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O ÚLTIMO CABALISTA DE LISBOA / Richard Zimler
O ÚLTIMO CABALISTA DE LISBOA / Richard Zimler

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O ÚLTIMO CABALISTA DE LISBOA

Primeira Parte

 

 

 

Em Dezembro de 1496, quatro anos depois de expulsarem do seu reino todos os judeus, os soberanos de Espanha, D. Fernando e Dona Isabel, convenceram o rei de Portugal, D. Manuel, a fazer o mesmo. Em troca, os monarcas espanhóis concediam-lhe em casamento a mão de sua filha. Pouco antes de a ordem de expulsão ser aplicada, D. Manuel, que não queria perder tão preciosos súbditos, decidiu converter os judeus portugueses. Em Março de 1497, mandou encerrar todos os portos de embarque e ordenou que se reunissem todos os judeus e os conduzissem à força à pia baptismal. Embora os relatos que chegaram até aos nossos dias refiram judeus que preferiram dar-se à morte e matar os filhos a converterem-se, a maior parte deles acabaram por se ver forçados a aceitar Jesus como o Messias. Apelidados de cristãos-novos, foram-lhes dados vinte anos para abandonarem os usos judaicos tradicionais, promessa essa que se veio a revelar falsa ao longo das duas décadas de intolerância e perseguições que se seguiram. Mesmo assim, muitos dos novos cristãos persistiram nas suas crenças. Em segredo e ao preço de riscos enormes, continuaram a recitar as suas orações hebraicas e a praticar os seus rituais, sobretudo os do Sabbat e das festas judaicas. Um desses judeus clandestinos era Berequias Zarco, o narrador dO último Cabalista de Lisboa.

As circunstâncias que rodearam a descoberta do manuscrito de Zarco em Istambul, em 1990, constam de uma Nota do Autor, incluída no início do texto.

Dessa mesma nota constam igualmente algumas observações quanto ao estilo adoptado na transcrição do texto original. No entanto, os leitores deverão desde já ter presente que, ao preparar o trabalho para publicação, esforcei-me por preservar o tom extremamente natural e directo do autor.

Uma mágoa contida recobria o aparo da pena com que escrevia quando iniciei a narração da nossa história. Estávamos no ano hebraico de 5267, 1507 da era cristã.

Egoisticamente, abandonei o manuscrito, por Deus não me ter recompensado com a tranquilidade da alma. Hoje, passados que são vinte e três anos desta magra tentativa de registar a minha busca de vingança, voltei a afagar as páginas abertas do pergaminho.

O que me terá levado a romper a jura de silêncio?

Ontem, por volta do meio-dia, bateram à porta, aqui, na nossa casa de Constantinopla. Mais ninguém da família se encontrava em casa e fui ver quem era. À entrada perfilava-se um jovem de pequena estatura, cabelo escuro comprido, olhos cansados, envolvido numa bela capa ibérica às riscas verdes e escarlates. Num tom hesitante, entrecortado, perguntou em português: «Acaso tenho a honra de falar com Mestre Berequias Zarco?»

- Assim é, meu rapaz - respondi - E tu poderás dizer-me com quem falo?

Curvando-se numa vénia, respondeu : «Lourenço Paiva. Cheguei agora mesmo de Lisboa e vinha com a esperança de vos encontrar.»

murmurando aquele nome para mim próprio, recordei-me ser ele o filho mais novo de uma velha amiga cristã, a lavadeira a quem tínhamos deixado a nossa casa em Lisboa, momentos antes de fugirmos daquela cidade tenebrosa há mais de duas décadas. Interrompi com um aceno a desnecessária apresentação que ainda desfiava e fi-lo entrar na nossa cozinha. Sentámo-nos nos bancos junto à janela que dava para uma roda de arbustos de alfazema e de murta no jardim. Quando perguntei pela mãe dele, entristeceu-me saber que tinha sido há pouco chamada por Deus. Numa voz melancólica mas orgulhosa ficou uns momentos a gabar-lhe as qualidades. Depois, partilhámos deliciados uma garrafita de vinho da Anatólia, enquanto me contava a sua viagem por mar desde Portugal e as suas primeiras e pasmadas impressões da capital turca. Mas a minha despreocupação havia de me deixar desprevenido para o que se seguiu: quando lhe perguntei a que devia o prazer da sua visita sacou da sua capa duas chaves de ferro pendentes de uma corrente de prata. Instantaneamente, percorreu-me um estremecimento de temor. Antes que eu pudesse falar, exibindo o radioso sorriso de um jovem oferecendo um presente a alguém mais velho, depositou as chaves nas minhas mãos e disse: «Se quiser voltar, Mestre Berequias, tem à sua espera a sua casa de Lisboa.»

Agarrei-lhe o braço para me segurar; o meu coração batia ao ritmo desta única palavra: lar. Sentia os dentes das chaves a morder-me o punho em que as tínha envolvido, abri a mão e inclinei-me para aspirar o cheiro a moeda antiga do metal. Memórias de ruas labirínticas e de olivais varriam-me de cima a baixo. Eriçavam-se-me os pêlos do pescoço e dos braços. Uma porta interior abria-se dentro de mim, dando acesso a uma visão: estava em pé do lado de fora da cancela de ferro que dava para o quintal nas traseiras da nossa velha casa de Alfama. Emoldurado pelo arco da cancela e erguendo-se no meio do quintal estava o meu tio Abraão, o meu mestre espiritual. Envolvido na sua túnica de viagem de lã inglesa de uma cor vermelho-viva, colhia limões do nosso limoeiro, cantarolando baixinho com um ar feliz. A sua pele morena, cor de canela, brilhava como ouro, como se a iluminasse a luz que precede o pôr do sol, e a mecha rebelde do seu cabelo de prata e os tufos das sobrancelhas cintilavam como por um poder mágico. Pressentindo a minha presença, suspendeu a melodia, voltou-se com um sorriso de boas-vindas e caminhou em minha direcção com o passo balanceado que normalmente só adoptava na sinagoga. Os seus olhos verdes calorosos, bem abertos, pareciam envolver-me. Com um trejeito divertido nos lábios, sem deixar de caminhar, começou a desapertar a faixa que rodeava a túnica, deixando a roupa cair sobre as lajes de ardósia que pavimentavam o quintal. Estava completamente nu, só com um xaile ritual a cobrir-lhe os ombros. Enquanto se aproximava de mim, o seu corpo começou a irradiar feixes de luz. O seu vulto tornou-se tão brilhante que os meus olhos se cobriram de lágrimas. Assim que a primeira gota salgada deslizou até ao canto dos meus lábios, parou e chamou-me pelo nome do meu irmão mais velho: «Mardoqueu! Sempre acabaste por ouvir as minhas preces!» Uma aura de chamas alvas envolvia a sua face. Com um gesto solene, como se me estendesse um versículo da antiga sabedoria, atirou-me um limão. Apanhei-o. Mas quando o meu olhar pousou sobre o fruto, o que vi foi uma cadeia de palavras portuguesas meio delidas: «as nossas andorinhas ainda estão nas mãos do faraó». Ao passar uma segunda vez os meus olhos por esta mensagem escrita no código dos cristãos-novos, ela elevou-se nos ares e depois quebrou-se com um ruído tilintante.

Surpreendi-me a olhar novamente as chaves que tinha na mão. Lágrimas cálidas enevoavam-me a vista. A porta para a visão tinha-se fechado.

Lourenço segurava-me pelos ombros, empalidecido e assustado. Inconscientemente, os meus lábios murmuravam palavras tranquilizadoras.

Para se poder compreender a revelação que me atingira, terei de explicar as palavras hebraicas mesiras nefesh. O seu significado é certamente a disposição para o sacrificio. O seu poder oculto reside na tradição dos cabalistas de estarem dispostos a arriscar-se nem que seja a uma visita aos infernos se com isso puderem ajudar não só a aliviar o sofrimento do mundo como também a proporcionar uma reparação na Esfera Celeste.

Com as chaves a palpitar na minha mão, comecei a compreender pela primeira vez o sacrifício de meu tio Abraão e como a ideia de mesíras nefesh tinha feito bater o seu coração naquele ritmo tão apaixonado, se bem que frágil. E, por razões que no correr desta narrativa se tornarão claras, vi também que a minha visão era uma ordem sua para voltar para Portugal a cumprir a missão que ele me tinha destinado desde sempre - um destino que eu não tinha seguido e nem sequer, antes, entendido.

Começava ao mesmo tempo a compreender que, ao voltar para Lisboa, me era dada a possibilidade de reparar o desvio do meu destino, de me entregar ao meu voto de mesiras nefesh, pois o regresso haveria seguramente de pôr em risco a minha vida. Com a Espanha nas garras da Inquisição e Portugal cada vez mais próximo das suas fogueiras, o meu retorno poderia bem significar o fim da minha vida com a minha mulher, Letiça, e os meus filhos, Zuli e Ari.

Assim, foi com eles no espírito que voltei a pegar na pena. Queria que todas as pessoas da minha família ficassem a saber as minhas razões para os deixar e o que se tinha passado vinte e quatro anos atrás e imposto tais razões ao meu coração. A história do crime que para sempre tinha coberto de trevas as nossas vidas e a perseguição do misterioso assassino era demasiado longa e intrincada para a ouvirem dos meus lábios. Nem eu queria correr o risco de deixar por dizer o que quer que seja.

Escrevo ainda para afastar de nossa casa o ar gelado do segredo, para que Zuli e Ari possam finalmente compreender as minhas respostas vagas quando, sendo eles crianças e adolescentes, me questionavam sobre os acontecimentos que tinham precedido a minha fuga de Lisboa. Não era fácil para eles aceitar que o pai fosse alguém com um passado que muitos na nossa comunidade de emigrantes judeus envolviam em sórdidas especulações. Com lágrimas nos olhos e os punhos raivosamente cerrados, ouvíram chamar-me de homicida e de herético. Quantas vezes, também, tinha a minha mulher sofrido com os rumores de que eu tinha sido seduzido em Lisboa por Lilit disfarçada de fidalga castelhana e que ainda hoje esse demónio reinava no meu coração?

Homicida, tinha-o sido. Confesso ter matado um homem e ter encurtado os dias de outro. Os meus filhos poderão ler em que circunstâncias o fiz e formar o seu próprio juízo. São já bastante crescidos para saberem tudo. Herético, acho que não. Mas que o seja, terão sido então os acontecimentos que brevemente relatarei que cravaram as setas da heresia na minha carne. Quanto ao meu coração, deixo àqueles que amo o dizer quem nele é a raínha. Possa a verdade, através destas páginas, vir sem receios ao de cima, como o apelo da trombeta de um shofar saudando Rosh Hashona. E possa eu, também, libertar-me finalmente dos meus derradeiros enganos e dos restos da máscara que usei para esconder o meu judaísmo quando novo. É verdade, espero ainda aprender muito sobre mim próprio à medida que a pena siga as minhas recordações; não será certo que sempre que damos livre curso à memória para sondar o passado somos sempre recompensados com tal conhecimento da nossa alma?

É certo que a culpa pela minha ignorância e pelos meus erros - e outros pecados meus mais terríveis - que me acompanhou até ao meu exílio em Constantinopla ainda hoje me persegue. Haverá os que dirão ser até essa a minha mais profunda motivação. Mas, ao mesmo tempo que vou gravando estes caracteres neste pergaminho polido, compreendo que o que me inspira é antes a possibilidade de falar através da distância de décadas para outros mais, ainda por nomear - os meus netos ainda não nascidos e os de minha irmã Cinfa. A estes nossos descendentes, gostaria de dizer: lede esta história e vereis porque saíram de Portugal os vossos antepassados; o enorme sacrifício que por vós fez o meu mestre; o que aconteceu aos judeus de Lisboa quando este século não ia além dos seis anos cristãos. Para que vivais, as vossas memórias deveriam apegar-se como órfãos a tais acontecimentos.

E mais importante ainda: se seguirdes a melodia e o ritmo destas palavras até à sua cadência final, compreendereis porque não devereis pôr os pés na Europa cristã. Não vos deixeis iludir: sob a superfície desta história corre o gume de uma parábola de advertência. Estou persuadido de ter sido a vossa segurança que levou meu tio Abraão a aparecer-me e a mandar-me a Portugal. Renunciasse eu a escrever, deixasse eu que a memória se apagasse em tépido silêncio, e poderiam pesar-me nas mãos também as vossas mortes.

Quanto à teia de mistérios que desenrolarei perante vós, haverá inimigos meus que dirão que não passa de arabescos intrincados nascidos do desejo de ocultar as manchas de sangue das minhas próprias mãos. A evidência porém haverá de apontar noutra direcção. Meu tio Abraão concedeu-me esta oportunidade de viver plenamente a minha própria vida e não hei-de desapontá-lo de novo. Se pois vos parecer complicado - ou mesmo contraditório - o que surge de entre a malha da mais modesta das minhas frases, sabereis que isso se deve ao meu desejo de vos apresentar os acontecimentos tal como eles verdadeiramente ocorreram, para que me vejais tal como sou. Pois o judeu não é nunca a criatura simples em que os cristãos sempre pretenderam fazer-nos acreditar. E um herético judeu não é nunca tão falho de espírito como pretendem os nossos rabinos. Somos antes tão profundos e abertos que nos pode caber na alma todo um rio de paradoxos e de enigmas.

Há ainda uma última confissão que deverei fazer: não tenho a menor ideia porque é que na visão meu tio Abraão me chamou pelo nome de meu irmão mais velho, Mardoqueu, e esta minha ignorância inquieta-me. E como se a aparÍção do meu mestre escondesse um mais profundo significado, uma camada interior a dar sentido às mortes de há vinte e quatro anos e que eu não consigo ainda apreender. Por que razão, por exemplo, só agora o meu tio me terá aparecido? Preciso seguramente de mais tempo para considerar o assunto. A não ser que ele pensasse que a luz do entendimento iria penetrando as minhas trevas à medida que fosse escrevendo a nossa história. Será que só atingirei a compreensão das subtis conexões entre passado e presente assim que o meu manuscrito chegar ao fim? Uma tal possibilidade faz-me sorrir, acalma um pouco as minhas dúvidas; é como se meu tio me exigisse um dia e uma noite de trabalho terreno antes de me abrir o derradeiro reduto do seu significado celeste! Continuo, pois, adiante...

A primeira vez que me ocorreu traçar as nossas atribulações numa página manuscrita, escondia-me, juntamente com a minha família, numa cave. O mistério, em toda a sua complexidade, acabava apenas de se me revelar. Foi aí que iniciei a minha história de vinte e três anos antes. E será aí que também agora começaremos.

Há três acontecimentos de que deverei falar antes de chegar à morte que mudou as nossas vidas: a procissão dos penitentes; a injúria a um amigo querido; e a prisão de uma pessoa da família. Tivesse eu entendido o alcance de tais presságios, tivesse-os eu lido como versos de um poema único escrito pelo Anjo da Morte, e teria talvez salvo muitas vidas. Mas a Ignorância traiu-me. Talvez que, lendo as minhas palavras ao fio destas páginas, sejais vós melhor sucedidos. Assim vos seja concedida a visão clara.

Sentai-vos pois no sossego de uma sala alindada por uma cercadura de plantas ou flores fragrantes. Voltai-vos para oriente, para a amada Jerusalém. Desatai com cânticos os nós do espírito. E deixai a luz ténue de uma candeia lançar a penumbra sobre as páginas que ides passando. Brubeem koldemuyay eloha! Abençoados sejam todos os que são feitos à imagem e semelhança do Senhor!

                       Berequías Zarco, Constantinopla Sexto de Av, 5290 (1530 da era cristã)

 

 

No ano de 1494 da era cristã, tinha eu oito anos, li a história dos íbis sagrados que tinham ajudado Moisés a atravessar um pântano etíope infestado de cobras. Com as tintas e corantes de meu tio Abraão desenhei um animal vermelho e negro com um bico em forma de foice. O meu tio pegou no desenho para o observar. «Olhos de prata?» - perguntou.

- Para reflectirem Moisés, de que outra cor poderiam ser? Meu tio beijou a minha fronte. «De hoje em diante serás meu aprendiz. Eu te ajudarei a transformar espinhos em rosas e juro proteger-te dos perigos que espreitam o caminho. As páginas, que são outras tantas portas, hão-de abrir-se ao nosso toque.

Como poderia então saber que um dia haveria de o negar tão completamente? Imagine-se que alguém se encontra fora do tempo. Que o passado e o futuro evoluem à sua volta e o impedem de se situar precisamente. Que o seu corpo, o seu receptáculo, ficou tolhido, liberto da História. Porque é assim que me sinto. Consigo ver claramente quando e onde o mal se desencadeou: quatro dias antes, no vigésimo segundo dia de Nisan, na Judiaria Pequena no bairro de Alfama em Lisboa.

Estava uma manhã resplandecente, como uma pérola opalina do colar daquele mês primaveril. Era o ano de 5266 para os cristãos-novos. O sexto dia de Abril de 1506 para os malditos cristãos de alma e coração.

Da escuridão do amanhecer desta quarta-feira, escondido nesta cave, recordo a alvorada de sexta-feira, os primeiros raios de sol como que anunciando as notas iniciais de uma fuga insana.

Escondida atrás de tais notas, disfarçada na memória, encontra-se a face que procuro.

O dia do nosso primeiro seder da Páscoa ergueu-se fusco e seco, como todas as manhãs ultimamente. Há mais de onze semanas que não recebíamos a benção da chuva. E também hoje não choveria.

A peste, essa, assediava-nos com calafrios os corpos e as almas já desde a segunda semana de Heshvan - há mais de onze semanas.

Os médicos feitos à pressa de El-Rei D. Manuel acharam que o gado era o ideal para absorver as essêncías que pairavam no ar e a que atribuíam a epidemia e assim duas centenas de vacas entontecidas pelo calor foram deixadas à solta a vaguear pelas ruas.

O próprio rei já há muito que desertara desta desolação, juntamente com a maior parte dos fidalgos. De Abrantes, três semanas antes, tinha promulgado um decreto ordenando a construção de dois novos cemitérios fora das muralhas da cidade para receber os que todas as semanas eram chamados pelo Senhor.

As almas dos mortos não se sentiam seguramente mais animadas com tal gesto. E não se podia levar a mal se os vivos não vissem neste decreto senão mais um sinal do vão pragmatismo e da cobardia do rei. Teria sido aí que as coisas começaram a mudar? Certamente. O dia-a-dia começou a revestir-se de uma ponta de cruel e desesperante loucura. Nos últimos três dias, vi um burro caído que o dono cegou com a sua adaga, com os olhos a esguichar sangue e vi uma menina que não tinha mais que cinco anos atirada aos guinchos do telhado de uma casa de quatro andares.

Os pobres, para atenuarem os tormentos da fome, tinham dado em comer uma papa de linhaça com água.

Tinha acabado de fazer vinte anos e era um pouco mais devoto do que seria desejável como prova a minha crença de que a nossa cidade tinha sido generosamente dotada com o grande significado da Tora. Para mim, em tudo havia uma terrível, eterna beleza e horror. Mesmo os pés imundos dos mortos recentes que emergiam das serapilheiras onde eram transportados nos carros pestilentos dos empestados possuíam uma graça triste e reverente. Através deles os nossos pensamentos voltavam-se para a mortalidade do Homem e para a nossa aliança com Deus.

Meu tio Abraão era o único que tranquilamente ignorava os pregadores escanzelados que corriam as ruas guinchando que Deus tinha abandonado Portugal e que não faltavam mais que cinco semanas para o fim do mundo (que poderia porém ser adiado, concediam, se as nossas dádivas em moedas fossem generosas).

O cenho franzido pela irritação, disse-me : «Não achas que o Senhor me haveria de dar um sinal se estivesse para fechar o último portão da Esfera Terrena?»

Frei Carlos, um padre amigo da família, não podia ainda contar-se entre esses desgraçados que tinham sucumbido completamente à demência que se apoderara da cidade. Mas parecia ser apenas uma questão de dias. «A seca e a peste... são filhos gémeos do Demónio!» - confidenciou-me ele num sussurro conspiratório, estávamos nós na arcada da Igreja de São Pedro.

Essa manhã tinha-lhe trazido o meu irmão mais pequeno, judas, para a lição de doutrina cristã. Estávamos os três a apreciar uma procissão de velas de flagelados que fustigavam as próprias costas com açoites de couro com bolas de cera nas pontas cheias de pedaços de lata e cacos de vidro colorido. Seguiam-se os frades dos conventos de Lisboa desfraldando estandartes azuis e amarelos bordados com imagens do Nazareno crucificado. Atrás, com um ar imponente, os membros dos grémios, as roupagens de seda enfunadas, sustentavam os andores com imagens de santos.

De ambos os lados da rua, apinhava-se uma multidão formando duas fitas irregulares recortadas contra as poeirentas fachadas brancas do casario que se estende até à Sé. Gritos a pedir água e misericórdia soavam como um coro antifonário. Podiam aí ver-se as muitas e desvairadas gentes da nossa cidade: cavaleiros e camponeses, barregãs e freiras, pedintes e escravos pretos, e mesmo marinheiros do Norte de olhos azuis.

Subitamente, bandos de cães vadios desataram a correr, sempre a ladrar, atrás de mim, Frei Carlos e Judas, dirigindo-se para ocidente, acompanhando o espectáculo. O padre semicerrava os olhos e murmurava orações agitadamente. Eu aspirava profundamente o gélido perfume de ameaça que pairava no ar.

«E esta noite - pensei - estaremos a lançar à imprevisível corrente deste mar de loucura o barco proibido da Passagem.» Assim era: as nossas comemorações deveriam ter começado exactamente há uma semana. Mas a maior parte dos judeus clandestinos, incluindo a nossa família, tinham adiado a Páscoa na esperança de navegar a salvo por entre as águas corruptas da maledicência dos cristãos-velhos à nossa volta.

Perto de nós, um lenhador imundo, com o cabelo desgrenhado, de repente desatou a gritar com quantas forças tinha: «Para termos a chuva dos céus, temos de ter mais sangue! Lisboa tem de se tornar numa Veneza de sangue!

Judas encostava-se às minhas pernas e eu apertei-lhe o ombro. Frei Carlos esfregava as mãos na sua testa abaulada, como para se proteger. Era um homem corpulento, atarracado, com uma pele suave e pálida, um nariz carnudo, uma rede de veias vermelhas nas duas faces, da muita bebida. Poucos o levavam a sério, mas eu considerava-o um bom amigo. Os seus olhos desolados poisaram-se em mim: «Não há nada de que os homens mais gostem do que profanar o sagrado, meu filho.»

De súbito invadiu-me um sentimento de tristeza pelo nosso fado. O cheiro da pimenta das índias entontecia-me, borrifos de sangue salpicaram as minhas calças e a cara de Judas. Um dos flagelados, soltando guinchos, tinha arrancado restos da pele dos ombros e esparzia especiarias sobre si próprio para merecer o aguilhão do amor de Deus. Pareceu-me reconhecer nos olhos aterrorizados de meu irmão o olhar de uma criança judia prestes a lançar-se na travessia do mar Vermelho. Fui percorrido por uma premonição fulgurante, inusual pela sua convicção: «Esperámos demasiado, os judeus de Lisboa, para reviver o êxodo e o Faraó apercebeu-se dos nossos planos.»

Quando voltei a mim, Frei Carlos, disfarçando o olhar sob uma franja da sua capa, alertou-me em voz baixa: - Ouve os lamentos daquele moço flagelado... é como se fossem os gemidos dos filhos do Diabo!» judas fitava-me com uma curiosidade assombrada e expectante. Quando as lágrimas assomaram aos seus olhos, peguei nele, limpei-o, desfiz-lhe os compactos anéis do seu cabelo negro como carvão. O meu irmãozito passou-me os braços em torno do pescoço e eu respondi a Frei Carlos: «Muito obrigado. Consigo e com estes loucos, acho que por hoje já recebemos instrução religiosa que chegue.»

Passei o capuz do manto de judas por cima da sua cabeça e consolei-o enquanto ele soluçava e fungava. Depois do último penitente se ter arrastado além da nossa antiga sinagoga, Frei Carlos acompanhou-nos através do largo. Na esquina ficava a nossa casa, uma construção baixa de estuque branco, com um rodapé azul-escuro a toda a volta. A afinidade entre as cores fez-me erguer o olhar para a gaze turquesa do céu da manhã e depois para a espinha do telhado, um horizonte de telhas fulvas mosqueadas, interrompido a meio pela chaminé, um cone branco escurecido pela fuligem com aberturas de ventilação. No pino destacava-se a silhueta de um trovador de chapa apontando o oriente, para Jerusalém. Um fino véu de fumo da nossa lareira pairava em torno dele e desenrolava-se na brisa meridional em direcção ao rio.

- Ainda bem que não temos lição hoje - disse Frei Carlos, quando abri a cancela de recortes de ferro que dava para a nossa casa e para a do meu querido amigo Farid e seu pai . Tenho de tratar com teu tio de umas coisas tristes que tenho andado a adiar.

Entrámos no recinto resguardado do nosso pátio. Rodeado de alvas fachadas e muros, pavimentado com lousas cinzentas, ostentava no meio um limoeiro circundado de moitas de loendros. Farid estava encostado ao alpendre, vestido com um camisão comprido, descalço, passando as mãos pelos negros anéis do seu cabelo que lhe pendia para os ombros. A mim, sempre me parecera ter sido dotado com todos os atributos de um guerreiro poeta dos desertos da Arábia - delgado, musculoso, de agudos olhos verdes de falcão, uma pele suave morena e uma inteligência ágil e imprevisível. A penugem que sempre lhe cobria o rosto fazia-o parecer ensonado mas atraente, e tanto homens como mulheres eram frequentemente cativados pela sua beleza escura. Fez-me um aceno de saudação com um gesto das mãos vigorosas habituadas a tecer tapetes. Apesar de ser surdo-mudo de nascença, nunca tinha sentido a mínima dificuldade em comunicar deste modo comigo; já de pequenos tínhamos inventado uma linguagem feita de gestos, talvez por termos nascido apenas com dois dias de intervalo e termos crescido juntos.

Ao mesmo tempo que respondia à saudação do meu amigo, conduzi Frei Carlos para a porta da cozinha, um arco em ogiva exuberantemente decorado com um rebordo de mosaicos com estrelas verdes e cor de ferrugem. Numa voz hesitante, o frade murmurou: «Esperemos que o assunto fique arrumado.»

Poderá uma casa ter um corpo, uma alma? A nossa parecia derribada e fatigada por séculos de chuva e de sol, mas protegendo tenazmente os que nela habitavam.

No nosso trabalho de iluministas, tanto eu como meu tio Abraão tínhamos frequentemente utilizado a nossa casa como modelo para desenhar as casas bíblicas. Para as paredes usávamos um alvaiade leitoso e para dar uma ideia dos tectos baixos e abatidos de avelaneira que rangiam de modo inquietante durante as chuvadas de Av e Tishrl usávamos o rico castanho feito de vinagre, limalha de prata e enxofre.

As rachas nos alicerces tinham causado uma inclinação do soalho para o lado do quarto de minha mãe, tão reduzido que pouco mais era que um corredor estreito, mas com a vantagem de possuir uma entrada para a Rua da Sinagoga, para as suas freguesas da costura. Virado a nascente, ficava o quarto de meus tios, acolhedor e cheio de luz. Entre os dois quartos, havia a cozinha, onde a nossa vida decorria à volta da enorme mesa de carvalho, e o quarto que eu partilhava com Judas e a minha irmãzita Cinfa. A nossa loja de fruta, que a julgar pela alvenaria tinha sido acrescentada dois séculos atrás, irrompia daqui e projectava-se sobre a Rua da Sinagoga.

Ao entrarmos, Frei Carlos fez uma careta ao sentir o cheiro acre das paredes pintadas de fresco. Enquanto ele e o meu irmão se dirigiam à cave à procura de meu tio, fui dar uma olhadela à loja da janela interior do meu quarto. Em baixo, no meio de cestos de figos e tâmaras, uvas e passas, laranjas amargas, avelãs e nozes e toda a espécie de frutos existentes em Portugal, estavam Cinfa e a minha mãe, Mira, a tirar azeitonas de barris de madeira com uma concha para as disporem em malgas de barro. Inclinei-me para fora da janela e grítei: «Abençoado seja Aquele que ilumina as manhãs da nossa Lisboa!»

Cinfa respondeu-me com um breve sorriso. Era uma rapariga desengonçada, estouvada, com uma voz quase aos guinchos que mais parecia sair-lhe por entre os dedos metidos na boca, mas que ultimamente se tornava graciosa. Tinha a bem dizer doze anos e era como se à medida que os seus lábios se tornavam discretamente mais carnudos com eles despertasse a beleza de uma mulher adulta. A menina que tinha passado horas a correr atrás dos coelhos e a apanhar rãs, tinha cedido o lugar a outra mais interessada em devanear em frente da sua tímida gémea de olhos de avelã que o espelho lhe apresentava.

Ao ver-me beij'ar Cinfa, minha mãe lançou-me um olhar seco, desagradado. Era uma mulher pequena, roliça, de olhar baixo e ombros curvados, com as formas dissimuladas como sempre numa larga túnica esverdeada e um avental preto. O cabelo castanho-escuro, salpicado de ténues mechas acinzentadas na fronte, estava coberto por uma touca de renda escura e apanhado num rolo atrás da cabeça, preso com uma fita de veludo de Jerusalém que seu irmão mais velho, meu tio Abraão, lhe tinha dado anos antes. O seu aspecto severo parecia retirar cor às suas faces, que nos últimos tempos se tinham transformado numa expressão de vão desafio a qualquer possibilidade de felicidade; para sempre haveria de chorar o seu marido há muito tempo enterrado e o meu irmão mais velho Mardoqueu. Para todos aqueles que tinham conhecido a jovem mãe que ela tinha sido, sempre na brincadeira, o seu ar consumido de agora era como uma prova de que a vida poupa as suas frechas mais aguçadas para as mulheres, que trazem - e choram... - os filhos que se vão.

- Alguma de vós viu o tio? - perguntei. Cinfa encolheu os ombros. A minha mãe passou a língua pelos seus lábios fendidos como se enfadada com a minha interrupção e abanou a cabeça.

Frei Carlos e judas vieram ter comigo à cozinha. «Não há sinais dele» disse o frade.

Sentámo-nos à mesa à espera. Subitamente vimos aparecer à porta do pátio minha tia Ester. Trazia um vestido preto de gola subida que parecia iluminar a sua face trigueira. Os seus expressivos olhos amendoados abriram-se horrorizados: - Que manchas são essas? - perguntou, apontando para as minhas calças - judas esteve a chorar?! - Cerrou os queixos numa expressão de crítica, fitando-me, enquanto ajeitava debaixo do lenço carmesim as madeixas dos seus cabelos tingidos de hena. Delgada e alta, de uma beleza feita de linhas e sombras cavadas, podia dominar uma sala com um único relance lançado do alto do seu elegante nariz.

- Um nadinha de sangue - comecei a explicar - Os flagelados iam... Sacudiu as mãos, chupando as faces de um modo que a fazia parecer uma dançarina mourisca.

- Não digas nada! Nem quero ouvir! Oh Senhor! Não se podiam ao menos lavar? Faz lá como quiseres, mas que a tua mãe não veja judas nestes preparos. Nunca mais se calava!

- Vai, vai-te lavar - concordou Frei Carlos, acenando-me para que me retirasse - já lhe tinha dito que era a primeira coisa que devia ter feito quando chegou a casa - acrescentou, dirigindo-se à tia Ester.

Lancei-lhe um olhar furibundo. Ele torceu os lábios num sorriso de soslaio e levantou as sobrancelhas, como se fôssemos rivais na disputa da afeição de minha tia. Voltando-se para ela, disse:

- Agora, quanto ao meu problemazito... Levei Judas comigo para o quarto, tirei-lhe as roupas e despi as minhas. Limpei-o com a solução de água e vinagre que a minha mãe tanto prezava, sentindo o seu corpo brando entre as minhas mãos. Era um miúdo de cinco anos, sólido, já musculoso e dono de uns sedutores olhos cinzento-azulados, que parecia destinado a tornar-se num Sansão de pele leitosa.

Pouco dado a abluções, disparou para a cozinha mal acabei de o vestir. Quando aí voltei, ao mesmo tempo que acariciava o seu pião, arrepanhava a f'ímbria do vestido de tia Ester, enquanto ela preparava o seu adorado café com leite de amêndoa e mel à moda da sua Pérsia natal.

Lá fora, o surdo estrondear e o ranger dos carros do entulho foi repentinamente abafado pela gritaria de uma mulher. Abrindo as portadas para ouvir, avistei uma carruagem vermelha que me era familiar desembalada pela rua abaixo.

Como sempre, os cavalos estavam arreados com um tecido prateado de franjas azuis. Mas o cocheiro, habitualmente um cristão-velho com a cara picada das bexigas, tinha sido substituído por um Golias loiro com um chapéu de aba larga de cor de ametista.

- Adivinhem quem aí vem - disse eu. Tia Ester afastou-me ligeiramente com o cotovelo e espreitou para fora.

- Oh, Senhor! Dona Meneses. Mais trabalho para a Mira - resmoneou -. Vê se não ficas aqui especado a olhar para ela - disse-me, apertando-me a mão.

Como resposta, fitei-a trocando os olhos. A carruagem suspendeu a carreira e OUviu-se a porta guinchar nos gonzos. Ouviu-se o ruído surdo dos passos de Dona Meneses na Rua da Sinagoga em direcção à salinha de minha mãe. Mal entrou em casa desatou a descrever num falso tom lírico a qualidade do tecido que tinha trazido. A sua voz transformou-se num murmúrio abafado quando minha mãe fechou a porta do quarto.

Tia Ester inclinou-se para nós, como quem vai confidenciar um segredo e disse:

- Só por milagre é que Mira pode tornar aquele horrível veludo cor de pulga em alguma coisa de apresentável! - E avançando para a lareira, trouxe para a mesa o nosso pão de challa, utilizandO uma pega de linho.

- Sempre dá para pagarmos o que devemos - disse eu.

- Isso é. E com a seca...

- É o demónio! - exclamou subitamente Frei Carlos numa voz de advertência.

- Isso não, Dona Meneses pode não ser afável, mas também não se pode dizer que pertença ao Outro Lado - repliquei.

O padre contraiu os olhos e fitou-me. A língua dardejou entre os seus lábios espessos e moles:

- Não falo dela, tolo! É o demónio que está por trás da peste e da seca!

- Você saiu-me um bom lunático! - disse-lhe tia Ester em hebreu, com aquele olhar de desdém capaz de gelar a água do banho - E veja se fala baixo, que não queremos espantá-la!

Os sinos de São Pedro começaram a tocar as terças. Frei Carlos murmurou qualquer coisa para si próprio, como cedendo ao apelo da fé, pronunciou uma rápida acção de graças e serviu-se de um pedaço de pão quente com os seus dedos roliços. Num tom de desaprovação, prosseguiu, falando na língua sagrada, de modo que Judas não pudesse compreender:

- Quer dizer, cara Ester, que o demónio não existe?

- O que quero dizer é que se volta a assustar o meu sobrinhito com os seus disparates... - e neste ponto tia Ester retirou da lareira o atiçador e apontou a sua ponta incandescente ao nariz carnudo do padre - ... hei-de fazer com que encontre o seu salvador cristão mais cedo do que contava! Vá assustar outro!

- A tua tia sempre teve jeito para ameaças - sussurrou-me Frei Carlos com um sorriso maldoso - Lembras-te do dia em que te levaram à força para te baptizarem na Sé? Lançou-lhes pragas em sete línguas diferentes... Hebreu, persa, árabe, português...

- Lembramos, lembramos - interrompi, erguendo a mão num gesto de desaprovação, tentando poupar-nos à evocação. Tarde de mais. Os olhos de tia Ester tinham-se tornado distantes e opacos, mergulhados numa paisagem interior. A sua mão deslizara sob o lenço carmesim e traçava o contorno da cicatriz cruciforme que lhe tinha sido imposta naquela amaldiçoada manhã do nosso baptismo forçado. Nessa ocasião, mais que nenhuma outra, tinha resistido aos beleguins mandados pelo rei para arrastarem os judeus até à Sé. Um dos guardas, querendo dá-la como exemplo, atirou-a ao chão e prendeu-lhe as mãos e os pés ao empedrado da Rua de São Pedro. Um frade dominicano empunhando um ferro incandescente tinha então gravado uma cruz na sua fronte, enquanto gritava, para que todos pudessem ouvir: «Eu te abençoo com o signo de Deus, Nosso Senhor!»

A mim, por meu turno, as crianças cristãs cobriram-me de sangue de porco e de serrim durante o caminho da cerimónia do baptismo até minha casa. Mas não podiam adivinhar a dádiva que me fizeram: esta humilhação abrasadora mereceu-me o olhar misericordioso do Senhor e tive então a primeira das minhas visões.

Este acontecimento maravilhoso ocorreu quando Farid me avistou no pátio. Rubro de vergonha, fugi dele. Assim que atingi a porta da cozinha, porém, o pressentimento de que um par de olhos me observava obrigou-me a parar. Quando me voltei, avistei uma luz branca no céu, ao longe, por cima do castelo mourisco. À medida que se aproximava, brotavam-lhe asas e vi então que aquela luminescência era um ovo etéreo. Uma garça resplandecente cor de rubi e negra e branca tomou forma e ao voar sobre a Judiaria Pequena o vento causado pelo bater das suas asas soprava impetuoso em torno a mim. Quando me olhei, o sangue e o serrim tinham desaparecido.

Meu tio disse-me que Deus me mostrara a minha pureza intocada e me revelara que o labéu cristão não passava de uma ilusão. Eu respondi:

- Não era Deus, era só uma ave.

- Não, Berequias - respondeu. - Deus aparece a cada um de nós sob a forma com que nós melhor O podemos apreender. Para ti, nesse momento, era uma garça. Para outro, pode surgir-lhe como uma flor ou mesmo uma brisa.

E tinha razão. Nos momentos de maior desalento, o Senhor sempre me apareceu na forma de uma ave, talvez por me ser mais fácil ver a beleza da criação nessas criaturas dotadas da capacidade de voar.

Recordando a sabedoria de outras palavras de meu tio, disse então a tia Ester:

- O demónio não passa de uma metáfora. É um modo de falar da religião. As palavras não podem ter sempre um significado corrente.

- Valha-me Deus, é ainda muito cedo para filosofias cabalísticas! - respondeu.

