento brusco, Nate retirou os pés dos estribos levando os joelhos ao peito, de uma maneira que o fez desequilibrar na sela. Os rapazes disseram qualquer coisa que lhes provocou risadas à socapa, mas Nate não se sentiu constrangido.
Depois de terem percorrido metade do pântano, a água desceu até às pernas dos cavalos, continuando a baixar até às patas. Já em segurança no outro lado, Nate descontraiu-se. Então, começou a rir-se de si próprio. Quando regressasse à sua terra natal, seria capaz de contar este episódio de molde a que fosse verosímil. Tinha amigos que, de mochila às costas, gostavam de fazer férias arriscadas - canoagem em rápidos, incursões por trilhos através de terrenos acidentados, os que gostavam de ir no encalço de gorilas, tipos que gostavam de safaris, gente que tentava sempre salientar-se dos demais com histórias das suas façanhas, descrevendo as experiências quase mortais por que passavam nos confins do mundo. Caso se lhes apresentasse a faceta ecológica do Pantanal, e por dez mil dólares, seria com a maior satisfação que eles saltariam para a garupa de um potro, a fim de atravessar as águas pantanosas, fotografando cobras e crocodilos ao longo do percurso.
Sem nenhum rio à vista, Nate concluiu que estava na hora de fazer o caminho de regresso. Apontou para o seu relógio, ao que Luís os conduziu até casa.
O comandante, em pessoa, foi levado até junto do telefone. Ele e Jevy travaram um diálogo de militar para militar durante cinco minutos - aludindo a lugares para onde haviam sido destacados, referindo-se a pessoas que ambos conheciam - enquanto a luz indicadora do acumulador de energia piscava a intervalos cada vez menores, e o telefone-satélite esgotava pouco a pouco a energia acumulada. Nate apontou; Jevy respondeu-lhe começando a explicar ao comandante que aquela era a última oportunidade de que dispunham para poderem falar.
Não havia motivo para preocupações. Já tinham preparado um helicóptero; estavam só a reunir a tripulação. Qual era a gravidade dos ferimentos?
- Internos - respondeu Jevy lançando um olhar fugidio a Milton. De helicóptero, a fazenda ficava a quarenta minutos de distância, a fazer
fé nos pilotos do exército.
- Dêem-nos uma hora - disse o comandante. Pela primeira vez em todo o dia, Milton esboçou um sorriso.
Decorreu uma hora e o optimismo começou a esmorecer. A ocidente, o Sol punha-se rapidamente; o crepúsculo não vinha longe. Uma missão de resgate nocturno encontrava-se inteiramente fora de questão.
Como que atraídos, aproximaram-se dos destroços do avião em que Milton e Jevy tinham estado a trabalhar durante toda a tarde. Já haviam removido a asa quebrada, fazendo o mesmo ao propulsor. Naquele momento, encontravam-se sobre as ervas, ainda manchadas de sangue, próximo do aparelho. A estrutura do mecanismo de aterragem do lado direito ficara retorcida, apesar de não necessitar de ser substituída.
A vaca morta já fora esquartejada por Marco, ajudado pela sua mulher. O que restava da carcaça mal era visível no mato que rodeava a pista de aterragem.
De acordo com o que Jevy dissera, Milton planeava regressar por barco logo que conseguisse descobrir uma nova asa e propulsor. Na perspectiva de Nate, aquilo seria virtualmente impossível. Como é que ele poderia transportar algo tão volumoso como a asa de um avião numa embarcação suficientemente pequena para poder navegar pelos caudais dos tributários do Pantanal, após o que teria de a carregar através dos mesmos pântanos que Nate visitara montado a cavalo?
Mas esse era um problema que só a ele diria respeito. Nate tinha outros assuntos com que se preocupar.
A senhora levou-lhes café quente e bolachinhas; sentaram-se nas ervas próximas do estábulo começando a conversar de trivialidades. As três pequenas sombras, que não largavam Nate, mantinham-se por perto, com receio de que ele pudesse deixá-los. Passou outra hora.
Foi Tomás, o garoto mais novinho, quem primeiro ouviu o barulho ensurdecedor e monocórdico. Disse qualquer coisa, levantando-se e apontando, o que teve o efeito de imobilizar os outros. O som aumentava de intensidade tornando possível identificar, sem margem para erro, o barulho abafado e repetitivo dos rotores de um helicóptero. Correram para o centro da pista de aterragem, onde ficaram a observar o firmamento.
Quando o aparelho aterrou, surgiram quatro soldados que saltaram através da abertura da porta corrediça, começando a correr em direcção ao grupo.
Nate ajoelhou-se entre os garotos, oferecendo dez reais a cada um.
- Merry Christmas - disse ele. Boas-Festas. Em seguida, deu-lhes um abraço rápido, agarrou na pasta e correu para o helicóptero.
Quando descolaram, Jevy e Nate fizeram um gesto de despedida, dizendo adeus à pequena família. Milton estava demasiado ocupado, agradecendo aos pilotos e soldados, para se preocupar com despedidas. A cerca de cento e cinquenta metros de altitude, o Pantanal começou a estender-se para a linha de horizonte. A oriente, o firmamento escurecera.
O céu também estava enegrecido sobre Corumbá quando começaram a sobrevoar a cidade, meia hora mais tarde. Depararam-se com uma panorâmica de grande beleza - os edifícios e as vivendas, as luzes de Natal, o tráfego automóvel. Aterraram na base militar a ocidente da cidade, por entre um acumulado de nuvens acima do rio Paraguai. O comandante foi ao encontro dos três homens, recebendo os profusos agradecimentos de que tão merecedor era. Mostrou-se surpreendido perante a ausência de ferimentos graves, apesar disso não escondeu a satisfação que sentia por uma missão levada a bom porto. Enviou-os para o centro da cidade num jipe descapotável, conduzido por um jovem soldado raso.
Ao entrarem na cidade, o jipe guinou bruscamente, estacionando em frente de uma mercearia. Jevy entrou no estabelecimento de onde saiu com três garrafas de cerveja Brahma. Ofereceu uma a Milton e outra a Nate.
Depois de uma ligeira hesitação, Nate desarrolhou a tampa e levou a garrafa aos lábios. A superfície do vidro estava muito molhada e gelada; a cerveja tinha um sabor delicioso. Ao fim e ao cabo, era Natal, o que é que uma cerveja teria de mais? Ele era muito capaz de dominar a situação.
Seguindo na parte traseira do jipe, enquanto percorriam as ruas poeirentas sentindo o ar húmido a bafejar-lhe as faces, uma garrafa de cerveja gelada numa mão, Nate recordou a si próprio a sorte que tivera por ainda continuar vivo.
Havia quase quatro meses que ele tentara pôr fim à vida. Há seis horas tinha sobrevivido ao despenhamento de um avião.
Todavia, o dia não fora frutuoso. Não se encontrava mais próximo de descobrir o paradeiro de Rachel Lane do que no dia anterior.
A primeira paragem foi no hotel. Nate desejou aos seus companheiros de viagem um Natal cheio de felicidades, indo para o seu quarto, onde se despiu, após o que tomou um duche que durou vinte minutos.
Alguém colocara quatro latas de cerveja dentro do frigorífico. Bebeu-as todas no espaço de uma hora, garantindo a si próprio à medida que as ia bebendo que aquilo não era o início de uma queda no abismo. Tinha a situação sob controlo.
Enganara a morte, por que motivo é que não haveria de celebrar com um pouco do espírito festivo de Natal. Ninguém jamais viria a saber. Conseguiria dominar a situação.
Além do mais, a sobriedade nunca resultara com ele. Provaria a si mesmo que seria capaz de se manter apenas com um pouco de álcool. Nada que fosse razão para preocupações. Umas quantas cervejas aqui e ali. Que mal é que isso lhe poderia fazer?
O telefone despertou-o, embora levasse algum tempo para o atender. A cerveja não produzira quaisquer efeitos retardados, para além do sentimento de culpa, apesar de a aventura a bordo do Cessna estar a cobrar o seu tributo. O pescoço, ombros e região da cintura já estavam de um azul-enegrecido: correntezas bem delineadas de nódoas negras onde as correias de couro o haviam mantido preso na altura em que o avião colidiu com o solo. Tinha pelo menos dois hematomas no crânio, um devera-se a uma pancada, quanto ao outro não se recordava de como é que o arranjara. Com os joelhos quebrara as costas das cadeiras dos pilotos - de início, apenas uns ferimentos ligeiros, pensara Nate, mas a gravidade acentuara-se durante a noite. Os braços e o pescoço estavam queimados do Sol.
- Boas-Festas - saudou uma voz. Era Valdir e eram quase nove horas.
- Obrigado - agradeceu Nate. - O mesmo para si.
- Certo. Como é que se sente?
- Óptimo. Obrigado.
- Esplêndido. Bem... o Jevy telefonou-me ontem à noite e contou-me como é que o avião se despenhou. O Milton deve ser doido para voar ao encontro de uma tempestade. Nunca mais voltarei a usar os seus serviços.
- Também eu não.
- Dói-lhe alguma coisa?
- Sim - confirmou Nate.
- Precisa de um médico? -Não.
- Jevy disse-me que achava que você estava bem.
- Estou óptimo, apenas um pouco dorido.
Fez-se uma pequena pausa que deu tempo a Valdir para mudar de assunto.
- Esta tarde vou dar uma pequena festa de Natal em minha casa. Só estarão presentes a minha família e alguns amigos. Gostaria de ir?
Nate ficou com a impressão de que aquele convite era feito um pouco a contragosto. Não era capaz de discernir se Valdir estava apenas a mostrar-lhe alguma cortesia, ou se a questão se prendia com barreiras linguísticas e de sotaque.
- É muito amável da sua parte - disse Nate -, mas ainda tenho de ler muita coisa.
- Tem a certeza?
- Sim; de qualquer maneira, obrigado.
- De acordo. Tenho boas notícias. Ontem, finalmente, consegui alugar um barco. - Não lhe fora preciso muito tempo para largar o assunto da festa e passar ao do barco.
- Óptimo. Quando é que posso partir?
- Talvez amanhã. Estão a prepará-lo. O Jevy já conhece a embarcação que aluguei.
- Estou ansioso por navegar no rio. Especialmente, depois do incidente de ontem.
Em seguida, Valdir começou com o arrazoado de como não se deixara levar pelo proprietário do barco, um notório unhas-de-fome que inicialmente exigira mil reais por semana. Tinham acabado por chegar a um acordo pela quantia de seiscentos reais. Nate ouvia o que o outro lhe dizia sem mostrar grande interesse. O património Phelan podia suportar aquela despesa sem a mínima dificuldade.
Pouco depois, Valdir despediu-se com outro Feliz Natal.
Os Nike de Nate continuavam húmidos, mas mesmo assim ele calçou-os, vestindo uns calções e uma camisola de algodão de manga curta. Ia tentar correr um pouco, mas se o corpo se recusasse a responder ao exercício, limitar-se-ia a caminhar. Necessitava de ar fresco e exercício físico. Movimentando-se devagar pelo quarto, reparou nas latas vazias de cerveja no caixote do lixo.
Mais tarde trataria daquele assunto. Aquilo não era uma recaída que terminasse numa hecatombe. A sua vida desfilara ontem pela sua mente, o que tinha alterado as coisas. Poderia ter morrido. A partir de agora, todos os dias passariam a ser uma dádiva, todos os momentos tinham de ser saboreados ao máximo. Por que não haveria de desfrutar de alguns dos poucos prazeres que a vida proporcionava? Apenas um pouco de cerveja e vinho, nada mais forte e nunca narcóticos.
Aquele terreno era-lhe familiar; mentiras que vivera anteriormente.
Tomou dois Tylenol e aplicou na pele um bálsamo próprio para longas exposições ao Sol. No televisor do átrio do hotel estava a ser transmitido um programa alusivo ao Natal sem que ninguém o visse, uma vez que não se via vivalma. A jovem de serviço à recepção sorriu-lhe, desejando-lhe os bons-dias. O calor pesado e a humidade pegajosa entravam pelas portas de vidro abertas. Nate deteve-se para tomar um café rápido bem açucarado. A garrafa térmica encontrava-se sobre o balcão, junto de pequenos copos descartáveis bem empilhados, à espera de alguém que fizesse uma pausa para desfrutar de pouco mais de vinte e oito gramas de cafezinho.
Dois cafés e Nate já transpirava antes de deixar o hotel. No passeio, tentou distender o corpo, mas os músculos queixaram-se sentindo as articulações empenadas. O desafio não seria uma corrida; ao invés, seria uma caminhada sem coxear de forma a que se notasse muito.
Mas não havia ninguém que pudesse observá-lo. As lojas estavam fechadas e as ruas vazias, o que não gorava as suas expectativas. Depois de ter percorrido dois quarteirões, sentiu a camisa colada às costas. Nate tinha a sensação de se estar a exercitar numa sauna.
A avenida Rondon era a última artéria pavimentada ao longo da base do penhasco sobranceiro ao rio. Durante bastante tempo, seguiu o traçado do passeio que acompanhava o curso das águas, coxeando ligeiramente enquanto os músculos se soltavam um pouco, ainda que com alguma relutância, e as articulações deixavam de reclamar. Foi ter ao pequeno parque onde estivera há dois dias, no dia vinte e três, quando a multidão se reunira para ouvir música e cantares de Natal. Algumas das cadeiras desdobráveis continuavam ali. As pernas de Nate estavam a precisar de descanso. Sentou-se à mesma mesa de piquenique e olhou em redor, procurando o mesmo adolescente esfarrapado que tentara vender-lhe drogas.
Contudo, não avistou vivalma. Com suavidade massajou os joelhos, admirando a grandiosidade do Pantanal, que se estendia defronte de si por centenas de quilómetros até desaparecer no horizonte. Uma desolação magnífica. Pensou nos rapazes - Luís, Oli e Tomás -, os seus pequenos compinchas com dez reais no bolso e sem maneira de os gastarem. Para aqueles garotos, o Natal não tinha o mínimo significado; todos os dias eram iguais aos anteriores.
Algures, nos vastos terrenos pantanosos que Nate tinha diante de si, encontrava-se uma Rachel Lane, presentemente uma humilde serva de Deus, prestes a tornar-se uma das mulheres mais ricas do mundo. Se efectivamente ele conseguisse encontrá-la, como é que ela reagiria ao ouvir a notícia da sua imensa fortuna? Como é que ela reagiria ao conhecê-lo, um advogado norte-americano que conseguira descobrir-lhe o paradeiro?
As respostas possíveis provocavam um certo mal-estar em Nate.
Pela primeira vez, ocorreu-lhe que, ao fim e ao cabo, Troy Phelan fora um homem tresloucado. Existiria alguma mente lúcida, e racional, que deixasse onze mil milhões de dólares a uma pessoa que não tinha o mínimo interesse em riquezas terrenas? Uma mulher praticamente desconhecida de toda a gente, incluindo aquele que escrevera o testamento pelo seu próprio punho? O acto parecia-lhe insano, muito mais naquele momento em que Nate se sentava num ponto acima do Pantanal, olhando para a aridez dessas terras, a quatro mil e oitocentos quilómetros da sua terra natal.
O que fora possível desvendar sobre Rachel era muito pouco. Evelyn Cunningham, a mãe, era oriunda da pequena cidade de Deli, na Louisiana. Com dezanove anos, mudara-se para Baton Rouge, onde conseguira arranjar um emprego como secretária, numa empresa envolvida na exploração de gás natural. Troy Phelan era o dono da empresa, e durante uma das suas visitas de rotina, regressado de Nova Iorque, Evelyn despertara-lhe a atenção. Evidentemente, ela fora uma mulher de grande beleza, bastante ingénua em consequência da maneira como fora criada numa pequena cidade. Fazendo jus à sua reputação de abutre, Troy investiu sem mais delongas e, ao cabo de poucos meses, Evelyn constatou que estava grávida. O que tinha acontecido na Primavera de 1954.
Em Novembro desse mesmo ano, a gente de Troy, que trabalhava na sede da firma, tratou de arranjar as coisas pela calada, de forma a que Evelyn fosse internada no Hospital Católico, em Nova Orleães, onde Rachel nasceu assim que a mãe foi admitida. Evelyn nunca chegou a ver a filha que dera à luz.
Secundado por um grande número de advogados e uma pressão extraordinária, Troy Phelan tratou de arranjar uma adopção rápida, o que foi feito sem a intervenção de qualquer organismo estatal, e o resultado foi Rachel ter sido adoptada por um sacerdote de Kalispell, Montana, e esposa. Na altura, transaccionava em minas de cobre e zinco nesse estado, o que lhe permitia ter alguns contactos através das empresas que possuía. Os progenitores adoptivos não conheciam a identidade dos pais biológicos.
Evelyn não quisera aquela criança, da mesma forma que não desejava continuar a manter qualquer contacto com Troy Phelan. Aceitou dez mil dólares, após o que regressou a Deli, onde, como seria de esperar, era aguardada por rumores da sua conduta pecaminosa. Foi viver com os pais, aguardando pacientemente que a celeuma se esfumasse. Tal não se veio a verificar. Com uma crueldade peculiar em cidades pequenas, Evelyn viu-se votada ao ostracismo entre as pessoas de que mais necessitava. Era muito raro que saísse de casa, e, com o passar do tempo, começou a viver ainda mais isolada, recolhendo-se à semi-obscuridade do seu quarto. Foi ali, na escuridão oculta do seu pequeno mundo, que Evelyn começou a sentir saudades da filha.
Escreveu várias cartas a Troy, sem que tivesse obtido resposta a nenhuma dessas missivas. Eram arquivadas por uma secretária que as ocultava. Duas semanas depois do suicídio de Troy Phelan, um dos investigadores contratados por Josh encontrou essas cartas perdidas nos arquivos pessoais dele, no seu apartamento.
Com o decorrer dos anos, Evelyn foi mergulhando cada vez mais no seu próprio abismo. Os rumores tornaram-se mais esporádicos, apesar de nunca se terem dissipado de todo. Sempre que os pais iam à igreja, ou ao supermercado local, eram recebidos com olhares e palavras segredadas, o que acabou por também os levar a ter uma vida bastante reservada.
Evelyn cometeu suicídio no dia 2 de Novembro de 1959, no quinto aniversário de Rachel. Conduziu o carro dos pais até ao extremo da cidade saltando de uma ponte. O obituário, acompanhado do relato da sua morte publicado num jornal local, foram parar aos escritórios de Troy, em Nova Jérsia, onde também permaneceram esquecidos depois de terem sido arquivados.
Sabia-se muito pouco a respeito da infância de Rachel. O sacerdote e Mrs. Lane mudaram-se por duas vezes, de Kalispell para Butte, e depois de Butte para Helena. Ele morreu de cancro quando Rachel tinha apenas dezassete anos. Era filha única.
Por razões que ninguém conseguia explicar, além de Troy, ele decidira reentrar na vida da filha na altura em que esta concluía o ensino secundário. Possivelmente, sentiria alguns sentimentos de culpa. Talvez se tivesse sentido preocupado em relação à educação universitária da filha, sem saber se ela poderia custeá-la. Rachel sabia que fora adoptada, embora nunca tivesse mostrado nenhum interesse em conhecer os seus verdadeiros progenitores.
Os pormenores eram desconhecidos, mas sabia-se que Troy Phelan se tinha encontrado com Rachel no Verão de 1972. Quatro anos mais tarde, ela licenciou-se na Universidade de Montana. Depois dessa data, existiam várias lacunas, grandes vazios na sua existência que investigação alguma conseguira preencher.
Nate desconfiava que somente duas pessoas é que poderiam, de maneira adequada, documentar esse relacionamento. Uma dessas estava morta; a outra vivia como uma índia algures na região onde Nate se encontrava, numa das margens de um rio, entre o milhar que existia naquela região.
Nate tentou correr ao longo de um quarteirão, mas as dores obrigaram-no a desistir. Caminhar já era suficientemente difícil. Passaram dois automóveis; as pessoas começavam a movimentar-se pelas ruas. O barulho aproximou-se com rapidez, vindo de trás dele, tão depressa que nem teve tempo de reagir. Jevy meteu travões a fundo junto do lancil do passeio.
- Bom-dia - gritou fazendo-se ouvir acima do barulho do motor.
- Bom-dia - retribuiu Nate com um acenar de cabeça. Jevy accionou a chave da ignição parando o motor.
- Como é que se sente?
- Dorido. E você?
-Nada de preocupante. A recepcionista disse que você tinha ido correr. Vamos dar um passeio.
Nate preferia correr, apesar das dores que isso lhe provocava, a passear na camioneta de Jevy, mas o trânsito era pouco, o que o fez pensar que as ruas seriam mais seguras.
Percorreram a baixa da cidade; Jevy continuava a comportar-se como um condutor que ignorava todos os sinais de trânsito e semáforos. Enquanto atravessavam os cruzamentos a grande velocidade, continuava a não olhar em seu redor.
- Quero que veja o barco - disse Jevy a certa altura. Se se sentia dorido, devido ao acidente aéreo, o que lhe dificultaria os movimentos do corpo, não dava indícios de sentir esse incómodo. Nate limitou-se a concordar com um aceno de cabeça.
Chegaram a uma espécie de doca a leste da cidade, ao fundo de um penhasco, numa pequena enseada de águas turvas onde abundavam as manchas de óleo. Nate avistou um conjunto de embarcações, que já tinham visto melhores dias, balouçando suavemente à superfície do rio - algumas haviam sido abandonadas há anos, havendo outras que só muito raramente é que eram utilizadas. Era manifesto que duas delas serviam para o transporte de gado, com os tombadilhos separados por grades de madeira cheias de lama.
- Ali está ele - indicou Jevy apontando para o rio sem especificar um ponto preciso. Estacionaram na rua, caminhando até à doca onde se viam vários barcos de pesca, pequenos e baixos, que balouçavam sobre a água; os proprietários aportavam ao cais ou faziam-se ao largo. Nate não sabia qual das duas coisas. Jevy gritou a dois deles, obtendo uma resposta bem-humorada.
- O meu pai era barqueiro das embarcações que andam pelo rio - explicou. - Eu costumava vir aqui todos os dias.
- Onde é que está agora? - perguntou Nate.
- Afogou-se durante uma tempestade.
«Que maravilha!», pensou Nate. «Os temporais tanto nos apanham no ar como no mar.»
Havia uma prancha de contraplacado, prestes a ceder, que servia de ponte entre o cais e o barco. Pararam à beira de água para admirar a embarcação, o Santa Loura.
- Agrada-lhe? - perguntou Jevy.
- Ainda não sei - replicou Nate. Não lhe restavam dúvidas de que a embarcação tinha melhor aspecto que os barcos de transporte de gado. Ouviram o som de alguém a martelar à popa.
Certamente que uma pintura melhoraria consideravelmente o aspecto do barco. Media pelo menos dezoito metros de comprimento, com dois convés e a ponte ao cimo das escadas. Era maior do que Nate esperara.
- Sou só eu, não é verdade? - perguntou.
- Exactamente.
- Não irão outros passageiros?
- Não. Apenas você e eu e um marujo que também sabe cozinhar.
- Como é que se chama? -Welly.
A prancha de contraplacado estalou mas não se quebrou. O barco adornou um pouco quando desceram a bordo. Na proa viam-se vários bidões com água e gasolina. Depois de transporem uma escotilha e de terem descido dois degraus entraram na cabina, onde havia quatro beliches, todos com lençóis brancos e uma placa de espuma de borracha que servia de colchão. Os músculos de Nate contraíram-se quando pensou que teria de dormir, toda uma semana, num daqueles beliches. O tecto era baixo e as escotilhas mantinham-se fechadas; concluiu que o problema mais importante seria a falta de ar condicionado. O interior da cabina era uma autêntica fornalha.
- Podemos arranjar uma ventoinha - adiantou Jevy, adivinhando-lhe os pensamentos. - Quando o barco começar a navegar não será tão mau como agora. -Nate achava impossível acreditar naquilo. Andando de lado, começaram a percorrer um passadiço estreito dirigindo-se para a popa, passando por uma cozinha equipada com um lava-louças e um fogão a gás propano, a casa das máquinas, e, finalmente, uma pequena casa de banho. Na casa das máquinas viram um homem de tronco nu, todo sujo de óleo, que suava profusamente, olhando com fixidez para uma chave-inglesa que tinha nas mãos como se esta o houvesse ofendido.
Jevy conhecia o homem, tendo conseguido dizer a coisa menos adequada, a julgar pelas palavras agrestes que se fizeram ouvir de súbito. Nate retrocedeu para o passadiço que dava para a popa, onde encontrou uma pequena embarcação de alumínio amarrada ao Santa Loura. Estava equipada com remos e um motor fora de borda. Inesperadamente, pela mente de Nate passou uma visão de Jevy e de si próprio fugindo desabaladamente através de águas rasas, abrindo caminho por entre ervas e troncos de árvores, esquivando-se aos jacarés para cairem noutro beco sem saída. A aventura continuava a desenrolar-se com grande intensidade.
Jevy riu-se, desanuviando a tensão.
- Ele precisa de uma bomba de óleo - disse, encaminhando-se para a popa. - Mas hoje a loja está fechada.
- E que tal amanhã? - perguntou Nate.
- Não haverá problema.
- Para que é que este pequeno barco serve?
- Para muita coisa.
Subiram um lanço de degraus em travessas até à ponte, onde Jevy inspeccionou o leme e os comandos do motor. Por detrás da ponte havia um pequeno compartimento com dois beliches; Jevy e o outro membro da tripulação dormiriam ali por turnos. Mais atrás via-se um tombadilho com pouco mais de quatro metros quadrados encimado por um toldo de um verde-garrido. De um lado ao outro deste convés havia uma rede de dormir, de aspecto confortável, que despertou imediatamente a atenção de Nate.
