Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O TRÍLIO NEGRO
Primeira Parte
Quando três talentos excepcionais se conjugam para criar um romance, o resultado só pode ser pura magia.
Marion Zimmer Bradley, Julian May e Andre Norton, autoras de ficção científica e fantasia, conquistaram com suas obras a admiração de milhões de leitores em todo o mundo. Combinando suas imaginações e maestria elas produziram uma saga a que chamaram O Trílio Negro, pontuada por humor sutil, rica descrição de paisagens e costumes, fina percepção e personagens inesquecíveis.
Ruwenda é uma terra fértil e agradável, onde humanos e oddlings convivem em paz sob a guarda da secular Arquimaga Binah. Mesmo aqueles a quem foi concedida uma vida desmedida, no entanto, devem desaparecer um dia, e, à medida que o poder de Binah enfraquece, Ruwenda se torna vulnerável. Cumpre à Arquimaga, agora, passar sua atribuição de guardiã a outra pessoa — mas nem mesmo ela sabe para quem, e nem quais as conseqüências desse ato. Quando sua preocupação está no auge nascem as princesas trigêmeas, herdeiras do trono de Ruwenda.
Ao atingirem a idade de casar as princesas vêem se concretizar os piores temores de Binah. O rei de Labornok, país vizinho, sob a proteção de um mago cujo conhecimento neutraliza a proteção de Binah, invade Ruwenda.
Binah ordena às princesas que fujam e as incumbe de procurar três talismãs que, unidos, representarão a única chance de recuperarem o reino e libertarem seu povo. Cada uma delas deve empreender a busca sozinha. E para ter sucesso, devem conhecer e conquistar os limites de suas próprias almas.
Haramís — a princesa mais velha, herdeira do trono perdido, é fascinada pelo poder, o que a leva a tentar uma aliança perigosa. A introspectiva Haramis foi criada por Marion Zimmer Bradley, autora do best-seller As Brumas de Avalon e da série Darkover.
Kadiya — a princesa caçadora, que deverá dominar sua natureza impetuosa para que as três irmãs tenham sucesso em suas missões. A temperamental Kadiya foi criada por Andre Norton, autora de Witch World, um sucesso entre leitores de todas as idades.
Anigel — a princesa mais nova é doce, tímida e está predestinada a enfrentar o perigo de regiões desconhecidas e o amor de um feroz inimigo. Anigel foi criada por Julian May, autora dos cinco volumes da Saga of Pliocene Exile.
Da Crónica Peninsular de Lampiar, Sábio de Labornok
Nos Oitocentos depois que os de Ruwenda chegaram para governar a alagada região chamada Pântano Labirinto (nunca completamente, pois jamais dominaram os indomáveis oddlings), a história e a lenda despertaram para registrar mais uma dessas mudanças que, uma vez ou outra, alteram o verdadeiro equilíbrio do mundo.
Para as nações civilizadas da península — especialmente a nossa, da vizinha Labornnok — o planalto alagado era um terreno inútil que parecia existir apenas para frustrar e irritar os povos mais vigorosos e progressistas. Ruwenda não era, na verdade, um reino completamente organizado, pois sua soberania não se estendia aos estranhos nativos que viviam dentro das suas supostas fronteiras. Os reis ruwendianos complacentemente permitiam a permanência dos enclaves anárquicos dos chamados oddlings, muitas vezes em detrimento dos seus verdadeiros súditos, da paz geral e da ordem do reino.
Duas dessas tribos nativas, os pequenos pantaneiros nyssomus e os seus parentes próximos, mais altaneiros, os uisgus (decididamente subumanos e portanto destinados pela natureza para servir seus superiores), eram tratadas, quer pela coroa, quer pelos mercadores de Ruwenda, como supostos iguais, embora não fosse exigida delas nenhuma forma de lealdade. Na verdade, certos grupos de nyssomus visitavam freqüentemente a famosa Cidadela Ruwenda e alguns daqueles seres inferiores eram aceitos como servos da corte real!
Duas outras tribos dos oddlings, os vispis, amantes das montanhas, e os vrilos, semicivilizados, das florestas tropicais do sul, não eram amistosas com os seres humanos, mas permitiam-se negociar com os mercadores ruwendianos regularmente. Por outro lado, os sombrios glismaks, que habitavam as selvas próximas do território dos wyvilos, raramente eram vistos pelos humanos. Era um povo feroz e selvagem, que se deleitava em massacrar os oddlings seus vizinhos. A última e maior tribo de oddlings, os abomináveis skriteks, também chamados afogadores, ocupava a maior parte do pântano, mas era extremamente numerosa nos vastos e fétidos alagados ao sul da Cidadela Ruwenda, bem como Thorny Hell, o inferno de espinhos, na região centro-norte. Esses demónios do Pântano Labirinto eram temidos assaltantes de caravanas e das mansões e propriedades rurais isoladas dos humanos, afogando suas vítimas ou torturando-as com inominável brutalidade, antes de lançá-las nas areias movediças para morrer. Contudo, os reis que se sucediam no trono de Ruwenda nada faziam para livrar a terra dessa ameaça.
Diziam, naquele tempo, que a podridão do pântano havia enfraquecido a mente e o corpo dos humanos de Ruwenda. Seus governantes eram todos amantes dos prazeres, completamente estranhos à disciplina feudal. Quando o culto, mas obstinado Krain III subiu ao trono, sua incapacidade manifesta de lidar com as nações vizinhas demonstrou claramente que chegara a hora de pôr em prática métodos mais progressistas e esclarecidos para resolver a situação de decadência que há anos atormentava nosso grande reino de Labornok.
Infelizmente Labornok precisava das mercadorias que seus irresponsáveis e ineficientes vizinhos tinham para oferecer. Com nossas florestas há muito tempo devastadas e transformadas em lavoura, dependíamos das florestas tropicais dos ruwendianos não só para a construção dos navios que sustentavam nosso próspero comércio marítimo, mas também para a madeira de lei que realçava e adornava as imponentes construções de Derorguila. Além disso, por um cruel capricho da natureza, as encostas labornok dos inacessíveis Montes Ohogan eram praticamente desprovidas de minério utilizável, ao passo que o lado ruwendiano da cordilheira abrigava depósitos de ouro e platina, bem como vários tipos de pedras preciosas que, levadas pelas águas, eram depositadas aleatoriamente nas montanhas. Os cristais e metais preciosos eram apanhados ao acaso pelos oddlings vispi, vendidos aos uisgus e finalmente chegavam às mãos dos ruwendianos humanos. Outras mercadorias do pequeno e perverso reino eram valiosas ervas medicinais dos pântanos e temperos culinários, peles de worrans e couro de fedok, além de artefatos curiosos que os oddlings encontravam nas ruínas de antigas cidades, nos rincões mais inacessíveis do Pântano.
Mesmo nas melhores épocas, o comércio entre Labornok e Ruwenda era um negócio insatisfatório e muitas vezes perigoso. Muitos dos nossos gloriosos reis, mordendo furiosamente os bigodes reais ante a insolência dos ruwendianos, pediam aos seus generais que elaborassem um plano para conquistar aquela nação menor. Mas é difícil invadir um país que só tem uma porta — o íngreme e estreito Passo Vispi, nos Montes Ohogan, guardado por fortes ruwendianos, estrategicamente colocados. Os reis labornok, de triste memória, que tentaram essa conquista não voltaram com vida.
Os sobreviventes dos seus exércitos derrotados contavam histórias de neblinas geladas e demoníacas, furacões de cujo centro olhos desumanos pareciam observar sem piedade, tempestades nas montanhas fora da estação, com neve, granizo e chuva de pedra, monstruosas avalanches de rochas, pragas fulminantes que atacavam os mantimentos e outras calamidades. Era como se forças sobrenaturais se unissem para rechaçar a invasão. Porém, mesmo que, no passado, os postos de guarda pudessem ser tomados, o brejo além deles representava um obstáculo terrível para qualquer força invasora.
Como sabiam muito bem todos os mestres-mercadores labornok.
A próspera e audaciosa corporação dos mercadores, que passava de pais para filhos suas concessões e certos encantamentos protetores da vida, incluía os únicos cidadãos do nosso reino que conheciam a rota secreta para o coração de Ruwenda. Muitos generais labornok, furiosos e frustrados pelas tentativas infrutíferas de conseguir informações coerentes, ou pelo menos um mapa, suspeitavam que alguma magia negra selava os lábios dos mestres-mercadores, sempre que eram interrogados. Entretanto, depois de algum tempo, o caminho foi revelado através da arte do poderoso mágico Orogastus, sobre o qual falaremos logo adiante. Naqueles tempos, no entanto, os mestres guardavam bem o segredo e desfrutavam não só de um monopólio próspero, como também de uma boa parcela de poder político.
Uma caravana típica, conduzida por quatro mestres-mercadores, era pequena, com não mais de vinte carroças e uns cinqüenta homens. Depois de dar a senha aos comandantes da guarda do forte nas montanhas, os mestres conduziam as carroças através do Pântano por um caminho elevado, traiçoeiro e não marcado. Poucas eram as áreas isoladas, entre a fronteira de montanhas e a Cidadela de Ruwenda, a duzentas léguas de distância, abençoadas com terreno sólido e firme. A maior região seca, a leste da Estrada dos Mercadores, era o território Dylex, onde barreiras formavam diques e havia terras drenadas com fazendas bem cultivadas, pastos e pequenos vilarejos espalhados. Virk, o maior desses vilarejos, especializava-se em refinação dos minérios levados pelos oddlings, uisgus, ou pelos nyssomus, e era um centro secundário do comércio de pedras e metais preciosos de Ruwenda. Entretanto, a maior parte desse comércio era feita na Cidadela, a capital de Ruwenda, pousada numa imensa colina rochosa, no centro do Pântano Labirinto.
Chegando à Cidadela, os mestres-mercadores pagavam o real pedágio. (Pagavam também uma taxa, que variava de acordo com os caprichos do governo de Ruwenda, sobre o material da venda por atacado, um dos pontos controvertidos nas relações Ruwenda-Labornok.) Só então podiam vender livremente sua mercadoria no grande Mercado da Cidadela, e depois tratavam das permutas, negociando minério ou madeira. Esta última, os agentes ruwendianos obtinham dos oddlings wyvilo, que habitavam as florestas. Os mestres, em busca de mercadorias mais exóticas, viajavam mais umas cem léguas, nas bateiras ou barcaças ruwendianas, subindo o lento rio Baixo Mutar até sua confluência com o Víspar, onde ficava a cidade antiga de Trevista — em cujas praças realizavam-se as fabulosas feiras de trocas dos oddlings dos pântanos. Essas feiras só aconteciam na estação seca, uma vez que as monções que sopravam violentas do Mar do Sul impossibilitavam a passagem nas outras épocas do ano. Só os oddlings aventuravam-se no Pântano Labirinto então, percorrendo as trilhas que conheciam e usando métodos aperfeiçoados há muitas centenas de anos.
Trevista permanece como um dos grandes mistérios da nossa península. É incrivelmente antiga e de uma beleza estonteante, mesmo no estado presente de quase total dilapidação. O labirinto de canais, as pontes em deterioração e as ruínas majestosas dos edifícios estão hoje cobertos por uma belíssima selva de flores. O que resta do desenho urbano original demonstra ainda que os construtores de Trevista dominavam uma técnica sofisticada, muito superior a todas as que eram conhecidas pelas civilizações mais adiantadas da península.
Os estudiosos do assunto especulam que no passado Ruwenda era um imenso lago, alimentado por uma geleira, com ilhas que são hoje meras elevações no meio do pântano. Muitas delas, ao que sabemos, abrigam ruínas semelhantes. Nem mesmo os oddlings sabem a história dessas antigas cidades. Dizem apenas que foram construídas pelos Desaparecidos, e já existiam quando seus ancestrais chegaram à região dos pântanos. A própria Cidadela de Ruwenda, uma verdadeira montanha de complexos muros de pedra, bastiões, construções elevadas, no centro dos fortes, torres e prédios interligados, data também da mais remota antigüidade e supostamente era o centro dos primeiros governantes, perante os quais a península se curvava então.
As ruínas mais isoladas, acessíveis só aos nativos, eram as fontes das mercadorias mais cobiçadas — objetos de arte antigos e pequenos mecanismos misteriosos comprados por preços extremamente altos, não só pelos colecionadores de Labornok, mas também pelos futuros estudantes das artes ocultas, nos lugares mais distantes do mundo conhecido. Esse comércio, por motivos que serão explicados, definhou depois que o Príncipe Voltrik tornou-se herdeiro do trono de Labornok e engendrou os eventos que culminariam com a tão esperada conquista dos nossos pequenos e pestilentos vizinhos do sul.
Voltrik teve de esperar um longo tempo pela coroa, uma vez que seu tio, o Rei Sporikar, viveu mais do que os cem anos permitidos. Enquanto esperava, Voltrik distraía-se com os planos para a aquisição de outra coroa, e também aproveitava para viajar muito. De uma expedição às terras ao norte de Ratkun, ele trouxe um novo companheiro que iria fornecer a chave para Ruwenda — o mago Orogastus.
Voltrik estava então no seu oitavo-trigésimo ano. Era um homem de formidável presença física, barba negra e uma beleza granítica, com temperamento tão imprevisível e tão bombástico quanto um trovão. Sua primeira esposa, a muito amada Princesa Janeel, morreu ao dar à luz o único filho de Voltrik, Antar. Sua segunda esposa, Shonda, morreu em circunstâncias suspeitas durante uma caçada ao lothok, sem nunca ter concebido durante os dez anos de casamento. A frívola Princesa Narice, sua terceira esposa, foi condenada por alta traição, depois de tentar fugir com um palafreneiro. Ela e o namorado foram colocados juntos num saco de espinhos e queimados vivos.
O mago Orogastus tornou-se o principal conselheiro de Voltrik e logo passou a ser respeitado e temido em toda Labornok. Foi ele quem convenceu o príncipe a esperar algum tempo antes de escolher outra esposa, e a encher sua alma de paciência, se quisesse ver realizadas todas as suas ambições.
(O mago prudentemente não revelou ao príncipe que teria de esperar mais dezessete anos pela morte do senil Rei Sporikar.)
Durante esse tempo, Orogastus construiu uma fortaleza no lado norte dos Montes Ohogan, na encosta do Monte Brom, onde instalou-se para aperfeiçoar-se em artes mágicas. Todos os artefatos fora do comum adquiridos dos oddlings do pântano pelos mestres-mercadores de Labornok iam direto para as mãos de Orogastus, pois uma das suas visões sugeria que era possível adquirir imenso poder através de alguns daqueles objetos. Mais tarde, Orogastus escolheu para assistentes três indivíduos sinistros conhecidos como suas Vozes. Serviam de acólitos e agentes do mago e eram quase tão temidos quanto seu mestre.
Na vertente oposta dos Montes Ohogan com seus picos cobertos de neve, nos sopés ruwendianos, onde o leito escarpado do rio ficava mais suavemente plano e muito mais largo, ficava a casa de outra praticante das artes ocultas. Era a Arquimaga Binah, também chamada Dama Branca, que vivia há anos sem conta nas ruínas de Noth, uma das antigas cidades dos Desaparecidos. Ela era pouco mais do que uma lenda para a população de humanos de Ruwenda, que jamais a viu. Era costume, porém, invocar seu nome nos momentos difíceis, e desde tempos imemoriais a adoravam como a guardiã da sua terra. Só os oddlings e a realeza de Ruwenda conheciam a verdade por trás da lenda. O que mantinha o Pântano Labirinto livre dos possíveis atacantes não eram as dificuldades do terreno, nem as fortificações humanas, nem o tempo inclemente ou os desastres naturais, mas o encantamento benigno de Binah. Porém, o peso dos anos faz curvar os praticantes da magia tanto quanto seus poderes não exercitados. Durante o reino de Krain III tornou-se muito difícil para Binah manter as salvaguardas que ela havia disposto em volta de Ruwenda. E à medida que suas faculdades se enfraqueciam, as do malvado Orogastus tornavam-se cada vez mais fortes.
Depois de muitos anos de esterilidade, chegou finalmente o dia em que a Rainha Kalanthe, de Ruwenda, recolheu-se aos seus aposentos para dar à luz. O Rei Krain, ajoelhado ao lado da mulher, invocou poderes há muito esquecidos, nomes que ele não pronunciava desde a infância.
Do miasma negro que pairava pesado e estagnado sobre o grande pântano surgiu um pássaro tão imenso que, com as asas abertas, poderia cobrir quase todo o telhado da Torre Alta da Cidadela. Era, sem dúvida, um dos terríveis lammergeiers que habitavam os picos mais inacessíveis da cordilheira Ohogan. Das suas costas desmontou a Arquimaga Binah e os servos e os guardas, apavorados, caíram de joelhos. À primeira vista era apenas uma mulher velha, coberta por um manto branco bordado de prata que a cada movimento adquiria o tom azulado da neve sob as árvores, mas havia nela algo que emudecia todas as indagações e tornava absurda a idéia de impedi-la de se aproximar da cama da rainha.
Todos que estavam perto da infeliz rainha choravam, suspiravam e oravam em voz alta, pois era evidente que Kalanthe não seria capaz de dar à luz o ser que lutava para nascer dentro dela, e estava muito próxima da morte. Os bonitos cabelos ruivos, escurecidos pelo suor, grudavam-se na cabeça e ela agarrou com força a mão do Rei Krain, como um afogado se agarra a uma corda.
Aproximando-se, a Arquimaga disse:
— Acalme-se. Tudo vai ficar bem. Kalanthe, querida filha, olhe para mim.
A rainha arregalou os olhos e parou de gemer. O pobre Krain não queria sair de perto da sua mulher, mas um gesto brusco da Arquimaga encheu-o de esperança e ele recuou, fazendo um sinal para que os cortesãos e as damas da rainha se afastassem, dando passagem à visitante.
A parteira real, uma oddling chamada Immu, ficou ao lado da cama segurando uma taça com uma poção de ervas, que a rainha não tinha conseguido tomar. A Arquimaga Binah mandou a subumana se aproximar e erguer a taça e então foi revelada uma grande maravilha. Todos que estavam no quarto, até a rainha agonizante, deixaram escapar uma exclamação abafada de espanto, pois Binah ergueu sobre a taça uma planta de Trílio Negro — raízes, folhas e uma única flor tripartida —, a erva famosa dos pântanos, tão rara que nem os oddlings do palácio sabiam dizer onde ela ainda crescia. Contudo, essa mesma planta era o símbolo da casa real de Ruwenda, e entre as jóias mais preciosas da coroa havia alguns pedaços de âmbar cor de mel nos quais estavam encravados minúsculos fósseis da flor, não maiores do que uma cabeça de alfinete.
Mas a flor de Binah não era pequena. Era quase tão larga quanto a palma da mão da Arquimaga e de um negro mais intenso que o do veludo de seda. Binah colheu a flor do trílio e a pôs na taça, mas escondeu a planta sob seu manto. Contou dez respirações, enquanto a flor se dissolvia, então tirou a taça com a tisana da mão da parteira oddling e fez um sinal para o rei.
Krain aproximou-se rapidamente e ergueu nos braços sua amada, segurando-a enquanto ela tomava um gole e depois bebia sofregamente até esvaziar a taça.
A rainha repousou outra vez nos travesseiros e de repente deu um grito — não de dor mas de triunfo —, e a parteira Immu disse:
— Ela está dando à luz!
Apareceram três princesas, uma logo depois da outra. E isso foi um grande prodígio, pois nascimentos múltiplos não eram comuns entre a aristocracia.
Os bebês choravam saudavelmente e, embora pequenos, eram perfeitos, cada uma das princesas diferindo levemente da outra nos traços e na cor da pele e dos cabelos. À medida que cada princesa era recebida no lençol que a esperava, a Arquimaga dizia um nome e colocava sobre a pequenina um pingente de ouro de forma exótica incrustado em âmbar, contendo um botão da flor de Trílio Negro.
— Haramis — disse ela para a primeira princesa, como quem recebe uma amiga muito amada ou uma protegida. — Kadiya — saudou a segunda e — Anigel — disse para a terceira.
Então, olhou para o rei e para a rainha que a observavam com espanto respeitoso e falou com um tom carregado de profecia, para que suas palavras ficassem para sempre gravadas nas mentes de todos quantos a ouviam.
— Os anos vêm e vão rapidamente. O que é alto deve cair, o que é amado será perdido, o que é secreto, com o tempo será revelado. Mesmo assim, eu digo que tudo vai acabar bem. Meus dias agora deslizam para o anoitecer, embora eu deva fazer tudo que posso até a chegada da noite total. Essas três pétalas do Trílio vivo, suas filhas, Krain e Kalanthe, têm à sua espera um destino terrível e terríveis tarefas, mas o tempo para isso ainda não chegou.
Antes que o rei e a rainha pudessem perguntar o significado da sua advertência, a Arquimaga Binah deu meia-volta e saiu rapidamente do quarto. Os bebés, que não paravam de chorar, e o cuidado com a rainha ocuparam toda a atenção das mulheres da corte e da parteira Immu, enquanto o rei saía para anunciar a boa nova e proclamar os dias de comemoração. Os amuletos com o mágico trílio foram postos em finos cordões de ouro e as princesas os usavam quando estavam acordadas ou quando dormiam.
Como havia dito a Arquimaga, o tempo passa e com ele vem um certo esquecimento. As três princesas cresceram e eram agora três jovens belas e fortes, que ouviam sempre dos pais e das amas a história da cena estranha que acontecera no seu nascimento. Isso lhes parecia cada vez mais um conto fantástico, especialmente a parte da sombria profecia, pois nada perturbava o conforto dos seus dias, e, como todos os outros jovens, estavam muito mais interessadas no presente do que no passado.
A Princesa Haramis era a favorita do rei, um homem muito estudioso. Desde muito pequena, Haramis queria saber o que estava nos livros, atormentando os escribas e estudiosos com perguntas pouco comuns em princesas reais. Para ela havia também magia na música, especialmente a que era tocada na flauta e na harpa de madeira ladu. Passava grande parte do tempo com o oddling Uzun, famoso cantor e contador de histórias. Uzun sabia transformar a maior melancolia em contentamento com suas histórias e seu conselho sensato.
A Princesa Kadiya muito cedo demonstrou que amava os animais e os pássaros, especialmente as estranhas criaturas das profundezas do pântano. Sua paixão era viver a céu aberto e explorar os mais distantes confins do império e escolheu para seu guia o oddling Jagun, Mestre dos Animais do reino e guarda-caça da Cidadela.
A Princesa Anigel, elegante e delicada como as flores que ela tanto amava, era uma criança tímida, mas muito risonha, e seu terno coração comovia-se com qualquer doença ou sofrimento. Era o encanto especial da Rainha Kalanthe e gostava dos deveres domésticos e do cerimonial da corte que suas irmãs desprezavam. Sua amiga mais íntima era Immu, a parteira real e ama, que servia agora como a boticária da Cidadela, preparando não apenas poções, mas também perfumes suaves, essências para confeitaria e uma cerveja muito boa.
Chegou o tempo em que as três princesas atingiram a idade do casamento, tendo Ruwenda prosperado durante dezessete anos à custa de Labornok. Por ordem do feiticeiro Orogastus, o Príncipe Herdeiro Voltrik pediu a mão de Haramis, a herdeira. Para sua grande fúria, foi rejeitado, pois o Rei Krain, sem filho homem como herdeiro, resolveu que, na Festa das Três Luas, daria a mão da sua filha mais velha ao segundo filho do Rei Fiodelon de Var. Esse príncipe, chamado Fionakai, compartilharia então o trono de Ruwenda com Haramis. A nação de Var, ao sul da Floresta Tassaleyo, na planície fértil do Grande Mutar, tinha pouco intercâmbio comercial e diplomático com Ruwenda. (Era, porém, uma importante rival de Labornok no comércio marítimo!) Mas se os selvagens oddlings fossem algum dia dominados e o Grande Mutar fosse aberto aos navios mercantes de Var, Labornok podia perder o comércio lucrativo com Ruwenda..
Nesse momento crítico da história peninsular, o velho Rei Sporikar finalmente fechou os olhos para o mundo e Voltrik tornou-se rei de Labornok. Instigado por Orogastus, recém-nomeado Ministro de Estado, Voltrik mandou chamar seu filho, o Príncipe Antar, e o comandante-em-chefe de Labornok, General Hamil. Ordenou que ambos se preparassem para uma imediata invasão de Ruwenda.
Mais uma vez, a ofuscante luz branco-azulada vinda do pátio externo da Cidadela sitiada cegou a família real, os cortesãos e Companheiros Fiéis reunidos no balcão, no centro da grande torre central da fortaleza. Em menos de uma fração de segundo, rugiu o trovão.
O Rei Krain gemeu desesperado.
— Pela Dama Branca, desta vez não pode haver dúvida! O feiticeiro Orogastus realmente provocou relâmpagos no céu azul e este último arrasou o muro do pátio interno!
Os soldados da infantaria de Labornok entraram, às centenas, pela imensa abertura na muralha, seguidos de perto pelos cavaleiros das montanhas, conduzidos pelo brutal General Hamil. Os atacantes arrasaram os defensores da Cidadela com a facilidade com que um furacão arrasa a relva do pântano. Alguns momentos depois, viu-se outro clarão mágico e cegante, e outro e mais outro, abrindo novas brechas nas muralhas, pelas quais entravam as hordas inimigas.
- É o fim — disse o rei. — Se aquela antiga muralha com seus bastiões múltiplos pode ser demolida pelos relâmpagos mágicos de Orogastus, então a grande torre central não oferece mais nenhuma segurança!
Voltou-se para um dos Companheiros Fiéis:
— Lorde Sotolain, traga minha armadura. Lorde Manoparo, eu o encarrego da segurança da nossa querida rainha e das princesas. Leve-as para o mais profundo e seguro baluarte da fortaleza, onde com seus cavaleiros deve defendê-las até a última gota do seu sangue. Os outros devem se preparar para enfrentar comigo o inimigo.
A Rainha Kalanthe apenas concordou com um gesto, mas a Princesa Anigel e suas damas de companhia começaram a chorar. A Princesa Haramis ficou imóvel como uma estátua de mármore, e só os grandes olhos azuis e os brilhantes cabelos negros disfarçavam a brancura do seu rosto, do vestido e do manto que vestia. A Princesa Kadiya, com sua roupa verde de caça, de corte masculino, desembainhou a adaga e a brandiu.
— Sire, querido pai! Deixe-me lutar e cair ao seu lado! Prefiro isso a me esconder com as mulheres lamurientas, enquanto os homens das planícies conquistam Ruwenda!
A rainha e os nobres olharam para ela, chocados, e a Princesa Anigel e suas damas, espantadas, pararam de chorar e se lamentar.
A Princesa Haramis limitou-se a sorrir com frieza.
— Irmã, acho que está dando muito valor à sua capacidade para lutar. Estes não são os vermes ordinários que fogem da sua lança de brinquedo numa caçada, mas sim os intrépidos homens armados do Rei Voltrik, protegidos pelos encantamentos de um feiticeiro de negro coração.
— Dizem os oddlings — respondeu Kadiya — que uma mulher da casa real de Ruwenda provocará a queda de Labornok, matando seu cruel rei!
— E você então se arvora em nossa salvadora? — disse Haramis com um riso amargo. E com as lágrimas inundando e fazendo brilhar os olhos que pareciam duas geleiras azuis, exclamou: — Deixe disso, sua tola! Poupe-nos essa boba atitude. Não vê como você faz nossa mãe sofrer?
A rainha empertigou-se orgulhosamente. Como Anigel, usava o traje tradicional da corte ruwendiana para os dias comuns, de cetim sem ornamentos, com mangas e colete rendados. O vestido da princesa era rosa-claro, mas naquela manhã a rainha ordenara às suas damas um vestido e um manto vermelhos como sangue.
Kalanthe disse:
— Meu coração está repleto de mágoa e temo por todos nós, mas conheço o meu dever. Kadiya, não acredite nas profecias dos oddlings. Nossos servos nyssomus fugiram da Cidadela para a segurança do Pântano Labirinto, deixando-nos aqui para enfrentar o inimigo. Quanto às suas pretensões de guerreira... — Ela começou a tossir. Os objetos mágicos lançados pelos invasores haviam ateado fogo nos prédios de madeira do pátio interno e rolos de fumaça erguiam-se sobre as muralhas.
Você deve ficar conosco como mandam sua posição e sua classe.
— Então eu serei sua defensora — exclamou a Princesa Kadiya — e das minhas irmãs. Pois, se o Rei Voltrik conhece a profecia dos oddlings, não deixará viva nenhuma mulher da casa real! Pretendo vender caro a minha vida, e vou me juntar a Lorde Manoparo e aos Companheiros Fiéis que as protegem, e morrer com eles se for meu destino.
— Oh, Kadi, não pode fazer isso — soluçou a Princesa Anigel. — Devemos nos esconder e rezar para que a Dama Branca nos salve.
— A Dama Branca é um mito! — disse Kadiya. — Só nós podemos nos salvar.
— Ela não é um mito — murmurou Anigel, em voz tão baixa que quase foi abafada pelo clamor da luta que se travava a vinte ells dali.
— Talvez não — concordou Haramis. — Mas ao que parece, ela desistiu de guardar este país infeliz. De que outro modo os labornok poderiam ter atravessado o passo, o pântano e atacar a Cidadela impunemente?
— Minhas filhas, acalmem-se! — disse o rei. — Muito em breve o inimigo vai atacar este reduto, e logo terei de deixá-las.
Ordenou que saíssem do balcão aberto e fossem para a sala mais além, das damas reais, mobiliada como um solar. Os pés cobertos de armaduras haviam empurrado para os cantos as almofadas de cores vivas e as cadeiras douradas, e uma armação de tapeçaria estava caída tristemente perto da lareira, ao lado de livros abandonados e de um saltério com o bojo enfeitado partido. O rei então dirigiu-se à sua segunda filha e falou com grande severidade.
— Kadiya, faz mal em atormentar sua mãe e suas irmãs com seu comportamento tolo e essa conversa sobre as crenças dos oddlings. O Rei Voltrik teria pedido a mão de Haramis se desse crédito a esta história absurda de mulheres guerreiras? É meu dever, como senhor deste reino, defendê-lo ou morrer tentando. Mas é seu dever continuar viva e confortar sua mãe e suas irmãs. E pode estar certa de que é um encargo bem mais leve que o da pobre Haramis, que no fim, sem dúvida, terá de se submeter à vontade de Voltrik.
Ouvindo isso, as damas da corte recomeçaram a chorar e a se lamentar e os cavaleiros exclamavam em voz alta, ”Não, nunca!” e era tão grande o tumulto, que mal ouviram o ruído das novas pequenas explosões lá fora, o estridor das armas e os gritos dos feridos e dos agonizantes.
— Quietos! Quietos, todos! — gritou o Rei Krain.
Mas não se aquietaram porque o monarca Krain não reinava por meio da força absoluta, e sim encorajava seus súditos a tratá-lo como um pai e um conselheiro.
Durante quatrocentos, desde a invasão fracassada do rei de Labornok, Pribinik, o Imprudente, a nação viveu em paz. O crime e os problemas domésticos quase não existiam em Ruwenda — a não ser por um ocasional ladrão ou louco homicida e pelas depredações periódicas dos abomináveis skriteks, as quais serviam de pretexto aos cavaleiros para verdadeiras caçadas aventureiras. Durante o longo período de paz a ciência militar quase desapareceu e os Companheiros Fiéis esqueceram tudo que sabiam sobre estratégia e tática. Os reis de Ruwenda davam liberdade quase completa aos seus súditos, desde que prevalecessem a justiça e a tranqüilidade e os impostos não deixassem de enriquecer o tesouro real. Por tradição, Ruwenda não tinha exército efetivo. Os Companheiros Fiéis constituíam a guarda armada do trono, e os fortes, nas colinas, eram guardados por grupos de cidadãos livres do Território de Dylex, que se revezavam nessa tarefa e, por esse motivo, eram isentos do pagamento de impostos. Os senhores de Ruwenda e suas damas, nas mansões, governavam benevolamente seus pequenos feudos, seguindo o exemplo do trono, e todos prosperavam, exceto os preguiçosos, que não mereciam prosperar.
A pequena e isolada Ruwenda parecia ser a terra mais feliz em toda a Península, se não em todo o mundo conhecido... até o dia em que os encantamentos do feiticeiro Orogastus abriram o Passo Vispir para a ambiciosa Labornok, traçando para o exército do Rei Voltrik o caminho secreto através do Pântano Labirinto, até a Cidadela.
Dez dias. Foi o tempo necessário a eles. Nenhuma das tempestades mágicas ou outros desastres que haviam derrotado o Rei Pribinik atormentaram Voltrik. Na verdade, corria o rumor de que os abomináveis skriteks haviam se aliado a ele! Sob a proteção do feiticeiro Orogastus, as forças dos labornoks reduziram rapidamente a escombros os fortes nas colinas, saquearam as cidades vizinhas de Dylex, afugentando os habitantes para os condados remotos do leste, e quase sem encontrar resistência chegaram às muralhas externas da Cidadela. Logo a Cidadela cairia nas mãos de Voltrik, e com ela o reino de Ruwenda.
Enquanto a realeza ruwendiana e seus cortesãos torciam as mãos e choravam, viram outro tremendo clarão seguido por uma explosão ensurdecedora. As paredes espessas da fortaleza estremeceram como uma cabana de varas açoitada pelo vento. Por um momento, dentro e fora da Cidadela fez-se um silêncio total. Então, ergueu-se no ar o rugido de milhares de vozes e o soar triunfante dos clarins. Evidentemente o portão da imensa estrutura central fora aberto com a última explosão e os invasores começavam a entrar.
Então, Lorde Sotolain chegou com a armadura do rei e rapidamente o ajudou a vesti-la e Krain, com um suspiro, ergueu a espada do seu tataravô Karabordo, a qual, ele e seus companheiros sabiam, empunharia com bravura, mas sem eficiência. Nem a magnífica armadura de aço brilhante incrustada com safiras, nem o capacete com a figura em platina de um grande lammergeier, podiam fazer do Rei Krain mais do que ele era — um homem calmo de meia-idade, inteligente e com um grande coração, mas sem nenhuma das qualidades necessárias a um guerreiro.
Logo que o elmo foi colocado, ele fez as últimas despedidas.
— Sempre fui um estudioso e não um lutador, e não me arrependo disso. Por longas gerações nosso amado país conheceu a paz. Fomos protegidos — pelo menos assim nos ensinaram e nos fizeram crer — pela Arquimaga Binah, ela que é chamada de Dama Branca, Dama da Flor, a Guardiã, a zeladora do Trílio Negro. Muitos de nós, aqui presentes neste dia de infortúnio, viram e ouviram quando ela realizou as maravilhas no dia do nascimento das princesas. A Arquimaga nos disse que tudo acabaria bem, mas referiu-se também, misteriosamente, ao destino e a tarefas terríveis que esperavam as filhas da casa real. Não compreendemos suas palavras, e a maioria de nós — até mesmo eu — esqueceu-se completamente delas. Mas, pensemos nessas palavras agora, pois podem nos dar a medida das nossas esperanças. Francamente, não sei onde mais posso procurá-las.
Abriu os braços cobertos de metal e abraçou e beijou ternamente a rainha. Então, foi a vez de Haramis, a única pessoa cujo rosto não estava molhado de lágrimas, depois Kadiya, submissa, e finalmente Anigel, de cabelos dourados, mal contendo os soluços.
Depois de se despedir dos amigos, ele mais uma vez, solenemente, recomendou a defesa da rainha e das princesas ao venerável Lorde Manoparo e aos quatro cavaleiros, que levaram as mãos ao peito num gesto de lealdade e desembainharam suas espadas. Então o rei encaminhou-se para a saída. Com o nobre escudeiro Barnipo à frente levando o escudo real, o rei atravessou a porta do solar real seguido por quase todos os Companheiros Fiéis. Chegara o momento de realizar seu destino e nenhum dos presentes tinha dúvidas sobre qual seria.
Quando a noite caiu naquele dia de conquista, os fogos da Cidadela foram se apagando e a fumaça misturou-se aos miasmas que se erguiam do Pântano. A colina na qual estava a capital de Ruwenda parecia uma ilha num mar de nuvens turbulentas. Cavaleiros labornoks, comandados pelo General Hamil, vitoriosos do último confronto com os Companheiros Fiéis, conduziram o vencido Rei Krain e seu nobre escudeiro Barnipo à presença de Voltrik, do Príncipe Herdeiro Antar e do feiticeiro Orogastus. Algumas dezenas de nobres ruwendianos cativos, fortemente acorrentados e guardados, estavam também presentes na sala do trono para testemunhar a capitulação do seu país. O estandarte de Labornok, escarlate, com três espadas douradas entrecruzadas, pendia da parede atrás do trono, ocupado agora por Voltrik.
Krain, quase morto, sangrando abundantemente de ferimentos profundos no braço direito e na virilha, foi impelido para a frente e forçado a se ajoelhar aos pés do Rei Voltrik por dois cavaleiros de Hamil. Um dos seus captores jogou no chão o amarfanhado escudo azul-celeste de Krain, com o desenho do Trílio Negro quase invisível, e outro cavaleiro jogou sobre ele a espada quebrada do seu tataravô. O próprio Hamil arrancou o elmo de Krain, retirou a tiara de platina incrustada com âmbar e safiras e ergueu-a para que todos vissem. O nobre escudeiro Barnipo, ileso e não acorrentado, tremia, atrás do seu rei, seguro pelas mãos fortes de Lorde Osorkon, segundo em comando de Hamil, um cavaleiro gigantesco com armadura negra ensangüentada.
— Seja bem-vindo, real irmão — Voltrik disse para Krain. O visor colmilhado do seu capacete estava aberto e ele parecia sorrir para o derrotado monarca ruwendiano do interior das mandíbulas abertas de um sáurio fantástico incrustado com pedras preciosas. A armadura entalhada e enfeitada de Voltrik, de aço coberto de ouro, brilhava à luz das tochas e ele recostava-se com os braços na cintura, no trono de Ruwenda, com as pernas elegantemente cruzadas. — Então, agora, submete-se a mim?
— Parece que não tenho muita escolha — disse Krain, num murmúrio rouco.
— Submete-se incondicionalmente — perguntou Voltrik, encostando a tiara ruwendiana no nariz do monarca ferido —, sabendo que desse juramento depende a vida de todos os habitantes da sua Cidadela derrotada?
— Eu me submeto... se poupar também as vidas da minha rainha e das minhas três filhas..
— Isso — disse o feiticeiro Orogastus, com a voz implacável de um gongo da morte — não será possível. Elas devem morrer, como o rei. E como parte da sua submissão, deve nos dizer em que lugar deste edifício em ruínas elas estão escondidas.
— Nunca — disse Krain.
Então, o Príncipe Herdeiro Antar ousou adiantar-se e enfrentar seu pai.
— Mas, senhor, certamente nós não fazemos guerra contra mulheres indefesas!
— Elas devem morrer — repetiu Orogastus, com voz inexpressiva. E o Rei Voltrik fez um gesto de assentimento.
— Seu feiticeiro tem medo delas por causa da ridícula profecia dos oddlings — exclamou Krain. — Mas é uma refinada tolice, Voltrik — uma história para crianças! Há poucos meses estava disposto a se casar com minha filha mais velha, Haramis...
— Mas você desprezou a aliança com Labornok — disse Voltrik, com voz suave, girando a tiara com um dedo como se fosse um simples bastidor de bordado. — E respondeu ao meu delicado pedido com palavras de altivo desprezo.
— O tato nunca foi uma das qualidades dos orgulhosos ruwendianos — observou o General Hamil, com um largo sorriso. — E agora, espero que morra engasgado com o fruto que cultivou durante tanto tempo.
Os cavaleiros e nobres labornoks riram às gargalhadas, até Voltrik erguer a mão.
— Eu confio no poderoso Orogastus, que é meu Grande Ministro de Estado e o Feiticeiro da Corte. Foi ele quem profetizou um grande desastre para minha casa nas mãos de uma mulher da casa real de Ruwenda, não um oddling imundo e ignorante qualquer. Portanto, sua mulher e suas filhas devem morrer, irmão Krain, bem como você. Mas se submeter-se humildemente e as entregar a mim, a sua morte e da sua família será misericordiosa, com um único golpe de espada, e serão poupadas as vidas dos seus súditos que jurarem fidelidade a Labornok.
Krain ergueu o queixo ferido.
— Não me submeto e não entrego minhas mulheres em suas mãos.
Voltrik ergueu a tiara, comprimiu-a entre as luvas de aço da armadura, transformando-a numa massa informe, e a atirou no chão, na frente do Rei Krain, ainda de joelhos.
— Sabe qual será o destino da sua família se não se submetem a mim? E o dos seus cavaleiros aqui acorrentados?
O Rei Krain não respondeu.
Voltrik franziu as sobrancelhas hirsutas e seus dedos impacientes tamborilaram na perneira brilhante de ouro. Vendo que o rei de Ruwenda continuava obstinadamente silencioso, Voltrik ordenou.
— Tragam-me quatro ginetes!
Um capitão labornok apressou-se a obedecer. Os prisioneiros murmuraram, chocados, e o escudeiro Barnipo, pálido de medo, contorceu-se nas mãos do seu captor.
— Ha! — disse o General Hamil, rindo. — Este jovem covarde sabe muito bem o tipo de morte reservado aos que zombam de Labornok. Vejam como sua armadura está limpa — um covarde, sem dúvida. Seria muito instrutivo fazermos com que seja o primeiro a participar desta pequena manifestação da justiça de Sua Majestade.
— Não! Não! — gritou Barnipo. — Deus e os Senhores do Ar, tenham piedade de mim! — Só parou de tentar se libertar freneticamente quando o cavaleiro de armadura negra, Lorde Osorkon, o atingiu no rosto com o punho fechado. Barnipo deixou de lutar, gemendo e chorando.
Nesse momento o capitão labornok entrou na espaçosa sala do trono, acompanhado de quatro cavalariços, cada um conduzindo um grande animal de montaria, ainda equipado e ajaezado. Girando furiosos os olhos vermelhos, arremetendo os chifres, os animais bufavam e pateavam ruidosamente no chão de mármore com os cascos cobertos de metal.
— Não! — gritou Barnipo.
— Sim — disse o Rei Voltrik em voz baixa. Seus olhos encontraram os de Krain. — Vou lhe mostrar, Irmão Real, o que o espera e a todos os seus, se insistir em me desafiar. — Voltou-se para o capitão. — Segure o covarde e amarre cada um dos seus membros a uma sela; depois, com o chicote, faça os animais arremeterem, cada um para um lado, até parti-lo em quatro pedaços.
Com um grito de desespero, Barnipo contorceu-se nos braços do capitão e os cavaleiros ruwendianos começaram a lançar pragas sobre Voltrik até serem silenciados pelas adagas dos captores encostadas nas suas gargantas.
O Rei Krain disse:
— Solte o pobre rapaz e mate-me desse modo em lugar dele.
O feiticeiro Orogastus disse:
— Libertaremos o rapaz e prometemos a você uma morte honrosa, em vez da ignomínia do esquartejamento, se nos revelar o esconderijo das suas mulheres.
— Não — disse Krain.
— Senhor? — perguntou a Voltrik o General Hamil.
O rei labornok levantou-se. O manto roxo-avermelhado flutuou em volta dele, refletindo-se no metal da armadura dourada.
— Krain de Ruwenda, acaba de escolher sua morte. Amarrem o rei aos animais!
— Senhor! Senhor! — disse o escudeiro, chorando. — Permita que seja eu a vítima! Perdoe minha covardia.
— Eu o perdoo de todo o coração, Barni — disse Krain. Os lacaios seguraram o rei, retiraram sua armadura e o deitaram de costas no chão, no centro da sala. Quando começaram a amarrá-lo com cordas ásperas, o sangue correu dos ferimentos reabertos, formando uma poça vermelha sob seu corpo. Durante todo esse tempo, apesar dos gritos revoltados dos prisioneiros cativos e do choro arrependido do escudeiro Barnipo, Krain permaneceu impassível. Os quatro enormes animais relinchavam e se agitavam, excitados, e quando tudo estava pronto, o capitão, em posição de sentido, aguardou as ordens do Rei Voltrik.
Orogastus, então, murmurou alguma coisa no ouvido do seu rei. Com um gesto de assentimento, Voltrik mandou que Lorde Osorkon levasse Barnipo para perto do trono.
— Rapaz — disse o feiticeiro, fixando no apavorado escudeiro seus olhos penetrantes —, está em suas mãos salvar seu senhor desta morte horrível, bem como salvar sua própria pele e a de todos os cativos.
Com esforço, Barnipo conseguiu perguntar:
— Nas minhas mãos, senhor?
— Sim — respondeu Orogastus.
Entre os invasores, o feiticeiro era o único sem armadura, vestido todo de branco, com um manto negro com capuz. Um cordão de platina pendia do seu pescoço com um medalhão pesado, onde estava gravada uma estrela com muitas pontas. Ele tirou o capuz, revelando o rosto sem rugas, de traços regulares, embora o cabelo longo fosse branco como a neve. Com expressão benigna, dirigiu-se ao escudeiro.
— Escute com atenção, rapaz. Faça o que eu digo e poderá salvar a vida da rainha e das três princesas. Confesso que estou surpreso com a coragem demonstrada pelo Rei Krain, e resolvi que meu generoso soberano deve, afinal, se casar com a Princesa Haramis, uma vez que a filha deve ter herdado as virtudes do pai e irá passá-las para seus filhos.
— De verdade, meu senhor? — Uma esperança louca iluminou o rosto do escudeiro.
— De verdade. Assim, para que a Princesa Haramis aceite de bom grado o pedido de casamento, aconselhei Sua Majestade a poupar a vida de todas as mulheres da casa real de Ruwenda. A única coisa que tem a fazer para esse desfecho feliz é dizer-nos onde elas estão escondidas.
Os olhos do escudeiro foram do feiticeiro para o rei e ele hesitou.
— Minha vida também será poupada?
— Por minha coroa — disse Voltrik, tocando a coroa sobre o capacete ameaçador —, você viverá. Mas não demore, pois os animais estão inquietos.
— E o nosso rei?
— Ele deve morrer — disse Orogastus —, pois esta é a nossa lei. Mas você pode fazer com que seja uma morte rápida e indolor. Fale agora.
As lágrimas desciam ainda pelo rosto do jovem.
— Promete por sua honra?
— Juro pelos Senhores do Ar — disse Orogastus. Barnipo respirou fundo.
— Então.. elas estão numa fortaleza secreta sob a capela da torre central, com acesso através de uma passagem no interior do coro, que é aberta empurrando-se a saliência central do grande trílio gravado na parede. Lorde Manoparo e quatro Companheiros Fiéis estão com elas.
Os olhos profundos do feiticeiro brilharam.
— Ah!
O Rei Voltrik e o General Hamil fizeram coro:
— Ah!
— O senhor jurou não fazer mal a elas! — O rosto do jovem ficou rubro e seus lábios tremiam. — Pelos Senhores do Ar...
— Um juramento formidável — disse Orogastus calmamente — para quem acredita nessas fantasias.
— Mas o senhor também jurou! — Barnipo voltou-se apavorado para o rei.
— Jurei poupar sua vida miserável — disse Voltrik — e vou cumprir esse juramento, para que você seja um escravo nas minas pelo resto dos seus míseros dias. — Dizendo isso, desfechou um golpe com o guante de ferro e Barnipo rolou da plataforma, caindo no chão, como morto.
— Meu rei — disse o General Hamil —, vou reunir meus homens e procurar a cadela e suas três crias.
— Não — disse Voltrik. — Meu filho e eu conduziremos a busca. Você se encarrega deste lixo ruwendiano. e do seu miserável líder.
Com um sinal para que o Príncipe Antar o seguisse, Voltrik desceu da plataforma. Chamou vinte cavaleiros e dirigiram-se para a escada em espiral que levava à capela.
Hamil, levando as mãos cobertas pelos guantes à cintura, olhou para os labornoks e seus desgraçados prisioneiros que circundavam a sala, encostados nas paredes. Krain continuava amarrado aos inquietos animais.
— Dispor de prisioneiros acorrentados é uma tarefa muito tediosa — observou Hamil para Osorkon. — Tivemos um dia muito cansativo. Vamos primeiro nos divertir um pouco. — Então, gritou: — Cavalariços! Usem seus chicotes!
No horror que se seguiu, Barnipo recobrou-se rapidamente do desmaio fingido, saiu da sala sem ser visto e subiu correndo a escada dos fundos para avisar a rainha e as princesas do perigo que corriam Barni correu tanto que ficou sem fôlego. Sentia uma dor terrível, como de uma facada, no lado do corpo, e era tamanha a dor de cabeça por causa do golpe desfechado por Voltrik que começou a ter visão dupla. Cambaleando na escada do coro, ouvia ao longe o ruído dos pés com armadura e a voz do inimigo gritando: ”Por aqui!”
A capela estava quase completamente escura e a luz fraca das lâmpadas votivas não chegava até a escada. Mas isso mudou no momento em que o Rei Voltrik e os cavaleiros com tochas acesas passaram pela porta central e amontoaram-se no vestíbulo.
O escudeiro, quase no topo da escada, tomado de pânico, tropeçou e caiu, batendo a cabeça dolorida. Sentiu que perdia as forças e temeu falhar mais uma vez com seu dever.
— Dama Branca! — soluçou, em voz alta. — Ajude-me. Ajude a pobre rainha e as princesas.
Uma brisa suave encheu seus pulmões e sua visão clareou. A cabeça ainda doía, mas ele podia se mover outra vez. Mais como um verme rastejante, dotado de muitas pernas, do que como um homem, arrastou-se até o topo da escada e atravessou o assoalho rachado até a parede que ficava atrás das banquetas do coro. Era uma parede de pedra trabalhada, com o selo real de Ruwenda gravado e pintado na sua superfície, e num campo azul-celeste o heráldico Trílio Negro, com uma saliência dourada no centro.
Barni arrastou-se até ela e apertou a saliência com as duas mãos. Imediatamente um quadrado de pedra girou para dentro, formando uma portinhola pela qual um homem podia passar com dificuldade. Assim que ele entrou e fechou o painel, Lorde Manoparo, com sua barba grisalha e dois outros cavaleiros ruwendianos, Korban e Wederal, entraram na estreita passagem secreta, vindos do esconderijo iluminado, com as espadas desembainhadas.
— Esperem, esperem, sou eu! — gritou o escudeiro com voz rouca, erguendo-se sobre os joelhos.
— Pela Flor! O jovem Barni! — Manoparo embainhou a espada e ajudou o jovem a se levantar. — Vamos, vamos meu jovem..
— Depressa! Se querem salvar as senhoras, tranquem rapidamente a porta externa e destruam o mecanismo do painel para que o inimigo não possa entrar!
Praguejando, Korban e Wederal, com quatro golpes vigorosos das suas espadas, destruíram o mecanismo secreto do painel coberto de madeira. Nesse mesmo instante os inimigos começaram a bater violentamente na parede, no outro lado, com gritos marciais. Então, cessaram as batidas e o silêncio parecia mais ameaçador.
— Foram apanhar um aríete — disse Wederal.
— Ou mais provavelmente foram chamar o feiticeiro! — observou Manoparo. — Voltemos para a fortaleza.
Arrastaram o escudeiro com eles para a câmara secreta, que tinha cerca de sete ells quadrados e estava equipada para um longo sítio, com uma porta maciça de madeira reforçada com ferro e protegida por três vigas de madeira. As paredes eram recobertas por tapeçarias antigas e o chão por tapetes espessos e colchões. Em lugar de janelas, havia dois vãos muito altos e tão estreitos que mal davam passagem para um dedo. Havia uma mesa pequena e uma banqueta onde sentava-se a Rainha Kalanthe, guardada por um quarto cavaleiro, Lorde Jalindo. Caixas de alimentos e garrafões de água e vinho ladeavam a lareira pouco maior do que um braseiro. Um candelabro alto coberto de prata e outros, em nichos, na parede, iluminavam fracamente a sala.
Lorde Manoparo curvou-se na frente da rainha pálida e calma, com as três filhas que se encolhiam contra sua saia. Kalanthe estava usando uma grande coroa de platina, que cintilava com suas esmeraldas e rubis, encimada por um broche de brilhante em forma de sol, com uma gota de âmbar do tamanho de um ovo. No interior do âmbar havia um fóssil do Trílio Negro, do tamanho de uma unha.
— Minha rainha, o inimigo nos encontrou — Manoparo indicou Barnipo encolhido na frente dela. — Este escudeiro nos avisou e procuramos impedir a entrada dele nesta câmara, do melhor modo possível. Mas sem dúvida vão trazer o feiticeiro para quebrar as portas com sua magia negra e acabar com todos nós.
A Princesinha Anigel soltou um grito estridente de terror e não se entregou à histeria porque sua irmã, Kadiya, a esbofeteou rapidamente, mandando-a ficar quieta. Haramis a embalou nos braços, enquanto a rainha interrogava Barnipo.
— E meu real marido?
O escudeiro caiu de joelhos, com as lágrimas descendo pelo rosto sujo.
— Oh, minha senhora, ele está morto e nossa pobre Ruwenda perdida.
Os quatro cavaleiros gemeram surdamente e as princesas reais gritaram, horrorizadas. A Rainha Kalanthe apenas inclinou a cabeça e perguntou:
— Como foi que meu senhor caiu?
— Uma desgraça! — exclamou o jovem. — Que Deus e os Senhores do Ar me perdoem, pois foi minha culpa. — Continuou a se acusar e censurar até Lorde Jalindo colocar a mão no seu ombro.