O tom áspero de tia Ester levou Judas a subir para o banco para junto de mim. Tinha os lábios cerrados naquela fenda de silêncio forçado que os brados e as palmadas de minha mãe lhe tinham ensinado. Ultimamente, tinha aprendido tudo o que pudesse evitar-lhe vir a ser o último, o mais pesado fardo para ela - atravessava na ponta dos pés, sem correr, a sua infância.

O alçapão da cave, num dos cantos da cozinha, abriu-se subitamente. Meu tio Abraão, o meu mestre espiritual, surgiu ao topo das escadas, a fronte banhada em suor e o cabelo despenteado apontando para cem diferentes direcções, como se tivesse atravessado alguma tempestade espiritual. Parecia um pequeno tentilhão, de movimentos rápidos, com o seu rosto pontiagudo dividido ao meio por um nariz comprido e anguloso que lhe dava um ar que divertia os estranhos, mas que aqueles que o conheciam associavam à sua inteligência penetrante. A sua suave pele morena, cor de canela, parecia fazer sobressair o tufo rebelde de cabelos prateados e as suas sobrancelhas espessas. Uma barba grisalha adoçava-lhe as faces, que ao se afundarem um pouco acrescentavam ao seu rosto a sombra da sageza da idade. Os seus olhos, particularmente depois das orações, luziam com aquela secreta luz verde, o subtil mistério que o marcava imediatamente como sendo um mestre cabalista.

- Quem temos por cá? - interrogou-se, semicerrando os olhos - Ah, é o nosso amigo frade!

- Mas de onde virá ele? - interrogou-se Frei Carlos, que nunca se habituara a ver meu tio aparecer saído do nada - Ainda há momentos andámos a ver na cave. Às vezes chego a pensar que é um lez.

- O que é um lez? - perguntou Judas.

- Um espírito que volta à terra para pregar partidas, um espírito brincalhão - respondi.

Meu tio fez um sorriso divertido e abanou a mão direita para mostrar que tinha cinco dedos - as lendas judaicas diziam que os lezim só tinham quatro dedos.

- Os meus movimentos acompanham os mistérios da vida - disse ele com um gesto displicente. Erguendo as sobrancelhas, fez um aceno inquisitivo em direcÇão às vozes abafadas que nos chegavam das traseiras.

- Dona Meneses - expliquei - Trouxe tecido para outro vestido. Desta vez púrpura.

Bebeu o café e, depois de breve bênção, devorou um ovo cozido. Shaharit, as orações da manhã, já haviam passado, mas voltou a dar-me os bons dias com um beijo nos lábios. Pondo Judas no colo, perseguia-o com beijos repenicados e rosnadelas de brincadeira. Habitualmente discreto, ao chegar o tempo da Páscoa meu tio parecia aturdido de afeição.

- Vim cá só para dizer que decidi não vender a safira - disse Frei Carlos com um suspiro que parecia um pedido de desculpa.

Os lábios de meu tio franziram-se na expressão que o fazia parecer ameaçador.

- Acho que devia reconsiderar - disse ele.

- Agora compra pedras preciosas? - perguntei. Fitei minha tia esperando vê-la protestar. Mas ela estava ocupada, com os olhos postos no «Livro de Salmos» que recentemente tinha copiado para um fidalgo cristão-velho, relendo-o atentamente. - Se tivéssemos dinheiro para isso, podíamos fechar a loja e deixar este deserto por umas semanas - acrescentei, voltando-me para meu tio.

- Uma safira talhada no tempo do Rabi Salomão Ben Cabirol - respondeu, dirigindo-me um olhar desafiador e exprimindo-se em hebreu, mas dizendo em português a palavra safira.

Salomão Ben Cabirol era um grande poeta judeu do século XI, de Málaga. «Acho que não estou a ver que caminho seguem os seus pensamentos» - disse eu.

- Ptab etatsmahah hefee shetíftah delet. Bate em ti como se batesses a uma porta - retorquiu meu tio.

Era um modo condescendente de me dizer para ficar calado e procurar dentro de mim uma resposta.

- Ainda é cedo para os seus conselhos místicos - repliquei. Como resposta, limitou-se a deitar água na minha tijela.

- Bebe que já não te zangas. Os fluidos limpam a bílis branca do teu sistema.

- Mais líquido e ainda me afogo - respondi.

- Hás-de afogar-te, mas é só quando desapareceres no oceano de Deus - disse, levando aos lábios um dedo a pedir silêncio. Depois, voltando-se para Frei Carlos, acrescentou num tom mais grave: - A safira pode perder-se, não sei se sabe.

- A responsabilidade é minha.

O meu mestre levantou judas do colo e sentou-o numa almofada persa.

- Senta agora aí - disse. E continuou, para Frei Carlos: - Perder-se para sempre, queria eu dizer. A sua posição põe-no em risco.

Ouvindo-o, compreendi que não era de pedras preciosas que se estava a falar. «Safira» era um nome de código para Sefer, livro, em hebraico. Estava sem dúvida a tentar comprar uma obra de Rabi Salomão Gabirol para o fazer sair clandestinamente de Portugal. Mas porque haveriam de falar em código dentro de nossa casa, onde estávamos a salvo dos olhos e ouvidos dos cristãos-velhos?

Frei Carlos acenou com um gesto de desculpa e levantou-se para se despedir. - Só um aviso: vou continuar a tentar convencê-lo - d'isse o meu mestre com uma firme determinação na sua voz.

O padre persignou-se com a mão tremente. No intuito de aplacar meu tio, num tosco esforço para fazer uma graça, replicou: - Os seus bruxedos cabalísticos não me assustam...

O meu mestre pôs-se em pé num salto, fitando Frei Carlos. Todos os movimentos na sala pareciam suspensos da sua cólera.

- Nunca pratiquei magia! - disse, recorrendo ao termo hebraico kabbalah ma@sit, a cabala prática, para designar estas práticas proibidas - E o meu amigo bem o deve saber.

Referia-se a uma ocasião em que Frei Carlos lhe tinha pedido um amuleto para matar um caluniador que andava a espalhar boatos sobre a fidelidade do padre à fé de Moisés. Meu tio tinha recusado, como é evidente, mas tinha recorrido pessoalmente ao Rabi Abraão Zacuto, o astrónomo do rei, para ver se não seria possível calar o celerado.

Meu tio avançou para a lareira e ficou a observar as unhas contra o lume.

O anel de topázio com o sinete em forma de íbis, símbolo do divino escriba, faiscou com um brilho interior.

- Quando Adão e Eva nasceram no Éden tinham o corpo, dos pés à cabeça, protegido por uma carapaça, como uma armadura - disse ele - Agora, as unhas são tudo o que nos resta dessa protecção original. Uma ponta insignificante, não acha? De pouco vale contra as armas da Igreja - acrescentou, voltando-se para Frei Carlos.

O padre encolheu os ombros, sacudindo a insinuação, e baixou os olhos.

- De nada lhe servirão se eles vêm a saber da safira.

- Preciso dela - disse Frei Carlos, com uma nota de tristeza na voz Estou certo que me compreende. É a última... - As palavras foram-se diluindo. Levantando-se, acrescentou secamente - Tenho de me ir preparar para a missa.

- Ah, bastardo! - gritou-lhe meu tio - A ficar com uma safira que há-de fazer falta a nossos filhos!

Quando voltou a muralha das suas costas a Frei Carlos, o padre baixou a cabeça como que a pedir o perdão dos restantes e saíu.

Também podia ser mais compreensivo - disse a meu tio. ele repeliu a censura e então acrescentei: - Porque estavam a falar em código? Não era possível que Dona Meneses nos ouvisse lá atrás. Além do mais, ela deve saber muito bem que continuamos a praticar o judaísmo. Se isso a incomodasse, há muito que nos tinha denunciado às autoridades.

- O frade não confia em ninguém. «Até os mortos usam máscara, diz ele. E pelo meu lado, quanto mais aprendo, mais acho que ele tem razão - coçou a cabeça e franziu o sobrolho - Vou apresentar os meus cumprimentos a Dona Meneses.

Lançou-me um olhar imperativo e saiu.

- As pessoas esquecem muito depressa - suspirou tia Ester.

- Que quer dizer com isso? Aspergiu o pescoço com água de rosas, atando-lhe depois em torno um lenço de linho.

- A peste. Desaparece por uns anos e as pessoas já imaginam que é qualquer nova maldição do Demónio - passou a mão tremente pela fronte e pareceu meditar nas suas palavras - Talvez seja uma benção o podermos esquecer. Imagina se ...

- Eu não esqueço! Nem uma palavra, nem um gesto, nem uma única ferida!

O rosto de tia Ester contraiu-se; sabia que me referia a meu pai e a meu irmão mais velho, Mardoqueu. No inverno de 5263, pouco mais que três anos antes, a faca da peste tinha-lhes arrancado a pele, deixando-os expostos aos ventos húmidos de Kislev. Meu pai, agonizando cheio de feridas e pústulas abertas, tiritava de morte no sexto dia de Hanukkab. Passado um mês, o esqueleto vivo que tinha sido Mardoqueu morria-me nos braços.

Ficámos em silêncio, minha tia e eu. Instantes depois, Dona Meneses deixava a nossa casa com o habitual cesto de fruta que sempre levava destas visitas.

Vou ver se Cinfa precisa de ajuda na loja - disse tia Ester, e saiu da sala no seu passo rígido, ligeiramente inclinada para diante. Fiquei a observar Judas que brincava na entrada com o pião até que meu tio se voltou para mim e me disse: «Preciso da tua ajuda na cave.»

Passando o alçapão, descemos os cinco degraus de pedra grosseira, um por cada livro da Tora, até um pequeno patamar com uma menora de mosaicos verdes e amarelos no meio. Depois de outra passagem, descemos ainda doze pequenos degraus de alvenaria, um por cada livro dos profetas. Desde o encerramento forçado da nossa sinagoga no ano cristão de 1497, tínhamos aqui o nosso templo. Ao descermos, tirei de uma prateleira um kipá azul e pu-lo na cabeça. Meu tio puxou dos ombros o seu xaile ritual e cobriu a cabeça com ele, formando um capuz. Juntos entoámos um cântico: «Pela Tua infinita misericórdia, entrarei em Tua casa.»

Era uma cave baixa, com um pavimento de cinco passos de largo e o dobro de comprido, revestido com as mesmas toscas lajes de xisto da entrada. Poderia testemunhar pelo menos mil anos de cânticos e no ar gélido e bafiento, hermeticamente contido naquelas paredes onde mal se vislumbravam os azulejos com formas entrelaçadas em azul e amarelo, parecia pairar o perfume de memórias antigas. No topo da parede a norte, à altura do pavimento da entrada, uns postigos em ilhó deixavam entrar uma luz suave e pálida. Ao fundo das escadas, que ladeavam a parede a oriente, ficava o círculo do nosso tapete de orações. Em torno dispunham-se sete tufos de plantas verdejantes em vasos de barro, um por cada dia da Criação. Três eram de murta, três de alfazema e o restante, simbolizando o Shabat, era uma mistura dessas duas plantas. A metade da sala além do tapete, virada a poente, era o reino dos nossos trabalhos terrenos, onde tia Ester copiava manuscritos e eu e meu tio os decorávamos com iluminuras. As nossas três escrivaninhas de castanho finamente polido ficavam face à parede a norte, a reduzida distância umas das outras, de modo que podíamos ver o trabalho uns dos outros. Cada um de nós dispunha de uma cadeira de espaldar alto. No lado oposto, face à parede a sul, viam-se dois lavatórios de granito cavados no solo.

No meio ficava o tosco armário de carvalho onde guardávamos o material - tinha uns pés em forma de patas de leão e oito fiadas de dez gavetas, baixas e compridas, como as caixas de tipos das oficinas de impressor. A última fiada, em baixo, tem só duas gavetas, onde guardamos as folhas de ouro e o lápis-lazúli.

O que de mais estranho havia na sala, era sem dúvida o espelho redondo, como uma bandeja, colocado na parede, por cima da escrivaninha do meio, onde se sentava meu tio. O espelho, com uma moldura de castanho, possuía uma superfi'cie de prata, côncava, o que tornava achatadas e distorcidas as imagens que reflectia. Costumávamos mirá-lo vezes sem conta ao iniciarmos as nossas meditações, como um meio de libertarmos o espírito da vista habitual, especialmente da imagem familiar do corpo. Este espelho tinha-se tornado de certo modo famoso nas imediações por se dizer que no dia seis de junho de 1391 da era cristã tinha ressumado sangue pela morte de dezenas de milhares de judeus mortos nas perseguições que então assolavam a Ibéria. A verdade é que o bisavô Abraão sustentava que o espelho vertia uma ínfima lágrima de sangue, invisível ao olhar, sempre que um único judeu morria. Acreditava que o sangue se tinha tornado visível na época das perseguições contra os judeus por então terem matado tantos dos nossos. Foi assim que desde então passaram a chamá-lo «o espelho que sangra».

Todos esperávamos que nunca mais tivesse ocasião de nos revelar os seus poderes.

- Precisava que mijasses - disse meu tio, encaminhando-me para os lavatórios no chão.

- Agora? - perguntei.

- Aqui - disse, pegando numa infusa que estava à beira da bacia. É Primavera. Preciso do mijo de alguém virgem.

Todos os anos, exactamente antes da Páscoa, meu mestre fabricava novos corantes e tintas para as nossas iluminuras. O ácido da urina, ao atacar certos elementos criava cores diferentes, em especial um rosa finíssimo, quando se misturava com pau-brasil, alúmen e alvaiade, e um carmim brilhante se combinado com cinzas de videira e cal viva.

- Há muito que deixei de ser virgem - disse eu, enquanto a imagem de Helena se tornava presente tal como a vira nas colinas que dominam o grande convento em construção a ocidente de Lisboa. Tinha esperado tão longamente pela sua decisão! Até quase pensar que o amor e a vida seriam para mim diferentes do que eram para os demais. E de um momento para o outro, quando tudo parecia perdido e o barco que a deveria levar para Corfu estava já ancorado em Lisboa, os braços dela abriram-se para mim como os portões da graça de Deus.

- Alguma barregã na Estalagem da Flor da Rapariga? - perguntou meu tio, despertando-me do meu devaneio. Vezes sem conta tinha-me recomendado uma casa de má nota fora das muralhas da cidade.

Assim que respondi «Helena», levantou as sobrancelhas numa expressão maliciosa: Seja como for, és o que posso arranjar de mais parecido com alguém virgem, sem ter de revelar que continuamos a fazer iluminuras de livros hebraicos. judas é ainda pequeno, eu demasiado velho e a urina das mulheres é forte de mais, especialmente a de tua tia. Usei-a há muitos anos quando nos casámos: ficou tudo preto como a alma de Asmodeu.

Trocámos um sorriso de troça.

- Agora percebo porque esteve a encher-me de líquidos - disse eu. Enquanto as minhas águas jorravam quentes e espumosas nos jarros, meu tio dirigiu-se para as escrivaninhas no passo bamboleante que costumava adoptar nas sinagogas e começou a espanejá-las.

Depois de ter urinado em seis dos jarros de barro e de os ter tapado cuidadosamente, coloquei-os nos lavatórios. Meu tio lavou as mãos e sacudiu-as para o tufo de murta e alfazema do Shabat.

- Diego está atrasado. Não percebo - disse, com um ar espantado. Diego, o impressor, era um amigo da família que meu tio andava a introduzir no círculo de iniciados, o seu grupo de místicos que se reuniam secretamente para discutir a Cabala. Apesar de ser um homem robusto, de barbas grisalhas e uns olhos castanhos dominadores como de um patriarca, as fogueiras da Inquisição de Sevilha tinham-lhe reduzido o coração a cinzas quatro anos antes, levando-lhe a mulher e a filha; e ele próprio só a muito custo conseguira escapar. Tanto eu como meu tio procurávamos por todos os meios animá-lo e nesse mesmo dia tínhamo-lo convencido a ir dar um passeio até à mata de Sintra, de maneira a podermos ainda desenhar os grandes grous brancos antes de eles imigrarem para o Norte.

- Talvez se tenha demorado em casa da família da Senhora Belitura disse eu. Era uma vizinha e amiga de Diego que dois meses antes tinha sido espancada até à morte em Xabregas, na parte oriental da cidade. Ultimamemte, Diego costumava passar bastante tempo com os seus familiares. Meu tio encolheu os ombros e pôs as suas mãos em concha no meu nariz.

- É para te refrescar - disse, enquanto eu aspirava o odor da murta nos seus dedos - Se daqui a pouco não tiver chegado, vamos a casa dele ver o que se passa. Ah, e quando saírmos tenho de passar na Rua Nova dos Mercadores.

Prometi a Ester ir entregar o «Livro de Salmos» que ela terminou.

- Dou-lhe só o tempo de eu e Diego bebermos um copo de vinho na Taverna do Sótão!

Eram umas águas-furtadas prestes a desabar, mas onde serviam vinho casher às escondidas. Os lábios de meu tio desenharam uma vaga mas divertida repreensão.

- Olha, agora também me quer dar ordens! - observou.

Como única resposta compus a expressão de enfado com que irritava meu pai quando ele se punha a falar-me das aulas de Talmud.

- Está bem, só meia hora - concordou meu tio. Inclinou-se para mim de modo a poder passar as mãos em bênção sobre mim. Seguidamente, enquanto eu tirava corantes e tintas do armário, retirou o ferrolho da geniza, o local onde tradicionalmente se guardavam os livros antigos nas sinagogas. A nossa era um poço, aí de três pés de largura por quatro de comprimento, aberto no pavimento na orla do tapete de orações. O conteúdo estava sempre a mudar: os livros levados para fora de Portugal depressa eram substituídos por outros descobertos por meu mestre e que ele logo comprava ou pedia.

Meu tio entrou na geniza para trazer o nosso trabalho. Quando voltou a subir, já eu estava a arranjar os meus pincéis e as cores. Colocando cuidadosamente o meu manuscrito no tampo ligeiramente inclinado da minha escrivaninha, passou a mão à roda da minha nuca enquanto me contava uma parábola que era também uma sugestão sobre o modo de colorir a minha mais recente iluminura, um dos contos das famosas «Fábulas da Raposa». Quando tentei começar a interpretar as suas palavras, os seus lábios desataram a tremer e senti na pele a sua mão gelada.

- Que foi, meu tio? - perguntei. Esfregou os olhos com ambas as mãos, como uma criança, respirou profundamente como que a tomar fôlego:

- Estás tão crescido - disse suavemente - Já meu igual em tantas coisas. Se bem que noutras - abanou a cabeça, sorrindo melancolicamente -.

Há tantas coisas que queria dizer-te... Beri, Deus poderá em breve pedir-nos que sigamos rumos diferentes - enfiou a mão na algibeira e sacou um rolo de pergaminho - Peço-te que aceites este pequeno presente - disse, estendendo-mo.

O rolo desenrolou-se numa fita de pergaminho onde estavam gravados em hebraico ambos os nossos nomes em finas letras douradas.

- Foi Ester quem mo fez - continuou. Segurou-me pela nuca e numa voz ansiosa acrescentou: - Se alguma vez precisares de mim, onde quer que estejas, por mais longe que seja e por mais desesperadas que sejam as circunstâncias, envia-me esta fita que eu vou ter onde estiveres - pôs a outra mão na minha cabeça, fixando-me nos olhos com insistência - E se, por qualquer razão, não me encontrares ao teu alcance na terra, segura-o nas mãos e reza que eu hei-de fazer tudo para te aparecer.

Sentia-me tão tocado com tal mercê, com a generosidade de meu mestre, que a minha garganta parecia queimar como que em ânsias desesperadas. As lágrimas embaciavam-me a sala. Tive de engolir por diversas vezes antes de poder sussurrar:

- Mas nunca havemos de nos separar. Hei-de sempre...

- Mais tarde ou mais cedo, os mais novos têm de se separar dos mais velhos - disse meu tio - Hás-de seguir o teu caminho e hás-de depois voltar. Mas não há-de haver nenhum demónio capaz de me travar se estiveres em perigo! - retirou a mão da minha cabeça e acariciou-me no rosto - Agora vá, temos de trabalhar.

- Mas não há nada que eu possa ... ? Estendeu a mão e apontou para o meu manuscrito:

- Ai do mestre de Cabala que responda a todas as perguntas do seu aprendiz! Toca a trabalhar!

Momentos depois, quando avivava as patas de um cãozito na minha iluminura com pequenos toques de tinta negra, um berro como vidro a partir-se cortou o ar. «Corre!» - gritou meu mestre.

Subi a escadas de um pulo. A cozinha estava vazia. De fora, vozes alteradas ressoavam contra os muros. Saltei do meu quarto para a loja, precipitei-me para a Rua da Sinagoga. Enquanto guardava o meu kipá, avistei tia Ester ajoelhada junto ao nosso amigo Diego, que gemia. De um corte no seu queixo barbudo o sangue corria para as mãos de minha tia.

 

O impressor Diego foi o primeiro a contribuir para o rio de sangue que durante os dias que se seguiram haveria de nos conduzir à paisagem de um deserto apenas rodeado de mágoa. Mas por enquanto essa geografia de morte era ainda um segredo para nós.

Pela sua fronte corriam torrentes de suor e as faces estavam sujas das marcas da eterna poeira da cidade. O sangue do corte no queixo fluía pelo pescoço. Por entre ataques de tosse, procurava recuperar o fólego.

- Andava a passear por aqui... só um passeio - disse ele em português. Parei perto do rio, no Chafariz dEl-Rei a lavar as mãos.

Tia Ester desapertou-lhe a gola do gibão enodoado e limpou-lhe o peito com um farrapo que rasgou da sua blusa. Reparei no traço escuro de uma cicatriz antiga que tinha no peito, por baixo da clavícula, que parecia ter sido escavada por algum bicho.

Em torno a nós, começaram a juntar-se vizinhos, a bisbilhotar entre si.

- Dois rapazes... - continuou Diego - Começaram aos berros que eu estava a envenenar o poço com essência de peste. Desataram a correr atrás de mim. Caí. Atiraram-me pedras. «Apanhem o rabino de rabicho! Apanhem o rabino... Quem me salvou foi um homem moreno com um gorro azul. Era alto, forte...

No seu desespero, as últimas palavras procuravam o socorro do hebraico. «Fala português» - murmurei-lhe, enquanto o deitávamos no empedrado da rua.

O turbante de Diego tombou e reparei então pela primeira vez, por entre os tufos de cabelo que lhe cobriam as orelhas e que começava a rarear e a ficar grisalho, os sinais que cobriam a sua cabeça. Tinha-lhe caído um papel dobrado. Pensando que podia ser alguma mensagem ou alguma fórmula de orações que o poderiam incriminar como judeu praticante, apanhei-o e enfiei-o na grande bolsa que sempre trazia pendurada ao pescoço e me servia como uma espécie de bornal. judas encostava-se a mim, gelado de medo, e tive de o sacudir para que fosse chamar o Doutor Montesinhos. Meu tio reuniu-se a nós e, depois de uma breve oração, disse:

- Vou lá dentro ver se posso arranjar algum remédio.

Ainda tentei manter fechado o lanho, com os dedos apertados em torno da ligadura improvisada de minha tia, mas o tecido depressa ficou tinto de sangue. Tia Ester foi a correr buscar água limpa, enquanto eu rasgava tiras da minha camisa para substituir as ligaduras. Meu tio chegou com Farid. Traziam extractos de consolda, bagas de loureiro, gerânio, goma e argila, goma arábica e água sulfurosa. Mas apesar de todas estas substâncias adstringentes, o sangue não coagulava.

- É esta maldita barba! - resmungou meu tio - Não consigo chegar à ferida. O Doutor Montesinhos vai ter de te cortar a barba - disse ele para o ferido.

Diego, que pertencia à casta sacerdotal de Levi, ao ouvir isto, deu-nos um empurrão:

- Não o permitirei! - gritou em hebraico - Tenho de ter barba. É proibido...

- Há levitas sem barba - observei, mas Diego limitou-se a gemer. Dirigindo-me a meu tio, sussurrei: - Um ataque em pleno dia. É mau sinal. Mais umas semanas de seca e...

- Como podes ter a certeza que não foi planeado? - disse meu tio num tom irado.

Ia a perguntar o que queria dizer, mas uma sombra projectando-se sobre nós suspendeu as minhas palavras. Dois homens a cavalo conduzindo uma carruagem branca e dourada fitavam-nos do alto. Os capacetes prateados e as grevas cintilavam com os raios do sol. Pendões escarlates e verdes decorados com as armas do rei drapejavam na brisa seca.

- Que desordem vem a ser esta? - perguntou asperamente um deles. Foi só nesse momento que reparei que meu mestre envergava ainda as suas vestes rituais, com um xaile azul e branco por cima dos ombros, o braço esquerdo envolvido nas fitas dos seus tefelins e uma caixinha de orações em couro colocada na fronte por cima do seu olho espiritual. Tal infracção podia valer-lhe o exílio como escravo na África portuguesa. Através de gestos nas costas, fiz sinal a Farid para o levar dali.

- Feriram este homem - disse eu.

- ÉS cristão-novo?! - perguntou o cavaleiro.

O meu coração deu um salto, quase me forçando a negar. Pelo canto do olho, avistei Farid arrastando consigo meu tio através da multidão.

- Perguntei-te se eras cristão-novo! - repetiu o cavaleiro num tom ameaçador.

Atrás dele, a porta da carruagem abriu-se. Um silêncio cobriu a multidão. Vimos sair um homem magro, delicado, com uma túnica violeta e calças soladas de duas cores, preta e branca. A gola franzida de seda dourada parecia oferecer a sua face descarnada e maléfica como se fosse uma bandeja. Os seus olhos negros vigiavam a multidão como à procura de um inocente para o punir.

- Levamo-lo connosco. Deve haver um hospital perto dos Estaus - disse num castelhano imperioso, agitando a mão onde se viam dois anéis de cabuchão de esmeralda do tamanho de amêndoas.

O Palácio dos Estaus, uma construção torreada de pedra cintilante, servia de pousada aos nobres em visita oficial a Lisboa.

- Senhoria, o novo Hospital de Todos-os-Santos fica já ali no Rossio - disse eu - A menos de cem jardas do vosso destino.

Diego tinha uma compleição de urso, com mais de seis pés de altura, e foi preciso um guarda e um dos cocheiros de ar mourisco para o conseguir levantar. No interior da carruagem, face ao fidalgo castelhano, sentava-se uma dama jovem com uma trança arranjada em bico e com um vestido de seda cor-de-rosa. Era loira, de tez clara e face redonda. Inclinou-se para Diego com uma expressão de genuína inquietação e o seu olhar inteligente fitou-me à procura de uma explicação.

- Assaltado por marinheiros estrangeiros - menti. Impressionou-me o seu súbito olhar de surpresa, a impotência do seu desespero, e a familiaridade do seu rosto baniu a noção de tempo, tal uma intuição penetrante - uma shefa, um influxo da graça de Deus. Semelhava um versículo da Tora que subitamente se tivesse despojado das suas roupagens e se nos revelasse num rasgo de nu entendimento.

Ao lado da jovem estava um mastim, vestido com uma indumentária de trovador azul e amarela. No fundo vermelho da carruagem repousava um cofre de prata. Mas só me apercebi destes últimos pormenores quando o castelhano ordenou ao cocheiro para seguir. Afastei-me a observar a cena, como muitas vezes faço para a imprimir vividamente no que meu tio chama a minha memória de Tora. Quando a porta se fechou, o fidalgo inclinou-se para mim através da janela e murmurou numa voz com cheiro a vinho:

Não tenhas medo. O teu amigo não morre durante as festas - E para os cocheiros gritou: - Toca a andar! Temos aqui um ferido!

No meu coração a curiosidade e a apreensão disputavam-se enquanto os cocheiros chicoteavam os cavalos. Quem seriam aqueles castelhanos? Saberiam que éramos judeus secretos?! Estaria o fidalgo a troçar de mim ou antes a revelar-me a sua afinidade? Por instantes, ainda vi uns dedos tão delicados como os de uma criança agarrados à janela da carruagem até ela desaparecer ao fundo da rua. Correram então uma cortina que silenciou as minhas questões.

Encontrei meu tio no pátio, a jogar xadrês com Farid. Tinha no regaço o xaile cuidadosamente dobrado, com os tefelins por cima.

- Antes que as minhas forças sejam dizimadas por este pagão, vamos ao hospital ver se Diego está a ser bem tratado - disse-me, mal me avistou. Farid, lendo-lhe os lábios, riu-se. Como queríamos vestir roupas para sair, dirigimo-nos a casa e, ao entrar na cozinha, perguntei-lhe porque dissera que o ataque a Diego podia ter sido planeado.

- O que é que vive durante séculos, mas que pode morrer ainda antes de nascer? - perguntou, à laia de resposta.

- Nada de enigmas, queria era que me respondesse - disse eu, rolando os olhos.

Ele franziu o sobrolho e dirigiu-se para o seu quarto. Uma semana mais tarde, descobri a resposta ao paradoxo de meu tio.

Tivesse eu compreendido mais cedo, teria podido mudar em ouro o nosso destino de chumbo?

Escolhemos um caminho que bordejava o rio, pois a inconstância do vento atormentava-nos agora com o cheiro de uma das esterqueiras da cidade fora das muralhas. Os cemitérios estavam a abarrotar e ultimamente os escravos africanos que morriam eram atirados para cima dos montes de esterco. Tudo o que os abutres e os lobos não conseguiam apanhar a tempo entrava em putrefação, o que, misturado aos excrementos, produzia um fedor de pesadelo que nos causticava a pele e os ossos como algum ácido desconhecido.

Ao passarmos na Porta do Chafariz dos Cavalos, ocorreu-me ao espírito o arrepio metálico que os portões da judiaria Pequena provocavam quando encerravam os judeus durante a noite. Um brado vindo de cima fez-nos voltar. Do cimo dos degraus da Sinagoga, o nosso antigo rabino, Fernando Losa, fazia-nos sinal para esperarmos. Depois da sua conversão, tinha-se tornado num mercador de alfaias do culto cristão, sendo mesmo o fornecedor do bispo de Lisboa, maldito seja.

- Só nos faltava mais este - resmunguei - Que terrível pecado estaremos a expiar?

Meu tio deu uma gargalhada. De repente ouviu-se uma mulher gritar «Aí vai água!» e encostámo-nos à parede enquanto uma chuva de porcaria se precipitava de uma janela do terceiro andar.

Losa reuniu-se a nós, a resfolegar, exibindo sobre os seus ombros estreitos uma bela capa escarlate bordada com uma gargantilha de pérolas. Magro, de nariz ponteagudo, com uns olhos cavados traiçoeiros, uma calva brilhante e uma fenda torcida como boca, mais me parecia um títere sinistro que tivesse sido concebido para perseguir ratos nos subterrâneos. Quando era pequeno julgava que ele tinha garras em vez de dedos e nos meus sonhos silvava, nunca falava.

- Estas danadas vacas nojentas andam por todo o lado! - disse com um falso sotaque aristocrático.

- Pelo menos são casher - observou o meu mestre.

O Rabino Losa fungou e disse: «Este azar do impressor Diego é o que acontece quando se fala da Fonte convosco.» Esta alusão em código à Cabala mostrava que não ignorava que meu tio pretendia associar Diego ao seu círculo de iniciados.

Meu mestre curvou-se numa reverência e murmurou em hebraico: «Hakhsam mufla ve-rav rabanan, sois um grande sábio e o rabi dos rabis.» Lançou-me um olhar para se assegurar que eu tinha entendido o jogo de palavras: ao acentuar as letras h, a, m e r estava a insultar Losa, chamando-lhe burro em hebraico.

Meu tio voltou-se, para se ir embora, mas o rabi chamou-o:

- Esperai um pouco! - lambeu os lábios como se saboreasse um molho suculento - Vim para vos fazer uma advertência. Eurico Damas manda-vos dizer que vos livreis de pronunciar o nome dele, ainda que seja a dormir, ou vos esfrangalha e faz chouriços com os vossos restos. Será melhor não meter o nariz em assuntos privados, tiozinho!

Senti faltar-me o coração. Damas era um cristão-novo mercador de armas que recebera encomendas do Rei graças às denúncias que fazia contra os seus semelhantes de antigamente. Duas semanas antes, meu tio tinha irrompido numa reunião secreta do tribunal judaico e exigido o julgamento dele por ter afogado um recém-nascido, filho de uma florista que tinha violado e com quem se recusara a casar. A investigação cessara há uma semana, devido ao misterioso desaparecimento da própria florista. O nome de meu tio deveria ter sido mantido em segredo pelo tribunal rabínico, mas ao que parece alguém - provavelmente o próprio Losa - o revelara a Damas.

- É tudo o que tendes para me dizer? - perguntou o meu mestre.

- Espero que seja o bastante. Se não fosse a minha intervenção, teria vindo ele próprio.

- Muito obrigado, ó grande sábio, ó rabi dos rabis - respondeu meu tio Com uma vénia zombeteira.

Losa encolheu o queixo como uma galinha, ficando a observar-nos com ar rancoroso mas conformado, como de alguém que perdeu uma batalha mas que não deixa de prosseguir a guerra.

Apressando o passo em direcção ao centro da cidade, para o hospital, o meu espírito devaneava em projectos para proteger meu tio de uma enfiada de demónios cabalísticos e de gigantes bíblicos. Provavelmente nunca hei-de superar tais fantasias. E no entanto, ao atravessarmos o clamor do grande mercado de peixe e do porto de Lisboa, elas pareciam-me subitamente adequadas. Ao fim e ao cabo, meu tio tinha jurado proteger-me enquanto fosse moço, assumindo a minha orientação mística. Não implicaria isso uma promessa recíproca, de que antes eu não tinha tomado consciência?

O guarda do Hospital de Todos-os-Santos a quem explicámos a nossa missão informou-nos com orgulho que o fidalgo que trouxera Diego não era outro senão o Conde de Almira. O nome não me dizia nada, mas a minha atracção pela sua companhia de viagem levou-me a registá-lo a ouro na minha memória de Tora. Uma monja ameninada conduziu-nos ao aposento onde se encontrava Diego, um sítio escuro e baixo, a tresandar a vinagre, âmbar e morte. Por cima de cada um dos doze catres pendia a imagem sangrenta do crucificado. Através das cortinas entreabertas de tecido amarelecido viam-se homens amarrados às camas por tiras de couro, espreitando com os olhos em alvo e sedentos de vida, envolvidos em ligaduras, fedendo como estrume. Das portadas parcialmente abertas avistava-se a Igreja dos Dominicanos do outro lado da praça.

Diego estava no último leito. Ao reconhecer os seus grandes olhos escuros e o turbante cor de açafrão, sorri de alegria e inquietação. Estava completamente diferente. O seu rosto barbeado parecia de mármore branco, com marcas de cortes aqui e ali. As papadas que antes se escondiam emprestavam à sua face um ar grave, cauteloso. Subitamente, aparecia-nos como aquele género de pessoas amáveis sempre prestes a dar presentes, a amimar as crianças, mas que pagavam um preço por não cuidarem de si próprios - o género de pessoa que talvez ele tenha sido antes do exílio e do seu isolamento.

O corte no queixo tinha sido cauterizado e cozido. Quando nos avistou, começou a ofegar e sentou-se. Involuntariamente, voltou o rosto para a parede, como quem se prepara para morrer.

Meu tio deteve-se, enquanto os seus olhos penetrantes procuravam encontrar os de Diego. Empurrei-o ligeiramente e ele avançou para o amigo, dirigindolhe um sorriso encorajador. De onde nos encontrávamos, podíamos ver que estava a suar de febre. Rezei para que não fosse peste.

- Pareces melhor, o sangue deixou de correr - disse o meu mestre.

- Não deviam ter vindo ver-me nesta figura - disse Diego, voltando-se de novo para a parede e fechando os olhos.

- Podes começar a deixar crescer a barba outra vez, logo que o queixo tenha sarado - observei.

- Estou-lhes agradecido por terem vindo, mas agora peço-lhes que se vão murmurou.

Meu tio fez-me um aceno para obedecer. Quando cheguei ao vestíbulo, meu tio estava sentado aos pés da cama de Diego. A conversa sussurrada entre eles, provocava a meu tio gestos furiosos, agitados. Diego escondia os olhos entre as mãos e descaía tristemente a cabeça. Fui recitando orações enquanto esperava por meu tio, que ao chegar suspirava de desânimo.

Uma situação nada boa. Diego tem de sofrer um bocado.

Pelo que vejo, ainda bem que nem todos estamos sujeitos às restrições dos levitas - repliquei.

- Todos nós estamos sujeitos a influências externas. Ou nos acomodamos Ou temos de viver no deserto como um eremita. E mesmo aí... - a voz de meu mestre decaiu, ao mesmo tempo que coçava a cabeça - Vamos embora desta masmorra - disse - Estou a ficar com comichões no corpo todo.

- Talvez uns manuscritos o animassem - disse eu - Podíamos pedir emprestados aqueles tratados em latim que ele tanto ambicionava e...

- Nada de livros! - disse meu tio, levantando as mãos como a deter uma carruagem desenfreada.

No exterior, o ar quente do Rossio estremecia coM um cantochão monótono: a procissão diária dos penitentes dirigia-se para os Paços da Ribeira. A luz do sol revelava no olhar abatido de meu tio que a sua alma tinha sido perturbada pelo desespero de Diego.

- A verdade não veio nua ao mundo, mas vestida com imagens e nomes.

E a mentira? Que roupagens vestirá a mentira? - exclamou meu tio.

- As mesmas da verdade - disse eu - Cabe-nos a nós distingui-las.

- Pois é - concordou numa voz seca - E serão todos os crimes vistos por Deus?

- Quer dizer, se os moços que atacaram Diego serão punidos? - perguntei.

- Se assim quiseres. Comecei a considerar a resposta que devia dar, quando meu tio me apertou a mão:

- Desculpa, prefiro não falar mais nisto. Vamos dar o passeio que tínhamos pensado.

- Mas não trouxe nada para desenhar - repliquei.

- Desenha as aves na tua memória de Tora, meu filho.

Passámos uma tarde agradável observando os nossos adorados grous. Era de nos cortar o fôlego ver aquelas criaturas tão grandes e desajeitadas, tão brancas, romper do azul como se fossem penas. A brisa acariciava-nos com a delicadeza de pétalas e quando meu tio me disse que eram horas de voltar surpreendi-me ao me sentir tão alheio ao correr do tempo.

Quando chegámos a casa, Cinfa e tia Ester estavam na cozinha a preparar a nossa seder da Páscoa e tinham espalhado por cima da nossa melhor toalha de mesa uma infinidade de grãos de arroz para a purificar. A casa rescendia com cheiros húmidos e densos; um borrego magnífico assava lentamente no espeto da lareira, largando uma gordura cheirosa que pingava com um cicio sobre as brasas. Pelo seu aroma delicioso adivinhei que tinha sido regado com a banha da gordura capitosa que a cauda das ovelhas contém, um segredo culinário que tia Ester tinha trazido da Pérsia.