- Isto é para si - disse Jevy com um sorriso. - Vai ter muito tempo para ler e dormir.
- Que perspectiva tão agradável - redarguiu Nate.
- Por vezes, este barco é utilizado por turistas, geralmente alemães que desejam visitar o Pantanal.
- Já trabalhou como piloto desta embarcação?
- Sim, em duas ocasiões. Há já muitos anos. O proprietário não é um homem muito simpático.
Tomando todas as precauções, Nate sentou-se na rede espreguiçadeira, descrevendo um semicírculo com as pernas doridas até se encontrar em cima dela. Jevy deu-lhe um pequeno empurrão para o ajudar, após o que se afastou para ter outra conversa com o mecânico.
Os sonhos de Lillian Phelan de ter uma ceia de Natal num ambiente acolhedor ficaram desfeitos quando Troy Júnior chegou, tarde e embriagado, em resultado de uma discussão grosseira que mantivera com Biff. Chegaram em automóveis separados, cada um ao volante de um Porsche novo de cores diferentes. Os gritos em crescendo, que ambos trocavam, acentuaram-se ainda mais quando Rex, que já ingerira umas quantas bebidas, começou a admoestar o irmão mais velho por estragar o Natal da mãe. A casa estava cheia. Os quatro filhos de Lillian - Troy Júnior, Rex, Libbigail e Mary Ross - encontravam-se presentes, acompanhados de onze netos, juntamente com uma variedade de amigos dos filhos e netos que, na sua maior parte, não haviam sido especificamente convidados por Lillian.
Os netos Phelan, à semelhança dos progenitores, haviam atraído novos compinchas e confidentes desde o falecimento de Troy.
Até à chegada de Troy Júnior, o ambiente fora de uma maravilhosa celebração natalícia. Nunca se tinham trocado tantas prendas fabulosas. Os herdeiros do espólio Phelan haviam comprado presentes que trocariam entre si e ofereceriam a Lillian, sem qualquer preocupação pelo preço das coisas - roupas de marca, peças de joalharia, engenhocas electrónicas e até mesmo obras de arte. Durante algumas horas, o dinheiro trouxera à superfície o que de melhor havia no íntimo de cada um deles. A generosidade que mostravam não conhecia limites.
Dentro de apenas dois dias, o testamento seria dado a conhecer publicamente.
O marido de Libbigail, Spike, o ex-motoqueiro que conhecera durante um período de internamento para desintoxicação, ainda tentou intervir na disputa desencadeada entre Troy Júnior e Rex, tentativa que lhe mereceu imprecações do primeiro que não hesitou em lhe recordar que era um «hippie gordo cujo cérebro fora frito em L S D». Por seu turno, Libbigail sentiu-se ofendida, brindando Biff com o epíteto de prostituta. Lillian correu para o seu quarto, fechando a porta à chave. Os netos, e respectivas comitivas, a pouco e pouco, começaram a dirigir-se para a cave, onde alguém guardara uma geleira cheia de cerveja.
Mary Ross, a mais razoável - ainda que este aspecto fosse bastante discutível -, mas inquestionavelmente a menos volátil dos quatro, convenceu os irmãos e Libbigail a pararem de gritar e a procurarem cantos separados onde se mantivessem entre cada assalto. Começaram a formar-se pequenos grupos; alguns no escritório, outros na sala de estar. Estabeleceu-se um cessar-fogo feito de mal-estar.
Os advogados não ajudavam em nada aquele estado de coisas. Actualmente, trabalhavam em equipas como representantes daquilo que afirmavam ser os melhores interesses de cada um dos herdeiros Phelan. Ao mesmo tempo também passavam várias horas a maquinar, tentando arranjar maneira de vir a obter uma fatia maior do bolo. Eram quatro pequenos exércitos de advogados, bem distintos entre si - seis, caso se contasse com os de Geena e Ramble - todos a trabalharem febrilmente. Quanto mais tempo os herdeiros Phelan passavam com os seus advogados, mais eram as discussões entre eles.
Depois de uma hora de paz, Lillian saiu do quarto com o objectivo de inspeccionar as tréguas. Sem dizer nada, dirigiu-se à cozinha para acabar de preparar a ceia. Naquela situação, fazia sentido que fosse servida uma refeição volante. Sugeriu que comessem por turnos, entrando na sala de jantar em grupos onde encheriam os pratos, após o que se podiam retirar de imediato para a segurança dos seus cantos.
E foi assim que a primeira família Phelan, ao cabo de todas as controvérsias, acabou por desfrutar de uma ceia de Natal num ambiente de serenidade. Troy Júnior, sozinho, comeu perna de porco fumada e batata-doce junto do bar, perto do pátio das traseiras. Biff comeu com Lillian na cozinha; Rex e a sua mulher, Amber, astripper, fizeram uma refeição de peru no quarto, enquanto assistiam a um jogo de râguebi pela televisão. Libbigail, Mary Ross e respectivos maridos comeram de tabuleiro, no escritório.
Os netos e compinchas levaram pizzas congeladas para a cave, onde a cerveja era abundante.
A segunda família não teve Natal de espécie alguma, pelo menos não o passaram em conjunto. Janie nunca gostara muito daquela quadra do ano, o que a levou a sair do país rumo a Klosters, na Suíça, onde a gente bonita da Europa se reunia a fim de ser vista a esquiar. Fez-se acompanhar de um instrutor físico chamado Lance que, com vinte e oito anos, metade da idade dela, se sentiu bastante satisfeito com a oportunidade daquela viagem.
A filha, Geena, viu-se forçada a passar o Natal com os familiares por afinidade em Connecticut, normalmente uma perspectiva sombria e tristonha. Mas a realidade é que a situação se havia alterado drasticamente. Na óptica do marido de Geena, Cody, tratava-se de um regresso triunfante à vetusta propriedade da família, nos arredores de Waterbury.
A família Strong, em tempos idos, possuíra uma fortuna adquirida na marinha mercante, mas ao cabo de séculos de gestão ruinosa e da prática de endogamia, o dinheiro praticamente se esgotara. O nome, aliado à linhagem, continuava a garantir admissão nas escolas e clubes mais reservados; o casamento de qualquer Strong continuava a ser anunciado com destaque na imprensa local. Contudo, a gamela não tinha uma capacidade infinita, e era facto indesmentível que um número excessivo de gerações já comera dela.
Formavam um bando de gente arrogante, orgulhosa do nome de família, do sotaque com que se exprimiam e da sua consanguinidade; à superfície, mostravam-se indiferentes quanto ao decréscimo dos bens familiares. Tinham carreiras profissionais em Nova Iorque e Boston. Gastavam tudo o que ganhavam, uma vez que a fortuna familiar funcionara sempre como uma rede de segurança.
O último Strong que tivera alguma visão da situação dera-se evidentemente conta de que o fim não se encontrava longe, tendo estabelecido fídeicomissos que custeariam educações académicas, os quais haviam sido elaborados por inúmeros advogados de forma que impedia que viessem a ser contestados juridicamente, fídeicomissos inexpugnáveis, como se fossem protegidos por uma cortina de ferro, de forma a resistirem aos assaltos desesperados dos Strong das gerações vindouras. Os assaltos não se fizeram esperar; não obstante, os fídeicomissos mantiveram-se inabaláveis, permitindo que todos os Strong mais jovens continuassem a ter a garantia de uma boa educação escolar. Cody estivera internado em Taft, tendo conseguido ser um estudante médio na Universidade de Dartmouth, ao que se seguiu uma pós-graduação na Universidade de Colúmbia.
O seu casamento com Geena Phelan não fora bem recebido pela família, principalmente porque era o segundo matrimónio dela. O facto de o seu arredio pai valer, à altura do casamento, seis mil milhões de dólares, ajudou a facilitar a entrada de Geena naquele clã. No entanto, ela seria sempre vista com maus olhos porque fora uma mulher divorciada, para além de ter tido uma educação de qualidade inferior, sem nunca ter frequentado nenhuma das universidades da Ivy League(1), ao que se aliava o facto de Cody ser um pouco estranho.
Não obstante, toda a família se encontrava presente para a saudar no Dia de Natal. Geena nunca vira tantos sorrisos no rosto de pessoas que detestava; tantos pequenos abraços dados a contragosto e beijos fugidios, dados de má-vontade nas suas faces, sem esquecer as palmadinhas cordiais no ombro. Passou a odiá-los ainda mais por toda aquela manifestação de hipocrisia.
Depois de duas bebidas, Cody começou a soltar a língua. Os homens agruparam-se à sua volta no escritório.
- Quanto? - perguntou alguém pouco tempo depois.
Cody franziu o sobrolho como se o dinheiro já lhe tivesse começado a pesar.
- Provavelmente quinhentos milhões de dólares - respondeu numa deixa perfeita que ensaiara em frente do espelho da casa de banho de sua casa.
Alguns dos homens ficaram boquiabertos. Outros exibiram esgares porque conheciam bem Cody e todos eram membros da família Strong, sabendo de antemão que jamais veriam um cêntimo dessa fortuna. Bem no seu íntimo, todos fervilhavam de inveja. Aquela informação filtrou-se para fora do grupo, e, ao fim de pouco tempo, as mulheres espalhadas por toda a casa murmuravam acerca do meio bilião. A mãe de Cody, uma mulher baixinha, engelhada e afectada, cujas rugas se entrecruzavam sempre que sorria, mostrou-se abismada perante a obscenidade de tamanha fortuna.
- É dinheiro de novos-ricos - comentou com uma das filhas. Dinheiro de novos-ricos que fora ganho por um velho bode escandaloso, que contraíra matrimónio três vezes e que procriara um grupo de filhos degenerados, nenhum dos quais frequentara qualquer escola de ensino superior da Ivy League.
Quer fosse de família ou recentemente adquirido, aquele dinheiro era muito invejado pelas mulheres mais novas. Podiam imaginar os aviões a jacto e as casas de praia, assim como as fabulosas reuniões de família em ilhas distantes, a par dos fideicomissos a favor de sobrinhas e sobrinhos, e talvez mesmo ofertas directas em dinheiro.
O dinheiro teve o condão de amansar os Strong, amansá-los ao ponto de mostrarem uma cordialidade que jamais haviam manifestado para com um estranho à família,
*1. Conjunto de universidades norte-americanas, há muito estabelecidas na região leste, que gozam de grande prestígio social e académico. (N. da T.)
amansá-los ao ponto de estarem prestes a desfazer-se em mesuras. Ensinou-os a serem mais abertos e ternos, o que proporcionou um Natal cordial num ambiente acolhedor.
Ao fim da tarde, quando a família se reuniu em redor da mesa para o jantar tradicional, começou a nevar. Que Natal tão perfeito, comentaram todos os membros da família Strong. Naquele momento, Geena odiou-os mais do que nunca.
Ramble passou a quadra natalícia com o seu advogado, ao preço de seiscentos dólares à hora, embora a conta viesse a ser manipulada como somente os advogados sabem manipular coisas dessa natureza.
Tira também se ausentara para o estrangeiro acompanhada de um jovem chulo. Encontrava-se algures numa praia, muito provavelmente a praticar nudismo, completamente alheada do que o seu filho de catorze anos poderia estar a fazer durante a sua ausência.
O advogado, Yancy, era solteiro, tendo-se divorciado por duas vezes e acabando por ficar com a tutela dos gémeos de onze anos do seu segundo casamento. Os dois rapazes eram excepcionalmente inteligentes para a idade, enquanto Ramble era penosamente lento de raciocínio para a idade que tinha, pelo que os três jovens se divertiram à grande entretidos no quarto com jogos de computador, ao mesmo tempo que Yancy via um jogo de râguebi sozinho.
O seu cliente estava predestinado a herdar obrigatoriamente cinco milhões de dólares aquando do seu vigésimo primeiro aniversário, e, em virtude do coeficiente de maturidade dele, a par do ambiente familiar, esse dinheiro nem sequer duraria o tempo que durara aos outros filhos de Phelan. Todavia, Yancy não estava interessado naqueles magros cinco milhões; que diabo, ele receberia esse montante em honorários que lhe adviriam da quota-parte de Ramble na herança através do testamento.
Yancy tinha outras preocupações. Tira contratara os serviços de outro escritório de advogados, uma firma agressiva situada perto do Capitólio que tinha melhores contactos. Ela era apenas uma ex-mulher e não uma filha, pelo que o seu quinhão do espólio seria bastante inferior a qualquer quantia que Ramble viesse a herdar. Era evidente que os novos advogados já se tinham apercebido dessa realidade. Andavam a exercer pressão sobre Tira para que esta dispensasse os serviços de Yancy, desviando o jovem Ramble na sua direcção. Felizmente, a mãe não se interessava muito pelo garoto, o que permitia a Yancy fazer um trabalho esplêndido manipulando o rapaz no sentido de tentar afastá-lo da mãe.
Os risos dos três garotos eram música para o seu coração.
Ao fim da tarde, ele parou numa pequena charcutaria situada a escassos quarteirões do hotel. Andara pelos passeios sem destino. Apercebendo-se de que o estabelecimento estava aberto, entrou com a esperança de que lhe servissem uma cerveja. Nada mais além de uma cerveja, talvez duas. Estava sozinho naquele fim do mundo. Era Natal e não tinha ninguém com quem pudesse partilhar aquele dia. Uma onda de solidão e depressão profundas abateram-se sobre Nate, e o resultado foi começar a sentir os efeitos da recaída iminente. Um sentimento de auto-comiseração apoderou-se de si.
Avistou uma fileira de garrafas com bebidas alcoólicas, todas cheias e por abrir, whiskies, vodkas e gins, alinhadas como pequenos e belos soldadinhos de uniformes aprumados. Acto contínuo, sentiu a boca ressequida, como se estivesse crestada. Deixou cair o queixo e fechou os olhos. Agarrou-se ao balcão para não vacilar; a sua fisionomia contorceu-se de sofrimento ao pensar em Sérgio, em Walnut Hill e em Josh, nas ex-mulheres e em todos os que magoara tantas vezes sempre que se deixava cair na tentação. Os pensamentos desfilavam-lhe freneticamente pela mente, e estava prestes a desfalecer quando o homem baixinho lhe disse qualquer coisa. Nate ficou a olhar para ele, mordeu os lábios e apontou para uma garrafa de vodka. Duas garrafas, oito reais.
Todas as recaídas haviam sido diferentes. Algumas eram lentas na sua formação, uma bebida ali, um trago aqui, uma fenda na barragem seguida de outras. Numa ocasião, chegara ao ponto de ir voluntariamente para um centro de desintoxicação. Numa outra altura, despertara preso a uma cama por correias, com uma agulha intravenosa espetada no pulso. Durante a última recaída, fora encontrado por uma das criadas num estado de semi-coma, no quarto de um motel ordinário cuja diária era de trinta dólares.
Enclavinhou os dedos no saco de papel, encaminhando-se num passo determinado para o seu hotel, contornando um grupo de rapazinhos transpirados que driblavam uma bola de futebol num passeio. «Que sorte que as crianças têm», pensou. Não tinham de carregar fardos nem bagagens emocionais. O amanhã seria apenas um outro jogo.
Dentro de uma hora começaria a ficar escuro, e Corumbá, suavemente, voltava a despertar para a vida. Os cafés com esplanadas e os bares abriam pouco a pouco, enquanto as ruas eram percorridas por uns quantos automóveis. No hotel, a música ao vivo que vinha da piscina filtrava-se através do átrio, e durante uma fracção de segundos Nate sentiu-se tentado a sentar-se a uma mesa para ouvir uma última canção.
Mas não o fez. Dirigiu-se ao seu quarto, onde trancou a porta e encheu um copo alto de plástico com cubos de gelo. Alinhou as duas garrafas, abriu uma e lentamente começou a verter vodka por cima do gelo, prometendo a si mesmo que não pararia até que as duas estivessem vazias.
Jevy esperava o comerciante de peças sobressalentes quando este chegou, às oito horas. O Sol já ia alto no céu sem nuvens. O piso dos passeios escaldava ao toque.
Não havia nenhuma bomba de óleo, pelo menos uma que se adequasse àquele motor a gasóleo. O comerciante fez dois telefonemas enquanto Jevy se afastava a grande velocidade, ao volante da sua camioneta de caixa aberta. Conduziu até aos arrabaldes de Corumbá, onde um negociante de barcos geria um ferro-velho atulhado de salvados de dúzias de embarcações. Na oficina de motores, um rapaz que trabalhava ao balcão, apresentou-lhe uma bomba de óleo usada, coberta por óleo e sebo, que embrulhou numa rodilha suja da oficina. Foi com todo o prazer que Jevy pagou vinte reais pela peça em segunda mão.
Conduziu até ao rio, estacionando junto da linha de água. O Santa Loura continuava no mesmo sítio. Ficou satisfeito ao ver que Welly já tinha chegado. Welly era um marujo sem experiência, que ainda não fizera dezoito anos, que afirmava que sabia cozinhar, pilotar, guiar, limpar e navegar, estando apto a desempenhar todo e qualquer serviço que lhe fosse requerido. Jevy sabia que ele estava a mentir, mas as bravatas daquela natureza não eram invulgares entre os rapazes que procuravam trabalho na faina do rio.
- Viste o doutor O'Riley? - perguntou-lhe Jevy.
- O americano? - inquiriu Welly.
- Sim, o americano.
- Não. Ainda não vi sinais dele.
Entretanto, houve um pescador a bordo de um barco de madeira que gritou algo a Jevy, mas este não lhe prestou atenção, sentindo-se preocupado com outros assuntos. Percorreu a prancha, periclitante, de contraplacado até à embarcação, onde o martelar recomeçara à popa. O mesmo mecânico sujo de nódoas de óleo debatia-se com o motor. Mantinha-se acima dele semi-agachado, sem camisa e com o suor a gotejar-lhe da pele. No interior da casa das máquinas estava um calor sufocante. Jevy entregou-lhe a bomba de óleo, que ele começou a inspeccionar com os seus dedos curtos e grossos.
O motor era um cinco cilindros em linha a gasóleo, com a bomba no fundo do cárter, mesmo abaixo do extremo de uma superfície de grades de madeira. O mecânico encolheu os ombros, dando a Jevy o benefício da dúvida: talvez aquela aquisição resolvesse o problema. Manobrou a barriga em redor do tubo de distribuição, ajoelhando-se em gestos lentos, inclinando-se para baixo com o topo da cabeça apoiado no sistema de escape.
Resmungou qualquer coisa e Jevy passou-lhe para a mão uma chave-inglesa. Com lentidão, a bomba de substituição foi ajustada no seu lugar. Ao cabo de alguns minutos, a camisa e os calções de Jevy estavam ensopados em transpiração.
Com os dois homens apertados na casa das máquinas, Welly decidiu aparecer, perguntando se necessitavam dos seus serviços. Não, de facto não era preciso.
- Mantém-te atento à chegada do americano - disse-lhe Jevy limpando o suor que lhe perlava a testa.
O mecânico soltou uma praga e continuou a manusear várias chaves-inglesas durante os trinta minutos seguintes, após o que declarou que a bomba de óleo estava pronta para entrar em acção. Pôs o motor a funcionar, passando alguns segundos a vigiar a pressão do óleo. Finalmente, esboçou um sorriso começando a reunir as suas ferramentas.
Jevy meteu-se na camioneta e dirigiu-se para o hotel onde Nate estava alojado.
A recepcionista tímida ainda não tinha visto o doutor O'Riley. Ligou para o quarto e não obteve resposta. Uma criada que na altura passava pela recepção também foi interrogada. Não, que soubesse, o hóspede não deixara o quarto. Com alguma relutância, a rapariga entregou uma chave a
Jevy.
A porta estava fechada à chave, mas a corrente interior não fora corrida; Jevy entrou devagar. A primeira coisa estranha em que reparou foi na cama vazia com os lençóis completamente desalinhados. Em seguida, avistou as garrafas.
Uma estava vazia, tombada de lado no chão; a outra estava meia. O ambiente no quarto era bastante fresco, uma vez que o aparelho de ar condicionado estava ligado no máximo. Viu um pé descalço, aproximando-se mais, deparando com Nate estendido no chão, completamente nu, entre a cama e a parede, com um lençol puxado para baixo e enrolado à volta dos joelhos. Com suavidade, Jevy deu-lhe um pontapé no pé, agitando a perna que deu um solavanco.
Do mal o menos, o homem não estava morto.
Jevy começou a chamar Nate, agitando-o por um ombro e decorridos alguns segundos ouviu um grunhido. Um som baixo e de sofrimento. Agachando-se em cima da cama, Jevy, com todas as precauções, colocou as mãos por baixo do sovaco que lhe ficava mais próximo, puxando Nate do chão e afastando-o da parede; com alguma dificuldade fê-lo rolar para cima da cama, onde se apressou a cobrir-lhe as partes privadas com um lençol. Outro resmungo de dor. Nate estava deitado de costas com um pé pendurado fora da cama, olhos inchados que continuavam cerrados, o cabelo todo despenteado e com uma respiração pesada que se fazia a custo. Jevy deixou-se ficar aos pés da cama fitando Nate.
A criada e a recepcionista chegaram pouco depois, abrindo uma fresta da porta; com um gesto, Jevy indicou-lhes que se fossem embora. Fechou a porta à chave e apanhou a garrafa vazia caída no chão.
- Está na hora de nos irmos embora - disse ele sem ter obtido qualquer espécie de resposta. Talvez fosse melhor chamar Valdir, que, por sua vez, entraria em contacto com o norte-americano que enviara para o Brasil aquele pobre bêbedo. Talvez mais tarde.
- Nate! - gritou numa voz troante. - Fala comigo!
Nenhuma resposta. Se não despertasse dentro em pouco, Jevy decidiu que chamaria um médico. Uma garrafa e meia de vodka numa só noite podia matar um homem. Talvez o seu organismo estivesse envenenado e ele necessitasse de recorrer ao serviço de urgência de um hospital.
Na casa de banho encharcou uma toalha com água fria que enrolou à volta do pescoço de Nate. Este começou a contorcer-se, abrindo a boca num esforço para conseguir falar.
- Onde é que estou? - perguntou num resmungo com a língua espessa e pegajosa numa voz pastosa.
- No Brasil. No quarto de um hotel.
- Estou vivo.
- Mais ou menos.
Jevy agarrou numa ponta da toalha e limpou as faces e os olhos de Nate.
- Como é que está a sentir-se? - perguntou.
- Quero morrer - respondeu Nate estendendo a mão para a toalha que agarrou e começou a meter dentro da boca, começando a chupá-la.
- Vou-lhe buscar um copo de água - ofereceu-se Jevy. Abriu o frigorífico de onde tirou uma garrafa de água. - É capaz de erguer a cabeça? - inquiriu.
- Não - respondeu Nate num grunhido.
Jevy verteu algumas gotas de água sobre os lábios e a língua de Nate. Algumas das gotas escorreram-lhe pelas bochechas caindo na toalha. Nate não deu sinais de se incomodar. Sentia a cabeça a latejar, dando-lhe a impressão de que estava prestes a abrir-se; o seu primeiro pensamento foi querer saber exactamente como diabo é que tinha acordado.
Abriu um olho, o direito, ainda que com muita dificuldade. As pálpebras da vista esquerda continuavam coladas. A luminosidade escaldava-lhe o cérebro, sentindo que o corpo era percorrido por uma onda de náusea que foi dos joelhos até à garganta. Com uma rapidez surpreendente, voltou-se, ficando de lado, após o que ficou de gatas, numa posição de desequilíbrio, quando os vómitos lhe assomaram à boca.
Jevy deu um salto para trás e foi buscar outra toalha. Deixou-se ficar na casa de banho, ouvindo a tosse e os arrancos dos vómitos de Nate. A visão de um homem nu, apoiado sobre as mãos e os joelhos no meio de uma cama, a vomitar as entranhas, era uma situação que dispensava de boa vontade. Abriu as torneiras do chuveiro, misturando a água quente e fria até obter uma temperatura adequada.
O contrato que fizera com Valdir permitia-lhe auferir mil reais por levar o doutor O'Riley até ao Pantanal, encontrar a pessoa que ele procurava, após o que deveria levá-lo de volta a Corumbá são e salvo. O pagamento era bom, todavia ele não era nem ama-seca, nem enfermeiro. O barco estava pronto. Caso Nate não fosse capaz de andar sem alguém que tomasse conta de si, então Jevy procuraria o trabalho seguinte.
Houve uma interrupção no ataque de náuseas e Jevy ajudou Nate a ir para a casa de banho, metendo-o debaixo do chuveiro, onde caiu desamparado sobre o chão sintético.
- Peço muita desculpa - repetia Nate incessantemente. Jevy deixou-o no chuveiro; que se afogasse que a ele isso não faria a mínima diferença. Endireitou os lençóis tentando dar alguma arrumação à confusão, em seguida desceu as escadas para pedir uma cafeteira de café bem forte.
Eram quase duas horas da tarde quando Welly se apercebeu da chegada dos dois. Jevy estacionou à beira de água; a camioneta enorme levantava as pedras do piso, despertando os pescadores até que o motor parou de funcionar. Não viu vestígios do norte-americano.