— Vamos, vamos. Você não tem ainda quinze anos, e nenhum de nós acredita que um homem tão jovem possa ter influência na morte de reis. Conte-nos simplesmente o que aconteceu.
Barni contou. E quando descreveu a morte vergonhosa do Rei Krain, a Princesa Anigel desmaiou nos braços da irmã Haramis e a Princesa Kadiya exclamou, com voz embargada:
— Eles pagarão!
Mas a rainha ficou imóvel, olhando para a porta, no outro lado da sala, segurando no colo a cabeça ensangüentada e molhada de suor do escudeiro do rei, que chorava como se tivesse o coração partido ao meio.
— Não foi culpa sua, pobre Barni — consolou ela. — O malvado Orogastus o enganou. Ninguém o culpa por isso. A culpa é do Rei Voltrik e daquele monstro, o Hamil, que deu a ordem para esquartejar meu amado.
— Eles pagarão — murmurou Kadiya, mas só Haramis ouviu.
De repente ouviram uma grande explosão. Os cavaleiros empunharam suas espadas e colocaram-se lado a lado entre as mulheres e a porta. A rainha levantou-se de um salto, e o escudeiro escorregou para o chão.
— Uma mulher da nossa casa real — disse Kalanthe, com os olhos cintilantes. — É disso que o diabólico Voltrik tem medo! Então, a profecia não é apenas uma invenção dos oddlings, afinal, uma vez que o próprio feiticeiro de Labornok a confirma!
Virou-se para as filhas. Anigel voltara a si e os três pares de olhos fixaram-se na mãe.
— A queda de Labornok deve ser provocada por uma mulher da nossa casa. Vocês viverão, minhas filhas — e provarão que a profecia é verdadeira.
Agora o inimigo atacava a porta do esconderijo com machados e clavas, uma vez que a magia destruidora e explosiva de Orogastus, se fosse usada num espaço tão pequeno, podia derrubar as paredes. A Rainha Kalanthe ergueu então uma das tapeçarias, feita de tecido muito antigo, encontrado ainda em certos lugares da Cidadela, que havia sobrevivido aos fundadores da fortaleza e enchia de espanto aqueles que durante Oitocentos a haviam ocupado. O pano era cinzento e, quando a rainha o puxou para o lado, tornou-se azul e sobre ele moviam-se sombras que ninguém jamais soube dizer o que eram.
Na parede, atrás da maravilhosa tapeçaria, apareceu um pequeno armário, que dava para abrigar apenas uma pessoa. Kalanthe abriu a porta e ordenou:
— Minhas filhas, entrem!
Haramis moveu-se rapidamente, levando com ela Anigel, cujo corpo frágil estremecia ainda com os soluços. O espaço era pouco para duas pessoas e Kadiya,desembainhando sua adaga, disse:
— Não faz mal. Eu fico com minha mãe.
— Para dentro! — ordenou a rainha, com um tom de voz terrível que as princesas jamais tinham ouvido.
Kadiya olhou para ela boquiaberta, depois empurrou e ajeitou as irmãs para poder entrar também no armário. Mas não dava para fechar a porta.
— Uma última coisa — disse a rainha, tirando a coroa e passando-a para as mãos de Haramis. — Agora, rezem, minhas queridas, para que possamos nos encontrar outra vez num mundo melhor.
Deixou cair a tapeçaria. Por uma pequena abertura as três princesas assistiram ao que aconteceu então.
Depois de atacar com as machadinhas de guerra o centro da porta de madeira, começaram a destruir os batentes até soltar as dobradiças de metal. As vigas de madeira desmoronaram e começou a terrível luta final.
O Príncipe Antar, com armadura esmaltada de azul e elmo encimado por duas asas, foi um dos primeiros a passar pela porta destruída. Ele e Lorde Manoparo enfrentaram-se, segurando com as duas mãos as espadas que soavam como sinos a cada golpe. Outros cavaleiros de Labornok entraram e enfrentaram os quatro outros Companheiros Fiéis, enquanto o Rei Voltrik e Orogastus apenas assistiam. A rainha havia recuado para a frente da lareira, procurando ficar o mais distante possível do esconderijo das filhas, que podiam vê-la claramente, bem como a batalha que se travava na sala.
Lorde Manoparo desfechou um golpe certeiro no elmo alado do Príncipe Antar. As presilhas soltaram-se e o capacete caiu. Estranhamente, o rosto do príncipe não estava contorcido com o furor da luta, mas repleto de angústia. Mesmo assim, Antar continuou a lutar com habilidade e grande força e em certo momento, apanhando Lorde Manoparo sem defesa, ergueu a espada e a abaixou com tamanha força sobre o adversário que partiu ao meio o elmo e a cabeça do ruwendiano.
Então Korban e Wederal foram mortalmente feridos e desarmados. Só Lorde Jalindo continuou lutando até ser vencido pela força dos labornoks. Quando caiu o último Companheiro Fiel, os vitoriosos começaram a esquartejar todos com suas espadas.
Oh, o horror! Os olhos da Princesa Kadiya ardiam como fogo e ela rosnava em silêncio, como um filhote de lothok tirado do seio da mãe assassinada. Os bárbaros estavam se divertindo com a carnificina, desmembrando os ruwendianos vencidos e zombando dos seus gritos de agonia. Kadiya mal podia conter o ímpeto de sair do esconderijo e se vingar. Segurando com força sua adaga, espremida entre as duas irmãs, cada músculo do seu corpo estava tenso, pronto para a luta..
— Fique onde está! — sibilou Haramis. — Pela Flor, fique onde está! Quer nos matar a todas?
Anigel tirou do corpete o amuleto do trílio e levou-o aos lábios.
— Rezo para a Dama Branca, guardiã da nossa terra!
— Rezo para que aqueles demónios brutais não nos encontrem — murmurou Haramis, segurando também seu amuleto.
— Rezo para que alguém venha nos salvar — pediu Anigel. Tremendo de medo e de raiva, Kadiya sentiu diminuir a força com que segurava o cabo da adaga. Quase instintivamente, sua mão procurou o decote do seu corpete. Lá estava o amuleto, sob a camisa de seda, morno contra seu coração disparado.
— Eu rezo para que algum dia eu seja aquela que fará com que Voltrik, Antar, o General Hamil e o feiticeiro paguem com seu sangue tudo que fizeram hoje!
— Reze também para se controlar — disse Haramis. — Do contrário, sua tola temeridade pode ser a perdição de todas nós. E pare de se remexer, praga, se não daqui a pouco vamos despencar aos pés de Voltrik.
— Quietas, quietas! Eles podem ouvir — implorou Anigel. O esquartejamento e as risadas dos cruéis cavaleiros tinham cessado e o Rei Voltrik começou a falar.
Relutantemente, Kadiya murmurou uma prece para se controlar. A raiva fervia ainda dentro dela, mas aos poucos foi sendo abafada, como é abafada a fogueira de modo que possa ser reavivada mais tarde, no momento propício.
— Olhe! — murmurou Anigel, com voz apavorada e quase inaudível. — Nossa mãe!
O Rei Voltrik falava com a rainha, evidentemente interrogando-a sobre o paradeiro das princesas. A sala estava abafada e cheia de fumaça, as velas nos nichos, quase no fim, alguns tapetes chamuscados com a queda do grande candelabro. O rei retirou o elmo e os guantes e a julgar por sua expressão feroz era evidente que a Rainha Kalanthe o desafiava. Com o corpo ereto e o escudeiro Barnipo agachado a seus pés, atordoado, ela disse:
— Jamais lhe direi onde estão as minhas filhas.
— Orogastus, obrigue-a a falar! — berrou Voltrik. — Ou descubra as princesas com sua poderosa visão mágica!
— Não posso forçar a vontade dela, meu rei — respondeu o feiticeiro. — Ela está além do medo. E não posso ver as que estão escondidas, como não podia fazer isso na sala do trono. A antiga Cidadela deve estar protegida por algum encantamento misterioso que bloqueia minha visão mágica. Possuo um aparelho mágico que pode realizar esta tarefa, vencendo qualquer obstáculo, mas é muito grande e muito pesado e não pode ser removido do meu abrigo no Monte Brom.
— Então teremos de usar outros meios para soltar a língua desta dama. — Voltrik aproximou-se vagarosamente da rainha com a espada desembainhada e segurou seu braço esquerdo. — Chega, cadela real! Vai me dizer imediatamente onde estão as jovens, ou terá a mão decepada. Se ainda assim não falar, farei o mesmo com a outra mão, depois os pés, em seguida os membros, um por um até conseguir o que quero, pois é assim que Labornok responde à insolência dos seus inimigos.
— Senhor! — exclamou o Príncipe Antar, revoltado. — Ela é uma rainha e essa punição é para escravos rebeldes.
— Silêncio! — ordenou Voltrik. O murmúrio dos labornoks encheu a sala, mas cessou quando Voltrik ergueu a mão com a espada e disse: — Vai falar, mulher?
Então tudo aconteceu tão depressa que os cavaleiros e o príncipe não tiveram tempo de reagir, mas as princesas viram claramente. O escudeiro Barnipo, quase desmaiado, num assomo de energia saltou sobre o Rei Voltrik como um fedok atacando a presa. Desarmado, enterrou os dentes na mão esquerda do rei, a mão que segurava o braço da rainha.
Com um grito de dor, Voltrik recuou, com Barnipo praticamente dependurado nele, e começou a brandir a espada ao acaso. Por desgraça, atingiu o pescoço da rainha que caiu e seu sangue espalhou-se sobre a lareira. Os cavaleiros labornoks, gritando, brandiam suas espadas contra o jovem que continuava com os dentes fincados no braço do rei, mas todos com certo cuidado, para não serem atingidos pela espada enlouquecida de Voltrik. O escudeiro Barnipo, ferido por dezenas de espadas, caiu finalmente, rindo no meio da dor, até o próprio rei decepar sua cabeça.
Então Voltrik deu vazão à sua fúria, praguejando com tamanha violência que seus próprios homens se encolheram, pois a Rainha Kalanthe estava morta, fora do alcance da sua coerção, e as três princesas ainda escondidas.
— O que vamos fazer? — perguntou o Príncipe Antar. Orogastus disse:
— Elas não podem estar longe. Certamente ficaram com a mãe até o momento em que este animalzinho vil — chutou o corpo do escudeiro — chegou aqui por um caminho mais curto, para avisá-las. Devemos revistar toda a fortaleza.
Acalmando-se, Voltrik disse:
— Orogastus fala a verdade. Você, Milotis, com estes cavaleiros, fica encarregado de revistar a capela e a área próxima. Procurem passagens e escadas secretas entre as paredes! Depois disso, revistem a Torre Alta. Antar e Orogastus, venham comigo. Vamos reunir o resto dos nossos homens e revistar esta fortaleza desde o parapeito mais alto até a mais profunda masmorra.
Então, o rei começou a amaldiçoar a alma de Barnipo, o escudeiro que havia arrancado um bom pedaço de carne da sua mão, que agora latejava tremendamente. Orogastus tratou o ferimento, dizendo que Voltrik devia ter muito cuidado, porque a mordida de um ser humano pode provocar a mais séria infecção.
— Que seu braço apodreça — murmurou Kadiya ferozmente — e que o sangue envenenado chegue até o coração já apodrecido de Voltrik!
— E que os Senhores do Ar levem Barni para o mais alto dos céus — murmurou Haramis —, pois com seu ato de bravura poupou nossa mãe da tortura e nos deu mais tempo para nos salvar.
O rei, seu filho e o feiticeiro saíram e, depois de um breve exame da passagem externa da fortaleza, Sir Milotis e seus homens também se retiraram para revistar o coro. Durante alguns minutos fizeram muito barulho, derrubaram móveis e depois desceram para examinar a capela.
— Acho que agora podemos sair — disse Kadiya.
Assim, com as juntas doloridas, tremendo, saíram do armário para a terrível desordem da sala. A realidade da situação pegou-as de repente como um jato de água gelada. Segurando a mão de Haramis, Anigel mordeu o lábio até tirar sangue. Kadiya passou por cima dos corpos até chegar ao da mãe.
— Ela parece estar em paz — admirou-se a jovem. — Seus olhos estão fechados e o rosto tranqüilo. — Apanhando um manto de seda negra, deixado por alguém, ia cobrir o corpo da mãe, quando Haramis disse:
— Tola! E se alguém voltar e vir o corpo coberto? Kadiya concordou.
— Você é mais sábia do que eu, irmã.
— Dê-me o manto — disse Haramis — para embrulhar a coroa. Eu a levarei comigo — embora tenha pouca probabilidade de vir a usá-la.
Anigel deu um grito abafado de medo. Com os olhos cor de safira arregalados, apontou para um canto na sala, ao lado da porta.
Uma pilha de almofadas movia-se e não havia ninguém lá.
— Afastem-se — ordenou Kadiya, desembainhando a adaga, e avançou para a porta. Retirou as almofadas, uma a uma com a ponta da adaga e jogou-as para o lado, até descobrir uma parte do tapete, que se movia, erguida como uma tenda.
— Pela Flor, um alçapão! — disse Haramis. — Depressa, Kadi, puxe o tapete para o lado!
— Oh, tenha cuidado — exclamou Anigel. — Pode ser o inimigo.
— Inimigo inimigo inimigo! — disse uma voz fraca e trémula! — Andem depressa, meninas, do contrário eles vão interceptar nossa fuga.
Quando Kadiya retirou o tapete, as três princesas boquiabertas viram uma criatura pequenina, com um vestido longo de fustão, um xale verde xadrez e avental de couro. O rosto pálido era largo, os lábios grossos e os belos olhos dourados salientavam-se de forma inumana acima das duas narinas muito pequenas. Das orelhas pontudas, que atravessavam dois orifícios do chapéu, pendiam enfeites de prata. As mãos largas de dois dedos com polegares opostos eram manchadas e cheias de cicatrizes, resultado de muitos anos no preparo de poções estranhas.
— Immu! — exclamou Anigel, num transporte de alegria e alívio. — Querida Immu, você veio nos salvar, afinal. Pensamos que tinha fugido com os outros oddlings.
— Fugido fugido fugido! Que bobagem! — Immu subiu para a sala e num gesto dramático apontou para a abertura no chão. — Desçam aquela escada, pois preciso arranjar um jeito de disfarçar este alçapão.
Haramis e Anigel seguraram as saias longas e desceram desajeitadamente, mas Kadiya moveu-se ágil como um vart da floresta. Na passagem rústica outra surpresa as esperava.
— Uzun! — exclamou Haramis. — E Jagun também! As duas outras pequenas criaturas seguravam lanternas de luz verde, contendo vermes luminosos dos pântanos. Eram nyssomus, como Immu. Jagun estava com um boné de caçador de pele de fedok e roupa de couro marrom muito parecida com a de Kadiya. O músico Uzun estava com sua bata de sempre, de veludo marrom bordado. Seu gorro de brocado dourado estava cheio de teias de lingits da passagem secreta. Kadiya abraçou seu pequeno mentor.
— Você não nos abandonou, Jagun!
— Abandonar! Abandonar! — O Mestre dos Animais estava indignado. — Nós simplesmente nos escondemos, o que era a coisa mais prudente a fazer. Só vocês, os humanos, são bastante tolos para ficarem parados como togars mesmerizados ao luar, vendo a morte marchar pela estrada até chegar à sua porta!
— A honra exigia que defendêssemos a Cidadela — disse Kadiya, zangada.
— Muito bem, vejam o que sua honra lhes valeu — disse Uzun, o músico. — Se tivessem fugido para o Pântano Labirinto, para nossa gente, em Trevista, nós os teríamos acolhido.
E depois? — perguntou Kadiya.
Depois. — O Mestre dos Animais ergueu os ombros estreitos. — Podiam ficar morando conosco.
— Mas este é nosso lar — protestou Anigel gentilmente.
— E agora é deles — disse Immu, com voz seca. Tinha acabado de camuflar o alçapão e desceu a escada, apanhando sua lanterna. — E estão dispostos a acabar com vocês. Conosco também, se nos apanharem.
— Mas, de qualquer modo, vocês vieram nos salvar — disse Anigel, com voz suave. Segurava o amuleto do trílio. — A Dama Branca atendeu a nossas preces.
— Tem razão — Uzun desenhou reverentemente no ar um sinal cabalístico com três pontas. — Meus conhecimentos de magia doméstica são muito limitados, como sabem, queridas princesas. Sou muito melhor com a harpa e a flauta! Mas ontem eu fiz a mágica da água, para saber se nosso destino era ficar com os humanos aos quais servimos há tanto tempo ou voltar para nosso povo, e a Arquimaga falou.
Haramis disse:
— Arquimaga! É um dos nomes da Dama Branca!
— Dama dama dama! — censurou Immu. — Fique quieta, menina, e deixe Uzun explicar, pois precisamos sair daqui imediatamente.
Haramis abaixou a cabeça.
— Continue, amigo Uzun.
— Na verdade, a Dama Branca chama-se Binah. Arquimaga é seu título, pois ela é uma feiticeira, a mais poderosa de toda a Península.
— Ou era — disse Jagun sombriamente. — Ela está morrendo, está muito velha, e seus poderes enfraquecidos não podem vencer os do terrível Orogastus.
— Temos ordem de levá-las até ela — disse Uzun.
— Por quê? — perguntou Kadiya, agressivamente. — Se ela está morrendo, pouco pode ajudar, e não é hora para visita a doentes.
Haramis acrescentou:
—- Na minha opinião, faremos melhor indo para Trevista. La podemos esperar o fim das chuvas de inverno, que chegarão dentro de poucas semanas. Talvez mais tarde possamos nos disfarçar e viajar com uma caravana, alcançando a costa e tomando um navio para Var. O Rei Fiodelon sem dúvida nos concederá santuário.
Uzun falou com dignidade:
— Quanto a esses planos, não sei de nada. A Arquimaga nos encarregou de levá-las até ela — assim como nos encarregou, há muitos longos anos, de servir aos humanos deste castelo, prevendo um dia de grande necessidade para todos os povos que habitam o Pântano Labirinto.
— Se hoje não é esse dia — disse Immu — eu sou um voluminal de rabo enrolado!
Fechou com força os lábios grossos e inclinou a cabeça para o lado, escutando, movendo as orelhas e balançando os brincos de prata, que pareciam piscar na luz verde dos vermes luminosos.
— Eles saem da capela — disse ela, afinal. — Mas outros vão continuar a busca na torre central, seguindo as ordens de Voltrik. Até os três lacaios do feiticeiro, que são chamados de suas Vozes e que têm pacto com o Skritek, fazem parte da busca! Está na hora de sairmos daqui.
— Haramis, filha mais velha do rei, você vem comigo — disse Uzun. — Jagun e Immu seguirão outro caminho, com suas irmãs. Ordens da Arquimaga.
Por um momento parecia que Haramis ia recusar. Abandonar as irmãs? Levou a mão ao peito e segurou o amuleto que nunca havia deixado de usar desde o dia do seu nascimento.
— Mas eu não posso deixá-las! Sou a mais velha, herdeira do trono, responsável por elas. E sempre que é preciso, sou eu quem toma as decisões.
— Hara, faça o que ele diz — recomendou Anigel. — Confie na Dama Branca.
— Minhas irmãs, isso não me agrada — disse Kadiya. Sua testa bronzeada de sol estava franzida e seu cabelo, arruivado como o da rainha, despenteado, escapando das tranças. — Se ficarmos juntas, minha adaga nos oferece alguma proteção. Eu daria alegremente minha vida.
— Vida vida vida! — Immu estava perdendo a paciência. — Por que você é sempre tão exaltada? E por que Haramis deve tomar as decisões? Anigel não é tão decidida quanto vocês duas, porém ela demonstra grande sabedoria! Diga a elas, Uzun! Diga a elas as outras palavras da Arquimaga!
— Eu não as repeti — admitiu o músico timidamente — para não assustá-las. A Arquimaga Binah ordena a presença das três porque não estão preparadas para seguir seu grande destino. Na verdade, vocês nem sequer o conhecem.
Haramis e Kadiya ficaram revoltadas, mas Uzun continuou.
— Vocês três, Pétalas do Trílio Vivo, estão destinadas a salvar esta terra do jugo opressor do Rei Voltrik e de Orogastus, mas somente quando suas falhas e fraquezas forem corrigidas poderão ter sucesso. A Arquimaga lhes dirá como isso pode ser feito.
Anigel segurou as mãos das irmãs.
— Hara..Kadi..por favor!
Disfarçando a fúria que cintilava nos seus olhos, Kadiya inclinou a cabeça, concordando. Logo depois, Haramis disse:
— Está bem.
— Pela Flor, é mais do que tempo! — exclamou Immu. E continuou: — Haramis, você deve acompanhar Uzun. Anigel e Kadiya, venham comigo e com Jagun.
Assim dizendo, a mulher oddling empurrou Anigel pela passagem estreita e o caçador as seguiu, conduzindo Kadiya como um fazendeiro conduz seus togars. Num momento a luz das lanternas vivas desapareceu na escuridão.
— E nós dois devemos partir juntos — Haramis disse para o músico. — Velho amigo, espero que a Dama Branca tenha reforçado bastante sua mágica, pois suas canções para a flauta, embora excelentes, não deterão por muito tempo os guerreiros de Labornok nem seu feiticeiro criador de tempestades.
— Também temo isso, princesa — admitiu Uzun. — Mas confio na Arquimaga, como você deve também confiar. Ela ordenou que eu a levasse ao topo da Torre Alta da grande fortaleza.
Haramis sobressaltou-se, Seu rosto pálido, emoldurado pelos cabelos negros, destacava-se, espectral, no escuro.
— Ficaremos encurralados lá em cima! Os inimigos sem dúvida nos encontrarão! Oh, por que não dei ouvidos a Kadi?
— Venha — insistiu Uzun, correndo na frente com a lanterna.
Haramis não teve outra escolha senão segui-lo.
Kadiya, Anigel e os dois oddlings percorreram os espaços escuros e estreitos entre os muros de pedra da torre central da Cidadela, passando às vezes por outras portas secretas com seus maquinismos enferrujados e cobertos com a poeira dos anos. Finalmente, depois de uma escada íngreme, chegaram à passagem de onde podiam ver a sala do trono, através de um orifício aberto na parede.
Jagun olhou por um deles e viu a sala agora silenciosa e sem vida. Então Immu olhou também. Quando chegou sua vez, a Princesa Kadiya, com um grito abafado de dor, bateu com os punhos fechados na parede de pedra, chorando silenciosamente.
Pediram à Princesa Anigel para não olhar, temendo que a cena sinistra a fizesse perder a razão, mas ela ficou ao lado de Jagun, esperando, em silêncio. Então Anigel viu, do alto, os restos mutilados dos Companheiros Fiéis e do Rei Krain, e para espanto dos outros três, nem tremeu, nem chorou, apenas fechou os olhos e segurou com força seu amuleto do trílio.
Depois de um momento, com um suspiro doloroso, ela perguntou:
— Immu, você é velha e sábia. Diga-me por que os labornoks fizeram isto, quando meu pai e seus cavaleiros já estavam vencidos e em suas mãos?
Para alguém como você é difícil compreender, criança, você é gentil e amorosa, e só conheceu amor e bondade durante toda sua vida. Mas existem aqueles para quem a crueldade significa um prazer sinistro, uma imensa sensação de poder. Eles são almas mesquinhas e medrosas, submetidos a pessoas que os tratam com crueldade. Sem encontrar felicidade na vida, tornam-se escravos da mais vil forma de luxúria — o prazer de infligir sofrimento e destruição aos outros. A crueldade faz com que se sintam superiores. Se sentem mais vivos com a morte de outras pessoas. Desafiam o Criador destruindo a criação. Desprezam o amor e abraçam o ódio, porque só o ódio acende suas almas frias e estagnadas. Não há piedade, nem drama de consciência, nem remorso na alma viciada na crueldade. Apenas uma sede constante por mais crueldade, uma sede que não pode ser saciada. Os bons não podem tratá-los com bondade porque eles não sabem o que é o amor e o confundem com fraqueza. Por esse motivo você, uma princesa gentil e amorosa, deve aprender a tratar essas pessoas com dureza.
— Oh, eu jamais poderia — disse Anigel, tremendo. — Jamais — nem mesmo depois de ver essa cena terrível!
A Princesa Kadiya abraçou a irmã ternamente.
— Não se preocupe, querida Ani. Eu me encarrego de dar a esses monstros o que eles merecem.
Então Jagun as fez continuar a fuga e andaram e andaram, descendo cada vez mais para os profundos subterrâneos da Cidadela. Finalmente, chegaram a um muro novo de tijolos, como se fosse o fim de um beco sem saída.
Anigel, em pânico, começou a chorar. Enquanto Immu a acalmava, Jagun chegou sua luz perto do muro e tamborilou levemente com os dedos na parede, primeiro de um lado, depois do outro. De repente, uma parte do muro de tijolos moveu-se para o lado, viram a luz das tochas, o cheiro familiar de malte e as princesas imediatamente perceberam onde estavam. Passaram entre as filas de barris e grandes recipientes de cobre, entre as poças de cerveja, no chão, pois estavam na destilaria da Cidadela, supervisionada por Immu. Todos os empregados tinham fugido, os fogos estavam apagados e o enorme caldeirão de mosto de cerveja abandonado.
Conduzidos agora por Immu, entraram no depósito de grãos e removeram uma pilha de sacos encostada na parede, revelando uma porta de madeira embolorada que gemeu e estalou quando Jagun a abriu, usando um atiçador de ferro. A porta levava a uma escada íngreme feita na pedra, úmida e escorregadia por causa da água que pingava das aberturas no teto. Desceram entre as paredes de pedra que cintilavam cada vez que as lanternas se refletiam nas poças de lama oleosa.
— Esta passagem leva às profundezas da Cidadela — disse lagun. — Aos calabouços e masmorras, cisternas e esgotos jamais vistos por olhos ruwendianos, que foram construídos pelos Desaparecidos.
Nas passagens superiores tinham visto algumas lingits fazendo suas teias, criaturas pequeninas e inofensivas que se alimentavam de insetos domésticos. Mas no fundo da escada chegaram a uma câmara de teto baixo, do qual pendiam estalactites de lama entre as quais habitavam lingits muito maiores, quase do tamanho de uma fruta ladu e com dentes ameaçadores. As teias dessas criaturas eram malfeitas e pegajosas, parecendo grandes lençóis negros. Jagun e Kadiya abriram passagem entre elas, cortando-as com suas adagas. Anigel estremeceu e recuou enojada quando Immu começou a afastar com os pés as indignadas criaturas que sibilavam e chiavam, tentando morder os sapatos e as botas dos intrusos.
Vencido esse obstáculo, desceram outro lance de escada cavada na rocha e o fedor de água podre tornou-se extremamente forte. Chegaram a um portão enferrujado semi-aberto. Depois dele, havia um portal sem grades e, nas paredes, suportes vazios de tochas e ganchos com molhos de chaves dependurados, tão corroídos pelo azinhavre que caíram em pedaços quando Kadiya os tocou. Poças d’água espalhavam-se pelo chão e quando, cada vez mais enlameados, atravessaram apressadamente um corredor, a escuridão se amainou e viram adiante uma luz amarelada.
Entraram por um arco numa sala grande e as duas jovens, com exclamações de surpresa, verificaram que era uma espécie de prisão, circundada por celas imundas, com o chão, o teto e as paredes cobertos por uma substância pegajosa e brilhante. Criaturas pequenas e disformes moviam-se preguiçosamente por toda parte, deixando uma trilha viscosa atrás delas.
— São as preguiças do limo — disse Jagun. — Habitam também as regiões mais remotas do Pântano Labirinto.
— Que nojo! — exclamou Anigel. Apontou com horror para uma cela cuja porta tinha caído do batente apodrecido, revelando um esqueleto ainda preso à parede por correntes enferrujadas. As cavidades oculares cintilavam, cheias de preguiças do limo.
— Que lugar nojento. Veja! Naquele canto, instrumentos de tortura enferrujados. E essas coisas pegajosas e horríveis.! Parecem nos espiar de cada abertura e de cada canto. Vejam, este balde velho está cheio delas. Oh, uma está subindo no meu sapato! — Tentou em vão livrar-se da coisa grudenta, passando o sapato numa saliência de rocha, estremecendo de nojo, e depois começou a chorar.
Immu correu para sua querida princesa e, desembainhando a adaga que levava sob o avental, raspou com a lâmina o verme nojento e o atirou para longe. Depois, com um lenço seco, limpou o rosto enlameado e molhado de lágrimas de Anigel, murmurando palavras de conforto.
— Ainda temos de andar muito? — Kadiya perguntou para Jagun. — As sapatilhas da corte da minha pobre irmã não oferecem proteção contra a umidade e seu vestido e manto leves estão encharcados. Ela pode morrer se continuar assim.
— Encontrarão roupas secas e aquecidas à sua espera — disse Jagun —, mas vamos nos molhar muito mais antes de sairmos deste lugar. — Escute!
Ficaram imóveis. Jagun tirou seu boné de caça para melhor mover as orelhas longas e pontudas. Seu rosto parecia uma máscara, com a pele esticada sobre os ossos, os olhos como dois globos cintilantes de âmbar, os lábios largos entreabertos deixando ver as presas, raramente notadas pelos humanos, lembrando que, no passado, até os pacíficos nyssomus eram caçadores equipados com algo mais do que lanças e zarabatanas.
As jovens ouviam apenas o tilintar das gotas d’água que pingavam do teto, mas Jagun disse:
— Eles nos seguiram! Provavelmente descobriram nossas pegadas na destilaria. Depressa!
Jagun correu para uma pequena abertura no outro lado da masmorra, que dava para outra escada íngreme. Tinha uma espécie de corrimão, da altura da cintura dos oddlings, o que ajudava muito, porque os degraus eram escorregadios. As jovens, segurando com firmeza no corrimão, desceram correndo atrás dos oddlings, sem notar que iam deixando para trás as marcas levemente luminosas dos pés, que se tornavam menos acentuadas à medida que desciam.
As lanternas balançavam loucamente nas mãos dos oddlings, sem mostrar nada do que tinham à frente. Terminada a escada, chegaram a uma câmara cavernosa e escura, com água e lama que chegavam até os joelhos. A sala estava cheia de estranhos aparelhos enferrujados, canos partidos mais grossos do que troncos de árvores, que abrigavam, além das preguiças do limo, grandes criaturas com asas que fugiam assustadas, piando e chiando na escuridão. Jagun as levou para uma plataforma circular cimentada, no centro da sala. No meio havia um buraco redondo e negro com cerca de dois ells de largura, circundado por uma mureta baixa de pedra.
Agora podiam ouvir o tilintar ainda distante das armaduras e vozes humanas. Anigel gritou, aterrorizada. Jagun espiou para dentro do poço e atirou uma pedra na abertura redonda. Depois de um longo tempo, ouviram o som distante da pedra chegando ao fundo.
— Ótimo! — exclamou ele. — Como estamos ainda na estação seca, eu temia que não houvesse água na grande cisterna. Mas está tudo bem e nossa rota de fuga está aberta. — Voltou-se para Kadiya: — Venha, meu falcão corajoso! A cisterna é o antigo reservatório de água da Cidadela, construída muito tempo antes de o edifício atingir o tamanho que tem hoje. É alimentada por um cano que vem do Rio Mutar, ao norte da colina da Cidadela. Por ordem da Arquimaga, meu irmão Raphaun levou um barco a remo para a abertura secreta da tubulação. Tudo que temos a fazer é saltar.
— Saltar? — repetiu Kadiya, incrédula.
Jagun prendeu a lanterna no cinto. Um pouco de água não ia fazer mal.
— Eu vou primeiro e ajudo vocês quando caírem na água.
— Mas eu não sei nadar! — choramingou Anigel.
Nós três sabemos, queridinha — disse Immu, procurando encorajá-la. — Vamos segurá-la.
Os labornoks aproximavam-se cada vez mais.
— Não temos tempo a perder — disse Jagun. — Eu já vou!
Com um aceno alegre, subiu na borda do poço e desapareceu. Ouviram o ruído distante do corpo caindo na água e a voz abafada.
— Saltem! Está tudo bem! Kadiya respirou fundo.
— Senhores do Ar, dêem-me coragem!
Segurando o amuleto do trílio, subiu na borda e saltou antes que o pânico crescente a imobilizasse.
Começou a cair.
Dama Branca, ajude-me! Oh, faça-me cair suavemente
Ela flutuou.
O que é isto? O medo de Kadiya transformou-se em espanto. Continuava a segurar o amuleto. Uma brisa leve, que parecia soprar para cima, no escuro, a levava lentamente para o fundo. Para baixo, mais para baixo — e então mergulhou na água fria como uma faca numa bainha engraxada. Kadiya estava boiando. A mão forte de Jagun a conduziu até a borda de pedra.
— É uma trilha estreita — disse o oddling. — Suba que eu passo a lanterna.
Mas Kadiya não subiu. Intrigada, segurando na borda da cisterna, no escuro, com a água pingando nos olhos, ela murmurou:
— Jagun. velho amigo. eu não caí, mas flutuei no ar como uma semente alada de salith.
— O que está dizendo, menina? — A voz do oddling, geralmente bondosa e calma, estava áspera.
— Eu segurei meu amuleto do trílio e rezei para chegar suavemente ao fundo, e aconteceu. Os próprios Senhores do Ar me ampararam.
— Deus Triúne! Isso não pode ser!
— Eu flutuei, estou dizendo! E caí suavemente na água.
De repente Jagun ergueu a lanterna e a colocou na margem da cisterna. Kadiya viu a criaturinha na água escura, ao seu lado, os olhos imensos, arregalados, o rosto crispado num misto de consternação e ansiedade.
- A profecia — mas não temos tempo para isso! — gemeu ele. — O mistériotem de esperar até que estejamos a salvo. — Levantou a cabeça e chamou a Princesa Anigel, suas palavras ecoando no escuro vazio.
Lá em cima, na câmara do poço, Anigel ouviu e aproximou-se da borda, com Immu a seu lado, encorajando-a.
— Salte! — insistiu a voz distante. — Salte, filha do Rei Krain. Não tema!
Então, ouviram a voz de Kadiya, estranhamente exultante.
— Salte, Ani! Segure com força seu amuleto e reze para cair lentamente, que vai acontecer! O amuleto do trílio é mágico e faz o que nós mandamos!
— O que é isso? — Immu inclinou-se na borda do poço. — Princesa Kadiya! Isso aconteceu de verdade?
— Aconteceu, aconteceu, querida Immu! E pensar que eu nunca suspeitei!... Salte, Ani, e confie na dádiva da Dama Branca!
Anigel cerrou os dentes, segurou com força o amuleto e começou a tremer com tanta violência que Immu teve medo de que ela fosse ter um ataque.
— Não posso saltar! Estou com medo! E se a mágica não funcionar para mim?
Uma luz fraca e alaranjada apareceu na escada. O ruído metálico das armaduras e das armas misturava-se às vozes dos homens praguejando contra as preguiças do limo. Alguém gritou: ”Príncipe Antar! Por aqui! Siga as pegadas luminosas na escada!”
— Você precisa saltar! — implorou Immu. — Minha querida Ani, logo eles estarão aqui. Venha, deixe que eu pegue sua mão, você segura o amuleto com a outra e saltamos juntas.
Mas a jovem recuou, afastando-se da borda do poço com os olhos arregalados.
— Não! Não!
A voz de Jagun subiu cavernosa lá do fundo.
— O que estão esperando, mulheres tolas? Depressa! Os cavaleiros não podem nos seguir porque se afogariam com o Peso das armaduras. Saltem. Saltem!
— A princesa está com medo e eu não posso abandonála — gritou Immu.
— Então, dê um empurrão nela, sua boba! — berrou Jagun.
Immu voltou-se para a princesa apavorada e ergueu a lanterna, mas a jovem recuou outra vez, balançando a cabeça, com os olhos esgazeados e uma expressão de medo louco. A pequena oddling segurou o pulso de Anigel e a puxou para o poço, mas a princesa resistiu. As duas escorregaram e caíram da borda do poço na lama rasa, rolando e gritando como skriteks acuando a presa.
Foi assim que o Príncipe Antar e seus homens as encontraram e as fizeram prisioneiras.
Os homens as ergueram à força da lama pegajosa e Anigel e Immu, encharcadas e chorando, ficaram de pé, de cabeça baixa no meio dos doze homens armados que seguravam bem alto suas tochas e diziam gracejos pesados. Mas o Príncipe Antar com expressão severa perguntou:
— Onde estão as outras?
Immu mostrou para ele sua língua longa e preensível. Um dos cavaleiros desembainhou a espada e a teria abatido se o príncipe não tivesse ordenado.
— Pare, Rinutar!
O homem recuou, resmungando.
Gentilmente, o príncipe aproximou-se da Princesa Anigel, suja e imóvel, e viu o rosto sem expressão e os olhos sem vida.
— Senhora — perguntou ele —, eles desceram pelo poço? Anigel disse, com voz suave:
— Sim. Eles escaparam. Portanto, pode nos matar, mas lembre-se de que agora minha irmã Kadiya é dona de uma grande mágica e algum dia vai se vingar das mortes horríveis perpetradas por vocês hoje.
Os cavaleiros curiosos começaram a fazer perguntas, mas Anigel ficou calada.
— Devo matá-las, meu príncipe? — perguntou Sir Rinutar.
— Não. Devem ser interrogadas para nos dizer que tipo de encantamento — se for verdade — se opõe à nossa posse de Ruwenda.
— Permita-me então me encarregar da miserável oddling — disse Rinutar ansioso, embainhando a espada e empunhando um punhal fino. — Se eu brincar um pouco com a criatura, na frente da princesa, logo ela nos dirá o que queremos saber.
— Oh, não! Por favor, não. — Anigel terminou a frase com um gemido e desmaiou, caindo outra vez na água cheia de lama.
O Príncipe Antar inclinou-se para erguê-la e quando tomou nos braços o corpo frágil e olhou para o rosto pálido à luz dançante das tochas, pensou que jamais vira uma mulher tão bela, apesar de toda a tristeza e de toda a lama. Sentiu-se feliz por não ter de concordar com a tortura da velha oddling, e muito menos matar aquela bela e indefesa criaturinha, cuja cabeça repousava contra sua armadura.
— Não podemos fazer mais nada aqui —disse o príncipe. — Está claro que os outros conseguiram fugir e que não podemos segui-los. Devemos encerrar esta perseguição e levar as prisioneiras ao meu Real Progenitor. Deixemos que ele resolva.
Os cavaleiros concordaram com entusiasmo, pois estavam ansiosos por deixar os subterrâneos sinistros da Cidadela. Antar mandou que seu marechal, Sir Owanon, carregasse Immu nos ombros e ele fez o mesmo com a Princesa Anigel. Começaram então a longa e lenta subida.
Haramis correu, acompanhando os passos miúdos e irregulares do oddling músico da corte, e naquela fuga arrojada descobriu coisas sobre a própria coragem — ou a falta dela — que nunca teria imaginado.
Subiram através de passagens secretas e de escadas escuras, cada vez mais cobertas de poeira e teias, lugares onde, Uzun garantiu, ninguém havia estado desde que os primeiros ruwendianos tomaram a antiga Cidadela. Finalmente, terminou o caminho secreto e foram obrigados a sair da passagem e enfrentar a larga escada de pedra em espiral da torre central da Cidadela, feita pelos ruwendianos. As lâmpadas de ferro trançado com tubos de óleo e pavios, pregadas nas paredes, estavam acesas e tudo indicava que os perseguidores labornoks estavam no outro lado da torre.
Haramis e Uzun galgaram laboriosamente, andar após andar, passaram pela enorme biblioteca real, onde a princesa havia passado tantos dias felizes, estudando. O andar da biblioteca estava deserto, mas Haramis deixou escapar uma exclamação indignada quando viu as estantes caídas e os volumes preciosos espalhados pelo chão. Porém, nada parecia ter sido destruído deliberadamente. Sem dúvida, Orogastus deu ordens para que isto não fosse destruído, pensou ela. No lugar dele, eu certamente faria o mesmo.
Embora com relutância, Haramis sentia uma grande admiração pelo feiticeiro inimigo, um homem que comandava o relâmpago, que havia traçado a trilha complexa através do pântano Labirinto com sua clarividência. A queda de Ruwenda era devida somente ao poder de Orogastus, e Haramis respeitava a competência, mesmo quando usada contra ela e contra os seus. O feiticeiro despertava sua curiosidade e, enquanto acompanhava Uzun, pensava no inimigo. Que espécie de homem ele pode ser, se for realmente um homem?
Haramis e Uzun passaram cautelosamente pelo portão de ferro da antecâmara, no décimo quinto andar da torre, onde eram guardadas as jóias da coroa. A princesa hesitou quando ouviu o ruído dos invasores atrás da porta fechada da casaforte, mas não apareceu ninguém. Continuaram a subida e passaram pelo andar seguinte, trancado e selado, onde eram guardadas pedras preciosas, lapidadas e em bruto, e o dinheiro recentemente cunhado, a caminho do décimo sétimo andar, uma espécie de oficina fortificada, onde os objetos preciosos danificados eram reparados ou derretidos. Haramis sabia que faltavam apenas dois andares para chegarem ao telhado. Primeiro um pequeno arsenal, depois o dormitório dos guardas e de outros trabalhadores da torre.
Uzun parou para descansar. Tirou o gorro, enxugou a testa enrugada e procurou retomar o fôlego. Haramis o observava preocupada. O músico oddling era seu amigo desde a infância, e ela gostava dele e confiava na sua lealdade, embora Uzun não fosse humano. Entre os nativos, os nyssomus eram os que mais se pareciam com os humanos, mas o vermelho do seu sangue era opaco e escuro, seus ossos tinham formas estranhas e seus corações batiam no outro lado do peito. Todos afirmavam possuir a Visão e, na verdade, às vezes podiam se comunicar entre si, a distância, por meio da fala sem palavras. Mas para a maioria dos ruwendianos eram seres inferiores, incultos e quase incivilizados, embora aprendessem com facilidade os costumes dos humanos e às vezes demonstrassem verdadeiro talento para as artes e o artesanato. Quando era pequena, Haramis pensava que os oddlings nyssomus pertenciam ao rei, seu pai, como animais de estimação. Mas o rei explicou que os pequenos nativos eram livres, e tinham alma, e deviam ser tratados como pessoas de verdade..
Quando Uzun se refez, prosseguiram na subida cautelosa. Quando estavam próximos do último lance de escada, Uzun fez Haramis parar, enquanto ele ia verificar se o caminho estava livre. Crescia a preocupação da princesa com o que ia acontecer quando chegassem às ameias da torre. Enquanto Uzun espiava sobre a borda do- último andar, Haramis franziu a testa e enrolou o manto no corpo. Um vento frio assobiava entre os vãos abertos, quase apagando as chamas dos archotes presos nas paredes.
Uzun não a chamou para continuar a subida e Haramis sobressaltou-se. Ele desceu de onde estava com uma garra grossa encostada nos lábios e uma expressão de alarme nos olhos ambarinos. Quando chegou perto dela, murmurou:
— Só um cavaleiro de guarda, princesa. Sem dúvida os outros estão revistando o resto desse andar.
— Eu sabia! — disse Haramis em voz baixa. — Estamos encurralados, com soldados inimigos acima e abaixo de nós! O plano da sua Dama Branca falhou.
— Fale baixo — implorou o oddling. — Acho que podemos passar, mas terá de ser corajosa e rápida. Pode suspender a saia do seu vestido?
Haramis assentiu com ar sombrio, tirou o manto e pôs a coroa sobre ele cuidadosamente. Então, passou a ponta da saia por dentro do cinto incrustado com pedras preciosas, deixando-a cair como um blusão até os joelhos. Enrolou a coroa no manto, amarrou as pontas e dependurou no ombro. Olhou para Uzun.
— E agora?
— Há uma escada de madeira que vai dar no parapeito, a uns quatro ells de onde está o guarda. Ele foi ferido e está com o braço esquerdo imobilizado, mas o direito, o braço da espada, está perfeito. Provavelmente está cansado e farto dessa busca inútil, que o privou do prazer do saque, das comidas e das bebidas.
— E do prazer de violentar as mulheres da Cidadela — acrescentou Haramis. — Sem dúvida esse será meu destino, antes de ter o pescoço cortado e ser jogada nos esgotos.
Os olhos de Uzun estavam repletos de censura.
— Princesa, você só será molestada sobre o meu cadáver. Confie na Dama Branca e ouça meu plano, eu lhe peço.
Haramis girou nervosamente o amuleto do trílio entre os dedos, passando o polegar repetidamente no âmbar que continha o pequeno botão fossilizado. Não duvido da sua dedicação pensou ela, mas passar ”sobre seu cadáver” não será difícil para os soldados. Para não ferir os sentimentos do pequeno oddling, disse apenas:
Estou ouvindo, Uzun.
Eu vou sair de repente daqui e correr para o cavaleiro, fingindo que estou morrendo de medo.
— Se estiver tão assustado quanto eu, isso não será difícil.
— Vou saltar e me contorcer, fazendo meus olhos saírem das órbitas e recolhendo-os, seguidamente.
Haramis sabia que isso representava um grande sacrifício. Só quando era pequena vira Uzun fazer isso, uma vez ou outra, para divertir as princesas. Porém, antes dos seis anos tinha aprendido que um nyssomu adulto jamais demonstra tanta falta de controle, a não ser que esteja fora de si.
— Eu me encarrego de distrair o vilão — continuou Uzun.
— Enquanto isso, você sobe na escada de madeira e abre o alçapão. Então eu corro, subo atrás de você, derrubamos a escada e trancamos com segurança a porta do alçapão.
— E depois? Mesmo que seja possível deter os soldados — e supondo que seu feiticeiro não faça uso de um dos seus malditos relâmpagos — o topo da torre não é lugar para ficar sitiado. É claro que podemos morrer heroicamente de fome e de sede, mas isso não vai ajudar muito Ruwenda!
— Eu não sei o que acontece depois! — disse Uzun, irritado. — Apenas obedeço às ordens da Dama Branca! Oh, princesa, será que não pode esquecer seu constante questionamento? Mais cavaleiros podem aparecer a qualquer minuto! Dê-me apenas um momento para distrair o homem e saia daqui depressa.
Ele subiu os últimos degraus e entrou na ante-sala do guarda.
Haramis ouviu o soldado praguejar, e depois o ruído da espada sendo tirada da bainha. Mas Uzun estava cacarejando como um doido, dançando no assoalho de madeira, e a linguagem baixa do guarda transformou-se numa gargalhada. Tensa, Haramis espiou por cima do último degrau e viu o músico, normalmente sereno, pulando e girando, tatalando comicamente as longas orelhas, como as asas de um pássaro noturno embriagado com o fermento das frutas. Seus olhos entravam e saíam das órbitas e a língua enroláva-se e se desenrolava fora da boca enquanto seus gritos de pavor percorriam toda a escala musical.
O cavaleiro ria a não mais poder, com o corpo curvado e a espada abaixada. Haramis subiu rapidamente a pequena escada de madeira e abriu o alçapão.
— Uzun! Venha! Depressa! — Ajoelhada no telhado, ela segurou a escada quando o oddling pôs o pé no primeiro degrau. O cavaleiro enganado deu um grito de alarme e correu para a escada, brandindo a espada. Haramis segurou o pulso de Uzun e o puxou para cima. A espada, dirigida ao tornozelo do oddling, entrou com força no degrau. Juntos empurraram a escada enquanto o cavaleiro tentava ainda livrar a lâmina da madeira.
Perdendo o equilíbrio, o homem coberto pela armadura caiu com um baque ensurdecedor. Ouviram gritos vindos do dormitório e, quando Uzun fechou com força a porta do alçapão, outros cavaleiros labornoks apareceram.
O vento soprava com força no telhado da torre, trazendo o cheiro dos alagados e levantando a névoa que cobria o Pântano Labirinto e as partes mais baixas da Cidadela, açoitando a bandeira cor-de-sangue, de Labornok, no mastro alto, no lado da torre que dava para o rio. Algumas fogueiras crepitavam ainda logo abaixo, entre os prédios do pátio interno, com as chamas tremulando sinistramente sob a neblina. O céu azul profundo estava pintado de estrelas e, no oeste, as Três Luas caminhavam para a sua conjunção, que devia ocorrer na fase da lua cheia, dentro de quatro semanas.
O medo e a indignação da princesa transformaram-se numa raiva candente. Estavam num beco sem saída. Os cavaleiros atacavam o alçapão com espadas e machadinhas e logo o destruiriam. Mas não ia permitir que os labornoks a apanhassem viva! Antes disso, saltaria das ameias da torre..
O alçapão se abriu e um cavaleiro cujo elmo parecia uma máscara grotesca subiu para o telhado com um grito de triunfo.
Haramis, na borda do parapeito, ao lado de Uzun, segurou com força o amuleto, como fazia para afastar os terríveis pesadelos da infância. Mas esse pesadelo era real.
— Senhores do Ar, protegei-nos! Uzun exclamou:
— Dama Branca! Proteja a princesa!
Três homens com armadura correram para eles com as espadas erguidas. Mas, no mesmo momento, uma rajada de vento varreu o telhado e as estrelas desapareceram atrás de dois imensos vultos negros que desciam num mergulho rápido, na direção da torre. Com um rugido ensurdecedor, um deles atacou diretamente os três homens apavorados.
— Lammergeiers! — gritou um dos cavaleiros. — Cuidado!
Mas no mesmo instante uma asa gigantesca atingiu os três homens e os jogou do alto do parapeito. Suas vozes uniram-se num único grito, que cessou bruscamente depois de poucos segundos. Os companheiros, que começavam a aparecer na abertura do alçapão, recuaram e desapareceram. Os gritos de dor, o ruído metálico das armaduras e das espadas indicavam que alguns deviam ter caído da escada na pressa da fuga. Outros labornoks ficaram imóveis, observando, mas nenhum se arriscou a sair de onde estava.
Mais tarde contaram ao Rei Voltrik e ao feiticeiro Orogastus o que haviam visto. Duas criaturas gigantescas com corpo branco e asas listradas de preto e branco, mergulhando e aterrissando no telhado da Torre Alta, seus talões tirando faíscas das pedras, olhos e bicos serriihados cintilando à luz fraca da lua. A Princesa Haramis subiu nas costas de um deles e Uzun montou no outro.
Então, os grandes lammergeiers abriram as asas e voaram, levando os fugitivos para noroeste, na direção do forte dos distantes Montes Ohogan.
A retirada ignominiosa acendeu mais ainda a fúria de Kadiya. Imaginou ser descoberta ao lado de Jagun, arrastando-se de quatro sobre o cano escorregadio. Aquele encanamento não era usado há centenas incontáveis, porque os ruwendianos quando tomaram a antiga cidadela haviam construído um novo sistema de suprimento de água. Portanto, além de enferrujado e caindo aos pedaços, estava repleto de lixo podre e malcheiroso. Jagun dependurou a lanterna no pescoço, mas uma vez ou outra tinha de passá-la para Kadiya, enquanto retirava do caminho galhos mortos ou um emaranhado de mato molhado e amassado. Em alguns lugares as paredes tinham desabado completamente e eles seguiam por dentro da água, nadando as vezes, desviando-se dos obstáculos. Os joelhos do calção de couro de Kadiya logo se esgarçaram, deixando entrever a pele arranhada e vermelha. O tempo todo ela murmurava palavras que ouvia muitas vezes nos estábulos, mas que nunca tivera coragem de dizer.
O rio está longe? - perguntou, afinal, olhando para as mãos dolorosamente feridas pelos espinhos do lixo que havia ajudado a afastar do caminho.
Não muito. Se fosse dia, veríamos a luz lá adiante, pois estas malditas plantas não podem viver no escuro. Tome mais cuidado agora, pois este é um ótimo lugar para os gradoliks ou vermes da água.
Kadiya cuspiu a água lamacenta, de gosto horrível, e sentiu crescer dentro dela a raiva candente que a dominara ao primeiro alarme da invasão.
— Que a lama eterna afogue todos eles! Que as víboras de Viborn abracem seus pescoços e seus pulsos..
— Poupe seu fôlego, filha do rei. Sem dúvida, quando chegar a hora, os espíritos encontrarão castigos para seus inimigos que até você vai achar adequados.
— Nenhum castigo será adequado se não for infligido por mim! — respondeu ela, furiosa.
A mão de Jagun no pulso da princesa era o sinal de alerta conhecido desde a infância. Kadiya engoliu em seco e ficou imóvel.
Agora, semimergulhados na água, eles continuaram, escorregando na lama pegajosa, até chegarem a uma grade enferrujada. Passaram pela abertura feita ao lado por um pedaço de pedra desmoronado. Finalmente estavam a céu aberto. Outra vez Jagun estendeu a mão em sinal de alerta.
Ele afastou-se um pouco da jovem, com a cabeça erguida. Apurando os ouvidos e usando seu faro de caçador, Jagun verificou a segurança daquela terra árida e esquecida.
— Os labornoks devem ter estabelecido um posto de vigia não muito longe daqui.
Kadiya olhou para trás, esticando o pescoço para ver melhor. Viu fogo lá em cima, chamas tremulantes.Pouco sobrava no interior da Cidadela para alimentar aquela fogueira da vitória, a não ser que os invasores tivessem arrancado as tapeçarias das paredes e queimado todos os móveis. Kadiya tentou ignorar os brados distantes, os gritos estridentes — procurando não pensar no que devia estar acontecendo.