- Que cheirinho divino! - disse eu.

- Oração de antes da refeição - zombou meu tio. E esgueirou-se para a cave.

Peguei no almofariz, pilão, maçãs, nozes, tâmaras e mel e fui para a loja; ia preparando o haroset entre dois fregueses.

Vendo que eu me ocupava da loja, minha mãe foi para a cozinha ajudar Cinfa e tia Ester. Não havia grande movimento até que me ocorreu a ideia de pendurar junto à porta as bananas que recentemente nos tinham chegado de África. Talvez fosse coincidência, mas de um momento para o outro a nossa loja encheu-se de um mundo de gente. Passei toda a tarde ocupado com as encomendas de última hora dos judeus que preparavam secretamente a seder da Páscoa. Quando as nuvens começaram a acender-se com a luz rósea e dourada que anunciava o pôr do sol, estava exausto. Tranquei as portas, puxei as cortinas e deixei-me ficar sentado em oração silenciosa até que meu tio me chamou para a cozinha. Estava com um aspecto magnífico com as suas vestes brancas, o cabelo puxado para diante no seu penteado do Shabat.

- A Reza passou na loja, por acaso? - perguntou numa voz esperançada. Minha prima Reza, a única filha ainda viva de meus tios, tinha-se casado recentemente e ia passar as festas com a família do marido.

- Não - respondi - Era para passar? Pareceu-me que tinha dito que não tinha a certeza se podia vir cá hoje.

- Foi só por pensar que talvez... - Pegou-me na mão e foi com tristeza que continuou - já achei uma cara para o Aman da minha Haggada. Talvez o nosso trabalho comece a avançar mais agora.

Meu mestre andava a ilustrar uma Haggada para uma família de judeus ocultos de Barcelona e enfrentava grandes dificuldades para encontrar entre as pessoas que conhecia alguma que pudesse servir de modelo para a iluminura de Aman. Mas porque estaria triste? Seria a ausência de Reza? Antes que lho pudesse perguntar, começou a abençoar-me. Abracei-o e, pela primeira vez, que me lembre, ele deixou-se abandonar à minha afeição. Teria merecido da parte dele uma maior confiança nestes últimos dias? Subitamente possuído da sua força resoluta, como se tivesse bebido da minha energia e cuidados, beijou os meus lábios e agarrou-me pelos ombros.

- Estamos na Pessá! A festa da Páscoa da Passagem! - exclamou num murmúrio. Trocámos um sorriso exuberante.

Cinfa e Judas puseram a mesa. A travessa de cerâmica cor de açafrão que o nosso vizinho Samir tinha feito para nós estava enfeitada com cilantro, alface, ovos assados e um osso de borrego grelhado, que tinham um valor simbólico nesta refeição. Com a aprovação de tia Ester, acrescentei uma colherada do meu haroset , representando a argamassa com que os israelitas, quando escravos, tinham construído tumulos, palácios e pirâmides no Egipto. A nossa matza estava debaixo de um guardanapo de linho. O cálice de prata, que tradicionalmente se punha na mesa para Elias, presidia a uma ponta, junto do lugar de meu tio.

Como descrever esta primeira noite da Páscoa? As palavras e rostos tranquilos? A alegria estonteante? A tristeza pelos que nos tinham deixado? Ocupámos os nossos lugares unidos pela aura comum dos preparativos. Meu tio, como sempre, era o nosso guia no ritual. Mesmo sendo a Páscoa uma festa que tem o centro na recordação, uma rememoração da história de como Deus retirou os judeus da escravidão, possui também uma essência secreta. No interior do corpo da Tora, encolhida como uma fénix no ovo, esconde-se a história da jornada espirítual que todos nós podemos fazer, da escravidão para a bem-aventurança. A Haggada da Páscoa é um sino de ouro que ao repicar nos diz: Lembra-te que a Terra Prometida está dentro de ti!»

Foi portanto meu tio, no seu papel de nosso guia, quem abriu a porta inicial, a mais sagrada, das festas, entoando uma benção do primeiro dos quatro copos de vinho que de acordo com a tradição bebemos. «Na presença dos seres que nos são queridos e de todos os amigos, tendo perante nós os símbolos do júbilo, reunimo-nos para a nossa celebração sagrada» - cantou meu tio em hebraico, erguendo a sua voz suave como um eco enternecido do apelo da trombeta com que costumava iniciar o ritual nos tempos em que não temíamos os denunciantes cristãos. Depois de repetir os versos em português para que judas, que ainda andava atrasado nas lições de hebraico, pudesse compreender, tio Abraão prosseguiu em vernáculo: «Com a família de Israel, os nossos anciãos e os nossos filhos, unindo o passado com o futuro, respondemos à chamada divina à prece. Revivendo a nossa história contada a todos os povos, cujo final brilhante está ainda por realizar, reunimo-nos para observar a Páscoa, como está escrito...»

As nossas vozes entrelaçaram-se para formar o tecido unido da resposta: «Deves guardar a Festa da matza, pois nesse mesmo dia Eu trouxe os teus pais do Egipto. Deves observar este dia através de geração em geração como uma prática para todos os tempos.»

Minha mãe acendeu na lareira uma candeia e pouco depois havia uma chama a dançar nos candelabros colocados a cada ponta da mesa. O passado e o presente ligavam-se. Éramos os israelitas à espera de Moisés no Sinai, assim como a mesa, vestida de branco, se tornara no nosso altar e a cozinha no nosso templo no deserto.

Meu tio, ao mesmo tempo que ia distribuindo fatias fumegantes de borrego por cima das nossas matzas, ia comentando que cada letra do alfabeto hebraico é governada por um anjo e que são os anjos, reunidos pelas nossas palavras escritas e faladas, que realizam os prodígios que tanto maravilham o comum dos mortais.

As nossas orações e histórias possuíam indubitavelmente uma graça alada, essa noite. E no entanto como são frágeis os anjos. Bastou um momento para que a sua magia se dissipasse. Cinfa tinha ido abrir a porta do pátio a Elias, o profeta, cujo espírito, dizia-se, entrava em todas as casas durante a Páscoa. Com a lufada de ar fresco que irrompeu, chegaram até nós gritos roucos soando ao longe. Meu mestre deu um salto: os gritos eram em hebraico. De novo, ecoou um brado distante. Seguiu-se o silêncio.

- Que seria? - perguntou minha mãe. Meu tio estava pálido. «Nada» - disse de modo ausente, como se possuído por uma visão. E durante o resto da refeição não pronunciou um único som, a não ser para encerrar a cerimónia. «Para o ano em Jerusalém» - eram as palavras do eterno regresso com que sempre concluíamos, mas caíram vazias entre nós.

No dia seguinte, ao cantar do galo, um recado misteriosamente atirado para o nosso pátio respondia à pergunta de minha mãe. Em código novo-cristão rezava: «Dezasseis andorinhas não regressaram ao ninho na noite passada e foram apanhadas pelo Faraó. O teu passarinho, Reza, contava-se entre elas.»

Como viemos a saber, minha prima Reza e todos os outros convivas da sua seder secreta tinham sido presos na noite anterior e levados para a cadeia da cidade. Alguém os terá denunciado. E meu tio? Será que o presenciou através de alguma janela mística ou terá simplesmente pressentido que alguma coisa de terrível se passava?

Vendo-me ler o recado essa manhã, minha mãe anunciou-me:

- Os tios foram à procura dos nobres cristãos-novos que servem na corte. Estão esperançados que algum deles possa dar uma ajuda.

Estávamos no Shabat, o dia antes da segunda noite sagrada da Páscoa, e como naquele tempo era profundamente devoto, resolvi contribuir para a rápida libertação de Reza entoando cânticos ao longo de toda a manhã e toda a tarde. Mas de nada valeu; pouco antes do crepúsculo, meus tios regressaram a casa cobertos de poeira e de desânimo.

- Um dos cortesãos judeus vai tentar intervir - disse meu tio sem convicção, coçando a cabeça furiosamente - Os demais... vertem lágrimas e murmuram palavras falsas.

Na noite seguinte, Reza ainda continuava presa e meu tio completamente desfeito veio ter comigo à cave e pela primeira vez mencionou a possibilidade de sair de Portugal.

- Se te pedisse para deixar para sempre este país, aceitavas? - perguntou.

- Aceitava, se tivesse de ser - respondeu.

- Está bem. Mas a tua mãe... será que podia ir?

- Tem medo. Um inimigo que já conhecemos é mais fácil de suportar que um outro desconhecido.

- Certo. E se a tua mãe não partir, duvido que Ester o faça. Ou Reza, agora que casou e que quer criar uma família. Oxalá conseguissemos que ela voltasse para casa.

- É isso que o traz tão transtornado? Quer ir embora daqui? Mas se tivesse pedido que...

Meu tio fez um gesto a evitar as minhas perguntas e começou a entoar a oração da Rainha Ester, versos que assumiam para nós um especial significado, pois também ela se vira forçada a esconder o seu judaísmo. «Ajudai aquele que não tem outra ajuda senão o Senhor. Pois tomarei a minha vida nas minhas mãos ... »

As mãos de meu tio tinham-se cerrado num punho convulso e os lábios tremiam-lhe. Erguendo-me num pulo, poisei as mãos nos seus ombros. Os olhos marejaram-se-lhe de lágrimas. «Pobre tio - pensei -, Portugal está a arrastá-lo até aos limites da sua resistência física.»

- Os judeus da corte hão-de conseguir a libertação de Reza - disse eu Nessa altura, se quiser, havemos de pensar em ir embora daqui. Havemos de arranjar maneira de os convencermos a todos. Mas agora tem de descansar Vá, vamos para cima. Pode apoiar-se em mim até sairmos do deserto.

- Vamos ficar aqui - disse ele - Faz-me esse favor. Anda comigo até ao tapete de orações. Aquele ambiente ajuda-me - disse ele, ao mesmo tempo que acenava a aceitar o meu apoio.

Ficámos sentados em silêncio, enquanto limpava os olhos com a manga das suas vestes. Pondo a mão na minha cabeça, murmurou numa voz quebrantada:

- Onde tens a fita de pergaminho que te dei, com os nossos nomes?

- Trago-a ao peito, para maior segurança.

- Está bem - sorriu meigamente Faz-me bem saber que a trazes contigo.

- Oiça, meu tio, o que quer que seja que... - disse, agarrando-lhe o braço. Impôs-me silêncio, pondo-me a mão na fronte.

- És um herdeiro condigno - disse - Apesar de poder ter ralhado contigo, nunca lamentei o ter-te tomado como aprendiz. Nunca. Quando tiveres vivido mais e posto mais em actos as tuas orações, hás-de tornar-te num grande artista de iluminuras. Teu pai uma vez disse-me: «No coração do meu Beri mora um leão da Cabala.» E assim é. É certo que é uma bênção trazer em ti um tal leão. Mas um animal feroz, ainda que nascido da Cabala, pode por vezes tornar-se incómodo. Ouve pois atentamente. Até agora, não havia motivo para preocupações, pois tens levado uma vida de estudo. Mas quando saíres para o mundo, quando as tuas acções na Esfera Terrena tomarem o lugar a que têm direito ao lado da oração, podes ter de enfrentar algumas dificuldades. Nunca hás-de ser capaz de usar máscaras como nós. Cada vez que tentares enfiar uma, hás-de ouvir o rugido do leão dentro de ti. É por isso que sentias aquele desespero tão grande na altura da conversão. Foi por isso, talvez, que Deus te premiou com uma visão. A vida não te será fácil. Talvez venhas a ter de viver apartado dos demais. Ou que suportar os seus juízos comezinhos. Mas não desistas e abraça-te ao leão dentro de ti. Compreendes o que te digo? - E tendo eu acenado que sim, continuou: - Então basta de palavreado. Ai do guia espiritual que contribui para encher de orgulho o seu aprendiz. Estamos a ser atraiçoados por todos os lados e se queremos sobreviver temos de trabalhar muito. Isso é mais importante que o talento natural ou a inclinação. O teu leão precisa de trabalhar!

Sentámo-nos à escrivaninha e enquanto desenhava Aman e Mardoqueu, começou a analisar-me com um olhar enternecido. Senti que percorria carinhosamente a minha figura como para se lembrar que, apesar do cativeiro de Reza, havia ainda algo de bom e de belo no mundo.

No dia seguinte, domingo, momentos depois de os sinos da Sé terem soado as nonas, ouviu-se bater na porta que dava para os aposentos de minha mãe. Ela bradou por mim. Saí a correr da cave, empunhando absurdamente um pincel de arminho. Deparei no quarto com um escravo negro, belo como a noite. Usava um casaco de seda azul fina e calças soladas amarelas. Segurava uma mensagem selada com uma cera vermelha espessa. «Da parte de Dom João» - disse num português hesitante, referindo-se a um dos judeus da corte a quem tínhamos recorrido a pedir ajuda.

Tia Ester apareceu a correr, tendo imediatamente compreendido. Fez-me sinal para aceitar a mensagem e, cobrindo a boca com as mãos enclavinhadas, começou a murmurar em persa. Peguei no recado e abri-o. «Seduzimos o Faraó, com ouro. As andorinhas estarão em casa antes do cair da noite», rezava o texto.

Enquanto eu insistia com o escravo para levar algumas passas que tinham sobrado das minhas entregas de fruta essa manhã, tia Ester saiu a anunciar as novas a meu tio. Quando entrei na cozinha encontrei-os abraçados.

- Muito gostava de lá estar quando ela saísse da cadeia - dizia Meu Mestre.

- Vou aquecer um bocado de borrego para ela - disse tia Ester, acariciando-o no rosto. De repente, fitando-o, apontou-lhe um dedo ameaçador Mas assim que chegares a casa, vais dormir!

Meu tio cerrou os olhos e assentiu como um rapazinho. Voltando-se para mim, disse-me: - Beri, queria que me fizesses dois recados - Tirou um manuscrito da algibeira e estendeu-mo - Primeiro, entregar este «Livro de Salmos». Sabes onde vive o fidalgo que o encomendou? - acenei afirmativamente e ele prosseguiu - Meti no meio um recado - fixou-me com um olhar grave - Só o entregas ao dono da casa. Só a ele! E vê que ele o leia diante de ti - e prosseguindo, num tom mais ligeiro, acrescentou: - Depois passa pelo Sansão Tijolo e traz algum vinho casher - passou-me um rolo atado com uma fita vermelha Esta carta é para ele. Saímos juntos de casa, meu tio e eu, mas ele virou para norte, em direcção à cadeia, ao passo que eu rumava para ocidente. Demos um beijo. Nada mais. Tivesse eu adivinhado que depois dos acontecimentos que se iriam seguir não mais poderia sentir estar a viver num mundo sob o olhar de Deus e nenhum homem ou demónio me haveria de impedir de agarrar meu tio e lhe implorar que usasse todos os seus poderes para mudar o futuro. Teria ele podido, com alguma mistura de pós e poções, criar um destino diferente para nós? Como receio bater à minha porta interior e ouvir a resposta!

Para começar fui entregar o «Livro de Salmos, mas não o fiz porque o dono da casa não estava. Depois, ao sair de Lisboa para comprar o vinho, Deus abençoou-me com a ideia de comprar, para a nossa celebração, alheiras, que eram um enchido que tinha sido inventado na época da conversão forçada para salvar os nossos pescoços e as regras da dieta judaica. Embora semelhantes no gosto e na forma aos enchidos de carne de porco, eram feitas com pão, especiarias e carne fumada de perdiz, codorniz ou galinha.

Deixei a cidade pela Porta de Santana e passadas duas horas, a julgar pela altura do sol, estava a bater à porta da quinta de Sansão Tijolo. Como ninguém respondia, dei a volta até à porta da adega. Estava aberta. Entrei e peguei num barrilito de vinho. Não tendo nem tinta nem pena para escrever, limitei-me a deixar o dinheiro em cima da mesa perto da porta. À guisa de sinais, deixei um pouco de matza que trazia na algibeira - Sansão iria entender que era eu quem tinha passado e levado o vinho.

Eram umas boas cinco milhas até Lisboa e no caminho de regresso com o meu fardo não demorei muito a ficar todo sujo de suor e poeira. Por duas vezes, antes de chegar à cidade, deitei-me a repousar debaixo das oliveiras tremulantes, aproveitando a sombra que o entardecer alongava. Ao chegar a um pinhal, cerca de meia milha da Porta de SantAna, tirei os sapatos para sentir os picos da caruma seca nos pés. No meu bornal, quando procurava um bocado de matza, para trincar, voltou-me às mãos o recado que tinha caído do turbante de Diego.

Desenrolava-se em forma de Estrela de David e tinha escrito: «Isaac, Madre,vIgésÍmo nono de Nisan.» Estávamos então no vigésimo quarto.

Nesse momento, a mensagem não me chamou a atenção. Pelos meus cálculos, seria a quarta hora depois do meio dia quando avistei de novo os muros de Lisboa. Teria passado uma hora depois das nonas, pois enquanto caminhava tinha ouvido os sinos das igrejas das aldeias vizinhas chamar os fiéis para as orações. Ao entrar na cidade, chegou-me um cheiro penetrante, enfumado. Um vago murmúrio como de uma multidão numa arena distante. Estranho: as casas de portadas cerradas, as lojas fechadas, como se fosse já noite. Em meu redor as ruas estavam todas desertas, cobertas pelas sombras do entardecer. Fui avançando, sentindo os pés na calçada. Ao passar as muralhas de granito do castelo mourisco, dois moços jornaleiros correram para mim brandindo foices. Ia a correr, mas apercebi-me que seria inútil. Um deles encostou a lâmina curva ao meu pescoço. Na mão segurava pelos cabelos a cabeça decapitada de uma mulher, gotejante de sangue. Não a reconheci. - És marrano? - perguntou, para saber se eu era um judeu convertido. O seu olho direito de um branco leitoso, esbugalhado, reflectia o meu medo com um brilho maldoso. - Porque desta vez vamos dar cabo de todos os marranos!

O meu coração batia desesperadamente numa prece pela vida. Abanei a cabeça e estendi-lhe a minha sacola.

Olha!

Passou-a ao seu comparsa barbudo, que espreitando para dentro e farejando-a, rosnou «Chouriços!» e devolveu-ma.

Enquanto eu agradecia a Deus, o cegueta baixou a foice e perguntou: «Isso é vinho?» Acenei que sim e ele tirou-mo das mãos. A minha respiração tornouse ansiosa e hesitante.

- Aquele fumo... onde é?

- Uma pira sagrada no Rossio. Os dominicanos querem fazer chegar até Deus um sinal com as chamas da carne dos judeus.

O temor pelo destino do meu povo a apertar-me as entranhas impediu-me de fazer mais perguntas. Os dois homens beberam até fartar e depois fecharam o batoque. Eu não podia desviar os olhos da cabeça da mulher. Os olhos não pareciam sem vida. Que via neles então? O alheamento deste mundo? Ao pegar no barril que me estendiam, percorreu-me o peito um calafrio como se provocado por um espírito fugitivo. O barbudo levantou a cabeça decapitada, lambendo-lhe as faces como se saboreasse o suor de uma amante. Puxando a corda que lhe segurava as calças, expôs as suas imundas partes sem circuncisão. Com os seus dedos cheios de porcaria mantinha aberta a boca enegrecida da mulher, segurando-a à altura da cintura. E começou a fazer algo de inenarrável. O outro observava-o, ao mesmo tempo que comprimia contra si a mão espalmada. Eu não ousava fechar os olhos, mas virei a cara. Quando cessaram os seus grunhidos, voltou a apertar as calças e exclamou:

- Vê lá por onde andas. Há quem confunda as pessoas com judeus! Quando se foram, agachei-me debaixo de um toldo. O meu estonteamento foi diminuindo. Uns goles de vinho dissiparam um pouco o gosto repulsivo, ácido que sentia na boca. Andariam à caça de todos os antigos judeus?

Desatei a correr pelas escadarias e becos de Alfama abaixo até à Rua de São Pedro. A cancela do pátio estava arrancada, no meio da rua, toda dobrada e torcida. O nosso burro tinha fugido. A porta da cozinha escancarada. Precipitei-me para dentro de casa, que parecia um cenário de uma debandada.

O silêncio avolumava-se à volta do meu olhar. Da lareira adormecida mais não restava que o borralho, na mesa repousavam duas taças. junto a uma delas, via-se uma matza partida ao meio. O alçapão da cave continuava tapado pelo habitual tapete esfarrapado. «Tio! Mãe!» - gritei. Estupefacto, confuso, subi ao meu quarto para encontrar uma cena de camas pisadas e armários pilhados. Espreitando para a loja, deparei com as barricas derrubadas. As azeitonas derramadas formavam um tapete verde e preto que saía pela porta fora até à Rua da Sinagoga.

O quarto de minha mãe estava vazio, intocado. Passando a mão pelo talismã de pergaminho em forma de águia que ela guardava junto à almofada, pensei:<Na cave. Devem estar todos escondidos na cave.»

Puxei o tapete de cima do alçapão devagarinho para não romper o cordão que permitia voltar a pô-lo no sítio lá de dentro. Depois, enfiando-me pela abertura, desci as escadas até ao patamar. A porta da cave estava trancada. «Sou eu»

- gritei junto da linha escura entre a porta e o umbral. Tio, abram!» Silêncio. Bati à porta. «Sou eu» - bradei. «Mãe, ou quem aí estiver... sou eu!» Quando olhei para cima, para a cozinha silenciosa, as minhas pernas começaram a tremer sob o peso da ansiedade. Desatei a bater desesperadamente à porta, a gritar. Não houve resposta.

Estava certo que nada podia ter acontecido a meu tio, homem de prodígios, o mestre da Cabala capaz de tocar fugas com a Tora e o Tàlmud e o Zohar. Ninguém poderia matar um tal conhecedor do místico com armas fabricadas pelo homem. Mas quanto a Judas e Cinfa... E se eles estivessem lá dentro, tão aterrorizados que não fossem capazes de gritar? Ou estaria a cave vazia? Teriam fugido? -Talvez o meu mestre tivesse um modo secreto de trancar a porta do lado de fora. Para proteger os livros. Era isso, de certeza!

Seria uma premonição? Ou mero raciocínio? Senti-me abalado por um tremor ao me ocorrer a possibilidade de que algo de horrível pudesse ter acontecido a meu tio. Fincado na menora de mosaico, atirei-me à porta num repente tentando arrombá-la com quantas forças tinha, até que a tranqueta metálica saltou da madeira.

Entrei. Um cheiro intenso, acre, de alfazema e excrementos, invadiu-me as narinas.

O meu olhar fixava estarrecido dois corpos nus cobertos de sangue. Meu tio e uma moça. jaziam a curta distância um do outro, ela de lado, ele de costas. As suas mãos quase se tocavam. Como se os seus dedos entrelaçados se tivessem separado ao mergulharem no sono.

Assim que os avistei, o ar faltou-me de repente e todo o meu corpo recuou. Precipitei-me pelas escadas abaixo para aquela caverna tépida rodeada de ruídos abafados e de luz vacilante, respirando ao ritmo da oscilação das paredes. Ali estava meu tio, nu. Um véu de sangue envolvia-lhe o peito. A moça a seu lado, também sem nada que a cobrisse, estava igualmente ensopada em sangue.

O fedor nauseabundo que me envolvia parecia humedecer-me os olhos.

Gemendo, ajoelhado junto a meu mestre, peguei-lhe no pulso, esperando ainda uma palpitação, mas em resposta nada mais havia que um frígido silêncio.

Os arruaceiros cristãos tinham-no roubado à vida!

O meu olhar passava de um corpo ao outro, como se observasse alguma escrita desconhecida. Teriam eles dormido carnalmente? Quem seria ela?

Traços acastanhados riscavam o pescoço e o torso de ambos. Agachei-me junto à cabeça de meu tio. No pescoço notavam-se duas pontas de pele arrancada de um talho ainda húmido de sangue.

«Que alguém me acuda» - pensei. «Meu Deus, por favor, ajudai-me!» Um terror gélido percorreu-me as tripas fixando-se contra o peito quando tomei consciência que estava só, que nunca mais teria comigo o meu mestre.

Senti subir dentro de mim uma onda de náusea e vomitei em cima das lousas do pavimento até sentir um líquido acre pingar do nariz.

Como aconchego, cruzei os braços sobre os ombros. «Não tocar em nada»

- pensei. Pelo menos até que tudo se imprima na minha memória de Tora como se fosse uma cena bíblica. Não posso esmorecer!

Havia manchas vermelhas no tapete de orações, embebido na seiva vital que eles tinham vertido.

Mas a porta estava firmemente trancada. Como teria saído o assassino?

Ou estaria ainda cá dentro? Pus-me em pé de um salto, peguei no meu punhal. Segurando-o diante de mim como uma candeia no escuro, voltei às escadas e seguidamente girei em redor. Sentia as pernas trementes com o silêncio da ansiedade.

Mas os azulejos das paredes e os ilhós das janelas, os bancos e as escrivaninhas envolviam o meu olhar sem o mais pequeno estremecimento de emoção.

A sala estava vazia, como se fosse oca, como a caixa do peito de um animal a quem o coração tivesse subitamente deixado de bater.

A imagem de meu tio dando-me a fita de pergaminho gravada com os nOssos nomes veio-me ao espírito envolvida pelo silêncio que se segue aos cânticos de Inverno. «Vê-se que ele devia saber que o Anjo da Morte se aproximava» pensei. «Por isso me avisou que estava próxima a nossa separação.»

De costas contra a parede da cave que dá para sul, encostei-me firmemente, sentindo a imensidão da minha perda, sem despregar os olhos dos dois corpos.

Hoje, passados que são vinte e quatro anos, todos os pormenores continuam a ser tão nítidos para mim como as primeiras linhas do Génesis.

Meu mestre jazia estendido de costas, a cabeça ligeiramente voltada para a esquerda numa atitude solene e repousada. A moça estava deitada sobre o lado esquerdo, separada dele a distância de um braço.

Meu tio ficava com os pés no centro do tapete circular, a cabeça tocando quase a orla. Os olhos abertos, mais escuros e vítreos que em vida, fixavam o vácuo; tinha sangue espalhado nas faces e nos tufos de cabelo prateado acima da orelha esquerda. O braço esquerdo caído para o lado, a palma da mão voltada para cima, os dedos curvados. O braço direito, todavia, parecia esticado em direcção à moça, os dedos a duas escassas polegadas da mão estendida dela.

Mas se, momentos antes da morte, tivesse procurado tocá-la para de algum modo a confortar, não deveria então ter a cabeça e o corpo voltados para o lado direito para assim alcançar mais longe?

Concluí que já devia estar morto quando ficou nesta posição e imaginei um frade dominicano encapuçado segurando-o por trás, despindo-o, talhando-lhe a garganta e ele caindo-lhe aos pés, o sangue salpicando-lhe o peito. Seguidamente, por qualquer oculta razão, deixando descer o corpo devagar, até com respeito, para o depositar no chão. O braço direito teria acidentalmente ficado estendido para a moça. Ou teria sido posto nessa posição para criar a aparência de ele estar a tentar suavizar-lhe a agonia. E porquê? Seriam os homens que lhe roubaram a vida artistas da morte?

As ancas de meu tio estavam sujas de excrementos, que, misturados com sangue, ainda que não pisados, manchavam também as franjas do tapete de orações junto do vaso do Shabat, de murta e alfazema.

O cheiro fétido que pairava na sala era um atroz casamento entre as flores e a putrefacção.

A moça não teria mais que vinte anos. Era magra e pálida, de fraca figura. Os cabelos castanhos compridos estavam empastados com crostas de sangue. Teria uns cinco pés de altura, seios pequenos e firmes, brancos de mármore e igualmente raiados de sangue.

Era tão raro poder contemplar o corpo de uma mulher desembaraçado de roupagens que o efeito que me causavam as suas formas graciosas e sombras profundas mais contribuia para me distanciar do presente. Meio entorpecido e ainda incrédulo fixava-a como que esquecido de todo o meu passado.

As coxas e os artelhos estavam sujos de excrementos. Tal como meu tio, também ela apresentava as mesmas duas pontas de pele arrancadas de um corte comprido na garganta, mas parecia ter sido tratada com menos cuidado e, assim que a lâmina libertara a sua alma do seu envoltório, devem tê-la atirado para o chão como tref. Caíra de modo pesado e repentino, batendo com o nariz numa das plantas de alfazema; junto à sua cabeça via-se um dos vasos partido e havia terra e cacos de barro espalhados até às escadas. Tinha o nariz partido, grotescamente torcido para o lado e com crostas de sangue. Deitada sobre o lado esquerdo, tinha a cabeça enfiada na axila, como se fosse a tapar os olhos. Estendia o braço esquerdo em direcção a meu tio; o direito parecia deslocado, desajeitadamente atrás das costas. As pernas estavam ligeiramente encolhidas, como quem procura refugiar-se no sono protector da infância.

Dei por mim a fixar uma fiada de pisaduras em torno do seu pescoço, algumas delas umas duas polegadas acima do golpe onde o sangue já formara crostas. Assemelhavam-se a nódoas provocadas por um fio de pérolas e, a princípio, sem qualquer motivo, cheguei mesmo a pensar que tinham sido causadas por algum colar de atavio.

Reparei então em meu tio, que exibia as mesmas nódoas escuras. As pisaduras rodeavam o pescoço pouco acima da sua maçã de Adão.

Ter-nos-ão estrangulado com uma corda com nós? Aninhei-me junto da moça, pegando-lhe na mão esquerda. Estava gelada, mas não rígida ainda. Trazia no indicador uma aliança de casamento de fios de ouro entrançados. Retirei-lha e enfiei-a na minha bolsa. «Oxalá o marido esteja ainda vivo para a poder guardar» - murmurei.

Foi o som da minha própria voz que subitamente rompeu as trevas da minha Incredulidade inicial: o meu sobressalto tornou-se audível ao compreender que lhes tinham cortado as gargantas exactamente abaixo do anel da traqueia, tal um shohet ao matar um animal segundo o ritual dos talhantes judeus.

Teria algum cristão-novo traiçoeiro guiado os seguidores do Nazareno até ao meu tio e logo cortado a sua garganta? Imaginei um frade dominicano a amotinar a multidão para penetrar na cave, o meu mestre dominado e atirado para as mãos de um mercenário judeu como um cordeiro para um sacrifício.

Dentro de mim ecoava o nome de Eurico Damas, o comerciante de armas. Ainda há pouco, o Rabi Losa nos tinha transmitido as suas ameaças de morte contra meu tio: LIvrai-vos de murmurar o seu nome, a dormir que Seja ...»

Terá Damas recebido dos dominicanos uma bolsa de soberanos de ouro para revelar os esconderijos dos membros mais considerados da nossa comunidade? Terá ele inscrito o nome de Abraão Zarco no topo da sua lista?

Mas poderia Damas ter matado como um shohet?

O meu olhar foi atraído pelas escadas. A luz escorrendo do alto fazia brilhar os azulejos que enfeitavam a parede a ocidente, revelando-me o desenho de uma estrela de doze pontas que parecia esconder um segredo. Estrelas. Luz. Desenhos. Segredos. Anos de aprendizagem da Tora e do Talmud tinham-me adestrado a perceber quando o meu espírito se desviava do caminho do raciocínio, fosse ele grego ou judeu, e o meu espírito procurava agora um desenho nos azulejos que o pudesse reconduzir. Fixando as volutas brilhantes de azul, branco e dourado, comecei a murmurar a palavra «azulejo» até o significado da palavra se desvanecer, até nada mais existir senão os meus olhos fixos na superfície luzidia. Graças à libertação que tal vazio proporciona, foi como uma revelação que me fez cair de joelhos quando compreendi que meu tio não podia ter sido roubado à vida por arruaceiros cristãos: o alçapão estava fechado, o velho tapete persa estava no sítio. Embriagados como estariam pelo sangue judeu que ainda lhes aqueceria as mãos, teriam debandado daqui destruindo tudo que estivesse à vista. A nossa cave haveria de parecer um matadouro!

Olhei em redor certificando-me que a sala não tinha sido pisada por pés cristãos. As escrivaninhas e o armário do material pareciam intactos. De todos os móveis, apenas o espelho acima da escrivaninha de meu tio exibia uma mancha de sangue. Do topo da moldura descia um fio de sangue acastanhado através da superfície côncava.

Teria o assassino segurado com a mão manchada de sangue a moldura do espelho para mirar a sua imagem distorcida? Ou seria verdade a lenda do Espelho que Sangra.

De todo o modo, nenhum cristão aí penetrara; tinham sido ludibriados na sua busca pela entrada secreta do alçapão.

«E tão-pouco aqui entraram talhantes judeus» - concluí interiormente.

Nenhum deles conhecia a existência da nossa entrada secreta. Nem Eurico Damas poderia ter conhecimento dela. Ou então o alçapão teria ficado aberto. Seria possível que meu tio fosse descuidado a tal ponto?

Coloquei a palma da minha mão sobre o seu peito, como à procura de uma resposta. Um ténue resíduo de calor paralisou a minha respiração. Examinando-o para ver se teria outros ferimentos, apenas descobri uma ferida escurecida no ombro esquerdo, com um ligeiro inchaço em torno. Sentia nos dedos a sua pele inteiriçada, como couro, mas retendo ainda um terrível traço da ligeireza da vida.

Não me era dificil calcular que não decorrera muito tempo depois da sua morte, talvez pouco antes que fossem passadas quatro horas depois do meio dia.

E que teria havido uma curta contenda.

Agarrei a sua mão direita, a da benção e da iliiminação, para observar os poros e as linhas, como para decifrar a escrita de um pergaminho antigo. Subitamente, pela primeira vez na minha vida, pude sentir a presença de Deus a abandonar o meu corpo. Rezei para que o véu de sangue que cobria meu tio não passasse de um sonho. Contei até cinco, o número de livros da Tora, e voltei a olhar... O ar jorrou-me da garganta como se um punho se tivesse fechado. Não conseguia olhar para meu tio. E comecei a soluçar: soluços pungentes, profundos, intermináveis.

Quanto tempo chorei? O tempo deixa de contar com a tensão de tais emoções.

Assim que a bênção do silêncio de novo caiu sobre mim, sentei-me e fiquei ali a balançar-me de trás para diante. Lembrei-me de um gaiato surdo e cego que uma vez vira na rua a balançar-se desta arte. Compreendia agora porque o fazia: o desamparo e a solidão podem tornar-se tão grandes, tão fora de quaisquer limites, que o nosso corpo pode ser levado a buscar consolo na graça do seu próprio movimento. Tornando a mim, surpreendi-me segurando na mão um caco do vaso quebrado. Sentei-me ao lado do peito de meu mestre. Rasguei a minha camisa e comecei a limpar o sangue da sua máscara contorcida. Os meus lábios invocavam o seu nome como num encantamento. Reparei no seu xaile ensanguentado enrolado junto a uma das plantas de murta e cobri os ombros com ele. Como uma recordação. De quê, não o poderia dizer. Sentado, de peito nu, a tiritar, ia limpando com a minha camisa os seus dedos da mão direita. Retirei-lhe o anel de sinete; a coroa de Deus tinha apreendido o brilho esmeralda do interior dos olhos de meu mestre e eu queria comigo aquela luz para sempre.

Depois de ter murmurado um kadish por ele e outro pela moça, peguei na sua mão esquerda para a começar a limpar. Reparei numa linha presa na unha do polegar. Erguendo-a à altura dos olhos, vi que era de seda negra. Um nome pairou hesitante à borda dos meus ouvidos, desenhado pelo sussurro dos meus lábios: Simão Eanes, o importador de tecidos.

Era um amigo nosso, que meu tio resgatara à Inquisição uns anos atrás em Sevilha, e que era membro do grupo de iniciados. As suas mãos surgiam perante mim, apertadas numas luvas de seda negra que minha mãe tinha feito com os restos de um tecido de Dona Meneses para proteger dos calos as suas mãos delicadas. Tinha só a perna esquerda - a direita tinha-lhe sido amputada na sua juventude - e caminhava pesadamente apoiado em muletas de pau.

Viria aquela linha das suas luvas? Como membro do grupo conhecia obviamente a existência da cave e a localização do alçapão. Mas será que um homem só com uma perna teria a força e o equilíbrio necessários para matar como um shohet ?

Enfiei o fio na minha bolsa e examinei as unhas de meu mestre à procura de vestígios de pele ou de cabelos. Nada. Ao examinar a face, reparei que nos seus lábios os capilares se tinham rompido e formavam uma teia irregular. Limpei-lhe as pálpebras fechadas, escuras, manifestamente feridas.

O sentir o xaile ensanguentado de meu mestre sobre os ombros fez com que o meu olhar percorresse as nossas escrivaninhas, o lugar das nossas ocupações terrenas. As chinelas e a túnica branca estavam no chão. Dirigindo-me para ai, reparei que uma das chinelas estava virada. A outra estava a uma distância de uns bons quatro pés. Tudo indicava que tinham sido atiradas de longe descuidadamente.

Todas as suas roupas estavam profundamente tintas de sangue: tinham-no matado com elas vestidas e só depois desnudado.

Pus-me às voltas pela cave à procura de outras peças de roupa, detendo-me apenas por momentos diante do meu reflexo atrofiado no Espelho de Sangue. Como parecia feio e desprezível - uma criatura de traços engelhados e olhos viperinos, com o cabelo emaranhado como uma Córgona.

Não encontrei em toda a cave nada que pertencesse à moça. Nem uma blusa, nem um lenço, nem uma simples fita.

Uma possibilidade cruamente iluminada pela vergonha obrigou-me a fechar os olhos. Ultimamente meu tio andava profundamente perturbado, por razões que nunca explicou muito bem. E se aquela moça estivesse na origem dos seus cuidados? Se fosse uma amante que tivesse vindo informá-lo que seria aquele o último dos seus encontros secretos? Ou estivesse grávida e lhe apresentasse um ultimato: deixa a tua mulher ou conto-lhe quem é o pai da criança!

Poderia meu tio tê-la despido lá em cima, conduzindo-a depois para a cave, pôr o ferrolho na porta, matá-la e matando-se ele próprio em seguida? Mas aquele talho na garganta... Poderia alguém infligir-se um corte daqueles? Seria meu tio capaz de tirar a vida a uma criatura que trouxesse no peito uma centelha de Deus?

E onde estava a faca? Tê-la-la feito desaparecer com algumas palavras mágicas?

Contendo a respiração, passei as mãos à procura debaixo dos corpos. Mas não havia nada, a não ser a sensação desagradável do peso gélido dos mortos à espera de serem enterrados.