Pouco depois, algures no interior da cabina, lentamente, começou a soerguer-se uma cabeça. Os olhos estavam ocultos por uns óculos de sol de lentes muito escuras, e a pala de um boné fora puxada para baixo tanto quanto era possível. Jevy abriu a porta do pendura, ajudando o doutor O'Riley a descer para o solo coberto de pedras. Welly aproximou-se da camioneta retirando o saco e a pasta da caixa do veículo. Queria ser apresentado ao doutor O'Riley, mas aquela não era a altura mais apropriada. Ele sentia-se bastante adoentado; estava muito pálido, transpirando copiosamente, além de estar demasiado fraco para poder caminhar sozinho. Welly seguiu os dois até à linha de água, ajudando-os a percorrer a placa de contraplacado, que tão pouca segurança oferecia, até à embarcação, após o que atravessaram o pequeno passadiço que levava ao pequeno tombadilho, onde a rede espreguiçadeira aguardava Nate. Jevy empurrou-o para cima dela.
Quando regressaram ao outro convés, Jevy ligou o motor enquanto Welly recolhia o cordame.
- O que é que se passa com ele? - perguntou este.
- Está bêbedo.
- Mas são só duas horas da tarde.
- Está bêbedo há muito tempo.
O Santa Loura começou a afastar-se de terra, e, navegando rio acima, ia lentamente deixando Corumbá para trás.
Nate observava a cidade que ficava cada vez mais para trás. O toldo acima da sua cabeça era uma lona verde e usada, estendida por cima de uma estrutura de metal presa ao convés por quatro postes. Dois destes serviam de suporte à rede que balouçara um pouco logo depois da partida. As náuseas voltaram a insinuar-se dentro de si. Tentou permanecer imóvel. Desejava que tudo se mantivesse absolutamente imobilizado. A embarcação navegava suavemente rio acima. As águas estavam calmas. De momento não soprava vento nenhum, o que permitiu a Nate continuar deitado bem fundo na sua rede, sem despregar os olhos do toldo verde-escuro que lhe proporcionava sombra. No entanto, era-lhe difícil reflectir, porque sentia dores de cabeça e tonturas. A concentração era um verdadeiro desafio.
Antes de pagar a conta do hotel, telefonara a Josh do telefone do quarto. Com sacos de gelo no pescoço e um caixote do lixo entre os pés, não fosse ter vontade de vomitar, ligara o número, esforçando-se ao máximo para que a sua voz soasse normalmente. Jevy não dissera nada a Valdir. Consequentemente, este nada dissera a Josh. Ninguém estava ao corrente, para além de ele próprio e Jevy; ambos tinham concordado em manter o assunto confidencial. A bordo do barco não havia qualquer bebida alcoólica, e Nate prometera manter-se sóbrio até que regressassem. Como é que ele conseguiria encontrar uma bebida no Pantanal?
Se Josh estava preocupado, não o deixou transparecer na voz. A firma ainda estava fechada por causa do Natal, etc, mas ele estava atafulhado em trabalho. O costume. Nate disse-lhe que estava óptimo. O barco era adequado ao que se pretendia e já tinha sido devidamente reparado. Estavam ansiosos por se pôr a caminho. Quando desligou o telefone, voltou a vomitar. Depois tomou outro duche. De seguida, Jevy ajudou-o a chegar ao elevador e a atravessar o hcill do hotel.
O rio fez uma curva ligeira, mais uma contra-curva, e Corumbá ficou para trás. O tráfego fluvial em torno da cidade ia diminuindo à medida que a viagem progredia. O local de refúgio de Nate dava-lhe uma panorâmica privilegiada, tanto para o rio à sua frente como para as águas lamacentas que borbulhavam na esteira do barco. O Paraguai tinha menos de dez metros de largura e estreitava rapidamente a cada curva. Passaram por uma barcaça carregada de bananas verdes e dois miúdos disseram-lhes adeus.
O matraquear constante do motor a diesel não parou, como Nate desejara, mas transformou-se num murmúrio baixo, uma vibração constante que se propagava por todo o navio. Não havia outro remédio a não ser aceitá-lo. Tentou balançar-se na rede, um balanço suave, só para sentir melhor a brisa. A náusea desaparecera.
Não pensar no Natal, nem no lar, nas crianças e nas memórias desfeitas;
não pensar nos vícios. Esta recaída vai ficar por aqui, disse a si próprio.
O barco era o seu centro de recuperação. Jevy era o seu conselheiro. Welly a
enfermeira. Iria desintoxicar-se no Pantanal para nunca mais voltar a beber.
Quantas vezes poderia ele mentir a si próprio?
O efeito da Aspirina que Jevy lhe tinha dado começou a passar e a dor de cabeça regressou em força. Caiu num estado de semi-sonolência e acordou quando Jevy apareceu com uma garrafa de água e uma tigela de arroz. Comeu o arroz à colherada, com as mãos a tremer de tal forma que os bagos se espalhavam pela camisa e pela rede. Estava quente e apetitoso, Nate comeu-o até ao fim.
- Mais? - perguntou Welly.
Nate abanou a cabeça na negativa e bebeu um gole de água. Deixou-se afundar na rede e tentou fazer uma sesta.
Depois de umas quantas falsas partidas, ojet lag(1) e a fadiga, a par dos efeitos do vodka, começaram a fazer-se sentir. O arroz também ajudou e Nate mergulhou num sono profundo. De hora a hora, Welly ia ver como é que ele estava.
- Está a ressonar - disse ele a Jevy, que se encontrava ao leme.
O sono era despovoado de sonhos. A sesta durou seis horas, enquanto o Santa Loura navegava lentamente rumo a algures no Norte, contra o vento e contra a corrente. Nate acordou com o ruído rítmico do motor a gasóleo e com a sensação de que a embarcação efectivamente não se deslocava. Com movimentos cautelosos, soergueu-se da rede, espreitando por cima da extremidade, examinando a margem onde procurava quaisquer sinais de progressos. A vegetação era densa. O rio parecia estar completamente desabitado. O barco deixava uma esteira de espuma à sua passagem e ao fixar o olhar numa árvore Nate pôde ver que, de facto, estavam a navegar fosse para onde fosse. Mas muito lentamente. O nível das águas subira devido às chuvas; a navegação era mais fácil, mas o curso rio acima não se fazia com tanta rapidez.
As náuseas e dores de cabeça tinham desaparecido, mas os movimentos continuavam a ser feitos com cuidados redobrados. Nate deu início ao desafio de se levantar da rede, principalmente porque necessitava de urinar. Conseguiu colocar os pés em segurança sobre o tombadilho sem quaisquer incidentes, e quando fez uma pausa Welly apareceu como se fosse um ratinho satisfeito oferecendo-lhe uma pequena chávena de café.
*1. Condição que se caracteriza por vários efeitos psicofisiológicos (fadiga e irritação) que se verificam depois de viagens longas através de vários fusos horários. (N. da T.)
Nate agarrou na chávena quente com as duas mãos e cheirou o café. Nunca nada lhe cheirara tão bem.
- Obrigado - agradeceu em português.
- Sim - retorquiu Welly com um sorriso ainda mais radiante.
Nate começou a beber aquele precioso café bem adoçado, tentando não retribuir o olhar fixo de Welly. O rapaz usava as roupas habituais de quem trabalhava no rio; uns calções velhos de ginástica, uma camisola de algodão velha e sandálias de borracha das mais baratas, que protegiam a sola endurecida dos pés cheios de cicatrizes. Tal como Jevy, Valdir e a maior parte dos brasileiros que conhecera até então. Welly, um mulato, tinha cabelos negros, olhos pretos e feições de mestiço, com uma tonalidade de pele acastanhada mais clara do que alguns, embora mais escura do que outros, um tom que era só dele.
«Estou vivo e sóbrio», pensou Nate continuando a beber pequenos goles do seu café. «Uma vez mais, por breves instantes, cheguei ao limiar do inferno tendo conseguido sobreviver. Despenhei-me no fundo do fosso, entrei em colapso, fitei a imagem desfocada do meu rosto e dei as boas-vindas à morte, e contudo aqui estou eu sentado e a respirar. Por duas vezes no espaço de três dias proferi as minhas últimas palavras. Talvez ainda não tenha chegado a minha hora.»
- Mais? - perguntou Welly fazendo um gesto na direcção da chávena vazia.
- Sim - respondeu Nate entregando-lhe a chávena. Dois passos e ele tinha desaparecido.
Sentindo o corpo dorido por causa do acidente de aviação, e abalado pelos efeitos do vodka, Nate levantou-se permanecendo no meio do convés sem a ajuda de ninguém, embora numa postura pouco estável com os joelhos dobrados. Mas ainda assim foi capaz de se manter de pé, o que, por si só, tinha um grande significado. A recuperação não era mais do que uma série de pequenos passos, pequenas vitórias. Quando se uniam sem deslizes e sem derrotas estava-se tratado. Nunca curado, apenas tratado ou desintoxicado, ou ainda higienizado por algum tempo. Nate já fizera aquele quebra-cabeças anteriormente, comemorando todas as pequenas peças.
Foi então que o fundo chato da embarcação roçou por um baixio, sacudindo-a, e Nate tombou desamparado contra a rede. Ficou esparramado no convés, onde a cabeça bateu contra uma tábua. A muito custo conseguiu pôr-se de pé, agarrando-se à amurada com uma mão enquanto massajava o crânio com a outra. Não sangrara, ficara apenas com um pequeno alto, somente mais outro pequeno ferimento infligido ao seu corpo. Mas o tombo despertou-o e quando os olhos começaram a ver com clareza, deslocou-se com lentidão ao longo da amurada até à exígua ponte, onde Jevy se encontrava sentado num banco com uma mão em redor do leme.
- Como é que te sentes? - perguntou depois do sorriso espontâneo característico a todos os brasileiros.
- Muito melhor - respondeu Nate sentindo-se um pouco envergonhado. Mas a vergonha era uma emoção que Nate abandonara há vários anos. Os viciados não sentem vergonha. Degradam-se a si próprios tantas vezes que ficam imunes a esse sentimento.
Welly subia as escadas num passo gingão, trazendo café nas duas mãos. Deu um a Nate e o outro a Jevy, após o que retomou o seu lugar num banco estreito junto do comandante.
O Sol começara a pôr-se por detrás das montanhas distantes da Bolívia, enquanto as nuvens se formavam a norte, directamente defronte deles. O ar não estava tão opressivo e era bastante mais fresco. Jevy procurou a sua camisola de algodão e vestiu-a. Nate receava outro temporal, mas o rio não era muito largo. Certamente que poderiam ancorar o raio do barco prendendo-o a uma árvore.
Aproximavam-se de uma pequena casa quadrada, a primeira habitação que Nate avistava desde que haviam saído de Corumbá. Depararam com sinais de vida; um cavalo e uma vaca, uma corda de estender roupa e uma canoa perto da linha de água. Avistaram um homem que usava um chapéu de palha, um pantaneiro de primeira água que saiu para o alpendre acenando-lhes num gesto preguiçoso.
Depois de passarem pela casa, Welly apontou para um ponto com uma vegetação densa e rasteira que entrava rio adentro.
- Jacarés - disse ele. Jevy olhou mas deu a impressão de não ter ficado muito preocupado. Já tivera oportunidade de ver milhões de crocodilos. Nate somente vira um, quando estava montado a cavalo, e quando olhou para aqueles répteis viscosos, que os perscrutavam do fundo lodoso, sentiu-se perplexo ao constatar o quanto pareciam mais pequenos quando observados do convés de uma embarcação. Concluiu que preferia a distância.
No entanto, houve algo que lhe disse que antes daquela viagem terminar, uma vez mais, seria forçado a estar bastante mais perto daqueles animais do que desejaria. A pequena embarcação que continuava a ser puxada pelo Santa Loura viria a ser utilizada na busca de Rachel Lane. Ele e Jevy navegariam por pequenos rios, esquivando-se à vegetação rasteira, passando a vau através de águas escuras cheias de flora aquática. Não tinha a menor dúvida de que encontrariam jacarés pelo caminho, assim como outras espécies de répteis perigosos que esperariam pela próxima refeição.
Mas, estranhamente, naquele momento Nate não se preocupava com isso. Na sua viagem ao Brasil, até então, ele provara a si mesmo ser bastante resistente. Metera-se numa aventura, mas o seu guia parecia ser um homem destemido.
Agarrando-se à amurada, e com muito cuidado, conseguiu descer as escadas, após o que, num passo arrastado, percorreu o passadiço estreito, passando pela cabina e cozinha onde Welly tinha uma panela ao lume. O motor troava na casa das máquinas. A última paragem foi na casa de banho, um pequeno compartimento com uma sanita, um lavatório sujo a um canto e um chuveiro bastante periclitante que oscilava de um lado para o outro escassos centímetros acima da cabeça. Aliviou-se ao mesmo tempo que examinava a corrente do chuveiro. Deu uns passos atrás e puxou-a. Saiu um jacto de água ligeiramente acastanhada, mas que tinha força suficiente. Era óbvio que a água era do rio, extraída de uma fonte ilimitada, e que, presumivelmente, não seria filtrada. Acima da porta havia um cesto de arame onde se poderia colocar uma toalha e uma muda de roupa. Portanto, era necessário que uma pessoa se despisse e que, ele não estava a ver bem como, se escarranchasse por cima da sanita enquanto puxava o cordão do duche com uma mão, ensaboando-se com a outra.
«Que se lixe», pensou Nate. Decidiu muito simplesmente que não tomaria duche muitas vezes.
Olhou para dentro da panela ao lume, constatando que estava cheia de arroz e feijão-preto, interrogando-se se todas as refeições seriam a mesma comida. Era um assunto que não o interessava particularmente. No que lhe dizia respeito, a alimentação era uma questão de somenos importância. Durante a sua estadia em Walnut Hill eles limpavam as pessoas de todas as substâncias tóxicas, ao mesmo tempo que, de mansinho, permitiam que passassem fome. Havia alguns meses que o seu apetite fora substancialmente reduzido.
Nate sentou-se nos degraus da ponte de costas para o piloto do barco e para Welly, observando as águas do rio a escurecerem. Com o cair do crepúsculo, a vida selvagem preparava-se para a noite que se avizinhava. Os pássaros sobrevoavam a superfície da água, voando de árvore em árvore enquanto procuravam um último peixinho de água doce para o jantar. Chamavam uns pelos outros enquanto o barco passava, fazendo ouvir os seus chilreios bem acima do barulho monocórdico do motor a gasóleo. A água salpicava as margens onde os crocodilos se deslocavam vagarosamente. Era possível que por ali também andassem serpentes, anacondas de grande porte enroladas no solo, mas Nate preferia não pensar nelas. Sentia-se assaz em segurança a bordo do Santa Loura.
A brisa corria ligeira e mais quente de encontro aos seus rostos. A borrasca ainda não se desencadeara.
O tempo passava velozmente em qualquer outra parte do mundo; todavia, no Pantanal o passar do tempo não tinha qualquer relevância. Vagarosamente, Nate ajustava-se àquele ritmo. Começou a pensar em Rachel Lane. Qual seria o efeito que o dinheiro teria nela? Ninguém, independentemente do grau de fé e empenho que se pudesse sentir, poderia continuar a ser a mesma pessoa. Estaria ela disposta a acompanhá-lo, regressando aos Estados Unidos, onde administraria os bens que o pai lhe deixara? Em qualquer altura poderia sempre voltar para junto dos seus índios. Como é que ela receberia a notícia? De que maneira é que reagiria ao deparar-se com um advogado norte-americano que conseguira descobrir o seu paradeiro?
Entretanto, Welly começou a dedilhar uma viola já antiga, ao que Jevy acrescentou uns sons vocais baixos e pouco refinados. O dueto era agradável, quase tranquilizante; a balada de homens simples que viviam dia-a-dia e não minuto a minuto. Homens que pensavam pouco no amanhã, ignorando inteiramente aquilo que pudesse, ou não, vir a acontecer no ano seguinte. Nate invejava-os, pelo menos na altura em que entoavam a sua canção.
Era uma recuperação notável para um homem que tentara beber até morrer no dia anterior. Desfrutava do momento presente, feliz por continuar vivo, na expectativa do desfecho da sua aventura. Verdadeiramente, o seu passado ficara num outro mundo, à distância de anos-luz, nas ruas antigas de pavimento molhado de Washington.
Nada de bom poderia acontecer nessa cidade. Nate provara, sem margem para dúvidas, que aí seria incapaz de levar uma vida sem substâncias nocivas, conhecendo as mesmas pessoas, levando a cabo o mesmo tipo de trabalho, ignorando os mesmos hábitos, há muito arreigados, até entrar em queda livre na auto-destruição. Era inevitável que acabasse sempre no fundo do poço.
Welly iniciou uma música a solo que despertou Nate das divagações do passado. Era uma balada lenta e sofrida que se prolongou até o rio ter escurecido por completo. Jevy ligou dois pequenos holofotes, um em cada lado da proa. O rio era fácil de navegar. As águas subiam e baixavam ao sabor das estações sem nunca chegarem a ter grande profundidade. As embarcações eram baixas e de fundo chato, construídas de forma a não ficarem danificadas pelos bancos de areia que por vezes apareciam ao longo do percurso. Pouco antes de escurecer, Jevy embateu num deles e o Santa Loura imobilizou-se. Jevy fez marcha à ré, após o que se fez de proa; ao cabo de cinco minutos repetindo as mesmas manobras, recomeçaram a navegar sem quaisquer obstáculos. O barco era insubmersível.
A um canto da cabina, não muito distante dos quatro beliches, Nate comia sozinho, sentado a uma mesa fixa ao chão. Welly servia-lhe o feijão com arroz, acompanhados de galinha cozida e uma laranja. Bebeu água gelada de uma garrafa. Uma lâmpada pendente de um cordão eléctrico oscilava por cima da comida. O ar no interior da cabina era quente e sem ventilação. Welly sugerira-lhe que dormisse na rede espreguiçadeira.
Jevy entrou trazendo uma carta de navegação do Pantanal. Queria planear a rota de forma produtiva, dado que até ali os progressos haviam sido insignificantes. Na realidade, navegavam a montante do rio Paraguai a passo de tartaruga; a distância percorrida entre Corumbá e a posição actual era insignificante.
- As águas estão elevadas - explicou Jevy. - No regresso poderemos navegar com muito mais velocidade.
O regresso não era coisa a que Nate houvesse dedicado muitos pensamentos.
- Não há problema - continuou Jevy, indicando várias direcções e fazendo mais alguns cálculos. - O primeiro povoado índio situa-se nesta área - prosseguiu apontando para um ponto que parecia estar à distância de semanas, caso se levasse em linha de conta a velocidade a que haviam navegado até então.
- Os Guató?
- Yes. Sim. Acho que devíamos ir até lá em primeiro lugar. Se ela não estiver nessa aldeia, talvez haja alguém que conheça o seu paradeiro.
- Daqui a quanto tempo é que chegaremos lá?
- Dois, talvez três dias.
Nate encolheu os ombros. O tempo tinha parado. Guardara o relógio de pulso no bolso. A sua colecção de formas de acompanhar as horas, os dias, as semanas e os meses há muito que havia sido esquecida. O seu calendário, onde costumava anotar a data dos julgamentos, o único mapa da sua vida que nunca fora desrespeitado, fora guardado no fundo de uma gaveta qualquer da sua mesa de trabalho. Fizera batota com a vida, pelo que, actualmente, cada dia era uma dádiva.
- Ainda tenho de ler muita coisa - disse Nate. Com cuidado, Jevy voltou a dobrar o mapa.
- Está a sentir-se bem? - perguntou.
- Estou óptimo. Sinto-me lindamente.
Havia muito mais coisas que Jevy queria perguntar. Mas Nate ainda não estava preparado para uma confissão.
- Estou óptimo - repetiu. - Esta pequena viagem far-me-á muito bem.
Sentado à mesa, leu durante uma hora sob a lâmpada oscilante, até se aperceber de que estava banhado em suor. Foi buscar ao seu beliche um repelente de insectos, uma lanterna e uma pilha de memorandos elaborados por Josh e, num passo cauteloso, dirigiu-se para a proa, subindo os degraus até à casa do leme, onde Welly assumira a navegação enquanto Jevy passava pelas brasas. Nate cobriu os braços e pernas com jactos do repelente em aerossol e subiu para a rede espreguiçadeira, dando voltas ao corpo até conseguir ajustar a cabeça numa posição mais elevada do que o seu traseiro. Depois de tudo se encontrar perfeitamente equilibrado, com a rede a oscilar suavemente ao sabor do movimento das águas do rio, ligou a lanterna e retomou a sua leitura.
Tratava-se apenas de uma audiência informal, a leitura de um testamento, embora os pormenores fossem cruciais. Durante a quadra natalícia, F. Parr Wycliff tinha pensado pouco em qualquer outro assunto. Todos os lugares na sala de tribunal estariam ocupados, com mais espectadores apinhados em três filas junto das paredes. Preocupara-se a tal ponto que, no dia a seguir ao Natal, andara de um lado para o outro na sua sala de tribunal ponderando onde é que havia de sentar toda a gente.
E, como seria de esperar, a imprensa estava absolutamente fora dos eixos. Queriam câmaras de filmar no interior, o que ele recusara veementemente. Pretendiam instalar câmaras no corredor com as lentes a espreitarem através das pequenas vidraças quadradas recortadas nas portas, ao que ele se opusera. Desejavam lugares preferenciais; uma vez mais, a resposta fora um rotundo não. Queriam que ele lhes concedesse entrevistas, mas de momento, mantinha-os à distância.
Os advogados também apresentaram as suas exigências. Alguns pretendiam que toda a audiência decorresse à porta fechada, havendo outros que desejavam que fosse televisionada, por razões bem patentes. Uns queriam que o processo fosse selado, enquanto outros desejavam que lhes fossem enviadas cópias do testamento por fax, a fim de lhes poderem dar uma vista de olhos. Apresentaram moções para isto e para aquilo, pedidos para se sentarem aqui e ali, manifestando apreensões a respeito de quem é que teria permissão para entrar na sala de tribunal, e também quanto aos que não gozariam dessa autorização. Os excessos de alguns dos advogados levaram-nos ao ponto de quererem que lhes fosse permitido abrir e ler o testamento. Alegavam que era bastante extenso, o que já se sabia, pelo que talvez fossem obrigados a explicar algumas das provisões mais intrincadas à medida que fossem lidas.
Wycliff chegou cedo, reunindo-se com os delegados suplementares que tinha pedido. Estes acompanharam-no, juntamente com a sua secretária e o seu assistente jurídico, numa inspecção à sala de tribunal, enquanto ele designava os lugares onde cada um ficaria sentado, contando assentos e experimentando o sistema sonoro. Sentia-se deveras preocupado com as mais pequenas minúcias. Alguém o informou de que havia uma equipa noticiosa de um canal de televisão que pretendia instalar-se ao fundo do corredor, ao que ele enviou imediatamente um dos delegados para que retomasse posse da área em questão.
Com a sala de tribunal a postos, com tudo organizado, Wycliff retirou-se para o seu gabinete a fim de tratar de outros assuntos. Era-lhe difícil concentrar-se. A sua agenda diária jamais voltaria a proporcionar-lhe tais emoções. De uma maneira bastante egoísta, albergava a esperança de que o testamento de Troy Phelan revelasse ser escandalosamente controverso; que não deixasse dinheiro nenhum a uma das ex-famílias em benefício de outra. Ou ainda que talvez Phelan tivesse deixado todos os seus filhos amalucados a verem navios, enriquecendo qualquer outra pessoa. Uma contestação longa, levada a cabo em moldes grosseiros, certamente que imprimiria alguma vivacidade à carreira rotineira de Wycliff no campo das homologações. Ele estaria no centro da tempestade, uma que sem dúvida alguma faria sentir os seus efeitos devastadores durante muitos anos, uma vez que em jogo se encontravam onze mil milhões.
Estava seguro de que isso viria a suceder. Sozinho, com a porta trancada, passou os quinze minutos seguintes a passar a ferro a sua toga.
O primeiro espectador a chegar foi um repórter que chegou passava pouco das oito e, dado que era o primeiro, teve direito ao tratamento completo por parte de um segurança enervado, que bloqueava as portas duplas que davam acesso à sala de tribunal. Foi saudado com rispidez, tendo-lhe sido pedido que apresentasse um documento com fotografia que o identificasse, sendo ainda obrigado a assinar uma folha destinada aos jornalistas, para além de o segurança lhe ter inspeccionado o bloco de estenografia, como se este fosse uma granada. Só depois é que lhe indicaram que passasse por um detector de metais, onde dois seguranças encorpados deixaram transparecer a decepção que sentiam quando não ouviram o toque das sirenes à sua passagem. O repórter sentiu-se muito grato por não o mandarem despir para o revistarem. Uma vez no interior da sala de tribunal, foi conduzido até meio da coxia por outro segurança de uniforme, que lhe indicou um lugar a duas filas da frente. Sentiu-se aliviado por se poder sentar. A sala de tribunal estava vazia.
A audiência fora marcada para as dez horas; por volta das nove, já se tinha reunido uma multidão jeitosa no vestíbulo às portas da sala do tribunal.
Os seguranças levavam o seu tempo com as papeladas e as revistas às pessoas. No corredor formara-se uma fila.
Alguns dos advogados dos herdeiros Phelan chegaram de rompante, mostrando-se imediatamente irritados com a demora para entrarem na sala do tribunal. Foram trocadas algumas palavras acrimoniosas; fizeram-se ameaças dirigidas aos advogados, assim como aos delegados. Houve alguém que mandou chamar Wycliff, mas este estava a engraxar as botas e não desejava ser importunado. A exemplo de uma noiva antes do casamento, não desejava ser visto pelos convidados antes do início da sessão. Foi dada prioridade aos advogados e herdeiros, o que aliviou uma situação de grande tensão.