— Que eu possa viver para abrir novas bocas em suas gargantas imundas! — A mão ferida que procurava a adaga encontrou o amuleto, através de um rasgão na camisa. — Se isto teve força para me fazer flutuar no poço. talvez possa me oferecer algo mais. — Segurou o pedaço de âmbar com força, como se quisesse embebê-lo no próprio corpo.
Vontade — vontade e força — e tudo o mais que podia Pedir.
— Senhores do Ar, todos vós que sois amparados pelo Deus Triúne, que vosso poder seja adicionado ao meu, vossa vontade à minha, para que sejam castigados com a morte todos aqueles que mataram os que acreditam em vós. Que paguem o preço do sangue, ó vós lá do alto, concedei-me o preço do sangue!
Segurando o amuleto como quem segura uma espada, Kadiya apontou para as luzes do holocausto, lá atrás.
A resposta foi um grito torturado na noite, o pedido rouco saído de outro barril.
Kadiya apertou os lábios.
— Não funciona! — Moveu a mão, como para arrancar o amuleto do cordão, mas não conseguiu soltar os dedos que o apertavam com força.
— Não — disse Jagun, com a voz suave de quem procura acalmar uma criança impaciente.
— Mas eu usei minha vontade! Com mais força do que no poço. — Abriu os dedos, um a um e olhou para o que estava segurando. — Ou será que só funciona para mim? Será que pode me levar para a Dama Branca? Ou nós dois...?
Jagun a observava pacientemente.
— Não custa tentar, filha do rei.
Outra vez os dedos de Kadiya apertaram o amuleto.
— Pelos poderes que vivem no seu interior, leve-nos agora àquela que o fez — a Arquimaga!
A noite continuou silenciosa.
— Leve-me então, se possuis alguma virtude, ó dádiva da feiticeira!
Nenhuma resposta.
— Então, será que foi tudo um sonho? — Kadiya perguntou para a noite. — Será que eu estava tão fora de mim, Jagun?
— Pequenina, não posso responder com certeza, estava muito escuro dentro do poço. Talvez eu tenha calculado mal o tempo da sua queda. Não entendo nada dessa sabedoria antiga.
Kadiya soltou o pingente dependurado no cordão.
— Parece que a magia nos abandonou, Jagun — se é que alguma vez esteve conosco. Bem, pelo menos aqueles miseráveis da planície não poderão nos seguir através do Pântano Labirinto.
Kadiya estivera várias vezes no pantanal, mas percorrendo sempre as trilhas conhecidas pelos oddlings. Havia outras, mas eram segredos ciumentamente guardados por certas famílias. Para os que não pertenciam a uma tribo, era um ponto de honra esquecer qualquer conhecimento dessas trilhas. Kadiya inclinou a cabeça até ficar bem perto do vulto pequeno de Jagun e perguntou:
— Aqueles rastejadores das planícies não ousarão nos seguir aqui, estou certa?
Semi-escondido pelas moitas, o oddling procurava alguma coisa na água, perto de uma rocha.
— O feiticeiro deles aliou-se aos skriteks. Pellan também está com eles.
— Pellan! — Parecia impossível que o guia dos mercadores — conhecedor das trilhas secretas quase desde seu nascimento — pudesse traí-los. Porém, antes daquele dia terrível ela jamais teria acreditado que Kadiya, da Casa de Krain, ia se arrastar como uma serpente na lama pegajosa.
— Voltrik possui aquilo que alguns acham difícil recusar. — A voz de Jagun soou fria e áspera. Levantou-se, segurando uma ponta da corda que tirou da água e começou a puxar com cuidado. — O poder do rei labornok baseia-se na riqueza. E a riqueza vem do esforço dos homens. Qual o rei que procura minérios preciosos na montanha, derruba as árvores com o machado, adquire objetos estranhos e preciosos dos povos do pântano? É a gente de Pellan que faz tudo isso. Voltrik recebe uma boa parte, é verdade. Mas ele pode conceder os restos aos que o servem e esses restos são suficientes para enriquecer qualquer um. Venha, Olhos Penetrantes — disse ele, usando nome recebido orgulhosamente por Kadiya há um ano, um nome que no pântano era murmurado com respeito. — Olhos Penetrantes, temos ainda um longo caminho pela frente.
Kadiya mal o ouviu, pensando indignada na traição de Pellan. Ela o conhecia — sorridente, delicado, Pellan a havia guiado certa vez por uma das ruínas estranhas do pântano.
— Jagun, Pellan fez isso realmente pelo pagamento, como você disse? Ou por medo? Ele tem parentes no interior da planície. Vimos do que esse rei assassino é capaz contra quem o desafia. O medo pode ser mais forte do que a magia. Anigel não se entregou ao inimigo por medo?
— Não julgue tão precipitadamente, filha do rei. Sua irmã não se entregou voluntariamente. O medo pode levar à loucura. Nesse caso não há culpa alguma.
— Só fraqueza — resmungou Kadiya.
— Fraqueza você também pode experimentar e até mesmo um grande medo. Não fale mal de alguém cujo fardo você jamais carregou.
Jagun puxou a corda e do meio da neblina surgiu um barco equipado com duas varas e um remo, além de um embrulho grande bem protegido da umidade.
— Abençoado seja o meu irmão! — disse Jagun. — Seguiu muito bem as instruções da Arquimaga. Agora temos nosso meio de transporte, comida e roupas secas.
O barco tinha espaço para quatro passageiros e, com o coração apertado, Kadiya lembrou que Anigel e Immu deviam estar com eles. Porém, sem dúvida estavam agora indefesas, nas mãos do inimigo. E Haramis? Não podiam saber. Nessa noite ela estava sozinha e sobre seus ombros recaiu a responsabilidade de resistir aos invasores.
Embarcaram e Jagun prendeu na popa o remo que serviria de leme. A embarcação deslizou, começando a subir o regato que corria preguiçosamente, circundando o lado nordeste da Cidadela. A neblina abriu-se por um momento e Kadiya pôde ver a imensa rocha encimada pelo castelo com uma ou duas estrelas acima dela.
Seu lar — nas mãos do inimigo! E onde estavam suas irmãs? Talvez mortas, ou pior.
NÃO! Levou as mãos à cabeça como se pudesse retirar as imagens criadas dentro dela. Não devia pensar nisso — não podia!
— Para onde vamos? — Havia muitas maneiras de resistir. A vingança seria sua, mas não podia vencer sozinha o Rei Voltrik. Haramis, Anigel — se sobrevivessem — estariam dispostas a ajudá-la?
Kadiya não disse em voz alta nenhum desses nomes. Jagun, no entanto, respondeu mais uma vez enchendo-a de espanto.
— Outros caminhos esperam por suas irmãs. Neste momento devemos pensar no nosso.
— Para onde vamos? — perguntou ela, outra vez.
— Você deve responder, Olhos Penetrantes.
— Como? — Kadiya olhou outra vez para a Cidadela. O fogo estava morrendo. Mesmo assim, o pântano parecia estranhamente quente. Olhou para baixo. Sob o corpete rasgado e sujo de lama, viu um pequeno ponto luminoso — o amuleto!
O pedaço de âmbar parecia mover-se na palma suja da sua mão. Um raio de luz apontava para o alto, como a chama de uma estranha vela. A respiração de Kadiya acelerou-se. Talvez ele ainda possuísse algum poder mágico! Mas estava provado que essa magia não funcionava de acordo com sua vontade. Uma adaga era muito mais segura.
Orogastus, o feiticeiro de Voltrik, trabalhava com uma mágica que o obedecia. Dava ordens até ao rei, como se Voltrik fosse um instrumento ou um brinquedo em suas mãos.
Instrumento e brinquedo! Podia ser a história do seu nascimento e dos presentes da Arquimaga! Talvez a mágica fosse como todas as outras coisas — envelhecia, enferrujava, ressecava, quebrava-se quando era invocada tarde demais.
O leme, seguro por Jagun, deu uma virada brusca, mudando a direção do barco. Kadiya viu o brilho do amuleto girar como a agulha de uma bússola.
— Jagun, isto é um guia!
— O quê? — perguntou o oddling com voz cansada. Levou o barco para a margem, jogou uma pedra para servir de âncora e começou a desfazer o embrulho.
Kadiya estendeu a mão para ele e descreveu animadamente a mudança no brilho do amuleto.
- Ah, sim — então deve apontar para a casa da Arquimaga, em Noth. Isso é bom, porque eu conheço pouco os caminhos nesta região. Os nyssomus nunca caçam por aqui. O Pântano Dourado é território dos uisgus.
Tirou do embrulho túnicas e calções tecidos por seu povo com fibras aromáticas. Havia também mantos com capuz de Pele de fedok, os animais capazes de desviar o curso dos rios, e sandálias com sola de madeira. Depois de retirar as peças de roupa, Jagun encontrou dois vidros fechados. Abriu-os e o perfume do creme de ervas amenizou o cheiro do pântano.
— Você pode se lavar e secar sua roupa de couro mais tarde, se puder ainda aproveitá-la. Mas agora você deve pertencer ao pântano.
Kadiya trocou a roupa suja e rasgada pela outra, limpa e seca, e passou na pele e nos cabelos emaranhados o creme de ervas. Os insetos do pântano podiam ser uma verdadeira tortura sem aquela proteção.
Jagun tirou de um bolso no cinto outra forma de proteção. Era um truque de caçador que Kadiya vira antes, um canudo, fino como uma haste de junco. Jagun levou-o aos lábios e produziu um som muito alto, atonal, que foi logo respondido.
O silêncio traiçoeiro que envolve os rios do pântano, quando alguém navegava por eles, podia servir de alerta para um perseguidor. Até o momento em que o apito de Jagun despertou os sons normais de vida, Kadiya não havia percebido o silêncio que os envolvia. Agora, ouviam o zumbir dos insetos, sons discretos de animais bebendo e comendo, e o grito rouco e profundo de um gulbard caçando, tão perto que ela percebeu o corpo verde-acinzentado do animal esperando, dentro d’água. Lá adiante, tudo era escuridão.
Subiram lentamente o largo Mutar, sempre se afastando dos habitantes da margem sul. Jagun tomou muito cuidado quando passaram pelos cais do Mercado de Ruwenda e pela margem oeste do Knoll, onde o rio desviava da costa montanhosa e entrava no Pântano Negro. A floresta densa estendia-se por muitas léguas quadradas entre a Cidadela e as ruínas de Trevista, e devia seu nome ao pântano nunca iluminado pelo sol, onde as árvores altas enlaçavam suas copas formando, com as trepadeiras, um espesso dossel, deixando a superfície do solo quase sempre na sombra.
Logo depois o rio dividia-se em vários canais, sem que nenhum parecesse ser o principal. Milhares de ilhas e bancos de lama enchiam aquela parte do Pântano Negro e qualquer viajante humano comum podia se perder, procurando a saída.
Em plena luz do dia — quanto mais à noite, no meio das intermitentes nuvens de neblina. Mas Jagun continuou a conduzir o barco com segurança.
Kadiya, sentada na proa, mordiscava devagar um pedaço de raiz de adop, o tubérculo mais abundante na provisão de mantimentos do barco e que parecia tirar toda a umidade da boca, deixando um gosto amargo. Mas era o alimento básico dos oddlings durante as viagens. A cada mordida, ela lembrava sua primeira aventura no interior do pântano, com Jagun.
Encantada com os animais e as plantas estranhas que ele levava para o palácio, Kadiya insistiu com Jagun para conhecer o Pântano Labirinto. O rei deu permissão com relutância e durante um dia inteiro viajaram pelo pântano verde e sombrio repleto de animais e plantas misteriosas. Essa aventura havia mudado por completo sua vida. Kadiya jurou que aprenderia os caminhos do pantanal e que iria conhecer todos os seus habitantes.
Jamais fora, porém, ao lugar que o amuleto apontava agora — as terras mais remotas e mais secretas. Mais adiante, as regiões dos amistosos nyssomus e dos tímidos uisgus faziam fronteira com o território dos abomináveis skriteks.
Skriteks! Criaturas horríveis que pareciam saídas de um pesadelo. Andavam eretos, mas a cabeça, acima do corpo musculoso, em nada se parecia com uma cabeça humana ou de um oddling. Achatada, com a testa alongada formando um focinho comprido, partido ao meio, deixando ver as presas esverdeadas e aguçadas, a cabeça de um skritek parecia feita para rasgar e matar.
Os olhos eram saltados, como de todos os povos do pântano, situados bem no alto da cabeça e bem espaçados, de modo que tinham uma ampla visão lateral. Porém, ao contrário dos olhos dos oddlings, não eram dourados, mas alaranjados com listras arroxeadas. O verde-azulado dos seus corpos fundia-se perfeitamente com a vegetação do pântano, exceto pelos olhos, permitindo que eles espreitassem a presa quase submersos no lodo, camuflados pelas algas, e no momento exato puxassem a vítima para o fundo. Por isso eram chamados de afogadores.
Eram conhecidos quase que exclusivamente pelas histórias terríveis dos viajantes. Diziam que, na sua terra, que fazia fronteira com os confins da região dos oddlings, os skriteks andavam livremente, armados às vezes de lanças e facas, embora suas armas mais poderosas fossem as presas e as garras das mãos de três dedos. Caminhavam silenciosamente, mas eram traídos pelo cheiro forte e almiscarado dos seus corpos. Diziam também que costumavam se espojar numa mistura de lama e ervas para disfarçar o cheiro. No seu território, os skriteks atacavam de surpresa, com uma frenética sede de sangue, despedaçando e devorando suas vítimas — às vezes ainda vivas — ou torturando-as até a morte.
— Você falou dos skriteks. — Kadiya estava encolhida, com os braços em volta do corpo. — Que tipo de poder é capaz de conseguir que aqueles monstros obedeçam outra vontade que não seja a sua?
Jagun respondeu:
— Poder daquele cuja sombra é maior até mesmo do que o rei a quem ele diz servir — Orogastus. Não o subestime, comparando-o a um mero adivinho ou mesquinho conhecedor de truques. Ele não é do tipo que anda nas feiras lendo o futuro na areia colorida. Filha do rei, certas pessoas nascem com talentos raros e quase todas usam mal esses dons. Alguns, entretanto, seguem um caminho mais escuro à procura do conhecimento e passam toda a vida procurando descobrir de onde vem seu poder — o poder que não é da mão ou da espada, mas da mente e da vontade — sobre os outros. Muitas histórias sobre Orogastus chegaram aos nossos ouvidos, aqui no Pântano. Podemos descontar talvez a metade ou um terço — mas o que sobra ainda é assustador! Os iguais se entendem — talvez os skriteks vejam nesse mago do rei uma força igual à que os impulsiona. Ou talvez não sejam criaturas dele, mas essa aliança tenha como base uma lei muito antiga: se seu inimigo é o meu, então, até que els esteja morto, seguiremos lado a lado.
Kadiya suspirou.
— Jagun, há tanto tempo você é meu professor e ainda tem muita coisa para me ensinar. Às vezes não passo daquela criança que você trouxe ao pântano para satisfazer um capricho.
Seu povo me chamou de Olhos Penetrantes, mas só para me agradar. Sim, posso ver bem certas coisas, mas, para outras, sou cega!
— Saber que é cega é começar a ver — disse Jagun, suavemente. Ele conduzia o barco para uma das maiores elevações do pântano. O céu lá em cima estava acinzentado. O dia não tardava. — O perigo não ameaça só o corpo, mas ataca o espírito também.
— Não compreendo.
— Certas pessoas, mesmo aquelas que você amou e em quem confiou, podem querer usá-la, como estou usando esta vara para conduzir o barco.
— Usar? — perguntou Kadiya, incrédula. — Quem tentar isso vai enfrentar minha adaga!
— Lutar, sempre lutar — zombou amigavelmente o oddling. — Minha pequena Olhos Penetrantes, você já viu um vart num galho de árvore a cem ells de distância.. mas, já tentou olhar para o interior, em vez do exterior? O mais difícil é conhecer a si própria. Agora, o dia está chegando e vamos acampar. Empurre aqueles galhos para o lado, assim.
Kadiya obedeceu e ele levou o barco para uma curva da elevação de terra. Já na praia, embora extremamente cansada, Kadiya continuou com suas perguntas.
— Você vai me ensinar a sabedoria da vida — disse ela, em tom de comando.
— Eu não — respondeu Jagun, sombriamente.
— Vai deixar a cargo da Arquimaga? — A pergunta era um desafio.
— Ela também não. Compreenda, só a experiência nos dá sabedoria. Cada um de nós deve aprender a seu modo e no momento certo.
Antes que ela pudesse pensar numa resposta, Jagun olhou em volta e disse:
— Esta terra é sólida e boa. — Bateu com o pé no chão. Podemos acampar com segurança até a noite. Podemos até fazer uma fogueira. Um pelrik ou karuwok grelhado não seria melhor do que raiz de adop?
— Viajaremos à noite? — O que Kadiya mais desejava naquele momento era uma cama de relva — e havia uma por perto — para deitar e dormir.
— É mais seguro, até passarmos o Rio Alto Mutar. Talvez Voltrik — se for bastante esperto — procure se aproximar dos nyssomus como amigo, ou pelo menos fingindo-se de amigo. A maior parte do meu povo sabe muito pouco sobre os da sua espécie, Olhos Penetrantes. Para alguns de nós, os humanos são todos iguais e, como há muito tempo confiamos nos ruwendianos, podemos ser enganados pelas palavras mentirosas dos labornoks até que seja tarde demais.
— Podemos avisar seu povo. — Kadiya parou de arrancar as hastes de relva. — Talvez outros ruwendianos tenham escapado pelo rio — certamente os nyssomus de Trevista os ajudarão.
Jagun examinou cuidadosamente suas flechas aguçadas de zarabatana.
— Olhos Penetrantes, não podemos deixar que nos vejam no Mutar. Falta pouco para as chuvas de inverno, quando ninguém pode viajar.
Jagun ergueu os olhos injetados de sono e cansaço. Gotas de suor desenhavam linhas finas no creme repelente do seu rosto e das mãos.
— Você precisa chegar a Noth. Fica no sopé dos Montes Ohogan, mais de cem léguas ao norte. Depois de atravessarmos o território dos skriteks, entraremos na selva do Pântano Dourado. Então, vamos precisar da ajuda dos uisgus.
Jagun alisou um pequeno espaço de solo e começou a desenhar.
— Estamos aqui — marcou o chão com a ponta da unha. — Aqui — desenhou uma linha para o norte — fica Noth, onde devemos chegar.
Kadiya já ouvira histórias sobre Noth. Em todo o pântano havia ruínas nas elevações de terra firme, como aquela em que estavam. Nem todas essas ruínas de um tempo remoto haviam sido tão devastadas quanto Trevista e, segundo diziam, eram tão sólidas quanto a Cidadela. Contavam também que algumas delas guardavam grandes tesouros. Uma vez ou outra apareciam no mercado de Trevista objetos estranhos e aparelhos misteriosos, imediatamente comprados pelos mercadores visitantes. Muitos eram encontrados pelos tímidos uisgus, que os entregavam aos seus companheiros mais ousados, os nyssomus, para serem vendidos. Kadiya ouvira histórias de humanos que haviam se aventurado na região norte, à procura das ilhas perdidas e dos seus tesouros. Homens quase enlouquecidos pelas agruras da viagem chegavam na Cidadela, falando incoerentemente de uma cidade maior do que Trevista, fechada e silenciosa, cercada por muralhas intransponíveis, sem nenhuma porta de entrada. Era a cidade de Noth, diziam eles.
Talvez só fantasmas guardassem a cidade perdida, mas todos em Ruwenda sabiam que era a fortaleza da Arquimaga. Alguns diziam que ela pertencia a uma raça antiga, de um passado distante, quando várias ilhas, cada uma com sua cidade, adornavam um grande lago. Segundo a história do povo de Kadiya, a Arquimaga sempre existiu. Se não foi sempre a mesma mulher, foram sucessivas mulheres idênticas.
Jagun desapareceu e voltou quando Kadiya terminava de preparar o segundo leito de relva seca. Trazia um pelrik, segurando-o pela cauda larga, e Kadiya provou sua eficiência como viajante, juntando galhos quebrados e gravetos e empilhando-os para que Jagun acendesse o fogo com seu acendedor. Ele limpou a caça e a cortou em pedaços com sua longa faca de caçador, enfiando-os em espetos de madeira e levando-os ao fogo para assar.
O sono quase superou o apetite de Kadiya, estimulado pelo cheiro da carne grelhada. Não lembrava de jamais ter sentido tanto cansaço — esquecendo que os horrores por que havia passado haviam contribuído para esgotar suas forças.
A Princesa Anigel só voltou a si quando seus captores chegaram à destilaria. Os labornoks pararam então para descansar da extenuante subida dos subterrâneos da Cidadela, depois de um árduo dia de batalha. Sir Rinutar sugeriu ao Príncipe Antar uma pausa para se recuperar e para provar a bebida de Ruwenda.
— Falou bem, Rin — disse Sir Owanon —, pois esta velha oddling é bem mais pesada do que parece e quase quebrou minhas costas. — Jogou Immu numa pilha de sacos de grãos. Ela gemeu mas não abriu os olhos.
O Príncipe Antar advertiu:
— Um breve descanso. Provocaremos a ira do Rei Voltrik e do feiticeiro se demorarmos muito a levar as prisioneiras para serem interrogadas. O homem que se exceder na bebida será severamente castigado.
Deitou a Princesa Anigel cuidadosamente no chão e afagou os cabelos dela, antes de juntar-se aos outros, perto do barril que acabavam de abrir. A cerveja fluía alegremente nas canecas e derramava no chão.
— Os covardes de Ruwenda faziam uma boa bebida — disse Sir Rinutar, passando a mão no bigode, depois de um longo gole. — Na verdade, é muito melhor do que a nossa. — Esvaziou a caneca e foi outra vez até o barril.
— Não admira — murmurou Immu —, pois a nossa é envelhecida e a oito por cento, ao passo que a de Labornok não passa de mijo de criança.
Sim, sem dúvida é uma bebida excelente — disse outro cavaleiro, Sir Penapat. — Por que não podemos fazer uma cerveja tão boa em Derorguila?
— Os cervejeiros em Derorguila estão sempre se queixando das diabruras das bruxas da cerveja — disse Sir Owanon —, alegando que essas damas malvadas azedam a bebida, ou dão a ela um gosto estranho. Ouvi dizer que uma dessas bruxas foi queimada na fogueira um pouco antes de o exército deixar Labornok. Eles a apanharam entrando furtivamente na destilaria, evidentemente para fazer alguma maldade. As mulheres não entendem coisa alguma da fabricação de cerveja.
— Excremento de lothok! — exclamou Immu, com voz abafada, porque estava de bruços sobre a pilha de sacos. Mas dessa vez os cavaleiros ouviram.
— Ora, ora, quero ser esfolado vivo e que preguem minha pele na parede! — disse Sir Owanon, rindo. — Minha carga fala! E com atrevimento!
— Responda com um bom pontapé — sugeriu Sir Rinutar. A Princesa Anigel virou o corpo com esforço, com as mãos atadas nas costas, como Immu, e exclamou:
— Parem, seus rufiões, isso é uma vergonha! Se acham boa a nossa cerveja, devem agradecer a Immu, pois ela é a chefe da destilaria desta Cidadela.
— Ela mente — rosnou Sir Rinutar. — O que uma velha oddling encarquilhada pode entender desses mistérios? — Com um gesto largo mostrou os grandes caldeirões de cobre, o labirinto dos canos, o sistema complexo de calhas que conduziam o grão de malte ao espremedor e depois passavam o mosto destilado para o enorme caldeirão destilador. Ao longo de todos os recipientes havia passarelas de madeira onde os trabalhadores mexiam, misturavam e inspecionavam a fabricação.
— Eu entendo muito de fazer cerveja. — Immu estava agora deitada de costas e sua voz era fria e segura. — Só um cérebro de geléia pode pôr a culpa da cerveja azeda em bruxas imaginárias. Isso acontece quase sempre porque os caldeirões, os fermentadores e a tubulação não são lavados adequadamente, permitindo a formação de um depósito malcheiroso que estraga a cerveja.
— Isso é verdade? — O Príncipe Antar estava interessado. — Talvez nos convenha permitir que você viva para ensinar os cervejeiros labornoks a fazer uma bebida melhor.
— Uma boa idéia — disse Sir Owanon, mas os outros protestaram em altas vozes e começaram a discutir, enquanto abriam outros barris e enchiam constantemente as canecas.
Então a atenção deles foi despertada pelo ruído metálico do General Hamil descendo a escada, à frente de outro grupo de cavaleiros. Todos extremamente fatigados, aderiram com entusiasmo ao descanso festivo dos companheiros.
Hamil aproximou-se de Antar, que tomara apenas um gole de cerveja, e o congratulou pela captura da Princesa Anigel. Depois, levando-o para um canto, falou em voz baixa, mas Immu e Anigel ouviram perfeitamente.
— Uma coisa espantosa e ameaçadora aconteceu, meu príncipe. Milotis e seus homens revistavam o andar mais alto da torre quando surpreenderam a Princesa Haramis acompanhada por um oddling. Eles os perseguiram até o parapeito, e Haramis ficou de pé, parada na borda da ameia, segurando o amuleto que pende do cordão no seu pescoço, e invocou a proteção dos Senhores do Ar.
— Eu teria feito a mesma coisa — disse o príncipe secamente — no lugar dela.
— Mas apareceram dois lammergeiers monstruosos — continuou Hamil — e levaram a princesa e o oddling nas costas!
O príncipe praguejou.
— Milotis viu esse prodígio com os próprios olhos?
— Ele viu. Eu comuniquei o fato ao poderoso Orogastus, que ficou rubro de cólera. Milotis e seus homens foram executados, por ordem do rei.
O príncipe disse, em voz baixa:
— Loucura. Milotis era um valoroso capitão e como podia ele lutar contra a magia? Cabe a Orogastus cuidar disso. Imagino se ele vai impor também a minha morte porque aprisionei só uma princesa, enquanto a outra conseguiu fugir. — Descreveu a fuga de Kadiya através da cisterna e a afirmação de Anigel de que a irmã possui agora uma poderosa magia.
O General Hamil, uma figura terrível com a armadura vermelha enfeitada de ouro, aproximou-se das duas cativas. No elmo vermelho de metal esmaltado havia dois chifres montados em ouro e o visor tinha o formato de uma cabeça de volumnial.
— Princesa Anigel — perguntou ele —, é verdade que sua irmã é agora uma mágica?
Mas a jovem, apavorada, começou a chorar, agitando-se dolorosamente, e Immu disse:
— Veja o que você fez, seu grande imbecil. Pela Flor, eu não sei por que os lammergeiers apareceram, mas podem estar certos de que não foi mágica alguma. As três princesas não são gêmeas? Se uma possuísse o dom da magia, as outras duas não possuiriam também? Contudo, aqui está a pobre Anigel em suas mãos. — Começou a falar em voz baixa e urgente com a princesa.
— A vovó oddling fala sensatamente — disse o príncipe, franzindo a testa. — Mas acho melhor deixarmos isso para Orogastus. — Ergueu a voz: — Companheiros, devemos deixar este lugar agora e voltar à sala do trono com nossas cativas.
Immu parou de falar com a desconsolada princesa e dirigiu-se ao Príncipe Antar com voz melíflua.
— Meu senhor, tenha piedade desta infeliz donzela. Antes de sairmos daqui, mande desamarrar suas mãos e permita que atenda a suas necessidades atrás daquela pilha de sacas, do contrário ela passará por grande humilhação e vai sujar sua armadura.
Anigel abaixou a cabeça, envergonhada, e o General Hamil, rindo, disse um gracejo pesado. Mas o príncipe ajoelhou e desamarrou as mãos de Anigel. Ela agradeceu com um olhar suplicante e pediu que ele libertasse também sua aia para ajudá-la.
— Vou atender ao seu pedido, mas apressem-se — disse Antar. Deixou-as ir, depois de certificar-se de que não havia nenhuma saída atrás das sacas de grãos.
— Devo mencionar outro fato — disse Hamil. — A mão do rei está muito inflamada em virtude da dentada do maldito escudeiro. Ele está sofrendo muito e de péssimo humor. O médico da corte e a Voz Verde do feiticeiro dizem que ele deve ir para a cama com uma compressa de ervas sobre o ferimento, tomar chá quente e descansar, do contrário vai morrer com o sangue envenenado.
— O mago não pode fazer nada?
— Evidentemente não, embora tenha pronunciado um encantamento sobre o pote com a compressa. Ele concorda com o diagnóstico do seu bajulador e acha que o rei deve descansar. Por isso, cabe-nos, agora, procurar as duas princesas.
— Os homens estão exaustos. Precisam de alguns dias de repouso antes de organizarmos um grupo de busca. Podemos aproveitar o tempo para obter informações — especialmente dos oddlings. Se há alguém que sabe para onde foram as princesas, são eles.
Hamil concordou.
— Todos os oddlings fugiram da Cidadela, mas podemos ir a Trevista, a cidade antiga, em ruínas, onde fazem sua feira. O homem do rio, o traidor Pellan, comandante da frota de barcaças que leva os mercadores a Trevista vai cooperar conosco. E alguns mestres-mercadores de Labornok podem nos aconselhar sobre como conquistar a confiança e a ajuda das criaturas dos pântanos.
— Falarei com o rei meu pai e providenciarei para que tudo seja organizado. Talvez você, eu e esse tal Pellan possamos ir a Trevista durante o dia, com um pequeno grupo de homens, enquanto o resto do exército descansa. Podemos dormir no rio.
— Uma sugestão esplêndida, meu príncipe. Antar franziu a testa e olhou em volta.
— As mulheres — onde estão elas? Hamil foi espiar atrás da pilha de sacas.
— Desapareceram! Pelas sagradas entranhas de Zoto, elas desapareceram! Mas como?
Obedecendo às ordens furiosas de Hamil, os cavaleiros começaram a revistar toda a grande destilaria, embora parecesse impossível que Anigel e Immu tivessem passado pelo Príncipe Antar e pelo General Hamil.
Então, no meio da algazarra ensurdecedora, o Príncipe Antar viu o palerma cavaleiro Rinutar caminhando por uma das passarelas que circundavam o grande caldeirão da fermentação. De repente, Rinutar perdeu o equilíbrio, agitou os braços no ar e, gritando coisas que ninguém entendeu, mergulhou com estrépito no líquido espumoso e de cheiro forte.
Depois de um silêncio de espanto, os homens caíram na gargalhada. Alguns foram pescar o esbaforido Rinutar. Rubro de fúria e com a armadura coberta de espuma branca, assim que saiu do caldeirão, ele gritou:
— Quem me empurrou?
— Bêbado idiota — disse o príncipe, com desprezo. — Ninguém o empurrou. Você simplesmente perdeu o equilíbrio.
— Não — disse Rinutar com segurança —, fui empurrado e além disso, quando caí, ouvi uma voz dizendo: ”Tome um grande gole.”
Os cavaleiros riram com ceticismo, mas o General Hamil, carrancudo, gritou:
— Silêncio, todos!
Todas as bocas se fecharam. No silêncio que se seguiu, podiam ouvir a cerveja pingando no chão, a respiração pesada dos homens cansados. e passos rápidos e leves na passarela, depois da escada que levava à sala onde os barris eram enchidos.
— Mágica! — berrou Hamil. — Estão usando mágica! Elas se tornaram invisíveis! Todos para o andar de baixo! E em silêncio, malditos, com os ouvidos abertos!
Segurando o amuleto, Anigel murmurou ansiosamente para Immu:
— Vão nos encontrar. Nossos pés molhados estão deixando marcas no chão!
— Por aqui — sibilou sua companheira invisível. — Vamos para o elevador que leva os barris até a cozinha.
Correram para o elevador que funcionava com contrapeso, bastando acionar uma manivela. Anigel entrou e Immu disse:
— Espere um minuto, princesa. — Caminhou até uma pilha de barris vazios, deixando no chão as marcas dos pés molhados.
Quando os cavaleiros comandados pelo general labornok chegaram, os barris vazios empilhados perto do elevador começaram a balançar e antes que os homens tivessem tempo de compreender o que estava acontecendo, despencaram com estrondo. Barris e barriletes rolaram pelo chão, batendo nas Pernas dos homens e partindo-se quando os cavaleiros raivosos pisavam sobre eles com seus pés cobertos de ferro. A passagem para o elevador manual ficou completamente fechada.
A Princesa Anigel começou a rir tanto que soltou o amuleto por um momento e os labornoks viram as duas fugitivas subir e desaparecer.
— Rezei para que sua idéia desse certo — disse Anigel —, mas estava morta de medo.
Na luz fraca da guarita abandonada, na casa da guarda da Cidadela, onde tinham parado para descansar, Immu sorriu.
— Mas o importante foi que você não duvidou. Depois de saber que sua irmã Haramis escapou graças ao amuleto, finalmente acreditou que o seu também responderia à sua ordem, tornando-nos invisíveis. E aconteceu. Agora, tudo que temos a fazer é ir embora!
Anigel encostou o corpo cansado na parede fina.
— Boa amiga, tenha piedade, deixe-me ficar mais um pouco, pois, se continuarmos agora, vou morrer de cansaço.
— Descanse, doçura — Immu tirou o xale e envolveu com ele os ombros da princesa. — Estamos a salvo por algum tempo. Não ouço nenhuma agitação de busca.
Os labornoks pensavam que a princesa e Immu estavam ainda dentro da torre central, por isso o General Hamil mandou trancar todas as portas. Mas Immu conhecia uma saída secreta na cozinha, por onde os empregados preguiçosos escapavam Às vezes. A passagem levava ao pátio externo que as duas mulheres cruzaram rapidamente, invisíveis, desviando dos soldados labornoks que cochilavam em volta das fogueiras.
Embora estivesse exausta, Anigel não tinha coragem de fechar os olhos, temendo que o sono anulasse o efeito da mágica que as havia levado a salvo até a guarita.
— Eu ainda mal posso acreditar que conseguimos ficar invisíveis — murmurou ela. — O talismã não quis me salvar na beira do poço... por que então nos salvou agora?
— Na cisterna, você estava desesperada e louca de medo. Na destilaria, emoções mais construtivas a levaram a seguir meu conselho.
— Sim, é verdade que eu estava furiosa — disse a princesa, com voz lenta. — Desprezei a covardia que provocou nossa captura. E estava mortificada pelo estratagema que você teve que usar para fazer com que aquele vilão nos soltasse...
Immu deu uma risadinha abafada.
— A fúria iluminou sua mente, eliminando o medo que paralisava a vontade. E então, acreditou em mim quando pedi que recorresse ao amuleto. A raiva é uma emoção muito mais eficiente do que o medo. Precisa aprender a usá-la mais vezes, doçura. Na situação em que está agora, brandura e boas maneiras não ajudam muito.
— E a mágica? — perguntou Anigel, com voz cansada.
— Isso é o que vamos ver.
Depois de pensar por alguns momentos, a princesa perguntou:
— Então... seu povo usa sempre a mágica?
— Oh, não. É uma coisa especial, que não deve ser usada levianamente. Às vezes ela está presente, outras vezes não está, por mais desesperadora que seja a situação. Para sua pobre mãe e seu pobre pai, não pôde haver ajuda mágica alguma...
— E isso foi cruel! Não faz sentido, o rei e a rainha serem mortos, Ruwenda conquistada e nós três protegidas por artes mágicas!
— Paz, criança, paz. — A magia é um mistério, como tanta coisa na vida. Pode ser usada para o bem ou para o mal e nem sempre sabemos distinguir entre os dois, assim como não compreendemos o que é mágica.
Anigel suspirou.
— Talvez a Arquimaga possa nos dizer. Aconchegada à velha ama, Anigel finalmente adormeceu profundamente, mas sem largar o âmbar com o trílio.
Não haviam descansado nem duas horas quando os soldados que dormiam na casa da guarda começaram a despertar, resmungando e reclamando. Logo ia nascer o dia. Os homens estavam descontentes com a proibição de saquear a Cidadela. Acenderam as fogueiras, prepararam uma refeição ligeira com as rações do campo e fizeram suas necessidades abertamente e em toda parte.
— Não olhe para fora, princesa — disse Immu. — Os incultos idiotas!
— Oh, Immu, não me importo com isso. O que me preocupa é o que faremos agora. Como chegaremos à casa da Arquimaga?
— Jagun planejou a nossa fuga e o irmão dele arranjou um barco. Mas, sem dúvida, Jagun e Kadiya já embarcaram há muitas horas, dando-nos por perdidas. — Immu franziu a testa pensativamente. — Precisamos descobrir outro meio de chegar ao Mutar. Se conseguirmos alcançar Trevista, meu povo nos ajudará a entrar em contato com os uisgus, em cujas terras fica Noth.
— Mas Trevista fica tão longe, do outro lado do Pântano Negro.
As cornetas soaram lá fora. Immu espiou por uma fresta da porta. Um comandante dos cavaleiros entrou apressado, com sua escolta, na antecâmara do pátio interno, e parou a menos de doze ells da guarita onde elas estavam. Um sargento intendente supervisionava a distribuição dos suprimentos de uma fila de carroças cobertas. O cavaleiro disse:
— A companhia vai partir dentro de uma hora. Marcharemos através do Knoll para o Mercado de Ruwenda no lado oeste, e de lá iremos em barcaças até Trevista. Providencie alimento e material adequado, para os homens e para os animais.
O sargento fez continência, o cavaleiro deu meia-volta com seu animal de batalha e acompanhado da escolta seguiu para a casa da guarda e para o pátio externo.
Immu riu baixinho.
— Nosso problema está resolvido. Os intendentes nos levarão até Trevista. Está com fome, minha filha?
— Estou, Immu. E muito cansada.
— Não pode nos tornar invisíveis enquanto dorme, mas acho que vamos encontrar um bom esconderijo depois do nosso café da manhã. — Immu explicou seu plano e a Princesa Anigel, com os olhos cintilando de alegria, a abraçou carinhosamente.
Então, Anigel segurou o amuleto, as duas desapareceram e saíram para escolher a melhor carroça.
Bem alto, acima do Pântano Labirinto coberto pela neblina, os lammergeiers voavam, carregando Haramis e Uzun na direção das ruínas de Noth.
Quando seu coração se acalmou e os sentidos disseram que tudo aquilo era real e não um sonho fantástico, Haramis examinou a situação. Estava ilesa e, graças às poderosas criaturas, salva de uma morte quase certa. Seria mágica da Arquimaga? A Dama Branca teria ainda algum poder, embora sem força para lutar contra Orogastus e impedir a invasão de Ruwenda?
As asas enormes e fortes dos lammergeiers batiam em ritmo cadenciado, com um som surdo, cortando o ar. Suas costas brancas eram largas e macias como um colchão de penas. Haramis, comodamente sentada na reentrância atrás do pescoço listrado, quase não precisava se segurar. Depois de voar durante meia hora, o lammergeier virou para trás a cabeça encimada por uma crista e examinou sua estranha carga, mas os olhos eram mansos e o bico denteado não parecia ameaçador.
Sem saber se seria compreendida, Haramis disse:
— Meus agradecimentos por salvarem a mim e a meu companheiro.
A criatura teria feito um leve sinal afirmativo? Talvez não. Não virou mais a cabeça e continuou o voo seguro e ritmado. Haramis acenou para Uzun, mas não podiam conversar Porque os dois lammergeiers voavam bem longe um do outro.
O mundo lá embaixo era uma planície de nuvens cinzentas e no claro céu noturno as constelações cintilavam. O Arco Retesado, a Chaleira, a Árvore-Ladu, O Grande Verme, A Coroa do Norte.
Coroa...
O manto manchado com o sangue da sua mãe que envolvia a coroa pendia ainda do seu ombro. Haramis abriu as pontas e olhou para a Coroa da Rainha com o âmbar que continha o trílio, até a dor nublar seus olhos. Pelo menos Voltrik não tem isto, pensou sombriamente, nem terá enquanto eu viver! Ele matou meus pais, mas eu vivo ainda, e Ruwenda é minha!
Conteve as lágrimas. Agora eu sou a Rainha de Ruwenda e é meu dever proteger o país e seu povo, e me casar e ter filhos para que minha tarefa seja continuada quando eu desaparecer. Quase não podia respirar, com a garganta apertada, mas estava decidida. E também com medo. Eu sempre tive certeza de que seria rainha um dia — mas nunca imaginei que seria tão cedo. nem nestas circunstâncias! Espero que a Dama Branca possa me ajudar. Sem dúvida vou precisar de muita ajuda.
Haveria realmente mágica nas estranhas flores fossilizadas da coroa e do seu amuleto, ou só por um acaso da sorte os lammergeiers da Arquimaga apareceram no momento exato?
Vou experimentar, pensou ela. Segurou o amuleto no cordão, fechou os olhos e disse:
— Transporte-me imediatamente para a casa da Arquimaga!
Nada aconteceu e o lammergeier continuou seu voo sereno. Tentou um pedido simples.
— Traga-me um doce delicioso, porque estou morrendo de fome.
Nada outra vez, e seu estômago se contraiu dolorosamente.
Aí está a mágica. Ora, muito bem. Que importa?
Uma profunda depressão a dominou. Não tinha um reino para governar, nem um esposo real para sentar ao seu lado. Haramis tentou se alegrar, procurando uma compensação para tudo aquilo. Sempre detestara a a pompa e a cerimónia da vida na corte, as intermináveis audiências a ministros que seu pai suportava pacientemente, os banquetes tediosos e as diversões supervisionadas por sua mãe, sempre rodeada por suas damas tagarelas. Mas a Rainha Kalanthe tinha outros interesses também: escrevia poesias e interessava-se pela sorte dos menos afortunados de Ruwenda, procurando melhorar suas vidas sem tolher-lhes a iniciativa. Haramis sempre temeu o papel de rainha. Obedientemente o aceitava como uma obrigação. Mas agora essa obrigação fora alterada, pelo menos em parte.
Aconchegou-se mais entre as penas macias, com o vento cantando acima da sua cabeça, e esperou que o sono a libertasse. Amarrou no cinto cravejado de pedras preciosas o manto com a coroa. A Arquimaga saberia o que fazer com ela.
E o que fazer com Haramis.
Afinal, quem era essa mulher na verdade? Haramis não duvidava mais de que ela era real e não uma lenda. Os fatos fabulosos do seu nascimento deviam então ser aceitos como reais, bem como o sinistro discurso da Arquimaga. Se a Dama Branca estava realmente à morte, como podia dar conselhos? E por que havia dito, há tanto tempo, que tudo terminaria bem?
Os pensamentos giravam em sua mente e Haramis imaginou mais de vinte meios para salvar Ruwenda — vendo a si mesma cavalgando triunfante na frente do exército ruwendiano, depois de ter levado seu povo à vitória. Mas era tudo fantasia. Tinha dezessete anos, era inteligente e culta, sem dúvida, mas não era uma guerreira líder de exércitos. Se essa Arquimaga a escolhera para instrumento do destino, devia estar mesmo senil...
Preciso ficar de sobreaviso, pensou Haramis. Quem sabe que planos mirabolantes essa velha mulher traçou para mim? Mas serei cuidadosa e formarei minha opinião. Sou rainha agora e a responsabilidade é minha, não importa quem me dê conselhos. Não devo me submeter docilmente à vontade de ninguém.
Com trílio ou sem trílio.
Quando Haramis acordou o dia estava nascendo e os dois lammergeiers voavam ainda. Os Montes Ohogan destacavam-se agora à frente, escondendo a metade do céu com suas ameaçadoras presas de granito e basalto completamente cobertas de neve logo acima da copa das árvores, A luz rosada do sol nascente emprestava uma falsa suavidade às geleiras. O coração de Haramis se apertou. E se a Arquimaga dissesse que seu destino estava ali, nas montanhas?
A neblina fria chamuscava a relva lá embaixo à medida que o sol ficava mais quente, e a selva transformava-se num vasto mar ondulante, amarelado, diferente de tudo que ela conhecia do Pântano Labirinto. Raros retalhos de terra seca quebravam a monotonia da planície alagada. Nessas elevações cresciam árvores, arbustos e outros tipos de vegetação, e, imaginou ela, ali deviam estar as casas dos uisgus, os pequeninos parentes dos nyssomus que habitavam a extremidade norte do Pântano.
Havia nativos nas montanhas também, ela sabia. Chamavam-se vispis, mas os humanos não tinham contato com eles. Os homens que haviam explorado a região contavam que, mais para o leste, onde a cordilheira era cortada pelo Passo Vispi, nas noites de lua os vispis apareciam e dançavam na neve recémcaída. Havia também histórias de horror sobre os oddlings das montanhas. Eram chamados de demónios da névoa congelada e seus olhos espreitavam nos redemoinhos de vento frio e, diziam, quem olhasse para eles morria. Mas ninguém duvidava que os vispis eram reais e não seres sobrenaturais, pois eles vendiam pedras e metais preciosos para os uisgus. Estes então levavam seus artigos até os humanos, por intermédio dos nyssomus, e os vispis exigiam em troca animais como froniais e volumniais, tecidos e alguns outros itens. Mas nenhum humano jamais soube dizer como eram os vispis — com exceção talvez dos infelizes soldados dos antigos exércitos de Labornok que, há muito, muito tempo, haviam ousado atravessar o Passo Vispi (se é que se podia dar crédito às histórias antigas) e morreram nas mãos dos vassalos da Guardiã Dama Branca.
À medida que o dia avançava a luz do sol refletia-se nos espelhos formados pelas lagoas e pequenos rios do Pântano Dourado. Haramis observava os rios sinuosos, provavelmente vias de transporte dos uisgus. Então, depois de várias horas seguindo o curso de um rio um pouco mais largo, na direção norte, o terreno ficou mais alto e o Pântano Dourado terminou nos sopés das colinas onde se erguiam, esparsas, árvores estranhas, entre lodaçais floridos das terras altas. Os lammergeiers começaram a voar em círculos, descendo lentamente.
Haramis viu ruínas na margem do rio, cobertas de mato, com árvores equilibradas sobre muros desmoronados como que espiando acima de cúpulas quebradas. Ao contrário de sua irmã Kadiya, Haramis não tinha vontade de explorar aquelas ruínas. Interessava-se somente pelos objetos encontrados nelas. Como os que havia possuído — uma caixinha sem adornos, que conforme o lado em que fosse colocada tocava uma música diferente, estranha e etérea- um instrumento para escrever, cuja tinta parecia nunca se acabar, e um bracelete feito de uma substância dura, que não era osso, nem madeira, nem nenhum dos minerais conhecidos pelos estudiosos de Ruwenda. Sem dúvida os Desaparecidos tinham alguns poderes mas seus segredos estavam há muito tempo perdidos. Mas se a Arquimaga conhecia de verdade os poderes dos antigos, então Haramis talvez tivesse uma chance remota de realizar a profecia do seu nascimento.
Instintivamente segurou o amuleto e pediu: ”Deus amado e Senhores do Ar, não permitam que eu me deixe enganar! Acima de tudo, não permitam que eu seja levada ao fracasso por um comportamento impensado. Eu não o suportaria!”
Agora flutuavam suavemente, aproximando-se de uma pequena estrutura de pedra em forma de torre, quase escondida pela folhagem muito verde e espessa. As criaturas aladas tocaram o solo numa espécie de gramado natural, repleto de flores silvestres, que se estendia até a ponte levadiça aberta. No fosso cresciam flores aquáticas e o ar era docemente perfumado.
Haramis deslizou das costas do lammergeier e curvou-se profundamente para ele.
Meus calorosos agradecimentos a você, senhor dos ceus, por me trazer, e ao meu bom servo, a este porto seguro. Quando ergueu a cabeça, os dois pássaros já tinham alçado voo. Antes de desaparecerem atrás das árvores, soltaram gritos altos e breves como um clarim.
Uzun, de pé ao lado dela, era uma figurinha cômica. Perdera o gorro, o cabelo longo e sedoso estava emaranhado pelo vento e a roupa de veludo marrom-avermelhado, antes elegante, estava suja e amarrotada. Mas o largo sorriso era o mesmo, indómito.
— Aqui estamos — pipilou ele. — Vamos entrar, pois os lammergeiers anunciaram nossa chegada.
Atravessaram lentamente a relva florida até a ponte. A casa estava coberta de musgo, trepadeiras e frondes rendadas, as arestas das pedras foram suavizadas pelas flores que brotavam das juntas. Plantas cresciam também entre as tábuas da ponte. A princesa atravessou com cuidado, temendo pisar em alguma tábua apodrecida, mas a ponte parecia bastante sólida. Nenhum empregado apareceu para recebê-los, a casa coberta de vegetação parecia desabitada. Mas Uzun adiantou-se confiante e Haramis o seguiu, olhando maravilhada para as colunas estranhamente esculpidas, os painéis nas paredes e o chão de mosaico quase escondido pelo musgo, líquen e mato baixo. Passaram por uma fonte que jorrava água, sob arcos de onde pendiam trepadeiras e por jardins gloriosos, repletos de flores das mais variadas tonalidades.
Pararam afinal na frente de uma porta de madeira negra polida, sem musgo ou vegetação, com dobradiças e uma aldraba redonda que parecia feita de ouro maciço. Tinha no centro um entalhe da mesma madeira, circundado por uma tira brilhante de platina, representando o Trílio Negro.
— Esta é a câmara da Arquimaga Binah — disse Uzun. — Só você pode entrar. — Com uma curvatura para Haramis, ele recuou para o lado.
A princesa hesitou.
— Mas, você deve vir comigo!
— Não, princesa, esperarei aqui. Haramis empertigou-se.
— Muito bem. — Procurando evitar que sua mão tremesse, ela puxou a aldraba de ouro. A porta abriu-se facilmente e Haramis entrou.
A câmara, sem janelas, era pouco iluminada e quente. Na luz fraca, Haramis divisou alguns móveis — armários, prensas, estantes com livros, aparelhos estranhos sobre as mesas, banquetas e sofás e uma cama enorme com cortinas escuras. O fogo brando de turfa crepitava na lareira, e na frente dela havia uma bela mesa, arrumada para uma pessoa, com um prato de cristal, uma colher e uma faca de ouro. Por debaixo das tampas das travessas de ouro erguia-se uma fumaça e um cheiro delicioso. Ao lado do prato havia uma jarra com vinho, e uma bela lâmpada com cúpula de vidro opalescente iluminava a cena. Uma das cadeiras estava perto do fogo, a outra no lado oposto, tendo na frente, sobre a mesa, uma caixinha de platina, amassada e embotada pelo uso.
— Seja bem-vinda, minha filha — disse uma voz suave, mas cheia de força. — Eu estava à sua espera.
Espantada, Haramis olhou em volta e percebeu movimento na grande cama.
— Minha senhora? — disse ela, com uma mesura instintiva.
— Venha me ajudar, para que eu possa me sentar ao seu lado enquanto faz sua refeição.
Intrigada, Haramis perguntou:
— É a Arquimaga Binah?
— Sim, eu sou. Não tenha medo. Há muito tempo espero a sua chegada e a de suas irmãs, e sou grata por você ter chegado sã e salva.
Haramis ficou imóvel.
— Kadiya e Anigel. estão vivas?
— Sim, estão. Não se preocupe com elas agora, pois devem seguir seus caminhos e você o seu. Venha, ajude-me a me vestir.
Um medo terrível a assaltou e Haramis não se moveu. Sabia que, quisesse ou não, ia se lançar numa aventura terrível.
A mulher com belos cabelos longos e brancos sentou vagarosamente na cama e fez sinal à jovem para se aproximar. No rosto liso, sem rugas, só os olhos, tão fundos que mal se podia ver a cor, traíam a idade avançada. Haramis sentiu-se atraída pela força irresistível do olhar da Arquimaga. Com uma sensação de terror, pôs no chão o manto com a coroa e aproximou-se da cama. Mas então, de repente, estava livre e o pânico desapareceu. Via agora apenas uma pobre velha doente que precisava da sua ajuda.
Ajudou a Arquimaga a vestir a túnica longa e branca, com reflexos azulados nas pregas, e calçou os chinelos de pele nos pés longos e bem-feitos. A mulher ficou de pé e Haramis viu que ela era muito alta. Com o corpo ereto, a Arquimaga caminhou até a mesa e sentou-se.
— Por favor, sente-se, minha filha, e coma. Deve estar faminta depois de toda a provação na Cidadela e da longa viagem.
— Meu companheiro, o músico Uzun... — Haramis começou a dizer.
— Ele está sendo atendido por meu mordomo Damatole e terá todo o descanso e alimento que necessita.
— Eu agradeço — disse Haramis —, pois devo a vida a ele e não quero que sofra por causa de sua devoção.
Então Haramis fez as honras do jantar com o apetite jovem e saudável, pois não comia desde a manhã do dia anterior. Serviu-se de ave grelhada, sopa cremosa temperada com ervas, tubérculos dorun recobertos com queijo de algas e salada de agrião amargo. A sobremesa era uma torta recheada com uma fruta que ela não conhecia, com gosto picante, que Haramis comeu até a última migalha.
Então, com um suspiro, recostou na cadeira e tomou um gole do vinho delicioso. A Arquimaga sorriu e Haramis, um pouco embaraçada, disse:
— Nem me lembrei de lavar as mãos e devorei seu jantar delicioso como um servo mal-educado. Por essa falta de boas maneiras peço desculpas, Senhora Binah. Para compensar, posso tirar a mesa e lavar os pratos, mas confesso que não conheço bem esse serviço de copa.
— Felizmente, aqui em Noth — disse a Arquimaga — não precisamos nos preocupar com essas trivialidades. — Fez um gesto e tudo desapareceu da mesa, menos a jarra de vinho, o copo de Haramis e a misteriosa caixa de platina.
— Então, é mesmo uma feiticeira — murmurou a jovem.