Não consegui encontrar a faca em parte nenhuma. O que descobri é que nas gavetas do fundo do armário do material as tampas das nossas caixas de ébano tinham sido forçadas. A nossa magra fortuna em folhas de ouro e lápis-lazúll tinha desaparecido - o assassino, ou qualquer ladrão, tinham simplesmente ignorado as coisas de menor valia e tinham ido directamente aos nossos materiais mais preciosos.

O que contava, porém, não era tanto o que o assassino tinha levado, mas sim o ele saber precisamente onde podia encontrar os nossos tesouros. O número de pessoas que conheciam o segredo do nosso armário de materiais podia contar-se pelos dedos da mão: a nossa família, Farid e Samir e os membros do círculo de iniciados.

O assassino tinha de ser um deles. Os nomes dos quatro membros do grupo de meu tio soava aos meus ouvidos como se lidos por um arauto de um decreto real:

Simão Eanes, o importador de tecidos que também fazia iluminuras em manuscritos. Frei Carlos, a pessoa a quem tínhamos confiado a educação cristã de judas. Não tinha ele discutido com meu tio acerca de um manuscrito de Salomão Ben Cabirol que o padre se recusava a ceder?

Diego Gonçalves, o impressor e devoto levita que dias antes, na manhã de sexta-feira, tinha sido apedrejado por uns rapazes.

Sansão Tijolo, o vigoroso taberneiro, onde eu tinha ido de manhã para comprar vinho casher. Com o nome de Sansão a ressoar no interior, lembrei-me com amargura da nota que meu tio lhe tinha enviado e amaldiçoei-me em voz alta por não a ter lido.

Ao fixar os desenhos dos azulejos da parede do lado oriental, apercebi-me pela primeira vez dos poderes de disfarce com que era dotado o homem que queria levar à justiça e compreendi que nos tinha enganado a todos com a máscara da amizade. Para o apanhar teria de saber tudo o que se tinha passsado naquela cave.

Cuidadosamente, com os movimentos cuidadosos de um louva-a-deus, comecei a gatinhar pela cave, registando a cena no espírito, polegada a polegada, como se passasse os dedos por um texto inédito da Tora.

Deparei então com uma conta com restos de sangue, escondida atrás da perna de uma das escrivaninhas. Era escura, decorada com finos anéis em serpentina. Quando a apanhei, pensei num rosário ou num terço passado em torno do pescoço de meu tio. Seria de Frei Carlos?

Enfiei a conta na minha bolsa. Um dos dois ornatos de couro que enfeitavam a parede a ocidente tinha a franja de baixo suja com espessas marcas de sangue. O assassino terá certamente dobrado o couro em torno da lâmina, puxando seguidamente a faca com força para limpar o gume.

Havia marcas de sandálias sujas de sangue de um lado para o outro entre a parede ocidental, o tapete de orações e as escadas, mas que não subiam. O assassino tínha-se sentido acossado, procurado uma saída e então simplesmente desaparecido.

Quantas pessoas tinham deixado pegadas? As de meu tio e da moça eramfacilmente visíveis no tapete de orações. Ao que me parecia, o assassino usava sandálias e tinha os pés uma polegada mais compridos e mais largos que os de meu tio. Bem poderiam pertencer a Diego ou a Sansão: ambos tinham pés de Golias.

Ou teria havido mais que um assassino? As marcas na superfície rugosa do tapete não eram muito nítidas e nas lajes negras do pavimento seria impossível distinguir as pegadas de dois ou mesmo três pessoas se fossem semelhantes na forma e no tamanho.

O importador de tecidos Simão... voltei a pensar nele. Mesmo alguém só com uma perna poderia matar como um shohet se usasse a surpresa como uma arma contra um cabalista entoando cânticos. Mas nesse caso haveria apenas pegadas do pé esquerdo e ali havia claramente pelo menos duas marcas de sandálias do pé direito que não €pertenciam a meu tio. Portanto, se Simão estava envolvido, teria havido também um cúmplice.

Mas estava a ir longe de mais. A linha poderia ter sido ali deixada para comprometer Simão e a conta poderia muito facilmente ter sido deixada por uma mão astuta que quisesse lançar a luz pálida da dúvida sobre Frei Carlos. Mesmo as pegadas podiam ter sido fingidas.

Inclinado sobre meu tio, peguei-lhe na mão para atentar na unha do polegar. Obedecendo aos mandamentos, estava esmeradamente polida, a não ser a ínfima fenda com sangue seco onde a linha tinha ficado presa. Não era portanto de pensar que ali tivesse sido colocada por um dos iniciados que quisesse comprometer Simão? Sem pensar no que fazia, levantei a mão e levei-a aos lábios, para receber pela última vez a bênção de meu tio. Puxando-o para mim, comecei a beijar-lhe o rosto e os lábios.

Estava coberto de sangue, tingido de sangue, como uma iluminura que ganhasse vida. Quando fechei os olhos, senti-me varrido para o chão pelo vento frio de um pressentimento. O suor perlava-me a fronte. Todos os pêlos do corpo se tinham eriçado. Do meu peito escapou-se um grito, abrindo alguma porta interior por onde a visão entrou:

Estava rodeado por uma paisagem árida de montes pedregosos. O poente lançava sombras irregulares sobre ravinas e encostas, dando à cena a pura claridade da Tora. Ao longe, a oriente do horizonte, erguia-se uma luz branca que se aproximava. Continuando a subir no céu, refulgia, como num código secreto e pareceu-me que devia trazer-me uma mensagem. Eu permanecia em pé, numa atitude de oração, enquanto em torno de mim se começou a ouvir um sussurro. Semelhava a respiração de uma criatura invisível, ou do próprio ar. De repente, dessa luz branca brotaram asas e foi-se desenhando a forma de um íbis grande e luminoso. Era como se o pigmento da sua plumagem branca tivesse sido destilado pela própria lua. Esticando os pés negros em frente de si, desceu num voo picado até junto de mim, correndo um pouco para recuperar o equilíbrio, fechou as asas e depois enfiou o seu bico recurvado no peito para tufar as penas. Tinha o tamanho de um homem. Erguendo-se soberano diante de mim, era como se os seus olhos prateados fossem de mercúrio líquido e possuíssem a energia espiritual de Moisés. Abrindo e fechando o bico, dirigiu-se-me com a voz de meu tio: «Volta-te!» Obedeci e descobri então que estava na margem de um lençol de água, aí com uma milha de extensão, e que a estranha respiração que ouvia em torno a mim era simplesmente o ruído das ondas a quebrarem e a enrolarem-se. Na margem oposta, dezenas de milhares de homens formando filas como formigas, subiam a correr as encostas das colinas que se viam ao longe. «Agora vira-te outra vez para mim!» - disse o íbis. Obedeci de novo. «Como já suspeitavas, este ano chegaste tarde para o Êxodo, e deixaram-te ficar. Agora, se quiseres atravessar vais ter de voar, já não podes esperar que Moisés volte.» Quando repliquei: «Mas eu não tenho asas!», o íbis disse: «Um cabalista não precisa de asas para voar, basta-lhe a vontade.» A maneira como pronunciou a palavra "vontade" era propositadamente ambígua e podia também entender-se «bondade». Disse então: «Volta-te para sul.» Ao mesmo tempo que o fazia, a paisagem ficou suspensa no tempo. O cheiro de velino pairava a toda a volta e vi então que o mar, as colinas e o próprio íbis não passavam de figuras pintadas na iluminura de uma Haggada. Eu estava num painel que representava o Êxodo, numa praia egípcia. Tinham-me deixado ficar para trás com o Faraó.

Fui chamado ao presente pelos gritos que se ouviam na rua. «Agora compreendo - pensei - a premonição que tive há dois dias ao ver os penitentes era uma precursora desta visão. Desde sexta-feira que Deus tem procurado acesso a mim para me revelar o que agora vi. Quão desatento andei, quando tão necessário me seria!» O problema agora era o de saber se eu teria a vontade e a bondade para guiar a minha família em segurança até à Terra Prometida.

Subitamente, movido por um instinto físico de medo, a minha mão parecia ansiar a concisa evidência do punhal, sacando-o da minha bolsa. Judas e Cinfa... Mãe, tia Ester.. As minhas mãos cerravam-se num punho em torno destes nomes. A urgência de os encontrar cresceu dentro de mim com tal intensidade que cada hausto de ar parecia pular-me dentro dos pulmões.

Precipitando-me para as escadas, tirei da bolsa o «Livro de Salmos» que meu tio me pedira para entregar; aquele peso irritava-me muito para além do seu significado. Ocorreu-me então um pensamento que me fez encostar à parede: o recado que meu tio tinha escrito para o fidalgo e metido dentro do livro! Não estaria aí a resposta a grande parte das minhas dúvidas?

Encontrei-o entre a capa e a primeira página do manuscrito. Em pé, nas escadas da cave, possuído por um sentimento de temor, rasguei o selo de lacre:

«Estimado e venerado Dom Miguel,

«Aí tendes diante de vós o vosso «Livro de Salmos» e o meu sobrinho Berequias. Pergunto-vos: serão assim tão diferentes? Ambos são belos. Ambos transportam mundos dignos de ser celebrados.

«Se tendes dúvidas, reparai nos olhos de meu sobrinho. Seríeis capaz de condenar à morte um olhar tão bom e inteligente?

«Disse-vos uma vez que há criaturas criadas à imagem de Deus que não têm pés, apenas páginas. Depois calei-me, para não ter de vos fazer perguntas que vos poderiam assustar. Mas o desespero empurra-me a pena ao longo desta página e desta vez não posso calar tais questões.

«Podereis estar certo de que um livro não respira? Podereis estar certo de que não se reproduz? Se não neste baixo mundo de disfarces, talvez pelo menos na Esfera Celeste?

«Podereis sequer estar certo de que os anjos não são livros dotados de forma por Deus?

«Não será a própria Tora o corpo de Deus? «Deixai-me dizer-vos um nome: Metraton.

«Repeti interiormente este nome. Dizei-o cento e sessenta e nove vezes, se o ousais.«Será que o anjo Metatron registará ainda as vossas boas obras ou deixará que o seu olhar passe o vosso nome?

«Sois um náufrago acuado numa ilha. E eu um barco que vos atira uma corda. Não sendo a corda que esperáveis, nem eu o salvador que queríeis, ficareis a lamentar o vosso fado e a deplorar o vosso desapontamento até que eu levante ferro e vos abandone? Ou compreendereis que nenhum de nós recebe nesta vída exactamente aquilo que quereria? Não vos contentareis com o que Deus vos der? Ao fim e ao cabo, uma corda lançada por um judeu de um barco capaz de atravessar o Mar Vermelho na Páscoa não é nada para desprezar!

«Podereis mesmo concluir que viajar vos agrada. «Reparai na aliança que sempre vos acompanha, se ainda tendes dúvidas.

Que Deus vos abençoe, qualquer que seja a vossa decisão.

Abraão Zarco

«Post scriptum: Estava a ver se agora me iríeis dizer que os doutores cristãos poderiam restituir a minha mulher, a minha querida Ester, a sua virgindade!»

Foi como se dentro de mim uma porta se abrisse, assim que acabei a carta.

Miguel Ribeiro, o reputado fidalgo cristão, deveria também ser um judeu secreto! Que outra coisa poderia querer dizer meu tio com «a aliança que sempre vos acompanha», a não ser o sinal da circuncisão?

Tudo indicava que meu tio teria feito a Dom Miguel um pedido difícil de satisfazer e que ele recusara. A não ser assim, meu mestre não teria feito referência a Metatron, o anjo talmúdico que regista as boas obras de Israel. Quanto à sugestão de repetir o nome do anjo cento e sessenta e nove vezes, era bein característica de meu tio. Era o número de vezes que o verbo zakhar, lembrar, nas suas variadas formas, aparece no Antigo Ofestamento. Sempre que meu tio pretendia que alguéM pouco experimentado em filosofia compreendesse uma passagem difícil da Tora, dava-lhes uma frase sagrada desse versículo para que a repetissem esse número de vezes. Lentamente, através de canais cabalísticos, o entendimento começaria a surgir no seu espírito.

Que o pedido de meu tio a Dom Miguel tinha alguma coisa a ver com livros, parecia-me certo. Seria a solicitar-lhe uma contribuição para a compra de algum manuscrito recentemente descoberto? Teria ele descoberto algum livro tão especial, tão valioso, que a cobiça começara a surgir no seio do grupo de iniciados? Seria essa a relação entre o recado e os mestres da Cabala?

Ao retomar a subida das escadas, sentia pela primeira vez que estava a caminhar por uma vereda que me conduzia à verdade. Havia um iniciado envolvido! Talvez com alguém exterior ao grupo. Mataram meu tio pelo manuscrito valiosíssimo que ele encontrara, algo tão valioso, com tais poderes mágicos que era capaz de tornar em ferro o coração de ouro de um dos amigos de meu tio. Ao chegar ao topo das escadas, relanceei os olhos pelo corpo de meu mestre e da moça. Ambos jazendo sobre o tapete. Inclinados um para o outro como...

O pensamento de que pudesse realmente haver trato entre eles assaltou o meu espírito e a dúvida acrescentou uma enorme profundidade ao abismo de morte que me separava de meu tio. Tê-lo-ia conhecido verdadeiramente ou será que apenas o vislumbrei através de uma máscara?

De repente, ouviu-se um grito de mulher vindo da Rua da Sinagoga. Num suspirro disse adeus aos corpos ao fundo das escadas, como se me despedisse de crianças adormecidas. Na cozinha, chegavam-me as vozes dispersas de uma multidão na rua perto do quarto de minha mãe. Espreitando para fora, avistei um miúdo franzino, descalço, o cabelo castanho como um esfregão, colhendo limões do nosso limoeiro. Saindo da porta, lancei-lhe num sibilo: «Já fora daqui!». Atabalhoado, voltou-se e saiu disparado pela cancela fora. Fui espreitar por cima da parede para ver se o via, mas recolhi-me imediatamente; à minha direita, descendo a Rua da Sinagoga em direcção ao río, apinhava-se uma centena ou mais de aldeões em filas irregulares, empunhando foices e enxadas, alviões e espadas.

O bater do meu coração balançava-me de um lado para o outro. Sentei-me por uns instantes até me passar a vertigem e depois precipitei-me para o telheiro à procura de pregos e de um martelo.

Lancei-me ao trabalho com a energia do desespero e preguei o alçapão ao caixilho onde encaixava e voltei a pôr o tapete esburacado por cima, sempre com o pensamento de que «não podia permitir que ninguém profanasse os corpos». Subi ao meu quarto para mudar a roupa; apesar do baú ter sido pilhado, ainda encontrei uma camisa esfiapada de linho e umas calças que ficaram no fundo. As roupas impregnadas da seiva vital de meu tio foram parar ao fundo malcheiroso do poço do quintal.

Antes de sair para a rua, passei pela casa de Farid. Como ele era surdo, era escusado pôr-me aos berros para que aparecesse, por isso, em voz baixa, chamei Samir, o pai dele. Mas deparei apenas com o silêncio dos azulejos e da pedra. Espreitei na cozinha e nos quartos. A casa tinha sido saqueada, o tear feito em pedaços, e não havia sinais de nenhum deles. Deviam ter fugido, mas para me certificar bati com o pé no chão três vezes, depois uma, depois mais quatro vezes, formando assim o pi, o número mágico egípcio, que eu e Farid usávamos como sinal nos momentos de perigo. Se ali estivesse, haveria de sentir as batidas na sola dos seus pés.

Mas não houve resposta. Voltando ao pátio, fui seguido pela nossa gata, Roseta, com as duas cerejas que minha mãe lhe tinha pendurado ao pescoço a balançar descompassadamente. Arqueando o dorso numa espreguiçadela voluptuosa, começou a ronronar esfregando a sua pelagem cínzia nas minhas pernas. Enxotei-a com o pé e, dirigi-me à cancela. Ao sair para a Rua de São Pedro, reparei que o céu a ocidente, sobre o centro da cidade, estava coberto de fumo. Apertei na mão o punhal, pensando na minha família. Mas em vez de prosseguir, fiquei a olhar para a casa de dois andares do outro lado do largo vazio, por trás do arco de São Pedro. Os aposentos de Frei Carlos ficavam no andar de cima, mas as portadas, estavam firmemente fechadas. Sendo ele um membro do grupo de iniciados estaria também implicado na morte de meu tio? Ou seria possível que a minhaO família se estivesse escondendo em casa dele?

Precipitei-me para a escadaria da casa, saltando três degraus de cada vez, para encontrar a porta fechada. Chamei por ele.

- Abra - dizia eu - Comigo estará mais seguro. Diga-me só se judas, está aí consigo. Com os diabos, responda-me!

Nada. No meu coração insinuou-se o pecado de desejar que alguém estivesse morto para que não pudesse ser responsável de ter matado.

De novo no exterior, no largo sinistramente vazio, ouvindo os gritos vindos da beira-rio, os meus pés começaram a conduzir-me para as proximidades da nuvem de fumo que subia do centro de Lisboa. Como a casca de um ser vivo, fui-me deixando arrastar, a minha sombra alongando-se atrás de mim como Se os meus passos deixassem um rasto.

junto à Sé, passou por mim um grupo de mulheres como se fugissem de alguma invasão, mas nenhuma delas fez nada para me deter ou me avisar. Seriam andorinhas a fugir do faraó? Não reparei nos rostos e, apesar de tudo o que os bispos possam dizer, o ruído que faz um judeu a fugir à morte não é diferente do de um cristão.

No exterior da Igreja da Madalena estava um grupo de rapazes empunhando

enxadas e alviões. Acabei por dar por mim na Rua Nova de El-Rei, junto à Igreja da Misericórdia. A loja de Simão, o importador de tecidos, ficava a uns escassos cinquenta passos dali. Quando para lá me dirigia a toda a pressa, quatro homens trajando como mercadores, que conversavam à porta do outro lado da rua, olharam para mim, mas não esboçaram nenhum movimento em minha direcção. Mais adiante, um grupo de vagabundos dava pontapés num cesto de um lado para outro, como se fosse uma péla de couro.

Como explicar o efeito de ver todas as portadas da rua cerradas, as varandas vazias, as ruas sem carruagens? «Deve ser este o aspecto de uma cidade exposta a uma invasão a partir de dentro - pensei. - Uma cidade sem futuro.» Parecia que me tornara num espectro. Cogitava se o meu punho faria algum ruído ao bater à porta da loja de Simão. Fez, claro. Por cima da minha cabeça, ouvi as portadas abrirem-se. Um homem de barbas com um chapéu azul de abas largas espreitou para baixo. Era Mestre João, o senhorio de Simão, cristão-velho.

- Pára lá com essa batidela! - gritou ele.

- Não sei se se lembra de mim... o sobrinho de Mestre Abraão Zarco. Vim ver se Simão Eanes cá estava. Preciso de lhe falar. Ele está?

- Chegaste umas horas atrasado. Os dominicanos vieram buscá-lo. Abriram-lhe a barriga e depois arrastaram-no para... - acenou com a mão em direcção à coluna de fumo acima do Rossio -. Agora segue o teu caminho. Se tivesses algum juízo ias mas era esconder-te!

- Então ele está morto.

- Tu não tens olhos, tolo? Não vês o fumo? É ele! Sai-me da minha frente, seu cão marrano, antes que os dominicanos te venham buscar também! - e bateu as portadas.

Enquanto me afastava, os nomes dos restantes iniciados soavam dentro de mim num sussurro, como se me citassem para algum deserto bíblico: o taberneiro Sansão, o impressor Diego e Frei Carlos. Antes de mais nada, iria procurar Sansão. Rana, a sua mulher, era uma velha amiga da nossa vizinhança e não seria capaz de me esconder a verdade. Se o marido tivesse voltado a casa ensopado no sangue de meu tio, os olhos dela haveriam de trair o segredo.

O Rossio abria-se como uma ferida infectada inçada de enxames de pessoas vociferantes. Apinhavam-se em volta de carruagens enfeitadas, giravam pelas grandes arcadas do Hospital de Todos-os-Santos, debruçavam-se em risadas das varandas e dos beirais das janelas. As gaivotas descreviam grandes círculos no céu, soltando gritos agudos. Um maltrapilho dançava, fazendo com que o pus das suas pústulas cheias de crostas lhe escorresse para os pés. «Mordido por uma tarântula!» - gritou-me uma velha de pele curtida - Não pode parar, nem sequer para aquilo!» E riu-se até se engasgar com um furioso acesso de tosse.

Acima das cabeças da multidão, viam-se subir colunas de fumo espesso em frente da igreja dos Dominicanos. Foi o calor da emoção que me fez avançar. Voltar atrás nessa altura seria como fugir de Deus em pessoa. Ou do Demónio no momento em que ataca. E só os santos possuem esse poder.

De repente avistei Mestre Salomão, o ourives, na orla da multidão. Tinha as mãos amarradas atrás das costas por um gigante corpulento com a musculatura lustrosa de um ferreiro. O cabelo e o pescoço do ourives estavam sujos de fezes. As pernas tremiam-lhe quando me fez um esgar de reconhecimento. O seu olhar dardejante implorava-me que fugisse dali. Imaginei a sua voz: "Foge, Berequias, antes que seja tarde!» Depois empurraram-no para diante e foi engolido pela multidão.

Enfiei-me entre as pessoas para o seguir e fui arrastado para o centro por uma corrente inesperada. Sentia-me invadido pelo temor de ir encontrar a minha família no meio da turba. E apesar disso, sentia-me despojado de forças por um calor próximo do desejo no amor. Continuando a avançar, incessantemente, como quem cai dos braços de um sonho, atingi finalmente uma clareira. Uma pira. Chamas crepitantes. Cavinhas de fogo laranja e verdes desenrolando-se em direcção ao telhado da igreja. No campanário, um frade dominicano com uma grande papada empunhava uma espada com uma cabeça decepada na ponta e exortava a populaça com uma voz irosa: - Morte aos heréticos! Matai esses judeus do demónio! Que a justiça do Senhor caia sobre eles! Fazei-os pagar pelos crimes contra as crianças cristãs! Fazei-os...

O fogo causava um calor infernal, alimentado pela massa dos corpos dos judeus que lhe tinham sido lançados. Completamente entorpecido, não conseguia desviar os olhos, até que reconheci Necim Farol, o intérprete e prestamista, que parecia espreitar para mim através de uma janela de labaredas. Tinha a cabeça carbonizada e uns olhos brancos de peixe. Perante esta visão insuportável, baixei o olhar, mas junto aos meus pés deparei com a cabeça de Moisés Almal, o cordoeiro, repousando como um busto de João Baptista no meio de uma bandeja líquida vermelho-viva. A toda a volta da pira havia poças de sangue de onde emergiam corpos mutilados.

Não sei quanto tempo se teria passado, pois tal cena desafia toda a memória, até ver a cabeça de Almal ser levantada e levada por um vulto barbudo que passou fugindo. Quando desatei a seguir a sua louca correria através da multidão, avistei um homem sem camisa, suando como um mineiro, que começou à machadada ao corpo de uma velha estendido no chão. Primeiro decepou-lhe a mão esquerda, depois a direita. Reparei no anel: a água-marinha da senhora Rosamonte, uma nossa vizinha idosa que me oferecia sempre limões. O homem do machado estava tão entregue à alegria de matar que nem reparou na jóia. Ria-se e gritava: «As cinzas dos judeus devem dar um bom adubo para as nossas terras!» Ouviram-se aplausos quando ele atirou as mãos para o meio da multidão. Corri a apanhá-las. Um marinheiro do Norte, pálido e cheio de borbulhas, tinha posto na cabeça a mão do anel e dançava, cantando uma cantiga de bêbados numa linguagem que parecia jorrar-lhe das tripas. Quando o fitei, parou de gingar. Atirei-lhe aos pés as moedas que trazia e apontei para o seu troféu. Fez um sinal de assentimento, cuspiu algumas palavras guturais e, como se visasse as gaivotas, atirou ao ar a mão, que caiu salpicando de sangue a calçada. Apanhei-a e enfiei-a na minha bolsa. Fui atraído pelos brados que da escadaria da igreja dos Dominicanos me chegavam numa voz de juízo final: «Morte aos heréticos! Matai-os todos hoje!»

Era um frade atarracado, com olhos de coruja, envolvido nos seus trajos amaldiçoados. Agitava face à multidão uma imagem sangrenta do Nazareno, que empunhava como se fosse algum escudo heráldico. Salomão, o ourives, jazia na calçada ao fundo da escadaria, de costas, esvaindo-se em sangue como um cão ferido. Fios de sangue riscavam a sua túnica branca. Quando me ia a aproximar, ouvi-o gritar o meu nome, uma vez, claramente. Dois homens ensopados em suor e sangue, praguejavam e, armados de pranchas de madeira formando a cruz nazarena e cravejadas de pregos, batiam em Salomão. Salomão, capaz de moldar folhas de ouro em murmúrios de Deus. Salomão, que beijou os meus lábios e soluçou de emoção ao ver as iluminuras do Livro de Ester que eu tinha feito para ele. Salomão, que...

Que fera tarefa, a desta matança. A cada golpe, jorros de vida irrompiam do ourives como de fontes avistadas do céu. A carne dilacerada das suas mãos perfuradas estendia-se a implorar que parassem. Brados. Gritos em hebraico chamando por El-Rei Dom Manuel. Depois por Abraão, Moisés. Deus. «Mandai-os parar! Meu Deus! Fazei com que párem!» Até que foi sufocado pelo sangue que lhe brotava da boca.

- Vamos rapar o judeu antes dele morrer! - gritou um dos homens. Tirando da pira um ramo em fogo, chegou fogo às barbas de Salomão. Os olhos do martirizado ourives escancararam-se de dor, olhando furiosamente em torno à procura de socorro. Como um dardo que me fendesse o espírito, ocorreu-me um pensamento herético: «É uma falha de Deus o não podermos retirar tal sofrimento a outro ser humano e torná-lo nosso.»

Um colosso disforme com uma cruz pintada a vermelho na testa, empunhando um machado ferrugento, saltou de repente para a frente bradando por misericórdia e chuva. Descrevendo com o machado um grande círculo acima da Sua cabeça, atirou-o, despedaçando o pescoço de Salomão com a sua lâmina grosseira. Pedaços de vida foram projectados até ao sítio onde me encontrava e o seu corpo atormentado tombou como se fosse um boneco, com o pescoço esvaindo-se em sangue como vinho novo jorrando de um tonel.

Quando dei por mim, havia vários cristãos com os olhos cravados em mim.

Era uma loucura, mas no meio do meu terror, tinha começado involuntariamente a murmurar orações em hebraico! De repente senti-me agarrado por uma mão e puxado para trás. Sacudiram-me violentamente. Um rosto conhecido.

David Moisés? Fugimos ao longo de uma muralha de braços estendidos com a leve rapidez dos pesadelos. Corremos através de uma floresta de movimento. Passámos esquinas. Subimos escadarias. Descemos becos sombrios. Entrámos numa casa. Franqueámos uma porta fechada, até à segurança da escuridão. Senti uma mão a tapar-me a boca. Senti uma respiração ofegante junto ao meu rosto. Uma voz conhecida sussurrou o meu nome: «Caluda, Beri!».

Era David Moisés, o nosso antigo hazam.

- Mestre David, também viu Salomão, o ourives? - perguntei.

- Vi muitos dos nossos - replicou.

- Mas Salomão... Viu... Chegavam-nos gritos da rua: «Lá em baixo no rio! Vamos! Tragam a carroça!» Mestre David tapou-me a boca com a mão. Agachámo-nos. A nossa respiração foi-se acalmando ao mesmo ritmo.

- Viu a minha família? Minha mãe, Judas...

- Não. Mas podiam estar noutro sítio.

- Tenho de voltar. talvez tenham conseguido chegar a casa. Tenho de os encontrar e...

- Ouve - dísse ele, agarrando-me pelo colarinho. - A única maneira de os encontrares é continuares vivo. Tens de sair daqui.

- Como é que isto tudo começou? Quem é que teve a culpa disto?

- Foi na igreja dos Dominicanos. Um crucifixo com um buraco escavado e tapado com um espelho. Os frades puseram por trás uma candeia acesa e começaram a dizer a todos que a luz era um sinal do Nazareno, um milagre. Há cerca de uma hora, um cristão-novo, o alfaiate Jacob Chaveirol, estava a ...

- O filho dele, Menni, andava na escola comigo. É muito bom na Tora e faz maravilhas. Tem uma loja ali...

- É mas é um idiota! Começou a dizer que era muito melhor que Cristo nos desse chuva em vez de lume!

- E depois?

- E depois mataram-no à pancada. Abriram-lhe a barriga e arrancaram-lhe... Dois padres apelaram aos fiéis para que matassem os judeus. Mataram Isaac, o irmão dele. Fizeram-no em pedaços. A cabeça que está no campanário é a dele.

Os marinheiros do Norte deram dinheiro para se fazer uma pira de lenha. E daí a pouco... daí a pouco... - David não conseguia articular as palavras.

E o rei, porque não vem ele defender-nos? Tinham-nos dado vinte anos para...

- Dom Manuel? - Mestre David suspirou - Talvez não seja estúpido, mas é um fraco. Sabe que se mandar tropas em nosso auxílio, a multidão há-de pedir a sua cabeça. O povo odeia-o quase tanto como aos judeus. Vai esperar que os motins se acalmem e depois voltar a tomar conta da cidade. Ficámos abraçados em silêncio. Não conseguia falar-lhe de meu tio; era como se as minhas revelações fossem uma confirmação de que nunca mais voltaria para junto de mim.

E não podia confiar em nenhum cristão-novo até saber mais sobre a morte de meu tio. Perguntei-lhe:

- Sabe alguma coisa da sorte de Frei Carlos ou de Diego, o impressor? Acenou negativamente e acrescentei: - E do taberneiro Sansão?

- Nada - replicou. Os meus olhos começaram a habituar-se às trevas. Estávamos numa escada em espiral. Por cima de nós, espalhava-se uma luz ténue filtrada por uma frágil portada coberta por uma grade. De repente, reparei num rosto que nos observava através do poço formado pela escada. Estiquei-me e agarrei uma perna. Com a mão abafei um grito. Era uma rapariga. Debatia-se, mas com a força do meu medo acumulado consegui segurá-la.

- Quieta, que não te faço mal - disse eu. Ainda me resistiu mais uns momentos, mas depois o medo passou-lhe.

O sopro dela aquecia-me a mão.

- Maldita! - praguejou num murmúrio o hazam.

- Não podemos ficar aqui - disse eu - Estamos muito perto do Rossio. Vá andando, que eu vou ter consigo fora da Porta de Sant'Ana. Depois do mosteiro, no topo da colina em frente, há um grande carvalho isolado. Encontramo-nos lá. Eu aguento-a calada até se afastar. - Começava a distinguir mais claramente o meu amigo. Com os puxões, o xalle ritual via-se através da capa rasgada. - E por amor de Deus, tire-me esse seu tallít.

- Mas... e tu? - inquietou-se ele.

- já me salvou uma vez. Agora deixe o resto por minha conta. Já percebi o que se está a passar e vou-me escapar daqui. Mas livre-se desse xaile.

- Não posso - disse ele, voltando a tapá-lo com o mantelote.

- E ainda acha que o alfaiate jacob era louco! Pronto, encontramo-nos fora de Sant'Ana. Então vá.

Mestre David deteve-se como se fosse dizer alguma coisa, depois apertou-Me o braço e desapareceu pela porta fora.

O poder e o medo produzem um matiz de emoções diferente de todos os demais; com a rapariga agarrada, sentia o meu corpo como se fosse prata, um reflector, sem quaisquer restrições.

- Largo-te já - disse eu.

Sentia-lhe o bafo quente. Quando abri as mãos, ela endireitou-se e voltou a meter os meus dedos na sua boca. Sentia a sua língua palpitar na palma da minha mão como uma prece apaixonada, traçando linhas de desejo nos meus dedos. Os dedos dela insinuaram-se até às minhas partes íntimas, cingindo-as com a ligeira pressão da curiosidade. As nossas respirações ofegantes entrelaçadas ditavam o ritmo às nossas línguas que dançavam unidas. Que dois desgraçados lunáticos éramos os dois, em tais gozos no vão de uma escada com um motim lá fora.

- Lá em cima! - sussurrou, pegando-me na mão.

Terá o corpo uma vida própria. independente do espírito? Como pude deixar-me levar por ela depois de ter visto meu tio? Ou será que a paixão tem um poder de sarar que nos recusamos a admitir? Seguia-a até um quarto mergulhado na penumbra de uma cortina corrida. A fechadura da porta deu um estalido como uma mola nos sonhos. Afastei-me dela ao vislumbrar as raias de luz da janela. Dali, podia ver que nos encontrávamos numa rua lateral a uns cinquenta passos do Rossio, já na Mouraria. A gritaria chegava até nós como que filtrada por um tecido espesso. De repente, senti um baque no coração; perante mim estava a cabeça flamejante de Mestre Salomão. Mas os olhos eram os de meu tio - vazios, frios, fixando o vácuo. Tanta morte! Tanto sangue! As mãos da rapariga afagavam-me as costas. Voltei-me à procura da sua bóca, mas ela baixou-se e começou a acariciar o meu desejo com um calor húmido, contorcendo-se num ansiar impetuoso, encerrando-me numa sombra devorante sem forma e toda sôfrega, gemendo desesperadamente quando a puxei para mim e fiz redemoinhar o seu cabelo sobre o meu peito e lambi as pétalas das suas orelhas. Como se montasse os contornos da própria escuridão, agarrei-a pelos ombros e afaguei o desejo aceso dos seus seios, penetrando mais firmemente e mais longe na quente e húmida escuridão, até a sentir suspirar como num choro, e eu explodi, como quem cai numa caverna sem fundo.

Assim que acabou de tirar tudo de mim com o desvairo da ponta da sua língua palpitante, pôs-se a acariciar-me o rosto. «Vou-me lavar» - ouvi-a sussurrar como uma brisa. A porta abriu-se, enquanto eu permanecia deitado. Ouvi os passos precipitados pelas escadas abaixo. «Um marrano! - gritou - Está um judeu no meu quarto!»

Apertei o cordão das calças e abri a cortina. Avistei-a em baixo, na rua, junto de uma carruagem, rodeada de homens de capa, apontando para cima em minha direcção. Peguei na minha bolsa e saltei para o patamar, atravessei o telhado e deslizei para uma varanda do lado oposto. Sentia-me impelido pela gritaria atrás de mim. Corri pelas telhas fora, desci, por algerozes. As vozes que me chegavam da casa em baixo silvavam aos meus ouvidos como rajadas de vento. Até que deparei com um último beiral, tão repentino como o fechar de um livro. Perante mim abria-se o vazio de uma queda de quarenta pés até à calçada, separado do telhado seguinte por uma altura de dois homens. «Agarrem o judeu!» Voltei-me como para defrontar toda a cristandade. Um jovem fidalgo de cabelo comprido cambaleava desajeitadamente pelo telhado. Era alto, magro, com uma face descarnada, um queixo proeminente, com a arrogância dos bem-nascidos. As suas perneiras amarelas apresentavam manchas de sangue, como signos de uma escrita demoníaca. Nas mãos compridas e elegantes trazia um chicote.

«Aqui temos um jovem caçador desejoso de provar a sua valentia aos seus amigos e à família - pensei - E a mim cabe-me sacrificar-me a bem da sua arrogância.» Enquanto o esperava, os meus pés procuravam um apoio seguro. Parou a uns vinte pés e fitou-me com um olhar confuso. Estranhamente, sentia-me em vantagem.

- Isto vai ser um regalo! - comentou numa voz de falso à-vontade. Firmou os pés, arqueou o chicote para trás e depois lançou-o para diante com um berro. Acertou perto dos meus pés, fazendo estalar duas telhas. O fragor dos cacos na rua fizeram abrir um olhar de satisfação no seu rosto afectado. Um ímpeto como um espectro percorreu-me desde os pés até ao peito e à cabeça: como se a graça de Deus se elevasse. E eu agarrei com força o seu poder.

- Dizem que se batermos com força num judeu podemos ouvir o ouro a tilintar-lhe no peito - disse ele, com um sorriso malicioso - Sempre quero ver isso!

Era uma lenda, que infelizmente tinha um fundo de verdade. Os judeus expulsos de Espanha em 1492 foram proibidos de levar consigo quaisquer valores. Muitos de entre as dezenas de nillhares que atravessaram a fronteira portuguesa correram o risco de engolir moedas.

Ao subir para o pico do telhado, fiz saltar uma telha. Apanhei-a e segurei-a como um escudo diante do peito. Passou-me pelo espírito a imagem de Moisés e as tábuas da lei. O sol escaldante da era da Tora parecia impelir-me para o céu.

O meu perseguidor ria-se. Deu umas passadas desastradas para vir ao meu encontro no cimo. Olhámos um para o outro através do silêncio de dez pés.

O seu rosto contorcia-se de desdém. Entoei um cântico com os nomes do Inominável. - Isso é algum bruxedo dos marranos? - interrogou.

Como defesa, senti-me tentado a invocar uma fórmula cabalística pela sua morte. Forçando-me ao silêncio, suspendi todos os meus pensamentos até mais não haver que uma ligeira presença com o peso da minha alma.

- Tolo de judeu! - disse ele - Havemos de vos matar a todos. Esfolar-VOs e sacar-vos do corpo o vosso ouro!

Senti-me empurrado por uma súbita força visceral. Avancei. Ele levantou o chicote com lentidão, como se atolado num tempo líquido. Estaria surpreendido por ver um judeu atacar sem aviso? Não procurou esquivar-se, enquanto eu, empunhando a telha como um escudo, mergulhei em direcção a ele como um touro, deixando-o sem respiração.

Foi atirado para o fundo do telhado, escorregou no beiral e precepitou-se no vazio soltando um grande brado. Quando atingiu o chão, chegou-me um som abafado como o de um punho enluvado batendo a uma porta. Quando espreitei para baixo, vi-o estendido na calçada numa posição bizarra, desconjuntado como um bonifrate que tivessem atirado fora.

Para escapar, tinha ainda de saltar de um telhado para outro. Mas parecia que o espaço se alargava diante de mim quando eu saltava. Embatendo na parede, senti-me cair sem apoio, até aterrar numa varanda às ripinhas que ficava por baixo. Tinha o braço bastante pisado e sentia a cara a arder com o sangue.

A casa devia ter pertencido a antigos muçulmanos ortodoxos, a julgar pelo corredor que ficava por baixo de mim e de onde, antes de a sua religião ser também proibida, as mulheres deviam observar sem serem vistas o mundo lá em baixo.