Lentamente, a sala do tribunal começou a encher-se. Haviam sido colocadas algumas mesas que formavam uma ferradura, com a mesa do juiz na parede oposta às portas, de forma a que Sua Excelência pudesse, do seu poleiro, olhar para baixo e manter-se atento a todos os presentes: advogados, herdeiros e espectadores. À esquerda da mesa, em frente da bancada do júri, via-se uma mesa em redor da qual os Phelan estavam a ser sentados de acordo com o lugar destinado a cada um. Troy Júnior foi o primeiro, com Biff logo atrás de si. Indicaram-lhes o lugar mais próximo da mesa do juiz, onde se sentaram junto de três advogados da sua equipa jurídica, enquanto se esforçavam desesperadamente por apresentar uma expressão sombria, ao mesmo tempo que ignoravam todos os demais presentes na sala do tribunal. Biff estava furiosa porque um dos seguranças lhe tinha confiscado o telefone celular. Estava impossibilitada de fazer telefonemas aos agentes imobiliários.
Ramble sentava-se a seguir. Para aquela ocasião negligenciara particularmente o cabelo, onde ainda se podiam ver algumas madeixas de um verde viscoso, para além de não ser lavado há duas semanas. As argolas que usava eram ostentadas em todo o seu esplendor - no nariz, na orelha, no sobrolho. Vestia um colete de couro negro e tinha tatuagens temporárias nos braços escanzelados. Calças de ganga esfarrapadas; botas coçadas. Uma fisionomia carrancuda. Quando começou a percorrer a coxia, atraiu a atenção de todos os jornalistas presentes. Era apaparicado e adulado a todo o instante por Yancy, o seu advogado hippie, já bem entrado nos anos, o qual, de alguma maneira, conseguira manter o seu cliente mais precioso.
Yancy lançou um olhar fugaz ao lugar que coubera a cada um, pedindo que os sentassem tão longe quanto possível de Troy Júnior. O delegado acedeu colocando-os ao fundo de uma mesa temporária, de frente para a mesa do juiz. Ramble afundou-se no seu assento, com os cabelos esverdeados a cairem pelas costas da cadeira. Os espectadores, mostrando-se horrorizados, ficaram a olhar para ele - aquela coisa estava prestes a herdar quinhentos milhões de dólares? O potencial para que se verificasse uma situação de violência caótica não tinha limites.
A seguir sentava-se Geena Phelan Strong, acompanhada do marido, Cody, e dois dos advogados do casal. Com um olhar mediram a distância entre Troy Júnior e Ramble, em seguida dividiram a diferença, sentando-se tão distanciados de ambos quanto lhes foi possível. Cody mostrava-se particularmente sobrecarregado emocionalmente e ansioso, começando de imediato a rever alguns documentos importantes com um dos seus advogados. Geena limitava-se a olhar aparvalhada para Ramble; mal podia acreditar que fossem meios-irmãos.
Amber, a stripper, fez uma grande entrada com a sua saia curta e blusa decotada, que revelava a maior parte dos seus seios generosos. O delegado que a escoltava pela coxia abaixo nem queria acreditar na sorte que lhe coubera. Trocando algumas banalidades com ela, simultaneamente, não despregava os olhos da linha do decote da blusa. Rex vinha logo atrás, usando um fato escuro e trazendo uma pasta bastante cheia, como se hoje o aguardasse algum trabalho importante. Atrás dele vinha Hark Gettys, que continuava a ser o advogado mais barulhento de toda a cambada. Hark fazia-se acompanhar de dois dos seus novos assistentes: a actividade da sua firma aumentava de semana a semana. Dado que Amber e Biff não se falavam, Rex interveio pressuroso indicando um lugar entre Ramble e Geena.
As mesas estavam a encher-se; os espaços fechavam-se. Dentro em pouco, alguns dos Phelan seriam forçados a sentar-se junto uns dos outros.
A mãe de Ramble, Tira, trouxe consigo dois homens ainda bastante jovens que tinham mais ou menos a mesma idade. Um deles usava calças justas de ganga e tinha um peito peludo; o outro vinha bem vestido com um fato escuro com riscas finas. Ela deitava-se com o chulo. O advogado teria o seu quinhão na volta.
Preencheu-se outro espaço. No outro lado da mesa do juiz, o ambiente na sala de tribunal era vivaz com as bisbilhotices e especulações articuladas em sussurro.
- Não admira que o velho tenha saltado - comentava um repórter com um colega enquanto observavam os Phelan.
Os netos da família haviam sido obrigados a sentarem-se entre os espectadores, gente comum. Mantinham-se junto das suas pequenas comitivas e grupos de apoio, rindo-se à socapa com mostras de nervosismo, esperando ver o que é que o destino lhes reservara.
Libbigail Jeter chegou acompanhada do marido, Spike, o ex-motoqueiro que pesava cento e sessenta quilos; ambos começaram a percorrer a coxia, sentindo-se tão pouco à vontade como os demais, apesar de já terem visto a sua quota-parte do interior de salas de tribunal. Seguiam Wally Bright, o advogado que haviam encontrado nas páginas amarelas. Wally usava uma gabardina às pintas cuja orla arrastava pelo soalho, calcando um par de botas de sola rasa com a biqueira virada para cima, com uma gravata de um tecido sintético que se usara há vinte anos, e caso os espectadores tivessem direito ao voto como deve ser, ganharia com a maior facilidade o prémio oferecido ao advogado mais mal-vestido. Levava os seus papéis numa pasta de fole, uma que já utilizara para inúmeros divórcios e outras causas de pouca monta. Por qualquer razão, Bright nunca comprara uma pasta. Classificara-se em décimo na turma do seu curso tirado à noite.
Encaminharam-se directamente para o espaço mais alargado. Quando ocupavam os seus lugares, Bright iniciou o processo barulhento de despir a gabardina. A bainha esfiapada roçou contra o pescoço de um dos associados, sem nome, de Hark, um jovem empenhado que já se sentira incomodado com o odor corporal que emanava de Bright.
- Importa-se de ter mais cuidado! - ripostou ele com agressividade, lançando as costas da mão na direcção de Bright sem lhe acertar. As palavras pareceram estalar através do ar cheio de tensão e nervosismo. As cabeças em redor das mesas voltaram-se num movimento rápido, esquecidos de imediato todos os documentos que tão importantes haviam sido até então. Toda a gente detestava toda a gente.
- Desculpe! - ripostou Bright num timbre pleno de sarcasmo. Dois dos delegados avançaram prontos para intervir em caso de necessidade. Mas a gabardina encontrou um lugar debaixo da mesa sem que se verificassem mais incidentes; finalmente, Bright conseguiu sentar-se junto de Libbigail, com Spike sentado no lado oposto, cofiando as barbas, enquanto fitava Troy Júnior como se adorasse esbofeteá-lo.
Eram poucas as pessoas presentes naquela sala de tribunal que esperavam que aquela breve escaramuça fosse a última entre os Phelan.
Quando uma pessoa morre deixando onze mil milhões de dólares, é inevitável que os outros se interessem em conhecer as últimas vontades expressas no testamento. Muito em especial quando existe a probabilidade de uma das maiores fortunas em todo o mundo estar prestes a servir de alimento aos abutres. Os pasquins também se encontravam presentes, juntamente com os jornais locais e as revistas mais importantes especializadas em assuntos económicos. As três filas que Wycliff destinara aos membros da imprensa, às nove e trinta já estavam cheias.
Os jornalistas haviam-se deliciado prestando atenção aos Phelan que começavam a reunir-se à sua frente. Havia três desenhadores que trabalhavam freneticamente; o panorama que tinham à frente dos olhos era uma rica fonte de inspiração. O inútil de cabelos verdes merecia mais do que a sua quota-parte de esboços.
Às nove e cinquenta minutos, Josh Stafford entrou na sala do tribunal. Tip Durban vinha com ele, assim como outros dois membros da firma e um par de assistentes jurídicos, o que arredondava o número de homens da lei. Com expressões sombrias e inflexíveis, tomaram os seus lugares à mesa que lhes fora destinada, bastante espaçosa quando comparada com o espaço exíguo ocupado pelos herdeiros Phelan e respectivos advogados. Josh colocou uma única pasta de cartolina frente a si, embora esta fosse espessa. Imediatamente, todos os olhares se prenderam naquela pasta. O interior continha aquilo que parecia ser um documento com quase cinco centímetros de espessura, muito semelhante ao que o velho Troy assinara enquanto era filmado por uma câmara de vídeo, o que tivera lugar apenas dezanove dias antes.
Não podiam resistir à tentação de olhar para aquilo. Isto é, todos menos Ramble. A lei em vigor na Virgínia permitia que os herdeiros recebessem cópias antecipadas caso os bens fossem líquidos, o que não daria lugar à mínima preocupação em relação ao pagamento de dívidas e impostos. As estimativas adiantadas pelos advogados dos Phelan cifravam-se numa média baixa de dez milhões por herdeiro, um número bastante distanciado do palpite de Bright, que se cifrava em cinquenta milhões. Em toda a sua vida, Bright nunca tivera oportunidade de ver cinquenta mil dólares.
Às dez horas, os delegados cerraram as portas e, como que impulsionado por uma deixa secreta, o juiz Wycliff surgiu através de uma entrada por detrás da sua mesa; o silêncio abateu-se sobre a sala do tribunal. Instalou-se no seu cadeirão, acomodando a toga bem passada a ferro em seu redor com um sorriso nos lábios.
- Bom-dia - disse falando ao microfone.
Todos os presentes lhe retribuíram o sorriso. Para sua grande satisfação, verificou que toda a capacidade da sala fora ocupada. Uma contagem rápida dos delegados revelou oito armados e prontos. Começou a examinar os Phelan; não se via um único espaço vazio. Alguns dos advogados dos herdeiros estavam, praticamente, sentados ombro contra ombro.
- Todos os interessados estão presentes? - perguntou o juiz. À volta de todas as meses as cabeças acenaram afirmativamente.
- Preciso de identificar todos - acrescentou ele estendendo a mão para alguns papéis. - A primeira petição foi apresentada por Rex Phelan.
Antes que as palavras fossem apreendidas por todos os presentes, Hark Gettys já se pusera de pé, aclarando a garganta.
- Meritíssimo, eu sou Hark Gettys - informou numa voz retumbante na direcção da mesa do juiz - e represento os interesses do senhor Rex Phelan.
- Muito obrigado. Pode permanecer sentado.
Fez uma ronda a todas as mesas e, metodicamente, tomou apontamento do nome dos herdeiros e dos respectivos advogados. De todos os advogados. Os repórteres tomavam nota tão depressa quanto o juiz. Ao todo eram seis herdeiros e três ex-mulheres. Encontravam-se todos presentes na sala de tribunal.
- Vinte e dois advogados - disse Wycliff entredentes para si próprio.
- Tem o testamento consigo, doutor Stafford? - perguntou o juiz.
- Tenho - respondeu Josh, segurando uma outra pasta de cartolina.
- Quer fazer o favor de se dirigir ao banco das testemunhas?
Josh contornou as mesas, passando pelo estenógrafo do tribunal e dirigindo-se para o banco das testemunhas.
- Está aqui em representação de Troy Phelan? - perguntou Wycliff.
- Fui eu quem o representou. Durante um determinado número de anos.
- Elaborou algum testamento a seu pedido?
- Elaborei vários.
- Elaborou o seu último testamento?
Fez-se uma pausa que cada vez se tornava mais longa, fazendo com que os Phelan se aproximassem mais uns dos outros.
- Não, não elaborei - respondeu Josh com lentidão observando os abutres. As palavras haviam sido proferidas num tom suave, mas cortaram o ar como se fossem trovões. Os advogados da família Phelan reagiram com muito mais celeridade do que os herdeiros, vários dos quais não sabiam bem como interpretar o que ouviram. Contudo, era algo de grave e inesperado. Em redor das mesas abateu-se outra camada de tensão. O silêncio que reinava na sala de tribunal acentuou-se ainda mais.
- Quem é que preparou as últimas vontades e o testamento do senhor Phelan? - inquiriu Wycliff, qual actor de fraca qualidade a ler um argumento.
- O próprio senhor Phelan - replicou Stafford.
Aquilo não correspondia à verdade. Tinham visto o velho sentado à mesa rodeado pelos advogados e por três psiquiatras - Zadel, Flowe e Theishen - directamente do lado oposto da mesa. Fora declarado como estando mentalmente são sem mais delongas, e segundos depois agarrara num testamento composto por muitas páginas, preparado por Stafford e um dos seus associados, declarando que era seu, após o que o assinou. Quanto a este aspecto não havia nada a pôr em causa.
- Oh, meu Deus! - exclamou Hark Gettys numa voz entrecortada, embora suficientemente elevada para todos poderem ouvir.
- Quando é que ele o assinou? - perguntou Wycliff.
- Momentos antes de ter saltado para a morte.
- Foi escrito à mão?
- Foi - confirmou Stafford.
- Ele assinou-o na sua presença?
- Assinou. Além de que estavam presentes outras testemunhas. A assinatura também ficou registada em vídeo.
- Faça o favor de me entregar esse testamento.
Com gestos deliberados, Josh retirou apenas um sobrescrito da pasta de cartolina, passando-o para as mãos de Sua Excelência. Tinha um aspecto tremendamente pequeno. Não havia qualquer maneira de poder conter linguagem suficiente para proporcionar aos Phelan aquilo que por direito lhes pertencia.
- O que raio é isto? - perguntou Troy Júnior numa voz sibilada ao advogado mais próximo de si. Mas este não sabia como lhe responder.
O sobrescrito continha apenas uma folha de papel amarelo com linhas. Wycliff retirou-a com lentidão, dando oportunidade a todos de a verem, e com cuidado começou a desdobrá-la, após o que a examinou por um momento.
O pânico apoderou-se dos Phelan, mas não havia nada que pudessem fazer. Teriam eles sido lixados pelo velho uma última vez? Estaria o dinheiro a escapar-se-lhes das mãos? Talvez ele tivesse mudado de ideias deixando-lhes ainda mais do que pensavam. À volta das mesas acotovelaram e tocaram nos seus advogados, os quais se haviam remetido a um mutismo extraordinário.
Wycliff pigarreou aproximando-se um pouco mais do microfone.
- Nas minhas mãos tenho um documento composto por uma página que passa por ser um testamento escrito pelo punho de Troy Phelan. Vou passar a lê-lo em toda a sua inteireza.
«O último testamento de Troy L. Phelan. Eu, Troy L. Phelan, de posse de todas as minhas faculdades mentais, venho por este meio anular irrevogavelmente todos os anteriores testamentos e codicilos elaborados a meu pedido, passando a dispor dos meus bens como se segue:
Aos meus filhos, Troy Phelan Júnior, Rex Phelan, Libbigail Jeter, Mary Ross Jackman, Geena Strong e Ramble Phelan, lego a cada um deles o montante em dinheiro necessário para saldar todas as suas dívidas até à data de hoje. Quaisquer dívidas em que possam incorrer depois da data atrás mencionada não serão abrangidas por esta disposição testamentária. Se qualquer dos herdeiros atrás referidos tentar contestar a validade deste testamento, então essa dádiva será definitivamente anulada no que respeita a esse herdeiro.»
Até mesmo Ramble ouviu as palavras sem dificuldade em compreendê-las. Geena e Cody começaram a chorar de mansinho. Rex inclinou-se para a frente com os cotovelos apoiados sobre a mesa, ocultando o rosto nas mãos; a sua mente estava entorpecida.
Libbigail olhou para Bright por cima da cabeça de Spike.
- O grande filho da puta. - Foram as palavras viperinas que lhe saíram da boca.
Spike concordou. Mary Ross cobriu os olhos enquanto o seu advogado lhe afagava um joelho. O marido afagava o outro. Somente Troy Júnior é que conseguiu afivelar uma expressão que nada demonstrava, mas não foi capaz de a manter por muito mais tempo.
Mas ainda lhes estavam reservadas mais desgraças. Wycliff não terminara.
«Às minhas ex-mulheres, Lillian, Janie e Tira não deixo nada. Aquando do divórcio, elas foram adequadamente contempladas em termos financeiros.»
Naquele momento, Lillian, Janie e Tira perguntavam a si mesmas o que diabo é que tinham ido fazer àquela sala de tribunal. Teriam elas realmente esperado vir a receber mais dinheiro de um homem que odiavam? Sentiram os olhares dos presentes focados em si, tentando esconder-se entre os seus advogados. Os repórteres e jornalistas exibiam uma frivolidade espantosa. Desejavam tomar apontamentos, mas tinham receio de deixar escapar uma única palavra. Alguns mostravam sorrisos idiotas, era mais forte do que eles.
«O remanescente da minha herança reverterá a favor da minha filha Rachel Lane, nascida a dois de Novembro de mil novecentos e cinquenta e quatro, no Hospital Católico da Louisiana, em Nova Orleães, a qual foi dada à luz por uma mulher de nome Evelyn Cunningham, presentemente falecida.»
Wycliff fez uma pausa, embora não o fizesse para obter um efeito mais dramático. Faltando-lhe apenas ler dois parágrafos pouco extensos, o estrago já fora feito. Os onze mil milhões de dólaresjá haviam sido legados a uma herdeira de nascimento ilegítimo de quem ele nunca ouvira falar. Os Phelan defronte de si sentiam que haviam sido espoliados. Não podia evitar olhar para eles.
«Nomeio o meu advogado de confiança, Joshua Stafford, para exercer a função de testamenteiro deste testamento, conferindo-lhe plenos poderes discricionários na administração do mesmo.»
Por momentos, tinham-se esquecido da existência de Josh. Todavia, ali estava ele, no banco, qual testemunha inocente de um acidente de viação; começaram a olhá-lo com uma expressão de fúria que reflectia tanto ódio quanto conseguiam reunir. Até que ponto é que ele tivera conhecimento daquele último testamento? Seria ele um conspirador? Certamente que ele teria podido tomar alguma medida que impedisse aquilo.
Josh esforçou-se por manter uma expressão impassível.
«Este documento é um documento holografado. Todas as palavras foram escritas pelo meu punho e passo a assiná-lo.» - Wycliff baixou o documento, acrescentando:
- Este testamento foi assinado por Troy L. Phelan às quinze horas do dia nove de Dezembro de mil novecentos e noventa e seis.
Pousou o testamento e percorreu com o olhar todos os presentes, concentrando-se no epicentro. O terramoto estava a chegar ao fim, chegara a hora das réplicas do abalo sísmico. Os Phelan mantinham-se acabrunhados nos seus lugares, alguns esfregavam os olhos e as frontes, enquanto outros olhavam fixamente e com frenesi para as paredes. De momento, os vinte e dois advogados haviam perdido a capacidade de falar.
Os choques percorreram as filas de espectadores, entre os quais, estranhamente, se viam alguns sorrisos. Ah, eram os meios de comunicação social, subitamente desejosos de abandonarem a sala a toda a velocidade, a fim de começarem a escrever os seus artigos.
Amber chorava convulsivamente, de forma a que todos ouvissem, até que acabou por se recompor. Encontrara-se com Troy Phelan apenas numa ocasião, altura em que ele lhe fizera uma proposta ordinária. O seu desgosto não se devia à perda de um ente amado. Geena chorava de mansinho, tal como fazia Mary Ross. Libbigail e Spike optaram por praguejar.
- Não se preocupem - dizia Bright dando-lhes a impressão de que poderia remediar aquela injustiça numa questão de dias.
Biff olhava enfurecida para Troy Júnior; as sementes do divórcio estavam a ser lançadas à terra. Desde o suicídio do pai que ele se mostrara particularmente arrogante e condescendente para com ela. Por razões mais do que óbvias ela tolerara aquele comportamento, mas isso acabara-se. Era com satisfação que se mantinha na expectativa da primeira discussão, que certamente teria lugar apenas a alguns metros de distância das portas da sala do tribunal.
Também haviam sido semeadas outras sementes. Para os advogados de sentimentos embotados, a surpresa foi recebida, absorvida e instintivamente repelida, tal como um pato sacode a água das suas penas. Estavam prestes a ficar ricos. Os seus clientes haviam contraído dívidas excessivas sem qualquer alívio à vista. A única alternativa que lhes restava era contestar a validade do testamento. Os processos de litigação arrastar-se-iam ferozmente por muitos anos.
- Para quando é que está a prever a homologação do testamento? - perguntou Wycliff a Josh.
- Dentro de uma semana.
- De acordo. Pode abandonar o banco das testemunhas.
Josh regressou ao seu lugar com uma expressão de triunfo, enquanto os demais advogados remexiam nos seus papéis, fingindo que tudo estava a correr da melhor maneira.
- A sessão está encerrada.
Verificaram-se três discussões no corredor logo depois do encerramento da sessão. Felizmente, nenhuma delas envolveu os Phelan em confronto com outros membros da sua família. Essas disputas teriam lugar posteriormente.
Havia uma multidão de repórteres que aguardava às portas do tribunal, ao mesmo tempo que os Phelan eram consolados no interior pelos respectivos advogados. Troy Júnior foi o primeiro a sair, tendo sido imediatamente rodeado por uma alcateia de lobos, vários destes empunhando microfones numa posição de ataque. Para começar, ele estava de ressaca, e agora que se sentia mais pobre em quinhentos milhões de dólares, não estava com disposição nenhuma para falar sobre o seu pai.
- Ficou surpreendido? - perguntou um idiota qualquer falando por detrás de um microfone.
- Pode apostar que sim - ripostou ele tentando atravessar aquele mar de gente.
- Quem é Rachel Lane? - perguntou um outro.
- Calculo que seja a minha meia-irmã - respondeu com brusquidão. Um rapazinho magricela com uns olhos que reflectiam estupidez e uma
pele num estado miserável parou mesmo em frente de Troy metendo-lhe um gravador mesmo à frente do rosto.
- Quantos filhos ilegítimos é que o seu pai teve? - perguntou. Num gesto instintivo, Troy Júnior empurrou o gravador na direcção do
rapaz. Foi embater-lhe com grande impacto mesmo acima do nariz, e enquanto ele tombava de costas Troy Júnior desferiu-lhe uma poderosa esquerda contra o ouvido que o fez cair por terra. No meio da confusão que se gerou, um dos delegados empurrou Troy Júnior noutra direcção e ambos se puseram rapidamente em debandada.
Por seu lado, Ramble escarrou num outro repórter, que teve de ser contido por um colega que lhe recordou que o miúdo era de menor idade.
A terceira escaramuça teve lugar quando Libbigail, que continuava a chorar, tropeçou num cabo eléctrico, tombando para cima de um repórter que também caiu. Ouviram-se gritos e imprecações e, quando o repórter conseguiu pôr-se de gatas, esforçando-se por se levantar, Spike deu-lhe um pontapé nas costelas. O homem soltou um guincho e voltou a cair esparramado. Quando tentava pôr-se de pé outra vez, um dos pés prendeu-se na orla do vestido de Libbigail, que não hesitou em dar-lhe uma bofetada, pelo sim pelo não. Spike estava prestes a desancá-lo quando um dos delegados interveio mesmo a tempo.
Os delegados puseram fim a todas aquelas escaramuças, tomando sempre o partido dos Phelan em detrimento dos repórteres. Ajudaram a conduzir apressadamente os herdeiros assediados e seus advogados pelas escadas abaixo, atravessando o átrio e transpondo a porta do edifício.
O advogado Grit, que representava Mary Ross Phelan Jackman, sentiu-se avassalado com a visão de um número tão grande de repórteres. A primeira emenda da constituição assenhoreou-se da sua mente, pelo menos na compreensão rudimentar que tinha dela, o que o levou a sentir-se compelido a falar livremente. Com o braço por cima do ombro da sua cliente, que tão conturbada estava, e com uma expressão sinistra, ofereceu a reacção de ambos perante a perplexidade daquele testamento. Era obviamente obra de um homem demente. De que outra maneira é que se poderia justificar deixar uma fortuna de tal dimensão a uma herdeira desconhecida? A sua cliente adorava o pai, tendo-lhe dedicado um profundo amor, venerara-o; enquanto Grit continuava a expressar-se incoerentemente acerca do incomensurável amor que existira entre pai e filha, ao fim de algum tempo, Mary Ross compreendeu a deixa começando a chorar. O próprio Grit parecia estar à beira das lágrimas. Sim, lutariam pelos direitos da sua cliente. Empenhar-se-iam em combater aquela grave injustiça junto do supremo tribunal. Por que motivo? Porque aquilo não era obra do Troy Phelan que haviam conhecido. Paz à sua alma. Ele amara os seus filhos, que lhe tinham retribuído esse amor. O laço que os unira era de uma força indestrutível, forjado através de tragédias e situações adversas. Lutariam porque o pai que tanto amavam não estava em si quando garatujou aquele testamento chocante.
Josh Stafford não tinha grande pressa de deixar o tribunal. Com serenidade, falou com Hark Gettys e alguns dos advogados sentados a outras mesas. Prometeu enviar-lhes cópias daquele hediondo testamento. Inicialmente, as coisas decorreram com cordialidade, mas pouco depois as hostilidades começaram a crescer. Um repórter que ele conhecia do Post aguardava no átrio, e Josh teve de passar dez minutos a conversar com ele sem lhe ter dito nada de substancial. O aspecto que despertava mais interesse era Rachel Lane; os seus antecedentes e paradeiro. Fizeram-lhe uma série de perguntas, no entanto, Josh não tinha resposta nenhuma a dar-lhes. Seguramente que Nate haveria de a encontrar antes de qualquer outra pessoa.
A história foi crescendo. Passou da sala de tribunal para as ondas emissoras das mais recentes engenhocas utilizadas pelos sistemas de telecomunicações e equipamento de alta tecnologia. Os repórteres não perderam tempo a utilizar os seus telemóveis, microcomputadores e pagers, falando sem pensar no que diziam.