— Esses truques não exigem muita arte — admitiu Binah. — Mas os grandes encantamentos estão agora fora do alcance dos meus poderes enfraquecidos.
— Uma vez que seus lammergeiers nos trouxeram até aqui, suponho que sabe o que aconteceu.
— As grandes criaturas aladas não me pertencem — corrigiu a maga. — São livres, pertencem só a elas mesmas. verdade que ordenei que os trouxessem, pois elas obedecem a alguns dos seus amigos. Quanto à sua pergunta — sim, sei o que aconteceu. Vi tudo e chorei por não poder impedir.
Haramis disse, com o rosto inexpressivo:
— Então, sua força mágica não é suficiente para libertar Ruwenda do assassino Voltrik e do bruxo Orogastus?
— Mesmo assim, eu a aconselho a não subestimar Orogastus, minha filha. Ele não é um trapaceiro comum, como os mágicos que você conhece. Orogastus tem um poder imenso, e não só comanda a tempestade como também possui a chave de muitos outros encantamentos terríveis. Procura o poder em toda parte e faz uso dele para conseguir o que deseja. Atualmente sua arte transcende a minha em tudo, exceto no que se refere à visão a distância, para a qual ele precisa do espelho de gelo escondido nas profundezas da sua casa nas montanhas.
— Então, não pode me ajudar a vencer os inimigos de Ruwenda?
— Eu não disse isso. Porém, a restauração de Ruwenda é uma tarefa que requer a cooperação das três Pétalas do Trílio.
— Quer dizer minhas irmãs? — perguntou Haramis, incrédula e horrorizada. — Não creio que possamos depender delas para qualquer ajuda construtiva. Eu evitei que Kadiya atacasse os assassinos da nossa mãe com sua adaga! E Anigel só sabe se encolher num canto e chorar.
— Contudo, minha visão afirma que as três devem cumprir certas tarefas predeterminadas, aprendendo acima de tudo a se dominar completamente, antes que Ruwenda possa se libertar do jugo de Labornok. E se uma de vocês falhar, todas falharão.
— Mas isso não é justo! — protestou Haramis.
— Não — disse a Arquimaga, com voz suave. — É apenas como é.
Perturbada, Haramis levou a mão ao amuleto do trílio.
— Pensei que os talismãs que nos deu possuíssem forças mágicas. Mas quando experimentei, o meu falhou.
— Só podem ajudá-las nos momentos de perigo mortal, e seus poderes são limitados,
— Foi o que descobri — Haramis suspirou. — Bem, minha primeira súplica foi atendida, e a segunda e a terceira não eram tão urgentes quanto pensei. Este amuleto terá papel importante nas tarefas que devo cumprir?
— Isso eu não sei. Você terá de descobrir seus segredos, assim como os segredos do seu próprio íntimo e superar as falhas e fraquezas que podem desviá-la do seu destino. Mas uma coisa eu sei. Quando terminar seu trabalho preliminar, você receberá um sinal. Um novo talismã, o Círculo das Três Asas, chegará às suas mãos. Então, vai saber que chegou a hora da luta final por Ruwenda e por sua alma.
— E as minhas irmãs?
— Terão suas tarefas. Se forem bem-sucedidas, receberão também seus talismãs. As Três Pétalas do Trílio entrarão em contato e se unirão. O resultado será a restauração do equilíbrio do mundo, agora perdido.
Haramis recostou pesadamente na cadeira.
— Essa tarefa. Devo começar imediatamente? Estou tão cansada. Além disso, com todo o respeito, acho difícil acreditar no que diz. Eu nem acreditava na sua existência...
— O que você acredita, neste momento, não importa, porque está exausta de dor e de medo. Deve rezar para ter coragem e força e, acima de tudo, deve aprender a confiar em si mesma e no poder Triúne que nos ama e nos guia.
Haramis riu brevemente, com ironia.
— O que eu preciso agora é de uma ajuda mais concreta.
— Os nativos a ajudarão em tudo que for possível— os povos do pântano, das florestas e das montanhas. Como os habitantes humanos de Ruwenda, eles adoram e respeitam o Trílio Negro.
— E devo levar Uzun comigo? Ele está velho...
— Uzun a acompanhará numa parte da longa jornada que vai empreender. É destino dele ajudá-la a realizar o seu. Porém, os maiores desafios terá de enfrentar sozinha.
Haramis olhou pensativamente para as chamas na lareira, segurando de leve o amuleto.
— Pode me dizer a natureza dessa procura da perfeição da alma?
— Não. Mas você vai saber. Haramis exclamou:
— Não pode fazer nada para me ajudar, além deste jantar, conselhos e de me desejar boa sorte?
— Sim, eu posso.
A Arquimaga abriu a caixa de platina e pôs as duas mãos dentro dela. Ficou de pé e, como por milagre, tirou uma grande planta verde que de modo nenhum podia caber na caixa que estava sobre a mesa. Era um trílio quase da altura de Haramis, com as raízes expostas, folhas espessas e brilhantes, favas com sementes e miríades de flores negras como a noite, do tamanho de uma mão humana. A Arquimaga pôs a planta sobre a mesa.
Haramis exclamou, atónita:
— Que beleza! E está viva, não é um fóssil dentro de um pedaço de âmbar!
— É o último Trílio Negro vivo do mundo conhecido.
— E, por meio dele, nós três venceremos o Rei Voltrik e Orogastus! Sei que é verdade, Binah. Eu sei! — Haramis levantou-se, sem nenhum vestígio de cansaço, alimentada pela visão da planta maravilhosa cujas flores tinham a cor dos seus cabelos.
A maga apanhou algo sob uma das folhas grandes e colocou na mão de Haramis, fechando os dedos da jovem sobre o objeto. Então, ergueu a planta, colocou-a miraculosamente de novo na caixinha de platina e fechou a tampa.
Haramis piscou os olhos como se tivesse apagado uma luz brilhante, e com ela a certeza que sentira há pouco.
— Mas. isso é tudo?
A Arquimaga segurou-a pelo braço e a levou até a porta.
— O que eu lhe dei vai mostrar o caminho. Guardarei a coroa de Ruwenda para você. Jamais será tocada por mãos inimigas. Porém, lembre-se, Orogastus é o seu verdadeiro inimigo e não o Rei Voltrik. Mas ele vive pelas leis da magia, segundo as quais, para cada força deve existir uma fraqueza e vulnerabilidade correspondente. Se puder descobrir a fraqueza de Orogastus e vencer as suas, você triunfará. Não posso dizer nada mais. Agora, deve ir. Volte para mim quando receber o Círculo das Três Asas.
— Mas o que é o Círculo das Três Asas? — perguntou Haramis, ansiosa.
— Vai saber encontrá-lo — garantiu Binah. — Adeus. De repente, Haramis estava outra vez no relvado cheio de flores, olhando para a torre coberta de musgo, com Uzun ao seu lado, agora vestindo roupas secas e limpas. A princesa notou que suas roupas sujas e rasgadas tinham também desaparecido e ela usava agora um vestido de lã branca adornado com pele de fedok albino e, dependurado sobre o corpete, o amuleto com o cordão de ouro. Um manto forrado de pele pendia dos seus ombros. Estava calçada com botas fortes, de couro. No chão estavam duas mochilas e dois bordões com pontas de ferro para caminhada.
— Estou pronto, princesa — disse Uzun. Voltou-se para ela com um largo sorriso no rosto rosado como cerejas maduras. — A Dama Branca até me deu uma flauta fiple novinha, para que eu possa alegrar a nossa jornada com música!
— Mas que caminho devemos seguir? — Haramis fechou os punhos irritada. Lembrou então que a Arquimaga havia posto alguma coisa em sua mão. Abriu os dedos e viu na palma uma fava do Trílio Negro, seca e brilhante. Instintivamente ela a abriu, revelando as fileiras de sementes aladas. Ainda sem pensar, Haramis apanhou uma delas e a atirou para cima. Para sua surpresa a semente, em vez de ser levada pelo vento, flutuou para o norte, na direção das montanhas.
O caminho parecia um trecho de terras altas no meio do pântano, sem nenhuma passagem marcada. Porém, observando a semente com atenção, Haramis percebeu uma trilha aparentemente pouco usada, como a que faz um animal abrindo caminho entre as moitas e o mato.
— Muito bem — disse ela. — Acho que este guia é tão bom quanto qualquer outro. Vamos partir?
Sem perder de vista o pontinho branco flutuante, Haramis pôs a mochila no ombro e entrou no pântano com Uzun logo atrás.
A tarde ia em meio quando o vigia do primeiro barco gritou com voz cantada: ”Trevista à frente!”
Pellan, o guia dos mercadores, encarregado do comando da frota improvisada dos labornoks, levou aos lábios uma pequena corneta de ouro e emitiu um aviso de três notas. Imediatamente os remadores dos quatorze barcos tiraram os remos da água e os homens na proa e na popa lançaram as âncoras no raso e lamacento rio. Pellan tocou outro aviso mais complexo na corneta, dando ordem de descanso para os marinheiros.
Um berro furioso soou na proa e uma voz rouca gritou o nome de Pellan, seguido de obscenidades. Embora a viagem rio acima tivesse sido feita em tempo recorde, o General Hamil descobriu um motivo para reclamar.
Com um suspiro o comandante dos barcos saiu da cabine de proa e dirigiu-se para a popa do barco. Ao contrário das outras embarcações, esta não transportava carroças de suprimentos, nem animais de carga, mas apenas as montarias dos nobres, amarradas no convés de proa (só Deus sabia o que os conquistadores pretendiam fazer com elas nos pântanos sem trilhas ao redor de Trevista), com suas rações e jaezes, mochilas de couro cheias de armas e armaduras, e um grupo de vinte ou trinta cavalariços, soldados e lacaios que durante todo o tempo jogavam, cochilavam ou trocavam gracejos pesados com os remadores.
Pellan parou na pequena cabine no centro do barco onde ficava a cozinha e seu pequeno alojamento — este ocupado pelo feiticeiro Orogastus e seus dois malévolos ajudantes —, a fim de dar ordens para que fosse servida uma boa caneca de vinho aos remadores e uma dose de bebida aos labornoks, para evitar descontentamento.
Passou por um grupo de sargentos que olharam furiosos para ele porque a parada da embarcação os privava da brisa fresca, e chegou finalmente ao convés de popa. Um toldo fora erguido naquela parte da embarcação para proteger os passageiros privilegiados, entre os quais estavam os homens do Príncipe Antar, o General Hamil e um punhado de oficiais de alta patente, que o acompanhavam na expedição de busca, além do mestre-mercador Edzar, designado como portavoz das forças dominadoras de Labornok no contato com os nativos de Trevista.
Os cavaleiros mais jovens debruçavam-se na amurada, olhando para longe, esperando avistar a fabulosa cidade dos oddlings. Sem as armaduras vistosas e brilhantes, eram homens vulgares, com blusões e calções manchados de suor e de poeira. Os nobres e oficiais vestiam-se do mesmo modo, distinguindo-se dos cavaleiros apenas pela limpeza das roupas. O gorducho mestre-mercador, por outro lado, parecia um cortesão pronto para uma audiência real, com a capa curta da guilda, verde, bordada a ouro, sobre a roupa fina cor-de-laranja. O chapéu de tecido verde-folha tinha abas enormes e uma faixa enfeitada com flores naturais.
— Por que paramos? — perguntou asperamente a Pellan o General Hamil. — Se aquilo lá na frente é Trevista, então mexa esse traseiro preguiçoso e continue a viagem! Suas ordens são para nos levar a Trevista o mais depressa possível.
Toda a frota estava parada no meio do Baixo Mutar, tão largo naquele ponto que os bancos de terra do Pântano Negro ficavam a quase uma légua de distância dos dois lados. Pellan ergueu a mão numa continência negligente.
— Precisamos obedecer aos protocolos do mestre-mercador, meu general, e esperar pela escolta de nyssomus que nos levará até Trevista.
— Mercadores? — exclamou o comandante-em-chefe dos labornoks. — Não somos um bando de vendedores, somos conquistadores — e o único protocolo que obedecemos é o nosso. Levante a âncora e vamos depressa!
— Senhor, isso não seria aconselhável. Não posso me responsabilizar pelos resultados. — O traidor ruwendiano tinha um rosto tão escuro e áspero quanto o couro da sua roupa. As maçãs de seu rosto estavam cobertas por um restolho de barba branca, resultado dos três dias de viagem rio acima, e sua expressão sugeria insolência. — Esses oddlings selvagens são muito sensíveis. Não posso prever o que farão se entrarmos em Trevista assim sem mais nem menos...
— Ruwenda é nossa e fazemos o que queremos! — rugiu Hamil, desembainhando a espada. — Agora, mexa-se, ou vou ventilar sua goela!
Sem se perturbar com a ameaça, Pellan voltou-se para o mestre-mercador labornok, que estivera distraindo o general e seus amigos com histórias fabulosas das cidades secretas dos Desaparecidos.
— Mestre Edzar, fale com ele. O general aparentemente não compreende a situação. — Sem terminar a frase, Pellan deu um grito, quando Hamil o segurou pelos cabelos e ergueu a espada.
— General! Pare, eu ordeno!
O Príncipe Antar, que fizera a viagem toda cabisbaixo, sentado sozinho na proa, abriu caminho entre os cavaleiros que esperavam excitados o derramamento de sangue e parou na frente do velho soldado. Com relutância, Hamil largou Pellan, que imediatamente colocou-se fora do alcance do general, enquanto o mestre-mercador curvava-se para o príncipe.
— Deixe-me explicar, senhor. Posso garantir que nosso novo aliado, Pellan, está tentando defender os interesses de Labornok.
— É bom que esteja — resmungou Hamil —, do contrário vai parar no fundo do Mutar com os vermes dos pântanos devorando suas jóias de família.
Quase todos os cavaleiros riram, mas o príncipe disse:
— Continue, Mestre Edzar.
— Lá adiante está Trevista. — O mestre-mercador apontou para um conjunto de pequenas elevações rio acima, manchas verdes distantes com sombras lilases que cintilavam no vapor do ar quente e enchiam o canal do Mutar de margem a margem. — Fica naquele grupo de ilhas, na confluência do Rio Vispar com o Alto Mutar. Mas não é o tipo de cidade que nós, os labornoks, conhecemos — nem que os ruwendianos conhecem —, e a chamada Feira de Trevista não se realiza sempre no mesmo lugar. O local é escolhido de acordo com o capricho dos nyssomus, de modo que nem mesmo os guias dos mercadores, como o nosso amigo Pellan, podem dizer com certeza onde está instalada hoje.
Osorkon, o enorme ajudante de Hamil, bufou com desprezo.
— Uma cidade numa ilha — e vocês não são capazes de localizar um miserável mercado oddling? Não deve ser tão difícil, nem que ele salte como um peixe na lama quente.
— Trevista não fica numa ilha, Lorde Osorkon — a mão de Edzar indicou todo o horizonte. — Fica em todas elas.
Ouviram-se exclamações de espanto dos homens.
— Trevista é — ou era — a coroa de glória da arquitetura dos Desaparecidos. Ao lado dela, a imensidão da Cidadela de Ruwenda não passa de um forte primitivo, um refúgio contra qualquer desastre que ameaçasse aquela antiga raça. Cada uma dessas centenas de ilhas contém ruínas e entre elas há um sistema complexo de canais com paredes solidamente fixadas no fundo do rio. Existem comportas, pontes enormes, estaleiros desmoronados — todos os tipos de estruturas ribeirinhas, para não falar nos edifícios públicos em ruínas, belas residências semidestruídas pelo tempo e enormes praças e arcadas, tudo coberto de mato denso, nos lugares que os nyssomus são proibidos de explorar.
— Qual a área da cidade habitada pelos nativos? — perguntou o príncipe.
— Ninguém sabe, grande senhor. Os nyssomus selvagens evitam todo contato com os humanos. Nós, os mercadores, somos conduzidos ao lugar da feira e lá cada oddling oferece mercadoria que acha que pode nos interessar. — Evitando o lhar furioso de Hamil, ele acrescentou: — Se esta frota entrasse em Trevista sem permissão — deve notar que não estou dizendo sem se anunciar, porque eles sempre sabem quando estamos chegando — é possível que nenhum nyssomu se dignasse a aparecer. Encontraríamos o lugar deserto. Quanto a invadir Trevista, com o objetivo de conquistá-la, seria uma aventura inútil. Aquele vasto conjunto de ruínas vale apenas pelas mercadorias que nos oferecem e por elas devemos cultivar a boa vontade dos oddlings.
— Falou muito bem, Mestre Edzar. — O príncipe olhou significativamente para o general. — E se conquistarmos sua confiança — garantindo que o comércio continuará como antes sob o governo de Labornok — acredita que estarão dispostos a cooperar?
— Podemos esperar que sim, grande senhor.
— Pois nós vamos estabelecer uma base em Trevista! — declarou Hamil. — São as ordens do Rei Voltrik. E é melhor que aqueles insignificantes pantaneiros não pensem em nos trair, ajudando a princesa fugitiva, se sabem o que é bom para eles!
— Está claro — disse o príncipe em voz baixa — que os nyssomus são mais leais às princesas do que a nós. Teremos de localizar as princesas usando sutileza e não com demonstração de força. — Olhou para os cavaleiros e depois para o General Hamil. — Está bem claro?
— Perfeitamente — resmungou Hamil, acrescentando com algum atraso —, meu príncipe.
— Embarcação a remo à vista! — cantou o vigia.
Os cavaleiros aproximaram-se novamente da amurada para ver a aproximação do estranho barco. Não era a remo, nem a vela, mas deslizava velozmente na direção da grande barcaça lobornoki, deixando uma esteira branca em forma de V na água lamacenta. Estava enfeitado com flores, da proa à Popa, e parecia transportar um único ocupante.
— O que é que faz aquele barco andar? — perguntou espantado Sir Owanon.
Pellan, mantendo-se fora do alcance do General Hamil, e tendo recobrado sua dignidade, respondeu:
— É impulsionado por um par de rimorkis, criaturas aquáticas que parecem grandes pelriks. Infelizmente, os rimorkis não se deixam domar pelos humanos. Mesmo entre os nyssomus, poucos sabem como dominá-los, pois é um truque que aprendem com seus primos insociáveis, os uisgus. Membros da tribo dos uisgus visitam Trevista regularmente, trazendo mercadorias do extremo norte do Pântano.
O príncipe pôs a mão no ombro de Edzar e o levou para longe dos outros, na direção da cabine no centro do barco.
— Explique o que quis dizer quando se referiu ao fato de a nossa frota não ser anunciada. Significa que os oddlings de Trevista acompanharam nossa viagem, apesar da velocidade com que subimos o rio?
O mestre-amador deu de ombros.
— Grande senhor, eles se comunicam a distância, usando a linguagem sem palavras, como Lorde Orogastus comunica-se com suas Vozes.
A porta da cabine de Pellan abriu-se tão bruscamente que o príncipe e o mestre sobressaltaram-se. O feiticeiro alto, vestido de branco e negro, apareceu com o rosto meio coberto pelo capuz. Atrás dele estavam dois vultos também encapuzados, os acólitos, conhecidos como Vozes, um baixo e forte, vestido de vermelho; o outro alto e magro, vestido de azul.
— Tem razão — disse Orogastus com sua voz profunda. — Os não-humanos usam uma forma primitiva de telepatia, e às vezes podem descrever eventos a distância por meio da Visão — embora sua capacidade para usar esses dois poderes seja muito inferior à minha.
O príncipe mandou que o mestre-mercador os deixasse e então disse com voz fria:
— Grande ministro, nunca me falou sobre isso, antes.
— Não foi preciso. Durante a invasão, não era importante e nós jamais pensamos em fazer guerra contra os nativos. Ao contrário... Vamos usar muito bem essas criaturas.
— Então tem um plano para conquistar a aliança desses pequenos oddlings, como fizemos com os skriteks? O rei meu pai sugeriu alguma coisa a respeito durante a marcha contra a Cidadela. — O tom de Antar era formal, um misto de deferência e ressentimento. Embora estivesse com 26 anos, nem o rei e nem o misterioso grande ministro haviam confiado a ele seus planos futuros.
— Quando chegar o momento, faremos aliança com certas tribos — Orogastus sacudiu a mão com um gesto de desprezo. — Mas não com esses vulgares nyssomus. Para nós eles só são úteis pelas ervas e outros produtos do pântano que vendem. Há muito tempo já retiraram os aparelhos e objetos antigos mais interessantes de Trevista e das cidades abandonadas próximas, e, devido à sua ligação amistosa com os ruwendianos, não acredito que estejam dispostos a fazer o esforço de procurar novos objetos interessantes para nós. Entretanto, pretendo fazer com que oddlings leais a nós explorem as partes mais remotas do Pântano Labirinto, onde eu sei que existem certas extraordinárias máquinas mágicas dos Desaparecidos. Esses engenhos, usados adequadamente, permitirão que Labornok estenda seu domínio, não só por toda a Península — mas, com o tempo, por todo o mundo conhecido.
O príncipe sentiu um aperto no coração. Então foi por isso que o Rei Voltrik havia concedido àquele presunçoso o título de grande ministro, contrariando a opinião dos conselheiros mais conservadores! Estaria o feiticeiro apenas aproveitando-se da credulidade de Voltrik, ou aquele plano louco era baseado em fatos?
A expressão de Antar demonstrava seu ceticismo tolerante.
— Então é o que diz? Labornok dominando o mundo..? Não admira que tenha insistido tanto para que Labornok declarasse guerra a Ruwenda! Mas isto também é novidade para mim. Qual é a natureza dessa maravilhosa aparelhagem que procura, e como sabe da existência dela?
— Falaremos sobre isso em outra ocasião, meu príncipe. O barco de Trevista está chegando e sua pergunta envolve assuntos da mais alta diplomacia real que só podem ser enunciados pelo próprio rei.
Orogastus respondeu com um gesto afirmativo ao murmúrio sibilante do homem vestido de vermelho.
— A Voz Vermelha lembrou-me de informá-lo que a condição do rei seu pai piorou um pouco. Minha Voz Verde, ao lado do leito, nos comunicou essa notícia. O Rei Voltrik sofre de febre e a mão ferida está tomada por humores tóxicos. Mandei minha Voz Verde administrar o remédio mais potente que possuo, a Pastilha Dourada, que deverá aliviar o sofrimento do rei dentro de dois ou três dias.
O príncipe franziu a testa.
— Por que não administrou antes essa pastilha miraculosa?
— É um medicamento dos Desaparecidos, meu príncipe, existem poucas, e só servem para o tratamento de doenças que podem ser mortais. Eu esperava que o ferimento do Rei Voltrik respondesse satisfatoriamente ao tratamento do médico da corte. Como não respondeu, torna-se indicada a terapia mais drástica: a Pastilha Dourada.
— E que vai curá-lo, certamente? O feiticeiro hesitou.
— Ao que sei, nunca falhou. Porém, só a usei cinco vezes antes — três vezes em mim mesmo, uma vez para a Voz Azul e uma vez na falecida Princesa Shonda, a segunda esposa do seu pai, quando seu pé começou a gangrenar por causa de um ferimento com espinho. Infelizmente, o ferimento do rei seu pai é extremamente perigoso. Por isso estou em contato distante com meu acólito em intervalos freqüentes, e ao mesmo tempo observo de perto o rei seu pai por meio da Visão.
O Príncipe Antar, com expressão pensativa e sombria, disse:
— Vou me lembrar do rei meu pai em minhas preces... E você deve também recomendar fervorosamente nosso rei aos deuses exóticos nos quais acredita, feiticeiro. Pois, se Voltrik morrer, a dor de Labornok será profunda. E quem sabe os bravos planos podem então vir a fracassar.
Antar fez meia-volta e afastou-se bruscamente.
A Voz Vermelha murmurou:
— Esse vai ser menos manejável do que o pai, Mestre todo-Poderoso.
O esguio Voz Azul, perto do ombro direito do feiticeiro, murmurou:
— Seria um prazer providenciar sua reconciliação.
— Não — disse Orogastus, com voz firme. — Ainda não. Mas seu zelo me agrada. E, quando chegar o momento apropriado, você será designado para modificar a atitude do príncipe e será ricamente recompensado se tiver sucesso.
A pequena embarcação nyssomu, enfeitada de flores, mais lenta agora, conduziu a frota até a ilha mais ao largo de Trevista. Na proa do primeiro barco, Lorde Osorkon erguia bem alto a bandeira vermelho-sangue de Labornok, e os cavaleiros e soldados a bordo dos outros treze barcos que transportavam as carroças de suprimento envergaram suas armaduras e mantos para entrar na cidade com toda a pompa.
— É uma pena que não vamos conhecer as ilhas do interior de Trevista desta vez — observou o mestre-mercador Edzar. — Há pontes espetaculares e a ruína maravilhosa de um observatório astronómico numa delas, com colunas curiosas que devem ter servido de suporte a antigos equipamentos. Entretanto, estou certo de que acharão interessante esta ilha externa, e afinal, não estamos aqui para ver a paisagem e sim para um contato inicial satisfatório com a Observadora Frolotu e seus associados.
— Essa Observadora é a governanta de Trevista, da qual você me falou? — perguntou o Príncipe Antar. Como seus homens, envergava a armadura com uma tiara no elmo azul alado.
— A Observadora não governa, meu príncipe, só fala por seu povo e serve como elemento de ligação entre os mestres-mercadores e os nyssomus. Mas ela é o que a cidade tem de mais parecido com um poder central — e ninguém pode enganá-la. Dizem que é capaz de ler as mentes das pessoas.
— Isso é verdade? — perguntou Orogastus, aproximando-se do grupo no convés de proa, acompanhado por suas duas Vozes.
O mestre pigarreou, nervoso.
— Eu não posso afirmar, meu senhor. Verifiquei por experiência própria que ela demonstra um conhecimento incomum da intenção das pessoas — se o senhor compreende o que quero dizer.
— Está dizendo — observou o Príncipe Antar, adiantando-se ao feiticeiro que ia falar — que essa Observadora sabe quando a pessoa está mentindo ou dizendo a verdade.
— Quase com exatidão. E.. bem. isso pode dificultar nossas negociações. Especialmente no que se refere à procura das princesas. Precisamos usar de muito tato.
— Para o diabo com seu tato! — explodiu o General Hamil. — Se os oddlings se recusarem a nos ajudar na busca, nós os obrigaremos, fazendo alguns reféns. Talvez essa Observadora tenha o prazer de provar a hospitalidade de Lorde Osorkon!
O ajudante de Hamil, com sua assustadora armadura negra, riu maldosamente.
— Seria um privilégio para mim. Edzar deu de ombros.
— Se aprisionarmos a Observadora Frolotu, os nyssomus simplesmente escolherão outra. E provavelmente toda a tribo desaparecerá, como a névoa ao meio-dia, terminando nosso comércio com eles. Como já tentei explicar, meu general, nossas opções de comércio com essas estranhas criaturas são muito limitadas.
Hamil voltou-se para o feiticeiro.
— Então, deve usar sua mágica para obrigá-los.
— Veremos — respondeu Orogastus, suavemente.
— Uma vez que eu comando esta expedição — disse o Príncipe Antar —, deve ficar bem claro que serei o único a negociar com essa Observadora. A invasão de Ruwenda por Labornok foi executada especialmente para corrigir as antigas diferenças no comércio com os oddlings e para garantir um suprimento regular de matérias essenciais como minério e madeira. Falo em nome do rei meu pai quando digo que nada deve prejudicar esse comércio. Nem o desejo do grande ministro por aparelhos antigos — e, especialmente, nem a obsessão do nosso general por aquelas três jovens infelizes. Todos devem obedecer a estas ordens!
— Certamente, meu príncipe — disse Orogastus, com um sorriso.
Os olhos de Hamil iam, do Príncipe Antar, cujos vinte cavaleiros armados haviam discretamente se aproximado do seu chefe, para o feiticeiro ladeado por suas Vozes enigmáticas. Finalmente, ele disse:
— Sou um soldado que obedece às ordens do rei e é verdade que ele delegou ao meu príncipe o comando desta expedição. Sendo assim, farei o que manda — a não ser que o próprio Rei Voltrik ordene o contrário.
Antar suspirou.
— Isso é o bastante.
Aliviada a tensão, voltaram todos às amuradas para não perder o espetáculo da chegada em Trevista.
O pequeno barco dirigido pelo único nyssomu conduziu a frota para um canal que parecia apenas uma abertura na selva espessa. Arvores gigantescas de espécies desconhecidas, de centenas de ells de altura, com galhos que pareciam imensos botaréus, formavam um teto cor de esmeralda acima da mata fechada. Um lugar mais impenetrável do que qualquer parte do Pântano já atravessada pelos labornoks. Nas margens do canal havia moitas de plantas estranhas com folhas do tamanho de portas, listradas de verde e vermelho, e uma fileira de espinhos dourados em cada veio. Trepadeiras grossas, com uma profusão de flores lilases, brancas e rosas, pendiam dos galhos altos das árvores com as pontas deslizando preguiçosamente na superfície da água. O perfume do ar úmido misturava-se ao odor menos agradável da vegetação apodrecida. Uma cacofonia de pios de pássaros, zumbidos de insetos e gritos de outras criaturas da floresta recebeu o primeiro barco a entrar no canal mas cessou imediatamente quando o nyssomu ficou de pé no barco-piloto e soltou um grito agudo e demorado.
Então fez-se silêncio, e só se ouvia o ruído dos remos na água. O mestre-mercador Edzar apontou para diante, sem falar, quando a frota entrou lentamente numa curva.
A princípio, os labornoks viram apenas uma grande área verde. Porém, quando seus olhos se adaptaram à nova paisagem, perceberam formas monumentais que surgiam de todos os lados, quase completamente cobertas pela vegetação. Havia casas — ou melhor, palácios — perto das quais as mansões de Derorguila não passavam de cabanas. As casas estavam enfileiradas na margem, esplêndidas, embora desertas, e seus alicerces formavam as paredes de um canal com 50 ells de largura. Os soldados e cavaleiros, boquiabertos, gritavam e saltavam como crianças, enquanto o barco seguia seu caminho, passando de uma maravilha para outra.
Por toda parte havia magníficos trabalhos de escultura e gravura nas pedras. Várias fachadas eram enfeitadas com mosaicos de cores vivas, como as flores tropicais que os cobriam. Alguns edifícios tinham jardins na frente. Outros tinham pórticos artisticamente desenhados, galerias abertas com colunas caneladas, colunas partidas ao meio, ou caídas no chão; terraços com balaustradas ricamente trabalhadas. Restos de estatuária misteriosa e grandes urnas quebradas eram quase invisíveis, sob o manto verde da vegetação. O calçamento multicolorido das enormes praças estava rachado e levantado por causa das raízes das árvores e dos arbustos. Mas ninguém podia dizer que a selva se apossara de Trevista: a antiga metrópole estava envolta numa aura de poder e de beleza sofisticada, que o passar das eras não tinha diminuído.
Seguindo o barco-piloto, entraram num canal secundário e quase imediatamente a vegetação que escondia as ruínas começou a mudar de aspecto. A maior parte das construções parecia ainda coberta de verde, mas algumas ruas centrais e transversais estavam desimpedidas. Os barcos aproximaram-se de uma praça enorme na margem direita, com uma fonte funcionando no centro. Uma série de degraus ladeados por grossos postes de luz ia da praça até a margem do rio. Um grupo compacto de uns dez nyssomus os esperava no topo da escada. Não havia nenhum outro nativo à vista.
— Mas, onde está a feira? — perguntou o General Hamil. — Pelas entranhas sagradas de Zoto — afinal, os oddlings fugiram!
O mestre-mercador fez uma careta e disse, furioso:
— Mais baixo, por favor, meu general! A Observadora Frolotu e sua delegação tribal podem se ofender.
— Examine-os, feiticeiro! — insistiu Hamil. — Será que os pegajosos amantes da lama nos prepararam uma cilada?
— Fique quieto, seu idiota — disse Orogastus. Com um gesto breve chamou suas duas Vozes, que imediatamente caíram de joelhos, lado a lado no convés, de frente para a praça. Antar e Hamil já haviam visto o feiticeiro usar a Visão dos acólitos, mas os cavaleiros, os oficiais e o mestre-mercador observavam curiosos o processo. Orogastus colocou-se atrás das Vozes, tirou os capuzes azul e vermelho dos dois e pôs as mãos sobre suas cabeças raspadas.
O feiticeiro estava também com a cabeça descoberta e seu cabelo branco brilhava no reflexo verde da tarde tropical. Fechou os olhos lentamente. Os que estavam mais perto, viram os olhos das Vozes transformarem-se de repente em dois abismos negros e vazios. Os cavaleiros deixaram escapar exclamações e pragas abafadas, quando Orogastus abriu os olhos, revelando duas estrelas pequeninas cintilando sob as sobrancelhas negras. Ele ergueu as mãos, girou o corpo lentamente, como que examinando toda a área em volta da praça, bem como as estruturas cobertas de vegetação, no outro lado do canal.
Então seus olhos se fecharam. Os dois acólitos, até então rígidos, contorceram-se convulsivamente, gemendo, até seus olhos voltarem ao normal, e caíram no chão, inconscientes. O feiticeiro recobrou também seu aspecto habitual e cobriu novamente a cabeça e parte do rosto com o capuz.
— Há cerca de quatrocentos nyssomus escondidos nos prédios no outro lado do canal — disse Orogastus, calmamente. — Estão nos observando, sem nenhuma hostilidade e sem medo. Recomendo que desçamos a terra e comecemos as negociações. Não há perigo.
Orogastus inclinou-se e segurou os narizes dos dois acólitos. Os homens levantaram-se num movimento fluido, como se estivessem dentro d’água, e ficaram parados, balançando as cabeças, bocas abertas e os olhos ainda fechados. Orogastus deu meia-volta e caminhou para a cabine de Pellan, erguendo a mão, e a Voz Vermelha e a Azul, em estado ainda semicomatoso, o seguiram.
— Os dois lacaios ficarão bem depois de um descanso — disse o Príncipe Antar para seus homens maravilhados. — Agora, acordem e, pelo amor de Deus, segurem bem alto seus escudos e formem uma guarda de honra decente quando desembarcarmos.
O barco-piloto já estava atracado no cais, que tinha espaço suficiente para as quatorze embarcações labornoks. Alguns nyssomus desceram a escada para ajudar a amarração e Pellan conduziu o barco capitâneo para a frente da escada, mandou levantar os remos e aportou habilmente.
Tendo à frente o mestre-mercador, Lorde Osorkon com a bandeira de Labornok e o General Hamil com quatro ajudantes, o Príncipe Antar marchou pela prancha até o cais e esperou, com os vinte cavaleiros enfileirados atrás dele, com seus escudos e lanças em posição de sentido. Os soldados e sargentos postaram-se nas amuradas dos barcos, com os arcos e as outras armas de prontidão.
— Saudações ao povo nyssomu de Trevista! — exclamou solenemente o mestre-mercador Edzar, na língua falada por todas as nações da Península. — O povo de Labornok, que há mais de quatrocentos negocia pacificamente com os nyssomus de Trevista, por meio de intermediários ruwendianos, declara agora que seu comércio será conduzido livre e diretamente, não mais através de intermediários venais, e declaro ainda que tanto os nyssomus quanto os labornoks lucrarão com a mudança!.. Os insultos graves e pesados dirigidos pelos gananciosos ruwendianos ao povo de Labornok levaram nosso grande Rei Voltrik aos limites da sua paciência. Ele então marchou para o sul, à frente de um poderoso exército, e executou justa vingança sobre os covardes ruwendianos, que há três dias renderam-se incondicionalmente. Agora, Ruwenda e Labornok serão unidas numa grande nação. As caravanas de mercadores continuarão a visitar Trevista, como antes. É motivo de regozijo para os nyssomus e para os labornoks, uma vez que sem o ónus injusto dos impostos cobrados por Ruwenda, o comércio entre os dois povos crescerá e a paz e a prosperidade descerão entre todas as pessoas de boa vontade!
O mestre-mercador ergueu os braços abertos e os clarins soaram em todos os barcos ancorados. Os nyssomus piscaram os olhos grandes e amarelos, mas continuaram imóveis. Edzar pigarreou e disse:
O bom Rei Voltrik envia seu amado filho, o Príncipe Antar, representando a autoridade do trono de Labornok. Nos próximos dias, o príncipe discutirá com os nyssomus o novo relacionamento entre nossos povos, que será mais estreito e mais amistoso do que jamais foi antes!... Agora, o Príncipe Antar deseja cumprimentar a valorosa Observadora de Trevista.
O mestre-mercador recuou para o lado, com uma profunda mesura para o príncipe que se adiantou. Por um momento, o pequeno grupo de nativos ficou imóvel, no topo da escada. Então, a Observadora desceu e aproximou-se de Antar. Sua túnica era feita com tecido de relva seca, com a gola e os punhos enfeitados com flores frescas azul-celeste. Uma coroa de flores iguais ornamentava sua cabeça e ela trazia uma pequena vara verde que apontou, sem cerimónia, para o príncipe.
Antar de Labornok — disse ela, usando a linguagem dos humanos com voz musical e clara. — Esta é Frolotu, a Observadora escolhida por nosso povo. Temos por costume falar direta e sinceramente com os humanos e esta lhe fará a honra de falar sem nenhum artifício. Ouvimos o belo discurso do seu mercador e examinamos seu conteúdo, separando a verdade da mentira. Agora, esta Observadora pede licença para lhe fazer algumas perguntas.
A vara verde apontava com firmeza para o coração do príncipe e Antar transpirava copiosamente dentro da armadura de gala.
Pode fazer suas perguntas — disse ele, em voz baixa.
Labornok tem intenção de prejudicar os nyssomus?
Declaro que não temos intenção de fazer nenhum mal.
- Seus mercadores continuarão a pagar um preço justo por nossas mercadorias?
— Declaro que continuarão.
— O que mais, além da continuação do comércio, Labornok deseja dos nyssomus de Trevista?
— Nós desejamos estabelecer uma pequena base aqui, para explorar o interior do Pântano Labirinto.
— Desejam instalar soldados armados aqui.
— Sim. Essa é a ordem do rei meu pai, para que os ruwendianos fugitivos, que são inimigos do novo regime, não prejudiquem nosso comércio.
Com imensa tristeza nos olhos enormes, a Observadora continuou a falar com voz inexpressiva e a vareta verde não tremeu.
— Aqueles a quem chama de inimigos foram nossos amigos durante um longo tempo. Os labornoks os conquistaram usando magia negra e a força das armas. Executaram cruelmente o rei e a rainha de Ruwenda e seus bravos homens, que nada mais faziam do que defender seu país contra a invasão. Agora, perseguem as três Pétalas do Trílio Vivo, as princesas de Ruwenda, para matá-las também.
— Sim — disse o príncipe. — Mas esses assuntos humanos nada têm a ver com os nyssomus. Não pedimos sua ajuda para encontrar as princesas. Se tentarem nos impedir, podem esperar a nossa ira. Se deixarem isso a nosso cargo, garanto que nenhum cidadão de Labornok os insultará ou prejudicará. Pagaremos pelo alojamento e manutenção da nossa guarnição em Trevista e o comércio voltará à normalidade o mais breve possível.
A Observadora desenhou no ar, com a vareta, uma figura de três pontas. Depois de um silêncio, ela disse:
— Antar de Labornok falou a verdade para esta Observadora. Os nyssomus de Trevista concordam em reabrir a feira e negociar com seus mestres-mercadores, como de hábito. A feira será realizada em outra ilha, de cuja localização serão informados no momento adequado.
— Muito obrigado — disse o príncipe.
— Permitiremos que instale seus homens aqui, na área desta praça, que se chama Lusagira. Podem usar os prédios que a circundam e haverá uma pequena feira diariamente ao lado da fonte, onde poderão comprar alimentos e outras mercadorias, por um preço justo.
— Mais uma vez eu agradeço.
A criaturinha determinou então as restrições que seriam impostas à guarnição. Os soldados podiam viajar livremente pelos canais de Trevista, mas eram proibidos de descer a terra a não ser que fossem convidados pelos nyssomus. A região do outro lado do canal, na frente da praça Lusagira, cujas ruínas eram habitadas pelos nyssomus, era inteiramente vedada aos humanos, a não ser que a própria Observadora decidisse o contrário. Por outro lado, os nativos locais teriam livre acesso à praça durante o dia, embora os humanos pudessem impedir que entrassem nos prédios.
— Concordamos com tudo isso — disse Antar. — Agora, como o sol está se pondo, pedimos permissão para desembarcar nossos homens e armar um acampamento temporário, antes da noite.
— Todos podem desembarcar — Frolotu descreveu um arco com a vareta, à direita do príncipe, indicando três homens ainda a bordo do barco capitâneo —, menos ele.
Antar e seus companheiros voltaram-se e viram Orogastus de pé, ao lado da cabine central, acompanhado das suas Vozes. O feiticeiro curvou-se zombeteiramente para a Observadora.
Ela continuou:
— Ele deve deixar este lugar amanhã e nunca mais voltar, do contrário fica sem efeito todo o nosso acordo. — Lágrimas começaram a descer pela face da pequena nyssomu, mas seu rosto continuava inexpressivo.
Antar suspirou. A névoa erguia-se do canal, sua armadura era extremamente desconfortável e, além disso, ele estava com fome.
— Concordo com isso também, Observadora Frolotu. Mais alguma coisa?
Ela abaixou a vareta verde e a aura de poder e de integridade que envolvia a figurinha coroada de flores pareceu desaparecer, deixando no seu lugar uma mulher não-humana e pequenina, com as lágrimas descendo pelo rosto, quase exaurida de suas forças. Ela disse:
— Não temos mais nada a dizer um ao outro, príncipe. Este é um tempo de dor e todos os corações dos nyssomus estão pesados. Mesmo assim, meu povo trará frutas frescas e carne para seus homens. É um presente que fazemos, bem como o uso dos prédios da praça. Talvez nos encontremos outra vez na Festa das Três Luas... se os Senhores do Ar permitirem que possamos viver até lá.
Ela subiu a escada como se acabasse de disputar uma longa corrida. Então, com os outros nyssomus, atravessou lentamente a praça na direção de uma passagem entre dois prédios caídos e desapareceu na sombra.
Muito mais tarde, naquela noite, quando os homens estavam alojados em suas tendas e os fogos do acampamento quase apagados, Antar saiu do seu pavilhão e caminhou impaciente pelo cais. Os ruídos noturnos eram estridentes e irritantes e nenhuma brisa movia o ar úmido. No outro lado- do canal, cintilavam as luzes coloridas dos oddlings. Da cabine onde estavam Orogastus e seus acólitos, emanava um brilho esverdeado e o som de um canto monótono, quase abafado pelos ruídos das criaturas da selva. Com uma careta, Antar afastou-se daquela parte do cais, caminhando ao longo do canal, até o último barco ancorado, onde um único soldado montava guarda no convés da proa com uma lanterna aos seus pés. Identificando-se, o príncipe subiu a bordo.
— Tudo quieto no canal, meu bom homem?
— Sim, senhor. — Com a cabeça, ele indicou as luzes que se movimentavam na outra margem. — Os oddlings estão se movimentando lá adiante. Uma vez ou outra passa uma sombra na frente das suas luzes. E uma criatura grande com olhos enormes nadou até aqui e apanhou e comeu alguma coisa que gritava de medo. A não ser isso, tudo está quieto.
Antar chegou à amurada e olhou para a outra margem do rio escuro.
— O que você acha desses oddlings? São uma espécie de animais inteligentes, como nossos sábios nos ensinaram, ou são gente de verdade?
O soldado pigarreou e cuspiu.
— Pela aparência estranha deles, acho que são apenas criaturas. Mas aquela matreira que falou foi bem esperta com o senhor, meu príncipe.
— Tem razão — admitiu o príncipe com um sorriso triste.
— E nunca ouvi dizer que um animal chora a perda de amigos mortos.
Antar preferiu não fazer nenhum comentário sobre o assunto.
— Você foi escolhido para ficar aqui, com a guarnição?
— Não. Vou voltar para a Cidadela de manhã, com o feiticeiro.
— Satisfeito com isso?
— Eu ficarei muito mais satisfeito quando estiver a caminho de Derorguila, senhor. Sou um homem da planície e não gosto muito do pântano e aqueles prédios velhos e enormes me deixam arrepiado.
— A mim também — disse o príncipe, com uma risada. Caminhou até as carroças de suprimento, agora vazias. Os homens em Trevista não iam precisar de veículos com rodas. Todas as ruas acabavam na selva, a um quarto de légua da praça Lusagira. O príncipe chutou a roda de uma das carroças e então abaixou-se para apanhar um pedaço de tecido preso a um prego, da porta traseira. O tecido brilhou estranhamente à luz da lanterna.
Era um pedaço de seda fina, cor-de-rosa, sujo de lama seca. Uma estranha sensação o assaltou. Já tinha visto e tocado aquele tecido antes.
Havia segurado nos braços uma forma humana vestida com aquela seda.
Era dela, do seu vestido.
Aqui? Impossível. A Princesa Anigel não podia ter se escondido num dos barcos, nem viajado na companhia dos homens que queriam matá-la. De modo algum teria evitado a Visão de Orogastus...
Mas o feiticeiro admitira que sua mágica era impotente para localizar o paradeiro das princesas. Ela podia ter ficado escondida, uma vez que as carroças só foram completamente descarregadas no começo da noite. E então.. durante todo o resto do tempo, os barcos dos oddlings haviam navegado pelo canal, de uma margem para a outra, levando comida e bebida para os hóspedes indesejáveis
Então, ela podia estar livre, em Trevista, a bela mulher de cabelos dourados, cuja simples existência ameaçava o trono de seu pai. Naquele momento, podia estar na aldeia dos nyssomus, no outro lado do canal.
O que, em nome de Deus, ele devia fazer?
Antar guardou o pedaço de cetim no cinto, desejou boa noite ao soldado e voltou pela beira do cais. A luz verde e estranha brilhava ainda na cabine do feiticeiro, pulsando ao som do canto monótono. O príncipe parou, apalpando o pedaço de seda.
Abaixou-se, apanhou uma pedra e amarrou o cetim em volta dela. Depois, com toda a força, atirou o pequeno projétil para o meio do rio e foi dormir.
Kadiya sentou-se, com tufos de grama grudados nos cabelos e na pele pegajosa. Estava ofegante como se acabasse de disputar uma longa corrida. Olhou em volta, trêmula e confusa por um momento, sem saber onde estava e o que tinha acontecido. Sentia o calor abafado e pegajoso do pântano, via pequenas manchas de luz na água que aparecia entre as moitas cerradas. Apesar do calor, sentia arrepios e encolheu-se, com os braços ao redor do corpo. A coisa ainda estava ali.
Esforçou-se para respirar vagarosamente, procurando libertar-se da confusão que a dominava. O que era aquilo? Nada que ela conhecia. Kadiya tinha a impressão de estar encurralada e indefesa, observada por um olho enorme. Só depois de duas tentativas, conseguiu falar, com voz rouca:
— Jagun!
Alguma coisa se mexeu perto dela. O caçador oddling, coberto por camadas de palha da cama improvisada, parecia estar saindo do solo.
Com os olhos semicerrados, por causa da luz do dia, Jagun surgiu do monte de relva seca, com a faca de caça na mão.
— Alguém. — A voz de Kadiya tremeu. Envergonhada daquele pavor, procurou se controlar — alguém está nos procurando.
De pé, o oddling sacudiu o corpo para se livrar da grama. Com as narinas dilatadas, ergueu o rosto, farejando o ar como um animal perseguido. Girou o corpo lentamente, investigando.
Kadiya também ficou alerta. Olhos Penetrantes, eles a chamavam, por sua visão aguçada, mas não via nada de estranho no pântano. De certo modo, porém (e isto era mais alarmante do que um inimigo visível), tinha certeza de que o observador não estava perto deles naquele momento. Magia? De que espécie? Usada por quem?
— Não vejo nada de anormal por aqui — disse Jagun, falando devagar e olhando para ela. — Você sonhou, filha do rei. Descanse. Todos os guardas que conheço estão alertas no pântano. Nada pode nos acontecer sem que eu seja avisado antes. — Bocejou.
Kadiya deitou outra vez na cama na relva, segurando o amuleto. Aguçou os ouvidos. Havia muita vida no pântano, e nenhuma parecia ameaçadora. Tentou separar um som do outro, identificá-los. Assim como havia os caçadores no turnos, havia também os que caçavam durante o dia.
Mas aquele que a procurava havia passado por ela, frustrado na sua busca.
Kadiya falou suavemente:
— Jagun, não sinto mais aquele que nos procurava. — Mostrou o amuleto para ele. — Meu trílio no âmbar nos defendeu — talvez contra a Visão mágica de Orogastus!
— Olhos Penetrantes — disse Jagun —, eu não entendo dessas coisas — apontou para o amuleto. — Mas uma coisa eu sinto. Não devemos esperar pela noite para seguir nosso caminho.
— Skriteks? — Kadiya examinou com atenção o que podia ver do pântano. Largou o amuleto preso ao cordão de ouro e empunhou a adaga.
Jagun balançou a cabeça.
— Skriteks eu conheço. Isto, só posso adivinhar. Impressionada com a urgência na voz de Jagun, Kadiya sentiu voltar a sensação de desamparo.
— Orogastus tem seus caçadores — Jagun bateu os pés, apagando os restos da fogueira. — São chamados Vozes e completamente submissos a ele, a ponto de serem meras extensões do feiticeiro. Pode ser que tenha mandado essas pessoas com os soldados armados que pretendem deixar em Trevista.
— Para me seguir! Mas o que fazem essas Vozes, Jagun? Podem se disfarçar tão bem que nem você, que conhece o pântano, é capaz de vê-los?
— Olhos Penetrantes, lembra-se de uma tal Ustrel, na última feira, a quem as pessoas faziam perguntas sobre seus problemas?
Sim, Kadiya lembrava-se da velha que só podia caminhar com a ajuda de dois cajados. Vira quando ela se agachou ao lado de uma grande folha de drogo, com as bordas curvadas para cima, e pôs algumas gotas d’água na superfície verde e lisa. No outro lado da folha estava acocorada outra mulher, esperando tensa pelas palavras da velha vidente. Mas Kadiya não conhecia o dialeto usado por ela.
— Você disse que ela podia ler a sorte nas gotas d’água — lembrou Kadiya —, mas sem dúvida não passava de uma fraude. Isso é impossível.
— Não tão impossível, Olhos Penetrantes. Cada um de nós é uma entidade diferente, não apenas no corpo, mas na mente também; uns aprendem com facilidade, outros só com muito esforço. Você é igual às suas irmãs, filha do rei. Eu sou um caçador de animais, um treinador quando é preciso. Esse é o meu talento. Não sei juntar artisticamente pedaços de madeira trabalhados, não sei misturar ervas, nem trabalhar com as peças encontradas nas ruínas. Essas são as artes e artesanatos.
”O mesmo acontece com as artes da mente. Sim, existem aqueles que podem lançar sua Visão a grande distância e ver, embora breve e imprecisamente, o que está acontecendo a outra pessoa muito longe deles. Ustrel nem sempre pode fazer isso, e quase nunca com clareza. Mas várias vezes a verdade das suas visões foi comprovada. Orogastus é um homem com muitos conhecimentos, a maior parte deles jamais aprendidos por nós. Se essas Vozes foram bem ensinadas e tiverem algum talento, então pode ser que ele as use como uma extensão dos seus próprios sentidos.”
— Então, estão à nossa procura e vão continuar! O que sua habilidade de andar no pântano pode contra essa força?
Kadiya estremeceu. Aço contra aço, até mesmo a crueldade dos invasores ela podia entender, mas a idéia de que se podiam comandar poderes mágicos a confundia.
Jagun balançou a cabeça vagarosamente.
— Não é uma coisa fácil e a preparação é demorada. Além disso, é exaustiva para o vidente. Talvez uma das Vozes esteja no rio, com um grupo de busca atrás de nós. Porém, quanto mais longe estivermos da Cidadela, mais difícil será para eles.
Kadiya segurou o amuleto de âmbar brilhante na palma da mão.
— Será que magia atrai magia? — Pensou em jogar na água aquela coisa azarenta.
— Olhos Penetrantes, seu amuleto é da Luz, um presente da Arquimaga. Não acredito que possa lhe fazer mal. Entretanto, acho melhor partirmos. Seguiremos o caminho que circunda Trevista. Os labornoks devem estar vigiando o rio. Pellan e os skriteks — se estiverem com eles — só conhecem as trilhas principais desta região do Pântano Negro.
Embora tivesse visitado Trevista várias vezes e possuísse um bom senso de direção, Kadiya não tinha a menor idéia de onde estavam ou para onde iam, enquanto Jagun os conduzia com segurança pelos meandros do pântano naquele fim de tarde. Passaram ao largo de uma ilhota onde muros desmoronados apareciam no meio do mato alto, evidentemente uma das ruínas do Labirinto. A vegetação consistia de juncos nos bancos de terra e relva áspera, trepadeiras com hastes espessas e árvores imensas. Aqui e ali apareciam pontos coloridos, flores com pétalas grossas, de aparência desagradável, que, Kadiya sabia, alimentavam-se de insetos.
O brilho do amuleto não diminuiu, conduzindo-os sempre. Não pararam para comer, contentando-se com os tubérculos e algumas frutas que Jagun apanhava, de passagem. Da escuridão da noite surgiam outras ilhas repletas de ruínas, e em volta dela dançavam pontinhos de luz fraca na superfície do pântano.