Com os pés, fui batendo nas ripas azuis até elas cederem e deixei-me então cair para dentro de casa. Sentia-me estranhamente calmo, ali onde não me podiam ver. Estava num quarto com alguns catres e tapetes de couro. Quando me dirigia para uma parede caiada, ouvi vozes. Em torno de uma lareira onde as brasas ainda ardiam, estava reunida uma família. Um homem alto, cor de canela, de vestes verdes e um kipá branco, tinha os olhos fitos em mim. Possuía uns ombros largos e possantes. Os olhos castanho-claros pareciam ameaçadores como os de uma águia. Entre as sobrancelhas emergia um tufo de pêlos escuros, emprestando-lhe um ar misterioso. Um único pensamento me dominava: «Estou cansado de mais para lutar. Se este homem decidir tirar-me a vida, ofereço-lha como uma oração.»

- Procuras refúgio? - perguntou num português hesitante.

- Andam atrás de mim - respondi no meu árabe de sotaque hebraico. Ambos os nossos olhares se dirigiram para o sangue que pingava no tapete de couro. Aparei-o com a minha mão - Desculpe estar a sujar o...

Chamou a mulher. Ela acorreu imediatamente, com uma menina agarrada aos vestidos. Tinha os cabelos e as unhas avermelhados, tingidos de hena. Depois de aplicar um unguento verde na ferida, envolveu-me o braço numa ligadura de linho. Os seus olhos negros, sombreados com um traço espesso, fitavam-me com temor, até me ouvir gabar a graça de sua filha com uma copla árabe que Farid tinha escrito.

O ombro direito tinha ficado deslocado com a queda e, agora que me sentia mais calmo, apercebi-me de que mal o conseguia mexer. Falecia com as dores e começou a ficar embotado.

- Chamo-me Attar - disse o homem - Sou oleiro. Vim de Tavira.

- E eu Berequias Zarco. Vendo fruta e sempre vivi em Lisboa.

Disse-me para me sentar numa almofada e deu-me água. Quando falei em Samir, o pai de Farid, vi acender-se-lhe no rosto um sorriso. Eram conhecidos e tinham andado juntos a estudar o Alcorão em Granada, quando ainda era a capital do reino íslâmico.

- Vou buscar mais água - disse ele, assim que acabei o copo. Ao passar por trás de mim, agarrou-me subitamente. Deu-me um forte puxão. O meu ombro deu um estalido. Fui percorrido por uma vaga de dor, que depois recuou. .- Vais ver que te sentes melhor agora - disse ele - Mas nada de andar aos saltos pelos telhados durante algum tempo.

A mulher dele limpou-me a cara com água quemte, enquanto eu experimentava o braço.

Se quiseres podes ficar aqui até passar a confusão, disse Atar.Tenho de ver se encontro um amigo e depois tenho de voltar para casa.

As minhas calças apresentavam um grande rasgão nas costuras. Attar mandou-me mudá-las e vestir um albornoz de cor parda com uma orla na gola enfeitada com delicados arabescos de cor verde- amarelada.

- Como lhe hei-de pagar tudo isto? - perguntei.

- Os bens dos nómadas não são para lhes ficar nas mãos - respondeu, com um gesto a afastar o meu cuidado - Melhor assim. Tudo o que não tem asas arranja maneira de nos ditar os pensamentos - e com estas palavras colocou-me um kipá de malha na cabeça - Que Alá vá contigo - disse-me ele à porta, em despedida.

Repeti a saudação e inclinei-me em agradecimento.

- Devolvo as roupas logo que possa. Ele puxou-me para a cabeça o capuz do albornoz e por sua vez inclinou-se também. A rua estava vazia quando saí. Caminhando apressadamente, procurava em vão abafar o ruído dos meus passos na calçada. O cheiro acre da carne queimada dos judeus pairava agora por toda a parte. Estava certo de que acima da minha cabeça se elevava uma pluma de fumo, mas não olhei. Cheguei ofegante à Porta da Mouraria, sob o olhar de desprezo de duas sentinelas a cavalo. Mas com as roupas que envergava, aqueles representantes da Coroa nunca ousariam tocar-me; as violências contra antigos muçulmanos seriam vingadas com igual tratamento aos cristãos que se encontravam nas mãos dos turcos no Norte de África. Quanto à populaça, a única coisa com que contava era o meu punhal. Rezava para não ter de o usar.

Assim que saí da cidade, baixei o capuz e desatei a correr pelos campos diante do Convento de Santa Ana, enfiei pelas moitas de giesta e de ervas ressequidas em direcção ao enorme carvalho que coroava a colina que dali se avistava.

Mas Mestre David não estava lá. Um pequeno grupo de cristãos-velhos apreensivos concentrava-se junto à ponte romana mais abaixo. Indignados, contavam como a populaça se tinha atirado a quem quer que parecesse ainda que remotamente relacionado com os judeus. «Alguns cobardes - diziam - chegavam a servir-se do motim para vinganças pessoais ou para se verem livres de dívidas.»

- A culpa é dos cristãos-novos. Eles é que causaram a seca! - grasnava uma velha encarquilhada para quem a queria ouvir. Um grupo de aldeões armados de martelos e de barras de ferro que tinham pilhado na oficina de um ferreiro avançaram para a Porta de Sant'Ana à caça de marranos, acirrando-se mutuamente com as chalaças de caçadores que tivessem farejado sangue. Encostei o peito ao chão e fiquei à espera. O sol já se tinha posto e o crepúsculo espalhava no céu tons de madrepérola. Os corvos esvoaçavam na ramaria do carvalho solitário por cima de mim. Imaginava a morte como um charco fluindo do meu estômago para as mãos e para os pés. «Que pecado estaríamos a expiar cogitava - para que Deus nos privasse assim do melhor de Israel? Porque teria Ele recorrido aos cristãos de Lisboa para nos punir?»

Em breve, as vozes dos nazarenos tinham-se dissipado. O medo só voltou a tomar conta de mim quando me lembrei da mão da Senhora Rosamontes que tinha na bolsa. A nota que tinha caído do turbante de Diego, agora manchada de sangue, encontrava-se junto aos seus dedos. Ao ler aquelas palavras - «Isaac, Madre, vinte e nove de Nisan» - perguntei a mim mesmo se aquilo não teria a ver com a morte de meu tio. Será que o crime tinha sido originariamente premeditado por Diego para cinco dias mais tarde, sexta-feira vinte e nove? Seria Isaac o nome do criminoso comprado com meia dúzia de moedas roubadas de um cofre do culto, da Mãe-Igreja, da Madre? Apercebia-me, claro, que estava a tecer uma história complicada servindo-me de alguns meros fios de provas e que uma tal hipótese não passava de remota possibilidade. Mas sentia-me tão só, tão longe da minha família e de Lisboa e do amor de Deus, que sentia a necessidade de acreditar numa fábula, por mais inverosímil que fosse, que desse alguma ordem aos acontecimentos daquele dia terrível.

Tal é o poder da solidão. E compreendi então que uma liberdade assim, a que é deixada aos órfãos abandonados e aprendizes sem mestre, pode ser o mais temível de todos os estados.

 

Passava já da meia-noite desse domingo, a terceira noite sagrada da Páscoa, e Mestre David não tinha aparecido, quem sabe se estaria morto ou escondido. À Porta de Sant'Ana apinhava-se uma turba de cristãos ainda mais compacta. À Porta dos Monges, mais a oriente, estavam menos. Depois de ter passado uns quantos aldeões sonolentos que comiam com sorvos ruidosos um caldo em gamelas de pau, atravessei a ponte visigótica fortificada de regresso a Lisboa, com a mão cerrada em torno do punhal que trazia dentro da bolsa. O crescente da lua deslizava sobre a corrente lá em baixo como um bote celestial.

Sentia-me aguilhoado por ferroadas de ruídos como agulhas de marfim. Apercebi-me apavorado que estava apanhado de febre. E no entanto, teria eu alguma vez estado mais vivo? Cada um dos nervos do meu corpo procurava içar-se para o presente à procura do toque da sensação. Será que a cidade já era segura? A resposta parecia não contar; uma saudade pungente no peito, tão poderosa quanto um cântico da Tora entoado por meu tio, empurrava-me para casa.

Para além da porta, uma vaga música de trompas em contraponto parecia dançar como uma sombra ao longo das muralhas mouriscas que rodeavam a parte mais antiga da cidade. À medida que subia, via erguer-se perante mim o Palácio da Alcáçova, com as suas torres em forma de bolbo brilhando com uma luz alaranjada, que se diluía nas trevas como uma névoa. Centenas de pés mais abaixo, como um protesto contra os meus movimentos, dormia o coração de Lisboa e o maior bairro judeu, conhecido entre nós por Pequena Jerusalém, vinte mil casas que o luar revelava aninhadas pelas faldas das colinas e pelos vales e recolhendo-se numa curva do Tejo. Rezava pela minha família e o brando palor do luar sob as minhas pálpebras destacou-se e fundiu-se como movido por anjos.

Desci pelo íngreme labirinto sinuoso das velhas escadarias e vielas. Ao passar pela Igreja de São Martinho, fiquei paralisado pelo cheiro de fumo. Abrandei

O passo, avancei encostado às paredes caiadas. Diante de mim abria-se o Largo dos Loios. Face às inseguras arcadas do convento, crepitava uma fogueira que lançava sobre a turba caprichosas borboletas de luZ e sombra. No meio, via-se um grupo de cristãos-novos da judiaria Pequena com os braços e pés amarrados com cordas da marinharia. Em pé, em filas irregulares, com as roupas esfarrapadas, as cabeças pendentes de exaustão. Sem uma palavra. O olhar vazio, perdido de toda a esperança, revelava que tinham sido arrastados pela cidade durante horas e horas. Homens brutais, armados de espadas e alabardas, impediam-nos de se mexer. Rastejei de volta e escondi-me atrás da parede fendida da taberna da esquina.

- Por favor, não me façam nada!

- Matem-me se quiserem, mas poupem os meus filhinhos! Estas súplicas atingiam-me como punhadas, enquanto o meu olhar procurava o rosto dos meus familiares à crua luminosidade das tochas. Abençoado seja o Senhor, não via nenhum deles. Mas reconheci todos os presos manietados, gravei os seus rostos na minha memória de Tora.

Um monge de nariz aquilino balançava um turíbulo fumegante de prata e amaldiçoava os judeus em latim. Quantos teriam já sido arrastados da nossa vizinhança e feitos em cinza? O pequeno Didi Molcho, que todos pensávamos que viria a ser um grande poeta? Teria o seu futuro sido arrancado das mãos de sua mãe e ... ? Ou Murça Benjamim, que por trás de São Vicente me tinha mostrado pela primeira vez o escuro segredo das raparigas? Seria o seu corpo de assombro que no meio daquela coroa de chamas estaria agora a ser ... ? «Por piedade supliquei - que esta noite mais ninguém seja queimado.» Mas por entre o respirar da minha prece uma pergunta assomava: como é possível Ele ter permitido a profanação de alguém feito à sua imagem?

Samuel Bispo, o ferreiro, atado à monumental cruz de pedra no meio do largo, estava a ser chicoteado. Recuei para as trevas, sem olhar para trás. Ruas vazias ecoavam as batidas soturnas do meu coração. Sentia-me um cobarde de proporções bíblicas por o ter abandonado a ele e ao resto dos nossos prisioneiros. O meu peito e o ombro magoado doíam-me com guinadas sucessivas e eu sentia-me envergonhado do meu terror. Agachei-me até recuperar o fôlego e rezei pelo meu alívio. Senti um cheiro adocicado a picar-me as narinas. Levei a mão ao nariz e vi que sangrava. Vinha aí gente na minha peugada? Pus-me em pé num pulo e encostado a uma porta de ripas fiquei à escuta. Chegava-me o rumor de água a pingar. Um morcego cortou o ar e mergulhou numa janela aberta do outro lado da rua e senti-me atingido por um terror tão violento como o rufar de um tambor mourisco. Prossegui a caminhada. Vagabundos andrajosos dormiam no meio de ovelhas no Largo do Limoeiro. Um deles, que estava acordado, fixou-me com os seus olhos curiosos de idiota. Ao atalhar pela frente da nossa antiga estalagem e hospedaria, desci as escadas depois da malfadada casa onde Isaac Ben Zachim se tinha dado a morte e aos seus filhos, depois da conversão. Cortei para o beco por trás da Igreja de São Miguel e, como quem vem de cair de escantilhão, vi-me de repente a calcorrear a Rua de São Pedro. A meus pés espalhavam-se milhares de cebolas e alhos, de uma carroça que tinha sido derrubada. Uma ilha palpitante de ratazanas escuras formava-se em torno do corpo despido e esventrado de um homem decapitado. Corri para casa. Desde a última vez que ali tinha estado, meio dia antes, o nosso mundo tinha sido profanado. Havia fezes atiradas contra as paredes, lojas pilhadas, portas e portadas derribadas. À entrada da nossa antiga escola pendia o corpo do Doutor Montesinhos. Tinham-lhe pintado no peito com os dedos uma cruz de sangue. Da boca surdia um soberano de ouro: deve ter sido algum judeu mais corajoso que a pôs lá para pagar a travessia do Rio Jordão. Uma das sandálias caía-lhe solta, com um galho de loendro pendente da presilha do calcanhar. Peguei nela. Dirigi-me para casa, esgueirei-me pela cancela. No pátio, duas galinhas que se tinham escapado da capoeira dos vizinhos cacarejavam correndo de um lado para o outro.

O limoeiro tinha sido derrubado à machadada. No meu espírito, entoei o preceito sagrado do Deuteronómio que condena o derrube das árvores de fruto mesmo durante um assédio: «Podeis comer dos seus frutos, mas está-vos vedado cortá-las.» Em voz alta, chamei: «Cinfa! Judas! Ester!» Estive quase a chamar por meu tio, mas a imagem dele estirado, rígido e branco, selou o silêncio dos meus lábios. Quando agarrei a maçaneta da porta, o vulto cinzento e misterioso de Roseta deu um pulo para o muro baixo junto de mim. As cerejas tinham desaparecido da coleira. «Espera» - sussurrei. Mas ela saltou para dentro mal viu a porta entreaberta.

- Mãe! Tia Ester! - chamei em voz baixa. As trevas da noite contiveram a respiração. A lareira estava apagada. Tacteei a tijoleira do chão. Estava molhada. Sangue? Levei os dedos à boca. Era só água. Cortei a mão na ponta de uma faca que tinha tombado, praguejei, e seguidamente bendisse Aquele que dá poder ao ferro. Empunhei-a enquanto caminhava às apalpadelas para o quarto que partilhava com judas e Cinfa. Acariciando o pobre colchão vazio onde costumavam dormir, fiz uma prece pela segurança deles. Pé ante pé dirigi-me para o quarto de minha mãe, chamei-a em voz baixa, palpei com a ponta dos dedos a nudez vazia da sua cama. Enrolei o cobertor em volta dos ombros para ver se deixava de sentir arrepios.

Onde estariam todos eles?

O meu baú tinha sido pilhado outra vez, mas ainda tinham deixado a maior parte da roupa usada e já puída que tinha herdado. Libertando-me do cobertor de cima dos ombros e despindo o albornoz de Attar, que me dificultava os movimentos, vesti um par de calças de linho de meu pai e uma das camisas do meu irmão mais velho. No baú de meu tio, encontrei a sua antiga capa de lã. Estaria eu agora só, o herdeiro de toda esta roupa, o narrador desta história?

Atravessando o pátio, dirigi-me a casa de Farid e chamei em voz baixa por seu pai. Ao ouvir pesadas passadas no lado de fora, escondi-me. Espreitei pela janela e avistei dois homens armados de espadas, que giravam o olhar em redor a vigiar o pátio. De repente, as solas dos meus pés reconheceram três batidas no chão de tijoleira. Mais uma. Depois quatro. Era Farid a formar o número pi nas traseiras da casa. Rastejei da sala da frente para a cozinha. Senti uma mão suada a agarrar-me o braço. Saudámo-nos com um beijo e depois agarrei Farid enquanto os seus soluços silenciosos pareciam dissolver-se através da minha pele no meu coração. Não podia permitir-me abrir-me a emoções e afastei-o. «Não encontrei ninguém» - informei-o na nossa linguagem de sinais, com os dedos na palma da sua mão. Pensei em o pôr ao corrente da morte de meu tio, mas fui retido pela reserva de que poderia não ser verdade. Seria o meu mestre um cabalista tão poderoso ao ponto de poder criar uma tal ilusão?

Farid começou a fazer sinais em movimentos agitados, frenéticos, mas eu não estava habituado a ler as suas palavras na palma das mãos.

- Mais devagar - pedi-lhe.

- QUando os cristãos vieram, tentei fugir da Judiaria Pequena - começou Farid - Mas eram muitos. Parecia uma nuvem de gafanhotos. Voltei para cá para me esconder. Houve um momento em que vi Judas. Só o vi a ele. Frei Carlos ia a correr pela rua abaixo com ele. Depois desapareceram na igreja. Ainda tentei chamá-los, mas a minha voz...

Então Frei Carlos estava vivo! Se calhar estava mesmo escondido quando lhe fui bater à porta! Mas que se passaria com judas?

Sentia a palma da mão de Farid achatada e comprimida contra a minha.

o pulso dele batia descompassado. O espaço e o tempo dissiparam-se até mais não haver que duas presenças reunidas numa terna fronteira.

- Fiz o sinal pi, para ti, esta tarde, uma hora ou duas depois do bater das nonas, mas ninguém respondeu - inquiri no nosso código.

- Andava à procura de Samir.

- Soubeste alguma coisa?

- Estava numa das mesquitas secretas da Mouraria quando eles vieram fez ele, abanando a cabeça - Não consegui chegar lá. Não sei nada.

Dois homens com espadas violaram a santidade do nosso pátio - assinalei - Vamos escapar-nos e vamos a São Pedro ver se vemos judas e Frei Carlos.

Farid levantou-se e conduziu-me através de quadrados de luz e sombra para a porta das traseiras. Assim que pusémos um pé fora, um homem de cabelo comprido armado de uma lança surpreendeu-nos. A arma voou em minha direcção.

Atirei-me para o chão. O meu braço direito ardia - o sangue começou a correr da lançada que me atingiu no cotovelo. Farid deu-me um puxão para me levantar e desatámos a correr como loucos em direcção ao rio. Na Escada dos judeus percebi que o nosso perseguidor continuava atrás de nós aos berros, a pedir ajuda, e acabaria por atrair uma chusma se não o fizéssemos calar. Detive-me, agarrei Farid e comuniquei-lhe o meu plano por sinais. Assentiu com um aceno, continuou a correr pelas escadas abaixo e cortou para o beco depois da botica do Senhor Benadife. Com o sangue a pingar da mão, esperei o meu perseguidor no topo das escadas. Atirei fora as sandálias para não escorregar na calçada. Chegou ofegante ao sítio onde eu estava. Reparei que era mais novo do que eu, com uma cara redonda, de quinteiro, e uma grenha de cabelo preto revolto. Apesar de toda a sua ferocidade, tinha uns olhos amedrontados. No cinto, ao dependurão, viam-se orelhas humanas; numa delas, um brinco de filigrana tilintava sempre que batia na sua anca. Noutro tempo e noutro lugar, tê-lo-ia descrito como um dos aterrorizados filhos de Saúl. Que sentido vinha a ter tudo isto? Era como se Lisboa tivesse escancarado as suas portas a uma crescente epidemia de insânia.

O fôlego ia-me chegando, como se de uma terra estranha para além do medo.

- Volta para o teu milho e para o teu centeio - disse-lhe eu.

- Roubastes os melhores campos a meu pai! - respondeu, agachando-se como quem se prepara para saltar - Não te mexas! - ordenou. A lança balançava desajeitadamente; via-se que não estava habituado a usar tal arma.

- Trabalho a fazer iluminuras e a vender fruta. Nunca roubei nada! É estranho como o sentido de humor nos pode visitar, mesmo nas ocasiões mais sérias... Nesse momento pensei: «Bem, a verdade, verdadinha... uma vez um pão-de-ló com um amigo ... »

- Marranos! Acudam! - gritou com quantas forças tinha. Numa voz cheia de ódio, acrescentou: - A terra é nossa há séculos! O vosso povo... Viveis apartados de nós, trazeis-nos a peste, bebeis o sangue das nossas crianças!

- Devias queixar-te é de quem te tirou as terras! - disse eu.

- Vós andais às ordens deles! Governais-lhes as propriedades, cobrais-lhes os impostos!

Por trás dele, Farid deslizou por um telhado como um gato e avançou com pezinhos de lã.

- Larga a lança e vai-te embora, que não te acontece nada - disse eu. Num movimento brusco, ele investiu. Desviei-me, mas senti uma ferida abr'ir-se no meu ombro são, como se o tivessem esfolado. Ao ver correr o sangue, pensei: «Nunca mais hei-de deixar que um cristão me faça mal.» Farid apanhou-o por trás. Com os seus braços possantes rodeou o pescoço do moço e encostou-lhe ao rosto a lâmina curva da sua adaga mourisca. Eu recolhi a lança e disse:

- Se em vez de nos atacares a nós, atacasses os nobres, as coisas andavam melhor!

Do fundo da rua chegavam até nós brados medonhos: «Segura-os, meu valente! Vamos já aí!». Fiz sinal a Farld para o soltar; tínhamos que o trocar pelas nossas próprias vidas. Ao sentir-se livre, o moço cuspiu-me na cara.

- Quando te apanharmos, hei-de arrancar-te os tomates e pendurá-los ao cinto! - ameaçou.

Dei-lhe um golpe com a lança na anca, que o tombou. O sangue envolveu-lhe a perna, como que a abafar os seus gritos dilacerantes. Farid agarrou-me e fèz-me dar meia volta. Precipitámo-nos pela Escada dos Judeus abaixo em direcção ao rio. Atirei às águas de prata aquela maldita arma onde o meu sangue se confundia com o de um cristão-velho. Enquanto corria, pensava na violência que parecia irromper em mim com tamanha facilidade. Não teria também eu muito simplesmente andado todos estes anos a usar uma máscara de devoção e de docilidade? Não haveria um Berequias que eu apenas vislumbrara em momentos de raiva e de desespero?

A madrugada surdia em tons de rosa e de ouro velho. Estávamos escondidos num banco de areia de uma lagoa de caniços entre Lisboa e Santa Iria. Acordei de um sono sem sonhos nos braços de Farid, espantado, surpreendido com o regresso do sol. Enquanto ele me limpava a testa e me obrigava a sentar, senti-me impressionado pela sua beleza singela, especialmente pelo escuro buço juvenil que lhe despontava no rosto, contrastando como um adorno com a sua pele azeitonada. As espessas madeixas de cabelo negro como carvão emolduravam-lhe as faces como uma juba, cobrindo-lhe a fronte e caindo em cascata sobre os seus ombros largos. Que tinha um ar de mágico, acusavam as pessoas que temiam o seu silêncio e o juízo dos seus olhos verdes luminosos e que na sua ignorancia criam que o surdo era maligno. Mas as únicas magias com que Farid cismava tinham a ver unicamente com os seus versos. Era um poeta nato e as mais das vezes o seu olhar estava simplesmente concentrado no seu interior, avaliando apenas a curva de uma frase ou o contorno de um ritmo. Neste momento, os seus lábios adelgaçaram-se numa fenda pensativa. Apertava com os dedos o comprido lóbulo da orelha direita, como era seu costume sempre que estava preocupado. Parecia que ansiava por falar, mas claro que tal era impossível. Impelido pela beleza de Farid, fui levado a observar a minha própria imagem nas águas calmas que nos rodeavam. Comparada com a dele, a minha figura era desgraciosa, e era como se me fosse impossível reconhecer-me neste gémeo que via reflectido mirando-me com o seu olhar acossado, o cabelo emporcalhado e emaranhado caindo-lhe sobre os ombros. O jovem estudioso de perfil inquiridor, em tudo semelhante a tio Abraão, parecia ter sido engolido pelo jovem rústico, descarnado, de face agreste, um Pã vingativo. Ter-me-ia tornado numa criatura meio-humana, como os dominicanos nos concebiam?

Farid bateu-me no ombro, oferecendo-me do pão que tinha na sacola. Recusei, pois estávamos ainda no terceiro dia da Páscoa e celebrando o Êxodo, apenas me sendo permitido o pão ázimo.

- A tua febre baixou durante a noite - disse por gestos - Sentes-te melhor?

O meu ombro deslocado estava rígido, com a mesma dor surda, nodosa, que para sempre haveria de associar àquela Páscoa de morte. A ferida no braço estava mole, com crostas de sangue. -tinha o pé direito a latejar, com os dedos cheios de golpes.

- Fomos abandonados por Moisés - comentei por gestos - Temos de chegar à outra margem do Mar Vermelho à nossa custa. Estamos completamente sós.

Enquanto Farid comia, os juncos em torno a nós balouçavam em harmonia com a ligeira maré. O som da água lambendo a areia era como o de gamos a beber. Tudo estava tranquilo, como sempre deveria ser. Comecei a chorar, como se estivesse perante as portas da compaixão de Deus e com os meus gestos interroguei o meu amigo:

Qual será o mundo real? Este ou...

Paraíso e Inferno são o mar e o céu - acenou em resposta - E tu és o horizonte.

Nesse momento as suas palavras não me diziam nada. Era antes a elegante dança das suas mãos possantes que de tão bela se tornava quase insuportável. E quando ele me acariciou no rosto, os soluços que retinha na garganta romperam. A lembrança da fogueira irrompeu como lava impetuosa sobre ambos. Mas mesmo então não fui capaz de lhe falar em meu tio. Farid pegou na mão da Senhora Rosamonte. Como estava assustado! Tremia. E poréin deixou aqueles dedos de mármore ensanguentado pousados sobre as suas pálpebras enquanto rezava. Só então reparei nas feridas e nódoas negras que tinha no pescoço.

- Vamos enterrá-la num limoal - diziam os seus gestos - Assim pode continuar a presentear-nos com limões.

- Que foi isso? - inquiri, apontando as feridas.

- Nada - respondeu.

- Diz.

- Foi a noite passada no beco. Um homem que tentou deter-me. Matei-o.

Era a primeira vez que um de nós usava o verbo «matar» na primeira pessoa. Ambos compreendemos que a nossa linguagem de gestos tinha de mudar para poder acompanhar este novo século cristão-velho. Como se nos parecesse despropositado, nenhum de nós disse mais nada enquanto caminhávamos ao longo do Tejo, de regresso a Lisboa. Sentindo-me distante das minhas próprias emoções, lembrei-me do jovem fidalgo que tinha empurrado do telhado. Onde haveria de encontrar perdão por ter tirado a vida a um ser que recebera uma centelha do amor de Deus?

No exterior da Porta de Santa Cruz deparámos com alguns barcos do sal atracados. Mulheres de pés nodosos e cheios de bolhas, balançando com potes de cristais alvos à cabeça, sorriram para nós. As crianças brincavam, os cães abanavam a cauda. Um mercador numa indumentár'ia escarlate e verde levou a mão ao barrete saudando-nos, sem qualquer razão que se pudesse vislumbrar. Farid comPrOU arroz doce e sardinhas assadas a uma das mulheres que vendia comida junto à margem. Foi ele quem devorou tudo, pois eu não o podia fazer.

Entrar na judiaria Pequena era como sair de um teatro. De repente, a imagem não surgia da negação ou da separação, mas sim como era, rodeada de fezes e fedendo a violência; cauterizada com o ladrido de cães a desfazerem-se em baba, em torno de ilhas oscilantes de ratos e ratazanas.

Os sobreviventes, de olhar vago, limpavam o sangue das suas soleiras, ostentando máscaras sem lágrimas, arrastando os pés nus e desencantados. Íamos dando conta dos corpos inertes: Saul Ha-Kohen dobrado sobre as ripas da janela do quarto, com um braço, rígido como carne em salmoura, agitado pelo vento de um lado para o outro, batendo um código estranho numa portada. Raziela MOr, esventrada, com uma cebola na boca, que sua filha Nafa procurava extrair, estava coberta de moscas que punham os seus ovos no ventre dela. O Doutor Montesinhos pendia rígido e intumescido do ornato espiralado que encimava a porta da nossa escola. Sentado numa pá, via-se um recém-nascido desconhecido a quem tinham arrancado a cabeça. Face ao impensável, que assim tomara forma, nenhum de nós ousava falar.

Alguém pode imaginar o que significa ver uma criança decapitada sentada numa pá? É como se todas as línguas do mundo ficassem esquecidas, como se todos os livros escritos se tivessem reduzido a pó. E como se alguém pudesse ficar feliz com tal coisa. Por pessoas como nós não terem direito a falar ou escrever ou deixar qualquer traço na História.

As portas da nossa loja jaziam agora sobre a calçada voltadas uma para a OUtra em ângulos oblíquos, como a entrada para um mundo torvo subterrâneo.

Do outro lado da rua, da casa da Senhora Faiam, chegavam-nos queixumes abafados em hebraico. Os olhos azuis do seu cão Belo fixavam-me suplicantes por cima do muro. Segurava na boca um velho osso lascado, amarelecido pelo tempo; ao que parece, tinha voltado a encontrar os despojos da pata esquerda dianteira que recentemente lhe tinha sido amputada e que a Senhora Faiam tinha enterrado atrás da Igreja de São Pedro. As narinas fremiam como se estivesse no rasto de alguém a quem mostrar a sua presa.

Minha mãe e Cinfa vieram ao meu encontro no pátio. Tinham andado a apanhar os pedaços de ardósia partidos. Cinfa gritou o meu nome e deu uma corrida aferrando-se ao meu braço como se tivesse medo de escorregar. Minha mãe deixou-se cair de joelhos e começou a gemer. Do pescoço pendiam-lhe dois talismãs de pergaminho. Quando a levantei, agarrou-se a mim com tal desespero que os nós dos dedos ficaram brancos e soluçava num modo que parecia estar a vomitar. Quando recuperou o fôlego, disse:

- Não sabemos do Judas. Não sei o que... Estreitava-me tão fortemente que tinha a impressão que o seu coração batia dentro do meu peito. Cinfa abraçava-se a Farid.

Não te fizeram mal? - perguntou minha mãe - Não houve nada que não...

- Não. Estou bem. E tia Ester? E Reza?

- Ester está magoada, mas viva. Reza não sabemos. Voltou-se para Farid. Apesar de não lhe agradar muito a minha amizade com ele e de se sentir atemorizada com o seu silêncio, fitava-o com ansiedade.

Levantou a mão e tentou imitar o nosso gesto de saudação. «O Farid está bem?»

- perguntou-lhe.

Farid sorriu amavelmente e inclinou a cabeça em agradecimento.

- Está bem, também - disse eu - Onde é que estavam todos ontem à noite? Vim cá, mas a casa estava vazia.

- Estávamos cá! Estava escondida na loja com a Cinfa. A primeira vez que os cristãos cá vieram tínhamos ido fazer a sesta com a Didi e a mãe. Viemos a correr para casa e demos com...

- E não me ouviram? - interrompi.

- Estávamos no meio dos barris de feijão e tapadas com cestos de figos Meio podres - disse minha mãe, abrindo as mãos com manchas cor de púrpura. Não nos mexemos dali até não podermos mais. Não se ouvia grande coisa.

Assim sujas, com a pele violeta dos figos e a cheirar a açúcar fermentado, tanto ela como Cinfa me pareciam de repente possuídas de uma beleza etérea; resplandeciam como quem regressa à vida. Agora ria-me, com um absurdo alívio. Beijei-a na testa. «Linda menina» - disse eu, como se fosse o meu pai.

- Os cristãos-velhos pregaram Ester ao chão diante da Igreja de Santo Estêvão - disse ela num tom conspirativo - E depois...

Acenei a mostrar que entendia e ela baixou os olhos.

- Mãe, viu algum dos iniciados@ Frei Carlos, Diego, Sansão...

- Ninguém. Depois de ter verificado por toda a casa, Farid informou-me que Samir não tinha voltado. Entrámos para minha casa. Tia Ester estava sentada na cozinha cOm a mão entalada entre as pernas, os pés descalços numa poça de água. Beijei-a na testa. Estava fria. Em silêncio. Cobri-a com um cobertor da cama de Cinfa e de Judas. A medo, sussurrei a minha mãe:

- Então... então ainda não viu o tio?

- Não. Pensei que devia estar na cave. Mas o alçapão está fechado com pregos. Deve tê-lo selado. E as cortinas dos postigos estão corridas. Não se vê nada para dentro. Batemos e gritámos por ele dúzias de vezes, mas não há resposta. E tenho medo de forçar a entrada. Ele lá terá as suas razões para a querer fechada, Para proteger os livros ou outra coisa mais... mais oculta. Espero que esteja bem. Se calhar foi ver se nos encontrava e não pôde voltar para casa.

- Quando foi a última vez que o viu? - perguntei.

- No domingo, depois do almoço. Pouco tempo antes ... antes de eles chegarem. Tinha ido para a cave para os cânticos. E a Cinfa e eu saímos para...

- Mãe, fui eu quem pregou o alçapão - disse eu secamente.

- Tu? E porquê?

- Quando vim a casa. Fui lá abaixo e... espere! - Dirigi-me ao telheiro do pátio, trouxe um martelo e atirei-me ao alçapão até ver saltar a última tábua, que se rachou com um som que parecia implicar um fim terrível, como se nunca mais nos fosse possível sentirmo-nos seguros na nossa casa.

- Não desça ainda - disse a minha mãe, enquanto descia as escadas Deixe-me dar uma vista de olhos.

Era insensato, mas queria ser o primeiro a ver meu tio porque naquele tempo eram poucas as coisas que eu considerava fora dos poderes de um mestre da Cabala. Não poderia dar-se o caso de antes de lhe terem cortado a garganta ele ter engolido um pedaço de papel com alguma fórmula ritual particular, com um dos nomes secretos de Deus, que o poderia trazer de novo à vida?

- Porquê? O que é que... - Minha mãe agarrou-me o braço - Passa-se alguma coisa? Ele está aí em baixo?!

- Pronto, venha daí então - disse eu, sentindo no estremecimento da minha própria voz a simples verdade do seu desaparecimento para sempre da Esfera Terrena - Mas mais vale que saiba que o tio nos deixou.

Minha mãe levou a mão à boca para abafar um grito. Estendi as mãos para ela, mas afastou-me como se eu estivesse conspurcado. Começou a descer as escadas, com uma das mãos em venda sobre os olhos e a outra agarrada aos talismãs que lhe pendiam do pescoço. Mas não chorava. Um único gemido quando avistou meu tio. A respiração arquejante, como quem perdeu o fôlego. Mais nada.

Quando se ajoelhou para levar os dedos de meu tio ao rosto, começou a puxar os cabelos. O rosto abriu-se em soluços. Saí; era um momento que não deveria contar com testemunhas.

 

O tempo é como um selo a atestar a existência. E, tal como o selo, é artificial. Como meu tio costumava dizer, o passado, o presente e o futuro são realmente versos do mesmo poema. O nosso fim é traçar a disposição da sua rima de regresso a Deus.

E no entanto estávamos já na tarde de segunda-feira, passado um dia da morte de meu tio.

Começava a cair a quarta noite de Páscoa. Minha mãe tinha acabado de sair da cave e dissera-me que nunca vira antes a rapariga.

- Tem a certeza? - perguntei.

- Nunca - sussurrou envergonhada. Percebi que devia estar a pensar: «Foi o pecado carnal que chamou a morte dele.»

Estava em pé, junto dos corpos, tendo a meu lado minha tia. Esta não gritava nem chorava, tinha-se limitado a pegar num caco de vaso partido e com o gume arranhava os dedos.

- Tia Ester, páre com isso! - disse eu.

O seu olhar inexpressivo, distante e infantil, mostrava não se resignar à fatalidade da morte de meu tio, que aos poucos ia penetrando os nossos corações. Um lamento cresceu então do seu ventre, estalando subitamente em soluços. Os seus olhos passavam dele para a moça. Inclinou-se para diante como se ele a puxasse para si e desatou a golpear o indicador, o dedo da aliança de casamento.

Corri para ela e tirei-lhe o caco dos dedos. Um sangue ardente jorrou, cobrindo-me as mãos.

Farid precipitou-se das escadas e passou o braço em torno da cintura de tia Ester. Ao sair amparada a ele, voltou-se e olhou para mim por cima do ombro como quem se despede antes de uma longa viagem. Com Farid seguindo-a de perto, vi-a subir as escadas com uma graça etérea.

Apesar de a sua rota nos ser oculta, o caminho entre a tristeza e a clarividência deve ser cuidadosamente arranjado pelo Senhor; de repente compreendi que o criminoso, que conhecia intimamente o conteúdo do nosso armário do material, conhecia também provavelmente a nossa geniza! Pegando na chave que estava dentro de uma bexiga de enguia pendurada por trás do Espelho que Sangra, levantei a orla do tapete de orações junto à parede que dava para norte e retirei uma ripa, deixando à mostra uma fechadura. Dei meia volta para a direita.

Ouviu-se um estalido. Ergui um alçapão de madeira, de três pés por quatro, disfarçado com ardósia. A geníza abriu-se com um gemido de protesto. Tinha acertado! Viam-se nódoas de sangue sobre dois dos manuscritos que estavam por cima: «As Fábulas da Raposa», que eu andava a ilustrar, e o «Livro de Ester» que minha tia copiava. Por baixo, quase tudo limpo, a não ser aqui e acolá as dedadas vermelhas do assassino. Havia Toras familiares, Haggadas e livros de orações; um mapa do Mediterrâneo de Judas Abenzara; comentários religiosos de um amigo de meu tio, Abraão Sabah; obras poéticas de Farid uddin Attar; e dois manuais espirituais de Abraão Abulafia, o nosso pai espiritual, que meu mestre ainda não tivera a coragem de confiar aos seus secretos emissários. Por baixo destes, aparentemente intocada, repousava uma Tora com iluminuras de monstros míticos, legada a meu tio pelo seu falecido amigo Isaac Bracarense; um Alcorão da Pérsia; três maços de correspondência pessoal de meu mestre; o nosso saco de lã com moedas, ainda com algumas de cobre e de prata; e finalmente o contrato de casamento de meus tios, escrito por ela e ilustrado por ele. Voltei a encerrar tudo dentro da geniza.