Os mais importantes meios de comunicação começaram a difundir as notícias vinte minutos após o encerramento da sessão, e meia hora mais tarde, o primeiro canal televisivo, que transmitia noticiários vinte e quatro horas sobre vinte e quatro, interrompeu a transmissão de boletins noticiosos repetidos em série para passar a transmitir em directo os comentários do seu repórter, em frente à câmara, no exterior do tribunal.
- Daqui apresentamos algumas notícias de pasmar... - começou ele a dizer, iniciando a narração da história cingindo-se, na sua maior parte, à veracidade dos factos.
Sentado ao fundo da sala do tribunal encontrava-se Pat Solomon, a última pessoa seleccionada por Troy Phelan para gerir o Grupo Phelan. Desempenhara a função de administrador durante seis anos, seis anos muito lucrativos em que nunca lhe acontecera nenhuma adversidade digna de menção.
Abandonou o tribunal sem ter sido reconhecido por qualquer repórter. Afastando-se do edifício, sentado no assento traseiro de uma limusina, Solomon tentava analisar a última bomba lançada pelo velho Troy. Não se sentia chocado com a atitude dele. Depois de ter trabalhado com Troy durante vinte anos não havia nada que pudesse surpreendê-lo. A reacção dos idiotas dos filhos e dos seus advogados era bastante reconfortante. Tinha havido uma ocasião em que Solomon fora incumbido da tarefa impossível de descobrir, dentro da companhia, uma função que Troy Júnior pudesse desempenhar sem causar uma quebra nos lucros trimestrais. Fora um verdadeiro pesadelo. Mimado, imaturo, mal-educado e carecendo de todas as capacidades básicas de gestão, Troy Júnior gerira de maneira calamitosa toda uma divisão de minérios antes de Solomon ter tido luz verde, vinda do topo, para o despedir.
Alguns anos mais tarde, verificara-se um episódio similar com Rex na procura da aprovação e do dinheiro do pai. No fim, Rex intercedera junto de Troy Phelan para que este despedisse Solomon.
As mulheres e os outros filhos tinham interferido ao longo dos anos, mas Troy mantivera-se firme. A sua vida particular era um fiasco, contudo não permitia que nada pudesse prejudicar a companhia que tanto amava.
Solomon e Troy nunca tinham mantido uma relação íntima. De facto, ninguém, talvez com a excepção de Josh Stafford, alguma vez conseguira tornar-se num confidente do magnata. A parada de louras havia, evidentemente, partilhado das intimidades óbvias, mas Troy nunca tivera amigos. E à medida que se fechava mais em si mesmo, declinando mental e fisicamente, aqueles que geriam a empresa murmuravam por vezes entre si sobre quem é que passaria a deter o título de propriedade da empresa. Com certeza que Troy não a deixaria aos filhos.
Não o fizera. Pelo menos não fizera seus herdeiros aqueles que seria de esperar.
O conselho de administração aguardava no décimo quarto andar, na mesma sala de reuniões onde Troy apresentara o testamento, antes de se ter despenhado da varanda abaixo. Solomon descreveu o que se tinha passado na sala do tribunal, e a sua narrativa bastante colorida tinha alguns aspectos bem-humorados. A hipótese de os herdeiros virem a assumir o controlo causara grande mal-estar entre os membros do conselho. Troy Júnior dera a conhecer que ele e os seus irmãos eram detentores do número de votos suficientes para lhes garantir a maioria, planeando fazer uma limpeza geral e começar a mostrar lucros a sério.
Os demais membros do conselho de administração queriam saber de Janie, a ex-mulher número dois. Trabalhara na empresa como secretária até ter sido promovida a amante, e a seguir a esposa; depois de ter atingido o topo, mostrara-se particularmente abusiva para com muitos dos funcionários da empresa. Troy proibira-a de entrar na sede.
- Quando saiu do tribunal ia a chorar - disse Solomon cheio de satisfação.
- E quanto a Rex? - perguntou um dos directores, o chefe do departamento financeiro que em tempos fora despedido por Rex num elevador.
- Um rapaz que não se mostrou muito feliz. Não sei se sabem que ele está sob investigação policial.
Continuaram a falar sobre a maior parte dos filhos de Troy Phelan e de todas as mulheres, o que imprimiu um cunho de festividade à reunião.
- Contei vinte e dois advogados - continuou Solomon com um sorriso. - Uma cambada bem tristonha.
Uma vez que se tratava de uma reunião informal do conselho de administração, a ausência de Josh era inconsequente. O director do departamento jurídico declarou que o testamento, ao fim e ao cabo, fora um rasgo de sorte.
Só tinham de se preocupar com uma herdeira desconhecida, em vez de terem de lidar com seis idiotas.
- Alguém faz alguma ideia de quem é esta mulher?
- Nenhuma - respondeu Solomon. - Talvez Josh saiba.
Ao fim da tarde, Josh fora forçado a sair do seu gabinete, retirando-se para uma pequena biblioteca na cave do seu edifício.
A sua secretária parara de contar as mensagens telefónicas quando chegou ao número cento e vinte. Desde o fim da manhã que o vestíbulo da entrada principal estava apinhado de repórteres. Josh deixara instruções estritas a todas as secretárias para que ninguém o importunasse durante uma hora. Portanto, quando bateram à porta sentiu-se especialmente incomodado.
- Quem é? - gritou através da porta.
- É uma emergência, doutor Stafford - respondeu uma das secretárias.
- Entre.
A cabeça dela espreitou apenas o suficiente para poder olhar para o rosto do advogado dizendo:
- É o doutor O'Riley - Josh parou de massajar as têmporas, chegando ao ponto de sorrir. Olhou em redor, recordando-se que ali não havia telefones. A secretária deu dois passos e colocou um aparelho portátil na mesa, após o que desapareceu.
- Nate - disse Josh falando para o bucal.
- És tu, Josh? - retorquiu Nate. O som era excelente mas as palavras eram um pouco arranhadas. Todavia, a recepção era melhor do que a maior parte dos aparelhos instalados em automóveis.
- Sim, ouves-me bem, Nate?
- Ouço.
- Onde é que estás?
- Estou a ligar-te através do telefone-satélite, à popa do meu pequeno iate enquanto navegamos pelo rio Paraguai. Consegues ouvir-me?
- Sim, em boas condições. Estás bem, Nate?
- Sinto-me às mil maravilhas, estou a divertir-me à grande, só temos um pequeno problema com o barco.
- Que espécie de problema?
- Bem, o propulsor foi apanhado por uma corda perdida e o motor foi-se abaixo. A minha tripulação está a tentar soltar a corda. Estou a supervisionar os trabalhos.
- Pela tua voz pareces estar óptimo.
- Trata-se de uma aventura, não é verdade, Josh?
- Claro que sim. Já descobriste algum sinal da rapariga?
- Nem pensar nisso. Na melhor das hipóteses, estamos à distância de dois dias e agora flutuamos de marcha à ré. Não tenho a certeza de que alguma vez cheguemos ao nosso destino.
- Tens de chegar, Nate. Esta manhã procedeu-se à leitura do testamento na sala do tribunal à porta aberta. Dentro em pouco, todo o mundo andará à procura de Rachel Lane.
- No teu lugar, eu não me preocuparia com isso. Ela está em segurança.
- Quem me dera estar junto de ti.
A extremidade de uma nuvem enfraqueceu o sinal.
- O que é que disseste? - perguntou Nate num tom de voz mais alto.
- Nada. Isso quer dizer que vais estar com ela dentro de dois dias, certo?
- Se a sorte estiver do nosso lado. O barco nunca pára, navegamos vinte e quatro horas por dia, mas temos de seguir rio acima e estamos na estação das chuvas, o que significa que os rios estão cheios e as correntes são fortes. Além do mais, não temos a certeza absoluta quanto ao local para onde deveremos seguir. Dois dias é uma estimativa demasiado optimista, partindo do princípio de que vamos conseguir pôr o raio do propulsor em boas condições de funcionamento.
- Isso quer dizer que as condições climatéricas não são as melhores - redarguiu Josh um pouco distraidamente. Não havia muito que pudessem discutir. Nate estava vivo e bem, continuando a deslocar-se na direcção geral do alvo.
- Está um calor infernal e chove cinco vezes ao dia. Para além disso, é uma maravilha.
- Já encontraste alguma cobra?
- Umas duas. Anacondas mais compridas do que o barco. Montes de crocodilos. Ratos tão grandes que mais parecem cães. Chamam-lhes capivaras. Vivem nas margens dos rios entre os crocodilos, e quando esta gente sente fome suficiente matam-nos e comem-nos.
- Mas tu tens comida suficiente, não é verdade?
- Oh, sim. As nossas provisões são feijão-preto e arroz branco. Welly cozinha-os para eu comer três vezes ao dia.
Nate articulava as palavras com clareza num timbre pleno de aventura.
- Quem é esse Welly?
- O meu marinheiro. Neste momento, está debaixo do barco a uma profundidade de mais de três metros e meio, sustendo a respiração enquanto corta a corda que se emaranhou no propulsor. Tal como te disse, estou a supervisionar.
- Mantém-te fora de água, Nate - advertiu Josh.
- Estás a brincar? Estou no convés superior. Tenho de desligar. Estou a gastar energia e ainda não arranjei uma maneira de recarregar o acumulador.
- Quando é que tencionas telefonar de novo?
- Vou tentar esperar até depois de encontrar a nossa Rachel Lane.
- Boa ideia. Mas não hesites em ligar se tiveres algum problema.
- Problema? Por que motivo é que eu haveria de te telefonar, Josh? Não há uma única coisa no mundo que tu possas fazer, Josh.
- Tens razão. Não telefones.
O temporal desencadeou-se ao crepúsculo, na altura em que Welly cozia arroz na cozinha e Jevy observava as águas do rio a escurecerem. O vento despertou Nate, uma rajada súbita e ululante sacudiu a rede espreguiçadeira, fazendo com que ele se levantasse de um salto. Seguiram-se os relâmpagos e os trovões. Aproximou-se de Jevy olhando para norte, para uma mancha vasta de uma negridão de pez.
- Uma grande tempestade - disse Jevy, mostrando-se indiferente.
«Não deveríamos estacionar esta coisa?», perguntou Nate a si próprio. «Pelo menos, ir para águas mais baixas?» Jevy dava a impressão de não sentir a mínima preocupação; por vezes, a sua indiferença era reconfortante. Quando a chuva começou a abater-se, Nate desceu para comer o seu arroz com feijão. Comeu em silêncio, com Welly a um canto da cabina. A lâmpada acima da sua cabeça oscilava pela acção do vento que balouçava a embarcação. Os vidros das janelas eram açoitados por pesadas gotas de chuva.
Na ponte, Jevy vestiu um poncho de oleado amarelo manchado de óleo, enfrentando a chuva que lhe zurzia as faces. A exígua casa do leme não tinha janelas. Os dois projectores tentavam iluminar o caminho através das trevas, embora não revelassem muito mais de quinze metros de águas revoltas que se agitavam à frente da embarcação. Jevy conhecia bem o curso do rio, tendo enfrentado outros temporais mais severos.
Era difícil ler com o barco em desequilíbrio. Após alguns minutos de leitura, Nate começou a sentir-se enjoado. No seu saco, encontrou um poncho com capuz que lhe dava pelo joelho. Josh pensara em tudo. Agarrando-se às amuradas, começou lentamente a subir as escadas onde Welly se sentava, encharcado, junto da casa do leme.
O curso do rio desviava-se para oriente, em direcção ao coração do Pantanal, e quando viraram o vento açoitou o costado do navio. O barco balouçou, arremessando Nate e Welly violentamente contra a amurada.
Jevy firmou-se na porta da casa do leme, com os braços grossos que lhe permitiam manter-se ali sem perder o controlo dos seus movimentos.
As rajadas de vento e chuva eram impiedosas e sucessivas, separadas por apenas alguns segundos; o Santa Loura parou, deixando de navegar rio acima. A tempestade empurrou-o para terra. Agora as bátegas de chuva eram intensas e frias, abatendo-se com inclemência sobre os três homens. Jevy desencantou uma lanterna comprida numa caixa ao lado da casa do leme, entregando-a a Welly.
- Vê se encontras a margem! - gritou ele numa voz que se esforçava por se fazer ouvir acima da chuva pesada e do ulular do vento.
Nate agarrava-se à amurada, seguindo Welly, uma vez que queria ver para onde é que se dirigiam. Mas o feixe de luz só iluminava as bátegas de chuva, uma pluviosidade tão cerrada que parecia uma parede de nevoeiro a rodopiar sobre as águas do rio.
Foi então que os relâmpagos vieram em sua ajuda. Fez-se um clarão que lhes permitiu ver a vegetação densa e escura na margem, não muito distante. O vento empurrava-os naquela direcção. Welly gritou e Jevy respondeu-lhe qualquer coisa aos berros, no preciso momento em que outra rajada de vento açoitou a embarcação, fazendo com que adernasse violentamente para estibordo. O solavanco súbito fez com que Welly largasse a lanterna; viram-na desaparecer nas águas tumultuosas.
Agachado no passadiço, agarrando-se firmemente à amurada, encharcado e a tremer, ocorreu a Nate que uma de duas coisas estava prestes a acontecer e nenhuma delas estava sob o controlo de qualquer deles. Primeiro, o barco poderia capotar. Caso isso não acontecesse, estavam à beira de serem empurrados para a margem do rio, onde os esperava um atoleiro cheio de répteis. Sentiu-se ligeiramente receoso até que os papéis lhe ocorreram à mente.
Quaisquer que fossem as circunstâncias, Nate não poderia dar-se ao luxo de perder aqueles documentos. Num movimento brusco, pôs-se de pé no preciso momento em que a embarcação adernava de novo, o que fez com que quase fosse impelido pela borda fora por cima da amurada.
- Tenho de ir lá abaixo! - gritou a Jevy que se agarrava ao leme. O comandante também se sentia assustado.
De costas voltadas para o vento, Nate desceu pelos degraus de tábuas. O tombadilho estava escorregadio devido ao gasóleo derramado. Um dos bidões tinha tombado e vertia. Tentou pô-lo direito, mas compreendeu que seriam necessários dois homens para o levantar. Baixou a cabeça entrando na cabina, despiu o poncho que lançou para um canto e foi buscar a pasta que colocara debaixo do beliche. O vento continuava a agitar o barco com violência.
Apanhou-o desprevenido sem estar agarrado a nada. Embateu violentamente contra a parede ficando de pernas para o ar.
Foi então que Nate compreendeu que existiam duas coisas que não poderia perder. Primeiro, os papéis; e segundo, o telefone-satélite. Ambos estavam dentro da pasta, nova e de boa qualidade, mas que não era impermeável. Agarrou-a bem junto do peito, deitando-se no seu beliche enquanto o Santa Loura enfrentava a borrasca.
A agitação cessou. Esperava que Jevy tivesse desligado o motor. Ouvia os passos dos dois brasileiros mesmo acima de si. «Estamos prestes a atingir a margem», pensou Nate. «É preferível que o propulsor não esteja em funcionamento.» Certamente que não estariam com problemas no motor.
As luzes foram-se abaixo. A escuridão era total.
Deitado às escuras, balouçando por força da agitação das águas, aguardando que o Santa Loura embatesse contra a margem, Nate teve um pensamento horrível. Na hipótese de ela se recusar a assinar a validação do testamento ou a renunciar por escrito ao seu direito ao espólio, era muito possível que fosse necessário regressar ao Pantanal. Dali a muitos meses, talvez mesmo anos, haveria alguém, talvez ele próprio, que seria forçado a navegar de novo pelo Paraguai a fim de informar a missionária mais rica do mundo de que as coisas estavam finalizadas, e que ela podia tomar posse do dinheiro que herdara.
Lera algures que os missionários tiravam licenças - longos períodos de tempo em que não trabalhavam, regressando aos Estados Unidos com a finalidade de recarregarem as energias. Por que não haveria Rachel de tirar uma licença, ou até mesmo voltar para os Estados Unidos com ele, permanecendo na sua terra natal durante o tempo suficiente para que a confusão que o pai tinha arranjado fosse deslindada? Por onze mil milhões de dólares, aquilo parecia ser o mínimo que ela poderia fazer. Tencionara sugerir-lhe aquela hipótese, isto é, se alguma vez conseguisse encontrá-la.
Deu-se uma colisão e Nate foi arremessado ao chão. Tinham chegado ao mato.
O Santa Loura tinha o fundo chato, tendo sido construído, à semelhança de todas as embarcações que navegavam pelo Pantanal, de forma a poderem encalhar nos baixios e a colidir com toda a espécie de destroços sem sofrer danos de maior. Depois de a tempestade ter amainado, Jevy ligou o motor e durante meia hora fez marcha à ré, após o que se fez à proa várias vezes, manobras que lhe permitiram desencalhar a embarcação, atolada na areia e no lodo, a pouco e pouco. Depois de se libertarem, Welly e Nate limparam os tombadilhos de toda a espécie de vegetação.
Inspeccionaram o barco procurando novos passageiros, mas não encontraram quaisquer serpentes ou jacarés. Durante uma pausa rápida para um café, Jevy contou um episódio que lhe acontecera havia vários anos, de uma anaconda que conseguira entrar a bordo. Tinha atacado um membro da tripulação que na altura estava a dormir.
Nate disse-lhe que não estava particularmente interessado em histórias de serpentes. Fez uma busca cuidadosa levando o tempo que foi necessário.
Pouco depois, as nuvens desapareceram dando lugar a uma meia-lua magnífica acima do rio. Welly preparou uma cafeteira de café. No rescaldo da violência do temporal, o Pantanal parecia determinado em manter-se absolutamente plácido. A superfície do rio estava tão suave como um espelho. A Lua orientava-os, desaparecendo quando acompanhavam as partes mais sinuosas do rio, mas sempre presente quando voltavam a navegar para norte.
Porque Nate naquele momento já se sentia um tanto abrasileirado, deixara de usar relógio. A passagem do tempo era irrelevante. Já era tarde, provavelmente meia-noite. Haviam sofrido as inclemências da chuva durante quatro horas.
Dormiu algumas horas na rede espreguiçadeira, despertando logo após a aurora. Encontrou Jevy a ressonar no seu beliche, na cabina exígua por detrás da casa do leme. Welly estava ao leme, ele próprio meio a dormir. Nate disse-lhe que fosse buscar um café, colocando-se ao leme do Santa Loura.
As nuvens haviam retornado, apesar de não se verem indícios de chuva. O rio estava pejado de folhagem e troncos em resultado da tempestade da noite anterior. O curso das águas era amplo, não havendo mais tráfego fluvial, por conseguinte, Nate, assumindo a navegação, disse a Welly que se deitasse na rede para descansar um pouco, enquanto ele ficava ao leme.
Aquela situação ganhava aos pontos a qualquer sala de tribunal. De tronco nu, descalço e bebendo café bem adoçado enquanto comandava uma expedição rumo ao coração do maior pântano do mundo. Nos seus dias de glória, estaria a dirigir-se apressadamente para um julgamento algures, ocupando-se de dez assuntos ao mesmo tempo, qual malabarista, com telefones a saírem-lhe de todas as algibeiras. Não sentia realmente saudades desse frenesi; nenhum advogado que estivesse bom da cabeça sentiria a falta das salas de tribunal. Mas Nate nunca o admitiria.
A embarcação navegava praticamente por si própria. Com os binóculos de Jevy, mantinha-se atento às margens procurando jacarés, cobras e capivaras. Também começou a contar os tuiuiús, aves pernaltas do Brasil, brancas e com a cabeça vermelha, que se haviam tornado no símbolo do Pantanal. Avistou um bando de doze em cima de um banco de areia. Mantiveram-se imóveis, atentas à passagem do barco.
O comandante e a sua tripulação sonolenta navegaram rumo ao norte, ao mesmo tempo que o firmamento adquiria um tom alaranjado, anunciando o início de um novo dia. Seguiam cada vez mais para o interior do Pantanal, incertos quanto ao lugar para onde aquela viagem os levaria.
O coordenador das Missões da América do Sul era uma mulher chamada Neva Collier. Nascera num igloo na Terra Nova, onde os progenitores haviam trabalhado durante muitos anos entre os nativos inuit. Ela própria passara onze anos a trabalhar nas montanhas da Nova Guiné, pelo que tinha conhecimento, em primeira mão, dos desafios e dificuldades por que passavam as cerca de novecentas pessoas cujas actividades coordenava.
Era a única pessoa que sabia que Rachel Porter em tempos fora Rachel Lane, a filha ilegítima de Troy Phelan. Depois de se ter licenciado em Medicina, Rachel mudara de nome, num esforço para apagar tanto do seu passado quanto lhe fosse possível. Não tinha família; tanto o pai como a mãe adoptiva tinham falecido. Tão-pouco tinha irmãos ou irmãs. Nem tias, tios, primos, ou primas. Pelo menos familiares de que tivesse conhecimento. Só tivera Troy Phelan, a quem quisera remover, desesperadamente, da sua vida. Depois de ter frequentado o seminário da organização Tribos Universais, Rachel confiara os seus segredos a Neva Collier.
A hierarquia superior da Tribos Universais tinha conhecimento de que Rachel guardava alguns segredos, apesar do seu passado não constituir obstáculo ao seu desejo fervoroso de servir Deus. Ela tirara o curso de Medicina e também possuía uma licenciatura do seminário. Era pois uma serva humilde e dedicada de Cristo, ansiosa por começar a fazer o trabalho missionário de campo. Prometeram-lhe que nunca divulgariam fosse o que fosse a seu respeito, no que se incluía o local exacto onde desempenhava as suas funções na América do Sul.
Sentada no seu pequeno gabinete, muito arrumado, em Houston, Neva lia o relato extraordinário da leitura do testamento do senhor Phelan. Desde o suicídio que acompanhara atentamente o desenrolar da história.
As comunicações com Rachel eram um processo bastante moroso. Trocavam correspondência duas vezes por ano, em Março e em Agosto, e geralmente Rachel telefonava uma vez por ano de um telefone público em Corumbá, quando se ia abastecer de provisões. Neva falara com ela no ano anterior. A última licença que Rachel gozara tinha sido em 1992. Decorridas seis semanas desistira, optando por regressar ao Pantanal. Nessa ocasião, confiara a Neva que não sentia o mínimo interesse em visitar os Estados Unidos. O seu lar não era ali. Rachel pertencia à terra natal da sua gente.
A ajuizar pelos comentários de um advogado, transcritos num artigo da imprensa, o assunto estava muito longe de vir a ser resolvido. Neva pôs de lado os jornais que estivera a ler, decidindo que esperaria. Na altura apropriada, quando quer que isso fosse, informaria o seu conselho de direcção da verdadeira identidade de Rachel.
Tinha a esperança de que esse momento nunca se concretizasse. No entanto, como é que uma pessoa poderia ocultar onze mil milhões de dólares?
Na verdade, ninguém esperava que os advogados estivessem de acordo quanto ao local onde deveriam reunir-se. Cada uma das firmas insistia em ser ela a escolher. O facto de terem concordado em se encontrar com um aviso prévio tão curto era por si só um feito de proporções monumentais.
Por conseguinte, optaram por se reunir num hotel, o Ritz, em Tysons Comer, num salão de banquetes onde as mesas foram apressadamente agrupadas formando um rectângulo perfeito. Por fim, quando a porta foi fechada, havia cerca de cinquenta pessoas no salão, uma vez que todas as firmas se sentiram na obrigação de se fazerem representar por associados suplementares, assistentes jurídicos e até mesmo secretárias para impressionarem as demais.
A tensão era quase visível. Nenhum dos Phelan se encontrava presente, apenas as suas equipas de homens de lei.
Coube a Hark Gettys abrir a sessão, tendo tido a atitude sensata de dizer uma piada com bastante graça. A exemplo do bom humor numa sala de tribunal, onde as pessoas se sentem ansiosas e sem esperarem o mínimo sentido de humor, os risos que se seguiram foram saudáveis e bastante sonoros. Gettys sugeriu que se pedisse a todos em redor da mesa que nomeassem um advogado de cada equipa de representantes dos herdeiros que transmitiria à assembleia o que a respectiva equipa pensava. Ele seria o último.
Alguém levantou uma objecção.
- Quem são exactamente os herdeiros?
- Os seis filhos Phelan - respondeu Hark.
- E quanto às três mulheres?
- Elas não são herdeiras. São ex-mulheres.
Esta definição não agradou nada aos advogados das mulheres, e depois de uma discussão acalorada ameaçaram abandonar a reunião. Alguém sugeriu que, em qualquer dos casos, lhes fosse permitido expressar as suas opiniões, o que resolveu momentaneamente o problema.
Grit, o litigante espalhafatoso que Mary Ross Phelan Jackman e o marido contrataram, pôs-se de pé, apresentando uma moção de guerra.
- Não nos resta outra alternativa para além de procedermos à impugnação da validade do testamento - disse ele. - Foi exercida uma influência perniciosa, pelo que temos de provar que o velho estava maluco. Que diabo, ele deu um salto para a morte. Para além de ter deixado uma das maiores fortunas do mundo a uma herdeira qualquer desconhecida. Na minha opinião, isto só pode ser o acto de um homem louco. Podemos contratar psiquiatras que atestarão isso mesmo.
- E quanto aos três que o examinaram antes de ele ter saltado? - gritou alguém do outro lado da mesa.
- Isso foi uma estupidez - ripostou Grit numa voz rosnada. - Foi tudo uma cilada e vocês caíram nela.
Aquelas palavras aborreceram Hark e os outros advogados que haviam concordado com o exame mental.