A aurora tingia o céu de cinzento quando entraram numa passagem que pareceu a Kadiya estreita demais para o barco e saíram numa enseada que era mais um lago do que um rio. AS pernas de Kadiya estavam adormecidas e ela temia não agüentar ficar de pé. Jagun começava também a demonstrar cansaço. Levou o pequeno barco para a margem do lago, onde uma árvore, com as raízes arrancadas durante uma das enchentes, estendia-se horizontalmente sobre a água. No outro lado, pedras enfileiradas levavam à selva emaranhada lá adiante. Desembarcaram, e Jagun puxou o barco para perto das árvores, cobrindo-o com junco. As pernas de Kadiya voltavam à vida com uma dor cruciante, mas ela abaixou-se e apanhou a mochila maior. Se estava cansada, imagine como devia estar Jagun!
Jagun não usou a faca para abrir caminho no meio do mato, mas apenas desviava-se dos galhos e trepadeiras à sua frente. Uma nuvem de insetos os atacou e então, de repente, o oddling brandiu sua faca de caça de cima para baixo, com fúria. Entre ele e Kadiya uma coisa que parecia um cipó sem folhas contorcia-se no chão e da cabeça decepada escorria um líquido amarelado como pus de um ferimento. O ar encheu-se com o fedor de coisa podre. Uma rastejadora! O resto dela escondeu-se numa moita cerrada e Kadiya deu uma grande volta para evitar a planta carnívora que quase os havia apanhado.
Embora o mato fosse alto, as árvores eram agora em menor número e logo chegaram a uma clareira iluminada pela luz da manhã, e Kadiya, com uma exclamação de espanto, viu colunas semidestruídas dispostas em círculo sobre chão de pedra cinza-negra. O lugar estava deserto, mas no centro do círculo uma fogueira quase apagada enchia o ar de fumaça oleosa com um cheiro insuportável. Sobre os restos da fogueira estava uma estaca longa e grossa, quase completamente queimada no meio. Entretanto, o que provocou a exclamação de Kadiya foi a coisa espetada na estaca.
Um crânio estava enfiado na ponta do galho quase queimado.
— Jagun!
Erguendo a mão, num gesto autoritário, ele inclinou-se para observar melhor o crânio. O osso estava amarelado, sujo de limo e rachado, como se tivesse sido arrastado pelos caminhos mais lamacentos do pântano.
— Skriteks! — murmurou o caçador.
O sol apenas começava a aparecer, o pântano estava quente e úmido, porém naquele momento um frio de pavor arrepiou a pele da princesa, como se ela estivesse de frente para o vento das tempestades.
— Um aviso — Jagun andou em volta da fogueira, como se ela fosse uma armadilha. — Mas... aqui?
Kadiya olhou em volta, alarmada.
— Então, os skriteks chegam tão perto assim de Trevista ou — ela respirou fundo — combatem aqui?
Foi como se Jagun não tivesse ouvido. Ele saltou para a frente e apanhou um fio de fibra trançada, do tipo usado para prender nos tornozelos os deslizadores. Segurando-o pelas duas pontas, ele o esticou com força.
— Uisgus! — Jagun inclinou a cabeça para trás e das profundezas da sua garganta soou o chamado dos horiks encouraçados que viviam naquelas enseadas do rio. Três vezes ele chamou e depois de um momento de silêncio emitiu um trinado agudo e alto que Kadiya nunca ouvira antes.
Jagun girou lentamente o corpo, sem sair do lugar, tenso como se cada nervo estivesse atento para ouvir a resposta.
A resposta veio num único chamado dos horiks e da moita cerrada em volta do círculo de colunas surgiu outro oddling. Não usava, como Jagun, a roupa finamente tecida dos nyssomus, mas apenas uma espécie de saiote amarelo-dourado, com franjas de hastes de relva. O cabo de uma adaga, enrolado com uma corda de fibra vermelha, aparecia acima do cinto. Trazia na mão uma zarabatana.
Dois círculos marrom-avermelhados faziam parecer maiores os olhos saltados do oddling e no peito peludo tinha três círculos coloridos, entrelaçados no centro.
Ele olhou para Kadiya e afastou-se dela, chegando para perto do caçador. Começou a falar. Kadiya conhecia apenas as frases usadas pelos nyssomus no comércio e nas cerimónias mais importantes, ensinadas por Jagun, e só conseguiu entender uma ou outra palavra do que o oddling dizia.
—...cheguei. estaca espetada. matar unvis. matar. — Dizendo isso, ele ergueu a zarabatana e a agitou ferozmente no ar. — Aqueles outros... — Então, ele começou a falar rápido e com veemência e Kadiya não entendeu mais nada. Finalmente ele parou, ofegante e com gotas de saliva nos cantos da boca.
Jagun olhou para Kadiya.
— Ontem os skriteks estiveram aqui, com uma oddling do clã de Usos que haviam capturado. Então eles ergueram uma das estacas que usam para marcar suas fronteiras, e mataram a irmã de Usos para selar seu ato com sangue.
Jagun voltou-se para o uisgu e falou outra vez. O outro oddling respondeu com poucas palavras.
— Eles seguiram... na direção de Trevista — disse Jagun. — Eu já avisei Usos dos perigos que nos ameaçam agora. Ele e seus mercadores vão a Trevista para trocar sua mercadoria. Agora, quando voltarem vão espalhar o aviso.
O uisgu então desapareceu tão depressa que Kadiya piscou os olhos, sem poder acreditar.
— Não podemos ir com eles?
Jagun emitiu um som que podia ser uma risada.
— Os uisgus só viajam com os da sua tribo, Olhos Penetrantes. Sempre foi assim. Do mesmo sangue nós somos. — Fez um gesto afirmativo. — Mas, para eles, somos parentes muito distantes. Nunca fizemos guerra contra eles, nem eles contra nós. Isso foi determinado há muito tempo, no começo, quando os Desaparecidos governavam. Nós somos nyssomus e eles são uisgus e sempre foi assim. Usos vai espalhar meu aviso, mas não pode permitir que viajemos com eles.
— Mas vocês não são inimigos — disse Kadiya, intrigada.
— Filha do rei, segundo a lenda, nos velhos tempos nós, os nyssomus, éramos os porta-vozes dos Desaparecidos. Agora somos servos da Dama de Noth, que nos manda conviver em paz com os humanos que habitam o Pântano Labirinto. Mas os uisgus sempre temeram seu povo. Poucos deles, mais ousados, comerciam conosco, para que levemos suas mercadorias aos humanos.
— Vão descobrir que os labornoks não são iguais a nós — disse Kadiya. — Jagun, estou certa de que Voltrik vai querer conquistar e dominar os Pântanos, como dominou a Cidadela. Os uisgus podem se esconder do olfato dos striteks?
Jagun deu de ombros.
— Olhos Penetrantes, quem pode dizer? Mas agora precisamos descansar e, como este lugar está profanado, devemos procurar outro.
Acamparam mais adiante, na margem do lago, onde não havia ruínas dos Desaparecidos, e Jagun disse que precisavam se revezar na vigília. Kadiya insistiu em ficar com o primeiro turno, uma vez que o caçador havia conduzido o barco o dia todo.
Jagun juntou algumas folhas, deitou encolhido sobre elas e dormiu imediatamente. Kadiya, sentada com as pernas cruzadas, preparou-se para seu turno de vigia. Embora não possuísse os sentidos aguçados dos oddlings e fosse incapaz de distinguir certos odores disfarçados pelo cheiro forte do pântano, ou identificar todos os sons, Kadiya conhecia alguma coisa daquela região.
Várias vezes levantou-se e deu alguns passos pelo pequeno acampamento. Coçando a cabeça, cheia de creme contra insetos, tentou ajeitar os cabelos emaranhados com as pontas dos dedos. Naquele momento, invejou as cabeças calvas dos nyssomus e o pêlo que cobria o corpo dos uisgus.
Numa das suas voltas pelo acampamento, notou um tom mais vivo de verde sob uma moita e inclinando-se apanhou uma planta de raízes fortes que ela conhecia. Puxando com força, arrancou mais cinco, limpou as raízes e separou algumas para Jagun. Então, começou a comer. Ao contrário dos tubérculos da sua parca ração, essas raízes eram suculentas e tinham um gosto forte e puro. A planta chamava-se mafun, e na mesa da Cidadela era considerada um petisco raro, porque só dava na selva e não podia ser cultivada em campos comuns.
Enquanto comia, ela pensava nos Desaparecidos. Desde a infância ouvia lendas e discussões sobre eles. Aparentemente haviam governado aquelas terras há incontáveis eras. Todos admitiam que eles possuíam grandes poderes mentais. Poderes? Kadiya engoliu o último pedaço de mafun. A magia era poder! A Arquimaga seria realmente um dos Desaparecidos? Teria vivido centenas, vendo as mudanças em suas terras, Noth, erodindo perto dela? E quem era Orogastus? Teria também alguma conexão com os Desaparecidos?
Kadiya pensou na imensidão do mundo deles. O que havia além da Península? As planícies dos labornoks, ao norte, terminavam no mar e ao sul ficavam as extensas florestas de Var. Mas ela conhecia pouco mais além disso, e naquele momento invejou Haramis, que passava tanto tempo estudando, na biblioteca, ao passo que Kadiya desprezava os livros, preferindo a vida ativa ao ar livre.
Teriam os Desaparecidos simplesmente abandonado Ruwenda e se estabelecido em outra parte do mundo? Diziam que Orogastus fora trazido de terras muito distantes pelo Rei Voltrik, em uma de suas viagens durante os anos de espera pelo trono. O feiticeiro podia ser um Desaparecido? Porém, nada na lenda ou nas informações esparsas indicava que os Desaparecidos tivessem poderes maléficos. A Arquimaga, por exemplo, jamais tentou dominar os oddlings ou os ruwendiianos.
Kadiya examinou o amuleto com o trílio. O pequeno ponto de luz continuava a brilhar, tranqüilizador, como um esscudo protetor, apontando fielmente para Noth.. onde talvez, suas perguntas fossem respondidas.
As sementes do Trílio Negro conduziram Haramis e o músico Uzun através dos alagados das terras altas, no sopé dos Montes Ohogan. Não voavam rápido para que os dois pudessem segui-las. Se um deles tropeçava ou ficava atolado na lama por um momento, ou quando precisavam parar, a semente do-dia esperava — aparentemente imobilizada por uma calmaria, ou por algum obstáculo —, reiniciando o voo quando eles estavam prontos para seguir. Determinava também onde e quando deviam parar para a noite, caindo no chão no lugar que achava apropriado. Ou talvez, pensou Haramis, as sementes estão escolhendo os lugares melhores para germinar e crescer. Se eu sobreviver e voltar aqui no próximo ano, encontrarei plantas de trílio neste caminho, separadas por um dia de viagem?
Mas as sementes também não permitiam que perdessem tempo e, depois de vários dias de viagem para o oeste, Haramis começava quase a detestar aquelas coisinhas leves e etéreas. Às vezes Haramis tinha vontade de parar para examinar uma planta ou uma criatura estranha, mas a semente-do-dia continuava a marcha e ela e Uzun eram obrigados a segui-la.
Dois dias depois de deixarem Noth, Haramis ousou desafiar a guia mágica. A trilha que seguiam, nas terras altas, levou-os a um campo imenso com as mais doces e saborosas framboesas que ela já havia provado. Haramis resolveu ignorar a semente-guia e parar para saborear as frutas deliciosas.
A semente continuou seu caminho e desapareceu. Haramis tirou outra da fava e a atirou para cima, mas a semente caiu no chão e ficou imóvel, recusando-se a voar mesmo quando a princesa a assoprou.
Em pânico, ela tentou outra semente. Esta saiu voando velozmente e Haramis teve de correr para segui-la, com o pobre Uzun ofegante e gemendo atrás dela. O oddling não se queixou, mas Haramis sabia que era responsável por aquele desconforto.
A princesa segurou o amuleto e disse, com voz autoritária:
— Eu cometi um erro! Não devia ter ignorado a semente! Tenha pena de Uzun, se não se importa comigo! Mais devagar! Por favor!
A semente obedeceu, diminuindo a velocidade imediatamente.
Mas Haramis ficou ressentida. A Arquimaga não podia ter escolhido um meio mais normal de realizar sua missão? Por acaso ela era uma criança ou um animal que precisava ser apressada daquele modo? Todas as missões desse tipo descritas nos livros eram realizadas numa atmosfera de dignidade e nobreza. Porém ela, ao que parecia, ia cumprir seu destino subindo e descendo atrás de uma sementinha idiota, com os pés enlameados e cheios de bolhas, picadas de mosquito no pescoço e uma aversão cada vez maior pelas rações nutritivas, mas monótonas, fornecidas pela Arquimaga.
A quantidade de comida também era pequena.
No quinto dia de viagem, quando chegaram a um grande rio que Uzun supunha ser o Alto Vispar, pela primeira vez ocorreu a Haramis que podiam ficar sem alimento, se continuassem a comer quando e quanto tinham vontade. A região parecia completamente deserta e, segundo Uzun, nenhuma tribo de nyssomus ou de uisgus habitava o extremo norte da Península, muito além dos limites do Pântano Labirinto. O sopé das montanhas era terra de ninguém e separava o pântano do território montanhoso dos vispis.
Haramis sentou numa rocha, na margem do rio que corria rápido. O dia estava quase no fim e a semente que os guiava já havia caído no chão, indicando que deviam acampar ali para a noite. Uzun apanhava gravetos para a fogueira e começava a preparar a refeição, como fazia todas as manhãs e todas as noites, insistindo em servir a princesa condigna mente, como se estivessem em casa, na Cidadela.
— Uzun — disse Haramis e o músico pequenino correu para perto dela, sorrindo. — Acha que tem peixe neste rio?
— Acho que sim, minha princesa. Garsus certamente, e sem dúvida outros cujos nomes não conheço.
— Encontrei linha para pescar e três anzóis na minha mochila. Quer apanhá-los e pescar um belo peixe para o jantar? Estou tão farta dos biscoitos duros e da carne-seca. Além disso, nossa provisão de alimento está muito baixa e duvido que encontremos algum nativo nesta região deserta disposto a nos ceder alguma comida.
O sorriso desapareceu dos lábios de Uzun.
— Mas falta só uma hora, ou pouco mais, para anoitecer, princesa. Se eu perder tempo pescando, quando vou acender o fogo e cozinhar? — Sorriu outra vez, como que se desculpando. — Além disso, detesto ter de confessar, mas nunca pesquei em minha vida e provavelmente vou me atrapalhar todo.
Haramis riu.
— Não pode ser tão difícil, se até os filhos dos fazendeiros da Cidadela sabem pescar. Tive uma idéia maravilhosa! Eu vou pescar e você, em vez de cozinhar essas rações sem graça, vai apanhar cerejas e um pouco daquele belo agrião amargo que vimos ao lado da pequena lagoa perto daqui. E se você procurar, sem dúvida encontrará cogumelos. Desse modo, teremos um banquete esta noite!
Como sempre, Uzun obedeceu às sugestões da princesa. Depois de empilhar os gravetos para a fogueira, saiu para procurar as cerejas, o agrião e os cogumelos, deixando Haramis sozinha.
Pescar é fácil, pensou a princesa, pega-se uma vara, amarra-se a linha na ponta, e o anzol na outra ponta, com a isca.
Oh! A isca precisa ser enfiada no anzol. E onde se encontra isca por aqui?
Encontrou uma vara entre a vegetação amontoada na margem do rio e sob um tronco apodrecido achou uns vermes
cintilavam fracamente na luz do fim de tarde. Procurando se controlar (Haramís vomitou uma vez mas felizmente Uzun estava longe e não ouviu) enfiou uma daquelas coisas nojentas no anzol, depois de amassar duas com os dedos trêmulos.
Limpou as mãos, procurou um lugar onde o rio parecia mais profundo e jogou a linha com o anzol e a isca. deslizou lentamente rio abaixo, na superfície, parando num bolsão de água clara entre as rochas. Haramis a levou de volta para a pequena lagoa formada pelo rio, mas a linha voltou a deslizar.
Muito bem. Qualquer Pessoa inteligente podia resolver aquele problema. Lembrou que as crianças na Cidadela, usavam bóias e pesos para controlar a posição da isca.
Tirou a linha da água. É claro que o anzol estava vazio e ela teve de repetir a operação desagradável. Amarrou uma pequena pedra logo acima do anzol e, a um ell mais ou menos acima dela, um pedaço de madeira seca. Procurou a melhor posição e lançou a linha. O anzol mergulhou na lagoa formada pelo rio e ficou ali. Com um suspiro, Haramis sentou na margem e esperou.
De agora em diante, terei de fazer isto. Tenho sido uma idiota perfeita, permitindo que o pobre Uzun faça tudo, como se estivéssemos num piquenique nos prados da Cidadela. É evidente que teremos de viver com Que a terra nos oferece e guardar o pouco que resta das rações Para um caso de emergência. Só os Senhores do Ar sabem quanto tempo vai durar esta missão — e Onde ela nos levará.
Haramis olhou para a parte alta do rio. Para além do alagado com suas árvores esparsas e mato alto. A trilha estreita fazia uma curva naquele ponto e continuava para o norte, seguindo a margem. Sem dúvida as sementes implacáveis os conduziriam Por ali, levando-os para as montanhas.
As montanhas erguiam-se majestosas, além das colinas escuras, coroadas de neve e terríveis, a terra dos misteriosos vispis. Seu talismã estaria escondido lá em cima? Nesse caso como sería possível encontrá-lo se ela e Uzun nada conheciam das selvas? E além disso, voltar com ele Para Noth, como a Dama Branca havia ordenado?
A Dama Branca que estava doente, à morte, possivelmente senil-
Tudo que podiam fazer era seguir as sementes — coisinhas comuns, escuras, cada uma com um tufo de fios sedosos, aparentemente sem nenhum poder mágico, exceto a segurança com que indicavam o caminho no seu voo constante.
Ela as impulsiona, pensou Haramis. Ela sabe onde estamos, e para onde devemos ir, e impulsiona as sementes na direção certa. Não me disse para onde iremos porque sabia que eu ia ficar tão amedrontada e desanimada que nem começaria a viagem...
— Princesa! Encontrei cerejas, agrião e uma porção de cogumelos que parecem deliciosos.
Haramis sobressaltou-se. Absorta nos pensamentos, não o ouviu chegar. Então, a vara esticou-se de repente, na sua mão. Haramis a segurou com força e quase foi arrastada para dentro do rio.
Ela gritou.
— Uzun, ajude! Um peixe!
Então, algo verde e prateado saltou para fora d’água e mergulhou outra vez. O músico oddling correu para perto dela, tagarelando excitado. Os dois lutavam e gritavam, quase perdendo a vara, e quase desistindo, tamanha era a força do peixe.
Mas Haramis gritou.
— Não! Você não vai fugir! Você é o nosso jantar! Nesse instante, o peixe parou de lutar e eles o levaram para terra. Era um garsu brilhante do comprimento da perna de Haramis.
— Talvez nem precisasse do anzol, princesa — zombou Uzun —, uma vez que pode ordenar o jantar à água.
— Espero que tenha sido mera coincidência — disse Haramis, rindo. — Não gostaria de pensar que nosso jantar é uma criatura inteligente capaz de entender a fala humana — ou, pior ainda, um príncipe encantado!
— Como nas antigas baladas? — disse Uzun. — Não acho provável. É um garsu comum, e vai ficar delicioso — além de sobrar bastante para o café da manhã e para o almoço. Muito bem, princesa. Muito bem!
Entreolharam-se com largos sorrisos. Então, Haramis olhou para o grande peixe e a alegria desapareceu do seu rosto.
— Uzun? Você sabe o que devemos fazer agora? Sabe... preparar o peixe?
Desapontado, boquiaberto, Uzun balançou a cabeça. Haramis suspirou.
— Não faz mal. Todos dizem que o método de ensaio e erro é o melhor meio de aprender.
Uzun não parecia convencido.
— Pedir a inspiração divina também não vai fazer mal.
Anigel teve um sonho estranho no qual acontecia uma coisa jamais vista na história da humanidade da Península. As chuvas não chegavam.
Em vez das tempestades habituais que, vindas do Mar do Sul, inundavam Zinora e Var, Ruwenda, Labornok e Raktum, mais as ilhas de Engi, durante duas estações todos os anos, houve apenas meses e meses infindáveis com o sol brilhando no céu sem nuvens e um vento quente soprando dia e noite, castigando impiedosamente as pequenas nações. Toda a Península foi devastada, mas Ruwenda, sem saída para o mar, sofreu mais do que todo o resto.
Da sua janela, na Cidadela, Anigel viu o vasto Mutar transformar-se num filete d’água, depois também o Rio Skrokar, o Virkar e o Bonorar. O Lago Wum, alimentado por esses rios, secou completamente, impedindo o transporte da madeira da Floresta Tassaleyo para as serrarias. O comércio fluvial desapareceu. A seca assolou as fazendas de Dylex e skriteks monstruosos e famintos saqueavam Ruwenda de uma extremidade à outra.
Seus pais, o Rei Krain e a Rainha Kalanthe, acompanhados pelos soberanos de outras cinco nações imploraram a Anigel Para trazer de volta as chuvas. Anigel disse que não sabia como fazer isso, e eles foram embora, desesperados.
No sonho, sua irmã Kadiya a informava que o solo lamacento dos alagados de Ruwenda estava seco. As plantas e os arbustos secaram, e não havia mais flores, nem frutos. Os fungos suculentos perdiam toda a umidade e os liquens verdes, nutritivos, viraram palha. As árvores da selva perdiam as folhas.
— Reze! — insistia Kadiya e Anigel rezou, segurando o amuleto com o Trílio Negro nas mãos febris. Mas o vento quente soprou com mais força em volta da Cidadela e Kadiya afastou-se, furiosa. No sonho, ela via os corpos dos animais mortos, por toda parte, pilhas de pele e ossos. Tudo por sua culpa.
Sua irmã Haramis apareceu para avisar que o povo seria a próxima vítima: todos os humanos da Península e os nativos do Pântano e das montanhas. No sonho, Haramis apontava para o norte, onde, segundo diziam, moravam a Dama Branca e o Feiticeiro Negro. Só os dois sobreviveriam, avisou Haramis, se Anigel não trouxesse as chuvas.
A morte viria do norte — não sob a forma de um vento quente e seco, mas com uma grande tempestade de fogo resultante do conflito final entre a Arquimaga Binah e Orogastus. O fogo consumiria todo o mundo conhecido, a não ser que a pequena e indefesa Anigel evitasse.
— Mas eu não posso! — gemeu ela, com a alma cheia de terror. — Tentei, mas não sei o que fazer! Meu coração sofre profundamente e estou cheia de medo e — simplesmente não posso!
No sonho, os reis e rainhas da Península, seu pai Krain, sua mãe Kalanthe, a brava Kadiya e a inteligente Haramis olharam para ela com pena e desprezo. Depois a deixaram trancada no quarto, sozinha, ignorada por todos. Anigel batia na porta, soluçando, mas ninguém aparecia. Então ela olhou outra vez pela janela e viu uma parede de chamas que se estendia de horizonte a horizonte, mais alta do que a torre da Cidadela.
O fogo avançou rugindo na direção dela e Anigel começou a gritar, a gritar.
— Acorde! Não chore, doçura, está tudo bem!
As chamas eram agora lírios encarnados com listras negras, dançando, enquanto ela se contorcia numa rede, suspensa pelos cipós da planta. Anigel estava no canto de uma sala com paredes de blocos quadrados de pedras, toda enfeitada com plantas floridas. Immu a segurava, procurando evitar que ela caísse da rede.
— Um sonho, foi só um sonho — disse a velha nativa com voz doce. — Você está segura, minha querida, salva. Aqui em Trevista, com amigos.
Finalmente Anigel parou de gritar, saiu da rede, trêmula ainda, e sentou num bloco de pedra. Immu passou uma esponja molhada no rosto da princesa, penteou os cabelos emaranhados, ajudou-a a vestir uma túnica longa, rosada. Anigel disse, em voz baixa:
— Eu gostaria de contar o meu sonho. Na verdade, preciso contar.
Immu insistiu em servir algum alimento primeiro, embora Anigel não tivesse apetite.
— Vou trazer também minha melhor amiga, que mora aqui. Se seu sonho for importante, ela é quem pode interpretá-lo, não eu.
Immu saiu por uma porta da qual pendia uma cortina opaca de líquen filamentoso. Respirando fundo, Anigel segurou o amuleto no cordão de ouro e procurou se acalmar. Imediatamente sentiu-se melhor. Examinou o quarto. Não tinha telhado, mas trepadeiras de folhas largas que serviam também de suporte para duas redes e protegiam o quarto da luz e do calor do sol. Quase toda a parede atrás das redes era enfeitada com lírios enormes cor de laranja. Examinando-os mais de perto, Anigel viu que eram flores insetívoras. Que modo engenhoso de evitar picadas de insetos durante o sono!
Na noite anterior, sem saberem se o amuleto continuaria a mantê-las invisíveis, Anigel e Immu só saíram da parte inferior da carroça depois que todos os soldados desembarcaram. Foram até a margem do canal, abaixo das escadas do cais, onde Immu usou o método de comunicação sem palavras para avisar seu povo, na outra margem, onde estavam e que precisavam de ajuda.
Depois de algum tempo, alguns barcos dos nyssomus atravessaram o canal para levar aos labornoks as provisões prometidas pela Observadora. Dois dos nativos nos barcos, Sithun e Trezilun, eram primos de Immu. Eles as encontraram com facilidade, garantindo jovialmente que elas não estavam invisíveis, o que confirmou as suspeitas de Anigel. Ainda no rio, ela concluiu que o amuleto só protegia a princesa que o usava em caso de perigo mortal. O âmbar havia recusado proporcionar qualquer ajuda durante os três dias da viagem assustadora da Cidadela até Trevista.
— Bem, vocês estão a salvo agora — garantiu Trezilun, enquanto as ajudava a subir na piroga rústica com cerca de sete ells de comprimento, e com lanternas de insetos luminosos nas duas extremidades viradas para cima. A amurada era toda enfeitada com flores e os dois primos de Immu usavam colares e coroas de flores, estas, pousadas sobre o cabelo ralo, entre as orelhas pontudas.
Durante a travessia do canal, Anigel ficou agachada no fundo do barco para não ser vista pelo inimigo. Ela sabia que Orogastus e seus dois acólitos taumaturgos estavam a bordo do primeiro barco dos labornoks. E se o feiticeiro chegasse à amurada e a visse?
Mas nada disso aconteceu. Aportaram a salvo na aldeia Karonagira, dos nyssomus, e os primos as conduziram pelas ruas calçadas, parcialmente desimpedidas da vegetação que cobria quase tudo, de modo que era como caminhar através de uma vasta estufa de plantas tropicais. Vultos pequeninos moviam-se à luz fraca das lanternas vivas, mas ninguém chegou perto das recém-chegadas. As estruturas antigas, sem nenhuma iluminação, erguiam-se fantasmagóricas à luz da lua, tão artisticamente adornadas com plantas e flores que Anigel a princípio pensou que fosse um arranjo artificial. Os nyssomus de Trevista viviam praticamente mergulhados em flores. Eles as usavam, enfeitavam seus barcos, moravam no meio delas.
Sithun e Trezilun deixaram suas passageiras numa casa modesta de pedra, com uma varanda ajardinada, que dava para o canal. Aparentemente a casa estava vazia, mas isso não perturbou Immu. A oddling enxergava perfeitamente no escuro, mas pediu uma lanterna ao primo para que a princesa não ficasse assustada naquela casa estranha. Logo que encontrou o quarto de dormir, Immu o preparou para que a jovem exausta pudesse dormir.
— E agora começa sua aventura de verdade — disse uma voz suave, atrás de Anigel.
A princesa levantou-se de um salto, com um grito abafado. Depois riu, vendo que era uma mulher nyssomu, mais velha do que Immu, com enormes flores brancas presas por espinhos no vestido de fibra trançada. De cada lado da cabeça usava dois pompons das mesmas flores. Mas, no pescoço, em vez de uma grinalda de flores, trazia um cordão de platina, que tinha na ponta um objeto que parecia um monóculo.
A pequena nyssomu ergueu a lente e examinou Anigel, com um dos olhos grotescamente aumentado.
— Então, você é a jovem que sonha sonhos importantes. A voz era familiar. Anigel lembrava-se de tê-la ouvido na véspera, quando estava ainda escondida no barco labornok.
— E você é a Observadora Frolotu! Não a reconheci com essa roupa!
— Para os humanos — disse a mulher, gentilmente — todos os nyssomus são iguais
— Peço perdão se a ofendi, Observadora. E agradeço por nos acolher.
— Mas você não teve um sono tranqüilo.
— Tive um sonho terrível — disse a princesa. — O pior pesadelo da minha vida. Gostaria de ouvi-lo, e depois talvez explicar o que significa?
As duas presas de Frolotu brilharam quando ela sorriu.
— Veremos se é possível. Vamos para o terraço, onde Immu vai servir sua refeição.
Anigel hesitou.
— Eu agradeço, mas na verdade não estou com fome. E se formos lá fora podemos ser vistas por quem estiver no canal. O feiticeiro Orogastus ou seus acólitos podem me ver...
— Estamos no interior da ilha — disse a Observadora. Você está a salvo por algum tempo. Sente ao meu lado e conte seu sonho.
A princesa quase chorou quando viu a comida preparada Por Immu, servida numa mesa graciosa de pedra trabalhada. Durante os três dias da viagem o único alimento que tinham eram as rações levadas por Immu, horríveis raízes secas, uma fruta muito doce, seca também, e para beber, só água. O amuleto ignorou seus pedidos de algo mais saboroso. Esperava encontrar em Trevista uma comida impossível que na certa ofenderia mais ainda seu aparelho digestivo — mas teve uma surpresa.
— Oh, Immu, comida de verdade!
A louça e os talheres eram estranhos, mas a refeição era igual ao seu café da manhã na Cidadela. Bolinhos de arroz com mel de abelha d’água, omelete de coalhada recheado com cogumelos frescos, salsichas picantes cozidas, suco de ladu e um bule de chá de darei. A comida era abundante e Anigel, faminta, devorou tudo, agradecendo com a boca cheia, enquanto Immu fingia estar ofendida.
— Comida de verdade! Menina tola e mimada! Aposto que pensou que os nyssomus só comem raízes, frutos silvestres e água do pântano!
Anigel disse, com ar penitente:
— Acho que nunca pensei no que os oddlings comem. Immu, desculpe. Eu devia ter-me interessado mais, como Kadiya.
— Não tem importância, meu bem. — A Observadora Frolotu a examinava com a lente e um largo sorriso. — Tanto Immu quanto esta aqui sabemos que não há malícia no seu coração, apenas o descuido da juventude.
— Mas onde você arranjou esta comida? — perguntou Anigel.
— Perguntas perguntas perguntas! — disse Immu. — Na intendência dos nobres, na Praça Lusagira, se quer saber. Mandei Sithun e Trezilun roubarem uma boa quantidade porque sei o quanto você sofreu comendo nossas rações durante a viagem. Vai sobrar um pouco para a jornada a Noth. Mas com o tempo, terá de adaptar seu paladar ao alimento que a terra lhe oferece.
— Espero conseguir — disse a princesa, entre goles de chá. — Quando ficar realmente faminta! Mas, diga-me — descobriu mesmo um meio de chegarmos à casa da Arquimaga?
— Graças a Frolotu. Ela tem amigos entre os uisgus e eles concordaram em levá-la numa canoa puxada por rimorik.
A princesa levantou-se de um salto, ajoelhou aos pés da Observadora e beijou as garras enrugadas.
— Obrigada, querida senhora! Agradeço de todo o coração, e encontrarei um meio de recompensá-la.
A velha mulher balançou a cabeça, retirando as mãos.
— Criança, a recompensa desta Observadora será a realização do seu destino.
— Sabe alguma coisa a respeito?
— Esta Observadora conhece as profecias sobre as Três Pétalas do Trílio Vivo que libertarão nosso Pântano Labirinto de um perigo mortal. E ao que parece, você é uma das escolhidas.
Anigel corou e virou o rosto.
— Eu preferia não ser. Tenho muito medo. Não sou brava nem inteligente como minhas irmãs. E o sonho diz que vou falhar.
Frolotu riu.
— Diz mesmo? Que tal terminar seu chá e nos contar o sonho?
As três sentaram-se à mesa e Anigel contou com detalhes seu pesadelo, enquanto a Observadora girava a lente nas mãos e, uma vez ou outra, observava a princesa com ela. Anigel era tímida demais para perguntar o que a oddling estava vendo, ou por que usava a lente em vez da vareta verde que havia apontado para o Príncipe Antar.
— Esta Observadora vai lhe dizer por quê! — A surpreendente oddling respondeu à pergunta que não fora feita. — A lente é um objeto dos Desaparecidos. Serve para focalizar os pensamentos das pessoas. Mas também ensina quem a usa, e depois de algum tempo não precisamos usá-la sempre. Se o malvado feiticeiro a tivesse visto, ontem, ele a teria roubado, mesmo contra a vontade do Príncipe Antar. Por isto esta Observadora usou a vareta, cujo valor nenhum humano conhece.
— Mas está usando a lente, agora — disse Anigel.
— Sim, criança. De manhã, as faculdades dos velhos estão muito fracas e precisamos de toda ajuda possível.. Mas termine de contar seu sonho.
Anigel contou tudo, até o último detalhe, e a repetição da experiência foi tão dolorosa que ela mal conseguiu chegar ao fim, pálida como as pedras da varanda. Quando terminou, a Observadora recostou na cadeira com os grandes olhos fechados e os lábios grossos movendo-se vagarosamente, em silêncio.
Anigel esperou, cheia de medo. Os pássaros e insetos cantavam e zuniam na varanda repleta de flores e peixes prateados saltavam no canal. Então, Frolotu abriu os olhos com um estalido surdo.
— Sabe o significado do sonho? — perguntou Anigel, timidamente.
— É claro! Muito bem, geralmente a primeira coisa que os videntes comuns fazem num caso como este é pedir à pessoa que tente analisar o próprio sonho. Ou então, usam alguns chavões no sentido de que a pessoa vai descobrir o significado no momento certo. Mas esta Observadora não vai enganá-la, jovem! Seu caminho será muito difícil, e o mais certo é explicar tudo claramente. Seu sonho significa que você é covarde, e que gostaria de se livrar desse árduo dever.
— Mas eu já sabia disso! — choramingou a princesa.
— Calma, calma, agora. Escute a explicação. Os sonhos são às vezes mandados pelos Senhores do Ar — mas esse tipo de sonho não é comum. A maioria, na verdade, vem das profundezas das nossas almas. E um sonho perturbador e importante como esse significa que seu eu secreto — a parte mais importante da sua personalidade, aquela que está mais perto da imagem de Deus — angustia-se com o seu comportamento atual. É uma advertência e ao mesmo tempo um incentivo para que procure fazer melhor, para ser fiel aos seus instintos mais nobres, dominar o egoísmo e a covardia.
— Mas não sei como fazer isso!
— Vão lhe ensinar — disse a Observadora suavemente. — Você já começou sua jornada. Esta Observadora viu tudo através da lente. Agora, precisa continuar — um dia depois do outro, determinada e confiante. A princesa não estava convencida.
— Mas isso parece tão simples.
Immu e Frolotu riram alegremente. A princípio, Anigel ficou ofendida, mas finalmente riu com elas.
— Você escapou da morte ajudada por muitos milagres e bons amigos — Frolotu disse, com expressão grave. — Seus próximos passos estão claramente definidos. Deve seguir resolutamente, tenha medo ou não. Não é vergonha sentir medo, princesa. Não podemos evitar. Mas às vezes somos solenemente obrigados a seguir nosso caminho, apesar disso.
A princesa olhou para as próprias mãos apertadas uma contra a outra no colo.
— Eu... vou tentar.
— Ótimo — Frolotu levantou-se. — O barco uisgu que pedimos chegará esta noite. Até então, deve ficar escondida. Aquele feiticeiro horrível deixou um dos seus acólitos na guarnição — sem dúvida para tentar encontrá-la e às suas irmãs. Mas você partirá para Noth antes de a lua nascer. Se tudo correr bem, deverá chegar à casa da Dama Branca dentro de quatro dias.
Anigel ficou deprimida com a idéia de reiniciar tão depressa a viagem, mas quando falou foi com delicada ironia.
— Seria muito reconfortante chorar um pouco agora, lamentando meus mortos e com pena de mim mesma. Não chorei no barco porque o som podia nos trair. Mas agora parece que não terei tempo para isso. Bem, talvez seja outra finalidade dos sonhos. Posso chorar à vontade na terra dos sonhos, ceder ao medo e recusar meu destino, noite após noite, sem cometer nenhum pecado, sem demonstrar fraqueza. Mas, quando estiver acordada, farei o melhor para simplesmente continuar meu caminho!
A Observadora sorriu, aprovando.
— Seu eu secreto quer ajudá-la. Enfrentando seus pesadelos, certamente vai aprender a ter menos medo deles.
Um vestígio do antigo pânico apareceu nos olhos de Anigel. Voltou-se para a velha amiga.
— Mas você estará ao meu lado o tempo todo, Immu, não é mesmo? Se eu ficar sozinha.. acho que não...
— Eu a amarei e a servirei durante todos os dias da minha vida — disse Immu, abraçando e beijando a jovem princesa. — É claro que vou a Noth com você e a acompanharei onde quer que a Dama Branca ordenar. Mas chegará o dia, como chega para todos nós, em que você deverá agir sozinha.
Anigel escondeu o rosto no ombro da sua velha ama.
— Não muito em breve. Por favor, não muito em breve Kadiya acordou ao cair da noite com o cheiro de peixe grelhado e imediatamente sentiu uma fome quase dolorosa. Aparentemente, Jagun ousara fazer uma pequena fogueira e estava grelhando alguns garsus, nenhum maior do que sua mão.
Kadiya atravessou a moita espessa que protegia o acampamento, chegou na margem do rio e lavou o rosto e as mãos esfregando-os com folhas. Sentiu saudades da piscina de água quente na Cidadela, onde ela e as irmãs tinham aprendido a nadar; dos cristais do sul, suavemente perfumados, que espalhavam na água para encher a piscina de espuma repousante e cheirosa. Embora a roupa cedida pelos oddlings fosse forte e resistente, estava rasgada aqui e ali e o creme contra insetos cheirava a ranço. Kadiya prendeu o cabelo liso com uma haste de junco.
Voltou para o acampamento. Comeu com a mão um dos peixes preparados por Jagun. lambendo os dedos rapidamente cada vez que o calor e a gordura faziam arder sua pele.
Jagun comia em silêncio. Continuou assim enquanto disfarçavam do melhor modo possível os sinais da sua passagem e voltaram para o barco e para o meio do rio. Kadiya o convenceu a permitir que ela ajudasse e, largando o remo, apanhou uma vara, dando a outra para a princesa.
O exercício não era novidade para a jovem, mas ela levou algum tempo para combinar seus movimentos com os de Jagun. Quando acertou o ritmo, o trabalho tornou-se quase hipnótico. Mergulhar a vara, fincar com força, levantar, mergulhar outra vez. De pé, na proa, Kadiya consultava freqüentemente o brilho do amuleto.
Descansavam de tempos em tempos. Pararam para tirar da água raízes de uma espécie de lírio. As flores enormes estavam ainda em botão, portanto podiam comer as raízes sem perigo. As raízes do lírio e os restos dos garsus foram sua refeição da meia-noite.
Foi uma noite de silêncio. Alguma coisa perturbava Kadiya. Nem o ritmo cadenciado das varas levando o barco conseguia dissipar seu temor de um ataque invisível e silencioso. Jagun era considerado um dos melhores caçadores do seu povo e certamente perceberia a tempo qualquer ameaça. Mas isso dizia respeito a ataques do mundo externo e o que ela temia vinha daquele mundo interno, de cuja existência jamais suspeitara antes das primeiras manifestações.
— Jagun — disse ela, em voz pouco mais alta do que o zumbido dos insetos. — O que nos espera ainda? — Naquele momento, Kadiya desejou ter prestado mais atenção ao grande mapa mural muito desbotado que recobria uma das paredes da sala do conselho, na Cidadela.
— Vamos para o Pântano Dourado — disse ele. — Antes, porém, paramos em Vurenha.
— A região do seu clã?
— Sim. Pertenço a um dos clãs da periferia. Além dessa região, ficam as terras que poucos ancestrais conheceram. Não posso dizer o que vamos encontrar lá. Podemos depender unicamente disso que você usa no pescoço.
— Terras dos uisgus? — perguntou ela.
— Uma parte, sim, mas também as regiões tenebrosas onde os afogadores fincam suas estacas. Conhecemos muitas histórias sobre eles, não sabemos o que tem de verdade nelas. Mas precisamos atravessar essa região para chegarmos a Noth, pois se tomarmos o caminho mais longo podemos ser descobertos por aqueles que nos perseguem.
— Você já esteve em Noth, Jagun?
— Uma vez. Quando você ainda era um bebê. Há uma lei, segundo a qual nós, os caçadores, quando achamos que estamos bastante hábeis na nossa profissão, devemos nos apresentar à Dama Branca para que ela nos conceda plena liberdade nos Pântanos. Foi quando ela me mandou servir como caçador na corte do rei seu pai e esperar o dia terrível da sua profecia, o dia que chegou recentemente. Segundo a lei também, devemos informar a Dama Branca de tudo que descobrirmos sobre os Desaparecidos...
— Novas descobertas? — perguntou Kadiya intrigada. — Existem ainda coisas para descobrir, Jagun? Tantas centenas passaram desde que seu povo começou a viajar pelos Pântanos. O que mais pode haver para descobrir?
Só depois de algum tempo Jagun respondeu, com certa relutância.
— Olhos Penetrantes, os Desaparecidos tinham segredos que nenhum de nós pode sequer imaginar. É verdade que qualquer objeto ou aparelho diferente dos que já foram descobertos até agora deve ser levado à Dama Branca de Noth. Alguns ela guarda, e sabemos que são perigosos e que o segredo faz parte do seu papel de guardiã.
Kadiya percebeu que Jagun não ia dizer nada mais sobre o assunto. Mas, se ele conhecia a Arquimaga, podia dizer alguma coisa que a preparasse para o encontro iminente.
— Como é ela, Jagun? Sei que sua mágica é poderosa, mas o que a faz diferente das outras pessoas? Dizem que Orogastus, fisicamente, é igual a todos os outros homens, mas tem um porte majestoso e um olhar a que ninguém pode resistir. Mas, afinal, as histórias mais impressionantes sempre são sobre o inimigo. Se Orogastus é mais do que um homem — então o que é a Arquimaga?
— Filha do rei, ela é a Senhora, a Guardiã. A vida ela conhece, e a morte, mas com nenhuma delas se preocupa. Pois vida e morte são o destino comum de todos. Ela é a mesma desde que meu povo a viu pela primeira vez. Não ergue a mão para impedir a morte e não cria nenhuma vida. Ela mantém o verdadeiro equilíbrio e nós enfrentamos a passagem do tempo de acordo com nossa natureza. Só ela impede a invasão dos Pântanos, e agora o equilíbrio foi alterado e precisa voltar ao normal outra vez. Uma coisa, filha do rei, para a qual você nasceu.
Kadiya mergulhou a vara bem fundo na água. Sem retirála, voltou-se e olhou para Jagun.
— Nasci para isso? — perguntou ela, erguendo a voz.
— Vocês três nasceram, Olhos Penetrantes. O tempo passa e a pedra mais dura tem de ceder a essa passagem. Ela, a de Noth, vê o futuro. Assim, quando ela avista nuvens se formando no horizonte, seu dever é se preparar para a chegada das Chuvas de Inverno. Antes do dia do seu nascimento, filha do rei, alguns nyssomus e alguns uisgus foram chamados a Noth. Foram avisados de que as Trevas cresciam e que aquela que no passado se interpunha entre nós e as Trevas não tinha mais forças para nos defender. Entretanto ela nos prometeu que outros viriam para restabelecer o equilíbrio.
Kadiya mordeu o lábio. Mais uma vez a fúria acendeu-se das brasas que ela alimentava cuidadosamente.
— Um aviso• — ela podia nos ter avisado!
— Olhos Penetrantes, esta é a primeira vez na lembrança das canções do meu povo que a Dama Branca de Noth enfrenta um poder similar ao seu. Ele pode ser muito maior do que ela imaginou. Você deseja cobrar o preço de sangue de Voltrik por todos que ele assassinou. talvez isso tenha pouca importância, comparado ao que você terá de exigir, antes do fim.
— Não tenho poderes mágicos... — começou ela.
— Olhe para aqueles juncos — Jagun inclinou a cabeça para a direita. — Você pode arrancar um deles e quebrá-lo facilmente. Com três deles, pode fazer uma corda trançada capaz de prender um harfut. Um você é, três vocês são...
Kadiya moveu a vara com impaciência.
— Haramis, Anigel e eu seremos essa corda? — Ela riu. — Acho que não se pode caçar muita coisa só com essa armadilha!
Magia — ela não possuía nenhum poder mágico e Anigel jamais em sua vida fácil havia demonstrado qualquer interesse pelas lendas antigas. Magia! Não queria pensar nisso como uma arma. Só pensava em enfrentar Voltrik com um verdadeiro aço nas mãos. Não havia onde ou como isso ia acontecer, mas acreditava que aconteceria. E ela não ia depender de nenhuma arte mágica para fazer o que devia ser feito!
Algumas vezes, durante aquela longa jornada noturna, ela não conseguia evitar estes pensamentos. Mas sempre se esforçava para voltar a atenção às coisas que os rodeavam. Duas vezes pararam sob o abrigo de uma elevação de terra, para descansar e comer. Kadiya massageou os braços e os ombros doloridos, sem nenhuma palavra de queixa. Na verdade, ela e Jagun falavam muito pouco.
Em certo momento, um grito agudo cortou a noite. Kadiya nunca ouvira nada igual, mas não se abalou. Descansavam sob os galhos de uma árvore na beira do rio, que os escondiam e guardavam. As Três Luas brilhavam no alto e um vulto alado cruzou o céu, tão imenso que Kadiya respirou fundo, admirada. Era maior do que o barco em que estavam e por um momento escondeu as estrelas. Não tinha idéia do que podia ser, nunca ouvira falar naquele tipo de criatura.
O vulto enorme soltou outro grito agudo e partiu. Jagun não fez nenhum movimento para sair do esconderijo. Kadiya o ouviu sibilar baixinho e dizer:
— O voor — e está caçando!
E havia em sua voz a apreensão do caçador enfrentando um inimigo muito mais poderoso do que ele.
— O voor?
— Não podia ter vindo até aqui por vontade própria, pois é uma criatura das profundezas do desconhecido. — Parecia estar falando para si mesmo. — O que o traz a esta região? Sem dúvida deve haver uma agitação ameaçadora em todo o mundo.
Depois de algum tempo continuaram a viagem, agora mais devagar. Kadiya procurava fazer tudo com o maior silêncio possível. Mais uma vez ouviram o grito ensurdecedor, mais para o norte, na direção que seguiam.
Acamparam quando o sol nasceu. Kadiya a princípio achou que não deviam parar na ilha escolhida pelo caçador, pois continha muitas ruínas e ela se lembrava do que haviam encontrado na outra, mas cedeu à insistência de Jagun.
Ele apontou para os redemoinhos na água escura.
— Sucbri — sem dúvida um ninho deles. Não chegam nem perto de um lugar que tenha servido de acampamento.
Aportaram na ilha e Jagun desapareceu com a zarabatana na mão. A princesa apanhou gravetos carregados pelo rio na estação das chuvas e armou a fogueira de modo que não fosse muito visível quando acesa. Esperando, em silêncio, Kadiya abriu todos os seus sentidos para o que a rodeava. Os vários odores do pântano misturavam-se no ar. Sentiu o perfume de flores, de decomposição e podridão, até a sugestão do cheiro almiscarado de um animal. Embora não possuísse o dom de Jagun e dos outros caçadores, sabia distinguir um cheiro do outro e classificá-los da melhor maneira possível.
Seus ouvidos também estavam atentos. Havia vida em volta dela e cada vez mais barulhenta à medida que o sol subia no céu. Reconheceu o estalido seco do besouro e, mais distante, o chilreio sonolento dos pássaros. Naquela vida abundante do pântano ela e seus iguais não passavam de intrusos. Seriam necessárias muitas e muitas vidas para que os da sua espécie pudessem classificar e conhecer um pouco a vida dos pântanos.
Kadiya segurou o amuleto e o ergueu para o primeiro raio de sol que chegou ao acampamento. O pequeno botão, dentro do âmbar, continuava fechado, mas a fagulha luminosa cintilava ainda. Negra, a flor era realmente negra como nenhuma outra. Era o emblema da sua casa real — e nem a mais antiga lenda explicava por quê.
Sem nenhum ruído que anunciasse sua chegada, Jagun apareceu de repente, trazendo dois karawoks, com água pingando ainda das bocas abertas. Com a zarabatana na mão, ele olhava para trás, para o caminho de onde tinha vindo.
Daria para contar até dez o tempo em que ele ficou ali, imóvel. Então, a tensão do seu corpo se abrandou um pouco. A cabeça, ainda virada para trás, para a trilha no meio do mato, girava da esquerda para a direita, com os olhos atentos. Finalmente, com um suspiro, ele sentou-se. Sua pele tornara-se mais cinzenta com os esforços da jornada. Deixou cair os karawoks, como se o bom sucesso da sua caçada não tivesse mais nenhum significado.
Depois de pôr a zarabatana sobre o joelho, Jagun tirou do cinto um volume disforme, e retirou rapidamente a folha no qual estava embrulhado. Kadiya recuou, com uma exclamação abafada. Um fedor intenso encheu o ar, quase sufocando-a. O objeto na mão de Jagun parecia um pedaço de geléia amarelo-esverdeado.
— Cria de skritek — Jagun largou o objeto, limpando as mãos vigorosamente nas hastes da relva. — É muito novo, mas mortal.
Kadiya olhou horrorizada e em silêncio. Não parecia possível que os skriteks tivessem se aventurado tão longe para fincar sua estaca de aviso. Impossível que tivessem um ninho ali perto. — Isso não podia acontecer!
— Encontrei um local onde os voors se alimentam — continuou Jagun. — Acabavam de comer isto.
— A que distância eles podem voar? — perguntou ela.
— Carregando um filhote grande? Não muito além da colónia mais próxima de skriteks que conhecemos...
Kadiya considerou o perigo que isso representava.
— Então os skriteks estão indo para o sul?
Jagun apanhou a folha desenrolada, com cuidado para não tocar a coisa dentro dela. Afastou-se do acampamento, fez um buraco no chão e enterrou os restos malcheirosos.
Quando voltou, disse com voz sombria:
— Há vários caminhos dentro do Pântano e alguns nós conhecemos muito bem. Mas ninguém pode conhecer toda esta vasta extensão. Existem lugares com lama movediça que engole qualquer invasor, além dos quais não podemos ir. O que existe além. — Ele deu de ombros.
Comeram e mais uma vez Kadiya ficou com o primeiro turno de vigia. Achou mais difícil do que nunca manter-se acordada, mesmo procurando se concentrar nas conseqüências daquela mudança de território dos skriteks. Quando Jagun a substituiu, Kadiya mergulhou imediatamente no sono pesado da exaustão.
A tarde estava quase no fim quando ele a acordou. Jagun estivera procurando comida outra vez e além das raízes de lírio trazia alguns garsus. Só de olhar para o peixe, Kadiya sentia a boca cheia d’água. Comeram devagar, saboreando cada pedaço, e deixaram aquele refúgio, seguindo sempre a promessa da luz do amuleto.
Naquela noite não viram sinal do voor, nem de qualquer coisa que não fosse parte do pântano. Agora estavam suficientemente perto do Pântano Dourado para distinguir os juncos brilhantes que davam o nome àquela região.
Quando a aurora os avisou da necessidade de procurar um abrigo, puderam descansar num lugar bem diferente dos que haviam encontrado até então. Pois ouviram um grito áspero ao qual Jagun respondeu imediatamente.
Naquele ponto, a nascente de um regato cortava a margem do rio grande e raso. Jagun entrou nele com o barco. Agora, nas duas margens Kadiya via oddlings que ela supunha serem nyssomus por causa das roupas de fibra tecida que usavam. Mas quando falaram com Jagun, não foi na língua usada no comércio com os mercadores e ela só entendeu uma ou duas palavras. Jagun aproximou o barco da margem esquerda e um dos oddlings subiu a bordo, tirou a vara das mãos de Kadiya, fez sinal para que ela sentasse e com movimentos vigorosos impulsionou o barco para a frente.
Assim ela chegou a Vurenha, a única aldeia nyssomu verdadeira que já tinha visto. Os que comerciavam em Trevista viviam nas ruínas nas ilhas do rio. Mas em Vurenha não havia sinais de outra história que não fosse a dos nyssomus. As casas eram construídas sobre palafitas, na beira da água, cada uma no centro de uma plataforma a uns cinco ells da superfície do lago, rodeadas por barcos iguais ao que os havia levado até ali. Trepadeiras, plantadas em vasos, subiam pelas paredes das casas altas, e suas folhas pareciam nascer das paredes e dos telhados, todas inclinadas ao peso de favas enormes e amarelas, com sombras avermelhadas. Kadiya reconheceu as plantas como a matéria-prima para a fabricação de uma bebida nutritiva e deliciosa. Nas margens do pequeno lago viam-se campos cultivados, bem como abrigos para animais de corte criados pelos nyssomus — o woth e o qubar —, maiores do que os da sua espécie, que viviam na selva.