Parecia-me evidente que o intruso tinha interrompido a sua busca antes de atingir os manuscritos do fundo, que estavam ainda sem manchas de sangue. Se tivesse chegado lá, teria certamente roubado o dinheiro. A única obra que faltava abria as pétalas de um novo mistério: era a Haggada que meu tio tinha andado a completar pouco antes da sua morte. Apesar da ousadia dos seus motivos decorativos e das suas letras com cabeças de aves, o seu valor em nada se comparava com os manuscritos de Abulafia, alguns dos quais contavam séculos e tinham sido escritos pela mão do próprio mestre. Concluía-se que a Haggada de meu tio devia possuir um secreto valor para o salteador.

Com esta certeza veio-me uma outra, que me fez voltar e virar-me para as escrivaninhas: o ladrão tinha achado a chave da geniza dentro da bexiga escondida atrás do espelho. Isto era uma confirmação de que havia um membro do grupo de iniciados envolvido. Mas porque teria voltado a fechar a geniza ? Seria meramente por querer manter tudo em ordem?

O impulso de buscar um poder capaz de reforçar o meu, levou-me a procurar na bolsa o anel de íbis de meu tio e enfiá-lo no meu indicador direito.

Farid, regressado à cave, estava postado entre os dois cadáveres, observando as duas marcas com crostas de sangue que vincavam o pescoço de meu tio. Subitamente começou a oscilar como quem perde o apoio. Quando me fitou, algo que ele viu... Os olhos rolaram-lhe nas órbitas, revelando uma cor alvacenta doentia. O corpo como que se fundia. Dei um salto e estendi os braços para lhe amparar a queda e segurei-o até voltar a si.

Cinfa tinha assomado ao patamar. Os olhos dela, como ponteiros da Tora, fixavam-se em meu tio, com as mãos agarrava o cabelo na nuca e um líquido corria-lhe pelas pernas das calças. Receando que não estivesse preparada para enfrentar a morte vista de tão perto, gritei-lhe:

- Vai lá para cima e fica a vigiar a porta! Não deixes ninguém descer! Enquanto ela seguia as minhas instruções, Farid despertou. Comecei a enxugar a sua testa com a minha manga e ele soergueu-se até ficar sentado.

- já estou fino - diziam os seus gestos - Foi só porque era tudo de mais para poder aguentar. E reparei numa coisa...

- Que foi?

- Vi, na coxa direita do teu tio... - Farid apertava as mãos uma contra a outra e respirou fundo.

- O quê?! - perguntei.

- Semente branca - respondeu Farid, usando o termo da Cabala para designar o sémen. - Mas que é que estás a dizer?

- Anda cá - ordenou ele. Acocorámo-nos os dois. Na parte de dentro da coxa de meu tio, confundindo-se com manchas de sangue, viam-se umas crostas, como lascas de mica.

- Isso pode muito bem ser outra coisa! - repliquei com gestos vivos Mel, ou leite de amêndoa que tivesse caído. Meu tio era um descuidado com essas...

- É semente branca! - repetiu Farid, com um gesto impaciente - Cheirei e... - antes que o pudesse deter, retirou uma película e colocou-a na língua. Provou-a como quem ensaia uma nova especiaria. De repente, começou a cuspinhar, deitou-a fora nas mãos, limpando-as às calças seguidamente - Tinham acabado de ter comércio carnal - afirmou com gestos terminantes.

Não foi tanto o choque de ver que meu tio podia juntar-se com outra mulher que não minha tia Ester que me deixou a arquejar, mas antes o ele ter levado aquela mulher para a cave onde rezávamos, para a nossa sinagoga... Era impossível! Tudo se tornava diferente! E no entanto...

- Tens de me ajudar - pedi a Farid, compreendendo que tinha chegado o momento em que tinha de recorrer aos seus particulares talentos. Retirei à rapariga o tapete de orações e revelei-lhe o que sabia e o que suspeitava, mostrando-lhe o recado que meu tio tinha escrito para Dom Miguel Ribeiro, o fidalgo para quem minha tia Ester copiara o «Livro de Salmos». Quando acabou de o ler, tomei as suas mãos e pu-las no meu peito para que sentisse o bater do Meu coração.

- Farid, estive a pensar que talvez Deus nos tenha juntado por causa desta Páscoa. Talvez Ele queira que encontremos juntos o assassino de meu tio. Vou ter de ir à procura de Judas. Mas agora o que eu queria é que desses uma volta a esta cave, sondasses todas as coisas, todas as sombras, e me dissesses se vês alguma coisa que eu não tenha visto. Tudo! Quero que me digas o que pensas sobre o que se passou.

Farid fez o que lhe dissera. E assim que se sentiu preparado para me comunicar o que tinha descoberto, fez-me deslocar para junto de meu tio. Agachámo-nos junto à sua cabeça. «Quando será possível enterrá-lo?» - pensei subitamente, lembrando-me que tínhamos de o levar para chão sagrado o mais depressa possível.

- O corte na garganta é ligeiramente inclinado - mostrou-me Farid A meu ver o criminoso torceu a cabeça de teu tio para a esquerda, agarrando-o por trás, e com uma faca bem afiada na mão direita... - e Farid passou o braço pelo peito indicando o movimento que deve ter posto termo à vida de meu tio.

Ergueu-se, passou por cima da moça, baixou-se junto às mãos dela, inclinou-se e cheirou-as avidamente, resfolegando como um cão. Erguendo os olhos para mim, comunicou-me: O trabalho dela tinha a ver com azeite e rosmaninho. Há ainda mais qualquer coisa que já quase não se dá por ela, talvez essência de limão - esfregou o polegar no indicador - Tem aqui uns restos de cinza. Iria jurar que era padeira. A cinza deve ser do forno.

Assenti com um aceno. Seria bem mais louco do que o que sou se desprezasse o faro ou os olhos de Farid.

E repara na fonte direita dela - indicou com um gesto - Tem ali um entalhezito circular. E do lado esquerdo também.

- E que achas que seja isso?

- Não faço ideia. Mas a simetria é bastante esquisita. Agora anda cá! Conduziu-me ao enfeite de couro onde tinham passado a faca. Levantando a ponta acima da sua cabeça, mostrou-me cinco dedadas de sangue que terminavam abruptamente no rebordo limpo de um azulejo, como se tivessem roçado ali os dedos. Poderia o intruso ser dotado do poder de desaparecer recorrendo a símbolos cabalísticos pintados com dedos de sangue? Teria um dos iniciados invocado algum demónio ou algum espírito para matar meu tio? Poderia tal criatura do Outro Lado através da mezuza ter franqueado a nossa porta?

- Que é que isto te diz? - perguntou Farid, com um gesto veemente - E vendo-me abanar a cabeça, deixou cair a cortina de couro e ordenou-me:

Agora passa-me a conta do rosário e o fio.

Tirei-os da bolsa e dei-lhos. Cheirou-os e passou-lhes a língua.

A conta é de alfarrobeira, bem polida. Cara e feita cá, parece-me. não pertence a Frei Carlos. Pelo menos não é do rosário que costuma trazer, que esse conheço-o bem. O fio, como sabes, é de seda. De muito boa qualidade. Precisava de ver as luvas de Simão para perceber se são iguais. E mesmo nesse caso...

Deve haver mais milhas de seda preta em Lisboa do que ruas calcetadas - e, ao dizer isto, deixou pender as mãos ao longo do corpo.

- Nada mais? - perguntei.

- Só que tinhas razão quando dizias que o teu tio deve ter sido morto com as roupas ainda vestidas. Tem marcas de excrementos e de semente branca por dentro da túnica.

Era como se o corpo de meu tio tivesse libertado todos os seus humores.

É possível que, face a uma morte violenta, o corpo procure purificar-se para que a alma possa partir depressa para junto de Deus.

- É tudo o que descobriste? - perguntei. E quando assentiu, Insisti:

Mas como será que se escapou? Tenho a certeza que a entrada estava bem trancada do lado de dentro. Só se passasse através das paredes da cave. Não tinha modo de...

- Só me ocorre uma magra ideia para ver se consigo desfazer a minha ignorância - diziam os seus gestos.

- O quê? Farid apontou para os postigos. Eram três, de forma oval, não mais compridos que dez polegadas nem mais largos que uma mão travessa, e estavam tapados com pequenas portadas que se podiam trancar e vendas de pele bem polida que apenas deixavam entrar um fio de luz.

- Nem uma criança ou um anão conseguiam passar por ali - repliquei A não ser que o assassino fosse uma marta ou uma víbora...

Eu tinha dito que era uma magra ideia - Farid encolheu os ombros, levou o polegar e o indicador aos lábios, descrevendo seguidamente com eles um arco gracioso. Queria assim dizer que teríamos de esperar que Alá nos desse uma resposta.

- Não posso ficar à espera d'Ele - repliquei. Encaminhei-me para as escadas e sentei-me a cismar no mistério. «É estranho sentir só este vago vazio e a fraqueza do corpo» - pensei. Era como se o meu amor tivesse morrido com o meu tio. Como se, desligado do meu passado e presente, flutuasse livre de tudo, a não ser da insistente necessidade de descobrir o culpado.

Subitamente, o meu coração parecia querer saltar-me do peito: ouvia-se alguém arranhar a portada de um dos postigos de que tínhamos estado a falar. Corri pelas escadas acima, precipitei-me através da cozinha para o pátio. Mas era Roseta que sacudia com a pata um novelo de lã vermelha que meu tio tinha feito há pouco tempo para ela brincar. Estava toda molhada, parecia que a tinham atirado a um poço.

- Estúpido animal! - sibilei eu furioso. Respirei fundo, pedi-lhe perdão e saí para a rua. A uns cem passos para oriente, ao fundo da Rua de São Pedro, o corpo do doutor Montesinhos pendia ainda do umbral da nossa antiga escola. Diante dele estava um homem baixo, com uma comprida capa violeta, com a mão direita erguida como que numa bênção. Só lhe via o perfil, mas parecia-me distinguir os cabelos grisalhos rebeldes e a cor de canela de meu tio. «É o tio! - pensei de repente, como se todas as minhas anteriores conclusões sobre a sua morte não passassem de pura tolice - É claro! É um mágico capaz de nos enganar a todos!» Era uma loucura, bem sei, mas fui percorrido por um grande alívio e encaminhei-me para ele. Acho que até me comecei a rir. Mas ao ouvir aproximarem-se os meus passos, o homenzinho escuro virou-se para mim, ficou hirto e depois desapareceu na esquina em direcção às traseiras da Igreja de São Miguel. Quando atingi o local, já ele se tinha desvanecido. Profundamente confuso, voltei até junto do corpo do doutor Montesinhos. O soberano de ouro que lhe tinham posto na boca para pagar a travessia sagrada do Rio Jordão já lá não estava. Com um sobressalto, como se tivesse acabado de me despenhar de algum muro, pensei: «O homem da capa violeta não era o meu tio e não estava nada a abençoar o morto, estava mas era a roubar a moeda. Não passava de algum reles ladrão.»

Ao regressar a casa, sentia-me invadido pela impressão de que a história tinha enveredado por algum ínvio atalho ignorado até por Deus. Todos nós, em Lisboa, tanto judeus como cristãos, dependíamos agora apenas de nós próprios para sobreviver. E foi nesse momento que me ocorreu um pensamento terrificante que nunca imaginei que pudesse atravessar o meu espírito: «Nunca houve Deus nenhum a vigiar-nos! Mesmo na sua essência cabalística, a Tora não passava de ficção. Não existe aliança nenhuma. Dediquei toda a minha vida a uma mentira.»

Tendo descido à cave, sentei-me novamente no último degrau das escadas, com a cara enterrada nas mãos. Farid sentou-se a meu lado e pôs-me a mão na cabeça.

Neste momento todos duvidamos de Deus - consolou-me ele Não penses nos problemas maiores que todos enfrentamos. Temos nas mãos um homicídio. Vamos lá a ver outra vez. Qual seria o valor tão especial que a Haggada do teu tio tinha para o assassino?

Lembrei a Farid que meu tio tinha o hábito de desenhar os personagens bíblicos inspirando-se em pessoas conhecidas de Lisboa, vizinhos e amigos, incluindo os seus adorados confrades do círculo de iniciados. E como é evidente, procurava sempre encontrar-lhes personagens que partilhassem dos mesmos interesses e predilecções.

- Algum desses iniciados tinha servido para ilustrar um homem vil? inquiriu Farid.

- Não - respondi - Não me parece que suspeitasse de algum deles. Ou então só há muito pouco tempo é que tinha descoberto a traição de algum deles.

O mais certo era não voltar atrás para refazer as iluminuras. Era um trabalho demasiado laborioso para resultados...

Parei a meio da minha frase: tudo se ajustava! Sexta-feira passsada, pouco antes da nossa seder da Páscoa, meu tio tinha-me dito que tinha encontrado o rosto de Aman para o seu último manuscrito. Na sua voz entreteciam-se a tristeza e o alívio. Dirigindo-me a Farid, por meio da nossa linguagem de gestos, expliquei-lhe que meu tio devia ter descoberto uma espécie de conjura contra ele nesse próprio dia.

- Estou convencido que terá usado o rosto do seu principal inimigo para retratar o vil Aman... o rosto do homem que o haveria de matar. É a única explicação. Foi por isso que roubaram a Haggada. O assassino sabia que tinha sido retratado. Ou suspeitava... Ou até o terá descoberto acidentalmente ao folhear apressadamente os manuscritos da geniza. Entrou em pânico e levou-a. Por isso é que não deixou manchas de sangue nos manuscritos do fundo nem levou as moedas.

Farid repuxava o lóbulo da orelha e o seu olhar fitava-me gravemente do alto do seu nariz largo.

- Temos de estudar os iniciados um a um - propôs - Frei Carlos, qual poderia ter sido o seu móbil? Poderia Aman ser ele?

- Meu tio tinha tido uma discussão com ele sobre uma safira de Salomão Ben Cabirol que Frei Carlos se recusava a ceder.

- E Sansão Tijolo? Teu tio tinha falado nele ultimamente?

- Momentos antes de eu ir a casa dele comprar vinho, meu tio tinha-me dito que precisava de falar com ele e deu-me um recado para lhe entregar.

- O que é que lhe queria dizer?

- Não sei - respondi com um gesto - Mas há outra coisa... É que eles a bem dizer não se viam nas reuniões de iniciados. Seria só por causa da distância a que ficam as duas casas? Às vezes ficava a pensar nisso.

- Haveria ali uma pinta de aversão?

- Mais uma espécie de porfia. Eram dois cabalistas inteligentes e prestigiosos. Mesmo entre anjos pode haver rivalidade.

- E temos ainda Diego - retornou Farid.

- Não sei se já teria sido informado do segredo da geniza - repliquei, pois sabia que Diego não tinha ainda concluído a sua iniciação no grupo.

- Podias perguntar isso a um dos iniciados. Peguei na folha que tinha caído do turbante de Diego e passei-a a Farid, exPlicando-lhe como me tinha chegado às mãos. - Que me dizes a isto? - perguntei.

- Madre quer dizer mãe, claro, sobretudo quando se fala de Nossa Senhora. Iria dizer que deve ser algum talismã meio judeu, meio cristão... AlgUma oração à Virgem a pedir que alguma coisa corra bem a um Isaac no vigésiMo nono dia - devolveu-me a mensagem - Os marranos andam a fazer coisas muito estranhas estes últimos tempos. Sois como esfinges com coração de judeu e cabeça de cristão.

- Mais uma coisa, Farid: nessa altura Diego estava ferido. Achas que depois de ter sido apedrejado e perseguido ainda teria forças para talhar a garganta a duas pessoas?

- Se visse que tinha de ser. Diego é um sobrevivente, que fugiu de Castela com os inquisidores a saborear a sua captura iminente. Os ferimentos seriam a sua melhor desculpa, caso alguém começasse asuspeitar dele.

Mas ele vive longe daqui. Achas que se ia arriscar à travessia de um mar de cristãos para chegar a nossa casa? Não me parece.

- E se estivesse ajustado com Eurico Damas?

- Ou com o Rabino Losa - observei. - Esse sempre teve um ódio tremendo pelo meu tio. E negoceia em artigos religiosos, rosários também, de certeza.

E para acabar temos Dom Miguel Ribeiro - concluiu Farid com um profundo suspiro.

Parece-me que meu tio tinha ido ver Dom Miguel para lhe pedir ajuda para comprar um manuscrito valiosíssimo, um livro que ao que parece provocou uma disputa no círculo de iniciados. Desta vez, a paixão de meu tio de salvar a mínima página hebraica da destruição talvez o tenha conduzido à morte.

E o marido da rapariga? - interrogaram os gestos de Farid - Que é que achas? - Agarrou-me nas mãos para suster o meu protesto - Bem sei, que é quase impossível que entre ela e teu tio houvesse comércio carnal - explicou - Mas nem todos foram abençoados com a tua fé. Talvez o marido se convencesse de que ela o andava a mimosear com um belo par de cornos. Por qualquer motivo, ela podia ter recorrido à ajuda de teu tio, podia querer esclarecer alguma dúvida religiosa. O marido podia tê-la seguido a pensar que ela se ia encontrar com quem andava amigada e ao vê-la entrar no alçapão entrou também e saltou sobre o teu tio. Depois levou as roupas da mulher para que ninguém seguisse a pista até ele.

- Um marido cego pelo ciúme, iroso, sem fé nem confiança...

- Lisboa está cheia dessa praga até às torres. Quantos homens não conhecemos nós que são incapazes de entender os caminhos do amor?

- Mas não podia deixar de perceber que o próprio rosto da mulher o haveria de denunciar. Levar as roupas era um gesto absurdo.

A não ser que tivessem um valor desconhecido - replicou Farid uma jóia ou algum sinal de crédito. Beri, há outra possibilidade! - interrompeu-se Farid, passando a língua nervosamente pelos lábios.

- Quem?

- Parecemos apicultores principiantes às voltas de um enxame enfurecido... Temos andado a evitar falar de tua tia Ester - com um gesto afastou os meus protestos - Não sei de ninguém mais dada a fúrias do que ela, é ou não é verdade? - perguntou.

Assenti.

O silêncio dela é bastante estranho. Talvez que quando descobriu o teu tio com a rapariga na cave...

- Não sejas ridículo - interrompi - Achas que ela os estrangulou num acesso de ciúme com um rosário que por acaso encontrou por ali no pátio?! E que depois lhes cortou a garganta, roubou o nosso lápis-lazúli e o ouro e fugiu daqui a correr para ainda poder ser violada lá fora? Farid, isso não passa de um castelo de cartas em cima de uma mesa bamba! O silêncio dela não é nada estranho. Posso-o entender perfeitamente. Nasceu da sua descrença para todo o sempre e não da culpa.

- Um castelo de cartas numa mesa bamba... no meio de uma tempestade de areia - retorquiu Farid imprimindo às mãos a graça de um gesto de desculpa - Mas tinha de largar no ar o pensamento, para que ele possa voar livremente para longe de nós. Agora diz-me uma coisa, Beri... O que poderia levar um dos iniciados a colaborar com Eurico Damas ou com outra pessoa exterior ao grupo?

Ameaças. A palavra insinuou-se tão violentamente no meu espírito que dei um pulo.

- Que foi? - inquiriu Farid - Ouviste alguma coisa? Vem aí alguém?!

- Não é o que ouvi. E fiz-lhe um sinal para esperar um momento, para poder pôr ordem nas minhas ideias. Poderia dar-se que Eurico Damas tenha ameaçado um dos membros do círculo de iniciados e conseguido que ele o ajudasse a matar meu tio e roubar o nosso armário de material e a geníza? Talvez ímaginasse que tínhamos barricas de ouro e cofres cheios de rubis... E se tivesse trazido com ele a rapariga para a matar ali e nos levar a pensar que tinha havido comércio carnal entre ela e Meu tio e nos convencer que tinha sido o marido a fazer o mal? Ocorreu-me então um outro pensamento horrível: que podia ter sido o assassino a derramar o seu próprio sémen sobre o meu tio! Seria qualquer coisa de abominável@ Mas ainda que nos dois dias anteriores não nos fosse dado aprender mais nada, tínhamos compreendido que tal infâmia não distava senão um cabelo do tempo presente.

- Ameaças - concluí, dirigindo-me a Farid - Neste maldito reino de máscaras em que vivemos, todos têm um ou dois segredos que lhes podem custar caro!

- Isso agora também nos pode pôr um dilema - explicou, levantando-se e tomando-me pelo ombro - Se todos têm um segredo a esconder, também qualquer um podia ter sido ameaçado. Que podemos fazer se vemos que todos trazem o véu da suspeita?

Nesse momento senti um terror inimaginável derramar-se nas minhas entranhas. O suor perlava-me a fronte. Sentia náuseas e soltava gemidos. Tão perturbado estava que me pus a falar com Farid em vez de usar a nossa linguagem gestual.

- Frei Carlos estava com Judas! E se o catraio tivesse assistido ao crime? Frei Carlos não teve a coragem de lhe acabar com a vida e levou-o com ele!

Farid leu esta suspeita nos meus lábios, cerrou os olhos como que para afastar tal possibilidade.

Não tinha pensado nisso - assinalou timidamente. As mãos giraram conjuntas numa dança de súplica. Tomei-o pelo ombro e perguntei:

- Reparaste se Frei Carlos tinha marcas de sangue?

- Só os vi ao longe. Acho que não, mas não posso ter a certeza.

Um grave silêncio selou os nossos lábios. Restavam-nos Eurico Damas, o Rabino Losa e Dom Miguel Ribeiro. Um deles ou mais tinham conjugado esforços com um dos membros do círculo de iniciados.

Temos de falar com todos eles - decidiu Farid. Ao mesmo tempo que assentia, no meu espírito começou a desenhar-se uma explicação para as pistas que tínhamos reunido: «Meu tio estava só em casa, tinha recebido a visita de uma moça que conhecera anos antes, uma aprendiza de padeira, talvez filha de um velho amigo. Chegara bastante perturbada.

O marido tinha-lhe batido. Que devia fazer? Meu tio mandou-a sentar à mesa da cozinha e deitou-lhe um copo de vinho temperado com água e ofereceu-lhe uma matza. Ficaram a falar dos problemas dela até que os gritos vindos da rua os interromperam. Compreendendo imediatamente o que se estava a passar, meu tio disse-lhe para não fazer barulho, dirigiu-se em bicos de pés ao pátio e seguidamente à loja à procura do resto da família. Mas eu ainda vinha a camiO nho da minha ida a comprar vinho e tia Ester tinha ido ao mercado em frente a Santo Estêvão. Judas estava com Frei Carlos, minha mãe e Cinfa tinham ido fazer a sesta em casa de uma vizinha. Quando os cristãos desataram a arrombar as portas da loja, levou a rapariga para a cave, puxou de dentro o velho tapete persa para cima da porta do alçapão, correu as cortinas dos postigos da parede norte para que não se pudesse ver para dentro e trancou as pequenas portadas. Momentos mais tarde, durante uma breve acalmia do motim, alguém bateu à entrada do alçapão. Ouviu-se uma voz familiar a pedir socorro. Precipitando-se para cima, meu tio abriu a entrada da nossa sinagoga a um irmão do círculo de iniciados. Alguém com quem meu tio se disputara a propósito de um manuscrito precioso, ou que teria mesmo conspirado para o comprar nas costas de meu tio. Qualquer que fosse a natureza do seu pecado, tinha-lhe valido tornar-se no rosto de Aman. Porém, com o tumulto que lavrava lá fora, todo o ressentimento fora esquecido nesse momento. Eurico Damas irrompera abruptamente de trás do iniciado. Sem qualquer aviso lançara-se para a frente, empurrando meu tio pelas escadas abaixo. Daí a ferida profunda que apresentava no ombro. Assim que meu mestre, apoiando-se num joelho, se ergueu, foi agarrado por trás. Passaram-lhe um rosário à volta do pescoço. «Se não ofereceres resistência, juro sobre a Tora que poupo a rapariga!» - gritou Damas. Meu tio cedeu, compreendendo nesse instante ser esse o sacrificio que lhe tinha sido destinado. A vida foi-lhe então retirada. O iniciado, um antigo shohet, apoderou-se do corpo de meu tio e talhou-lhe a garganta para estar certo de que não reviveria. DepOsitou-o cuidadosamente no chão. O sangue jorrava livremente sobre o tapete de orações. À volta da unha do polegar puseram um fio negro de modo a implicar Simão.

A rapariga tinha recuado para a parede do lado oriental e estava agachada, dominada pelo terror, suplicando que a deixassem viver. Damas rompeu a promessa que fizera a meu tio, agarrou-a, mas, ao tentar estrangulá-la, o seu rosário rompeu-se. Abriu-lhe a garganta e atirou-a para o chão. A cabeça ficou esmagada num dos vasos de plantas. O nariz partiu-se, ficando fora do sítio numa posição grotesca. Em poucos momentos, acabou por morrer exangue. As contas do rosário espalharam-se pelo pavimento de lajes da cave. Damas ordenou ao iniciado que as apanhasse, mas uma delas ficou esquecida debaixo de uma escrivaninha. O iniciado foi então buscar à bexiga de enguia a chave da geniza e abriu a tampa disfarçada. Descobriu a Haggada de meu tio que estava por cima, folheou-a avidamente acabando por deparar com a sua própria cara personificando Aman. Aterrado, escondeu o manuscrito debaixo da capa e disse a Damas que tinham de sair dali rapidamente. Sabia onde podia encontrar as folhas de ouro e o lápis-lazúll e limitou-se a retirá-los da caixa de ébano onde se encontravam.

Juntos, despiram os corpos para dar a impressão que meu tio e a rapariga se tinham conhecido carnalmente. Pensavam assim infligir um derradeiro achincalho à minha família. E ainda certamente pôr as culpas no marido da rapariga. Talvez o iniciado tenha protestado. Mas foi-lhe recordado o seu segredo aparentemente tão terrível que pairava sobre ele como uma ameaça. Todo este massacre tinha provocado em Damas uma grande excitação, pois há homens para quem a lascívia está intimamente associada à violência. Ou ter-lhe-á parecido que faltava àquela cena um último toque perversamente poético e quis aviltar o corpo de meu tio ainda mais perfidamente. Expondo as suas partes vergonhosas, derraMOu o seu próprio sémen sobre meu tio.

A rapariga era também vagamente conhecida do iniciado. O pai dela era não só um bom amigo de meu tio, mas também dele. Por haver nas roupas dela algo que poderia denunciar esta ligação, arrancou-lhe o vestido e a blusa e mesmo a roupa de baixo.

Teria Judas assistido a tudo isto do topo das escadas? Teria o assassino passado os braços à volta dele, levando-o dali consigo?

O iniciado traçara então um dos nomes secretos de Deus na sua prÓprÍa testa e na de Eurico Damas. Talvez também na de Judas. Um nome com grande poder, retirado de algum manual da prática da Cabala, que lhes permitia passar através das paredes.

E então desvaneceram-se.

 

AO repetir a Farid a minha versão, ouvi uma voz de homem vinda do pátio. Trepei as escadas a correr. Era um vizinho, o rabino Salomão Ben Verga. A sua face barbuda aparecia-me emoldurada pelo umbral da cozinha e estava a falar a Cinfa da misericórdia divina num tom de consolação. Trazia três lajes de lousa numa mão e um cesto de cebolas na outra.

- Escapaste, rapaz! - disse ele com um sorriso. Como quem receasse franquear a entrada de nossa casa, não avançou para mim.

- Mas muitos de nós não conseguiram. Judas desapareceu. E meu tio...

- Eu sei, Cinfa estava-me a contar - pousou o cesto e fez-me sinal para me aproximar. Tomando-me pelo ombro como alguém mais velho, continuou:

- Nunca esqueças que a vida te foi poupada para que te possas lembrar. Pelo meu lado, estes vis motins hão-de ser o culminar do livro que ando a escrever sobre a história dos judeus.

- Um livro de História? - perguntei, pois nunca ouvira falar de tais livros escritos por um judeu desde os tempos de José.

- Isso mesmo - respondeu o rabino - Um relato de todas as sendas de urtigas que temos atravessado na nossa caminhada para o Monte das Oliveiras.

«Estamos realmente a entrar numa nova era - pensei - Serão mais os textos de História a descrevê-la do que as obras de Deus. Os rabinos e os cabalistas virão a tornar-se obsoletos.»

- Gostava de te sugerir que usasses nas tuas iluminuras tudo o que viste nestes dois últimos dias acrescentou o rabino - Traduz em imagens o que Viveste. É assim que nós, judeus, usamos a arte - estendeu-me as lousas - São do vosso pátio, acho eu. Encontrei-as na rua.

Agradeci. Ele desejou-me que ficasse em paz e ao voltar-se para sair acrescentou:

- É verdade, se precisares de cebolas... - E exibiu o cesto. - Derrubaram uma carroça. Não são grande coisa, mas ficam-nos por uma verdadeira pechincha.

Era difícil imaginar que alguém conservasse o sentido de humor em momentos destes. E no entanto trocámos um sorriso.

Será que a demência, tal como a visão interior, nos vem por lampejos?

Foi então que os ouvi. A primeira das vagas ululantes de cristãos que se aproximava. Empurrei para o lado a nossa visita e corri para a cancela. A julgar pelo rumor e pelos gritos que se agigantavam, concluí que vinham de ocidente, da Sé. E apressadamente.

O que é, rapaz? - perguntou o rabino Salomão. É melhor ir para casa, rabi - disse-lhe eu - Parece-me que ainda não acabou tudo.

Puxou o capuz da capa para a cabeça e, ao passar por mim, parafraseou um versículo do Livro dos Provérbios:

- Deus castiga a quem ama, como o pai o filho preferido. Somos o Seu povo eleito. Haveremos ainda de ver o Templo reconstruído.

Reuni a família e disse-lhes que não tinham mais que uns instantes para reunir alguns pertences. Precipitando-me para fora, apanhei uns montões de estrume numa gamela de pau, espalhando-o seguidamente por cima do tapete esfiapado que cobria o alçapão. Esperava assim desencorajar os ladrões ou intrusos. Fui ao meu quarto buscar uma vela e uma pederneira, vários cobertores e um púcaro de água. Tirei do bolso secreto por baixo do peito a fita de pergaminhoO,O onde estavam gravados o meu nome e o de meu tio e enrolei-a no meu pulso, virando para dentro o lado dourado escrito para que não o pudessem ler. Seguidamente, conduzi toda a gente para a cave, praguejando durante todo esse tempoO por ter passado tanto tempo à conversa com Farid em vez de ter ido à procura de Judas. E agora...

Em voz baixa, ergui a Deus uma prece pedindo perdão ao perceber que@ não poderíamos ainda nesse dia enterrar meu tio. Com os olhos cerrados, o corpo balançando ao ritmo do bater do meu coração, supliquei que esta nossa falta aos preceitos não fosse de modo algum impedimento para a viagem da sua alma.

Passámos o resto de segunda-feira à espera, minha mãe, tia Ester, Farid, Cinfa e eu. Ficámos sentados, cada um no seu próprio mundo, num silêncio quase total.

O azul vivo do tapete de orações que cobria o corpo da rapariga, o cálido e denso perfume do cabelo de Cinfa quando meteu a cabeça debaixo da minha camisa com o seu hálito quente na minha pele, a zoada enervante das cigarras nO pátio, a mínima traiçoeira sensação levantava a mesma questão: por que razão,podia eu ainda ver, ouvir, cheirar, quando tantos tinham morrido?

- Quase preferia ter morrido com eles - confidenciei a minha mãe.

- A culpa agarra-se a nós como Deus respondeu ela Nem podia ser de outro modo.

Sempre que me ocorria que minha mãe era uma pessoa sem interesse, acabava por me surpreender com tiradas destas.

- Vivemos para recordar - disse Cinfa, repetindo as palavras do rabino Salomão.

Será a imitação dos adultos a maneira de as crianças se agarrarem à esperança?

De repente, chegaram-nos gritos da rua, acusando os marranos de terem usado a feitiçaria para chamar a seca. Foi a primeira das três ocasiões em que nesse dia ouvimos os seguidores do Nazareno. Abateram-se sobre nós às centenas em vagas sucessivas, conduzidos pelos frades dominicanos, bradando em gritos estridentes, num falsete de eunucos, que viéssemos para fora para nos purificarem pelas chamas e berrando insultos contra os judeus demoníacos. «Bichos meio-humanos - chamavam-nos eles. Certa vez, pela tardinha, ouvimos a música de gaitas de foles que faziam vibrar os barrotes de castanho do tecto da cave, como se nos chamassem para alguma festa. A última dessas vezes, umas três horas depois do cair da quarta noite da nossa Páscoa, pelos meus cálculos, chegaram até ao escuro onde nos escondíamos gritos penetrantes, como se andassem a fustigar um porco pelas ruas. Rezei para que não passasse disso mesmo. Por duas vezes penetraram em nossa casa, despedaçando o que restava da nossa mobília.

Cinfa aconchegava-se entre mim e Farid. Tia Ester permanecia estoicamente sentada, os olhos já sem pintura, os cabelos grisalhos descuidadamente pendendo sobre os ombros. «Uma actriz a quem morreram todos os demais actores, seus companheiros, a quem derribaram o teatro pelo fogo» - pensei. Minha mãe aferrava-se aos seus talismãs e rezava em silêncio. Cada vez que me fitava, podia aperceber-me que meditava nas minhas parecenças com judas.

Tivessem os cristãos descoberto o alçapão e tudo estaria perdido. As tábuas tinham sido apressadamente pregadas no sítio e o ferrolho da verdadeira porta da cave tinha-se partido quando o arrombei à procura de meu tio. Bastava alguém dar um passo em falso no meio do tapete de cima para literalmente cair em cima de nós.

Depois do cair da noite, aspergi meu tio e a rapariga com mirra, para atenuar os crescentes odores que anunciavam a partida da alma. Seguidamente cobri-os de novo com os tapetes de orações.

O corte no braço causado pela lança tinha acabado por fechar, graças a um extracto de consolda. Untei-o com uma camada de suco de calêndula para sarar cOmPletamente e liguei-o com um lenço de linho. Reunindo toda a minha coragem, uma vez ciciei a tia Ester: «Já alguma vez tinha visto a moça?» Minha tia estava sentada num mocho que tínhamos trazido da cozinha, com a pesada mantilha castanha de lã da Flandres de minha mãe a proteger-lhe os ombros. A mão direita, envolvida numa toalha de linho ensopada de sangue, estava entalada entre as pernas protegendo a sua intimidade profanada. Não pronuncIOU O mínImo som e COmpreendi que a sua alma voara até ao mais profundo de si própria. Era Cruel pôr-lhe tal pergunta? Pouco me importava: Tinha de apurar se ela sabia, o que nada tinha a ver com qualquer curiosidade doentia, como ela provavelmente imaginava.

Conservava ainda na bolsa a aliança da rapariga para a entregar ao marido, esperando que ainda estivesse vivo para a venerar. O anel de sinete de meu tio, beijei-o e guardei-o na caixinha de ébano onde antes tínhamos as folhas de ouro, por imaginar que poderia ser penoso para minha tia Ester vê-lo no meu dedo. Quando minha mãe me questionou sobre o paradeiro desta lembrança, achei que era a ocasião propícia para falar com ela.

- Quem é que sabia da nossa geníza?- perguntei-lhe. Encolheu a cabeça, como fazem as galinhas, e fitou-me como se eu tivesse endoidecido.

Depois do bater da meia-noite na Sé, ouvimos Brites, a nossa lavadeira, que era cristã, a chamar-nos desesperadamente do pátio, com a voz estrídula de uma gaivota perdida. Ia a gritar por ela em resposta, quando minha mãe pôs as mãos em cruz diante de mim.

Compreendi então a insegurança do inferno de ter um irmão pequeno nas garras de verdugos que não respeitavam nem a beleza do corpo humano nem a santidade da alma. E fiquei a cismar quem seria que figurava na Tábua Eterna@O@ da tradição muçulmana como assassino de meu tio e fiz votos para que pudesse descobrir quem era a rapariga. Mais que nunca, convenci-me que era ela a chave.

Na terça-feira, de manhã cedinho, achei que já bastava de trevas e de hesitações. Sentia as pernas e os braços tolhidos pela necessidade de ar livre e de movimento. Contemplando a cerração arroxeada que precede a madrugada, decidi começar a procurar Judas, Reza e os membros do círculo de iniciados. Calculei que não devia haver muitos cristãos a pé a horas tão matutinas.

- Não vás! - ciciou minha mãe. Fincou as unhas na minha carne. É perigoso! E tens de recitar as tuas orações da manhã. O tio havia de se zangar se não cumpres os teus deveres para com Deus.

- As orações da manhã vão ter de esperar! - disse eu, libertando-me das suas mãos. Enfiei na bolsa tudo o que precisava, excepto o meu punhal, que deixei a Farid.

Aceitou a minha oferta sem um gesto. Tinha os olhos raiados de sangue e corriam-lhe fios de suor pelo rosto. Quando lhe beijei a fronte, senti que queimava e tinha o sabor de uma doença má. Ao voltar-se para evitar o meu olhar interrogativo, reparei que as feridas do pescoço tinham piorado e pareciam agora negras e amarelas.

- Como te sentes? - perguntei-lhe com as mãos.´- É como se um bicho coberto de espinhos me arranhasse as entranhas atentar sair - diziam os seus gestos débeis.

Seria peste? Se ele se fosse, quem me poderia depois falar na minha linguagem interior? Quem me ajudaria a descobrir o assassino de meu tio? Imobilizado pela desesperança, fiquei a observá-lo, lembrando-me que fora a nossa velha amiga Murça Benjamim quem primeiro dissera que éramos irmãos gémeos ,ntregues a pais diferentes. Aquela querida Murça que em breve se iria casar!

Teria ela sobrevivido?

Ao iniciar a minha busca, fui ao telheiro buscar um martelo e murmurei para Deus: «Dá-nos Judas de volta e toma-me a mim em vez dele.»

Segui cantando interiormente versos do Zohar, como um escudo para me proteger dos cristãos. Diante de mim estendia-se a Rua de São Pedro, completamente vazia. Uma névoa escura e algodoada recobria a cidade. As raras portadas que tinham resistido à fúria da turba estavam trancadas como se nunca mais se devessem abrir. Por cima de mim voejavam gaivotas, luminescentes, como se prestes a irromper em chamas. Nas imediações da Porta de São Pedro, uma mulher corpulenta com um cesto de vime à cabeça começou a correr num passo esforçado e sacudido. Muito acima dela, por trás das torres gémeas da Sé, viam-se volutas de fumo elevando-se nos ares: a fogueira do Rossio devia ainda crepitar.