- Esse comentário mostra uma visão das coisas sob um prisma retrospectivo - atalhou Yancy, o que abrandou momentaneamente o ímpeto de Grit.
A equipa jurídica de Geena e Cody Strong era encabeçada por uma mulher chamada Langhorne, alta e corpulenta, envergando um fato saia e casaco Armani. Outrora, leccionara na Universidade de Georgetown; sempre que se dirigia a um grupo de pessoas, fazia-o com o ar de quem sabia tudo. Ponto um: Existiam somente dois fundamentos para que se pudesse impugnar um testamento na Virgínia - influência perniciosa e falta de capacidades mentais. Levando em consideração que ninguém conhecia Rachel Lane, era seguro pressupor que ela mantivera poucos, ou nenhuns, contactos com Troy Phelan. Consequentemente, seria muito difícil, senão impossível, provar que alguém exercera sobre ele uma influência perniciosa quando elaborou o último testamento. Ponto dois: A falta de capacidade testamentária era a única esperança que lhes restava. Ponto três: Era melhor esquecer qualquer alegação de fraude. Sem dúvida que ele os iludira com pretextos falsos para que o exame mental se efectuasse, mas nenhum testamento poderia ser posto em causa com fundamento num acto fraudulento. Um contrato, sim, um testamento, não. A sua equipajá levara a cabo um trabalho de pesquisa, coligindo os casos que estavam na sua posse, caso alguém estivesse interessado.
Ela apresentava os seus argumentos com base num resumo breve mas extraordinariamente bem preparado. Era apoiada por nada menos do que seis advogados da sua firma, que se mantinham agrupados atrás de si.
Ponto quatro: Seria muito difícil atacar o exame mental. Ela vira o vídeo. Muito provavelmente perderiam a guerra, mas poderiam ao menos ser pagos pela batalha. A conclusão de Langhorne: Que contestassem a validade do testamento por todos os meios ao seu alcance, na esperança de conseguirem obter um acordo lucrativo feito à margem do tribunal.
A dissertação da advogada durou dez minutos, tendo coberto poucos aspectos novos. Foi tolerada sem qualquer interrupção devido ao facto de ser mulher, além de que a sua lógica era cristalina.
Wally Bright, o da escola nocturna, foi o orador seguinte e, num acentuado contraste com a doutora Langhorne, o homem enfureceu-se e zangou-se em face das injustiças em geral. Não trouxera nada preparado - nenhum sumário ou apontamentos, nem sequer alguns pensamentos coordenados sobre o que diria a seguir; tudo resumido, não passava de um fala-barato de ânimos exaltados que se deixava levar sempre pelos ímpetos do momento.
Dois dos advogados de Lillian levantaram-se ao mesmo tempo, dando a impressão de que estavam ligados à altura da anca. Ambos usavam fatos pretos e tinham uma tez pálida, característica dos defensores públicos que só muito raramente viam o Sol. Um deles começava as frases, que eram terminadas pelo outro. Um deles fazia uma pergunta de retórica para a qual o outro tinha uma resposta pronta. Um dos dois mencionou um processo, o outro tirou-o de dentro da pasta. A equipa siamesa mostrou-se, em certa medida, eficiente, tendo repetido de maneira sucinta tudo o que já fora dito. Com bastante rapidez, começou a chegar-se a um consenso generalizado. Lutar porque (a) havia pouco a perder, (b) não lhes restava qualquer outra alternativa, e (c) era a única maneira de forçar um acordo monetário. Isto para não mencionar que (d) seriam remunerados principescamente, à hora, pela luta que travariam em tribunal.
Yancy mostrou-se particularmente insistente, exortando os colegas a recorrerem a um processo de litigação. Tinha toda a razão para o fazer. Ramble era o único herdeiro menor, pelo que não tinha quaisquer dívidas significativas. O fideicomisso, que lhe pagaria cinco milhões de dólares quando fizesse vinte e um anos de idade, fora estabelecido há várias décadas, não podendo ser revogado. Com cinco milhões garantidos, Ramble encontrava-se numa situação financeira bastante mais invejável do que qualquer dos irmãos. Sem ter nada a perder, por que não haveria ele de instaurar um processo para receber mais?
Decorreu uma hora antes que alguém mencionasse a cláusula de exclusão constante do testamento. Os herdeiros, com a exclusão de Ramble, corriam o risco, na hipótese de contestarem a validade do testamento, de vir a perder o pouco que Troy Phelan lhes deixara. Os advogados limitaram-se a aflorar esta questão de forma superficial. Já tinham decidido impugnar o testamento, sabendo de antemão que os seus gananciosos clientes seguiriam os conselhos que lhes dessem.
Mas havia muita coisa que não era dita. Para começar, o processo de litigação seria um fardo enorme. A medida mais sensata, e mais eficiente em termos de custos, seria seleccionar uma firma com experiência que actuasse na qualidade de conselheiro-chefe em julgamento. Os outros poderiam permanecer nos bastidores, continuando a proteger os interesses dos seus clientes, mantendo-se sempre ao corrente do desenrolar da situação. Esta estratégia exigiria dois elementos: (1) cooperação e (2) uma restrição voluntária da maior parte dos egocentrismos presentes naquele salão.
Estes aspectos nunca foram mencionados ao longo da reunião, que se prolongou por três horas.
Embora tal não tivesse acontecido devido a qualquer grande esquema da lavra dos advogados - os esquemas exigem cooperação -, eles conseguiram dividir os herdeiros de forma a que não houvesse sequer dois a partilhar os serviços da mesma firma. Por meio de uma manipulação habilidosa, que não é ensinada na Faculdade de Direito, mas que é adquirida naturalmente depois de concluído o curso, aqueles advogados tinham convencido os respectivos clientes a passarem mais tempo a conversar com eles do que com os seus co-herdeiros. A confiança não era uma virtude conhecida entre os Phelan, nem tão-pouco entre os seus advogados.
Aquele caso estava a adquirir os contornos de um processo litigioso prolongado e caótico.
Não se ouviu uma única voz corajosa que se atrevesse a sugerir que não tocassem no testamento. Ninguém mostrava o mais pequeno interesse em acatar as últimas vontades do homem que efectivamente ganhara aquela fortuna, que agora conspiravam com o objectivo de desmembrar.
Durante a terceira ou quarta ronda a todos o que se sentavam à volta da mesa, foi feito um esforço no sentido de se determinar a extensão das dívidas em que cada um dos seis herdeiros havia incorrido aquando da morte do senhor Phelan. Mas esse esforço fracassou sob uma barragem jurídica de ninharias.
- As dívidas dos cônjuges também estão incluídas? - perguntou Hark, o advogado de Rex, cuja mulher, Amber, a stripper, era proprietária dos clubes de má nota, pelo que o seu nome constava da maior parte das dívidas.
- E em relação às dívidas para com o IRS? - inquiriu o advogado de Troy Júnior, sabedor de que este tinha problemas de impostos que remontavam a quinze anos.
- Os meus clientes não me autorizaram a divulgar informações de carácter financeiro - disse Langhorne que, com aquela lúgubre declaração, esfriou eficazmente o assunto.
A relutância confirmou o que todos os presentes sabiam - os herdeiros Phelan estavam empenhados até à ponta dos cabelos, enterrados em empréstimos e hipotecas.
Todos os advogados, sendo o que eram, tinham uma profunda preocupação com a publicidade, a maneira como a sua actuação seria retratada pelos meios de comunicação social. Os seus clientes não eram, pura e simplesmente, uma cambada de filhos vorazes e estragados que haviam sido eliminados do espólio do pai. Não obstante, receavam que a imprensa os retratasse nesses moldes. As percepções eram elementos cruciais.
- Sugiro que contratemos os serviços de uma empresa de relações públicas - alvitrou Hark. Era uma ideia magnífica, uma de que vários dos seus colegas se assenhorearam, imediatamente, como se tivesse partido deles. Contratar profissionais que pintassem os herdeiros Phelan com as cores de filhos de coração desfeito, que haviam amado um homem que lhes dedicara pouquíssimo do seu tempo. Um excêntrico, namoradeiro, meio louco... Sim! Era isso mesmo! Pois que se pintasse Troy Phelan com as cores do mau da fita. E que fizessem os seus clientes parecerem vítimas!
A ideia floresceu e a ficção expandiu-se com todo o entusiasmo em redor da mesa, até que alguém perguntou se eles tinham a mais pequena noção de como é que iriam pagar esses serviços.
- Essas firmas são tremendamente dispendiosas - adiantou um dos advogados, que por acaso cobrava seiscentos dólares à hora pelos seus serviços, e quatrocentos, também à hora, por cada um dos seus três associados absolutamente inúteis.
Não tardou muito que a ideia perdesse o seu atractivo inicial, até que Hark avançou com uma sugestão inaceitável: todas as firmas envolvidas adiantariam algum dinheiro para as primeiras despesas. A assembleia ficou, de repente, incrivelmente silenciosa. Aqueles que até há pouco tinham tanta coisa a dizer sobre tudo e mais alguma coisa, agora mostravam-se embrenhados na linguagem técnica de memorandos e causas antigas.
- Podemos discutir este assunto mais tarde - sugeriu Hark numa tentativa para salvar a face. Não lhe restava a mínima dúvida de que o assunto nunca mais voltaria a ser abordado.
Em seguida, começaram a discutir Rachel; os advogados interrogavam-se sobre o seu paradeiro. Deveriam eles contratar uma das firmas de investigações, topo de gama, que fosse capaz de a localizar? A ideia parecia ser bastante atraente, tendo recebido mais atenção do que merecia. Qual seria o advogado que não almejava representar a herdeira escolhida?
Mas acabaram por decidir que não procurariam Rachel, essencialmente porque não foram capazes de chegar a acordo quanto ao que fariam caso a encontrassem.
Não tardaria muito que ela se desse a conhecer, e com certeza que estaria rodeada pela sua própria comitiva de advogados.
A reunião foi encerrada com uma nota agradável. Os advogados proporcionaram a si mesmos o desfecho que mais desejavam. Saíram do salão com planos de telefonarem de imediato aos respectivos clientes, a fim de lhes darem a conhecer, muito orgulhosos, os progressos que haviam sido feitos. Podiam dizer, inequivocamente, que fora a sabedoria combinada de todos os advogados dos Phelan a ditar que o testamento deveria ser impugnado com toda a veemência.
As águas do rio subiram regularmente ao longo do dia e, lentamente, em algumas áreas, começaram a estender-se além da margem, tragando bancos de areia, cobrindo o mato cerrado e inundando os pequenos quintais lamacentos das casas por onde eles passavam a intervalos de três horas. O número de destroços no rio era cada vez maior - ervas e vegetação, troncos e árvores de pequeno porte. À medida que o curso do rio se alargava, as águas eram mais fortes e as correntes com que o barco se deparava abrandavam ainda mais a velocidade de navegação.
Mas ninguém olhava para o relógio. Com toda a cortesia, Nate fora aliviado das responsabilidades de responsável pelo leme depois de o Santa Loura ter sofrido a colisão de um tronco mais caprichoso, em que ele nem sequer reparara. A embarcação não sofreu danos nenhuns, mas o solavanco fez com que Jevy e Welly corressem disparados para a casa do leme. Nate regressou ao seu pequeno convés, com a rede espreguiçadeira estendida a toda a largura, onde passou o resto da manhã a ler e a observar a vida selvagem.
Jevy juntou-se-lhe para tomarem uma chávena de café.
- O que é que pensas do Pantanal? - perguntou. Sentaram-se num banco corrido com os braços através das grades da amurada e os pés suspensos da extremidade do tombadilho.
- Tem uma paisagem magnífica.
- Conheces o Colorado? - perguntou Jevy.
- Sim, já lá estive.
- Durante a estação das chuvas, os rios do Pantanal transbordam do leito. A área que fica inundada é do tamanho do Colorado.
- Já alguma vez estiveste nesse estado?
- Sim. Tenho um primo que vive lá.
- Onde mais é que estiveste?
- Há três anos, o meu primo e eu percorremos, numa camioneta da Greyhound, quase todos os estados da América do Norte. Só nos faltou visitar seis.
Jevy era um rapaz de vinte e quatro anos, um brasileiro pobre. Nate tinha o dobro da sua idade e durante grande parte da sua carreira sempre dispusera de bastante dinheiro. E, contudo, Jevy já conhecia muito mais dos Estados Unidos do que ele.
O que não era de admirar, uma vez que, sempre que o dinheiro abundava, Nate optara por viajar para a Europa. Os seus restaurantes preferidos eram em Roma e Paris.
- Quando as cheias baixam - continuou Jevy -, temos a estação seca. Pastagens, brejos, mais lagoas e pântanos do que é possível contar. Este ciclo - as inundações e a estação seca - produz mais vida animal do que em qualquer outro lugar do mundo. Temos seiscentas e cinquenta espécies de aves, mais do que o Canadá e os Estados Unidos juntos. No mínimo, duzentas e sessenta espécies piscícolas. Serpentes, caimões, crocodilos, até mesmo lontras gigantescas vivem nesta água.
Como se a cena houvesse sido encenada, Jevy apontou para um arvoredo na extremidade de uma pequena floresta.
- Olha, um veado - disse. - Temos muitos veados. Assim como inúmeros jaguares, papa-formigas gigantes, capivaras, tapires e araras. O pantanal está repleto de vida selvagem.
- Nasceste aqui? - perguntou Nate.
- A primeira vez que respirei foi num hospital em Corumbá, mas nasci nestes rios. A minha terra natal é aqui.
- Recordo-me de me teres dito que o teu pai era um barqueiro do rio.
- Sim. Quando eu ainda era apenas um garoto, comecei a acompanhá-lo. Às primeiras horas da manhã, ainda toda a gente dormia, às vezes ele deixava-me ir ao leme. Quando fiz dez anos, já conhecia todos os rios principais.
- E ele morreu no rio?
- Não neste, mas no Taquiri, mais para oriente. Seguia ao leme de uma embarcação onde seguiam turistas alemães quando se desencadeou um temporal. O único sobrevivente foi um marinheiro.
- Quando é que isso aconteceu?
- Há cinco anos.
Na qualidade de advogado habituado a defender causas em tribunal, Nate tinha muitas mais perguntas que desejaria ter feito. Gostaria de se ter inteirado de todos os pormenores - são as minúcias que ganham processos litigiosos em tribunal.
- Lamento muito - limitou-se a dizer deixando que o assunto morresse.
- Há gente que pretende destruir o Pantanal - adiantou Jevy.
- Quem?
- Muitas pessoas. Grandes empresas proprietárias de explorações imensas. Para norte e leste do Pantanal estão a desbravar grandes porções de terras, que darão lugar a explorações agrícolas. A principal colheita é a soja. Querem exportá-la. Quanto mais florestas eles desbravarem, mais enxurradas atingirão a região do Pantanal. Todos os anos, a camada sedimentar se acumula no leito dos nossos rios. O solo que arroteiam não é de boa qualidade para a agricultura, o que leva essas empresas a abusar das pulverizações e dos fertilizantes, produtos que lhes permitam ter boas colheitas. Para nós ficam as substâncias químicas. Muitas dessas grandes fazendas constróem diques nos rios, com a finalidade de possuírem mais terras de pastagem. O que altera o ciclo das cheias. Além de que o mercúrio está a dizimar os nossos peixes.
- Como é que o mercúrio vai parar às águas?
- Através da mineração. No Norte, eles procuram ouro, o que faz com que o mercúrio escorra para os rios e, posteriormente, acabe por vir desaguar no Pantanal. Os peixes ficam contaminados e acabam por morrer. Tudo e mais alguma coisa é despejado no Pantanal. Cuiabá é uma cidade com um milhão de habitantes, situada a oriente. Não tem um sistema de tratamento de águas. Adivinhe para onde é que os esgotos vão.
- E o governo não faz nada para alterar essa situação'? - perguntou Nate.
- Não - respondeu Jevy que, a custo, soltou uma risada de azedume.
- Já ouviste falar da Hidrovia?
- Não.
- Trata-se de uma vala enorme que será escavada através do Pantanal. Supostamente, ligará o Brasil, a Bolívia, o Paraguai, a Argentina e o Uruguai. É suposto salvar a América do Sul. Mas o certo é que esse empreendimento drenará o Pantanal. E o nosso próprio governo está a apoiar esse projecto.
Nate esteve prestes a dizer algo que o mostrasse consciente das responsabilidades ambientais, mas recordou-se atempadamente de que os seus próprios concidadãos eram os maiores prevaricadores, em termos energéticos, que o mundo alguma vez vira.
- Mas isso não impede que continue a ser uma região de grande beleza
- optou ele por dizer.
- De facto é. - Jevy acabou de beber o seu café. - Por vezes penso que a minha única esperança é o facto de ser demasiado vasta para eles poderem destruí-la.
Passaram por uma enseada estreita que dava entrada a mais água no rio Paraguai. Uma pequena manada de veados atravessou a vau as terras inundadas, mordiscando as trepadeiras verdejantes, completamente abstraídos dos sons que vinham do rio. Sete veados, dois dos quais eram crias de pelagem malhada.
- A poucas horas de distância existe um pequeno posto comercial - disse Jevy pondo-se de pé. - Devemos chegar lá antes de escurecer.
- O que é que vamos comprar? - perguntou Nate.
- Nada, calculo eu. O proprietário chama-se Fernando e costuma manter-se a par de tudo o que se passa no rio. É possível que tenha ouvido dizer qualquer coisa acerca dos missionários.
Jevy despejou para o rio o café que lhe sobrou na chávena distendendo os braços.
- Às vezes ele tem cerveja para vender. Nate manteve o olhar na água.
- Não me parece que devêssemos comprar nenhuma - acrescentou Jevy, afastando-se.
«No que me diz respeito não vejo qualquer inconveniente nisso», pensou Nate. Bebeu o café todo, engolindo as borras e o açúcar do fundo.
Uma garrafa bem fria de vidro castanho, talvez uma Brahma ou Antárctica, as duas marcas brasileiras que já provara. Eram cervejas de excelente qualidade. Na sua juventude, um dos seus poisos preferidos tinha sido um bar frequentado por universitários, próximo de Georgetown, cuja ementa listava cento e vinte marcas estrangeiras de cerveja. Nate experimentara todas. Costumavam servir amendoins torrados em pequenas cestas, esperando-se que os clientes atirassem as cascas para o chão. Quando os seus amigalhaços da Faculdade de Direito iam à cidade, encontravam-se sempre nesse bar, onde recordavam os bons velhos tempos. A cerveja era gelada; os amendoins salgados servidos ainda quentes; as cascas estalavam quando se pisava o soalho e as raparigas eram jovens e sem inibições. Dava a impressão que aquele bar estivera no mesmo lugar desde sempre, e durante cada um dos intervalos entre a desintoxicação e a sobriedade era aquele o bar de que Nate sentia mais saudades.
Começou a transpirar, apesar de o sol se manter oculto e de soprar uma brisa fresca. Aninhou-se mais na rede rezando para que o sono viesse, um estado de coma profundo que os levasse pela noite adentro, afastando-os do pequeno estabelecimento. A transpiração acentuou-se até sentir a camisa encharcada. Começou a ler um livro cujo tema era a extinção dos povos indígenas do Brasil, tentando adormecer de novo.
Estava completamente desperto quando as rotações do motor começaram a diminuir e o barco iniciou as manobras de atracagem. Ouviu várias vozes e sentiu um solavanco suave quando acostaram ao ancoradouro do posto comercial. Com movimentos lentos, Nate levantou-se da rede, regressando ao banco corrido onde se sentou.
Era uma espécie de estabelecimento rural, construído sobre estacas - uma construção muito pequena de tábuas de madeira sem pintura, com um telhado de chapa ondulada e um alpendre estreito, onde, como seria de esperar, se viam dois residentes da localidade sentados a descansar, fumando cigarros e bebendo chá mate. Nas traseiras, a loja era circundada por um pequeno afluente que desaparecia no Pantanal. Preso a uma das paredes, havia um bidão de combustível bastante grande.
Também se via um molhe muito periclitante onde as embarcações atracavam. Jevy e Welly saíram para o ancoradouro, com cuidado, porque as correntes eram fortes. Deram dois dedos de conversa com os pantaneiros sentados no alpendre antes de transporem a porta que se mantinha aberta.
Nate jurara a si mesmo que ficaria no barco. Dirigiu-se para o outro lado do convés sentando-se no banco oposto, e enfiando os braços e as pernas através das barras da amurada, admirando a amplitude das águas que corriam. Tencionava manter-se no tombadilho, sentado no banco corrido, com os braços e pernas presos entre as barras da amurada. A cerveja mais gelada do mundo não conseguiria arrancá-lo dali.
Tal como aprendera à sua custa, as visitas abreviadas no Brasil eram inexistentes. Especialmente nas margens do rio, onde os visitantes eram coisa rara. Jevy comprou mais ou menos cento e quinze litros de gasóleo para substituir o combustível que se perdera durante a tempestade. Nate começou a ouvir o barulho do motor a funcionar.
- O Fernando diz que há uma mulher missionária. Trabalha junto dos índios. - Jevy ofereceu-lhe uma garrafa de água gelada. Já tinham recomeçado a navegar.
- Onde?
- Ele não tem bem a certeza. Existem algumas povoações mais para o norte, próximo da Bolívia. Mas os indígenas não se deslocam através do rio, pelo que ele não sabe muita coisa acerca deles.
- A que distância fica o povoado mais próximo?
- De manhã já deveremos estar perto. Mas não podemos ir neste barco. Temos de prosseguir no bote.
- Até pode ser que seja divertido.
- Estás lembrado do Marco, o agricultor, aquele da vaca que matámos no acidente com o nosso avião?
- Claro que sim. Tinha três filhos pequenos.
- Sim. Ele ontem esteve aqui - acrescentou Jevy apontando para o pequeno estabelecimento, que desaparecia com o dobrar de uma curva do rio. - Costuma ir à loja uma vez por mês.
- Os garotos estavam com ele?
- Não. É demasiado perigoso.
Que mundo tão pequeno. Nate esperava que os rapazinhos tivessem gasto o dinheiro que lhes oferecera no Natal. Ficou a olhar para a loja até esta desaparecer do seu ângulo de visão.
Talvez no caminho de regresso já estivesse suficientemente bem para poder tomar uma cerveja bem gelada. Só umas duas, para celebrar o êxito da expedição. Voltou à segurança da sua espreguiçadeira amaldiçoando-se pela sua fraqueza. Na vastidão desértica daquele pântano gigantesco tivera um quase encontro com o álcool, e durante várias horas os seus pensamentos haviam sido consumidos por esse desejo, incapaz de pensar em mais nada. A expectativa, o medo, os suores e as maquinações para encontrar uma maneira de poder tomar uma bebida. Em seguida, a quase cedência ao desejo, a fuga por meio da sua própria força de vontade, e agora, no rescaldo, a fantasia de poder renovar o seu romance com o álcool. Umas quantas bebidas não constituiriam o mínimo problema, dado que seria capaz de parar. Aquela era a mentira preferida de Nate.
Não passava de um bêbedo inveterado. Podiam interná-lo numa clínica de desintoxicação das mais luxuosas, com uma diária de mil dólares, que não seria isso que o impediria de continuar a ser um viciado. Que o obrigassem a assistir às reuniões dos Alcoólicos Anónimos, na cave de uma igreja qualquer, às terças-feiras à noite não era isso que o impediria de continuar a ser um bêbedo.
A percepção de que os seus vícios se mantinham bem arreigados no seu íntimo fez com que Nate se sentisse desesperado. Era ele quem custeava o diabo do barco; Jevy trabalhava para si. Caso ele insistisse em que invertessem a marcha, seguindo direitinhos de volta ao estabelecimento, era o que fariam. Tinha meios para poder comprar toda a cerveja que Fernando tivesse em armazém, carregando-a com gelo debaixo do convés, bebendo Brahma durante todo o trajecto até à Bolívia. E não havia rigorosamente nada que alguém pudesse fazer para impedir isso.
Como se fosse uma miragem, Welly surgiu com um sorriso nos lábios e uma chávena de café acabado de fazer.
- Vou cozinhar - disse ele.
A comida ajudaria um pouco, pensou Nate. Até mesmo uma outra travessa de feijão-preto, arroz branco e galinha cozida.
A comida satisfaria os seus gostos, pelo menos serviria para lhe desviar o pensamento de outros desejos.
Comeu devagar, instalado no tombadilho superior, sozinho no escuro, enxotando os mosquitos gordos que esvoaçavam junto do seu rosto. Depois de ter acabado a refeição, espalhou o repelente em aerossol desde o pescoço até aos pés descalços. A crise já terminara, sentindo apenas ligeiras réplicas que se recusavam a abandoná-lo. Já não saboreava a cerveja nem cheirava a fragrância dos amendoins torrados, esquecera-se do seu bar preferido.
Recolheu ao seu santuário. Recomeçara a chover, uma chuvinha tranquila sem vento nem trovoada. Josh também lhe enviara quatro livros para leitura recreativa. Todas as súmulas e memorandos já haviam sido lidos e relidos. Não tinha mais nada para ler, além daqueles livros. Já lera metade do menos espesso.
Instalou-se bem fundo na rede retomando a leitura da história triste dos povos indígenas do Brasil.
Quando o descobridor português Pedro Álvares Cabral pisou pela primeira vez solo brasileiro, em Abril de mil e quinhentos, na costa da Baía, o país tinha cinco milhões de índios espalhados por novecentas tribos de povos indígenas. Nessa época, falavam mil cento e setenta e cinco dialectos, e com a excepção das costumeiras escaramuças tribais, eram povos pacíficos.