O barco foi levado para o lado de uma das casas. Havia muitos oddlings fora das casas agora, mas os quatro que os esperavam eram mais velhos, e dois eram mulheres. Tinham os rostos pintados com tinta cintilante, formando desenhos variados, e as roupas de fibra tecida tinham franja de conchas brilhantes e outro material talvez proveniente das ruínas. A mulher mais alta e mais imponente adiantou-se para recebê-los.
— Meus cumprimentos, Primeira da Casa — Jagun falou devagar e dessa vez Kadiya compreendeu todas as palavras.
— Possam Aqueles Cujos Nomes não Pronunciamos trazer honra e uma vida boa a todo o clã e ao seu povo.
A nyssomu inclinou a cabeça com a mesma graça com que a Rainha Kalanthe recebia uma embaixada oficial na Cidadela.
— Esta Primeira da Casa lhes oferece abrigo — disse ela. Então, Jagun apresentou Kadiya.
O nyssomu que havia ajudado a levar o barco estendeu a mão e conduziu Kadiya até a plataforma onde estava a mulher cumprimentada com tanto respeito por Jagun. A princesa conhecia as regras do protocolo, mas era difícil fazer uma cortesia apropriada sem um vestido longo. Então ela improvisou, repetindo o gesto com que as mulheres oddlings de Trevista se cumprimentavam. Juntando as palmas das mãos, ela inclinou a cabeça.
— Eu, Kadiya, filha do Rei Krain, desejo o melhor para este povo.
Para alívio da princesa, a mulher respondeu com um gesto que ela conhecia — estendeu a mão com a palma voltada para cima. Kadiya imediatamente encostou sua palma na dela.
— Fique descansada, filha do rei — disse a mulher, distendendo os lábios grossos, no típico sorriso oddling. Depois, continuou, séria: — Verdade, há morte lá fora e agradecemos Àqueles Cujos Nomes não Pronunciamos por ter chegado até aqui sã e salva. Aqueles que afogam percorrem nossas terras. — Hesitou por um momento e então disse: — Há muitos filhos das trevas lá fora. Mas entre nosso povo, está livre de perigo e permita que a ajudemos como nossa hóspede.
A casa tinha vários cómodos que davam para um corredor e Kadiya teve a impressão de que cada um era ocupado por uma família. Não viu nenhum homem no interior da casa, mas em cada porta havia uma ou duas mulheres que inclinavam a cabeça à passagem de Kadiya e de sua anfitriã. Quando a nyssomu abriu uma porta no fim do corredor, Kadiya viu que o luxo, embora diferente daquele a que estava acostumada, não era estranho àquele povo.
Achou uma banheira com desenhos esculpidos — talvez de alguma ruína — esperando por ela cheia de água clara na qual flutuavam pétalas de tonalidade azul-violeta, uma das mercadorias vendidas nas feiras de Trevista. Quando amassadas e passadas no corpo desprendiam um perfume duradouro e além disso serviam para limpar. Satisfeita, Kadiya tirou a roupa e entrou na banheira. Ensaboou o corpo e os cabelos emaranhados e cheios de creme contra insetos com as pétalas perfumadas. Como era bom sentir-se limpa outra vez!
Sua anfitriã sentou-se num banco na outra extremidade do quarto e, uma a uma, seis outras mulheres juntaram-se a ela, todas majestosas e luxuosamente vestidas. A presença delas não embaraçou Kadiya. A atmosfera de paz e de calma era como um bálsamo de ervas sobre a ferida aberta dos sofrimentos recentes.
Uma mulher mais jovem entregou a Kadiya um manto longo de fibra tecida. Então a Primeira levantou-se e apontou para uma banqueta acolchoada. Kadiya sentou-se e outra mulher apareceu trazendo uma bandeja com taças feitas de pele de corfer, artisticamente cinzeladas.
Quando todas foram servidas, a Primeira derramou no chão algumas gotas da bebida da sua taça. As outras fizeram o mesmo e Kadiya as imitou, atenta aos detalhes da etiqueta que podiam conquistar a aprovação daquele povo. Na Cidadela, muitas vezes ela impacientava-se com a cerimónia da corte, descuidando-se e provocando a censura da mãe, mas naquele momento sabia que precisava fazer tudo para agradar aos nyssomus.
A anfitriã tomou um pequeno gole e estendeu a taça. Kadiya fez o mesmo e todas trocaram suas taças. Então, sempre seguindo o exemplo das outras, Kadiya esvaziou a que tinha nas mãos. Imediatamente uma sensação de completo relaxamento percorreu seu corpo.
— Há muita maldade — a anfitriã quebrou o silêncio. — Os comedores de sangue caminham lá fora, e com eles outro que não é da nossa terra e é capaz de confundir o pensamento de qualquer um. Recebemos mensagens da parte baixa do rio. Muitos dos nossos deixaram Trevista, pois o lugar está nas mãos dos comerciantes da morte. Enviamos uma mensagem para a Dama Branca de Noth. Mas ainda não recebemos resposta.
— Primeira da Casa — Kadiya inclinou-se para a frente na banqueta —, os que invadiram Trevista sabem muito pouco dos Pântanos. Mas são comandados por um malvado conhecedor de artes estranhas, e um dos seus servos está viajando com os skriteks. Entretanto, não acredito que homens acostumados às planícies de Labornok possam lutar no Pântano. Seu povo, que conhece todos os meandros e todas as trilhas, sem dúvida pode enfrentá-los e libertar esta parte da terra.
Mas a nyssomu balançava a cabeça lentamente.
— Filha do rei, não é nosso costume fazer guerra contra os que vêm às nossas terras. Temos nossas defesas, mas não infligimos morte aos outros.
Kadiya mordeu o lábio. Parecia tão bom seu plano de atacar a força inimiga, com um grupo de nyssomus, capazes de usar todos os truques e o terror daquela região para derrotar os invasores! A fúria mais uma vez acendeu-se dentro dela. Mas o que podia fazer? No passado cometera muitas tolices, levada pela impaciência. Agora não podia cometer erros.
Levou a mão ao amuleto.
— A Dama de Noth — disse, pesando as palavras — mandou me chamar. Há muito tempo ela é a Guardiã destas terras. Talvez tenha a resposta.
A nyssomu balançou a cabeça, concordando.
— Tem razão, filha do rei. Maior do que qualquer outro ser vivo, ela é a possuidora de muitos poderes estranhos. Nós a ajudaremos a chegar até ela.
E Kadiya teve de se contentar com isso.
A flauta flipe tocava ”Lagoa do Ocaso Cor-de-Rosa”, uma das melodias favoritas de Haramis, a balada triste e etérea de um solitário homem do rio, longe de casa e das pessoas que amava. Quando a última nota argêntea ecoou entre os picos nevados, a princesa disse:
— Muito bonito, querido amigo.
— Eu gostaria de tocar mais — disse Uzun, desculpando-se —, mas não consigo mover os dedos com a rapidez necessária. — O músico aconchegou-se no manto forrado de peles e estendeu os pés calçados de botas para perto da fogueira de gravetos. A noite aproximava-se rapidamente, trazendo com ela o vento gelado das geleiras que cortava a pele como uma faca.
— Não faz mal, Uzun. Acho que se você continuasse a tocar eu ia chorar de tristeza. O homem da canção pelo menos tinha esperança de voltar para a família e para sua terra, mas para mim não existe mais lar, e os que eu amava estão mortos.
— Talvez não suas irmãs, princesa Haramis olhou para a vertente rochosa e árida, além do Rio Vispar que haviam seguido, subindo cada vez mais na direção dos Montes Ohogan. Acima das cordilheiras escuras, o vulto majestoso do Monte Rotolo desenhava-se contra o céu listrado de nuvens, tingido de vermelho pelo sol que desaparecia no horizonte.
— Rezo para que Kadiya e Anigel estejam vivas — disse Haramis —, mas você sabe tão bem quanto eu que Kadiya estava preparada para morrer bravamente, quando nos separamos. Quanto a Anigel, não me surpreenderia saber que ela morreu de medo! — Piscou os olhos para conter as lágrimas.
— Pobres tolinhas! — Forçou seus pensamentos de volta para os problemas do presente. — E logo iremos juntar-nos a elas se essas miseráveis sementes de trílio continuarem a nos conduzir para o alto da montanha. Quase não temos mais madeira para o fogo, nem raízes ou frutas para comer. Não há peixes desde que o rio ficou branco, e sua água tem um gosto estranho. Você sabe o que é aquele pó branco?
— Para mim, tem gosto de pedra — disse Uzun. — De qualquer modo, se fosse veneno...
— Já estaríamos mortos — concordou Haramis. — Mesmo assim não me agrada. E eu me preocupo com você, Uzun. Não devia estar aqui em cima, neste frio. Não pode ser bom para você. Seu corpo não foi feito para viver neste lugar.
— Estou perfeitamente bem! — protestou Uzun. — Preciso só me aquecer um pouco e secar minhas botas.
— Mas vão ficar encharcadas outra vez quando continuarmos a caminhar na neve, amanhã — observou Haramis. — Meu sangue é mais quente do que o seu, Uzun, e eu posso suportar o frio. Mas você é nyssomu, nascido para viver no calor do Pântano. Durante todo o dia vi seu rosto ficar cada vez mais contraído de dor e seu passo cada vez mais lento.
— Eu estou atrasando a viagem — murmurou ele, cabisbaixo.
— Isso não importa. Deus sabe que não tenho pressa nenhuma de morrer congelada! Mas não acredito que você vá melhorar. O mais provável é que piore à medida que a temperatura ficar mais baixa.
Haramis levantou-se, tirou as luvas forradas de pele e começou a descalçar as botas molhadas de Uzun.
— Precisamos tirar essas botas. Nos seus pés jamais vão secar.
— Não, não — eu devo servi-la. Nunca você me servir!
— Fique quieto — ordenou ela, com fingida severidade. Haramis tirou as botas, o forro de feltro ensopado e a palha — boa proteção contra o frio, quando seca, mas reduzida agora a uma pasta úmida grudada nos dedos — Calçou os pés do músico com suas luvas forradas de pele, como se fossem meias. Depois, pôs as botas perto do fogo de modo que o calor atingisse a parte interna e serviu um pouco de chá darei do bule de barro escurecido pela fuligem. O velho oddling suspirou.
— Sinto-me muito melhor. Mas não devia ter se rebaixado.
Haramis encostou a ponta do dedo nos lábios dele, ordenando silêncio.
— Uzun, escute. Pensei muito no assunto e já resolvi. Quero que você volte. Já me acompanhou até onde permitem suas forças, agora devo seguir sozinha.
- Não! Não! — exclamou ele, agitado, derramando um pouco de chá.
— Eu disse que já resolvi, não disse? Sabemos que estamos quase chegando àquela parte das montanhas onde nenhum ser vivo — exceto talvez os fabulosos Olhos do Redemoinho — pode sobreviver por muito tempo. Nossa comida está quase no fim e temos pouca chance de conseguir mais. Logo nem veremos mais as árvores anãs, e não teremos fogo. Se na verdade meu destino é especial, como disse a Dama Branca, devemos supor que os Senhores do Ar me darão abrigo e sustento, de um modo ou de outro, enquanto eu estiver seguindo as sementes do trílio. Mas você, querido amigo, deve voltar. A missão é minha e devo realizá-la sozinha. Foi o que a Arquimaga disse. Ela não disse também que você devia me deixar antes do fim da jornada?
Uzun inclinou a cabeça, em silêncio. Enxugou os olhos com a manga, e tomou um gole de chá.
— Se você voltar agora — continuou Haramis —, poderá estar livre da neve em menos de um dia. Mais um dia e chegará na parte fértil do Rio Vispar, com muitos garsus e outros peixes, frutas maduras e nutritivas e as noites sem geada. Pode seguir o rio para o sul até encontrar os uisgus. Eles o levarão de barco até Trevista, onde está seu povo.
— Mas como posso deixá-la sozinha? O Triúne sabe que não entendo nada da vida ao ar livre, mas você — perdoe-me, princesa! —, você está menos preparada do que eu para sobreviver nestas condições!
— Não preciso de nenhum conhecimento especial de sobrevivência agora. Não há mais peixe para pescar, nem vartsdo-pântano para caçar, nenhuma planta comestível para apanhar e preparar. A comida que tenho na mochila vai impedir que eu morra de fome, durante algum tempo, e eu sei esperar que o sedimento do rio se deposite no fundo antes de beber a água. Posso escalar as rochas com relativa agilidade — sem dúvida tenho treinado bastante nos últimos dias — e as sementes encontrarão abrigos secos para meu descanso, por mais algum tempo, pelo menos, até chegar à região onde tudo é coberto de neve. Se eu não tiver chegado ao meu objetivo então... — Ela deu de ombros. — Bem, talvez os Olhos do Redemoinho se apiedem de mim e me conduzam aos fabulosos vales dos altos Ohogan, onde dizem que habitam os vispis, entre fontes de água quente e relvados floridos, enquanto as tempestades de neve passam lá em cima, sem alcançá-los.
Uzun disse em voz baixa, com ar pensativo:
— Na verdade, eu estava imaginando se a Dama Branca não havia nos enviado a um lugar assim.
— O que você sabe sobre os vispis?
— Eles nunca descem da montanha. Fazem comércio de minérios e pedras preciosas com os uisgus, que passam a mercadoria aos nyssomus, para ser levada até os humanos, na feira de Trevista ou nos mercados menores das aldeias em Dylex. Eles aceitam em troca especialmente animais domésticos — as espécies mais fortes e selvagens de volumniais, togaras e nunchiks peludos. Aceitam também sal e todo tipo de doces — o mel da abelha-d’água é a base do comércio de troca dos uisgus com eles — e alguns outros produtos.
— Como são eles?
— Nenhum nyssomu viu um vispi e viveu, pois suas terras são proibidas para os povos do pântano.
— Isso faz sentido — murmurou Haramis —, uma vez que vocês provavelmente morreriam gelados antes de chegar a elas.
— O povo das pradarias — continuou Uzun —, os uisgus, diz que os vispis são mais altos do que os humanos, e mais magros. Eles são nosso povo, porque seus filhos nascem completamente formados, não como uma larva faminta, como os dos skriteks. Dizem que os Olhos do Redemoinho, os guardiães dos desfiladeiros das montanhas, que no passado protegiam nossas terras de qualquer invasão, pertencem aos vispis e servem à Dama Branca.
— Alguns dos nossos guardas do forte nas montanhas contavam histórias de vispis dançando na neve recém-caída. Diziam que eles são muito belos — observou Haramis.
— Dizem também que são os mais antigos dos nossos povos. Mas ninguém sabe ao certo. Nossos contadores de histórias contam que eles vivem nas encostas dos Montes Rotolo, Gidris e Brom, onde, segundo dizem, fluem fontes e rios de água quente, que servem de moderadores do frio e da esterilidade da terra, permitindo o crescimento das plantas. E ao redor das terras dos vispis existem cavernas onde o gelo derrete lentamente, repletas de pedras preciosas, barras de ouro e platina, bem como pedras de menor valor, que descem as encostas, levadas pelas torrentes das montanhas. Supõe-se que algumas dessas cavernas pertenceram aos Desaparecidos. Uma vez ou outra, muito raramente, os vispis oferecem alguns objetos antigos para troca.
— Muito interessante — murmurou Haramis. Atiçou o fogo com a ponta de ferro do seu cajado, colocando os gravetos não queimados sobre a pilha de brasas. Ficou calada por algum tempo. De repente, disse: — Uzun, quer tentar scry para mim?
— Para suas irmãs?
— Não, para eles, para os vispis. Uzun respirou fundo.
— Eu... posso tentar. Se eles são realmente do nosso povo, devem ter auras, como os outros seres.
Haramis apontou para o bule que tinha ainda um dedo de chá quente no fundo. Com um gesto afirmativo, Uzun o apanhou e o fez girar, cada vez com maior velocidade, com os olhos fixos no pequeno vórtice de líquido. Então, seu corpo enrijeceu, os olhos pareciam perdidos no espaço e gotas de suor oleoso brilharam na sua testa.
Haramis esperou. O brilho rosado nos picos cobertos de neve aos poucos transformava-se num cinzento opaco. No céu, até então sem nuvens, farrapos de cirrus chegavam do sul, arautos das chuvas de inverno. Em certos anos, as tempestades chegavam mais cedo. Se isso acontecesse, ela estava perdida.
— Movis — murmurou Uzun. Sobressaltada, Haramis segurou o ombro dele.
— Viu alguma coisa?
— Movis — repetiu ele. Com os imensos olhos dourados fixos nos dela, Uzun aos poucos voltou a si e pôs o bule de chá no chão. — O nome da sua grande aldeia é Movis, e fica mais acima, a oeste.
— Você viu claramente? — perguntou Haramis, entusiasmada. — É muito longe daqui?
— Não sei dizer, só sei que fica lá, mais ou menos naquela direção. Os vispis podem se esconder completamente dos que procuram vê-los deste modo, mas eu disse seu nome e me permitiram uma visão rápida de Movis... e disseram que estão à sua espera.
O coração de Haramis batia disparado. Ergueu a mão sem luva e segurou o amuleto sob a túnica, aquecido com o calor do seu corpo. Movis! Um lugar real, não um sonho febril da Arquimaga agonizante! Afinal, as sementes não a haviam conduzido a uma busca vã, mas a um lugar real. Pelo menos era o que esperava.
— Você me serviu bem, Uzun. Este seu scry renovou minha confiança, dissipando toda incerteza. Eu confesso que começava a pensar que a Dama Branca era apenas uma bruxa doente e senil que havia me mandado para uma morte certa.
— Movis não fica perto — disse o pequeno músico, preocupado. — Fica a muitos dias de jornada, por caminhos extremamente difíceis.
— As sementes me guiarão — disse ela, sorrindo. — Não se preocupe, vou encontrar, e os vispis certamente me ajudarão na procura do Círculo das Três Asas.
— Na verdade, falaram comigo amistosamente — admitiu Uzun. Mexeu os dedos dos pés, ainda agasalhados nas luvas de Haramis, e a preocupação desapareceu aos poucos dos seus olhos. — Talvez tudo dê certo, no fim. — Uzun bocejou, pedindo desculpas à princesa.
Haramis riu.
— Tem toda razão — disse ela. — Vou sentir falta do seu rosto e da sua música, mas você me servirá melhor voltando agora. Pode fazer desta viagem uma balada, para cantar quando eu for rainha de Ruwenda. Na verdade, do modo que você fala às vezes, acho que já começou a fazer isso.
— Muito bem — Uzun suspirou. — Eu volto. Você vai viajar muito mais depressa sem minha companhia. Posso deixála agora com o coração mais leve, sabendo que a Arquimaga deu ordem aos vispis para tomar conta de você. Enquanto estiver viajando para o sul, uma vez ou outra tentarei saber, por meio do scry, onde e como você está.
— É claro — disse Haramis. Apanhou as botas e as meias de feltro de Uzun, que estavam quase secas. — Guarde dentro do seu saco de dormir que acabarão de secar durante a noite.
Ajudou-o a entrar no saco de dormir forrado de penas e Uzun se encolheu, encostado numa rocha, no outro lado da fogueira. Antes de Haramis abrir seu saco de dormir e tomar as últimas gotas de chá, Uzun estava dormindo e roncando.
Haramis limpou o lugar do acampamento, depois foi até o regato. A geada começava a cobrir as rochas e retalhos de neve entre os picos agudos cintilavam na luz do poente. Encheu a bolsa de pele até a metade, estremecendo quando seus dedos tocaram a água. De manhã, depois de congelar e derreter, a lama cinzenta em suspensão estaria depositada no fundo e a água podia ser bebida.
Uma pequena poça de água refletiu a luz das estrelas e cintilou a seus pés. Um perfeito instrumento para o scry...
Serei capaz de fazer esta mágica? Por falar nisso, o scry é realmente mágica ou uma habilidade mental, como a comunicação sem palavras dos oddlings? Será que eu poderia ver minhas irmãs? Sei que podem estar mortas, mas sinto que não estão. É claro que, mesmo que eu possa vê-las, não vou provar nada. É possível que a Arquimaga tenha erguido barreiras — uma espécie de encantamento — para nos proteger de labornoks como Orogastus, que poderiam nos procurar e nos matar. Mas talvez, se eu procurar minhas irmãs, cujo destino está ligado ao meu, a barreira não impeça a mim de vê-las. Não custa tentar.
Ajoelhou ao lado da poça de água, procurando não ficar na frente da luz da estrela, e fez uma oração breve. Então, procurou não pensar em nada, concentrando-se no pequeno ponto brilhante na água, e imaginou o rosto da irmã Kadiya.
Kadi. Kadi. Você está viva? Deixe-me vê-la!
Um sorriso. O forte odor de água perfumada, bolhas de sabão, cabelo ruivo boiando...
Nada mais.
Haramis sentou nos calcanhares. Por um momento, uma fração de segundo, teve a impressão de ver imagens confusas. Mas nenhuma visão real de Kadi, apenas fragmentos de sensações, sem dúvida nascidos da sua imaginação avivada pela fadiga.
Suspirou. Bem, não esperava mesmo conseguir. Scry era um talento dos oddlings, que nenhum humano possuía. Estava ali agachada como uma perfeita idiota, quase congelada na margem do rio, quando podia estar confortavelmente agasalhada no saco de dormir, o lugar próprio para essas fantasias. Suspirando outra vez, subiu a pequena encosta e foi se deitar.
O barco uisgu partiu veloz sob a luz das Três Luas e Anigel acordou com uma exclamação abafada. Era a quarta noite seguida que sonhava com a seca e o fogo, e estava coberta de suor e rígida de pavor sob a coberta acolchoada com folhas, ajeitada por Immu em volta dela. Maldito sonho! Era tão idiota reviver continuamente aquela irrealidade dolorosa! Segurou o amuleto com o trílio. Sentiu o calor do âmbar na palma da mão gelada e perguntou por que seu lado secreto enviava novamente aquele terrível pesadelo. Sabia o que significava! Reconhecia suas deficiências e prometia ser corajosa. Por que aqueles fantasmas insistiam em atormentá-la? Não era justo!
Reunindo toda a força de vontade, procurou afastar aquelas lembranças, concentrando-se no aqui e agora.
O barco em que viajava assemelhava-se aos dos nyssomus, no formato e no comprimento, mas não era feito de um tronco de kala e sim de feixes de junco, trançados e forrados na parte interna com uma substância dura. Os dois rimoriks que o impulsionavam eram criaturas peludas, longas e finas, maiores do que um homem, com cabeças também longas, olhos negros enormes e os dedos das patas unidos por uma membrana com garras formidáveis. Seus corpos eram mosqueados de verde e sua voz um silvo agudo. Não gostavam de humanos e arreganharam as presas quando Anigel tentou se aproximar deles. Estavam atrelados ao barco por meio de arreios duplos, atados na proa. Os dois condutores uisgus, Lebb e Tirebb, controlavam seus cavalos aquáticos com as rédeas que passavam por duas argolas nos lados do barco. Anigel era obrigada a viajar e dormir numa pequena esteira, na popa estreita, para não perturbar os rimoriks com sua aura humana. A cada seis horas paravam numa aldeia uisgu para a troca de animais e descanso dos barqueiros.
O calor do sol era escaldante na estranha região do Pântano Dourado que atravessavam há três dias. Viam poucos animais nativos, bandos de pássaros, moscas com asas transparentes — algumas com envergadura de meio ell — e uma enorme quantidade de peixes. A relva com bordas cortantes era, em alguns lugares, mais alta do que Anigel e coroada com ponículas de flores amarelo-douradas.
No começo da viagem, navegaram por um canal estreito e sinuoso atravessando uma região ao norte de Trevista. As curvas eram tantas que Anigel perdeu todo o senso de direção. No segundo dia, a relva era mais baixa e os canais menos distintos. Os rimoriks simplesmente nadavam em frente, atravessando a pradaria alagada, e o barco deslizava sobre a relva como se estivesse numa estrada coberta de graxa, mal tocando a água.
As paradas eram sempre em pequenas ilhas, com muitas árvores e arbustos repletos de flores e frutos, onde viviam os tímidos uisgus, que se alimentavam especialmente de peixe cru. Usavam uma bebida ”sagrada”, marrom, que Immu se recusou a dizer do que era feita e proibiu Anigel de experimentar. Ao contrário dos nyssomus, os uisgus não usavam o fogo. Moravam em cabanas de palha, tecidas com juncos trançados, como seus barcos, construídas sobre estacas, por causa das enchentes de inverno. Os uisgus eram muito menores do que os nyssomus e usavam apenas um saiote curto e jóias de ouro com pedras preciosas, adquiridas no comércio de trocas com os vispis das montanhas do norte. Pintavam círculos de várias cores em volta dos olhos e os homens tinham pintados no peito três círculos entrelaçados no ponto central. Seu corpo era quase todo coberto de pêlos curtos, sobre o qual passavam um óleo espesso com forte cheiro almiscarado. Anigel quase não sentia mais o cheiro, mas quando conheceu os dois barqueiros, Lebb e Tirebb, na casa da Observadora, teve de controlar a náusea quando apertou as mãos pegajosas dos dois. Entendia agora por que certos ruwendianos chamavam os pequenos oddlings de “Demônios escorregadios!” Immu e os barqueiros mal conseguiam se entender, cada um com seu dialeto, mas na verdade não precisavam conversar muito. Os dois uisgus sabiam perfeitamente onde ficavam as ruínas de Noth e haviam prometido a Frolotu levar Immu e a princesa até lá, o mais depressa possível.
Quando a noite chegava sobre a pradaria e as estrelas, obscurecidas pela névoa, pareciam duas vezes maiores, a orquestra noturna do pântano Dourado em nada se parecia com a do Baixo Mutar ou de Trevista. Na vasta região desprovida de árvores, nenhum animal grande rugia ou uivava. Os ruídos do pântano eram batidas sincopadas, como centenas de pequenos tambores, cada um num tom diferente, tocando uma melodia variada que acompanhava o deslizar do barco sobre o mar de relva. Era um som hipnótico e Anigel voltou a dormir.
Sem sonhos, Sem sonhos, pediu ela, mergulhando no sono. Quando acordou outra vez o barco estava parado, sentia-se perfeitamente descansada e o dia estava nascendo.
Três rostos estranhos espiavam, de fora, sobre a amurada do barco, com um misto de fascinação e horror. Eram vagamente parecidos com os nyssomus, mas suas orelhas pontudas eram maiores, bem como as presas afiadas, e tinham cabeça, o pescoço e o rosto cobertos de pêlo oleoso e liso. Um deles tinha círculos amarelos em volta dos olhos, os dos outros dois eram rosa e ocre.
A princesa deu um grito de surpresa e os três rostos desapareceram.
— ó, desculpem-me — disse ela, suavemente. — Não tenham medo, pequenos uisgus. Sei que para vocês pareço muito feia e gigantesca, mas não vou lhes fazer mal.
Apareceu uma cabeça, depois outra e mais outra, não maiores do que a cabeça de um bebê humano. As crianças uisgus conversaram animada e agitadamente, sem dúvida comentando a natureza do monstro que acabavam de encontrar adormecido num barco na sua praia.
— Está tudo bem — Anigel os tranqüilizou. Ergueu o amuleto com o trílio no cordão de ouro e, de repente, tudo se explicou.
Os três pequenos uisgus, com gritos de alegria, mostraram as presas em largos sorrisos. Subiram na amurada, prontos para entrar no barco, mas Anigel disse, sorrindo também:
— Não, não, por favor, fiquem sentados aí enquanto eu me visto. Depois, podem me levar à sua aldeia. Suponho que Immu, Lebb e Tirebb foram procurar rimoriks descansados, deixando-me aqui, dormindo preguiçosamente.
Empurrou a coberta para o lado e sentou-se, para vestir a túnica tecida com hastes de relva. A princípio, Anigel hesitou em usar a túnica dada por Frolotu, mas logo descobriu que era muito mais confortável naquele calor do que seu vestido sujo e rasgado. As mangas largas, boca-de-sino, e o capuz folgado a protegiam do sol inclemente da pradaria. Trocou também as sapatilhas arruinadas por meias de pele que iam até os tornozelos e sandálias fortes. Completava o traje um cinto de fibra trançada com uma grande bolsa de couro, onde a princesa guardou o lenço, o pente, a adaga e alguns outros pequenos acessórios.
Um dos pequenos uisgus desapareceu da amurada. Voltou logo depois e, rindo nervosamente, estendeu para Anigel um cordão de flores que pareciam de cera, com um perfume forte. Anigel agradeceu, fez uma grinalda e a pôs na cabeça. Depois, saiu do barco e acompanhou os três uisgus por uma trilha estreita.
A aldeia não ficava longe e consistia de cinco cabanas sobre estacas e um galpão, sem telhado, ao nível do solo, onde os uisgus faziam suas reuniões sociais, discutiam assuntos importantes e preparavam e comiam as refeições na estação seca. Immu e os barqueiros, Lebb e Tirebb, serviam-se da panela comunal. O chefe da aldeia recebeu Anigel com um discurso atencioso, mas incompreensível, e mandou que a servissem também.
Anigel já estava acostumada ao peixe cru picado, marinado com suco ácido de frutas até ficar branco, com uma textura semelhante à do peixe cozido. Aceitou também fatias de melão e um punhado de deliciosas nozes-blok, mas, imitando Immu, recusou o miton sagrado.
— Essa gente diz que Noth fica a poucas horas daqui — disse Immu. — A parte submersa do Pântano Dourado, que pode ser atravessada pelos rimoriks, termina a poucas léguas da aldeia, onde a água é muito rasa. Teremos de ir até o Rio Notar, um pouco a leste, e acompanhá-lo durante algum tempo para chegar à casa da Arquimaga, da qual os uisgus só se aproximam quando são convidados, mas eu disse a eles quem você é e por que a Dama Branca a chamou.
O chefe da aldeia, que se distinguia dos outros oito homens adultos pelo colar e braceletes de ouro, o saiote enfeitado com escamas de peixe e três círculos coloridos em volta dos olhos, aproximou-se da princesa, quando ela terminou de comer e falou durante algum tempo no seu dialeto incompreensível. Anigel controlou-se para não recuar quando os dedos como garras seguraram o amuleto do trílio, no cordão de ouro, para mostrá-lo aos outros.
O pequeno grupo de uisgus, maravilhado, emitiu uma exclamação abafada, interrompida pelo vozerio das três crianças, sem dúvida contando aos outros que já haviam reconhecido Anigel.
— Esses uisgus que vivem na região oeste do Pântano Labirinto mantêm contato mental permanente com seus companheiros — Immu disse para Anigel, em voz baixa. — O chefe diz que você não é a única Pétala do Trílio viajando para Noth. Há outra — sem dúvida sua irmã Kadiya — que sobreviveu aos perigos do Pântano Negro. Ela e seu companheiro — deve ser Jagun — chegaram à aldeia dos nyssomus, perto da confluência do Rio Notar e o Alto Mutar.
— Isso é maravilhoso! — exclamou Anigel. — Podemos esperar a chegada dela em Noth.
Immu disse com ar de dúvida:
— Quem vai resolver isso é a Arquimaga.
O chefe falou outra vez, apontando para o céu ao norte e franzindo a testa, depois esfregou as palmas das mãos nos quadris peludos, indicando desaprovação extrema.
— Pela Flor! — resmungou Immu. — Ele diz que uma terceira pessoa usando o amuleto do trílio partiu de Noth há uma semana, na direção das montanhas ao norte, e que subiu para os campos de neve dos Montes Ohogan. Ele diz que essa pessoa é muito imprudente porque vai entrar no território dos vispis, proibido para todas as outras raças, sob pena de morte.
— Só pode ser Haramis! — exclamou Anigel. — E ela só iria onde a Arquimaga mandasse! Mas como foi que conseguiu...
— Quieta — disse Immu. — Não diga mais nada. Immu fez um pequeno discurso de agradecimento ao povo da aldeia e disse a Lebb e Tirebb que erahora de seguirem viagem. Dois novos rimoriks já estavam atrelados ao barco.
O chefe delicadamente colocou-se na frente delas. Obedecendo à sua ordem breve, uma das mulheres entregou a ele um vaso fechado de cerâmica, pintado de vermelho-vivo, dentro de uma sacola de fibra trançada. O chefe o entregou solenemente a Anigel.
— É miton? — murmurou a princesa para Immu.
— Sim, é. E desta vez você tem de aceitar, pois é um presente especial que eles raramente fazem a quem não pertence ao seu povo — muito menos a humanos. Graças aos Senhores do Ar, você não é obrigada a beber.
Anigel inclinou a cabeça, agradecendo em sua língua. Aparentemente eles compreenderam. Uma velha oddling encarquilhada os acompanhou no caminho para o barco, batendo no ombro de Anigel e apontando para o jarro com um sorriso encorajador.
— Miton! — dizia ela. — Miton! Miton ka poru ti! Embarcaram, os dois uisgus na proa, Immu e Anigel na popa. Quando se afastaram, os uisgus na margem do rio ergueram as mãos, num gesto de despedida. A voz chiada da velha repetiu pela última vez:
— Miton ka poru ti!
— O que quer dizer isso? — Anigel perguntou para Immu. Com o jarro no colo, examinava o trançado caprichoso da rede.
— Quer dizer ”Miton dá força e coragem” — traduziu Immu, com relutância —, por isso a chamam de bebida sagrada.
— Mas isso é maravilhoso! — exclamou a princesa, com alívio. — Vou tomar um pouco agora mesmo, pois estou quase morrendo de medo de conhecer a Dama Branca.
Immu virou o rosto e, como se estivesse falando sozinha, resmungou:
— Há uma estranha simbiose entre os uisgus e os rimoriks, por meio da qual eles se ajudam e se estimam mutuamente. O povo e os animais são amigos do coração, não donos e animais domésticos. Os rimoriks são fortes e corajosos, ao passo que os uisgus, mais fracos, são mais inteligentes. Sua união é constantemente reforçada por meio do miton, tomado pelos rimoriks e pelos uisgus... e feito da mistura do sangue das duas espécies.
A princesa ficou petrificada. Uma das mãos foi instintivamente até o amuleto.
— Eu não sei dizer — concluiu Immu — se essa bebida dá coragem ou não. O meu povo, os nyssomus, tem medo dela. Os poucos de nós que ousaram tomá-la — nossos barqueiros de rimoriks — transformaram-se numa espécie diferente. Sem dúvida há uma mágica muito forte nela, mas seria prudente você entregar esse jarro para a Arquimaga, ou pelo menos consultá-la sobre seu potencial.
— Eu... vou fazer isso — disse a princesa.
Anigel ficou em silêncio durante um longo tempo, olhando para o jarro vermelho e depois para a paisagem, para as montanhas que começaram a aparecer no horizonte.
Depois de quase uma hora, voltou-se para Immu e disse, sorrindo:
— Só os Senhores do Ar sabem se este miton na verdade dá coragem e força. Mas aconteceu uma coisa estranha. Só de ficar aqui sentada, segurando o jarro, perdi todo o medo de me encontrar com a Dama Branca. Acho que isso é magia suficiente por enquanto.
As ruínas de Noth, embora mais extensas, não eram tão imponentes quanto as de Trevista e Anigel ficou um tanto desapontada. O barco uisgu, depois de atravessar uma área cheia de ruínas de pedras cobertas pela vegetação, chegou a uma lagoa repleta de flores amarelas malcheirosas, com restos de insetos apodrecidos dentro das corolas. Aportaram num pequeno cais surpreendentemente limpo. A praia inclinada era coberta de relva cortada rente e de jardins floridos e civilizados, plantados no meio da selva luxuriante, onde passeavam togars domesticados de pescoço comprido, como se estivessem numa fazenda do Knoll, uma vez ou outra, comendo um pouco de relva ou outra coisa qualquer. A algumas dezenas de ells acima, no topo de uma escada rústica feita de lajes de pedra, erguia-se um chalé, diferente de todos que Anigel conhecia.
O telhado era de relva seca e espessa, e o branco das paredes destacava a madeira escura dos beirais. Da chaminé de pedra espiralava um filete de fumaça. As janelas eram feitas de mosaico, com floreiras no parapeito e venezianas de madeira para proteger o vidro durante a estação das chuvas. A porta da frente ficava bem no centro — e só a metade inferior estava fechada. Ao lado dela havia um banco de madeira com uma roca, um cesto com lã para fiar, uma vasilha cheia de novelos de fios e um animal pequeno, peludo e malhado, dormindo. O efeito total era tão encantador e tranqüilo, depois das ruínas sombrias da cidade perdida, que Anigel perguntou em voz alta se estariam no lugar certo.
Immu perguntou aos uisgus Lebb e Tirebb, que pareciam ansiosos para deixar as passageiras e partir. Os dois balançaram as cabeças enfaticamente dizendo que sim e apontaram para a casa. Um deles jogou na praia as mochilas de Immu e de Anigel e o outro assoprou o apito sibilante, a ordem para os rimoriks começarem a nadar.
— Ora ora — disse Immu, vendo o barco afastar-se velozmente. — O que você acha disso!
Anigel dirigiu-se para os degraus do jardim e chamou:
— Venha depressa! Não vai acreditar no que eu encontrei plantado aqui!
— Venha venha venha — resmungou Immu, caminhando para a escada com suas perninhas curtas.
Entre a água e a casa havia várias árvores carregadas de frutos redondos cor-de-laranja que impediam Immu de ver a planta que Anigel contemplava com admiração e respeito.
Era um Trílio Negro com dois ells de altura, carregado de flores enormes.
Immu caiu de joelhos e começou a chorar.
— É verdade! Nós o encontramos! Ó, dou graças aos Senhores do Ar!
A princesa ajoelhou também para consolar a amiga, mas um instante depois, com uma exclamação de susto, as duas se abraçaram. Um vulto apareceu entre elas e o brilhante sol do meio-dia.
— Senhora? — disse Immu, com voz trêmula.
O vulto se moveu e a luz incidiu no rosto tão enrugado e marcado pelo tempo que os traços quase tinham desaparecido, exceto os olhos azuis nas órbitas fundas. Estava vestida com um manto branco de tecido feito em casa, e um véu bordado cobrindo os cabelos também brancos. Estendeu a mão emaciada, com as juntas grossas e veias saltadas, onde cintilava um anel com aro de platina filigranada e uma pedra de âmbar com um trílio fossilizado dentro dela.
— Eu sou a Arquimaga Binah — disse ela. — Sejam bem-vindas.
Anigel levantou-se, deixando Immu paralisada, sentada no chão. Sentiu um calor intenso no peito e tirou de sob a túnica o amuleto. O âmbar parecia em chamas, pulando com as batidas do seu coração, e o botão dentro da pedra começava a se abrir.
A mulher sorriu e voltou-se, convidando Anigel a se aproximar, com um gesto. A Arquimaga andava com dificuldade, arrastando os pés, apoiada num cajado de prata. A princesa a seguiu sem nenhum medo. Como podia ter medo daquela pobre Dama Branca agonizante?
— Ô, você ficaria surpresa — respondeu a Arquimaga, com uma risada que soou como folhas secas passando sobre pedras. — Mas não deve ter medo de mim, criança. Sou sua madrinha e a amo. Deve confiar em mim.
— Eu confio — disse Anigel.
A Arquimaga parou perto do trílio.
— É o único desta espécie que vive ainda em nossa terra e, embora pareça forte, está morrendo, como eu.
Anigel deixou escapar uma exclamação de susto. Mas a mulher levou um dedo aos lábios.
— Outra espécie de trílio tomará o lugar deste, se Deus quiser. Sabe do que estou falando, minha filha?
— Sei — disse a princesa. — Mas eu sou muito fraca e posso comprometer seus planos se...
— Fique quieta — censurou Binah. — Essas suposições tolas podem atrair o fracasso que tanto teme! Você deve cultivar a serenidade, meu amorzinho, pois ela é o traje da verdadeira nobreza. Veja como essas flores são serenas, aceitando alimento da folha e da raiz, voltando suas faces sempre para o sol, acalentando as sementes no fundo do coração. E elas morrerão serenas, pois do contrário suas sementes não se libertarão.
Anigel balançou a cabeça, perplexa.
— Por favor, senhora... desculpe se pareço tola. Então é meu destino morrer por meu país?
— Eu não sei — respondeu a Arquimaga. — Sei que tem de realizar uma tarefa importante que lhe será revelada. E vai também receber um sinal, um talismã, indicando que a luta por Ruwenda e por sua alma está para começar. Sua irmã Haramis já começou a procura. Sua irmã Kadiya logo partirá em busca do seu destino. Cada uma encontrará um talismã e no momento certo as Três Pétalas do Trílio Vivo estarão unidas outra vez. Depois disso, qual será o fim, eu não posso ver.
Anigel ficou extremamente pálida, mas manteve-se calma, segurando sempre o amuleto.
— Então, esta dádiva, que me deu quando nasci, vai me guiar na minha missão?
— Sim, vai, e isto também.
A Arquimaga colheu uma folha do trílio e a estendeu para Anigel, mostrando a superfície com a outra mão.
— Esta folha tem o desenho da nossa terra. Olhe com atenção! Os veios e as nervuras formam o mapa de Ruwenda. Aqui, na ponta, está Noth e o veio dourado que parte dele é o rio que você deve seguir para encontrar seu talismã. Primeiro, descendo o Nothar, depois o Alto Mutar até o Baixo Mutar.
Anigel examinava a folha, curiosa e interessada.
— Mas o veio dourado continua até a haste da folha! Veja — aqui é onde o Mutar faz uma curva, dando a volta na Cidadela, e esta marca deve ser o Lago Wum, e mais adiante está o Grande Mutar que atravessa o país de Wyvilo e as terras selvagens de Glismak! — Seus olhos encheram-se de medo. — Preciso ir até lá? Até a escura Floresta Tassaleyo?
— É o que parece — disse a Arquimaga. — Eu não sabia antes de colher a folha. — Balançou a cabeça. — Uma viagem tão longa! Minha pobre querida... mas é sempre rio abaixo, portanto será mais rápida do que a que acaba de fazer.
— E a tarefa que devo realizar.
— Será revelada. — O rosto da mulher contorceu-se de dor e ela cambaleou. Immu, que estava a uma distância respeitosa, adiantou-se e segurou o braço da Dama Branca. Anigel segurou o outro e levaram a Arquimaga até a casa, a acomodaram numa poltrona e Immu apanhou um copo com água.
— Não se preocupem, minhas queridas — disse a mulher. — Não vou morrer ainda. Meu trabalho não está terminado. Só estou muito, muito cansada.
Anigel hesitou, depois tirou da bolsa de couro no cinto o frasco com o miton.
— Os uisgus me deram isto. Dizem que dá força e coragem.
— O presente foi para você — disse Binah, com voz cansada. — Guarde, mas use só quando for necessário.
— Quando vai ser isso? — perguntou Anigel.
Mas Binah fechou os olhos e inclinou a cabeça para o peito, respirando devagar e ruidosamente.
— Pode me dizer ao menos onde se encontra meu talismã? — implorou Anigel.
— No fim da haste, — A voz da Arquimaga estava quase inaudível.
— Mas não me disse o que é o talismã! — exclamou Anigel, desesperada.
A Arquimaga suspirou.
— Por favor! — A jovem estava quase chorando. — Diga-me apenas o que eu vou procurar!
— O Monstro de Três Cabeças — murmurou Binah. E adormeceu profundamente.
Voz Verde parou na porta do aposento real e, com uma careta constrangida, abriu a bolsa que trazia no cinto. Tirou dela três máscaras estranhamente tecidas, para cobrir a parte inferior do rosto — uma verde para ele, uma azul para seu companheiro e a terceira mais enfeitada, negra e prateada, para seu mestre.
— Devemos usar isto antes de nos aproximarmos do Rei Voltrik — explicou a Voz Verde. — A necrose da carne real progrediu a tal ponto que o fedor é pior que o do esgoto, tanto que homens fortes vomitam e os fracos podem desmaiar. Coloquei ervas aromáticas dentro das máscaras que nos protegerão das exalações fétidas durante mais ou menos uma hora. Isto será suficiente para seus propósitos, mestre?
Orogastus fez um gesto afirmativo. Seu olhar era firme, acima da máscara, e, se temia a tarefa que o esperava, não demonstrou esse temor aos acólitos telepáticos.
O médico real — bêbado, soluçando e temendo perder sua cabeça — relutantemente havia revelado o diagnóstico à Voz Verde, quando o feiticeiro e seus companheiros estavam ainda no rio, a meio dia de distância da Cidadela. Apesar da administração da Pastilha Dourada, com seus poderes mágicos, a necrose progrediu, pondo em risco a vida do rei, e o médico não teve coragem de executar o único tratamento que podia salvá-lo.
Quando Orogastus recebeu a notícia nefasta, mandou açoitar os remadores e chegaram na Cidadela em cinco horas, à custa de meia dúzia de vidas humanas. Agora o feiticeiro precisava agir e salvar pessoalmente a vida do rei, cuja morte significaria a ruína de todas as suas ambições.
— Abra a porta — ordenou Orogastus.
A Voz Verde obedeceu, com uma curvatura.
O quarto, antes ocupado pelo Rei Krain, fora redecorado apressadamente com o vermelho-vivo de Labornok, para o novo soberano. Estava muito escuro, iluminado apenas pelas brasas da lareira e por uma vela sobre a mesa, onde estava também uma bacia, ataduras e outros instrumentos e poções com os quais o médico da corte tentara inutilmente curar a mão do rei. O leito enorme ficava no centro do quarto, sobre uma plataforma, rodeada por cadeiras vazias. As cortinas estavam abertas.
Orogastus deu ordens rápidas, em voz baixa.
— Voz Verde, traga os dois candelabros para perto do leito e acenda as velas, depois, limpe a mesa e a coloque o mais perto possível da mão doente do rei. Voz Azul, prepare o instrumento mágico. Acho que chegamos bem na hora.
O vulto, sob os lençóis, agitou-se, gemendo.
— Quem está aí? É você outra vez, maldito sanguessuga, que vem me atormentar com sua incompetência? Saia! Pelo menos deixe-me morrer em paz!
— Sou eu, meu rei — disse Orogastus. — E vossa majestade não vai morrer. — Ergueu o braço do rei com todo o cuidado, provocando ainda assim um grito de dor.
— Filho da mãe! Deixe-me em paz! Sua pastilha miraculosa só me ajudou por um dia, depois meu sofrimento ficou pior do que antes. Ah, Zoto, tenha misericórdia — é culpa delas. Das princesas! Elas me amaldiçoaram de longe! Sua vingança é que me tortura e que vai me matar.
— Ele está delirando — disse Orogastus. Tirou de um bolso interno uma caixinha de malaquita verde e a abriu. Dentro havia seis esferas pequenas que brilharam amarelas e transparentes à luz das velas.
— Resta apenas a metade agora — disse o feiticeiro, pensativo. Tirou uma da caixa e guardou as outras cuidadosamente.
Então, apanhou o copo com água e fez o Rei Voltrik engolir a Pastilha Dourada. Logo depois, com um suspiro fundo, o rei relaxou o corpo no leito.
Com uma faca pequena e afiada, Orogastus cortou as ataduras que envolviam a mão do monarca. Apoiando o braço doente na mesa, o mago retirou o curativo, expondo o ferimento. O braço todo estava quente, com linhas vermelhas que iam do pulso até a axila. Do ferimento aberto, na mão muito inchada, com as pontas dos dedos negro-azuladas, exsudava um líquido cujo fedor nem as máscaras com ervas podiam disfarçar completamente. O feiticeiro entregou as ataduras à Voz Azul, para serem queimadas, enquanto dava instruções rápidas ao outro assistente, que acabava de abrir sobre a mesa uma bolsa de couro. Orogastus mandou a Voz Verde segurar o braço doente e colocou-se ao lado da cabeça do rei. Voltrik estava emaciado, febril, com os olhos remelentos, a barba, antes imaculada, suja e emaranhada.
— O que está fazendo? — exclamou o rei, erguendo a cabeça dos travesseiros úmidos de suor. — Larguem meu braço, seus worrans traidores! Eu sei quem vocês são! Foram enviados pelas três bruxas ruwendianas para acabar comigo!
— Olhe nos meus olhos — ordenou Orogastus. — Olhe e encontre o alívio para seu sofrimento.
O mago mascarado segurou a cabeça do rei com as duas mãos e a virou, de modo que seus olhos se encontraram. Voltrik gemeu, depois, com um profundo suspiro, caiu para trás nos travesseiros, quase inconsciente.
Orogastus voltou para o lado da mesa e apanhou um instrumento estranho, um cubo prateado cintilante com uma extensão que parecia uma tromba azul. Na parte superior havia fileiras de saliências negras e vermelhas, como grandes verrugas, com símbolos misteriosos sob cada uma e dentro dele uma moldura com uma sombra cinza-esbranquiçada no centro. Os dedos do feiticeiro moveram-se sobre as verrugas, apertando ora uma, ora outra e o interior branco da moldura iluminou-se, aparecendo então fileiras de hieróglifos coloridos. A Voz ao seu lado deixou escapar uma exclamação de espanto. Um dos botões vermelhos acendeu-se e ficou amarelo-dourado.
— Mantenha o braço completamente imóvel, assim — ordenou Orogastus. — Entoem o Canto da Cura, mas desviem os olhos, pois esta máquina dos Desaparecidos, quando em funcionamento, pode cegar olhos sem proteção.
O feiticeiro colocou o aparelho um palmo abaixo do cotovelo do rei e as três Vozes começaram a cantar em uníssono. Então, Orogastus protegeu os olhos com um visor e, terminados os preparativos, apertou o maior botão do aparelho. Um raio de luz cegante branco-azulada, fino como um fio de linho, saiu da extensão do cubo e Orogastus manipulou o aparelho de modo que o raio de luz atravessasse o membro real, desenhando um V profundo na carne.
O chiado foi seguido por uma espiral de fumaça. Quando o raio se apagou, o antebraço de Voltrik estava amputado e no tampo da mesa havia a marca queimada de um V. O Canto da Cura terminou.
— Está feito. — Orogastus tirou o visor e examinou o que restava do braço. Os grandes vasos sangüíneos estavam cauterizados, e a carne estava vermelha em volta dos ossos.
— Ótimo. A putrefação mortal não tinha atingido o resto do braço. Agora a Pastilha Dourada pode fazer seu trabalho sem ter de lutar contra o veneno contido na mão necrosada.
Apertou um botão e todas as luzes do aparelho se apagaram.
— Voz Azul, embrulhe o membro amputado e queime, com cuidado para não tocá-lo. Depois, acondicione cuidadosamente meu aparelho. Voz Verde, limpe a mesa e a pele sã do braço com brandy bem forte. Lave com uma esponja a testa e as têmporas do rei e traga roupas de cama e um roupão limpos da lavanderia. Chamusque ataduras no fogo e faça um curativo frouxo. Antes de ser costurado, precisa eliminar certos fluidos tóxicos. Mais tarde darei a vocês e àquele médico cretino instruções para o tratamento do braço, que devem ser seguidas rigorosamente.
— O sanguessuga deve ser poupado, Grande Senhor? — perguntou Verde, surpreso.
— A não ser que você queira dar mingau na boca do rei, esvaziar o penico real e trocar as roupas de cama, seu tolo! Agora, cuide do rei!
Enquanto as duas Vozes tratavam de Voltrik, Orogastus foi até a janela do aposento, abriu as cortinas pesadas e depois os vidros. O sol brilhava lá fora e uma brisa leve soprava do norte. Com a carne putrefata queimada e o cheiro horrível arejado, Orogastus tirou a máscara. O rosto de traços finos estava abatido e pálido, os lábios sombriamente cerrados. Foi por pouco, mas agora o rei ia se recuperar rapidamente com um tratamento cuidadoso e palavras de incentivo. O feiticeiro voltou para o leito real.
— Voltrik, escute! — disse Orogastus, em voz baixa e autoritária.
O rei murmurou:
— Estou ouvindo!
— Esteve muito perto da morte, meu Senhor, mas eu o salvei, quando todos os outros haviam perdido as esperanças. Sua majestade vai viver. Terá de suportar ainda algum sofrimento, mas dentro de poucas semanas estará forte outra vez. Eu, Orogastus, prometo solenemente.
— Obrigado — disse o rei, com voz fraca. Seus olhos estavam fechados e o rubor da febre havia desaparecido. — Você cortou a mão?
— Sim, senhor. O rei suspirou.
— Que seja. Pelo menos não perdi a mão da espada, graças a Zoto, o Misericordioso, e a você.
Gemeu um pouco quando as Vozes trocaram sua roupa e colocaram travesseiros limpos sob sua cabeça e sob o braço enrolado em ataduras. Orogastus pessoalmente cobriu o rei até o peito. Voltrik abriu os olhos e disse, com voz fraca, mas em tom quase normal:
— Mande sair seus servos. Quero falar sobre um assunto de importância vital.
Orogastus disse para as Vozes:
— Dentro de uma hora, vou partir para a minha torre no Monte Brom. Providenciem uma escolta fortemente armada e montada, com os ginetes mais rápidos que encontrarem.
— Sim, Mestre Todo-Poderoso. — As Vozes saíram e fecharam a porta.
— Vai partir?... — perguntou o rei, desapontado.
— Minhas Vozes se encarregarão de apressar sua cura. Preciso voltar para Labornok, a fim de consultar o espelho de gelo no meu forte na montanha. Somente por meio do poder do espelho poderei saber onde estão os inimigos.
O rei suspirou, satisfeito.
— Era sobre isso que eu queria falar. Nenhuma notícia das três jovens fugitivas, em Trevista?
— Nenhuma. A líder dos nativos recusou terminantemente colaborar na busca. Ela disse que, se tentarmos coagir os habitantes do pântano, terminará todo o comércio entre eles e nós.