A porta de Frei Carlos estava ainda fechada. No interior da Igrej'a de São Pedro, ouvia-se o crepitar dos pavios das lamparinas acesas. Na nave jaziam corpos atirados ao acaso como marinheiros afogados que tivessem dado à praia. Reconheci a senhora Telo, a costureira, deitada de costas debaixo do fresco da Anunciação que enfeita o transepto. Tinha o rosto branco de cera e os olhos fechados. Sem sangue. Nenhum. Sobre o ombro, pendia-lhe o apito de lata com que costumava chamar os filhos. Voltei-me ao ouvir rosnar. Era um rafeiro de focinho rosado com as patas na barriga de um homem que tinha o peito empapado num líquido escuro. Com as orelhas esticadas, levantava os beiços latejantes e encrostados deixando à mostra os colmilhos afiados, fazia ouvir um ronco que lhe nascia das tripas como se temesse que lhe disputasse o cadáver.

Encaminhei-me para a Igreja de São Miguel. Havia vários corpos hirtos e silenciosos diante do altar do Nazareno. Peguei numa lamparina de uma capela lateral e comecei à procura. judas não se encontrava entre eles. Em Santo Estêvão deparei com o corpo de uma adolescente no jardim do adro, no meio de um canteiro circular de belíssimos malmequeres. Um abutre corcovado picava-a metodicamente com um ar indiferente. Observando-o, reparei que estes rapaces atacam primeiro os tecidos macios, os lábios, a língua, os olhos. A rapariga ficara irreconhecível. O sacristão da igreja, um cristão-velho, emergiu do seu esconderijo numa capela lateral antes de eu sair. Respondendo à minha pergunta, disse-me: «Não, Frei Carlos não. Outros. A maior parte foram para o rio. Falavam de barcos que andavam a passar judeus para a outra banda. Descobri que a única coisa que ainda me podia perturbar era a bondade. Quando ele me abraçou, a minha carapaça desfez-se. Afastei-o e apoiei-me numa parede. Depois desatei a correr.

O alvorecer estendia uma luz diáfana pelo horizonte. As andorinhas descreviam grandes arcos em torno de mim, chilreando como numa fala ataballioada. Cortando para o Tejo, dirigi-me às peixeiras que montavam as tendas para vender a pesca da noite anterior e fiz-lhes uma descrição de Judas, mas elas não tinham visto nada. «Mataram alguns judeus?» - perguntou uma delas e bocejou, como se a mera ideia disso a enfadasse. Quando lhe derrubei a banca desatou a berrar como um papagaio. Mas ninguém ousou fazer-me frente: as pessoas sabem reconhecer a loucura e afastam-se.

Caminhei então para o centro da cidade, até atingir o arco de dentro do Terreiro do Trigo, sem me arriscar a ir mais além. Do lado do cais, dois mareantes portugueses e um grupo de marinheiros loiros do Norte praguejavam ruidosamente uns com os outros. No meio deles, estavam estendidos os corpos de quatro homens mortos. Um monte de cães abatidos jaziam espalhados em torno do cruzeiro que ornamentava o largo e o sangue ensopava o feno que se escapava dos fardos recentemente desfeitos. Mais adiante, num dos ancoradouros usados para a reparação dos barcos, um ajuntamento jubiloso observava a violação de uma escrava africana. Com o rosto encostado às pranchas lodosas, a rapariga gemia sob a crua loucura de um homem atarracado que a arremetia pelas costas. De dentro da cidade flutuante das embarcações, marinheiros e mercadores observavam a cena rindo-se. Voltei então para a relativa segurança da Judiaria Pequena. As minhas passadas pareciam pontuar a pergunta: «Será que os cristãos-velhos nos odeiam tão feramente por lhes termos dado Jesus, o salvador que nunca tinham deveras desejado?»

A casa rasa que Reza partilhava com os parentes ficava no meio do perímetro do lado norte do Largo do Limoeiro. O sol acabara de espreitar a oriente quando lá cheguei. A porta estava cerrada, mas sem o ferrolho. A grande mesa de avelaneira ajoelhava-se no meio da cozinha: tinha perdido duas pernas. Um vizinho que me tinha ouvido andar à procura fitava-me do umbral da porta da frente. Era um homem delgado de olhos sonolentos e com as faces avermelhadas de quem acabou de se escanhoar. Quando lhe perguntei se tinha visto Reza, cuspiu na minha direcção. Mas será que estes cristãos estão sempre à espera que limpemos o seu desprezo com uma mão mansa e continuemos a arrastar-nos para algum incerto futuro? Dei-lhe um tal empurrão que se estatelou no chão com um guincho.

Uma menina nua de uns quatro anos estava impassivelmente sentada numa almofada na horta de Reza. Na fronte, tinham-lhe pintado com os dedos uma cruz a carvão. Debicava uvas passas, tinha o cabelo cortado rente aos ombros, uns olhos escuros cingidos por longas pestanas delicadas. Faltava-lhe a unha do polegar direito.

- Fugi - disse ela.

- Como te chamas? - perguntei. Fitou-me com um olhar distante e abanou a cabeça.

- E onde estão os teus pais? Meteu na boca algumas passas. Rasguei em dois um lençol e tapei-a. «Vou-te levar para minha casa - disse eu - Lá ninguém te faz mal.» Pediu-me para a levar aos ombros. Era tão estranho ouvir o riso de uma criança! Pu-la de novo no chão e fez a pé o resto do caminho.

Ao chegar a casa reparei pela primeira vez que a cozinha parecia um campo de batalha. Umas poucas preciosas gotas de vinagre tinham ficado no fundo de uma bilha partida junto à lareira apagada. Deitei-as na mão e esfreguei a fronte da menina até fazer desaparecer completamente a cruz. Descemos à cave.

- Quem é? - perguntou minha mãe, fixando a criança como se fosse uma afronta à sua mágoa.

- Encontrei-a em casa da Reza. Mas a Reza não estava. Só esta menina. Minha mãe praguejou em voz baixa, depois pegou na criança e apertou-a contra si.

- E Judas? - perguntou.

- Perdi-lhe o rasto - respondi, abanando a cabeça. Desviou o olhar para a parede. Reconheci o mesmo moviinento martirizado que vira fazer meu irmão mais velho, Mardoqueu, momentos antes de morrer. Quando finalmente deixou de respirar, colhi a sua última lágrima na ponta do dedo e levei-a aos lábios. Como um vento do deserto, percorreu-me um alívio doloroso ao sentir o seu gosto salgado. Foi então que tive uma nova visão, a priineira depois da nossa conversão forçada. Irrompeu dos meus pés para a cabeça e soltou-se pela boca como um grito. Eu estava no pátio. Mardoqueu estava sentado no telhado, perto do trovador de lata que servia de catavento. Eu queria ir para o pé dele, dominado pelas saudades. O meu olhar era atraído pela mesma luz distante que sempre aparece nas minhas visões. À medida que se aproximava, ia-se transformando numa águia enorme, de cauda em leque e cores flamejantes. A cabeça era de um branco espectral e os olhos cintilavam, passando do violeta para o vermelho, como cristais prismáticos. A garganta era de um amarelo-esverdeado, a asa direita prateada, a esquerda dourada. O peito de um púrpura de múrice. Descendo vertiginosamente para o nosso telhado, a grande ave esticou as garras e arrebatou Mardoqueu sem qualquer esforço. Gritei-lhe: «Então, e eu? Mardoqueu respondeu: «Daqui a anos vamos precisar da tua ajuda. Deus ainda tem uma tarefa para te dar.» Bem firme entre as garras poderosas da águia, prosseguiu para oriente, em direcção a Jerusalém e ao Monte das Oliveiras. Seria então desde sempre a minha verdadeira tarefa libertar do faraó a minha família e levá-los em segurança para fora de Portugal? Caberá a todos os homens cumprir um grande objectivo durante a sua vida?

Dirigindo-me a minha mãe, perguntei-lhe:

- Alguma vez ouviu o tio dizer alguma coisa esquisita sobre os membros do círculo de iniciados nestas últimas semanas? Alguma suspeita... alguma fúria?

Não! respondeu e começou a torcer e a puxar o cabelo da fronte. A menina que eu tinha encontrado na horta de Reza tinha pulado para o chão e tinha os olhos cravados em mim. Cinfa, em pé, observava-a, fixando-a com os olhos semicerrados, agarrando o cabelo da nuca. Antes que o desespero se apoderasse de mim, precipitei-me para a rua, para ir à procura dos iniciados.

Diego vivia só, nuns aposentos junto à Igrreja de São Tomé, a menos de cem passos da muralha oriental da cidade, numa parte de Alfama habitada sobretudo por cristãos. Enquanto subia a rua nessa direcção, começou a ouvir-se o estrépito das portadas que se abriam. Alguns moradores de gorros puxados para a frente observavam-me, bocejando e piscando os olhos. Artesãos sombrios saíam arrastadamente para o trabalho. O meu estômago começou a roncar, implorando uma queijada ou um pouco de matza. Mas tinha-me esquecido do dinheiro. Podia talvez pedir uma côdea de pão levedado, mas estávamos no dia antes da « quinta noite de Páscoa. Chametz, é claro, continuava a estar-me vedado. Uma linda rapariga com restos de feno nos cabelos emaranhados destacava-se no umbral de uma porta fechada, envolta num cobertor. Não devia ser mais velha que Cinfa. Chamando-me com um sussurro, abriu por momentos a sua cobertura, exibindo-se nua, os seus seios minúsculos e as ancas magras arrapazadas. «Por dois ovos, levo-te ao meu esconderijo - sussurrou ela. - Porque não ... ». É o que acontece quando se abandonam as crianças ao Deus da Desafeição nesta nossa mui nobre e leal cidade.

Um pouco adiante, ao subir a íngreme aba da colina fronteira ao larguito junto da Igreja de São Bartolomeu, pensei em dar uma olhada pelo centro de Lisboa a ver se a tormenta cristã já tinha amainado. Era preciso ser Ingénuo só para ter uma ideia destas! No meio do vale que dali se avistava ficava o Rossio, a uma distância de cerca de uma milha. Havia pelo menos um milhar de cristãos que já ali estavam reunidos e duas fogueiras enormes cresciam para os céus. Do ponto elevado onde me encontrava no topo da colina, os cristãos-velhos despiam-se por momentos dos seus disfarces humanos e surgiam-me como formigas à volta da comida num enxame raivoso.

Receando que em breve começassem a surgir pequenos grupos de saqueadores para se espalharem pela cidade, apressei-me a chegar a casa de Diego. A porta da rua estava fechada e como ele morava no segundo andar comecei a chamar por ele. Do outro lado da rua, um velho sapateiro esquelético, com dois malhos seguros nas mãos semelhantes a garras, mirava-me com um olhar suspeitoso. Quando por meu turno o fixei, desviou o olhar abruptamente.

Comecei a apanhar seixos do chão e a atirá-los às portadas de Diego. Uma velha descorada com olhos raiados de sangue e um queixo ponteagudo semeado de pêlos escuros deitou a cabeça fora da janela do terceiro andar. Um lenço negro cingia-lhe a cabeça, evidenciando o seu nariz achatado quase inteiramente ratado por alguma doença.

- Que é que quer?! - vociferou com um sotaque de Navarra.

- Diego Gonçalves. Viu-o? Abanou a cabeça com movimentos exagerados e deu um estalo com os lábios. Numa voz que parecia colar as palavras umas às outras, respondeu:

- Eu cá ná tenho tempo pra m'andar a meter na vida dos outros. Sabe Deus só pra m'ocupar do meu marido todo o santo dia. Porque Deus tudo vê e se nós não...

Parecia-me bêbada ou demente.

- Ele está cá ou não? - interrompi.

- Ojos!- disse ela grave e lentamente, como se por trás dessa simples palavra houvesse anos de experiência.

- Como?

- Olhos! Estes portugueses têm olhos do tamanho de uma noz. E olham para nós como quem nos quer ver a cor da alma. Sabe-se lá se o problema ná é esse mesmo...

- Oiça, sabe se Diego esteve cá hoje? - perguntei.

- Deus está sempre a ver-nos. O Diabo está sempre a ver-nos. E com esses portugueses de olhos de noz por toda a parte, ná podemos escapar. Quando eu era...

-Vai pentear macacos, bruxa!» - murmurei para mim. Apanhando mais algumas pedrinhas, pus-me a atirá-las com mais força às portadas de Diego.

- Ná está cá! - gritou ela em desafio.

- Então onde está? Não tenho tempo a perder!

- As pessoas dessa casa foram ontem levadas de lá - cacarejou ela, pondo os olhos no céu e persignando-se - Levaram-nas os homens com olhos portugueses.

Posso ir lá dar uma espreitadela? - pedi. E quem é vocemecê?

O sobrinho dele - menti.

Inclinou-se para fora e correu os olhos pela rua, com o lábio superior levantado como um burro zangado. O sapateiro deve ter estado a observá-la, pois ergueu o punho em direcção dele e gritou-lhe: «Vai mas é trabalhar, meu preguiçoso de um raio!» Ele acenou a mão em direcção dela, a dizer-lhe que era maluca, piscou os olhos e fez-lhe o gesto de mau olhado com o indicador e o mindinho esticados. Ela persignou-se para evitar o enguiço e desatou aos berros para ele novamente. Tirando de dentro da blusa uma chave, atirou-a para eu a aparar com as mãos em concha.

- Agora não ma comas - avisou ela -. É a única que tenho! Fiquei à espera do cacarejo, mas pareceu-me estar a falar absolutamente a sério.

- Pode estar sossegada - tranquilizei-a. Quando cheguei ao segundo andar, rodei a maçaneta dos aposentos de Diego, mas a porta estava fechada. A porta do vizinho do lado, porém, tinha sido completamente espatifada. De lá de dentro vinha um cheiro estranho que parecia de água salobra. Antes de entrar a ver, subi as escadas para devolver a chave.

- Vocemecê é judeu? -perguntou a velha - Porque os judeus, já sabe como é...

- Sou sim - assenti secamente. Agarrou-se ao meu braço e disse:

- Agora pergunte-me a mim se eu também sou.

- Tenho de ir embora - disse eu.

- Pergunte! - insistiu ela, ferrando-me as unhas na pele e cuspinhando-me o rosto com o acesso da sua cólera.

- É judia? - perguntei eu num tom indiferente. Antes que eu pudesse afastar-me, deu-me uma bofetada com a sua velha mão calejada.

- Ah, danados portugueses, que nunca hesitais em insultar uma dama de Navarra! - gritou ela - Mas não julguem que vou...

Ainda estava aos gritos quando voltei aos aposentos de Diego. Bati à porta e chamei por ele, mas só me respondeu o silêncio. Cada vez mais inquieto, com medo do que lhe poderia ter acontecido, desatei a berrar: - Diego! Diego! Sou o Berequias!

Não se ouviu nenhuma resposta. Entrei na casa do lado, onde vivia o velho Levi Califa, antigo farmacêutico e estudioso do Talmud, com o seu filho viúvo e dois netos. O estado em que a habitação se encontrava não augurava nada de bom sobre a segurança de Diego. A cama de dossel do quarto da frente tinha sido espatifada. Tinham pintado com os dedos uma cruz de sangue na parede oriental e por baixo em letras enormes tinham escrito Vincado por Cristo!». Furioso com tais legiões de cristãos ignorantes que manchavam a terra de Portugal, não pude deixar de notar que a palavra vingado» estava mal escrita. Como podiam esperar merecer um mero relance do olhar de Deus quando nem sequer sabiam escrever correctamente ou ler com algum entendimento?

- Mestre Levi! - chamei temeroso. Silêncio. Na parede oposta, a porta que dava para o resto da casa jazia no chão. Passando por cima dela e esgueirando-me pela entrada escancarada, penetrei num quartinho minúsculo, quadrado, que não tinha mais que três passos de largura nem de comprimento, com um soalho de carvalho tosco e uma única cadeira como mobília. E no entanto nunca eu entrara num espaço tão repleto. Compreendi imediatamente que tinha penetrado num limiar sagrado. Nas paredes caiadas de branco, escrito a negro, em pequeníssimos caracteres hebraicos, estava o Êxodo. Integralmente. Desde os nomes dos israelitas que entraram na Terra prometida com Isaac, passando pela fuga dos escravos hebreus através do Mar Vermelho e até à construção do tabernáculo por Moisés. Os versículos começavam no topo da parede do lado oriental, prosseguiam para sul numa linha recta horizontal, depois para ocidente e para norte até formar um círculo. A meu ver, havia mais de duzentos círculos desses. Os caracteres cobriam toda a parte de cima do quarto como uma pérgula sagrada. O Levítico tinha sido iniciado, mas acabava abruptamente com o preceito de não se queimar mel em oferta ao Senhor. Deve ter sido nessa altura que os cristãos irromperam no quarto e levaram o escriba. Nem era preciso pôr-me a pensar quem seria o autor. Tinha a certeza que só podia ter sido o velho Levi Califa. Quem senão ele poderia ser tão dedicado para passar todo aquele tempo escondido para recontar a história fundamental da Páscoa? Sentia-me tão maravilhado que simplesmente me pus a ler, o olliar avivando o seu compasso como um derviche à procura do ritmo da dança.

Nunca pensara que iria encontrar Califa em pessoa. Mas no chão da cozinha, num pedaço de prato partido, havia uma mão decepada. Sabia que era a dele pois o anel de sinete de cornalina que sempre usava na mão direita tinha-lhe sido arrancado. Ao lado via-se o último pedaço de carvão com que tinha escrito e que devia ter caído das mãos.

Uma mão decepada não parece real. Mas porquê? Será porque o nosso espírito se recusa a crer possível uma tal crueldade? E porque será que os cristãos não se limitam a matar-nos e têm de nos cortar aos bocados? Será na tentativa de nos tornarem inumanos, de nos forçar a corresponder à sua imaginação que faz de nós demónios?

Não muito longe dos dedos da mão, viam-se as cabeças azul-de-hissopo dos adorados papagaios brasileiros de Califa, a que dera o nome de ternura e de empatia, as duas palavras que compunham a divisa do estudioso do Talmud.

Deviam ter roubado as preciosas penas dos corpos de Ternura e de Empatia. Talvez enfeitassem agora o chapéu de algum fidalgo cristão.

QUando me curvei para recolher a mão para a enterrar, o estalido de uma tábua a ser pisada fez-me voltar. No quarto da frente estava o velho sapateiro que vira na rua, com os seus pacientes olhos cinzentos fixos em mim. Era magro, moreno, vestindo apenas uma camisola manchada de suor e umas calças de linho das mais toscas. Devia ter pelo menos cinquenta anos, possuía uns pulsos finos e ombros estreitos e curvados. De trás das orelhas emergiam uns tufos de cabelo grísalho emaranhado. Segurava numa das mãos um cinzel e na outra um malho. Agarrei o punhal e agitei-o diante de mim. «Vão forçar-me a lutar novamente»

- pensei. Para evitar vê-lo entrar no antro sagrado da Tora escrita, passei para o quarto da frente. Numa voz cava disse-me então:

- Não tem muito tempo. Não respondi e pensei: «Porque será que os cristãos estão sempre à espera que os judeus comecem a falar antes da luta?» A fúria crescia dentro de mim, fazendo-me sentir como se tivesse mercúrio fervente a correr-me nas veias. Avançando até ficar a três passos dele, fiquei à espera que atacasse, pensando que viria abater-se sobre o meu punhal. Apesar de tudo, não pretendia feri-lo. Diz-se que a distância entre o direito de tirar uma vida e um homicídio a sangue-frio não é maior que um cabelo e eu não tenho a pretensão de possuir a devida visão para perceber sempre essa diferença.

O sapateiro coçou a clareira calva no meio da cabeça com o cabo do malho.

- Não está a perceber o que estou a dizer. Sou um amigo - disse ele.

- Então largue as armas.

Para grande surpresa minha, pousou-as delicadamente aos seus pés. Com rugas de inquietação na fronte, disse:

- Não tem muito tempo. Estão a chegar do rio. Tem de voltar para sua casa. Vim só avisá-lo.

- Porquê? - perguntei.

- Digamos que Mestre Levi era um bom amigo.

- Quando o viu pela última vez?

- Vá, amigo - disse ele, estendendo a mão para mim.

- Por favor, diga-me quando foi a última vez que o viu. Preciso de o saber.

- Ontem - replicou o sapateiro -. Os dominicanos vieram buscá-lo a ele e à família. - estendeu de novo a mão, pousando-a no meu braço.

Involuntariamente recuei.

- E Diego Gonçalves? Estava com Mestre Levi?

- Oiça, tem de ir já embora! - exclamou, olhando nervosamente para a porta - Não percebe?

- Viu Diego Gonçalves?

Não. Não dei por que estivesse cá. Talvez tenha sido apanhado. - Encolheu os ombros e acrescentou num tom irritado : - Oiça, vou-me embora. Pode sair comigo ou ficar aqui à espera que eles venham e o apanhem, faça como quiser. E não se aflija que aquela bruxa navarresa há-de arranjar maneira de eles o encontrarem depressa. Foi ela que abriu a porta para eles poderem apanhar Mestre Levi sem terem de suar muito.

Curvou-se para recolher o malho e o cinzel. Atravessou-me o súbito impulso de o apunhalar na nuca. Que sentido faria ferir este cristão justo? Será que o mercúrio que me corria nas veias possuía os seus próprios quereres?

- Vamos! - disse ele, endireitando-se. A sua voz ganhara o tom suplicante de meu pai chamando-me para ir estudar. Subitamente chegou até nós um grito nas traseiras da casa. O sapateiro levou aos lábios um dedo curvado a pedir silêncio.

Esgueirámo-nos para o vão das escadas como duas crianças a fugir para uma escapada cheia de perigos. A bruxa navarresa, como ele lhe chamava, estava especada acima de nós, com uma expressão de desaprovação que lhe contorcia a face rugosa. O velhote levantou o malho e bateu com ele devagarinho na sua própria cabeça, para lhe mostrar o que lhe faria se ela nos denunciasse. Descemos as escadas como gatos vigiando a presa. Agora só pensava em encontrar Sansão e ler a carta que meu tio lhe tinha mandado. A minha ideia era apanhar a Porta de São Vicente, sair da cidade e seguir para noroeste para casa dele.

Na rua, as andorinhas continuavam a voltear estouvadamente pelo fresco da manhã. O rumor que nos vinha de ocidente era rompido pelo riso cáustico de rapazolas que traziam o perigo no coração. O sapateiro apontou a rua para oriente, em direcção do olho rutilante do sol.

- Vai com Deus - disse ele, segurando-me pelo ombro. Tartamudeei o meu agradecimento. E desatei a correr.

Nunca poderei realçar o bastante até que ponto a morte de meu tio abalou o meu senso. Qualquer judeu que estivesse no meu lugar teria calculado que os dominicanos iriam fechar as portas da cidade ao primeiro apelo religioso da manhã. E também correr era um erro. As minhas passadas abafavam-me o rumor dos cristãos e denunciaram a minha posição. Em frente da Porta de São Vicente havia uma multidão de uma centena ou mais de pessoas. Quando me avistaram, todos os braços me apontaram como se fossem flechas.

Detive-me, as entranhas contraídas de medo. A sensação de deslizar para a perdição levou-me a estender o braço como para procurar o apoio de um corrimão ou de uma parede. Claro que só encontrei o vazio e então, instintivamente, busquei a protecção do punhal. Durante alguns momentos sufocantes, cheguei a abeirar-me da tentação de me dar a morte. Teria sido fácil: Nesse tempo acreditava ainda num Deus pessoal e não temia a morte. Morrer sim. Mas não a gloriosa viagem para a Esfera Celeste. Uma última oração, um único golpe e ver-me-ia liberto. Era o que pensava: «Antes as minhas próprias mãos a libertar a minha alma, do que as de homens que tenham empunhado uma cruz.»

Claro que a minha simples aparência exterior não lhes podia indicar com toda a certeza que eu era cristão-novo. Mas se me despissem, a minha aliança com o Senhor haveria de tornar óbvia a minha crença.

O instinto vital é mais poderoso que o pensamento. Ou talvez a obrigação de encontrar Judas fosse igualmente forte. Voltei-me e corri como quem não tem por onde escolher. Os meus inimigos viriam atrás de mim? Não o poderia dizer, de tal modo os meus sentidos se tinham embotado pela precipitação. Imagine-se alguém que ficasse ao pé de um sino pesado a dobrar destemperadamente no meio do uivar de um vendaval. Assim era o bater do meu coração e o meu resfolegar.

Neste momento não me recordo de mais nada senão de descer escadarias e o odor do meu próprio terror. A imagem que seguidamente fere a minha memória de Tora é a de um campanário. Chegara diante da Igreja de São Miguel, a uns duzentos passos de casa. Imprevistamente, a torre parecia abater-se para um dos lados. Eu tinha sido atirado pelos ares e ficado deitado de costas no empedrado da rua. Embora arquejante, não sentia dores, apenas uma confusão silenciosa. A minha cabeça parecia encerrada numa ânfora de vidro. Era como se a mão de Deus, sem qualquer aviso me tivesse simplesmente deslocado no espaço. A imagem fugaz de um nenúfar rodeado de areia, rompendo subitamente em chamas, queimou-me o olhar. Mais tarde, haveria de compreender que por breves momentos ficara inconsciente e ao acordar captara um relance do mundo dos sonhos que fluía sob a corrente do meu pensamento. Mesmo então, porém, aquela imagem de uma flor em chamas pareceu-me vital, um dom de Deus a que deveria apegar-me. Um dia, em Constantinopla, estando eu a trabalhar nas iluminuras de um «Livro de Ester», deparei com a chave da interpretação desta visão, ao compreender que o Senhor deve ter visto Lisboa como uma flor ardente durante essa Páscoa fatal.

À minha esquerda, afastado uns seis ou sete pés, apercebi-me de um homem ajoelhado, com uma capa de couro tratado, agarrado ao ombro como se estivesse ferido. Compreendi que se deve ter lançado sobre mim de algum umbral invisível embatendo em mim nesse voo e ficando simultaneamente ferido. Dois homens escanzelados, de roupas esfiapadas, corriam na minha direcção do fundo da rua. Pareciam-se como dois gémeos idênticos. Os cabelos cortados rente coroavam-lhes a cabeça. Ambos empunhavam machados e tive a impressão de que me queriam partir ao meio como um cepo de lenha. Por trás deles, corria em minha direcção uma massa esbracejante de homens e mulheres. Tudo se confundia num rodopiar de ruído e vento, sombras e formas. Quando subitamente os dois homens se fundiram num só, deixei de entender de todo. E então saltoume aos olhos a evidência: ao cair ficara com a visão distorcida.

O frio cintilar do ferro tem artes de apelar às armas todo o nosso corpo. Num abrir e fechar de olhos, já eu estava em pé, de punhal na mão. O labirinto de becos e ruelas de Alfama desde há muito que faziam parte do meu inapa interior. Atalhei para ocidente ainda mal o meu atacante meio tolhido tentava erguer-se. Não demorei a chegar às íngremes escadas que dão para o Largo da Cantina. Do alto dos degraus pode-se saltar facilmente para os telhados vizinhos.

Atentei no salto e depois de algumas voltas de um lado para o outro por quatro telhados atingi a viela seguinte. Seguiam-me três homens; dois deles, os mais próximos, empunhavam espadas. O terceiro era um frade de cruz na mão como uM bastão. «Agarrem o marrano! - gritava ele numa voz rouca - Quero que me tragam a aliança que fez com o Diabo!» Devia querer as minhas partes como troféu, imaginei. Educado a ver o mundo simbolicamente, interrogava-me se o dominicano não quereria pôr termo de uma vez por todas às nossas possibilidades de reprodução.

Desci do telhado e escalei um muro baixo que dava para o pátio do Senhor Pinto. Tal como suspeitara, a porta da cozinha tinha sido arrombada. A casa estava virada do avesso. Atravessei a cozinha que dava para a esquina da Rua de São Pedro com a Rua da Adiça. A casa de Farid ficava do outro lado da rua. Num salto vi-me em cima do muro que rodeava o pátio, dali saltei para dentro e entrei a correr na nossa cozinha.

Depois de me certificar que não tinha sido seguido, dirigi-me ao quarto de meus tios e ergui uma tampa falsa da arca, de onde retirei uma bexiga seca de enguia que continha algumas moedas previstas para uma emergência. Esperei uns instantes até se dissiparem os gritos que me chegavam da Rua da Sinagoga. Depois, quando já só ouvia o bater do meu coração, encaminhei-me para o rio. Perto da margem, um pescador que desde criança sempre ali vi, mas que nunca ouvi pronunciar uma palavra, estava sentado num barco azul a remos, cortando um naco de queijo com uma faca ferrugenta. Parecia velho, teria uns cinquenta anos, baixo, com um rosto tisnado como couro e os olhos pardos da ignorância. Quando me fitou, mostrei-lhe uma moeda e apontei para ocidente, a jusante. A minha ideia era seguir dali, passadas as portas da cidade, para a vinha de Sansão Tijolo, percorrendo a pé as cinco milhas que distavam. O pescador assentiu, remou para o sítio onde me encontrava, acostando junto à margem.

Tenho de sair da cidade - disse-lhe eu. Atirando as duas moedas de cobre que lhe tinha dado para o monte fervilhante de minhocas do isco, o pescador remou uns cem pés para o meio do rio, ofegando e praguejando. No pé direito, por cima do dedo grande, uma ferida de um Vermelho vivo rasgava-lhe a pele escurecida e encharcada.

- Mordidela de caranguejo - resmoneou - nunca sarou em termos.

Enfiando-se por entre dois grandes barcos de pesca e contornando uma galé onde flutuava a cruz de Cristo portuguesa, girou o barco até apanharmos a correnteza. À medida que as remadelas ganhavam ritmo, as muralhas de Lisboa iam ficando para trás até se reduzirem a uma fita que se desenrolava em torno das torres das igrejas, para lá da massa confusa dos bairros exteriores da cidade. O pescador atracou por trás de uns rochedos junto à margem e ergueu a mão para me desejar boa sorte. Acenei a agradecer, arregacei as calças e decidi-me a chapinhar na água fria.

Na margem, dois peregrinos andaluzes que se dirigiam a Santiago de Compostela e usavam chapéus enfeitados com vieirinhas aproximaram-se e perguntaram-me se sabia de alguma taberna ali perto. Fingi que não compreendia a língua deles e continuei o meu caminho.

 

DuaS horas depois, tinha diante de mim Rana, a mulher de Sansão Tijolo e velha amiga da nossa vizinhança, que viera à porta dando o peito ao filhito recém-nascido.

- Beri!... Deus seja louvado! Estás vivo! Entra, entra! - agarrou-me e puxou-me para dentro, fechando a porta atrás de mim e correndo o ferrolho-.Nem posso acreditar! - dizia sorrindo.

Demos um beijo e eu afaguei o cabelinho penugento do menino. Era ainda tão pequenino que tinha os olhos firmemente fechados, como se nunca os devesse abrir. «Coisinha mais linda!» - disse eu, que não ia agora pôr-me a falar a alguém que é mãe pela primeira vez do ar de esquilo que as criancinhas têm durante pelo menos o primeiro mês.

- Lindo? - replicou Rana - Deves ter andado outra vez a meditar de mais!

Tentou sorrir, mas as lágrimas assomaram-lhe aos olhos. O seu olhar cabisbaixo revelava o desespero da solidão e compreendi que também Sansão se perdera no vendaval cristão. Sentámo-nos à lareira.

- Como soubeste dos motins? - perguntei.

- Vieram cá uns vizinhos avisar-me.

- Devias vir comigo. Porque não voltas para...

- Bem sabes que não posso - interrompeu-me ela. Para proteger o filho dos perigos do Outro Lado, Rana nunca sairia de casa depois do nascimento de Miguel, durante os primeiros quarenta dias. Tal era o número de anos que os judeus vaguearam no deserto e os dias do dilúvio bíblico.

- QUando foi a última vez que tiveste notícias de Sansão? - perguntei.

- Desde domingo que não sei nada. Tinha ido à Pequena Jerusalém para comprar pano que era preciso para... - e apontou Miguel com a cabeça -

Deve ter ido à loja de Simão Eanes. Não o viste nem ouviste dizer nada? E não falaste com Simão?

- Não, nada. Mas duvido que Simão tenha escapado. Voltou o rosto para a parede, enquanto dos seus lábios se escapava o murúrio de uma oração.

- Ainda há uma esperança de ele ter chegado a porto seguro. Sansão é esperto. E é forte. Bem capaz de meter medo a muitos cristãos. Até eu tinha medo dele quando era miúdo. Vais ver que ainda volta - disse eu, segurando-a pelo braço para lhe incutir coragem. Mas no fundo apercebi-me que tentava convencer-me a mim próprio de que Judas poderia estar são e salvo.

- Não - ripostou -. Se estivesse vivo, já tinha voltado.

- Pode ser que esteja escondido.

- Sansão esconder-se? Beri, um pai que é pai pela primeira vez depois de ter esperado cinquenta e sete anos não vai agora esconder-se sabendo que a vida do filho pode estar em perigo. Rana era uma das raras pessoas que se recusam mentir a si próprias. Era por isso que muita gente a achava rude, ou mesmo desapiedada. Abanava resignadamente a cabeça e passava pelos cabelos castanhos riçados a mão que tinha livre. «Se tiver de ficar só ... » As suas palavras desvaneceram-se e mordeu os lábios para não chorar. «É só comer e dormir» - exclamou, indicando Miguel e esboçando um sorriso. O mamilo tinha-se escapado da boca do menino e ela voltou a enfiá-lo na sua boquinha, enquanto ele brincava com os braços. Ao mamar fazia um som contente e consolado. Rana olhou-me com uma esperança nos olhos:

- Beri, sabes alguma coisa dos meus pais?

- Não. Desculpa, devia ter perguntado antes de vir cá. Não sei nada.

- Não faz mal. Penso que hão de vir ver-me logo que possam... se puderem.

- Rana, vim cá sexta-feira passada comprar vinho. Levei um barrilito e deixei um sinal.

-já sei. Vimos logo que tinhas sido tu por causa da matza - deu-me uma palmadinha no braço -. É bom saber que há coisas que nunca hão-de mudar. Devia estar a dormir. Não costumo dormir Muito, mas quando me chega o sono podem deitar a casa abaixo que não acordo. Só quando o Miguel chora. Isso é como se um caçador me acertasse com uma seta no coração.

- Ouve, ainda tens a carta que cá deixei outro dia?

- Não sei - disse, encolhendo os ombros -. É importante?

- Tenho de a ler. Pode ser que alguma coisa que meu tio dizia a Sansão... Onde é que ele a pode ter deixado?

- Talvez no quarto.

- Podemos dar uma vista de olhos?

- Pega nele! - disse ela, erguendo Miguel e passando-o para os meus braços.

Enquanto Rana procurava nas arcas e gavetas, eu segurava ao colo o menino e lembrava-me da doce sensação de quando embalava judas. Tantas vezes que eu e Mardoqueu passámos noites a passeá-lo de um lado para o outro para que não chorasse! Não tinha sido uma criança fácil, tinha nascido com um fluido nos pulmões que lhe causava uma tosse persistente. Fechei os olhos. Os dedos latejavam ao tocar a pele tão suave da criança. «Judas, querido Judas - murmurei para mim - Por favor, meu Deus, fazei com que esteja vivo.» Para não ser invadido pela ansiedade, comecei a conversar com Rana enquanto ela prosseguia a busca. Falámos dos problemas de estômago de Miguel.

- A caca dele parece caganitas de pombo - dizia ela num tom preocupado - O doutor Montesinhos disse-nos que não era nada sério...

- Não te aflijas - disse eu, com um gesto tranquilizador - O nosso Judas era a mesma coisa. A mim parece-me que todas as crianças têm alguma coisa de pássaro.

Ela riu-se, mas o silêncio que se seguiu revelava ainda mais claramente o animo sombrio que tornava pesado o ar que se respirava naquela casa. Trocámos um olhar onde se lia que Sansão talvez nunca mais voltasse e ela estendeu as mãos para me afagar. «Querido Beri - disse ela - Tenho tantas saudades dos nossos vizinhos.» O nosso olhar estava ligado pela recordação dos muitos demónios que combatemos juntos com o nosso exército de crianças. Ela voltou à sua busca, rebuscando um armário de gavetas ao pé da cama. Tirou uma caixinha de madeira com uma fechadura de metal de onde retirou um rolo.

- Achei-o - disse ela num tom de triunfo, passando-me o recado - É isso, não é?

- Deve ser. Passei-lhe Miguel para os braços. O rolo desfez-se em cinco folhas de papel. Com o ar de me estar a convidar para partilharmos uma aventura, Rana disse:

- Ouve, Beri, dá uma vista de olhos ao recado que eu vou buscar pão de challa e um pouco de vinho. Se calhar não podes... ainda deves estar a festejar o Êxodo. Então só o vinho, está bem? Podes ficar, não podes? Pelo menos até veres o recado. Fica lá...

- Só fico até o ler. Depois tenho de voltar para casa. Mas então, Rana... se tens chametz em casa, quer dizer que ainda não festejaste a Páscoa?

- Ainda não. Estávamos a esperar mais algum tempo, para não termos problemas.

Conduziu-me de volta para a mesa da cozinha, serviu-me um copo de vinho e pegou na mão que tinha livre, enquanto eu lia o recado de meu tio:

«Caro Sansão, Miguel Ribeiro recusou. Por isso vou-te contar uma história. Por ela verás a minha esperança em que compreendas a necessidade que todos temos de fazer algum sacrifício neste momento decisivo. Se não conseguirmos fazer o que fez o Rabi Graviel neste fulcro do tempo, então talvez tudo esteja perdido. Ainda que a tua fé se esboroe, o que conta são os teus actos. Será que Samael ganhará o seu dia?»

No topo da página seguinte, estava escrito: «História da Crestadura do Sol do Rabi Graviel». Era a mesma história que o meu mestre me tinha contado no seu último Shabat e, ao murmurar o título, parecia sentir as suas mãos segurar-me a nuca. A sua voz ciciava-me: «Lê, lê-a novamente, Berequias. Talvez possas também entender o seu significado. Não foi por acaso que ofereci esta história a ambos, a ti e a Sansão.»

- O que é? - perguntou Rana, sentindo a minha súbita agitação.

- Um conto. É sobre o Rabi Graviel, um dos meus antepassados, de como ele teve de sofrer o cativeiro em Espanha para que a filha dele continuasse a viver.

julgo que meu tio teve uma visão de que também ele teria de fazer um grande sacrifício. Foi isso... Para que poupassem a rapariga que estava na cave, teria de dar em troca a sua vida. Era esse o trato. Mas o criminoso não respeitou a palavra dada.