Após cinco séculos em que os nativos foram «civilizados» pelos europeus, a população índia tinha sido dizimada. Haviam sobrevivido apenas duzentos e setenta mil, em duzentas e seis tribos, onde se falavam cento e setenta dialectos. As guerras coloniais, o assassínio, a escravidão, as perdas territoriais e as doenças eram os responsáveis - as culturas, ditas civilizadas, não tinham negligenciado nenhum método que pudesse exterminar os índios.
Era um historial doentio e de grande violência. Se os povos nativos eram pacíficos e tentavam cooperar com as potências colonizadoras, ficavam sujeitos a estranhas doenças - sarampo, varíola, febre amarela, gripe e tuberculose - para as quais o seu organismo não possuía as mínimas defesas naturais. Caso não cooperassem, eram chacinados por homens que empunhavam armas mais sofisticadas do que as flechas e as lanças com ponta envenenada. Sempre que os índios lhes davam luta, matando os seus atacantes, eram marcados com ferros em brasa com a marca de escravos.
Eram escravizados pelos mineiros, rancheiros e barões da borracha. Eram banidos da terra natal dos seus ancestrais por qualquer grupo que tivesse armas suficientes.
Eram queimados vivos depois de terem sido amarrados a postes pelos padres, perseguidos por exércitos e bandos de bandidos, violados por qualquer homem robusto com apetites sexuais vorazes e chacinados com a maior das impunidades. Em todas as épocas da história, quer estas tenham sido relevantes ou insignificantes, sempre que os interesses dos nativos brasileiros entrassem em conflito com os dos brancos, os índios saíam a perder.
Quando se perde sempre ao longo de quinhentos anos, espera-se muito pouco da vida. O maior problema com que se defrontavam algumas tribos dos tempos modernos era a elevada percentagem de suicídios entre a sua gente mais jovem.
Depois de séculos de genocídio, o governo brasileiro decidira, finalmente, que tinha chegado a hora de proteger os seus «bons selvagens». Os massacres ocorridos nos nossos dias tinham merecido a condenação internacional, razão pela qual se instituíram burocracias e se promulgaram leis. Com uma fanfarra farisaica, foram devolvidas aos nativos algumas terras tribais e traçadas linhas nos mapas topográficos do governo, delimitando áreas declaradas como zonas de segurança.
Contudo, o governo também era o inimigo. Em 1967, uma investigação feita à secretaria responsável pelos assuntos índios deixou a maior parte dos brasileiros em estado de choque. O relatório revelou que alguns agentes, especuladores de terras e rancheiros - arruaceiros que ou trabalhavam para essa secretaria de Estado, ou eram por ela beneficiados -, tinham vindo a utilizar sistematicamente substâncias químicas e armas bacteriológicas com o fito de eliminarem os índios da face da Terra. Distribuíam aos nativos vestuário contaminado com o vírus da varíola e o bacilo da tuberculose. Recorriam a aviões e helicópteros para disseminarem as bactérias mortíferas, espalhando-as pelas terras e populações índias.
Na bacia do Amazonas e outras fronteiras, os rancheiros e os mineiros preocupavam-se pouco com o traçado dos mapas.
Em 1986, um rancheiro da Rondónia utilizou pulverizadores de sementeiras para pulverizar com químicos letais as terras próximas dos territórios dos índios. Pretendia cultivar aquela área, mas primeiro tinha de eliminar os seus habitantes. Morreram trinta índios; o rancheiro nunca chegou a ser indiciado. Em 1989, um outro rancheiro em Mato Grosso ofereceu recompensas a caçadores de cabeças que lhe trouxessem orelhas de nativos assassinados. Em 1993, os mineiros de ouro em Manaus atacaram uma tribo pacífica porque os nativos se recusavam a abandonar as suas terras. Foram assassinados treze índios; nunca ninguém chegou a ser preso.
Na década de 90, o governo procurou abrir agressivamente a bacia do Amazonas, uma região de vastos recursos naturais a norte do Pantanal. Mas os nativos continuavam a ser um empecilho. A maior parte dos que restavam vivia na bacia; de facto, estimava-se que cinquenta tribos da selva tinham tido a sorte de escapar até então aos contactos com a civilização.
Agora, a civilização preparava-se para os atacar de novo. Os abusos de que os índios eram vítimas cresciam entre os mineiros, madeireiros e rancheiros, que penetravam cada vez mais no interior da Amazónia, agindo com o beneplácito do governo.
Aquele relato era fascinante, ainda que deprimente. Nate embrenhou-se na leitura durante quatro horas consecutivas, tendo acabado de ler o livro.
Quando terminou, dirigiu-se para a casa do leme, onde tomou um café na companhia de Jevy. A chuva parara de cair.
- Achas que conseguiremos chegar lá de manhã? - perguntou Nate.
- Creio que sim.
As luzes da embarcação reflectiam-se sobre a superfície das águas, que se agitavam suavemente, para cima e para baixo, ao sabor da corrente. Parecia que mal se deslocavam.
-Nas tuas veias corre algum sangue índio? - perguntou Nate depois de alguma hesitação. Aquele era um assunto do foro mais íntimo de qualquer pessoa, uma questão que nos Estados Unidos ninguém se atreveria a abordar.
Jevy sorriu sem afastar o olhar do rio.
- Todos nós temos sangue índio. Por que é que perguntas?
- Tenho estado a ler a história dos índios do Brasil.
- E qual é a tua opinião?
- É bastante trágica.
- De facto é. Pensas que os nativos têm sido maltratados neste país?
- Claro que sim.
- E no teu país? - redarguiu Jevy.
Por qualquer razão que lhe escapava, o general Custer foi o primeiro que lhe ocorreu ao pensamento. Pelo menos os índios norte-americanos tinham conseguido obter algumas vitórias. E não tinham sido queimados vivos amarrados a postes, nem pulverizados com substâncias químicas, ou vendidos por esclavagistas. Ou tinham? E quanto às reservas índias? Por toda a parte, a terra.
- Receio que a vida deles não tenha sido muito melhor - admitiu Nate sentindo-se derrotado. Era uma discussão que não desejava travar.
Após um longo silêncio, Nate desceu até à casa de banho. Quando terminou o que tinha ido fazer, puxou a corrente do autoclismo e saiu do pequeno compartimento. A água ligeiramente acastanhada do rio começou a correr dentro da sanita, escoando-se juntamente com os excrementos através de um tubo, que a enviava directamente de novo para o rio.
Ainda estava escuro quando o motor do barco parou, acordando Nate. Levou a mão ao pulso esquerdo, mas recordou-se de que deixara de usar relógio. Ouvia os movimentos que Jevy e Welly faziam abaixo de si. Os dois estavam à popa da embarcação, falando em voz baixa.
Nate sentia-se orgulhoso de si próprio por outra manhã em que despertava sóbrio, outro dia desintoxicado a inscrever na agenda. Seis meses atrás, todos os despertares eram uma mancha desfocada com olhos inchados, pensamentos incoerentes, como que enredados por teias de aranha, boca ressequida, sentindo na língua uma sensação de aridez, um hálito amargo e a grande pergunta diária: «Por que é que eu fiz isto?». Era frequente vomitar no chuveiro; às vezes era ele próprio que induzia o vómito para arrumar o assunto de uma vez por todas. Depois do duche, confrontava-se sempre com o dilema: o que comer ao pequeno-almoço? Algo quente e gorduroso que lhe acalmasse o estômago ou um bloody niary(1) que lhe acalmasse os nervos? Em seguida, saía para o escritório onde chegava todos os dias às oito horas, sentando-se logo à sua mesa de trabalho, dando início a outro dia brutal de litigações.
Todas as manhãs. Sem excepção. Nos últimos dias da última recaída passara várias semanas sem que houvesse uma única manhã em que os seus pensamentos fossem claros. Motivado por um sentimento de desespero, tinha consultado um conselheiro, e quando este lhe perguntou se se recordava do último dia em que estivera sóbrio, Nate foi forçado a admitir que não.
Sentia falta de beber, mas não das ressacas.
Entretanto, Welly puxou o bote para bombordo do Santa Loura, prendendo-o de forma a ficar bem seguro. Estavam a carregá-lo com provisões quando Nate desceu as escadas.
*1. Bebida preparada com sumo de tomate, vodka e condimentos. (N. da T.)
A aventura entrava numa nova fase. Nate encontrava-se preparado para uma mudança de cenário.
O céu estava encoberto, ameaçando mais chuva. Cerca das seis horas da manhã, finalmente o Sol conseguiu atravessar as nuvens. Nate sabia porque decidira voltar a equipar-se com o relógio.
O ar foi atravessado pelo cantar de um galo. Ancoraram junto de uma pequena quinta, amarrando a proa a um tronco que em tempos servira de suporte a um embarcadouro. Para ocidente, à esquerda da embarcação, corria um rio bastante mais pequeno que desaguava no Paraguai.
O desafio que tinham pela frente era carregar o barco sem que a carga fosse excessiva. O nível das águas subira nos pequenos afluentes em que estavam prestes a navegar; as margens nem sempre seriam visíveis. Caso o bote ficasse bastante abaixo da linha de água, corriam o risco de encalhar ou, pior ainda, danificar o propulsor do motor fora de borda. O bote tinha apenas um motor sem nenhum sobressalente, estando equipado apenas com um par de remos que Nate se pôs a observar enquanto bebia um café. Concluiu que os remos cumpririam a sua missão, especialmente se fossem perseguidos por índios selvagens ou quaisquer animais esfaimados.
No centro do bote foram alinhados três pequenos bidões de combustível que continham pouco mais de onze litros.
- Esta gasolina deve durar-nos para quinze horas - explicou Jevy.
- O que é bastante tempo - comentou Nate.
- Prefiro jogar pelo seguro.
- A que distância é que fica o povoado?
- Não tenho a certeza. - Jevy apontou na direcção de uma casa. - O agricultor que vive ali disse que o trajecto seria de quatro horas.
- Ele conhece os índios?
- Não. Não gosta dos nativos. Diz que nunca os vê pelo rio.
Jevy embalou uma pequena tenda, dois cobertores e dois mosquiteiros, um toldo para a entrada da tenda, dois baldes onde recolheriam água da chuva e o seu poncho. Welly acrescentou uma caixa com mantimentos e outra com água engarrafada.
Sentado no beliche dentro da cabina, Nate retirou da pasta uma cópia do testamento, o documento de validação e o de renúncia de direitos juntando-os e dobrando-os, após o que os colocou dentro de um sobrescrito de tamanho nomializado. Um sobrescrito com o logotipo do Escritório de Advogados Stafford. Uma vez que a bordo não havia sacos de plástico auto-vedantes nem sacos para o lixo, Nate envolveu o sobrescrito numa tira com pouco mais de trinta centímetros que rasgou da orla do seu poncho; selou as extremidades com fita isoladora e depois de ter examinado a sua obra declarou que o seu embrulho era à prova de água. Em seguida, prendeu-o com fita colante à camisola de algodão que vestira, no sentido da largura do tórax, que cobriu com uma camisa leve de zuarte.
A bordo do Santa Loura deixou cópias suplementares daqueles documentos dentro da pasta. E, dado que o barco lhe parecia ser bastante mais seguro do que o bote, decidiu que também não levaria o telefone-satélite. Voltou a inspeccionar os papéis e o telefone, após o que fechou a pasta à chave, colocando-a no seu beliche. Pensou que aquele talvez fosse o grande dia, pensamento que não partilhou com ninguém. A perspectiva de, por fim, vir a conhecer Rachel Lane provocava-lhe uma sensação de empolgamento.
O pequeno-almoço foi rápido, um simples pãozinho com manteiga que comeram de pé no convés enquanto observavam o bote mais abaixo e as nuvens no firmamento. No Brasil, quatro horas traduziam-se em seis ou oito; Nate estava ansioso por partir. A última coisa que Jevy levou para o pequeno barco foi um machete de lâmina aguçada e cintilante, com um longo cabo.
- Isto é para as anacondas - disse ele rindo-se. Nate tentou ignorar o comentário. Fez um gesto de despedida a Welly, bebeu apressadamente a sua última chávena de café, oscilando ao sabor da ondulação do rio, até que Jevy ligou o motor fora de borda.
Mesmo acima da superfície das águas instalara-se um manto de neblina e o ar estava fresco. Desde que haviam saído de Corumbá, Nate observara sempre o rio a partir do convés superior, em condições de segurança; naquele momento, encontrava-se praticamente sentado na água. Olhou em seu redor avistando os coletes salva-vidas. A ondulação do rio batia contra o casco. Nate olhava com alguma desconfiança para a camada nublosa, mantendo-se atento a qualquer destroço; qualquer tronco grosso, com uma extremidade aguçada, e o bote passaria à história.
Navegaram contra a corrente até entrarem na embocadura do afluente que os levaria até à aldeia dos índios. Entraram em águas bastante mais mansas. O motor fora de borda parecia gemer, deixando uma esteira de águas borbulhantes. O rio Paraguai desapareceu rapidamente.
De acordo com a carta de navegação que Jevy consultava, aquele afluente fora designado oficialmente pelo nome de Cabixa. Jevy nunca tinha navegado por aquele curso de água, uma vez que jamais tivera necessidade de o fazer. Saía do Brasil serpenteando, entrava na Bolívia, e, aparentemente, não ia dar a lugar algum. Na foz, quando muito, teria uma largura de cerca de vinte e cinco metros, estreitando-se até ficar com uma amplitude de aproximadamente quinze metros. Era neste trecho que, na altura, navegavam.
Em alguns pontos, a água transbordara do seu leito; noutros, a vegetação ao longo das margens era mais densa do que as águas do Paraguai.
Quinze minutos depois de terem começado a navegar, Nate viu as horas. Tencionava cronometrar todo o trajecto. Abrandou a velocidade do bote quando se aproximaram da primeira bifurcação, a primeira de um milhar. Outro rio do mesmo tamanho divergia para a esquerda, pelo que o piloto da embarcação se viu face a uma decisão quanto à rota que os manteria no curso do Cabixa. Optaram por navegar pelo da direita, seguindo a uma velocidade ligeiramente mais moderada; ao fim de pouco tempo entraram numa bacia. Jevy desligou o motor.
- Temos de parar aqui - disse ele pondo-se em cima dos bidões de combustível para poder inspeccionar as águas que os circundavam, naquela altura bastante acima do nível normal. A pequena embarcação mantinha-se absolutamente imobilizada. A sua atenção foi despertada por uma fileira de árvores enfezadas e nada vicejantes. Apontou dizendo algo para si próprio.
Precisamente até que ponto é que o percurso a percorrer era obra de uma estimativa era um factor que Nate não conseguia adivinhar. Jevy consultava as suas cartas de navegação, para além de ter vivido naqueles rios. Todos eles confluíam para o Paraguai. Ainda que optassem por uma rota que não os levasse até onde desejavam ir, vindo a perder-se, era inevitável que as correntes acabassem eventualmente por os levar de regresso ao ponto onde Welly ficara.
Seguiram a correnteza de árvores enfezadas e os maciços de mato submerso que, na estação seca, formavam a margem, e, ao cabo de pouco tempo, foram dar ao meio de um pequeno curso de água coberto de ramos de árvores. A Nate não pareceu que aquele curso fosse o Cabixa, mas um rápido olhar ao rosto do barqueiro só revelou confiança no que este fazia.
Depois de uma hora de viagem aproximaram-se da primeira habitação - uma pequena cabana salpicada de lama com um telhado de telhas vermelhas. Estava submersa até quase à altura de um metro, não se avistando quaisquer vestígios de vida humana ou animal. Jevy reduziu a velocidade de forma a poderem falar.
- Durante a estação das cheias, há muita gente que vive no Pantanal que opta por se mudar para terras mais altas. Juntam as vacas e os filhos e partem por três meses.
- Ainda não avistei terras nenhumas a um nível mais elevado.
- Não existem muitas. Mas todos os pantaneiros têm um lugar para onde ir nesta altura do ano.
- E em relação aos índios?
- Também vão para outras paragens.
- Mas que maravilha! Não sabemos onde é que vivem e ainda por cima gostam de andar de um lado para o outro.
- Havemos de os encontrar - disse Jevy com uma risada bem-humorada.
Continuando no bote, aproximaram-se da cabana. Não tinha portas nem janelas. Como habitação para onde se regressasse, não era grande coisa.
Noventa minutos de viagem e Nate esquecera-se completamente da probabilidade de vir a ser comido, quando contornaram um troço sinuoso chegando perto de um grupo de crocodilos que dormiam amontoados na água com uma profundidade de pouco mais de quinze centímetros. O ruído do motor do bote sobressaltou-os, perturbando a sua sesta. As caudas zurziram a água, espargindo-a. Nate lançou um olhar fugaz ao machete, não fosse o diabo tecê-las, desatando a rir-se da sua tolice.
Os répteis não os atacaram. Olhavam para o bote que deslizava suavemente.
Ao longo dos vinte minutos seguintes não encontraram animal nenhum. O curso do rio voltou a estreitar-se. As margens mantinham-se tão unidas que as ramagens das árvores de ambos os lados se tocavam acima da superfície. Subitamente, viram-se envoltos pela escuridão. Navegavam através de uma espécie de túnel. Nate olhou para o seu relógio de pulso. O Santa Loura encontrava-se a duas horas de distância.
Enquanto seguiam pelo curso sinuoso através de brejos, avistavam intervaladamente a linha do horizonte. As montanhas da Bolívia agigantavam-se ao longe, dando a impressão de que se aproximavam cada vez mais. O leito das águas alargava-se e o arvoredo passou a ser menos denso; entraram numa bacia ampla para onde confluíam mais de uma dúzia de pequenos rios de curso sinuoso. Com lentidão, começaram a descrever um primeiro círculo, ao que se seguiu um segundo ainda mais devagar. Todos os afluentes tinham o mesmo aspecto. O Cabixa era um de entre uma dúzia de rios e o comandante não fazia a mais pequena ideia por qual é que deveria optar.
Uma vez mais, Jevy colocou-se em cima dos bidões de gasolina examinando as águas transbordantes; por seu lado, Nate deixava-se ficar sentado sem fazer qualquer movimento. No outro lado da bacia, avistaram um pescador junto do matagal. O facto de terem encontrado aquele homem foi a única sorte que tiveram naquele dia.
O pescador sentava-se pacientemente numa canoa de fabrico artesanal, uma pequena embarcação que fora escavada de um tronco de árvore há muito tempo.
Usava um chapéu de palha, que já vira dias melhores, que lhe ocultava grande parte do rosto. Quando já se encontravam a menos de um metro dele, suficientemente perto para poderem examiná-lo, Nate reparou que ele pescava sem a ajuda de uma cana de pesca, ainda que improvisada. Tinha uma linha enrolada à volta da mão.
Jevy disse todas as coisas apropriadas à ocasião, falando em português, oferecendo-lhe uma garrafa de água. Nate limitou-se a sorrir, ouvindo o cadenciado melodioso da maneira como os brasileiros falavam aquela língua que lhe era estranha. Era mais lenta do que o espanhol, quase tão nasalada como a língua francesa.
Se o pescador sentiu satisfação por ter visto outro ser humano no meio de nenhures, certamente que a sua fisionomia não o mostrou. Onde é que aquele pobre homem poderia viver?
Foi então que os dois homens começaram a apontar numa direcção vaga, que parecia ser a das montanhas, se bem que, quando o diálogo terminou, o homenzinho já abrangia toda a extensão da bacia, bem como tudo o que a rodeava. Jevy e o pescador trocaram mais algumas palavras e Nate ficou com a impressão de que o primeiro tentava obter todas as informações que o outro lhe quisesse dar. Era possível que passassem muitas horas até que avistassem outro ser humano. Uma vez que a linha de água dos pântanos e rios estava acima do nível normal, a navegação tornara-se difícil. Após duas horas e meia de trajecto, já estavam perdidos.
Uma nuvem formada por pequenos mosquitos negros passou junto deles, o que teve o efeito de fazer com que Nate recorresse de imediato ao repelente de insectos. Com uma expressão de curiosidade, o pescador observava todos os seus movimentos.
Despediram-se do homem e começaram a remar ao sabor da brisa ligeira que se fazia sentir.
- A mãe dele era índia - disse Jevy.
- Que bom - retorquiu Nate que enxotava os mosquitos.
- Existe um povoado nativo que se situa a algumas horas daqui.
- A algumas horas?
- Talvez três - especificou Jevy.
Podiam contar com quinze horas de combustível e Nate tinha a intenção de contar cada um dos minutos dessas horas. Retomaram o curso do Cabixa numa enseada onde um outro rio, muito idêntico, também deixava a bacia para trás. Alargava-se, o que lhes permitiu retomar a navegação a toda a velocidade.
Nate baixou-se no fundo do bote, descobrindo um lugar entre a caixa das provisões e os dois baldes, sentando-se com as costas contra o banco.
Naquele lugar, a sua cabeça não era atingida pelos salpicos de espuma. Considerava a hipótese de passar pelas brasas quando o motor se engasgou. O bote adernou e abrandou de velocidade. Nate mantinha o olhar no rio, receoso de se voltar para trás e ver a expressão de Jevy.
Os problemas com o motor eram algo a que ainda não começara a dedicar o seu tempo. Aquela jornada já tivera a sua quota-parte de pequenos perigos. Seriam necessários vários dias a remar arduamente para conseguirem voltar para junto de Welly. Seriam forçados a dormir no bote, comendo aquilo de que se haviam abastecido até que os alimentos se esgotassem, recolhendo a água da chuva e esperando com desespero que fossem capazes de encontrar o pescador baixito que lhes indicaria o caminho da salvação.
De súbito, Nate sentiu-se aterrorizado.
Mas pouco depois recomeçavam a navegar, com o motor a funcionar como se não houvesse acontecido nada de anormal. Aquilo transformou-se numa rotina; mais ou menos de vinte em vinte minutos, precisamente quando Nate se encontrava prestes a passar pelas brasas, o funcionar estável do motor era interrompido e, acto contínuo, a proa mergulhava abaixo do nível de água. Imediatamente, Nate inspeccionava as margens do rio procurando animais selvagens. Jevy começava a praguejar em português a tentar afinar a entrada de ar e a válvula reguladora, após o que tudo recomeçaria a correr bem até dali a mais ou menos vinte minutos.
Almoçaram - queijo, bolachas de água e sal e biscoitos - ao abrigo de uma árvore junto de uma pequena confluência de cursos de água, com a chuva que caía à sua volta.
- Aquele pescador baixinho que encontrámos há pouco - começou Nate a dizer - conhece os índios?
- Conhece. Mais ou menos uma vez por mês, eles vão até ao rio Paraguai, onde efectuam trocas com os comerciantes dos barcos. Ele costuma vê-los.
- Perguntou-lhe se por acaso tinha visto uma missionária?
- Perguntei. Ele disse que não. Você é o primeiro norte-americano que ele alguma vez viu.
- A sorte que ele tem!
O primeiro indício da existência do povoado surgiu-lhes eram quase sete da tarde. Nate avistou uma pequena coluna de fumo azulado que se evolava acima da copa das árvores, próximo do sopé de uma colina. Jevy tinha a certeza de que se encontravam em território da Bolívia. O solo era mais elevado, para além de estarem mais próximo das montanhas. As áreas inundadas haviam ficado para trás.
Chegaram a um espaço aberto entre o arvoredo, uma clareira onde estavam duas canoas. Jevy manobrou o bote nessa direcção. Com rapidez, Nate saltou para terra, ansiando pela oportunidade de poder estender as pernas e de pisar terra firme.
- Mantenha-se por perto - advertiu Jevy enquanto trocava os depósitos de combustível da embarcação. Nate fitou-o. Os seus olhares cruzaram-se e Jevy fez um sinal na direcção das árvores.
Estavam a ser alvo da atenção minuciosa de um índio. Um homem de pele morena, de tronco nu, que usava uma espécie de saia de palha que lhe pendia da cintura; à primeira vista não trazia nenhuma arma. O facto de não estar armado ajudou bastante, dado que a primeira sensação que Nate experimentou foi de terror. O indígena tinha uns cabelos negros escorridos e listras vermelhas à largura da testa e, caso empunhasse uma lança, Nate ter-se-ia rendido sem proferir a mais pequena palavra de objecção.
- Achas que ele é amigável?
- Estou em crer que sim.
- Será que fala português?
- Não sei - respondeu Jevy.
- Por que é que não vais falar com ele, assim já ficarias a saber? - sugeriu Nate.
- Acalme-se. Jevy saiu do bote.
- Ele tem ar de canibal - acrescentou numa voz sussurrada. A tentativa de fazer humor não resultou.
Ambos deram alguns passos na direcção do índio que, por seu turno, também deu uns quantos passos encaminhando-se para os dois. Os três detiveram-se quando ainda havia uma distância mútua confortável. Nate sentiu-se tentado a erguer a palma dizendo: «Como é que vai isso?».
- Falas português? - perguntou Jevy com um sorriso de grande cordialidade.
O nativo reflectiu na pergunta, o que lhe levou bastante tempo, tornando-se por demais evidente que não falava português. Tinha um aspecto jovem, muito provavelmente ainda não teria vinte anos; por mero acaso, encontrava-se perto do rio quando ouviu o barulho do motor fora de borda do bote.
Os três homens examinavam-se mutuamente a uma distância de aproximadamente seis metros, enquanto Jevy analisava as suas opções. Entretanto, o mato por detrás do índio começou a agitar-se, deixando adivinhar a presença de algo que se mexia. Por entre as árvores, surgiram três homens da mesma tribo; felizmente, todos estavam desarmados. Constatando que os outros eram em número superior, para além de ele e Jevy estarem a invadir propriedade alheia, Nate encontrava-se disposto a começar a correr dali para fora. Os nativos não eram particularmente corpulentos, mas tinham a vantagem de se encontrar no seu próprio território. Além de que não eram gente que primasse pela cordialidade, nada de sorrisos ou de saudações.