O rei praguejou e gemeu.
— Precisamos encontrar aquelas princesas.
— Meus acólitos e eu exercemos nossos poderes ao máximo, revistando não só a cidade dos oddlings, como os pontos mais remotos de Ruwenda. Tudo em vão. Algum encantamento poderoso opõe-se à minha Visão, mesmo quando ampliada pela conjunção mental. Dizem que as três princesas possuem amuletos com botões do Trílio Negro. Talvez sirvam como escudo. Esse arbusto está ligado a Binah, a bruxa guardiã de Ruwenda, e é possível que ela tenha canalizado para os amuletos o pequeno poder que ainda lhe resta para defender suas protegidas.
— Seu espelho vai conseguir anular essa ofuscação?
— Sem dúvida alguma. Ele tem a força da magia dos Desaparecidos. Nenhum encantamento em todo o mundo conhecido pode suplantar sua visão a distância. O espelho pode ver a quinhentas léguas — até o extremo leste do continente, onde habitam os bárbaros emplumados. Não tema, meu rei, eu vou encontrar as princesas, não importa onde elas se escondam.
— E depois de descobrir o paradeiro daqueles três demónios? Elas podem escapar muito antes de você voltar a Ruwenda para começar a caçada.
Orogastus riu.
— Meu rei, deixe tudo comigo. A Voz Vermelha ficou em Trevista, com a guarnição, esperando minhas ordens. Quando eu encontrar as princesas, comunico seus esconderijos a todos os meus assistentes e enviaremos grupos de busca, sem demora. As Vozes os guiarão e eu transmitirei constantemente notícias sobre os movimentos das fugitivas até nossas inimigas serem capturadas e tratadas como merecem.
— Ótimo. Ótimo. — O rei ficou em silêncio por alguns momentos e depois disse: — As princesas foram realmente a causa da necrose do meu ferimento, não foram?
— Coisas como essa podem ser o resultado de magia, mas também acontecem no curso normal dos fatos. De qualquer modo, senhor, logo estará bem. Infelizmente a doença que o acometeu só pode ser tratada com métodos drásticos.
O rei fechou os olhos outra vez, com um sorriso cansado nos lábios pálidos.
— Mas você chegou a tempo. Assim, meu querido filho Antar terá de se resignar com a perda da coroa que esteve tão perto das suas mãos.
O feiticeiro disse, com voz inexpressiva:
— O príncipe herdeiro comportou-se com dignidade e honra em Trevista e envia suas preces para seu restabelecimento.
— Ummmm! Sua Voz Verde passou aos outros acólitos a imagem do encontro de Antar com a oddling Observadora. O garoto desmoronou na frente dela como um bolo de casamento durante as chuvas! — As pálpebras reais abriram-se. — O que você acha, mago? Meu filho é leal?
— Vamos saber, meu rei, uma vez que o Príncipe Antar certamente comandará um dos grupos de busca das três princesas.
Na manhã seguinte, Haramis acordou com o sol nos olhos e a sensação de que alguma coisa estava muito errada. Depois de algum tempo compreendeu o que a havia perturbado. O silêncio. Uzun sempre levantava antes dela e Haramis acordava com o ruído do oddling andando de um lado para o outro, cantarolando baixinho. Mas agora era dia claro, o ar estava parado, os pássaros silenciosos, e não ouvia nenhum sinal de Uzun, nem mesmo um ronco.
Haramis olhou para o saco de dormir do amigo, ainda encostado na rocha, onde ele o havia colocado na noite anterior. Aparentemente, Uzun dormia ainda. Haramis deixou com relutância o calor do saco de dormir, percebendo que a temperatura estava muito mais baixa do que na véspera, apesar do sol. Olhou para o céu sem nuvens, com os olhos semicerrados, e só então compreendeu que as nuvens do dia anterior eram o anúncio da chegada iminente de uma onda de frio.
Foi até o saco de dormir de Uzun e abriu a parte superior. Viu o rosto do oddling imóvel e inexpressivo e teve a certeza de que ele estava morto.
— Senhores do Ar — murmurou ela com horror. — Eu devia tê-lo mandado de volta ontem — não, muito antes!
Segurou Uzun pelos ombros e o sacudiu com força.
— Por favor, Uzun, acorde! Não morra! Por favor!
O corpo balançou molemente e o que restava de racional em Haramis lembrou que cadáveres fícam rígidos. Talvez ele estivesse vivo...
Haramis o deitou outra vez devagar, descalçou a luva da mão esquerda e encostou a palma na boca do oddling. Depois do que pareceu uma eternidade, sentiu a respiração na sua pele e com um intervalo maior aimda, mais outra. Uzun estava vivo, mas precisava levá-lo a algum lugar mais quente, e bem depressa.
Haramis aconchegou o saco de dormir em volta do músico, voltou para o seu e calçou as botas. Depois, encostou a mochila e o cajado com ponta de ferro numa rocha, ao lado de Uzun, olhando ansiosamente Para o céu. Tinha quase certeza de que não ia nevar naquele dia, e, com sorte podia estar de volta à noite. Não tinha Perigo deixar a mochila, não havia animais naquela região.
Ergueu o saco de dormir com Uzun dentro e tirando a neve acumulada no lado de fora, enfiou no seu. A camada adicional de agasalho talvez ajudasse, embora ficasse mais difícil carregar agora. Felizmente Uzun não era Pesado e o caminho era todo descida.
Haramis desceu o mais depressa Possível, o que era na verdade bem depressa, especialmente quando ela deslizava e escorregava, segurando Uzun contra opeito até conseguir parar. No final da manhã tinham saído dos campos nevados e ao meio-dia chegaram ao acampamento da noite anterior.
Era uma alcova nas rochas, seca, Protegida do vento e naquele momento banhada de sol. As Paredes da caverna estavam quentes. Haramis encostou Uzun na Parede e saiu à procura de madeira para o fogo. Uzun havia se encarregado desse trabalho na noite anterior, mas Haramis lembrava-se para que lado ele tinha ido e também que ele não havia demorado muito.
Voltou e verificou a condição de Uzun. Ele estava ainda inconsciente, mas a respiração parecia mais rápida, o que era bom sinal. Haramis fez a fogueira o mais Próximo possível do oddling e ferveu água para o chá. Uzun dormia ainda quando o chá ficou pronto e o cheiro a fez lembrar que não havia comido nem bebido nada. Tomou alguns goles de chá e comeu um pouco da ração da mochila de Uzun. Ele não vai precisar de muita comida na viagem para o sul. Toda a região tem bastante alimento. Sentindo-se mais animada, ergueu a cabeça do oddling Uzun e o fez tomar um pouco de chá. Para alívio de Haramis, o oddling pareceu reviver um pouco com o calor da bebida.
— Devagar, Uzun — murmurou ela. — Tome um pouco. Ele obedeceu e, cedendo à insistência dela, tomou mais alguns goles. Então, empurrou o bule, dizendo:
— Muito cansado.
— Eu também estou — concordou Haramis.
Era verdade. Estava exausta. Tomou o resto do chá, encostou na parede de pedra e pôs Uzun no colo. Talvez fosse bom conservá-lo perto do seu corpo, para aproveitar o calor. O sol estava delicioso. Haramis fechou os olhos e virou o rosto na direção da luz...
— Princesa! — O embrulho no seu colo remexia-se freneticamente. — O que estamos fazendo sentados aqui? A semente com certeza não parou tão cedo. — Uzun virava a cabeça de um lado para o outro, procurando se orientar. — Onde estamos? O que aconteceu?
Haramis balançou também a cabeça, um tanto confusa. Quase nunca dormia durante o dia — pelo menos, nunca, quando estava bem de saúde — e sentia-se como se estivesse drogada ou envenenada.
— Chá — murmurou ela. — Preciso tomar chá. — Estendeu a mão, encontrou o bule e tentou se levantar.
Uzun desvencilhou-se dos dois sacos de dormir.
— Vou preparar.
Tirou o bule da mão dela, pôs mais lenha no fogo e mais água para ferver. Para os olhos sonolentos de Haramis, ele parecia perfeitamente bem. Então os oddlings podiam ser congelados e descongelados sem nenhum efeito prejudicial? Parecia incrível. Pelo menos, Uzun podia voltar sozinho, agora.
Uzun levou o chá que Haramis tomou aos goles, sentindo que sua cabeça começava a entrar em ordem outra vez. Tomou metade do bule e deu o resto para Uzun.
— Uzun — começou ela, ansiosa para compartilhar o que havia aprendido na sua descida difícil da montanha.
— Acho que nós passamos tempo demais na biblioteca e na sala de música. Estamos agindo como um par de heróis idiotas numa missão — como se estivéssemos destinados a ter sucesso, não precisando portanto usar a cabeça e o bom senso. A Dama Branca disse que teríamos de nos separar antes do fim da missão, mas não disse que eu ia fazer isso arrastando-o para uma temperatura que seu corpo não suporta e deixando-o morrer congelado.
O oddling examinou atentamente a caverna.
— Conheço este lugar. Mas não foi aqui que paramos a noite passada, foi?
— Não, não foi — respondeu Haramis. — Este foi nosso acampamento duas noites atrás. Quando acordei esta manhã, você estava congelado, quase morto — na verdade, a princípio, pensei que estava morto. Sua pele estava tão fria quanto o ar e sua respiração tão lenta que levei algum tempo para ter certeza de que estava vivo. — Haramis estremeceu. — Então eu o enrolei nos dois sacos de dormir e o carreguei para cá, esperando que você descongelasse e sobrevivesse. — Respirou fundo. — Graças ao Deus Triúne, deu certo. Você está bem, não está? — perguntou, ansiosa.
Uzun ficou abalado com a história, mas, depois de pensar um pouco, respondeu:
— Sinto-me muito bem. Estou ainda com um pouco de frio, mas não é nada sério. Logo estarei pronto para continuar.
— Ótimo — disse Haramis. — Agora que está fora da neve, pode voltar sozinho para Trevista, e eu continuo minha jornada. — Procurou os apetrechos de pesca na mochila.
— Agora, volte para os sacos de dormir e procure descansar. Vou ver se apanho algum peixe para o jantar. Se pegar bastante, nós dois teremos comida amanhã também.
— Mas, minha princesa — protestou Uzun —, vai perder pelo menos dois dias. E pode ficar sem as sementes para mostrar o caminho.
— Os dois dias já estão perdidos, meu velho amigo — Haramis suspirou —, mesmo que eu siga viagem neste momento, só chegarei ao nosso último acampamento de madrugada — supondo que seja capaz de viajar à luz da lua com a mesma rapidez com que viajamos durante o dia, o que eu duvido. Mas amanhã não vou precisar de outra semente — tive o cuidado de marcar alguns pontos de referência quando descemos, e posso voltar sem nenhuma ajuda. Além disso, acho que não vai nevar esta noite, o que significa que posso seguir as marcas dos meus passos. Portanto, não se preocupe comigo, fique perto do fogo e descanse, Uzun, pelo Deus Triúne, você quase morreu!
— Acha que eu não ficaria feliz se morresse para servila? — perguntou ele, ofendido.
— Estou certa de que ficaria — disse Haramis, irritada. — Foi exatamente o que eu quis dizer, só temos na cabeça o eco de antigas baladas. Pode estar certo de que, quando eu estava descendo e escorregando na neve, carregando um amigo de infância que podia morrer porque fui tola a ponto de não notar que ele estava doente de frio, minha mente não estava procurando frases rimadas para uma canção sobre sua morte heróica. Fui uma idiota não notando que você estava doente e você foi idiota por não me dizer. Morrer congelado não vai ajudar nem um pouco Ruwenda, e eu ficaria louca de dor e de culpa. A perda de dois dias de viagem é um preço muito pequeno por sua vida. Talvez — continuou, pensativamente —, talvez uma rainha tenha de sacrificar, às vezes, a vida de um do seu povo, mas, pelos Senhores do Ar, se eu tiver de fazer isso, vou precisar de uma razão muito boa!
— Seria capaz de me negar a oportunidade de ser fiel até a morte? — Uzun estava ofendido.
— De modo algum — disse Haramis. — Apenas não acho que agora seja o momento certo para você morrer servindo-me. Afinal, se você morrer agora, quem vai ser meu músico-chefe quando eu recuperar meu trono — e quem vai ensinar meus filhos a tocar a flauta flipe?
Uzun alegrou-se consideravelmente.
— Muito bem, minha princesa, será como deseja. Voltarei para minha terra para esperar sua volta ao trono e minha volta ao seu serviço.
— Eu também espero ansiosamente por esse dia — disse Haramis, sorrindo, ajeitando melhor o segundo saco de dormir em volta dele. — Agora, durma, meu amigo.
As pálpebras de Uzun tremeram e se fecharam e Haramis passou a mão na testa do pequeno oddling. Ele estava mais quente agora, ia ficar bem. Aliviada, contendo as lágrimas, foi para o rio à procura de peixes.
— Princesa, acorde! — Uzun sacudia o ombro dela com urgência. — Vai nevar hoje, portanto, precisa partir o mais depressa possível.
Haramis abriu os olhos. Nuvens cinzentas cobriam o azul do céu, esperando o momento certo para cobrir tudo de neve. Ela sentou-se, com um gemido. Estava cansada ainda da descida da véspera. Carregar Uzun deu trabalho a músculos que não usava há muito tempo. Seus braços doíam, das mãos até os ombros.
Uzun atarefado, junto ao fogo, preparou o chá e o levou para Haramis.
— Princesa — perguntou, olhando em volta —, onde está a sua mochila?
Haramis tomou rapidamente o chá.
— Deixei no acampamento lá em cima — acho melhor eu voltar depressa antes que fique enterrada na neve!
Levantou-se rapidamente, enrolou o saco de dormir e o amarrou em volta da cintura.
— Acho melhor você também sair logo daqui, Uzun. Não vai querer ficar preso na neve!
— Tem razão — concordou Uzun, colocando um bom pedaço de pão para viagem na mão dela. — Coma isto enquanto caminha, e que os Senhores do Ar a acompanhem.
— A você também, meu amigo. — Haramis o abraçou com força, relutando em deixá-lo. Depois começou a subida.
Pelo menos não preciso ficar olhando uma semente voadora, assim posso prestar mais atenção onde ponho meus pés, pensou ela. Agora, se a neve pelo menos esperar um pouco.
Subiu a montanha rapidamente, pois não carregava tanto peso quanto da primeira vez que passou por ali e sabia exatamente para onde estava indo. Quando a neve começou a cair, tinha vencido metade do caminho e, quando chegou ao acampamento, uma pequena camada de neve cobria sua mochila.
Haramis a apanhou, comeu mais pão e abriu espaço perto da rocha, para dormir. Estava escurecendo rapidamente, mas com a neve não ia conseguir manter o fogo aceso, por isso entrou no saco de dormir com a mochila e esperou a chegada do sono.
Mas seus nervos que durante todo o dia tinham gritado, depressa, depressa, depressa, não conseguiam se acalmar agora. Haramis sentiu-se mais sozinha e desamparada do que nunca. Era a primeira vez em sua vida que ficava sozinha. Antes da invasão tinha sempre a companhia dos pais, das irmãs, de Uzun e dos outros habitantes da Cidadela. Depois, Uzun estivera com ela o tempo todo, a não ser nas horas que havia passado com a Arquimaga. Embora, algumas vezes, em casa, tivesse desejado um pouco mais de privacidade, agora, que tinha toda a privacidade do mundo, não tinha certeza de estar gostando.
Além da solidão, outras coisas a preocupavam. A primeira delas era Uzun. Pediu aos Senhores do Ar que o conduzissem a salvo e agora, com tempo para pensar, e nada mais para fazer, outras perguntas lhe vinham à mente. Por que Uzun não havia dito que não podia continuar, antes de quase morrer gelado? Por que a Arquimaga não a avisou para se separar de Uzun antes de chegar aos campos de neve, em vez de dizer apenas que o velho músico ia deixá-la antes de ela encontrar o talismã? Se contasse só com a ajuda dos dois, Uzun estaria morto!
É claro que a culpa era tanto sua quanto deles. Falhou também no seu julgamento, mas eles eram mais velhos. Não deviam saber mais do que ela?
Eu sou rainha de Ruwenda, pensou ela, e a responsabilidade é minha, mas ainda preciso dos conselhos de pessoas nas quais possa confiar — quanto posso confiar nos dois? Uzun não parece conhecer suas limitações mais do que Kadiya conhece as dela ou, se conhece, não as admite facilmente. Quanto à Arquimaga, será que não sabia o quanto Uzun é sensível ao frio, ou não julga que ele seja suficientemente importante para se preocupar?
Seus amados pais, lembrou ela, também não eram muito experientes nas coisas do mundo e na diplomacia. Era sabido na corte que Labornok cobiçava Ruwenda e, embora Haramis não quisesse se casar com Voltrik, seus pais podiam fingir que estavam dispostos a negociar, ou alegar que os preocupava a grande diferença de idade entre Haramis e Voltrik, sugerindo uma união com o filho do rei de Labornok. Qual era mesmo o nome dele? Oh, sim, Príncipe Antar. E se Ruwenda queria uma aliança com Var, uma idéia certamente válida, Haramis não era a única filha da casa real. Era difícil imaginar Kadiya como esposa de alguém, mas Anigel seria uma noiva esplêndida para uma aliança diplomática. Era tão dócil e gentil que podia se dar bem com qualquer pessoa. E se eu sou capaz de pensar em tudo isso, assim sem mais nem menos, pensou Haramis, o que meus pais e seus conselheiros estavam fazendo? Confiando na Dama Branca?
Evidentemente, concluiu ela, é preciso considerar a capacidade de uma pessoa, e suas intenções, quando pedimos conselhos ou quando dependemos da ajuda de alguém. Então, quem havia agora, se é que havia alguém, para ajudá-la? Pensando nisso tudo, Haramis adormeceu.
A Princesa Anigel quase desmaiou quando a Arquimaga disse o que era o talismã que ela devia procurar. Um Monstro com Três Cabeças! A perspectiva teria apavorado até mesmo a corajosa Kadiya ou a confiante Haramis. Era ridículo pensar que ela pudesse encontrar e domar uma coisa dessas. Não! Era impossível!
Num acesso de choro furioso, foi o que ela disse para Immu (pois a Arquimaga dormia profundamente e não podia ser acordada), mas a nyssomu apenas a aconselhou a ser paciente.
— Há muitos tipos de monstros — disse Immu – e nem todos são como os skriteks, com olhos de fogo, garras e presas afiadas, pois a palavra tem muitos significados. Enquanto não vir o talismã com seus próprios olhos, princesa, acho melhor não resolver se deve ou não ter medo dele.
O bom senso de Immu a reconfortou em parte. Como a Dama Branca dormia, esquecida do mundo, as duas ficaram à vontade. Lavaram-se, fizeram um ótimo jantar com o que encontraram na despensa farta, depois deitaram no chão na frente da lareira, uma de cada lado da cadeira da Arquimaga, para o caso de ela precisar de alguma coisa durante a noite.
De manhã, a Dama Branca tinha desaparecido...
Bem como a casa, o jardim com os togars comendo grama, o Trílio Negro, o pequeno pomar e até a escada de ppedra e o cais onde elas haviam desembarcado.
Anigel e Immu estavam deitadas nos seus sacos de dormir acolchoados com folhas tenras, numa encosta, sob as folhas enormes de uma bruddok, a árvore que os nyssomus chamavam de a ”amiga dos viajantes”, por causa das suas folhas acolhedoras e dos frutos doces e suculentos. A única indicação de que não estavam no meio de uma selva eram as ruínas de Noth, visíveis atrás das árvores, no outro lado do rio, na praia onde antes estava o chalé.
Anigel, desapontada, começou a chorar. Por um momento acreditou que seu encontro com a Arquimaga fora um sonho. Mas então encontrou sob o saco de dormir a folha grande e verde com o caminho marcado da ponta até a haste. Immu chegou perto da água e de repente exclamou:
— Olhe olhe olhe! A Dama Branca nos deixou um presente!
Ainda chorosa, Anigel saiu do saco de dormir e aproximou-se da margem da lagoa. Entre os juncos altos e as flores amarelas malcheirosas estava um barco. Não era como o dos uisgus, de junco trançado, que as havia levado até Noth, mas o modelo maior, dos nyssomus, feito de um tronco de kala, que ela costumava ver no rio, em volta da Cidadela. Mas havia uma diferença — além dos remos e forqueias (estas desmontadas, dentro da embarcação), tinha na proa um reforço ao qual estavam presos dois tirantes de couro, que passavam por anéis laterais externos, com duas pontas sobre o banco central e as outras duas dentro da água lamacenta.
Anigel examinou o barco por um momento, sem compreender.
— Você acha... — Então deu um grito. Duas cabeças enormes, cobertas de pêlo malhado de verde, ergueram-se da água, finas e fortes, com enormes olhos negros, bigodes de cerdas duras, as presas à mostra nas bocas abertas para um silvo hostil.
— Rimoriks — disse Immu. — Que horror.
— Mas não temos nenhum uisgu para conduzi-los — disse a princesa, com voz trêmula.
— Mesmo assim, parece que a Arquimaga quer que usemos este meio eficiente de transporte.
Anigel mordeu o lábio. Sem olhar para Immu, perguntou:
— Acha que você poderia?
— Não, Princesa Anigel — disse a oddling, solenemente. — Esses animais só trabalham por amizade para aqueles que tomam o miton sagrado.
Anigel voltou-se, trêmula, para as duas criaturas.
— A Arquimaga os mandou para nos ajudar? — perguntou.
A resposta foi um silvo ameaçador. Os rimoriks mergulhavam e emergiam de dentro da água, impacientes, deixando ver os arreios que os prendiam. O barco sacudia nas ondas que eles provocavam, esticando a linha que o prendia a uma pedra, em terra.
Anigel fechou os olhos.
— Immu, você não pode tomar o miton?
— Não, minha filha — disse a velha ama, com voz suave. — Foi um presente dos uisgus para você... e agora sabemos por quê.
Immu voltou para apanhar a bagagem das duas e alguns frutos do bruddok, para reforçar a ração de viagem. Pôs tudo no barco e estendeu o jarro vermelho de miton para a princesa.
Anigel o apanhou. Com os olhos assustados e o rosto molhado de lágrimas, ela tirou a tampa e ergueu o pequeno jarro para que os rimoriks pudessem vê-lo.
— Eu devo beber — é isso?
Os grandes animais aquáticos fecharam as bocas e mergulharam, deixando só a narina e os olhos negros e desconfiados acima da água. Imóveis, observaram Anigel.
A princesa levou a mão ao amuleto. Com a outra, levou aos lábios pálidos o líquido rubro e tomou um pequeno gole..
Está vendo, irmão, como a fêmea humana tem medo de nós.
Ela tem mais medo do miton, mesmo assim, ela bebeu. Humana! Pode nos ouvir? Quer ser nossa amiga?
— Quero — murmurou Anigel.
Então, molhe dois dedos com o miton, entre na água e compartilhe a bebida conosco.
Atordoada, ela obedeceu, prendendo a bainha do vestido no cinto. A lama quente do fundo da lagoa insinuou-se entre os dedos do seu pé e ela entrou na água até os joelhos. Estendeu a mão com o líquido vermelho-escuro pingando dos dois dedos.
Os animais peludos e malhados de verde deslizaram até perto dela e, apoiando as patas da frente no fundo, abriram as mandíbulas. Estenderam as línguas que pareciam dois chicotes aguçados, capazes de cortar o corpo coberto de escamas de um peixe com a facilidade de uma azagaia. Anigel tinha a impressão de estar observando tudo de longe, como espectadora de uma peça fantástica, representada pela jovem na água e pelos dois rimoriks. Primeiro um dedo, depois o outro, tocaram as línguas predadoras. Assim que engoliram o líquido, sua expressão mudou. Agora, irradiavam bondade, em vez de selvageria, e Anigel não sentiu mais medo deles.
A princesa fechou o pequeno jarro e o guardou na bolsa, no cinto, ao lado da folha de trílio. Atordoada, Anigel tinha a impressão de Ver a folhagem, a água coberta de algas da lagoa, a superfície cinzelada do barco com maior nitidez e clareza. Sentia odores sutis que não havia notado antes, seus ouvidos chegaram a doer, por um momento, com a quantidade e a ampliação de sons variados. Sua pele parecia se arrepiar com o toque da brisa leve e recusar a aspereza da roupa que vestia. Mas suas pernas eram acariciadas pela água corrente e a lama era como veludo macio nos seus pés. O miton vai mudá-la.
O miton vai deixá-la apreensiva, no começo, aguçando demais seus fracos sentidos humanos. Mas esse mal-estar passa logo. Vai sentir-se forte e corajosa, como nós.
— Sim... já me sinto melhor.
Isso é bom. Significa que podemos ser amigos dos humanos, que podemos compartilhar da sua inteligência e vocês, da nossa força e coragem.
— Dizem que sou inteligente. Nunca me considerei inteligente. Mas farei o melhor possível para ser, se me emprestarem sua coragem, pois sem ela nenhuma inteligência será suficiente para realizar minha missão.
A Dama Branca nos deu ordens para ajudá-la. Faremos o melhor possível.
— Vocês têm nomes?
— Você não saberia dizê-los. Pode nos chamar de amigos
— O quê... o que fazemos agora?
Mentalmente, Anigel ouviu as risadas dos dois rimoriks. Mas quem respondeu foi a velha e rabugenta Immu.
— Fazer fazer fazer! E você, a inteligente! Que piada! A Floresta Tassaleyo fica a mais de trezentas léguas daqui, e não podemos nem começar nossa procura antes de chegarmos lá. Que tal entrar no barco, tolinha, segurar as rédeas e começar a viagem?
Os rimoriks pareciam saber exatamente qual o caminho que deviam seguir, valendo-se do que Anigel tinha visto na folha do Trílio Negro. Desceram, veloz e descuidadamente, o Rio Nothar, uma vez que não havia perigo de encontrar nenhum labornok. Não viram nem sinal de Kadiya e os rimoriks não sabiam nada sobre ela. Quando o barco entrou no Alto Mutar, mais largo, Anigel fez com que nadassem mais devagar e com mais cuidado, perto da margem, para não serem facilmente descobertos pelo inimigo. Viram uma meia dúzia de canoas cheias de labornoks, logo depois de Trevista. Mas não foram vistos, embora uma das canoas tivesse passado a menos de vinte ells das fugitivas.
Todas as noites escolhiam um lugar para descanso. Anigel entrava na água e desatrelava os animais que se afastavam para caçar. Uma parte dos peixes e outras criaturas aquáticas que apanhavam, os rimoriks levavam para a nova amiga, e de manhã elas sempre encontravam alguma coisa para a primeira refeição. Porém, antes de atrelar novamente os rimoriks, Anigel tinha de tomar o miton e depois dar a parte dos animais.
Na quarta manhã da jornada rio abaixo, a princesa acordou no escuro silencioso do amanhecer, quando as criaturas noturnas se calam e as diurnas não acordaram ainda. Uma neblina espessa envolvia a pequena ilhota nos arredores de Trevista e a umidade formava gotas que pingavam das folhas. Um pingo d’água caído da canoa emborcada que lhes servia de abrigo a acordou.
Mais uma vez seu sono fora sem sonhos.
Ficou deitada, ouvindo os pingos de orvalho e o ressonar discreto de Immu, segurando com força o amuleto. Nenhum sonho de seca e fogo. Nenhum pesadelo, desde a noite em que haviam dormido no chão, na casa encantada da Dama Branca. Era estranho que não tivesse notado antes..
Estarei realmente curada da minha covardia? Não, não podia ser. Sentia ainda um medo desesperado — medo de ser capturada e morta pelos soldados labornoks, medo da misteriosa Floresta Tassaleyo e dos nativos desconhecidos que a habitavam, medo, acima de tudo, do terrível talismã que devia encontrar, o Monstro de Três Cabeças.
Mas o pesadelo tinha acabado — era a advertência do seu eu secreto. O que significava isso? Pensou em perguntar para Immu, mas a velha oddling dormia a sono solto, murmurando uma vez ou outra na sua língua, e a princesa não teve coragem de acordá-la.
Com esses pensamentos, Anigel adormeceu outra vez.
Várias barcaças com soldados e suprimentos subiam e desciam o Baixo Mutar. Era como se os invasores tivessem se apossado de toda a frota mercante de Ruwenda — para quê, Anigel e Immu não sabiam. Certa tarde, escaparam por pouco quando, depois de uma curva do rio, viram uma barcaça que navegava para elas em curso de colisão. Anigel segurou o amuleto e tentou fazer com que as duas ficassem invisíveis, mas o talismã não a atendeu. Porém, antes que ela entrasse em pânico, os rimoriks mudaram o rumo, atravessando o rio em ângulo reto e escondendo o barco atrás de um grande obstáculo flutuante. Os homens de Labornok, ofuscados pelo sol poente, passaram sem vê-las.
Quando alcançaram as regiões mais populosas, acima da Cidadela, a princesa dirigiu os rimoriks para os canais secundários e os remansos menos movimentados. Sua sorte começava a parecer quase sobrenatural. Uma vez que não podiam trocar os rimoriks por outros descansados, como faziam Lebb e Tirebb, na viagem para Noth, navegavam mais devagar, mas numa boa velocidade, e não estavam expostas aos perigos naturais do rio, como o gigantesco peixe carnívoro, o milingal, que infestava a região do Pântano Negro atravessada pelo Baixo Mutar, protegidas pela natureza combativa dos rimoriks. Muitas outras criaturas aquáticas mantinham-se a distância, à passagem dos grandes carnívoros peludos.
A primeira ameaça real surgiu no dia em que estavam acampadas a poucas léguas da Cidadela, esperando a noite para atravessar o Knoll com maior segurança, e Anigel descobriu que o jarro vermelho de miton estava vazio. A tampa havia se soltado e não tinha mais nem uma gota do líquido precioso.
— Isto é horrível! — exclamou a princesa. — Logo aqui, na parte mais perigosa do rio, com soldados inimigos por toda parte! Sem o miton, os rimoriks não vão nem nos deixar entrar no barco. Lembra-se daquela manhã quando eu me esqueci do ritual? Arreganharam os dentes como se eu fosse uma estranha! Ó, Immu, o que vamos fazer? Sem a ajuda dos rimoriks, nunca chegaremos à Floresta Tassaleyo.
— Só há uma coisa a fazer — disse Immu. — Você tem de preparar mais miton.
— Mas, como? — disse a jovem, irritada. Então arregalou os olhos azuis, compreendendo. — Mas não posso! — gemeu. — Nem em mim — muito menos neles!
— Posso ajudar a tirar seu sangue — disse Immu. — O processo é indolor, depois da primeira picada. Mas você tem de se encarregar dos seus amigos de dentes afiados. Se eu chegar perto deles com minha faca, me engolem de uma só vez.
Depois de um momento de hesitação e repulsa, a princesa concordou. Immu espremeu o suco de algumas folhas, depois, com a adaga afiada, fez um pequeno talho no pulso de Anigel. A princesa ficou impassível. O suco das plantas derramado no corte impediu a coagulação do sangue e Immu o aparou no côncavo de uma folha de dogo. Passou o sangue para o pequeno jarro vermelho, lavou o corte com orvalho, colocou sobre ele uma flor azul medicinal e fez uma atadura apertada.
— Pronto! — A oddling deu o último nó na atadura de relva. — Agora, não tenho idéia de como você vai tirar o sangue dos rimoriks.
— Vou perguntar a eles — disse Anigel. E os animais responderam.
Traga uma folha-prato para o barco.
Eles estavam desatrelados, na água rasa, perto da popa do barco. A proa estava em terra. Anigel foi até a popa e eles se aproximaram. Um depois do outro, ergueram metade do corpo fora da água, morderam a ponta de uma das nadadeiras providas de garras e deixaram o sangue escorrer na folha. Depois, um deles nadou para longe e voltou com uma erva do pântano de flores vermelhas, arrancadas com raiz e tudo.
Esprema um tubérculo desta planta e misture com sangue. Assim é feito o miton. O povo do pântano costuma coar o líquido, mas não é necessário.
— Obrigada, meus amigos — disse Anigel.
Ela seguiu as instruções e logo o jarro estava cheio com o líquido sagrado vermelho-escuro, com gosto de sal e de açúcar. A princesa estava acostumada com a bebida e o estímulo dos sentidos provocado por ela lhe parecia tão normal que só se sentia realmente acordada de manhã, depois do ritual com os rimoriks.
Muito depois, nas primeiras horas quietas e escuras da madrugada seguinte, quando tinham quase terminado a Pas” sagem perigosa do Knoll da Cidadela, e navegavam velozmente pelo remanso, na entrada do Pântano Verde, Anigel lembrou-se de perguntar a Immu se o miton havia provocado alguma mudança na sua personalidade — como diziam que mudava a dos nyssomus que o tomavam.
— Você é a mesma pessoa querida que eu sempre amei — disse Immu —, talvez mais madura e mais experiente, menos exigente com a comida e com o lugar em que descansa a cabeça à noite, ou onde faz suas necessidades. Também se transformou numa barqueira consumada. Não sei se seu povo consideraria isso como uma melhora.
Anigel disse, olhando para Immu por sobre o ombro:
— Desde que deixamos Noth não tive mais os pesadelos. Acha que é porque agora sou corajosa, Immu?
— Corajosa ou louca — disse a velha oddling, num resmungo, agarrada com toda a força na borda do barco, enquanto deslizavam velozmente no meio de uma floresta de kalas, ao norte da Grande Passarela. Pela primeira vez não havia neblina e as Três Luas bruxuleavam entre os galhos cobertos de musgo. — Veja só, princesa, segurando as rédeas como um veterano cavaleiro com seu volumnial, enquanto voamos na escuridão, mais rápido do que os bandidos skriteks! Percorreu um longo caminho desde o tempo em que se considerava ousada por tentar um novo passo de dança ou um novo ponto de bordado.
— Mas eu ainda sinto medo, Immu.
— É claro que sente. Eu também — e com um bom motivo! Se não diminuir a velocidade dessas duas criaturas danadas, podemos acabar grudadas numa árvore, com os pássaros noturnos rindo dos nossos ossos quebrados.
Anigel puxou um pouco as rédeas dos rimoriks.
— Eles enxergam no escuro. Não corremos perigo aqui. O perigo está mais adiante — eu sinto.
— Isso pode ser verdade.
— Você acha que as minhas irmãs também estão procurando seus talismãs?
— Provavelmente.
— A Dama Branca foi cruel separando-nos — exclamou Anigel, de repente. — Nascemos juntas. Sempre vivemos juntas. Seria muito mais fácil se ela nos deixasse compartilhar nossas procuras. Podíamos nos ajudar mutuamente!
— Sem dúvida — resmungou Immu com voz cansada. Inclinou a cabeça e as orelhas longas e pontudas tatalaram ao vento, contra o linho fino e sujo da touca da corte, que ela insistia em usar. — Mas ela não as privou dos servos fiéis.
A princesa conteve-se para não expressar a nova queixa que chegou aos seus lábios. Sim, foi ajudada por muitos nativos, para não falar nos rimoriks. Mas a companheira e auxiliar mais constante foi sempre Immu — e o que tinha feito para demonstrar sua gratidão à velha ama, desde o começo daquela jornada? Para ela, Immu era presença obrigatória. Nunca perguntou se a velha oddling estava cansada ou com medo. E agora as duas estavam sem dormir um dia e parte da noite, porque Immu não aceitou a sugestão da princesa de um cochilo durante a viagem noturna. Anigel sentia-se cheia de energia e entusiasmo, ansiosa para continuar, e os rimoriks, sentindo essa urgência, respondiam à altura. Mas Immu estava evidentemente exausta...
— Encontrem um lugar seguro para uma parada — ordenou ela aos animais.
Sim, amiga, responderam eles. Diminuindo a velocidade, levaram o barco para a margem atravessando uma espessa cortina de trepadeiras floridas. Logo adiante havia uma ilhota alta e seca. Quando o barco raspou o fundo, Immu fungou. Ergueu a cabeça e abriu os olhos com um estalido.
— Acorde, Immu — disse Anigel, suavemente. — Está na hora de ir para a cama.
Estavam sendo tratadas como hóspedes de honra, pensou Kadiya, e a pequena parte dela que sabia ser paciente dizia que talvez fosse o máximo que podia esperar deles. Mesmo assim, no segundo dia de hospedagem na aldeia nyssomu, ela fez uma última tentativa para convencer os seus hóspedes a lutarem ao seu lado. Afinal, não se tratava apenas da sua necessidade de conseguir aliados, mas os nativos precisavam se preparar para o pior — a provável invasão dos labornoks.
Kadiya pediu outro encontro com a Primeira da Casa, esforçando-se para não insistir diretamente no que considerava importante, como era seu hábito.
— Senhora — procurou manter a voz num tom baixo e calmo —, esses humanos que chegam agora à sua terra não são como nós, os ruwendianos. Permita-me contar algumas das suas façanhas.
Suas mãos, que descansavam no colo, agora encontraram-se e se entrelaçaram ansiosamente. Só depois de engolir em seco duas vezes, Kadiya começou o relato terrível da morte de seu pai. Revendo mentalmente aquela cena, a náusea transformou-se em fúria.
Era difícil ler qualquer reação nos rostos dos oddlings. Kadiya estava atenta para o menor sinal de que a Primeira estivesse comovida com todo aquele horror.
— Assim eles trataram nosso povo que dominaram depois de uma luta honesta — terminou ela. — Senhora, eles desprezam muito mais o seu povo — o que acha que farão aqui, se invadirem sua aldeia? Os pântanos guardam seus segredos e têm sido seus muros de defesa. Mas esses labornoks trazem com eles um feiticeiro, contra o qual a proteção da Arquimaga nada pode. Lutar honestamente com o aço, espada contra espada, é uma coisa. Combater a magia negra sem armas apropriadas é enfrentar a derrota antes do soar dos clarins. Esta é a sua terra, completamente desconhecida para os invasores. Ao que parece, os skriteks aliaram-se a eles — certamente porque reconhecem que são iguais. Mas isso pode ser suplantado por seu conhecimento do pântano. Eu lhe digo — se seus costumes não permitem que se aliem à nossa causa, pense na sua!
No breve momento de silêncio, Kadiya pensou divisar um raio de esperança. Talvez o bom senso do que ela acabava de dizer tivesse falado mais alto, afinal. Deixem que Hamil tome Trevista. Deixem que use os skriteks como aliados. Porém, se os nyssomus usassem a própria terra como arma, sem dúvida teriam uma chance.
Mas então a Primeira respondeu com palavras formais, desprovidas de calor.
— Filha do rei, é verdade que seu povo e nós, dos pântanos, há anos nos damos muito bem. Não há entre nós registro de horrores, como os que acaba de descrever. Uma vez que as vítimas foram seus pais e seu povo, é certo que procure toda a ajuda possível para vingá-los. Mas, embora sejamos amigos, temos de honrar uma aliança muito mais antiga, a nossa fidelidade para com a Dama de Noth. Ela a chamou e às suas irmãs. É possível que já tenha um plano de ação. Porém, esteja certa de que estamos prevenidos. Antes da chegada do seu povo, os pântanos conheceram a guerra.
Ela olhava para um ponto acima do ombro de Kadiya, como se estivesse vendo alguma coisa muito importante.
— Há muito tempo, vidas sem conta foram ceifadas. Como imagina que esta terra se tornou o que é hoje, dividida, desolada e tão cheia de perigos que há anos não nos aventuramos por certas trilhas? Aquela guerra não foi nossa, mas nascemos dela — e quando os que lutavam se foram, éramos recém-nascidos, com um mundo estranho atrás de nós, que tivemos de adaptar para viver nele. Juramos então que nenhum nyssomu jamais contribuiria para repetir uma guerra como aquela. À Dama de Noth devemos nossa vida. Com ela, há muito tempo mantemos a paz. Se somos atacados, lutamos, mas não levamos a guerra aos outros. Encontrará suas respostas em Noth, filha do rei.
Assim foi que apenas Kadiya e Jagun continuaram a jornada, e quanto mais se aproximavam do destino, mais ameaçadora a terra se tornava. No Pântano Negro, quase toda a floresta tinha várias tonalidades de verde, a não ser pelo colorido das flores. Ali, no Pântano Dourado, crescia a relva alta e fina com panículos amarelos que davam o nome àquela parte dos pântanos. Ali também as ilhotas erguiam-se da água espumosa e esverdeada, onde cresciam plantas grandes, de folhas espessas, diferentes de todas as outras que haviam visto. Plantas de cor branco-amarelada com listras vermelhas. Pareciam feridas abertas e infeccionadas, exsudavam um cheiro fétido que atraía os insetos. À medida que o barco de Kadiya e Jagun avançava, mais maléfica parecia a vegetação.
Ouviu uma exclamação abafada de Jagun e, equilibrando-se no barco, virou-se cuidadosamente. Vinda de uma ilhota próxima, algo que parecia uma folha daquelas plantas estranhas movia-se na direção deles. Na aldeia, Jagun havia adquirido uma lança de cabo curto. Ele estendeu o braço e com a ponta da arma levantou a folha, atirando-a para longe, para a lama de onde ela havia saído. Kadiya viu, sob a pretensa folha, pés que pareciam franjas finas, movendo-se espasmodicamente no ar, na frustração de perder a presa. A criatura caiu sobre um pedaço de madeira coberto de musgo e imediatamente enrolou-se nele.
— Snafi — disse Jagun secamente. — Precisamos ficar atentos a eles aqui. Os pés com garras injetam veneno e quando agarram em algo é impossível soltá-los.
Kadiya ficou satisfeita por poder viajar de dia, pois Jagun decidiu que estavam agora longe do caminho conhecido e não seriam vistas. Aquela parte do pântano devia estar cheia das mais diversas armadilhas e viajar à noite seria perigoso.
Aquecido com o calor do seu corpo, o amuleto era um guia seguro. Sua luz brilhante indicava que continuavam na direção certa. Kadiya manejava a vara, procurando combinar o ritmo com o de Jagun, e assim navegavam hora após hora, parando uma vez ou outra para descansar.
Se ela estava enfrentando perigos, pensou, o que estaria encontrando Haramis? E Anigel... Sua irmã mais nova teria sido apanhada pelo inimigo. De certo modo, cada vez mais se convencia de que as duas irmãs haviam escapado da Cidadela, que não eram mais presas indefesas do Rei Voltrik.
Durante a tarde o céu abriu-se de nuvens e ao cair da noite Jagun conduziu o barco para uma ilhota coberta de relva. Já surgiam as luzes estranhas e dançantes da superfície dos pântanos. Nessa noite não desembarcaram, contentando-se com as rações que levavam. Então, Jagun disse:
— Procure dormir.
Dormir! Como era possível, ali, no escuro, sem saber quais os perigos que podiam vir das duas margens? Mas logo Kadiya sentiu os olhos pesados de sono.
O que aconteceu então parecia mais visão do que sonho. Kadiya viu uma cidade — não era Trevista, era uma cidade mais nova, com arquitetura mais descontraída. Não havia sentinelas nos muros, nem no portão aberto bem na frente dos seus olhos. Seria Noth? A cidade a chamava, a atraía. Era uma promessa.
Depois a visão perdeu-se num sonho extenso que foi completamente esquecido. Kadiya acordou de madrugada. Jagun já estava de pé, procurando alguma coisa numa das mochilas de alimento. Logo depois reiniciaram a jornada para a casa da Arquimaga e no começo da tarde a viram de longe.
O que se erguia na frente deles não era a cidade do sonho da princesa. Uma torre monolítica parecia subir da relva fofa e dourada. Enquanto Jagun conduzia o barco nas últimas curvas do rio, Kadiya observou a torre. Finalmente, o fundo do barco raspou em alguma coisa, não um banco de lama, mas a extremidade de uma formação de blocos de pedra.
— Isto é Noth — disse Jagun. — A partir deste ponto, só você, que foi chamada, deve seguir. Eu esperarei sua volta.
O caminho não era muito mais largo do que o barco em que viajavam. Além dele erguia-se a torre, alta como as árvores reais das florestas do sul e parecia esculpida num único bloco gigantesco de granito. A enorme porta estava aberta.
Embora a luz não alcançasse o interior daquela porta cavernosa, a torre não parecia ameaçadora. Mesmo assim, Kadiya sentiu-se como uma criança prestes a ser repreendida por um ato de desobediência, quando se adiantou, resoluta, procurando esconder sua preocupação.
Seja bem-vinda, Kadiya.
A voz ecoou próxima, mas não veio do corredor estreito. Parecia perfeitamente normal. Mesmo assim Kadiya continuou avançando, com uma das mãos no cabo da adaga, a outra segurando o amuleto que pulsava, morno, contra sua pele, acompanhando as batidas do coração. Entrou numa câmara.
No centro havia uma poltrona com espaldar alto, como as que eram usadas por seu pai e sua mãe nas cerimónias da corte. Nela estava sentada a dama que governava Noth (e talvez outros lugares), alisando com movimentos lentos dos dedos longos a borda do manto espesso, negro como uma noite de tempestade, com desenhos em prata, que imitavam os círculos formados por uma pedra atirada na água.
A julgar por seu tamanho, não era uma oddling. Na verdade, devia ser vários palmos mais alta do que Kadiya. O rosto não era jovem nem velho, isento das marcas da idade, mas nos olhos havia um misto de cansaço e força de vontade.
— Kadiya! — Ela inclinou a cabeça, mas não havia calor na acolhida.
A raiva que Kadiya carregava por dentro quase fugiu ao seu controle. Sentiu vontade de atirar sua ira e sua mágoa no rosto daquela estranha intocada, ouvir dos seus lábios a razão do fracasso da sua magia. Não podia ter detido os inimigos de Ruwenda? Seria essa Dama de Noth muito mais fraca do que Orogastus? Sem dúvida sua mágica havia falhado quando era mais necessária! Só com esforço Kadiya não pôs em palavras esses pensamentos. Inclinou a cabeça, com os cabelos cheios de óleo do pântano.
— Senhora.
Compreendeu que não teria nenhuma oportunidade para acusar ou reprovar. Era como uma prisioneira, como se grilhões tivessem sido presos aos seus pulsos quando entrou na torre.
— Tudo chega ao fim — disse a voz inexpressiva. As mãos quase transparentes estavam imóveis agora. — O tempo é criação nossa, por isso ele varia. O que é a passagem de um ano para a montanha? O que é o nascer ou o pôr-do-sol para a mosca do lixo, que vive apenas um dos nossos dias? Para cada um de nós — planta, pássaro, inseto, rocha, homem e mulher orgulhosos — o tempo acaba. Desse modo, para todos aqueles que têm um objetivo, há muito que fazer dentro de uma medida de tempo aparentemente pequena.
Pela primeira vez seus olhos desviaram-se dos de Kadiya e observaram a sala, como dando por falta de coisas que deviam estar ali, ou estranhando a presença de outras.
— Aqui desempenhei meu papel de guardiã. Sim, guardei tudo que é da luz. Existiu certa vez uma grande extensão de água, enfeitada por ilhas, cada uma, uma jóia de rara beleza. E havia os que as habitavam. Por eles — juntou as mãos, unindo as pontas dos dedos num telhado protetor —, fui chamada para uma grande tarefa, pois o mal chegou, e a mudança, e eu me esforcei para erguer fortes proteções.
Depois de um suspiro, continuou:
— O tempo de dor e de preocupações passou. Então, aqueles que vocês chamam de oddlings ousaram aparecer e por eles, embora não fossem do meu povo, continuei a ser a Guardiã. O tempo, cada vez mais pesado, aos poucos aparou as arestas do que tinha acontecido. Finalmente chegou o seu povo. Perscrutei suas mentes e seus corações e vi que eram dignos do Caminho da Luz e que meu tempo não tinha terminado ainda.
— Então, chegou Voltrik, que é igual aos skriteks! — esbravejou Kadiya. — Onde então estava a nossa Guardiã?
— Mais uma vez ergueu-se o Poder das Trevas — corrigiu a Arquimaga. — Contra o qual meu povo sempre lutou. Com esses invasores veio um, versado nas mais antigas ciências do passado. —- Inclinou levemente a cabeça. — Este tempo deve pertencer a ele. Apenas uma defesa consegui erigir quando descobri seus desígnios. Você é uma das três e cada uma possui um talento nunca usado, uma dádiva desconhecida. A vocês cabe a tarefa de derrotar o Poder das Trevas — se puderem pagar o preço do tempo.
— E qual é esse preço? — Kadiya levantou o queixo, procurando ainda não demonstrar nenhum sinal de temor.
— Encontrar seu talismã.. e usá-lo na hora certa.
— Talismã? — Kadiya mostrou o amuleto sem tirar o cordão do pescoço. — Mas., eu já tenho — recebido de suas mãos, Senhora, se a história for verdadeira.
— Não, esse foi seu guia para chegar até aqui. Deve usar sua própria força — e sua inteligência — para encontrar o talismã que lhe dará poder. O aço sempre foi sua escolha, é direto e rápido, mas muitas vezes é também o caminho mais perigoso na procura do sucesso. Existem outros meios de vencer batalhas.
A Arquimaga levantou-se do trono, alta e ereta. Andando, não parecia tolhida pela idade, seus movimentos tinham a determinação de quem precisa realizar uma tarefa e vai realizá-la. Kadiya alargou seu passo para chegarem juntas à porta da torre de Noth.
A Arquimaga abriu seu manto. À luz do dia, as listras prateadas cintilavam nas dobras pesadas. Tinha nas mãos uma planta colhida, a princesa não sabia de onde, mas reconheceu o fabuloso Trílio Negro pela flor. Rapidamente a Arquimaga partiu uma haste a três dedos dos filamentos da raiz.
— Isto será seu guia — e com ela você vai procurar o Olho Chamejante de Três Partes.
Atirou a haste para a água, onde a canoa descansava, com Jagun dentro dela, profundamente adormecido. Kadiya a viu mergulhar verticalmente como uma flecha. Mas o que era o Olho Chamejante de Três Partes? A Arquimaga devia explicar! Kadiya estava farta de viajar pelos pântanos, seguindo um brilho mágico até a casa de uma feiticeira incompetente. Precisava mais informações para prosseguir na sua busca..
De repente ela estava sozinha. Não havia ninguém ao seu lado e tinha quase certeza de que se procurasse na torre também não encontraria a Arquimaga.
Relutante e furiosa, voltou para o barco. Jagun estava acordado. Kadiya olhou para a água e viu, lá adiante, entre as pequenas ondas provocadas pelo balanço da pequena embarcação, um filete de luz. Verde, mas de um tom de verde que ela jamais vira no pântano. Mais claro, mais suave, brilhando como uma pedra preciosa, mas com a ponta negra, vista apenas como reflexo da luz na água. Kadiya entrou no barco, apanhou a vara e o filete de luz se moveu. Não com o movimento nervoso de uma criatura aquática, mas devagar, acompanhando a velocidade dos dois barqueiros.
Kadiya suspirou profundamente.
— Temos um novo guia, Jagun, e uma nova tarefa. Continuemos nossa viagem.
O vento da montanha rugia no desfiladeiro, já trazendo grãos cortantes de granizo. O céu do fim de tarde tinha ainda alguns retalhos azuis, mas durante todo o dia as nuvens haviam se acumulado no sul, acima dos mais altos picos dos Ohogan — o Monte Brom, Monte Gidris e Monte Rotolo. Sem dúvida a tempestade chegaria antes da noite, como um dos arautos das chuvas que deviam começar dentro de duas semanas.
Orogastus estava extremamente cansado. Há oito dias haviam deixado a Cidadela de Ruwenda. O feiticeiro deixara sua escolta armada nas planícies de Labornok e agora, sozinho, aproximava-se do seu santuário, no alto do Monte Brom. Puxando mais para o corpo o casaco de peles, ordenou à sua montaria e aos froniais de carga que o seguiam.
Para a frente! Lá vão encontrar um estábulo aquecido, boa comida e água para beber. Vejam — estou mostrando!. Sigam a trilha! Continuem a subir! Logo o veremos, assim que vencermos a última curva lá em cima. Para a frente! Para a frente! Depressa!
Os três froniais ergueram as cabeças e as pontas douradas dos seus chifres cintilaram na luz mortiça do sol poente. Suas narinas se dilataram, pois graças às artes de Orogastus sentiam o cheiro da comida que os esperava no forte, no fim da trilha íngreme.
Apareceu então uma torre branca brilhante, com ameias e grades negras filigranadas nas janelas, na encosta do Monte Brom. Os animais revitalizados partiram no trote, passando depois para uma andadura rápida e macia. Com os tendões das pernas tensos e as caudas erguidas, venceram num instante as últimas poucas centenas de ells e então pararam bruscamente, bufando e relinchando, na beira do precipício onde a trilha terminava. Lá embaixo abria-se uma imensa fenda na montanha, com quase uma légua de profundidade e uns cinqüenta ells de largura, com uma torrente no fundo alimentada pela geleira. A fortaleza do mago ficava no outro lado da fenda e parecia completamente inacessível. O céu estava agora encoberto e fazia muito frio.
Orogastus tirou da bolsa que trazia no cinto um pequeno apito de prata e levou-o aos lábios. Uma nota muito alta e aguda soou, quase se perdendo entre os uivos do vento. Imediatamente as janelas negras da torre se iluminaram. O portão na torre de entrada distante se abriu, projetando uma faixa de luz na neve. Com um som surdo, apareceu uma abertura quadrada na rocha, logo abaixo do portão, e dela saiu uma ponte estreita, de forma estranha na parte inferior. O som surdo de trovão continuou até a ponte cruzar completamente o precipício entre a trilha e a torre.
Orogastus desmontou e vedou os olhos dos três froniais. Então, a pé, os conduziu para a estranha estrutura, que tinha uma grade muito baixa e não mais de um passo de largura. O vento uivante açoitava seu manto e balançava loucamente a pequena ponte. Um passo em falso e homem e animais despencariam no abismo. Mas Orogastus imobilizou a ponte com seus poderes mágicos e tranqüilizou os froniais. Eles o seguiram docilmente, mesmo quando surgiram os primeiros flocos de neve, e chegaram a salvo no portão. O feiticeiro então pôs a tranca na porta e apertando um botão na parede recolheu a ponte para o interior da montanha.
Afinal, em casa!
Tirou o pesado manto de peles com uma exclamação de alívio. Os froniais relincharam e empinaram, mas o feiticeiro com uma risada retirou as vendas, os arreios da sua montaria e a carga dos outros animais. Então conduziu as fiéis criaturas por um corredor iluminado por lâmpadas estranhas, que brilhavam sem chama, até o estábulo feito na rocha, mas seco e equipado com todo o necessário para o conforto dos froniais.
Enquanto os alimentava e os preparava para o descanso, Orogastus resmungava bem-humorado. Normalmente esse trabalho era feito por seus acólitos dedicados, mas eles estavam na Cidadela de Ruwenda, cuidando do Rei Voltrik e aguardando suas ordens, assim o Mestre tinha de acomodar os animais e se encarregar do próprio conforto. Orogastus conhecia perfeitamente os trabalhos domésticos, pois recrutara as Vozes há apenas dez anos. Antes disso, era ele quem cuidava do seu refúgio sofisticado, construído por operários do Rei Voltrik, sob sua orientação.
Agora, subindo a escada de pedra em espiral, para seu apartamento no andar central da torre, Orogastus pensava que era bom estar sozinho. As últimas dez semanas foram as mais árduas e tensas da sua vida — primeiro, a morte do velho rei e a posse de Voltrik, depois os preparativos para a invasão e a marcha sobre Ruwenda. A vitória fora paradoxalmente fácil. Somente o estranho ferimento na mão do Rei Voltrik e a fuga das três princesas empanaram o brilho do grande plano do mago.
Bem, as Vozes garantiam que Voltrik estava se recuperando afinal, e se tudo corresse bem logo os esconderijos das princesas não seriam mais segredo para ele. Trataria desse assunto imediatamente, adiando o próprio conforto para depois da consulta ao espelho de gelo.
Entrou nos seus aposentos, deixou a carga com os suprimentos perto da lareira da sala de jantar, parando apenas para acender o fogo já preparado na lareira, com seu acendedor mágico. Foi até o quarto para trocar a roupa de viagem, molhada e suja, pelos trajes negros e prateados e o chapéu que usava para os encantamentos mais solenes.
Não quis perder tempo com um banho, mas limpou-se com uma esponja molhada, pedindo perdão aos Poderes das Trevas — e então riu baixinho, pensando que provavelmente esses poderes o preferiam sujo como eles próprios. Sentiu o frio gelado da malha metálica do manto do cerimonial sobre a pele e estremecendo esqueceu de recitar as preces rituais enquanto o vestia. As luvas de couro prateadas e o chapéu com a forma dramática de estrela cintilante e meia-máscara estavam mais quentes, mas em lugar das sandálias de praxe calçou botas forradas de pele, antes de se dirigir ao túnel que levava à Caverna do Gelo Negro, nas profundezas da montanha.
O ar saía da sua boca como uma nuvem branca no ar úmido do túnel iluminado e Orogastus o atravessou com passos rápidos, rezando para que o espelho de gelo lhe desse as respostas imediatamente, sem nenhuma demora. Nunca se podia ter certeza com aqueles instrumentos dos Desaparecidos. Mesmo observando todo o ritual e entoando os encantamentos adequados, podiam ser caprichosos. Mas, por favor — não esta noite, pois ele estava exausto e faminto!
Chegou a uma porta maciça, que estava sempre coberta de geada, mesmo na estação mais quente, reuniu toda a coragem e entoou o primeiro encantamento. Pediu perdão aos Desaparecidos por perturbar sua antiga tranqüilidade, mas ordenou severamente que o servissem, em nome dos Poderes das Trevas. Só então abriu a porta.
A Caverna do Gelo Negro estava como sempre. Como Orogastus a havia encontrado — fora chamado para ela! — logo que chegou a Labornok com o então príncipe herdeiro Voltrik. (Só mais tarde Orogastus mandou construir a fortaleza, para proteger a caverna e facilitar o acesso às maravilhas que ela guardava.) Era uma câmara enorme abobadada, rusticamente cortada no granito com veios de quartzo, no Monte Brom, com pedaços de gelo negro incrustados aqui e ali nas paredes. As lajotas do assoalho eram de um material estranho, que parecia obsidiana brilhante, e o mesmo material — muito parecido com o gelo — fora usado na construção de milhares de nichos e quartos pequenos com portas. Dentro deles ele havia encontrado os aparelhos fantásticos que o afastaram da magia abstrata, aprendida com Bondanus, e que haviam reforçado sua influência sobre o reino de Labornok. Orogastus não conseguiu abrir as fechaduras muito antigas de vários compartimentos. Mas outros — incluindo a sala do espelho de gelo — haviam revelado facilmente seu segredo.
Erguendo as mãos com as luvas prateadas, ele disse, em voz alta:
— Poderes das Trevas! Mais uma vez agradeço suas dádivas. Permitam que eu faça uso delas sem me prejudicar.
Abriu então uma das portas de obsidiana e entrouna do espelho.
Era uma câmara com poucos passos de profundidade. Em quase toda a parede interna uma massa informe de gelo cobria completamente os misteriosos aparelhos que flanqueavam o espelho circular. Tremendo de frio e de apreensão —pois, se o espelho se recusasse a responder, seu grande plano para dominar o mundo estaria desfeito —, ele entoou o encantamento:
— poderoso espelho de gelo! Olho vidente dos Desaparecidos! Acorda e atende ao meu pedido!
Esperou.
A princípio, a superfície cinzenta refletiu apenas a imagem do feiticeiro, um homem alto e robusto, envolto no manto negro e prateado, coroado por um diadema em forma de estrela e com a parte superior do rosto oculta pela máscara. Então, apareceu uma luz fraca no centro do espelho... e ouviu-se uma voz distante, áspera como a de um homem agonizante, que não parecia humana.
— Respondendo. Seu pedido, por favor.
Orogastus ficou imóvel. Embora estivesse quase congelado, o suor desceu da sua testa, até os olhos, sob a máscara. Aquele era o momento crucial. Se cometesse um erro no enunciado da pergunta, o espelho, ofendido, se apagaria e permaneceria assim pelo menos dois dias, até se ”recobrar” do insulto. Mentalmente, Orogastus ergueu outra prece aos Poderes das Trevas. Então, disse, com voz inexpressiva:
— Procurar três pessoas. Localizar a posição atual das três pessoas, no mapa.
A luz no espelho ficou mais intensa. Um turbilhão de sombras azuis-prateadas materializou-se no centro do disco.
— Pedido aceito. Diga o nome das três pessoas.
— Princesa Anigel, de Ruwenda. Princesa Kadiya, de Ruwenda. Princesa Haramis, de Ruwenda. — A cada nome Pronunciado ele procurava formar na mente a imagem da Princesa citada.
— Procurando — disse o espelho e Orogastus quase desmaiou de alívio. Ia funcionar, afinal.
O espelho disse:
— Número um: Princesa Anigel, de Ruwenda. Localização: Sá quatorze dois, Lo setenta e um dez no Gráfico Oma. — A linguagem técnica foi seguida por um mapa em diagrama mostrando uma luz piscante no Rio Mutar, abaixo da Cidadela, a poucas léguas do Lago Wum.
Orogastus controlou-se heroicamente. Qualquer palavra ou movimento em falso podia desligar para sempre o espelho. O feiticeiro procurou memorizar o lugar indicado. Logo em seguida, o mapa desapareceu e foi substituído por um retrato colorido e animado da princesa, como se ela estivesse viva ali, dentro do gelo cinzento. Anigel estava sentada na popa de um barco, segurando duas correias que pareciam rédeas. A embarcação deslizava rapidamente na água. Atrás da princesa estava uma oddling que virou a cabeça para o pôr-do-sol vermelho e disse claramente:
— Acho melhor pararmos para a noite, meu bem. Naquela lagoa deve haver muitos peixes para os rimoriks.
Então a imagem desapareceu.
— Número dois: Princesa Kadiya, de Ruwenda — disse o espelho suavemente. — Localização: Mo vinte e nove quatro, Vi noventa e cinco no Gráfico Oma.
A luz piscante indicava que a princesa estava a oeste da selva infestada de skriteks, conhecida como Inferno dos Espinhos.
Contendo uma exclamação de espanto, Orogastus olhou fascinado para a imagem da segunda das trigêmeas, ajoelhada num banco de lama, ao cair da noite, tentando acender uma pilha de casca de trepadeiras. No fundo um oddling tirava alguma coisa de um barco dos nativos.
Kadiya disse:
— Já assoprei até ficar azul, Jagun, mas não consigo acender esta coisa danada. Acho melhor você tentar agora.
A imagem desapareceu.
— Número três: Princesa Haramis, de Ruwenda. Localização: Pa quarenta e dois três, No dezesseis oito, no Gráfico Oma.
A luz indicadora piscou na mais estranha posição — no alto da encosta do Monte Rotolo, o segundo pico mais alto dos Montes Ohogan, perto da nascente do Rio Vispar e a uma ou duas léguas da aldeia secreta dos oddlings vispis.
Quando a terceira imagem surgiu no espelho, Orogastus conteve a respiração. A cena estava escura, com uma luz violácea, e ele imaginou que devia ser dentro de uma caverna na frente da encosta de uma geleira. Um vulto destacou-se da sombra, transformando-se na figura de uma mulher com um manto branco, olhando para fora.
Haramis disse:
— Sobreviverei a esta noite? Eles estão lá à minha espera — os Olhos do Redemoinho — e só tenho mais uma das sementes de trílio que me trouxeram a este lugar de gelo e de morte. É o fim. Não tenho mais alimento e a neve alta me impede de seguir viagem. A não ser que os vispis venham me socorrer, terei falhado na minha missão para encontrar o Círculo de Três Asas.
A imagem desapareceu.
Então, soaram as palavras inevitáveis do aparelho mágico.
— Poder Bahkup temporariamente exausto. Pausa para recarregar.
A luz e a voz do espelho de gelo desapareceram.
— Agradeço a todos os Poderes das Trevas — Aysee Lyne, Inturnal Bataree e Bahkup — entoou Orogastus, com uma profunda curvatura —, e ao Grande Systema por eles operado, para todo o sempre, assim seja.
Então recuou, caminhando humildemente de costas, fechou a porta de obsidiana da sala do espelho e voltou correndo para seu apartamento.
Bem mais tarde, depois de um banho demorado e de um bom jantar, Orogastus consultou o antigo Livro das Profecias da Península, sentado na frente do fogo, na sua sala de trabalho, tomando um brandy suave. Lá fora, a tempestade de neve uivava entre as ameias da torre.
O Círculo de Três Asas...
Sim, era mencionado no livro, ao lado de dois outros símbolos obscuros — o Olho Chamejante de Três Partes e o Monstro de Três Cabeças. A referência não era muito clara, mas aparentemente os três estavam destinados a se unir, precipitando assim algum evento climático.
— Pode ser — pensou Orogastus — que as outras duas princesas estejam também procurando seus talismãs, como Haramis procura o seu. E quando os encontrarem e se reunirem, as três jovens poderão então ter poder para derrotar Labornok?
Durante algum tempo olhou pensativo para as chamas, resolvendo o que ia fazer. A necessidade de eliminar as princesas Anigel e Kadiya era evidente, mas a princesa Haramis era outra coisa...
Orogastus recostou na cadeira, fechou os olhos e levou as pontas dos dedos às têmporas.
— Minhas Vozes! — entoou ele. — Escutem-me!
Três imagens formaram-se em sua mente, um vulto impreciso, vermelho, outro azul e outro verde, aos poucos assumiram as formas dos seus três servos encapuzados. Não tinham olhos, mas sua expressão era de entusiasmo.
— Mestre! Conseguiu?
— Sim, fiquem atentos para a mensagem! Aqui está a posição atual da Princesa Anigel. e aqui a de Kadiya.
— Recebemos sua mensagem, Mestre Todo-Poderoso. E a Princesa Haramis?
— Eu a encontrei também. Mas, escutem! O General Hamil deve partir imediatamente, com pelo menos metade do seu exército, no encalço da Princesa Kadiya, que está numa região muito perigosa. A Voz Vermelha deve acompanhar Hamil e se comunicar comigo dia sim, dia não, até ela ser encontrada.
— Obedecerei — disse a Voz Vermelha.
— A procura da Princesa Anigel — continuou Orogastus — deve ser conduzida pelo Príncipe Antar e seus cavaleiros. A Voz Azul o acompanhará.
— O príncipe e seus cavaleiros voltaram de Trevista há quatro dias — disse a Voz Azul. — Será fácil para nós encontrar Anigel se ela está tão perto como disse.
— Nada é fácil quando se trata da Arquimaga Binah — censurou Orogastus com voz severa. — Não esqueçam que as jovens estão protegidas pelo que resta da sua magia. E se elas conseguirem encontrar certos novos talismãs muito poderosos, chamados o Olho Chamejante de Três Partes e o Monstro de Três Cabeças, seus poderes mágicos serão muito reformados. É imperativo que a princesa seja capturada e -morta, e que o talismã fique reservado para mim.
— Compreendemos — disseram as Vozes.
— Tenho outras instruções para a Voz Azul -acrescentou o feiticeiro — a respeito do Príncipe Antar.
— Acredito que já sei do que se trata, Mestre,— a Voz Azul riu malevolamente. — Seria triste se o príncipe sofresse um acidente mortal depois de ter cumprido seu dever.
— Não deve haver a menor sugestão de sua participação — advertiu Orogastus.
A Voz Verde disse:
— E eu acompanharei o grupo que vai procurar a Princesa Haramis, Mestre?
— Não. Você fica com o Rei Voltrik, cuidando para que ele se restabeleça completamente, tranqüilizando-o sempre que eu enviar os relatórios dos progressos das missões.
— Mas Haramis..
— Eu pretendo — disse Orogastus — cuidar pessoalmente da Princesa Haramis.
Haramis lançou ao ar a última semente do trílio numa manhã em que as encostas do Monte Rotolo estavam envoltas numa neblina perolada. Quando ela acordou, o ar parecia estranhamente mais aquecido. As paredes da caverna onde havia passado a noite — num sono surpreendentemente profundo — cintilavam com a neve derretida. Seu manto forrado de pele, que havia enrolado no saco de dormir, estava encharcado, Pesado demais e inútil, uma vez que não tinha meios de secá-lo. Com sua pequena faca, a princesa deu um talho na parte lateral e outro no fundo do saco de dormir impermeável, fazendo uma espécie de capa, um pouco desajeitada, mas protetora. Depois de tomar um pouco d’água, ela soltou a última semente e saiu da caverna para segui-la sobre a neve que chegava aos seus joelhos.
A semente-guia flutuava languidamente, ajustando seu vôo aos passos lentos da princesa, mantendo-se sempre ao alcance de um braço. Além dessa distância, Haramis não via nada, tão espessa era a névoa, e ela caminhava apoiando-se pesadamente no cajado com ponta de ferro. Não deu importância à sensação de tontura provocada pelo ar rarefeito da montanha. Tudo parecia distante e nublado. Mal notava onde punha os pés, desde que não perdesse de vista a semente.
Muitas vezes ela tropeçou e caiu, encharcando mais ainda o vestido de lã, as botas e as luvas. A umidade penetrava no forro exposto na parte inferior do saco de dormir, que logo ficou pesado demais. Haramis caiu mais uma vez e deixou para trás o agasalho improvisado. O ar estava agora tão quente que não ia mais precisar dele.
A semente. A semente alada. Era tudo que ela via, a única coisa em que a mente cansada podia se concentrar. Haramis seguiu subindo cada vez mais. Às vezes a neve chegava aos seus joelhos, outras vezes estava mais rasa, mas sempre pesada e molhada, grudando nas suas botas, fazendo com que suas pernas parecessem feitas de chumbo.
Depois de três ou quatro horas de caminhada o tempo mudou ameaçadoramente. Estonteada, Haramis não notou que o tom perolado da névoa transformava-se num cinza sombrio, e que o ar começava a ficar muito mais gelado. Não sentia mais as mãos nem os pés, mas para ela isso não tinha importância, como não era importante a dor surda no estômago vazio.
Então, começou a nevar.
Haramis parou, sem compreender o que estava acontecendo. Sementes? O mundo estava repleto de sementes aladas do trílio? Qual delas era seu guia mágico? Esta...? Não.
A névoa ia se esgarçando com a neve que caía e Haramis, mais uma vez, viu os rochedos e penhascos da montanha que estava escalando. O vento agora soprava flocos de neve no seu rosto. Haramis percebeu que perdera o cajado. A semente-guia? Tinha desaparecido.
Desapareceu como todas as outras — não no fim do dia, depois de conduzi-la a um abrigo seguro, mas ali, quase na crista de uma cordilheira com picos agudos da qual o vento tinha tirado toda a neve. A última semente do Trílio Negro, levada pelo vento, e assim ela chegava ao fim da sua missão.
A neve ardia no seu rosto, enchia de lágrimas seus olhos e depois de algum tempo Haramis não sentia mais as faces nem o nariz. Uma letargia mortal a envolveu e o que ela mais desejava agora era dormir. Para que continuar a luta? Cada respiração era um golpe de espada. Seu coração batia disparado como se quisesse quebrar as costelas. Suas mãos estavam congeladas.
Vou até o topo da cordilheira, pensou ela. Só mais vinte passos. De lá vou olhar para meu reino pela última vez.
O vento tentou impedi-la. Como uma criatura enorme e maldosa, uivava e empurrava, formando quase uma parede à sua frente. Curvando-se, Haramis ergueu um pé, depois o outro, impulsionou o corpo para a frente, opondo seu peso ao vento com toda a força que ainda lhe restava.
Pai! Mãe! Eu falhei e logo estarei em sua companhia. Eu queria tanto que o sonho se tornasse realidade, que minha tarefa se realizasse miraculosamente, queria tanto acreditar que a pobre Arquimaga conhecia meu destino. Mas parece que ela não conhecia, e portanto não existe nenhuma magia, afinal. Exatamente como eu suspeitava.
Vento.
Neve. Frio.
E seu corpo movendo-se ainda, agora quase além de toda dor. Com os dentes descalçou uma luva e deixou-a cair na neve, depois levou a mão gelada ao peito, sob a túnica coberta de gelo para tocar pela última vez o amuleto do trílio e pedir pelo menos um pouco mais de forças.
Deixe-me ao menos chegar ao topo da montanha. Mais cinco passos, a ação mais árdua, mais terrível de toda sua vida. Deus, ajude aquela que confiou em Ti. mais um passo.
Chegou!
No topo da cordilheira havia um parapeito de rocha com uma fina camada de neve. Quando Haramis se ergueu, o vento amainou e a neve deixou de açoitá-la. Lá atrás, no caminho que acabava de percorrer, o ar redemoinhava ainda, cinzento e tempestuoso, mas à sua frente o céu estava azul e o panorama magnífico dos picos nevados estendia-se para oeste a perder de vista. A seus pés, a encosta da montanha descia íngreme para o abismo que parecia mergulhar no infinito da névoa.
— Aqui estou — murmurou ela, cambaleando e quase perdendo os sentidos. Mas a mão que segurava o amuleto não estava mais insensível. O calor voltava aos poucos, dolorosamente. Em vez de sucumbir ao chamado da morte, Haramis forçou seus olhos a se abrirem pela última vez.
À sua direita, a pouca distância, ergueu-se um redemoinho na neve, cintilando ao sol como poeira de diamantes.
Haramis caiu de joelhos e olhou para ele, completamente indefesa. Os flocos brilhantes rodopiaram e cresceram, transformando-se num imenso cone branco, girando sobre a ponta afilada. E dentro do redemoinho estavam os Olhos.
Olhos verdes como gelo. Dezenas deles. Olhando para ela.
— Eu procuro o Círculo de Três Asas — murmurou ela.
- Nós somos seus guardiões, viemos ao seu encontro.
— Eu os saúdo — disse a Princesa Haramis, com dignidade. Então, caiu para a frente e mergulhou numa noite profunda e misericordiosa.
Seguiu-se um tempo povoado de sonhos, durante o qual ela sofreu grande dor e depois encontrou um alívio profundo e repousante. Os Olhos do Redemoinho habitavam seus sonhos, às vezes ameaçadores, às vezes gentis, olhos de seres altos e graciosos, com roupas esvoaçantes de cores claras, enfeitados com uma profusão de jóias, que murmuravam, cuidavam dela, mandavam que fizesse isto ou aquilo. E Haramis obedecia como uma criança.
Perguntou quem eram, e responderam que eram o Primeiro Povo, guardiões do Cetro do Poder dos Desaparecidos, desde tempos imemoráveis.
Haramis perguntou se esse Cetro era o talismã que ela procurava, e eles disseram: De certo modo, é, e de outro modo, não é. Pois, na idade das trevas, o Triplo foi desmembrado e suas partes espalhadas para evitar que caísse nas mãos dos poderes do mal.
Sonhando ainda, a princesa perguntou se eles eram, na verdade, os guardiões do Círculo de Três Asas, o seu talismã.
Sim, pois essa parte do Triplo guardamos em segurança numa caverna de gelo. As outras duas partes, mandamos para longe por meio da Dama Branca, para serem guardadas por outros, até desaparecerem os poderes da Dama de Noth, quando então o Cetro precisará ser usado para restaurar o equilíbrio do mundo.
Haramis disse:
— Minhas irmãs procuram os outros dois talismãs.
O poder do mal desta era, que neste momento a acompanha, esperando que seja bem-sucedida na sua missão, também está à procura deles...
Haramis teve a impressão de que um par de Olhos mudou de cor, passando do verde gelado para o branco brilhante das estrelas. Viu então um belo homem olhando para ela e perguntou:
— Este é ele?
E eles responderam:
- Sim.
No sonho, o homem estendia a mão para ela e Haramis retribuía seu sorriso. Então ele disse:
— Eu não sou o que eles dizem. Não se deixe enganar. Esses pequeninos compreendem apenas uma parte do imenso todo. Reserve seu julgamento até me conhecer realmente.
Haramis acordou numa cama estreita com cortinados a toda volta, espantada por estar tão aquecida, até compreender que o calor vinha do colchão sob seu corpo.
O hipocausto aquece a base da cama e o assoalho, disse uma voz suave. O calor das fontes de água quente é canalizado, e assim aquecemos nossas casas.
As cortinas se abriram e Haramis viu uma mulher nativa de uma raça que ela não conhecia. O rosto era mais estreito que o dos nyssomus, e a boca e o nariz mais humanos. Os olhos enormes — verdes, e não dourados — e as orelhas que apareciam entre os cabelos platinados e fartos indicavam que pertencia à família dos nativos. Suas mãos tinham também três dedos, mas as garras eram vestigiais e pareciam unhas humanas — exceto pela espessura e pela tendência natural de terminarem em ponta.
Quando ela sorriu, Haramis notou que os dentes não eram presas, mas pequenos e regulares. A princesa lembrou-se da voz harmoniosa da mulher nos seus sonhos. Só depois de algum tempo percebeu que os lábios da vispi não se moviam quando ela falava.
Mas é claro que não se movem, disse a mulher com um sorriso. Você não compreenderia a nossa língua, por isso usamos a fala sem palavras! Meu nome é Magira, e eu a saúdo, Princesa Haramis do Trílio. Agora, saia da cama e deixe que eu a ajude a se vestir, pois já está bem melhor e nosso povo quer conhecê-la antes que continue a sua missão.
— Mas você compreende a minha língua... — A princesa estava ainda um tanto confusa, sem saber o que era sonho e o que era realidade. O que Magira acabava de dizer sobre ”continuar sua missão” a preocupava.
Quando você fala, sua mente repete seus pensamentos, princesa. Nós, os vispis, não temos dificuldade para entender o que diz.. Aprova este vestido? Acho que o achará muito confortável e o enfeite de pele negra combina com seus cabelos.
— Sim, obrigada. O vestido é lindo.
Haramis deixou que Magira vestisse nela a túnica de tecido azul-claro, que parecia veludo, mas era mais leve, enfeitada com pele negra e macia. O decote, os punhos e a bainha eram enfeitados com faixas de prata com pedras lunares incrustadas e safiras. Os sapatos eram de couro prateado, o cinto de prata com uma bolsa feita de sementes. Haramis deixou que a vispi fizesse duas tranças com seus cabelos, e as atasse com uma fita azul.
Nosso sangue vispi é quente, por isso nossa roupa é muito mais leve do que a que os humanos precisam usar aqui. Use este manto também, as luvas, e agora eu a levarei à Prefeitura de Movis, que não fica longe daqui.
Obedientemente, Haramis calçou as luvas enfeitadas com pedras preciosas e Magira pôs nos seus ombros um manto esplêndido de pele branca e negra, cobrindo sua cabeça com o capuz. Então a princesa e a vispi desceram uma escada de pedra, entre janelas estreitas de vidro, atravessaram um vestíbulo e saíram da casa.
— Então, esta é Movis!
Haramis parou na entrada da casa e olhou a cidade que ela sempre pensara ser apenas uma lenda. O ar tinha um brilho dourado. Estavam quase no fim do dia. A princesa viu centenas de casas de pedra bem construídas, muitas grandes e outros prédios, bem maiores, circundando a praça central.
Espirais de vapor erguiam-se por toda parte — não apenas dos telhados das casas, mas também das grades no pavimento de pedra das ruas e de pequenas estruturas quadradas, ao lado de cada portão e pátio externo. Todas as casas ficavam no meio de jardins bem-cuidados e árvores pequenas, mas não se via nenhum ser vivo. A iluminação era estranha, sem sombras, pois a luz do sol não chegava ao solo do vale. Todo o Vale de Movis era coberto por uma camada de nuvens claras, como um teto dourado, apoiado sobre centenas de colunas de vapor branco. As encostas mais baixas eram verdes e cortadas em terraços, as mais altas, cobertas de neve. De uma imensa geleira, a água descia em cascata como um grande manto branco.
O povo preparou uma refeição festiva e todos estão à sua espera, disse Magira.
— Isso é ótimo — disse Haramis, apressando-se para acompanhar a vispi de longas pernas, que se movia num passo fluido pelas ruas sinuosas, com seus trajes leves flutuando como flâmulas ao vento. — Estou com muita fome, talvez seja o ar daqui.
Você dormiu durante cinco dias, princesa.
— Oh! — exclamou Haramis.
Durante esse tempo, nossos enfermeiros a atenderam e curaram sua carne congelada e outros ferimentos. Sem dúvida percebeu esses cuidados durante seus sonhos.
— Sim. E sonhei com mais alguém.
Magira diminuiu o passo, voltou os olhos cor de esmeralda para a princesa e disse, preocupada:
Sabemos que o malvado falou com você. Ele pode ver sua imagem só por meio do espelho de gelo, e isso não é sempre, mas apenas com intervalos de dois ou mais dias, uma vez que seu amuleto a protege da observação mental das forças do mal...
— Mas ele pode falar comigo nos meus sonhos?
- Sabendo que está aqui, ele pode. Se você estivesse acordada, não teria ouvido, é claro.
Haramis não quis mais falar em Orogastus, cedendo a um sentimento curioso que o feiticeiro provocava em sua mente. Mudando de assunto, perguntou:
— Diga-me, seu povo é auto-suficiente, neste vale?
- Cultivamos alimentos que podem se desenvolver com pouca luz e temos animais domésticos também — togars e nunchiks, na cidade, e os maiores, volumniais e alguns froniais, fora do centro. Nós os soltamos nas pastagens durante a estação seca, e os prendemos em cavernas na estação das chuvas e da neve. Nas cavernas crescem liquens e fungos luminosos e nutritivos, e para vocês nossos animais, durante a noite, podem parecer estranhos, porque essa dieta de inverno faz com que seus chifres, dentes e cascos brilhem no escuro.
— Esses são os animais que vocês obtêm por meio de trocas?
São, pois eles se reproduzem muito lentamente nas montanhas.
Haramis ergueu a mão e as pedras preciosas na sua luva cintilaram.
— Vocês trocam apenas pedras e metais preciosos? Magira riu.
Não precisamos de mais nada, princesa, pois todos os do nosso povo procuram esses ornamentos. Antigamente, nossa rede de comércio ia desde os Ohogan até a Floresta Tassaleyo, sempre com os tímidos e pequenos uisgus como nossos intermediários. Com o advento dos humanos de Ruwenda, alteramos nossos padrões de comércio, pois os humanos agora nos fornecem mais animais e doces do que todas as raças do nosso povo podem fornecer. Assim, os vispis prosperaram.
— Mas ainda proíbem aos outros a entrada em suas terras...
Magira ergueu os ombros delicadamente.
Os vales de fontes quentes são poucos e muito distantes um do outro e nosso meio de vida tem um equilíbrio precário. Nós do Primeiro Povo fomos feitos para este clima quando ele dominava a maior parte do mundo. Com o passar dos anos, as geleiras foram diminuindo e nós diminuímos em número, embora tenhamos conservado nossa cultura. Outras raças do povo, diferentes de nós, uniram-se à abominável Raça Básica na região que é hoje chamada de Pântano Labirinto. Mas as altas montanhas são nossas, e nós as protegemos por meio de ilusões ameaçadoras, como os Olhos do Redemoinho. Uma vez que somos um povo do Trílio e obedecemos à Dama Branca, guardamos também o Passo Vispi entre Ruwenda e Labornok...
Haramis parou, olhou para Magira e disse, em tom de censura:
— Então, onde estavam quando o Rei Voltrik invadiu Ruwenda?
Infelizmente, a Dama não nos avisou em tempo da aproximação do inimigo e, quando os guardiães vispis chegaram, suas ilusões foram penetradas pelo poder do feiticeiro. Ele fez com que os soldados de Labornok ignorassem os fantasmas e atacassem as pessoas de carne e osso que os projetavam. Os invasores mataram todos os vispis guardiães das nossas aldeias mais próximas do Passo — cerca de trezentas almas.
— Eu sinto muito — disse a princesa, com sinceridade. — Eu não sabia. Na Cidadela pouco sabíamos sobre a invasão, pois os labornoks atacaram com uma rapidez fatal, dominando nosso povo antes que soubéssemos o que estava acontecendo. Até agora eu não sei o que aconteceu com nosso povo de Dylex, nem com os castelos do sul.
Chegaram a um edifício grande, com todas as janelas iluminadas com o som de música suave vindo do interior. Magira abriu as portas e a Princesa Haramis viu uma quantidade incrível de vispis, centenas deles, sentados em volta de mesas redondas ou dançando numa pista central.
Na outra extremidade do grande salão erguia-se uma plataforma onde estavam alguns vispis luxuosamente vestidos. Na parede, acima deles havia uma bandeira com um enorme Trílio Negro delineado com diamantes reluzentes. As mulheres de Movis vestiam-se como Magira, com túnicas folgadas de cores pastéis e uma profusão de jóias. Os homens usavam mantos azul-escuros sobre túnicas brancas e calçavam botas altas, também brancas. Os cintos, golas e braceletes cravejados de pedras preciosas cintilavam como arco-íris de fogo à luz dos pequenos archotes pendentes do teto alto.
Quando Magira conduziu Haramis à plataforma dos dignitários, um clamor se ergueu do povo reunido. Por um momento, a vista da princesa escureceu, sua cabeça pareceu girar e teria caído se Magira não a amparasse. Os gritos vocais e mentais! Nunca vira nada igual! Haramis sentiu-se assaltada externa e interiormente e, mesmo sabendo que os agressores eram amigos, a sensação era terrível.
- Parem! ordenou, num grito involuntário.
Consternação.
Silêncio, arrependimento evidente.
Tremendo de alívio, ela disse:
— Muito obrigada. Eu agradeço muito sua acolhida, mas acho que não estou ainda acostumada com seu modo de expressá-la.
Um vispi de aparência venerável, cujos olhos não eram verdes, como os dos outros, mas completamente brancos, levantou-se na cabeceira da mesa e dirigiu-se a Haramis. A princesa sabia que ele era cego e sabia também que podia vê-la.
Querida princesa, perdoe-nos! Não tivemos intenção de assustá-la. Fomos levados pela alegria de tê-la conosco. Eu a saúdo em nome de todos os vispis. Sou Carimpole, Ouvidor de Movis. Há muito tempo a esperamos. Sabíamos que as sementes aladas a trariam à nossa cidade. se tivesse forças suficientes para segui-las. Nós a observamos durante toda sua viagem, desde que saiu de Noth. Nós a vimos enfrentar as dificuldades e a fadiga e o desespero. Nós a vimos subir para nossa terra alta e coberta de neve, onde sua grande inteligência não podia ajudá-la e só a força de vontade e a resistência física poderiam mantê-la viva.
Então, parecia que suas forças estavam falhando e que ia desistir, como fazem as pessoas que passam muito tempo voltadas para as coisas do pensamento, desprezando o corpo que sustenta o espírito que ele- abriga. Oramos para que tivesse forças naquele momento extremo, como orou também a Dama Branca, e lhe transmitimos nossas energias talvez, fazendo com que seu corpo servisse à mente, cumprindo afinal a difícil tarefa. E então, quando atravessou nossas fronteiras, tivemos permissão para ajudá-la e dar-lhe abrigo.
Haramis ouvia o murmúrio de todas aquelas mentes, tocando-a com gentileza, desejando seu bem. Disse então, com voz quase inaudível:
— Vocês estavam proibidos de me ajudar, antes?
- Sim. Para a princesa, a jornada era crucial. Uma parte essencial da sua missão.
— E agora — cheguei ao fim? Vocês vão me entregar o Círculo de Três Asas?
- Amanhã começaremos a ensiná-la a comandar os grandes pássaros que vocês, os humanos, chamam de lammergeiers. Seu talismã está a algumas léguas daqui, numa caverna de gelo, no Monte Gidris. Um lammergeier a levará até a caverna. Não sei dizer se este é o fim da sua missão. O fato de ter nas mãos o Círculo de Três Asas nada significa. É preciso que ele receba a força e o poder. Não sabemos como isso é feito.
— A Arquimaga disse-me para voltar a ela com o talismã, quando eu tivesse dominado a mim mesma. Disse também que meu destino está ligado aos destinos das minhas duas irmãs, e que nós três devemos ter sucesso em nossas missões, do contrário nada conseguiremos. Então devo ajudar Kadiya e Anigel?
Haramis, do Trílio, não sabemos. Acredito que terá de decidir por si mesma.
— Eu sou a mais velha e sempre fui responsável pelas outras. Há também uma profecia entre o povo do pântano segundo a qual uma mulher de Ruwenda destruirá o poder de Labornok. Aparentemente essa mulher sou eu, pois, por direito, a coroa de Ruwenda é minha, como é minha a obrigação de libertar nosso país vencido.
O grande pássaro a levará aonde quiser ir. Mas não podemos dar mais nenhum conselho. Agora, que está curada dos seus ferimentos, só podemos comemorar sua vinda e apressar sua partida. Porém, por enquanto, quer sentar-se à mesa conosco? Passou cinco dias tomando somente líquidos. Preparamos uma refeição que certamente vai agradar seu paladar humano.
— Muito obrigada — disse Haramis —, será um prazer. O Ouvidor bateu palmas.
Então que sejam servidas as carnes e as massas, e as frutas com mel e o vinho aquecido e adoçado com especiarias! Mais música e mais dança e alegria, pois a nossa princesa está perto do término da sua missão e o mundo mais perto de recuperar o equilíbrio perdido. Louvados sejam a Dama Branca, os Senhores do Ar e o Triúne acima de tudo!
Exclamações de alegria encheram o grande salão e as portas se abriram para os empregados com travessas pesadas e terrinas com comida quente. Os músicos começaram a tocar outra vez, e todos procuraram seus lugares nas mesas.
A Princesa Haramis descalçou as luvas e abriu o manto, sentando-se graciosamente no lugar indicado pelo Ouvidor Carimpole, com Magira ao seu lado. Fechou os olhos por um momento, sentindo-se outra vez atordoada. Tinha a impressão de estar enxergando através das portas fechadas do salão. As nuvens estavam mais baixas e delas caíam pequenos flocos de neve que derretiam ao contato do ar quente acima dos telhados, transformando-se em chuva, leve a princípio, depois mais intensa, tamborilando nos vidros das janelas, como se quisesse entrar. E junto com o ruído da chuva, Haramis teve a impressão de ouvir uma voz de homem murmurando seu nome.
A princesa abriu os olhos para a luz e a alegria do salão. Agora ouvia apenas as vozes dos vispis e sua música — que soavam de modo estranho, metade nos seus ouvidos, metade em sua mente.
Apanhou um copo de cristal que lhe estendiam, cheio de vinho, bebeu e tentou sorrir.
Repelido mentalmente, o feiticeiro reagiu mais com ironia do que com raiva.
— Divirta-se então com seus amigos vispis, Haramis! Mas vou chamá-la outra vez e mais outra, e vai chegar o momento em que terá de responder.
Seguro no seu refúgio no Monte Brom, com a tempestade de neve rugindo ainda lá fora, Orogastus procurava na sua biblioteca outras informações sobre a natureza dos três talismãs misteriosos.
O Livro das Profecias da Península eraa sua fonte principal, como sempre. Um tópico citava os talismãs, insinuando que seriam novamente reunidos e precipitariam então eventos miraculosos. Em outra profecia, conhecida por ele há muito tempo (e que Orogastus fizera questão de fazer chegar ao conhecimento do Rei Voltrik), as Três Pétalas do Trílio eram designadas como ”exterminadoras” do trono de Labornok, porém nada no livro insinuava uma ligação das princesas com os talismãs. Deixando de lado o livro antigo, passou a pesquisar sua grande coleção de referências místicas e taumatúrgicas.
Não encontrou nada nos vários livros de Labornok, nem nos volumes menos numerosos de Var e Raktum. A fonte mais antiga, a incunabular Cyclopedia dos Poderes das Trevas, que Orogastus trouxera da sua terra distante, Tuzamen, mencionava o assunto com extrema brevidade. Sob o título ”Talismã Triplo”, encontrou uma única frase. ”Um instrumento de grande potência, supostamente entregue à guarda dos vispis pelos Desaparecidos, em época imemorial.”
Sim! Mas o que ele fazia!
O mago continuou a pesquisa, procurando nos livros não especializados em magia. Finalmente, num pequeno livro, meio roído por lingits, um estudo sobre os nativos do principado da ilha de Engi (imaginem, Engi!), encontrou uma referência ao ”grande Cetro Triplo do Poder, que os vispis, o povo mais antigo dessa espécie, guardavam até que fosse requisitado, no tempo certo”. O reaparecimento do objeto misterioso fora ordenado pelos Desaparecidos, afirmava o livro. Exatamente o que ele devia fazer, nenhum ser humano sabia, mas abalaria as próprias bases do mundo.
”Então, temos três talismãs e três jovens procurando por eles”, pensou o feiticeiro, fechando o livro e levantando-se da mesa da biblioteca.
Com as mãos atrás das costas, foi até a janela e olhou para a tempestade. Não era uma nevada completamente fora da estação, pois as chuvas deviam chegar dentro de dez dias, portanto não podia atribuí-la à magia — especificamente, às artimanhas dos vispis, que eram amigos íntimos da Arquimaga Binah e que, segundo as lendas, sabiam controlar em parte as forças da natureza. De qualquer modo, aquela tempestade de neve enfatizava a urgência da sua procura, a necessidade de capturar e vencer as princesas, antes que as grandes tempestades de inverno o prendessem no seu refúgio das montanhas.
”Três talismãs, antes unidos na forma de um cetro e confiados aos vispis, mas evidentemente agora separados, e espalhados por toda Ruwenda. E as Três Pétalas do Trílio Vivo, as princesas, que juntando as três peças poderiam se tornar possuidoras de um imenso poder, de Três em Um...”
A indecisão atormentava a mente de Orogastus. Era evidente que estava em jogo muito mais do que a sobrevivência de Labornok e seu rei. O importante na verdade era sua grande ambição! Não seria melhor permitir que as princesas vivessem até o fim das suas missões, garantindo assim sua posse dos talismãs? Ou seu primeiro instinto era o mais certo — evitar a todo custo que elas tivessem sucesso, para que não pudessem reviver o poder e a força do Três em Um?
Mais informação! Precisava de mais informação, antes de resolver.
Orogastus caminhou até a lareira, onde o fogo desenhou reflexos de luz nos seus cabelos brancos. Com o corpo rígido, os braços abertos em cruz, recitou o encantamento com os olhos fechados. Quando os abriu, estrelas chamejantes cintilaram nas suas pupilas, mais vivas do que a luz do fogo.
Então Orogastus chamou sua Voz Verde, na Cidadela de Ruwenda, e ordenou que iniciasse uma pesquisa na grande biblioteca sobre tudo que se referisse aos talismãs, ao Trílio Vivo ou ao Cetro Tríplice dos vispis. A Voz devia contratar os auxiliares mais inteligentes que pudesse encontrar entre os labornoks.
— Mas não fale a respeito com nenhum ruwendiano — advertiu o feiticeiro —, e faça com que seus ajudantes jurem guardar segredo, sob pena de incorrerem na ira do rei.
— Obedecerei, Mestre Todo-Poderoso.
— Agora, diga-me como está o Rei Voltrik.
— Ele continua melhorando — disse Voz Verde. — A notícia de que o senhor chegou são e salvo à sua torre e localizou as princesas com seu espelho de gelo foi uma grande satisfação para ele. O rei envia suas congratulações e a aprovação real, além de votos pessoais de sucesso, e confia no seu zelo para continuar a procura das fugitivas. O Rei Voltrik pediu para ser levado à janela do seu quarto e abençoou os dois grupos de busca e naquele dia ele fez sua primeira refeição completa.
— Muito bom. Agora, informações sobre a ocupação e a pacificação.
— A Cidadela e vizinhanças estão muito quietas. Os ruwendianos não combatentes da classe média e os senhores do Knoll juraram lealdade a Labornok, embora com certa relutância. Não existe resistência organizada ao nosso governo. A maioria dos nobres sobreviventes, do reino do sul, fugiu para o pântano, mas não representa uma ameaça séria. Temos guarnições nas aldeias de Dylex que não foram queimadas, exceto nos enclaves remotos de Prok e Goyk, e recomeçaram os trabalhos da colheita e do processamento de mantimentos. Pode haver racionamento entre os locais, na estação das chuvas, mas nosso exército de ocupação será bem alimentado.
— Satisfatório. E a exportação?
— O mercado de Trevista foi reaberto. O comércio de medicamentos, especiarias, essências e tintas é atualmente um quarto do que era antes da guerra. Os mestres-mercadores esperam que melhore na próxima estação. O comércio de madeira ficará definitivamente parado até o fim das chuvas. A cidade de Tass, onde os produtos são armazenados, não foi tocada pela luta e seus artesãos entregaram-se covardemente, mas estão demorando a voltar ao trabalho. Grandes quantidades de madeira estão empilhadas nos pátios da cidade de Tass e na extremidade norte do lago, próximo à Grande Estrada. Tudo que precisamos para restabelecer o comércio é o reinício das caravanas de Labornok, o que será feito na estação da seca.
Orogastus suspirou.
— Muito bem. Estou satisfeito com você, minha Voz. Terá notícias minhas dentro de dois dias.
— Como queira, Mestre Todo-Poderoso. A imagem da Voz Verde desapareceu.
Orogastus dirigiu então sua Visão para o oeste e viu a grande frota do General Hamil subindo o rio, na direção de Trevista. O feiticeiro não se deu ao trabalho de falar com sua Voz Vermelha. Teria muito tempo para isso, quando os soldados chegassem ao Inferno de Espinhos. A essa altura teria confirmado a presença da Princesa Kadiya, por meio da sua consulta de dois em dois dias ao espelho de gelo, e elaboraria o plano para capturá-la.
Já havia recebido o relatório da Voz Azul informando que o grupo do Príncipe Antar não havia encontrado nem sinal da Princesa Anigel no primeiro dia de busca. Não foi uma grande surpresa para Orogastus. Os seus livros de referência explicavam o inusitado meio de transporte que ela estava usando — evidentemente uma inovação criada pela Arquimaga Binah. Com os poderosos rimoriks puxando o barco, Anigel provavelmente havia se distanciado muito dos inimigos, concentrados no Knoll da Cidadela. Agora, passados os dois dias de descanso do espelho de gelo, podia verificar a nova posição da princesa e talvez deduzir para onde ela se encaminhava à procura do talismã.
O feiticeiro vestiu outra vez a roupa do ritual com a máscara e voltou à Caverna do Gelo Negro para se dirigir ao maravilhoso espelho.
— Ô instrumento poderoso dos Desaparecidos, atenda ao meu pedido! — entoou ele.
O gelo azul iluminou-se lentamente — muito lentamente! — como uma vela com pavio perigosamente curto. A voz era um murmúrio áspero.
— Respondendo. Pedido... por favor.
Maldição! A luz estava trêmula. Talvez tivesse sido melhor deixar que ele descansasse mais tempo depois daquela primeira consulta, longa e cansativa. Bem, não podia fazer nada agora. Perguntaria sobre o paradeiro de Anigel e deixaria as outras duas de lado, por enquanto. Afinal, elas estavam ainda em lugares inacessíveis, ao passo que Anigel provavelmente estava ao alcance do Príncipe Antar.
— Visualize uma pessoa durante o tempo permitido pelos Poderes das Trevas — entoou Orogastus. — Indique no mapa a localização atual dessa pessoa.
— Pedido... aceito. Nome da pessoa. — A voz fantasmagórica ficou mais forte e o redemoinho dentro do espelho adquiriu um aspecto quase normal.
— Princesa Anigel, de Ruwenda — Orogastus visualizou a jovem em sua mente e esperou, ansioso.
— Procurando.
Apareceu o mapa, menos claro e menos brilhante do que da última vez, mas servia. Anigel estava no Lago Wum, perto da costa oeste do Pântano Verde, quase na metade do caminho. Evidentemente só podia estar a caminho da cidade de Tass, na extremidade do lago. Não podia ir para outro lugar. Porém, era muito estranho!
— Princesa Anigel, de Ruwenda. Localização, Sá cinqüenta e um dois, La vinte e dois quatro, no Gráfico Oma.
Então apareceu a imagem colorida, sem brilho, mas bem clara. O barco puxado pelos rimoriks movia-se a uma velocidade moderada entre o mato denso do Pântano Verde, na margem oeste do lago, onde pequenas sanguessugas das árvores, coisinhas pegajosas do tamanho de uma moeda, atormentavam a princesa e Immu, despencando da folhagem para dentro do barco.
— Se você pensa que essas sanguessugas incomodam — disse a imagem de Immu, no espelho, para a jovem enojada —, espere até chegarmos na Floresta Tassaleyo!
— Aah! — exclamou Orogastus, exultante. — Agora eu te peguei!
O espelho de gelo imediatamente o censurou.
— Péssimo controle. Use verificador de falhas para rever seu programa. Intervalo para recarregar.
O espelho ficou ofendido e a imagem desapareceu.
Mas isso não abalou a satisfação do feiticeiro. Tinha a pista básica para planejar a captura de Anigel, e sua voz ecoou de uma extremidade à outra da caverna gelada, agradecendo aos Poderes das Trevas.
A pequena e estranha raiz nadadora conduziu Kadiya e Jagun por algum tempo, descendo novamente o Rio Nothar, e logo virou para a esquerda, começando a subir um afluente sem nome. Dirigiam-se agora, sem dúvida, a um território proibido, a selva traiçoeira chamada Inferno de Espinhos.
Para não perder de vista a frágil guia, tinham de se aventurar por trechos abertos e desprotegidos do rio. Às vezes a água era tão rasa que Kadiya e Jagun desembarcavam e puxavam a canoa. Num desses trechos, Jagun encheu o barco de junco para que parecesse uma moita arrancada e carregada pela água.
Naquele primeiro dia, Kadiya deitou-se no fundo do barco, espiando através do trançado de junco. Jagun fez o mesmo quando começaram a ver pequenos grupos de skriteks. Kadiya tampou a boca para conter a náusea. Ouvira falar muito das temíveis criaturas que estava vendo agora, mas nada do que tinha imaginado era tão horrível quanto a realidade.
O primeiro grupo parecia estar caçando a pé e havia jovens entre eles. Ali, no seu território, nem sempre eles recorriam ao afogamento e caminhavam ousadamente à procura da vítima. Separaram-se, um grupo seguindo em frente para vigiar do alto de um monte de lixo, enquanto o resto caminhou na direção deles, batendo no chão os pés de três dedos, abrindo caminho no mato com os cabos de lanças rústicas e bordões. As criaturas da floresta saíam dos esconderijos, saltavam, corriam ou tentavam voar, assustadas com o barulho, e o outro grupo de skriteks as apanhava com facilidade. Não esperavam para levar a caça até seu acampamento, mas comiam imediatamente, algumas das vítimas ainda com vida, e eles brigando pelos pedaços maiores e melhores. Assistindo a isto, Kadiya sentiu na boca o gosto amargo da bile. Mas continuou a olhar e ver o que eles faziam. Pois havia aprendido uma coisa com Jagun: conhecer bem os hábitos do inimigo, seus movimentos, o que come, onde dorme, quais os costumes do grupo, aprender tudo isso e lembrar.
Enquanto se escondiam dos demónios do pântano, a guia cintilante aparentemente — por instinto, se isso era possível — procurou também um lugar mais seguro, deslizando devagar sob o abrigo da folhagem.
O segundo grupo de skriteks que encontraram passou mais tarde, quase no fim do dia. Dessa vez não ouviram gritos roucos, nem batidas com as lanças na vegetação cerrada. Caminhavam descontraídos, como que seguindo uma trilha que Kadiya não podia ver do barco. E havia mais alguém com eles! Um ser humano! Kadiya deixou escapar uma exclamação abafada e Jagun a advertiu com um gesto para ficar quieta.
Era sem dúvida um homem que caminhava ao lado dos skriteks, e não era prisioneiro. Estava vestido de vermelho, com a roupa molhada e suja de lama. Um capuz cobria sua cabeça e parte do rosto. Estava armado com espada e lança curta. Conversava com os companheiros monstruosos numa série de ruídos guturais que pareciam impossíveis para a garganta de um ser humano, aparentemente discutindo com um dos afogadores — apontando numa direção, enquanto o skritek queria seguir por outra. E ele venceu a pequena disputa.
Em toda a história, nas lendas, no folclore dos nyssomus e dos uisgus, das terras baixas e da Cidadela, jamais houve uma trégua entre os skriteks e outra raça. Agora via que Jagun estava certo. Voltrik ou Orogastus tinha aliciado aquelas criaturas horríveis para seu serviço. Porém, os skriteks eram famosos por suas traições. Era um homem bravo o que caminhava com eles, mesmo que estivesse servindo a uma causa assassina. Sua atitude confiante parecia sugerir que estava protegido por algo mais do que a força das armas ou a persuasão das palavras.
Deve ser uma das Vozes! Kadiya estremeceu. Levou a mão ao amuleto. Esconda-nos, pediu ela, silenciosamente. Proteja-nos!
Quanto ao que — ou a quem — aquele grupo procurava, Kadiya não tinha dúvidas. Não sabia onde estavam Anigel e Haramis, mas ela estava ali. Aquele bando de skriteks, farejando as trilhas, acompanhado por um dos servos de Orogastus, estava à sua procura. Era espantoso o fato de o acólito do feiticeiro não ter detectado sua presença. Certamente Orogastus tinha outros meios de busca, além dos olhos e dos ouvidos. Kadiya mal acreditou quando o bando passou sem nenhum sinal de alarme. Mas a magia do Trílio Negro não era vencida facilmente.
Kadiya esticou o corpo e olhou para a água. A raiz-guia boiava imóvel, como se estivesse sobre uma mesa. Kadiya tirou o amuleto de sob a blusa. O âmbar cintilava com força e a raiz verde, na água, cintilou em resposta, voltando à vida. Antes virada para a margem onde terminava a trilha, agora ela mudou o curso, até ficar paralela à margem oposta. Jagun apanhou a vara e o barco se moveu.
Seguiram muito próximo da margem, sempre alertas ao menor movimento, parando uma vez ou outra enquanto Jagun usava o ouvido e o olfato para detectar qualquer coisa estranha. Ouviam só o zunido dos insetos e as vozes finas dos habitantes da lama, os sons naturais do dia.
Porém, essa tênue confiança foi logo abalada. Chegaram ao fim da parte mais larga do rio e a uma barreira que parecia uma ilhota, erguendo-se alta da água. Na terra escura, a raiz-guia apontava direto para a frente. Um pouco acima deles, esqueletos negros de árvores apodrecidas formavam um emaranhado sobre o qual apoiavam-se o que pareciam trepadeiras. O chão estava coberto de plantas redondas, como bolas enormes, vermelho-azuladas.
Jagun apontou para a que estava mais próxima.
— São assassinas, alimentadas pela imundície deste solo. Evite chegar perto delas como evitaria uma faca envenenada, filha do rei.
O silêncio era completo naquele pedaço de terra onde não medrava qualquer forma de vida que não fosse maléfica.
A raiz-guia continuava apontando na mesma direção. Deviam continuar em frente.
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