Repentinamente, de entre as árvores, surgiu uma jovem que se colocou ao lado do primeiro índio. Também tinha uma pele escura e estava de tronco nu. Nate esforçou-se por não olhar para os seios.
- Falo - disse ela.
Falando espaçadamente, Jevy explicou-lhes a razão que os levara ali, manifestando a vontade de falar com o chefe da tribo. Ela traduziu as palavras para que os seus companheiros de tribo compreendessem, os quais, de imediato, se agruparam, começando a travar um diálogo que, a julgar pelas suas expressões, não augurava nada de bom para os visitantes.
- Alguns querem comer-nos sem mais demoras - disse Jevy em voz baixa. - Mas os outros dizem que devem esperar até amanhã.
- Muito engraçado - retorquiu Nate.
Quando os nativos concluíram a sua conversa, dirigiram-se à mulher. Pouco depois, esta comunicou aos intrusos que deviam esperar junto ao rio, enquanto a notícia da sua chegada era devidamente relatada à hierarquia superior. O que convinha bastante a Nate. No entanto, Jevy mostrou-se um pouco perturbado com aquelas palavras. Perguntou se junto deles vivia alguma missionária.
A nativa insistiu em que tinham de aguardar.
Entretanto, os outros índios sumiram-se entre o arvoredo.
- O que é que te parece? - perguntou Nate depois de eles terem desaparecido. Nenhum dos dois se deslocou um centímetro que fosse. Permaneceram entre as ervas que lhes davam pelo tornozelo olhando para as árvores que formavam um maciço cerrado, de onde, Nate estava certo, eram atentamente observados.
- Os estranhos pegam-lhes doenças - explicou Nate. - É por isso que se mostram tão cuidadosos.
- Eu ainda não toquei em ninguém.
Regressaram ao barco, onde Jevy começou a ocupar o seu tempo a limpar as velas de ignição. Nate despiu a camisola de algodão e a camisa, a fim de inspeccionar o conteúdo do saco improvisado à prova de água. Os documentos continuavam secos.
- Esses papéis são para entregar à mulher? - perguntou Jevy.
- São - confirmou Nate.
- Por quê? O que é que se passa com ela?
As regras rígidas que regiam a confidencialidade entre advogado e cliente pareciam a Nate menos vinculadoras naquelas circunstâncias. Na prática, era como se fosse um caso de vida ou de morte; todavia, sentado num bote no interior do Pantanal, sem que houvesse outro norte-americano num raio de muitos quilómetros, as regras poderiam ser um tudo nada infringidas. E por que não? Com quem é que Jevy poderia partilhar o que lhe dissesse? Que mal é que poderia advir de uma pequena conversa?
De acordo com as instruções que Josh dera a Valdir, este limitara-se a dizer a Jevy que havia um assunto importante, de natureza jurídica, nos Estados Unidos, que exigia que Rachel fosse encontrada.
- O pai dela morreu há algumas semanas. Deixou-lhe em herança uma data de dinheiro.
- Quanto?
- Vários biliões. -Biliões?
- Exactamente - confirmou Nate.
- Isso quer dizer que ele era muito rico?
- Sim, era.
- Tinha mais filhos?
- Seis, penso eu - replicou Nate.
- Também lhes deixou vários biliões?
- Não. Deixou-lhes uma quantia irrisória.
- Por que motivo é que deixou tanto dinheiro só para ela?
- Ninguém sabe. Foi uma surpresa para todos.
- Ela sabe que o pai morreu?
- Não.
- Ela gostava do pai?
- Duvido muito. É filha ilegítima. Tudo indica que tentou fugir dele e de tudo o mais. Não te parece? - Como que a demonstrar a sua teoria, com um gesto do braço, Nate abrangeu o Pantanal.
- Sim. De facto é um óptimo lugar para alguém que pretenda esconder-se. Ele sabia onde é que a filha estava quando morreu?
- Não exactamente. Sabia que era missionária e que trabalhava com os índios algures por aqui.
Jevy esquecera-se por completo da vela de ignição que tinha na mão enquanto absorvia aquelas novidades. Tinha muitas perguntas que gostaria de fazer. A quebra de sigilo por parte de um advogado ia-se alargando cada vez mais.
- Por que razão é que ele teria deixado uma fortuna dessas a uma filha que não o amava?
- Talvez fosse louco. Matou-se saltando de uma varanda abaixo. Aquilo era mais do que Jevy conseguia absorver de uma só vez. Semi-
cerrou os olhos fitando o rio, embrenhado nos seus pensamentos.
Os índios eram da tribo dos Guató, que viviam ali desde épocas imemoriais e, à semelhança dos seus antepassados, preferiam não manter contactos com o mundo exterior. Cultivavam os seus alimentos em pequenas parcelas de terra, pescavam nos rios e caçavam com arco e flecha.
Era por demais óbvio que eram um povo determinado. Decorrida uma hora, Jevy sentiu o cheiro de fumo. Trepou a uma árvore próxima do barco; quando chegou a uma altura de cerca de doze metros começou a avistar os telhados das palhotas. Convidou Nate a reunir-se-lhe.
Há quarenta anos que Nate não subia a uma árvore, mas naquele momento não havia mais nada que pudesse fazer. Trepou com menos agilidade do que Jevy, até que finalmente descansou numa ramada frágil. Com um braço agarrava-se ao tronco.
Conseguiam ver o telhado de três palhotas - palha espessa colocada em correntezas bem alinhadas. O fumo azulado evolava-se de entre duas das palhotas, de um ponto que não conseguiam lobrigar.
Seria possível que estivesse assim tão perto de Rachel Lane? Estaria ela ali naquele preciso momento ouvindo o que a sua gente lhe dizia, para depois decidir que atitude tomar? Estaria ela a pensar enviar um guerreiro da tribo que os fosse buscar ou optaria por, muito simplesmente, atravessar o arvoredo para os saudar?
- É um povoado pequeno - comentou Nate, tentando não se mexer.
- É provável que existam mais palhotas.
- O que é que te parece que eles estejam a fazer?
- A falar. Apenas a falar - replicou Jevy.
- Pois bem, detesto tocar neste assunto, mas a verdade é que temos de fazer qualquer coisa. Deixámos o barco há oito horas e meia. Gostaria muito de poder ver o Welly antes que escureça.
- Não há problema nenhum. No percurso de regresso seremos ajudados pela corrente. Além do mais, conheço bem o trajecto. Será muito mais rápido.
- Não te sentes preocupado? - perguntou Nate.
Jevy abanou a cabeça como se nem sequer lhe tivesse passado pela cabeça o pensamento de terem de navegar pelo Cabixa depois do cair da noite. Não era o caso com Nate. O que o preocupava em especial eram as duas grandes bacias que tinham encontrado; ambas tinham vários afluentes e, à luz do dia, eram todos semelhantes.
O plano de Nate limitava-se a dizer olá a Ms. Lane, contar-lhe um pouco da história, abordar os requisitos jurídicos, mostrar-lhe os documentos e responder a umas quantas perguntas básicas, conseguir a sua assinatura, apresentar-lhe os seus agradecimentos e dar o encontro por encerrado o mais depressa possível. Sentia-se preocupado com as horas e com o motor, que falhava constantemente, assim como com a viagem de regresso ao Santa Loura. O mais provável seria ela querer conversar, por outro lado, talvez não. Provavelmente, teria muito pouco a dizer. Também era possível que fosse uma mulher de poucas palavras, desejando que eles partissem para nunca mais voltarem.
Já no solo, Nate instalara-se no bote com a intenção de fazer uma pequena sesta quando Jevy avistou os índios. Disse qualquer coisa apontando para um determinado ponto e Nate olhou para o arvoredo.
Numa passada vagarosa, os nativos aproximavam-se da margem do rio; vinham em fila indiana atrás do chefe da tribo, o guató mais idoso que tinham visto até então. Era encorpado e tinha uma barriga avantajada, trazendo um pau comprido cuja finalidade era difícil adivinhar. Não dava a impressão de ser uma arma perigosa ou com a ponta aguçada. Junto de um dos extremos tinha um tufo de penas coloridas; Nate achou que muito provavelmente seria uma lança cerimonial.
O chefe avaliou os dois intrusos rapidamente, passando a dirigir os seus comentários a Jevy.
- Que motivo é que vos trouxe aqui? - perguntou em português. A sua expressão não era cordial, embora a sua postura não denotasse agressividade. Nate examinava a lança.
- Andamos à procura de uma missionária norte-americana - explicou Jevy.
- De onde é que vocês vieram? - perguntou o chefe, analisando Nate.
- De Corumbá - respondeu Jevy.
- E ele? - Todos os olhares se prenderam em Nate.
- Ele é norte-americano. Precisa de encontrar uma mulher.
- Por que é que ele necessita de encontrar a mulher?
Era o primeiro indício de que talvez os índios soubessem do paradeiro de Rachel Lane. Ter-se-ia ela escondido algures no povoado, ou talvez na floresta, ouvindo o que eles diziam?
Entretanto, Jevy iniciou uma explicação empolada em que descrevia a forma como Nate tinha percorrido grandes distâncias, explicando o acidente em que a vida dele estivera por um fio. O que os levara à aldeia era um assunto da maior importância, que só dizia respeito aos norte-americanos, nada que ele, Jevy, ou os índios, pudessem compreender minimamente.
- Ela corre perigo? - perguntou o chefe da tribo.
- Não. Nenhum.
- Ela não está aqui.
- Ele diz que ela não está no povoado - traduziu Jevy a Nate, falando em inglês.
- Diz-lhe que eu acho que é um sacana mentiroso - pediu Nate em voz baixa.
- Não me parece.
- Viste alguma vez uma missionária por estas paragens? - perguntou Jevy ao chefe tribal.
Este abanou a cabeça numa negação muda.
- E ouviste falar de alguma? - continuou Jevy.
De início, não houve qualquer resposta. Os olhos do índio estreitaram-se ao fitar Jevy, numa avaliação silenciosa, como se dissesse: «Poder-se-á confiar neste homem?». Em seguida um acenar fugidio.
- Onde é que ela está? - insistiu Jevy.
- Numa outra tribo - respondeu o chefe por fim.
- Onde?
O índio disse que não tinha a certeza, se bem que começasse a apontar. Na direcção de um ponto indefinido.
- Algures para norte e ocidente - disse ele abrangendo com a lança a extensão de metade do Pantanal.
- Com os Guató? - perguntou Jevy.
- Com os Ipicas - respondeu o chefe da tribo mostrando uma expressão escarninha, franzindo o cenho enquanto abanava a cabeça.
- A que distância? - continuou Jevy.
- A um dia daqui.
Jevy ainda tentou fazer com que ele fosse mais específico, mas pouco depois ficou bem ciente de que as horas não tinham o mínimo significado para os índios. No que lhes dizia respeito, um dia não eram vinte e quatro horas, nem tão-pouco doze. Era simplesmente um dia. Experimentou servir-se do conceito de meio dia, o que não o levou longe.
- Entre doze e quinze horas - explicou a Nate.
- Mas isso é se forem nas pequenas canoas em que eles navegam, certo? - perguntou Nate num murmúrio.
- Sim - confirmou Jevy.
- O que significa umas três ou quatro horas no nosso caso. Isto é, se conseguirmos encontrar o local.
Jevy foi buscar dois mapas que estendeu sobre o mato raso. Os índios mostraram-se muito curiosos. Agacharam-se junto do chefe da tribo.
A fim de poderem saber para onde é que teriam de se dirigir, primeiro teriam de descobrir onde é que se encontravam; todavia, a concretização desse desejo ficou ameaçada quando o chefe índio informou Jevy de que o rio por onde tinham vindo, na realidade, não era o Cabixa. Depois do encontro com o pescador, os dois homens tinham navegado por um afluente errado que os trouxera ao encontro dos índios Guató. Jevy recebeu aquela notícia a contragosto, e em inglês, numa voz sussurrada, pôs Nate ao corrente da novidade.
Por seu turno, este recebeu a notícia ainda com mais desagrado. Colocara a sua vida nas mãos de Jevy.
As cartas de navegação com cores rebuscadas pouco ou nada significavam para os índios. Ao fim de pouco tempo foram inteiramente ignoradas, quando Jevy começou a desenhar o seu próprio mapa. Principiou pelo rio, de nome desconhecido, que se encontrava defronte deles, e, falando sem cessar com o chefe da tribo, lentamente, começou a traçar o percurso para norte. Entretanto, o chefe colhia informações que lhe eram dadas por dois jovens índios. Aqueles dois, explicou ele a Jevy, eram pescadores excelentes e ocasionalmente navegavam até ao rio Paraguai.
- Contrata-os já - murmurou Nate a Jevy.
Este tentou, mas no decurso das negociações ficou a saber que os dois homens nunca tinham visto os Ipicas, coisa que não desejavam particularmente, além de não saberem com exactidão onde é que esses nativos viviam e de não terem a mínima noção do conceito de trabalho e da consequente remuneração. Para não mencionar que o chefe da tribo não desejava que eles partissem.
A rota que Jevy traçava ia de um rio a outro, percorrendo um trajecto sinuoso em direcção ao norte, até que o chefe índio e os seus dois pescadores chegaram a um ponto em que foram incapazes de concordar; a partir dali, não sabiam qual o rumo que deveria ser tomado. Jevy comparou o seu desenho com as cartas de navegação.
- Acabámos de a encontrar - disse a Nate.
- Onde?
- Aqui existe um povoado de ipicas - explicou Jevy, apontando para um dos mapas. - A sul de Porto índio, situado no sopé das montanhas. As indicações destes índios permitirão que cheguemos próximo desse local.
Nate inclinou-se para baixo e começou a examinar os pontos assinalados.
- Como é que podemos chegar até lá?
- Acho que devemos voltar ao barco, navegando para norte através do Paraguai, percorrendo uma rota que nos levará metade de um dia. Em seguida, voltamos a utilizar o bote para chegarmos a essa aldeia.
O curso do rio Paraguai descrevia um arco relativamente perto do ponto que desejavam alcançar, para além de que navegar até lá a bordo do Santa Loura era uma sugestão que, na opinião de Nate, era excelente.
- Quantas horas no bote? - inquiriu Nate.
- Quatro, mais ou menos.
O «mais ou menos» abrangia tudo no Brasil. No entanto, a distância parecia menor do que a que tinham percorrido desde as primeiras horas da
manhã.
- Nesse caso, de que é que estamos à espera? - perguntou Nate pondo-se de pé e sorrindo aos índios.
Jevy começou a apresentar os seus agradecimentos aos anfitriões, ao mesmo tempo que dobrava os mapas. Agora que os dois homens estavam prestes a partir, os índios manifestavam uma postura mais descontraída desejando dar mostras de alguma hospitalidade. Ofereceram comida que Jevy declinou. Explicou que de repente tinham muita pressa, uma vez que planeavam voltar ao rio grande antes de anoitecer.
Nate brindou os nativos com uma expressão risonha enquanto retrocedia para o rio. Os índios pretendiam ver a embarcação. Mantinham-se na margem junto da linha de água, perscrutando Jevy sem ocultarem a curiosidade que sentiam ao observá-lo a preparar o motor. Quando o pôs a funcionar, deram um passo atrás.
O rio, qualquer que fosse o seu nome, tinha um aspecto completamente diferente no percurso inverso. Ao aproximarem-se da primeira curva, Nate olhou por cima do ombro avistando os Guató que continuavam na margem
do rio.
Eram quase quatro horas da tarde. Com um pouco de sorte, poderiam passar pelas duas bacias antes de escurecer, após o que seguiriam pelo Cabixa. Welly estaria à espera deles com o arroz e feijão já preparados. Enquanto Nate fazia aqueles cálculos rápidos, começaram a cair as primeiras gotas de chuva.
A falha no motor não se devia à sujidade nas velas de ignição. Decorridos os primeiros cinquenta minutos do trajecto de regresso, deixou de funcionar por completo. A pequena embarcação navegava ao sabor da corrente quando Jevy retirou a caixa de protecção, atacando o carburador munido de uma chave de parafusos. Nate perguntou se poderia ajudar, sendo pressurosamente informado de que não. Pelo menos na reparação do motor. No entanto, se quisesse ser prestável, poderia agarrar num dos baldes e recolher a água da chuva. Também podia pegar num dos remos mantendo-os no centro do rio cujo nome continuavam a desconhecer.
Nate acatou as duas sugestões. A corrente continuava a mantê-los em movimento, embora a um ritmo bastante mais vagaroso do que Nate teria desejado. A chuva caía em períodos intermitentes. As águas do rio eram menos profundas quando se aproximaram de um nó muito acentuado, mas Jevy estava demasiado atarefado para reparar nesse pormenor. O bote começou a ganhar velocidade e os rápidos empurraram-no para um maciço de mato extremamente denso.
- Estou a precisar de alguma ajuda - disse Nate.
Jevy agarrou no outro remo. Guinou a embarcação de molde a que a proa colidisse sem capotar.
- Aguente-se! - advertiu enquanto embatiam contra o maciço. As trepadeiras e ramagens voavam em redor de Nate, que começou a desviá-las com o remo.
Houve uma pequena serpente que caiu dentro do bote, passando mesmo por cima do ombro de Nate que não se apercebeu. Jevy conseguiu colocá-la em cima da pá do seu remo arremessando-a para dentro do rio. Achou preferível não mencionar o incidente.
Durante alguns minutos enfrentaram as correntes, ao mesmo tempo que se defrontavam entre si. Sem se saber como, Nate conseguia a proeza de remar em todas as direcções menos adequadas. O entusiasmo com que remava mantinha a pequena embarcação numa situação de precariedade, prestes a rolar sobre si mesma.
Depois de conseguirem libertar-se, afastando-se do mato e da vida selvagem, Jevy agarrou os dois remos, incumbindo Nate de outra tarefa. Pediu-lhe que segurasse no seu poncho, estendendo-o acima do motor, de forma a que não entrasse água no carburador. Consequentemente, Nate assumiu uma posição, que mais se assemelhava à de um anjo, com os braços estendidos, um pé em cima de um bidão de combustível e o outro firmado na superfície lateral do interior do bote, paralisado de medo.
Passaram vinte minutos que lhe pareceram intermináveis, enquanto navegavam à deriva sem saberem em que direcção pelo curso descendente do rio estreito. A herança Phelan tinha meios para poder adquirir todos os motores fora de borda, novinhos em folha, que existissem no Brasil, mas no entanto ali estava Nate a observar um mecânico amador que tentava consertar um que era mais velho do que ele próprio.
Jevy aparafusou a caixa de protecção do motor e em seguida começou a afinar a válvula reguladora, dando a Nate a impressão de que levava uma eternidade. Jevy puxou a corda da ignição na altura em que Nate deu por si a rezar uma oração. À quarta tentativa, o milagre concretizou-se. O motor começou a dar sinais de vida, embora com menos regularidade do que anteriormente. Engasgava-se ameaçando ir-se abaixo. Jevy tentou afinar os cabos da válvula reguladora, sem grande resultado.
- Vamos ter de navegar mais devagar - informou sem que o seu olhar se cruzasse com o de Nate.
- Óptimo. Desde que saibamos onde estamos.
- Não há problema nenhum.
A tempestade ameaçava acima das montanhas da Bolívia, mas pouco depois começou a desencadear-se sobre o Pantanal, muito similar ao temporal que quase os matara aquando do despenhamento do avião. Nate permanecia sentado no fundo do bote, abrigado debaixo do poncho, mantendo-se atento às águas a oriente do rio, procurando algo que lhe parecesse familiar quando sentiu a primeira rajada de vento. Bruscamente, a chuva começou a cair com mais intensidade. Em movimentos lentos, olhou para trás. Jevy já se tinha apercebido da aproximação da borrasca, embora não fizesse qualquer comentário. O firmamento adquirira uma tonalidade plúmbea, quase negra. As nuvens baixas fervilhavam em direcção ao solo, impedindo-os de verem as montanhas. As bátegas de chuva encharcaram os dois homens. Nate sentia-se extremamente vulnerável e indefeso.
Não havia lugar nenhum onde pudessem procurar abrigo, nem tão-pouco um único porto ou ancoradouro onde aguardassem o fim da tempestade. Em redor só havia água, quilómetros de água em todas as direcções. Encontravam-se no meio de uma inundação, podendo recorrer apenas à copa de umas quantas árvores esparsas, e demais vegetação, que lhes permitissem orientar-se através dos rios e pântanos. Eram forçados a manter-se no bote porque não lhes restava outra alternativa.
Foram açoitados por uma rajada mais forte que sentiram vinda de trás, o que impeliu o bote de proa enquanto a chuva lhes caía de rijo contra as costas. O céu escureceu ainda mais. Nate só desejava poder aninhar-se debaixo do seu banco de alumínio, agarrar-se à almofada insuflável e esconder-se tanto quanto lhe fosse possível sob o poncho que o protegia. A despeito desse desejo, a chuva continuava a acumular-se à volta dos seus pés. Os mantimentos já estavam empapados. Agarrou num dos baldes e começou a baldear a água da chuva.
Pouco depois, chegaram a uma confluência por onde Nate teve a certeza de que não tinham passado anteriormente, ao que se seguiu uma bifurcação de rios que mal conseguiam avistar através da cortina de chuva. Jevy reduziu a entrada de combustível que passava pela válvula reguladora com o objectivo de observar as águas; em seguida, imprimiu mais velocidade ao motor acompanhando o curso de uma curva acentuada para a direita, como se soubesse exactamente para onde se dirigia. Nate estava convicto de que se tinham perdido.
Alguns minutos depois, o rio desaparecia num maciço de árvores desenraizadas - uma visão memorável que avistavam pela primeira vez. Rapidamente, Jevy inverteu a direcção do bote. Agora seguiam a toda a velocidade para o centro do temporal, uma perspectiva verdadeiramente aterradora. O céu estava completamente negro. As correntes encapelavam as águas, formando cristas espumosas.
De regresso ao ponto onde os rios confluíam, Nate e Jevy trocaram algumas palavras gritadas, tentando fazer-se ouvir acima do barulho do vento e das bátegas de chuva, após o que decidiram seguir pelo curso de outro rio.
Mesmo antes de cair a noite, passaram por uma vasta planície inundada, um lago temporário que lhe pareceu vagamente similar ao sítio onde haviam encontrado o pescador entre as ervas. Desta vez, o homem não se encontrava por perto.
Jevy escolheu um dos afluentes, um de entre vários, procedendo como se costumasse navegar por aquela área do Pantanal todos os dias. Então, os relâmpagos fizeram-se anunciar e, por algum tempo, os dois homens quase conseguiam ver para onde se dirigiam. A chuva abrandou de intensidade. Sem grandes pressas, a tempestade preparava-se para os abandonar.
Jevy desligou o motor, começando a examinar as margens do rio.
- Em que é que estás a pensar? - perguntou Nate. Durante a tempestade não houvera muitas oportunidades de poderem conversar. Estavam perdidos, disso tinham a certeza. Contudo, Nate não forçaria Jevy a admitir essa realidade.
- Devíamos acampar - alvitrou este. Era mais uma sugestão do que um plano.
- Porquê?
- Porque temos de dormir num sítio qualquer.
- Podemos dormir à vez dentro do bote - alvitrou Nate. - Pelo menos é mais seguro - acrescentou com a segurança de um guia fluvial muito experimentado.
- Talvez sim. Mas na minha opinião, acho que devíamos ficar por aqui. Se continuarmos a navegar às escuras, corremos o risco de nos perdermos.
Nate sentia vontade de lhe dizer que havia três horas que andavam à deriva.
Jevy manobrou o bote em direcção a uma margem que tinha alguma vegetação. Começaram a seguir pelo rio abaixo ao sabor das correntes, mantendo-se próximos da margem, examinando os baixios com a ajuda de lanternas. Dois pequenos pontos vermelhos a brilhar logo acima da superfície do rio significariam que um crocodilo estava de atalaia, mas felizmente não avistaram nenhum. Ancoraram prendendo o cabo de amarração a um ramo a cerca de três metros da margem.
O jantar foi composto por umas bolachas de água e sal, parcialmente secas, que acompanharam uns peixinhos enlatados que Nate nunca experimentara, bananas e queijo.
Quando o vento amainou, dando lugar aos mosquitos, o repelente de insectos começou a ser passado das mãos de um para as do outro. Nate espalhou-o pelo pescoço e pela cara, chegando ao ponto de o aplicar nas pálpebras e cabelo. Os pequenos insectos eram ágeis e perversos, esvoaçando em pequenas nuvens negras da popa do bote até à proa. Apesar de a chuva ter parado, nenhum deles despiu o poncho. Embora os mosquitos tentassem com todas as ganas, não conseguiam penetrar através do oleado.
Por volta das onze da noite, o firmamento clareou um pouco; no entanto, a Lua manteve-se oculta. A corrente imprimia um balanço suave à pequena embarcação. Jevy ofereceu-se para fazer o primeiro quarto de vigia, enquanto Nate tentava instalar-se o mais confortavelmente possível para conseguir passar pelas brasas. Deitou a cabeça sobre a tenda, esticando as pernas. O poncho abriu-se um pouco, dando entrada a um bando de mosquitos diligentes, que começaram a ferrá-lo na região da cintura. Qualquer coisa chapinhou no rio, possivelmente um réptil. Decididamente, aquele bote de alumínio não fora concebido para servir de cama.
Dormir estava absolutamente fora de questão.
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