- Beri, quer dizer que o teu tio... Ah, meu Deus! Ao compreender pela primeira vez que meu tio tinha morrido, os ombros de Rana recuaram. Depositou Miguel em cima da mesa, levantou-se e tapou os ouvidos com as mãos, fixando-me horrorizada. Vendo que começara a tremer, aproximei-me dela e puxei-lhe as mãos para baixo. «Rana! Rana!» Ela olhava para mim como se tentasse decifrar o meu rosto, decidir quem eu era. Num tom monótono, despido de qualquer aparente emoção, disse:

- Sansão... Agora Mestre Abraão... E Ester, também ... ?

- Não. Essa está bem. Com a minha mãe e Cinfa. O judas não sabemos onde está.

Fi-la sentar-se e deitei-lhe vinho. Pegou no copo com ambas as mãos, como fazem as crianças, bebeu em pequenos goles e começou a divagar falando sobre os poços da vinha. Quando o silêncio caiu de novo entre nós, perguntei:

- Sansão alguma vez falou em algum problema entre os membros do círculo de iniciados?

Ela abanou a cabeça.

- Uma discussão com meu tio, talvez?

- Nada - replicou ela.

- Mas então, porque é que meu tio fala na perda de fé de Sansão? Ele andava metido em algum sarilho?

- Sansão achava que o menino devia receber uma educação cristã - sUssurrou Rana, agarrando-me o braço - Dizia que agora o ser judeu não servia de nada. Este ano não festejámos a Páscoa. Mesmo se...

Abriu a dobra da fralda de Miguel para me mostrar as suas partes, sem a circuncisão, que devia ter sido feita no oitavo dia depois do nascimento. Fechou os olhos com ar desesperado, as pestanas banhadas de lágrimas. Como para fazer coro com a mãe, Miguel desatou a chorar também. Peguei nele e embalei-o carinhosamente, mas sem grandes resultados. Subitamente, as palavras de Rana Jorraram como que disparadas em todas as direcções.

- Se eu soubesse... Como é que ele pode ter mudado tanto? Quando nos casámos... e depois chegou o menino. Vivíamos tão... tão bem. Lembras-te como era a Páscoa? Lembras-te, Beri?! Antes de... Espera, deixa-me mostrar-te uma coisa, De uma abertura por cima da lareira, tirou um livro espesso. O rendilhado intrincado que bordejava a capa revelava tratar-se da primeira versão do Antigo Testamento, feito por Eliezer Toledano no meu tempo de rapaz. Estendeu-mo.

- Vê! - ordenou.

- Que queres dizer? Vejo o quê? - perguntei eu, pegando no livro.

- Num sítio qualquer. Abre num sítio qualquer. Passei-lhe o menino para os braços e abri ao acaso o manuscrito. Aos meus olhos surgiu o «Livro de Ezra», os versículos sobre a reconstrução do Templo. Todos os nomes de Deus tinham sido riscados um a um com uma tinta castanha. Era aterrador, como um talismã do mal. Rana falou numa voz apressada, como se a perseguissem.

- Sansão disse-me que tínhamos de enterrar o deus judeu. Depois da Páscoa tínhamos de rezar ao Senhor e depois enterrá-Lo e esquecê-Lo. Sansão riscou todos os Seus nomes!

Com os olhos fixos na profanação, passei as mãos pelas páginas riscadas, rezando para não ter de as ver novamente, e pousei o livro na mesa.

- Nunca hei-de ser cristã! - gritou Rana subitamente - Preferia matar-me! Era como se o seu grito fendesse o ar entre nós.

- E o teu filho? - perguntei - Quem há-de olhar por ele? Agora que...

- Preferia vê-lo morto! Nove anos antes, alguns judeus tinham matado os filhos, matando-se depois, para não terem de se converter à força, que é uma coisa que me parece escrita numa linguagem incompreensível.

- Não falas a sério - protestei. Rana inclinou-se para diante, passou o filho para os meus braços e, com um brilho assustador nos olhos, pegou numa pesada faca do pão, ergueu-se de um salto e apontou-a para mim, com o corpo retesado pela fúria.

- Fazia-o neste momento se me dissesses que tenho de coser a mortalha do meu Senhor!

- Fazias um grande pecado se alguma vez fizesses mal a este menino. É um embaixador de Deus para nós. Eras capaz de matar Abraão, Isaac ou Moisés se eles aqui estivessem?

Continuava com a faca nas mãos.

- Esta criança é Abraão, Isaac e Moisés. É o Senhor nosso Deus! - exclamei eu.

Rana deixou tombar a arma e desatou a soluçar. Fi-la sentar e afaguei-lhe os cabelos. O menino parecia fascinado pelos gemidos dela. Mas assim que ela se calou, começou a agitar as pernas e a protestar. Desisti de tentar consolá-lo e passei-o à mãe. Sem me dar tempo para reflectir, peguei no Antigo Testamento profanado, contive a respiração e atirei-o para a lareira.

- Berequias! Pára! Olha o que fizeste... - exclamou Rana, gaguejando.

Enquanto o fumo e as chamas crepitavam com as páginas que se enrolavam e amareleciam, repliquei numa voz que parecia vir de meu tio:

- As palavras escritas não me são necessárias. Nem mesmo a Tora. Nem tão-pouco a ti. Guarda a tua religião dentro de ti. Deus virá aí ao teu encontro, aí onde falas contigo própria. Se Sansão voltar... e havemos todos de rezar para que esteja bem, deixa que fale de cristianismo. Respira tu judaísmo. O teu filho há-de conhecer a diferença. E quando ele tiver idade bastante para guardar segredos, deves falar-lhe na noiva que é o shabat e que dentro dele esperou pacientemente durante toda a sua infância. E celebrareis então juntos a boda.

O menino procurava de novo o seio da mãe. Rana deu-lho, fixando-o atentamente, como que procurando antever essa cerimónia futura. «Como deve ser maravilhoso - pensei com incontida inveja - poder oferecer-se a si próprio como alimento a outro ser.» Será possível que o objectivo da vida de alguém surja inesperadamente, no espaço de um único momento? Pois compreendi então que também eu haveria de, antes de morrer, procurar entregar-me a alguém tão inteiramente como Rana o fazia.

- Veremos... - murmurou Rana, com um encolher de ombros, como quem não está inteiramente convencida.

Demos um beijo.

- Rana, Sansão andava zangado com meu tio ou com algum dos iniciados? Teria isso alguma coisa a ver com a sua perda de fé?

- Não. Era por causa do menino. Uma coisa é vivermos aterrorizados, e outra muito diferente é condenarmos alguém a um fado semelhante. Ele esteve a cismar no futuro do menino como judeu e não gostou do que viu.

Não queres vir comigo? - perguntei - já sabes que podes ficar em nossa casa o tempo que quiseres. E não tens de ter medo do Outro Lado. Não passa de uma superstição. Não tens de ter medo de sair de casa.

- Não, obrigado - disse, afagando-me no braço - Os meus pais hão-de aparecer por cá. Se puderem...

- Compreendo. Não te esqueças, tens de fazer um jardim interior onde te possas esconder e para onde possas convidar o Miguel quando ele tiver idade - alisei de novo as farripas do cabelo do menino - E se Sansão voltar, diz-lhe que preciso de o ver. Ainda podemos usar o futuro para falar dos judeus em Portugal, Talvez ele ainda volte à fé.

Despedimo-nos com um beijo. Mas mal eu partira, já ela me chamava. A mão tremente sobre os lábios, perguntou-me:

- Achas que o Senhor levou Sansão como vingança... pelo que ele fez ao Velho Testamento?

Fechei os olhos à procura de uma resposta, mas percorreu-me um calafrio ao compreender que deixara de confiar em Deus. Refugiei-me no gesto com que eu e Farid exprimimos o insondável.

 

Ao sair de casa de Rana, a minha descida a um mundo vazio e abandonado por Deus fez com que me agarrasse obstinadamente à história de meu tio sobre o Rabi Graviel. Ao ler de novo as suas palavras, recordei a última lição que nos tinha dado, a judas e a mim, quando o meu mestre falou também na necessidade de fazer um sacrifício. Foi durante a nossa seder de Páscoa, na sexta-feira anterior Enquanto tia Ester enchia as nossas escudelas de sopa de nabo com açafrão, meu tio fez-me um aceno e disse: «O Senhor mostrou-se agradado com Sara ... »

Com estas palavras estava a dar-me uma deixa para um cântico de memória, que começava com aquele versículo do Génesis. Em português, para que judas pudesse compreender, comecei: «O Senhor mostrou-se agradado com Sara como Ele tinha prometido e fez tudo o que tinha prometido acerca dela. Concebeu e gerou um filho a Abraão para a sua velhice, numa época ... » Meu tio deixou-me continuar durante os cinquenta e dois versículos que se seguiam. Interrompendo-me apenas para molhar os lábios com um gole de vinho, contei assim a história de Isaac, filho de Abraão e de Sara, cujo nome em hebreu quer dizer "ele riu-se", que é uma alusão à grande alegria de Abraão por ser capaz de gerar um filho apesar dos seus cem anos de idade. Ao chegar ao versículo que diz «Chegou o tempo em que Deus quis experimentar Abraão», meu tio, franzindo as sobrancelhas, fez-me sinal para que falasse directamente para Judas. Pegando-lhe no queixo, senti o seu olhar pousar-se sobre mim. Na minha voz mais teatral, continuei a história: «Abraão!» - chamou o Senhor. E Abraão respondeu: «Aqui estou!» E Deus disse: «Toma o teu amado filho Isaac e vai para a terra de Moria. Quando lá chegares deves oferecer-me teu filho em sacrifício numa das colinas que te hei-de mostrar.»

Judas contorcia-se no seu lugar e mordia os lábios, perturbado ao sentir aProximar-se a morte de Isaac. Podia senti-lo estremecer ao recordar as pragas que minha mãe rogava, ferido na sua alma com o modo como lhe negava um lugar na vida dela. Tomei as suas mãos nas minhas e contei como Abraão atara Isaac e o colocara em cima do altar que fizera com lenha e como, mal erguera a faca para tirar a vida ao seu filho, Deus interviera na figura de um anjo: Não ergas a mão contra o menino, não o toques! Agora sei que és temente a Deus.

Não sonegaste o teu filho, o teu único filho. Hei-de abençoar-te abundantemente e dar-te descendência tão numerosa como as estrelas do céu e os grãos de areia da praia.»

judas não tinha ficado completamente tranquilizado com este final afortunado. Na sua face lia-se uma ânsia enorme de ser apaziguado. Senti um aperto nas entranhas ao perceber como era cruel da nossa parte enfiar a espada da Tora através das suas frágeis defesas. Apoiei a minha mão na sua nuca, enquanto ele punha os olhos no chão, e procurei incutir-lhe coragem. «Come mais um pouco de sopa - disse eu - senão fica fria. » Meu tio carregou o sobrolho e, sem atender aos meus protestos, disse:

- Ouve, judas, meu querido, tinha pedido ao Beri para te contar esta história por uma razão. Diz lá o que pensas dela.

Todos os olhares se fixaram no rapazinho. Mas os seus lábios mantinham-se firmemente selados. Dei-lhe uma palmadinha nas costas para o encorajar mas ele estava prestes a rebentar em lágrimas. Fitei meu tio com ar de reprovação, com vontade de lhe gritar: «Não acha que já sofreu bastante nestes curtos cinco anos? Deixe Judas em paz!»

- Quero saber a tua opinião - insistiu meu tio - Nunca te hei-de querer mal se me disseres a verdade. Nunca! Tens a minha palavra.

Diz lá, Judas - pediu tia Ester, sorrindo maternalmente.

Minha mãe fitava-o com um rosto de pedra e começara a repuxar nervosamente as farripas de cabelo da fronte. Quando lhe belisquei o pescoço para acabar com aquilo, judas balbuciou:

- Não gostei da história.

- Eu também não - exclamei.

- Porque é que não gostaste? - perguntou meu tio, rejeitando a minha ajuda com um gesto.

judas esfregou os olhos com os punhos fechados.

- Porque... porque... Não sei. Porque não!

- Mas diz-me porquê - disse meu tio suavemente.

- Porque Isaac não fez mal nenhum - deixou escapar judas.

- Isso mesmo! - disse meu tio, levantando-se e inclinando-se para o menino, com os braços apoiados na mesa - Agora vou-te dizer um segredo Judas, E olha que os segredos são uma coisa muito importante. É por isso Mesmo, que não se devem contar a ninguém. Fica só entre nós, está bem.

Judas assentiu com um aceno, a boca aberta como se tivesse entrado em transe, pois adorava os segredos que meu tio lhe confiava.

Muita gente pensa que esta história quer dizer que por vezes é necessário fazer sacrifícios por Deus - começou o meu mestre - Um sacrifício tremendo, se preciso for. E até certo ponto têm razão. Abraão estava disposto a sacrificar o seu filho. E também há pessoas que acham que não estava certo que Deus exigisse tal coisa a um homem. E não estava certo que esse homem tiveSSe aceitado. Talvez tenham também razão. Até eu muitas vezes penso o mesmo. Mas é aqui que está o segredo... - Meu tio inclinou-se mais sobre a mesa, até o seu rosto ficar quase a tocar o de judas. Os seus olhos cintilavam. Levando um dedo aos lábios, ciciou: - Não te esqueças de que Isaac quer dizer «ele riu-se». isso é a prova segura de que a Tora fala por metáforas, por enigmas muito particulares. Isaac não é o filho de Abraão neste mundo. É uma espécie de filho do próprio interior de Abraão. É um filho nascido do riso e da mágoa de Abraão, da sua cólera e da sua ternura, dos seus medos e dos seus sonhos. Então o que é que Deus lhe pediu? Que renunciasse a isso. Que renunciasse às suas emoções e pensamentos mais íntimos, aos seus bens mais preciosos. Que desatasse os nós do seu espírito. Que extinguisse uma parte de si próprio. E porquê? Para que dentro dele se pudesse abrir uma porta por onde Deus pudesse entrar. Meu querido Judas, esta história é um apelo para te abrires a Deus e nada mais - meu tio levou a mão à cabeça do sobrinho, desgrenhando-lhe os cabelos e seguidamente apertou-lhe o nariz - O amor de Deus por ti é tão grande que não hesitou em contar uma história terrível e deixou que pensasses mal d'Ele. Tudo para que um dia O possas encontrar dentro de ti. Tudo o que Ele pretende é poder abraçar-te, nada mais. Está bem?

judas, ainda fascinado, fez um grande aceno de assentimento. Reparei, com um sentimento de gratidão, que o humor das crianças pode mudar tão facilmente. A lição que, nessa ocasião, tirei de tudo aquilo foi a de pensar duas vezes antes de duvidar de meu tio. Mas agora, a caminho de casa, pus-me a pensar no que ele nos tinha dito sobre o sacrificio. Deus tinha pedido a Abraão que renunciasse ao seu bem mais precioso. Teria Ele pedido a meu tio que renunciasse à sua própria vida? Porquê? Por desse modo se puderem salvar mais livros das chamas cristãs? O meu cismar foi interrompido daí a pouco por um homem que gritava o meu nome. A intuição de Rana sobre os seus pais parecia estar certa: eram eles, Beiijamim e Raquel, que eu avistava no cimo mais próximo, caminhando na minha direcção.

- Beri! - gritou Benjamim, correndo para mim, com a ansiedade espelhada nos seus olhos escuros - Viste a Rana? Ela está...

- Está boa. E o Miguel também. Estão os dois livres de perigo.

- Graças a Deus - disse ele, pondo as mãos sobre o meu peito - Ouve, não nos podemos demorar, temos de a ir ver. Dá as nossas lembranças a toda a tua família.

- Lá serão entregues - disse eu, segurando-lhe o braço - Só mais uma coisa: viram o Sansão? Tinha ido a Lisboa para comprar...

Benjamim levou os dedos aos lábios:

- Desde domingo que minha filha é viúva - balbuciou ele - Sansão foi apanhado quando os motins começaram. Foi colhido de surpresa.

- Fumo. Fumo, é tudo o que resta de Sansão - disse Raquel, fazendo um gesto para o ar com a mão.

- E ainda há fogueiras no Rossio? - indaguei.

- Nem nunca as hão-de apagar disse ele, abanando a cabeça, enquanto nós continuarmos os mesmos.

Estas palavras queimavam através do torpor que parecia subir e descer dentro de mim ao seu próprio ritmo e senti então que já há muito tempo que não via a minha família. Apressando o passo, rumei a Lisboa, para encontrar as portas da cidade, tanto a norte como a oriente, obstruídas por grande soma de cristãos e de frades dominicanos. Os mais moços de entre eles excitavam-se mutuamente, batendo-se e praguejando, como filhotes de ursos à espera de uma oportunidade de mostrarem o que valiam. A ocidente, porém, na Porta de Santa Catarina, havia apenas um reduzido ajuntamento de velhotes bêbados. Mais tarde, vim a saber que corria o boato de que o rei ia mandar entrar as suas tropas pela parte oriental da cidade para restabelecer a ordem na capital. Por isso é que as portas ocidentais estavam menos vigiadas.

Pelos vistos, parecia menos um marrano do que minha mãe imaginava: os cristãos com quem me cruzei não disseram uma única palavra e até me arrastaram para me juntar a eles e rir com as suas chalaças alvares sobre mulheres e judeus. Que Deus me perdoe, mas lá me deixei levar, para não pôr em risco a minha vida.

Sabes qual é a semelhança entre um judeu e um louva-a-deus? - perguntou um homem, de rosto magro cavado.

Vendo-me abanar a cabeça negativamente, atalhou imediatamente:

Se lhe cospes, continua a rezar. Se o prendes, continua a rezar. E só pára se pegares na espada e lhe cortares a cabeça!

Custa a crer que alguém pudesse achar graça a tais coisas. Mas os cristãos conspurcavam o ar com as suas gargalhadas desdentadas e eu procurava imitá-los o melhor que podia.

Enquanto me afastava, comecei a pensar que talvez Deus tivesse permitido que eu entrasse na cidade por esta porta para poder ir visitar o negociante de armas Eurico Damas no meu caminho para Alfama. A casa dele ficava na parte rica do Bairro Alto, no topo da colina, acima das barracas miseráveis que ficavam em frente. Quando Damas e meu tio ainda se falavam, antes da conversão do negociante, ele explicara ao meu mestre a razão desta localização invejável«É para que nunca esqueça de onde vim. Nenhum crente cristão-novo o deve esquecer.» Nobre sentimento, esse. Mas assim que ele desapareceu, meu tio arrancou-me um cabelo e, calando o meu protesto, disse: «Berequias, as nobres palavras que esse homem acabou de pronunciar estão tão profundamente ancoradas na sua alma como este cabelo estava na tua cabeça. Um puxãozinho e ... »

abriu as mãos para o alto e fingiu-se surpreendido com o desaparecimento do cabelo - Nunca dês crédito a alguém que ganha com a morte de outrem. Especialmente quando depois o vires a exibir em público o seu xaile de orações.

Baixava já o sol no céu quando com ecei a subir o emaranhado de vielas de terra batida que trepavam sinuosas para o Bairro Alto através das encostas a ocidente. Ao passar pelo meio do amontoado de barracas de madeira onde os mais pobres se consumiam numa vida de desencantada servidão, alguns rostos sujos observavam-me disfarçadamente como se fosse um espectáculo pouco habitual. Crianças, cheias de moscas ao canto dos olhos, faziam grande poeirada a correr atrás de galinhas e gatos. Um escravo africano enorme preso pelo tornozelo a uma âncora enferrujada fixou-me com o olhar intenso de um contador de histórias que visse passar uma das suas personagens. Reconheci nele alguma afinidade e saudei-o com um aceno de cabeça, mas ele voltou-me as costas como se eu fosse algum suspeito de um crime. Pairavam no ar os odores da humilhação e da raiva. E no entanto aqui e ali viam-se jardinzinhos com malmequeres e alfazema, couves, nabos e favas.

Um largo empedrado abrigado por castanheiros frondosos assinalava o termo da tolerância real: para além daquele ponto, deixavam de se ver as pranchas de pinheiro e os trapos do povo miserável e começava a surgir a pedra de cantaria da nobreza lisboeta. Reconheci imediatamente a casa de Damas: de cada uma das cornijas emergiam gárgulas horrendas, de cornos e bocas enormes, que em criança me deixavam petrificado. Por trás do telhado, possivelmente vindo do quintal, subiam penachos de fumo. Enfiei a mão na bolsa, saquei o punhal e escondi-o na cinta das calças.

Respondendo às minhas pancadas na grade de ferro em frente da porta, acorreu um rapaz delicado, de rosto suave arredondado, que estacou à entrada com as mãos nas ancas. A camisa de seda verde e uma túnica escarlate sobravam-lhe no peito, possivelmente por serem herdadas de um irmão mais velho. Com um gesto de irritação, afastou do rosto uma longa madeixa de cabelo fulvo e enfiou-a sob a orla da boina azul. Trazia as mãos sujas de cinza. Parecia tomar-Me por um vendedor ambulante e com uma voz cantante disse em tom calmo, mas terminante:

- Não precisamos de nada do que anda a vender. Esfregou o queixo, deixando uma marca negra de fuligem.

- Não ando a vender nada. Queria falar com Eurico Damas. Olhou para o céu com um ar céptico, depois para o chão, e encolheu os ombros:

- Se fosse a si, começava a cavar - torceu os lábios num jeito de mofa e apontou para o ar com o polegar - Ali é que ele não deve entrar, se quer saber a minha opinião.

- Morreu? - perguntei.

- Mais morto não pode estar - respondeu, batendo no umbral da porta.

- Tem a certeza?

- Vi-o com os meus próprios olhos. Até lhe abri a boca e lhe cuspi dentro para ter a certeza.

- Mataram-no nos motins contra os cristãos-novos?

- Oiça - disse, com um encolher de ombros -, Mestre Eurico tinha grande soma de inimigos. Acha a sério que ele escapava? Não devia ter-se escondido dentro do colchão como um percevejo - E apontando-me com um gesto da cabeça, perguntou: - Mas afinal quem é vossemecê?

- Pedro Zarco - respondi, usando o nome cristão que me tinha sido imposto pela espada da conversão - Moro na...

- Ah, o sobrinho de Mestre Abraão!

- Como sabe quem eu sou?!

O moço aproximou-se de mim e passou os dedos pelas grades do portão como quem fosse saltar. Ao perto, percebi que eram as feridas e arranhadelas que tinha no rosto que o faziam parecer tão corado.

- Mestre Eurico odiava o seu tio - disse ele - Estava sempre a falar em prendê-lo e de lhe aplicar a pinga, só para ver as pragas e os disparates que diria.' Pode parecer estranho, mas de certo modo também gostava dele. À maneira dele. Mas achava que o seu tio era um pouco doido... e perigoso.

A tortura da pinga consistia em deixar cair azeite fervente gota a gota sobre o corpo da vítima, por vezes desenhando as letras do seu nome com as queimadelas. Os nomes portugueses são muitas vezes bastante longos e a maior parte@@ dos torturados confessavam o que quer que fosse muito antes de as pingas de fogo chegarem aos apelidos.

- Eras criado dele? - perguntei.

- Mandei os criados embora. Retirou a boina com o sorriso de quem revela um tesouro escondido. Uma cascata de cabelos fulvos sedosos caiu-lhe sobre os ombros. Era uma rapariga!- Sou a viúva - disse ela, com uma vénia. Encolheu os ombros como que a desculpar-se do disfarce com que me aparecera e correu o ferrolho do portão. Tomou-me pelo braço, como se estivesse a convidar-me para uma dança. Entra!

Era então a jovem esposada de Damas! Entrámos numa cozinha toda suja de sangue e empurrou-me através da despensa para o quintal, à sombra de laranjeiras carregadas de frutos. No terraço de tijoleira nas traseiras da casa, rugia uma fogueira de roupas e lenha. Perto, via-se um monte colorido de camisas, gibões e calças. A fogueira lançava nos ares faúlhas, que depois caíam como plumas.

-Passei a noite a queimar estas coisas - disse ela com um desabafo de triunfo - Para começar foram as botas. Oito pares! Era um para cada dia da semana e ainda tinha outro em pele de tubarão para ir à missa ao domingo. Quando achava que eu não as tinha engraxado bem, urinava-lhes em cima e obrigava-me a limpá-las de novo. E deixe-me que lhe diga que o mijo daquele homem cheirava pior do que o dos gatos! Agora o único problema com elas é que largam um fedor tremendo quando as queimamos. E ele também!

As gavinhas das chamas vibravam como se fossem bonifrates que alguém manipulasse.

- Atirou Eurico Damas para a fogueira?! - perguntei.

- Se procurar bem, é capaz de ainda encontrar os dentes dele! - respondeu ela, rindo-se. Passou a língua pelos lábios como quem saboreia um pitéu.

Tinha mais do que os que precisava, por isso estou certa que há-de haver muitos por aí Considerou o meu olhar de espanto com um ar divertido e desatou a rir-se: Não sei se sabe que ele ia raptar o seu tio.

- Sabe se ele o encontrou? O que é que ele...

- Não. Vinha a rosnar quando voltou. Que não tinha conseguido descobrir onde é que Mestre Abraão se tinha escondido... Ouvi-o a dizer isso.

Então a minha suposição estava errada: Eurico Damas não estava implicado. E Sansão estava morto. O que deixava Frei Carlos e Diego como os únicos iniciados que podiam ter traído meu tio; e Miguel Ribeiro e o Rabino Losa como os que lhe tinham feito ameaças.

Ele fazia tenções de impor a pinga a todos os cabalistas amigos do seu tio - continuou a rapariga -. Queria obrigá-los a confessar que tudo aquilo não passava de uma mentira. Estes últimos tempos andava obcecado com isso. Devia ser da idade, acho eu. Não acreditava nesse género de coisas, não sei se está a ver.

- Que género de coisas? Não estou a ver nada.

Riu-se, como que a troçar de mim, e puxou com evidente orgulho a bainha da túnica de seda.

- Num Deus omnipresente, estúpido! Enquanto ela falava, um moço delgado, de cabelos negros e um princípio de bigode, saiu a correr de dentro de casa, arrastando uma espada suja de sangue, com o olhar fixo em mim.

- Deixa estar, José - disse ela - é o sobrinho de Mestre Abraão. E voltando-se para mim sussurrou: - Foi o José quem o matou. Não é lá grande coisa com a espada, mas quando um homem está mais bêbado que um porco numa gamela de uvas, basta um pequeno espeto para... - E fez um gesto com as mãos a imitar uma espadeirada fatal. Sorriu e foi deitar um gibão para a fogueira.

José agraciou-me com o acenar grave de um adolescente que assumiu o papel de um protector e num silêncio soturno e solene ficámos os três a observar as vestimentas a fumegar e torcer-se até ficarem completamente negras. A expressão da rapariga endureceu. Esfregava o rosto, como quem procura limpar alguma nódoa.

- Estou cheia de marcas nas costas, sabe? - exclamou, voltando-se para mim - Durante um ano fartei-me de apanhar com o chicote. Agarrava-se às partes e ficava ali a abanar-se enquanto me batia, não sei se percebe o que estou a dizer - sorriu novamente - Queria apagar até a lembrança dele - pegou-me na mão, antes de continuar - Compreende, não compreende? - Acenei que sim e ela fitou-me gravemente e apontou para o peito. - Os cabalistas acreditam realmente que Deus mora aqui?

Aí e em toda a parte. E em parte nenhuma. Deus aparece-nos sob a forma com que melhor O podemos perceber, revestido de modo que O possamos ver. Depende da Sua graça... e da nossa visão.

Então a mim não me há-de aparecer na forma de homem, não preciso de um Deus macho. já tive um e fiquei a odiá-lo. Mato o próximo deus macho que me apareça a exibir-me as suas vergonhas!

Nesse caso poderá ser uma emanação feminina. Ou nem uma coisa nem outra. Ou ambas, mais possivelmente.

Uma mulher. Prefiro uma mulher - com os punhos fechados e rangendo os dentes, gritou: - Nunca mais nenhum homem entrará em mim! com um olhar altivo voltou a pôr a boina e enfiou nela a cabeleira - Pega nas roupas que quiseres e depois vai-te embora!

Ficámos a olhar um para o outro, como quem procura medir a crueldade do mundo.

Era uma vez uma rapariga feliz que nadava no Tejo, que espiavam de longe e a quem os pais venderam como escrava - recitou ela numa voz tremente, fechando depois os olhos e cruzando os braços no peito como a confortar-se do seu próprio desespero.

E um rapaz que perdeu o seu tio e um irmãozinho - repliquei. Abriu os olhos em sinal de compreensão e acenámos um ao outro como familiares obrigados a separarem-se. O peso da nossa afinidade prendeu-me ainda um momento no mesmo lugar, depois voltei-me e fui embora.

O crepúsculo lavara um céu róseo e acobreado. Olhando de longe o ajuntamento compacto do Rossio, senti a mão de meu tio segurar-me o pescoço. Se pintares de vermelho as tuas mãos ninguém se meterá contigo»- sussurrou el Compreendi o que me queria dizer e arranquei a crosta que se tinha formado na ferida do ombro, deixando correr o sangue pelos dedos. Cobri com ele as mãos- e os braços. «Agora desce até ao rio - continuou - Caminha ao longo da margem e a quem te interpelar diz-lhe que andas à caça de marranos.»

Tal como eu imaginara, cheguei a casa sem nenhum incidente. O tapete sujo de excrementos que cobria o alçapão continuava no sítio. Mas quando descí para a cave era como se entrasse na prisão. Era então jovem e altivo e um tal esconderijo só despertava em mim um sentimento de humilhação.

Cinfa correu para mim quando atingi o fundo das escadas e disse-me que ainda há pouco tempo tinham entrado homens na cozinha, prometendo clemência aos marranos que se entregassem.

- Não voltes a sair! - implorou.

- E Judas? - perguntou minha mãe arquejante.

- Nada - respondi. Farid e a cachopita sem unha do polegar estavam a dormir enrolados em cobertores, junto às escrivaninhas. Tia Ester continuava sentada e em silêncio, o perfil como uma estátua de pedra.

Depois de ter apaziguado Cinfa, levantei o tapete de orações que cobria meu tio. Um cheiro pútrido feriu-me as narinas. «Senhor, quanto tempo passará até que possa descansar sob a terra?» - pensei. Aspergi-o novamente com mirra e de cada vez dizia para mim próprio: «Fixa bem a sua face. Tens de te lembrar de tudo para te poderes vingar.»

Enquanto entoava cânticos interiormente, o meu corpo, prodigiosamente, começou a libertar-se da sua frustração acumulada e a vibrar e a mover-se com uma energia sagrada. Tal é o poder da Tora, ou tão grande a minha capacidade de me iludir a mim próprio, que estava cada vez mais convencido que me cabia a mim a missão de salvar Israel dos filisteus de Lisboa e que ao resolver o mistério da morte de meu tio estaria de certo modo a rodar a chave da porta da nossa salvação. Qual fosse a relação entre a morte de meu tio e a salvação dos judeus portugueses não fazia então a mínima ideia.

Observando as cortinas de couro corridas sobre os postigos do topo da parede do lado norte, entrei de novo a cismar no modo como o intruso se teria escapado. «Tem de haver uma saída escondida - pensei -. Algum túnel, qualquer saída apenas conhecida dos iniciados. Seria por isso que meu tio não queria que eu entrasse na celasem a sua permissão. Por eu não ter sido ainda iniciado nos segredos do nosso templo.»

- Trouxeste comida? - perguntou Cinfa de repente - Ela tem fome. A cachopita, ao lado de Cinfa, contemplava-me num silêncio eloquente.

- Desculpa, esqueci-me respondi - Vou já lá acima ver o que se pode arranjar na loja. Deve haver...

- Não. Ficas aí sentado! ordenou minha mãe. Tinha os punhos cerrados e os olhos a faiscar -. Agora esperamos até tudo estar bem acabado.

Cinfa e a menina começaram a tasquinhar uma matza que eu tinha deixado. Ainda tinha umas manchas de sangue, mas desapareceu num abrir e fechar de olhos. Assim, também a fome passou a fazer-nos companhia.

Precisava de ter as mãos ocupadas e ansiava por saber quem era a rapariga, POr isso peguei numa folha de papel do nosso armário de material e comecei desenhá-la. Farid acordou algum tempo depois, já eu acabara de desenhar o rosto e começara as mãos. Cinfa bateu-me no ombro e disse-me que ele queria falar comigo.

Levei-lhe uma escudela com água, que lhe segurei junto aos lábios e que ele sorveu avidamente. Suava profusamente e ardia de febre. As calças estavam sujas de sangue e de excrementos.

- Como te sentes? - perguntei.

- É como se estivessem a arrancar-me a pele por dentro. E acho que não consegui reter-me. As calças... Devo feder tanto que até Alá deve tapar o nariz.

Apesar dos seus protestos, limpei-lhe o traseiro e as pernas e voltei a cobri-lo com um cobertor. Como não tínhamos mais almofadas, fiz um apoio para a cabeça com vários manuscritos da geníza. Que melhor propósito poderiam servir nesta ocasião os escritos hebraicos? Assim que ele mergulhou no sono, sentei-me apoiado à parede oriental, no local onde possivelmente a rapariga suplicara que a poupassem. Com os joelhos encostados ao peito, deixei-me ficar numa posição de recolhimento e solidão, sentindo que algo de frio e calculista me afastava da minha família. Seria o meu desejo de vingança? Todos falavam agora em murmúrios, mas eu não conseguia. Precisava de correr, de gritar para que todos ouvissem que havia de vingar meu tio. Não podia continuar a viver enclausurado em murmúrios, acorrentado por conversações cifradas. O meu mestre tinha razão: o leão da Cabala dentro de mim não me deixaria continuar a viver como um judeu clandestino. Compreendi então que a minha jornada espiritual daquela Páscoa seria o desvendar da minha verdadeira face.

Voltei aos meus desenhos e, enquanto duraram as horas de luz, mergulhei nos contornos da rapariga, primeiro, e depois de meu tio. Quando chegou a noite, senti-me incapaz de sequer dizer as minhas orações. A cachopita dormia nas minhas pernas, fazendo almofada das minhas coxas. Cinfa aconchegava-se entre nós, enrolada num cobertor.

Nessa noite, foram os meus próprios gritos que ouvi nos sonhos: tinham-me atado ao chafariz do Rossio e baptizavam-me com um ramo de palmeira. - Acordei no escuro com o cheiro do fumo que impregnava as minhas roupas. É impossível, bem sei, pois as calças e a camisa que usava não tinham presenciado a fogueira do Rossio. Do ponto de vista da Cabala, porém, tais ilusões não devem ser ignoradas e, tempos depois, haveria de compreender que aquele odor revelava que uma parte de mim não passara além do domingo. Mas neste momento limitei-me a despir-me e a ensopar as roupas em água de erva doce do nosso armário de material. Mas o odor, mais teimoso que uma carraça ávida, persistia ainda.

Não conseguia voltar a adormecer. No escuro, do brilho do luar nasciam formas amarelas e violeta que se enrolavam em torno de mim e da minha família como lençóis gelados, se bem que fosse reconfortante o seu toque. Era como se nos envolvesse uma coberta que selava conjuntamente os nossos destinos.

Como gostaria que me tivesse antes ocorrido a imagem de «uma coberta legada por Deus», mas sentia-me então avesso a tal linguagem poética.

Foi assim que atingimos as primeiras horas da manhã de quarta-feira, a manhã antes da sexta noite da Páscoa.

A ansiedade conduziu-me até junto de Farid. Senti o seu hálito bafejar-me os dedos, regular mas fraco. Recordei como, quando crianças, ele chorava ao sentir o cheiro das chuvas de Primavera fustigando as moitas de loendros do pátio: aquele cheiro suave era para ele devastador. É bem verdade que sempre fora mais sensível do que eu. E lembrei-me ainda como quando judas nasceu ele e eu dançámos as nossas orações à beira-rio.

judas... Farid... Tio Abraão... Nomes... Serão apenas signos arbitrários ou algo de maior significado? No tempo em que andava abatido com a mudança forçada do meu nome de Berequias para Pedro, meu tio cobriu-me a cabeça com o xalle de orações e sussurrou-me: «São muitos os nomes de Deus. Assim, também nós, que fomos feitos à sua imagem e semelhança deveremos ter muitos nomes. E aquilo que o teu nome encobre não muda nunca.» Meu mestre disse-me muitas vezes que éramos todos retratos de Deus. Mas... também o seu assassino o seria? Agora que víra com os meus olhos as volutas de uma fogueira de chamas judaicas subir acima da escadaria da Igreja dos Dominicanos, poderia ser levado a pensar que a vida de uma pessoa, a vida de meu tio, não contava grande coisa. Mas talvez o horror deva concentrar-se numa única alma, como num diamante de sofrimento.

Os meus pensamentos suspenderam-se num repentino impasse, ao contemplar a luz da madrugada que os postigos começavam a filtrar. Bebi um gole de água da infusa que estava no armário e dei os bons dias a minha mãe que tinha acabado de despertar. Cinfa dormia encostada a ela e minha mãe começou a acariciar-lhe os cabelos com um ar ausente. Tia Ester dormia na sua cadeira, a cabeça caída sobre o ombro direito, os braços pendendo molemente. Também Farid dormia ainda. A sua fronte continuava ardente. Molhei-a ligeiramente com água, mas ele nem acordou. levantando o tapete de cima da rapariga, olhei junto ao seu rosto e acertei alguns pormenores do meu desenho: tinha-lhe posto uma boca grande de mais, demasiado dramática. O desenho de uma pessoa tem um grande poder: ao contemplá-la, a sua imagem ganhava os contornos de um talismã contendo todas as suas esperanças por realizar.

Pouco depois, estando eu ainda ocupado a corrigir os lábios, ouvi Reza e José, o marido, chamarem por nós no pátio. Minha mãe sentou-se, a boca pendendo-lhe aberta. Mas não se pôs em pé. Era como se não pudesse crer nos seus ouvidos. Corri ao encontro deles, seguido por Cinfa. Quando cheguei ao topo, Reza estava a abrir o alçapão. Fiz-lhe sinal para me deixar sair. «Procurei-te por todo o lado» - disse eu, abraçando-a. Como era bom sentir a sua maciça solidez feminina. E eu estava a precisar de ar e de luz. Mas Reza tinha o ar de quem era perseguida. Os seus grandes olhos cinzentos, habitualmente tão altivos, mesmo distantes como alguns diziam, luziam de ardente ansiedade. José, que não ia ao barbeiro há vários dias, parecia doente, possuído por uma espécie de terror contido. Os seus olhos pareciam estar dentro de covas profundas e escuras e os lábios profundamente gretados.

- Estás bem, Beri? - perguntou Reza hesitante.

- Estou, estou. Mas onde é que têm andado? Fui a vossa casa, mas estava...

- Tentámos ir para lá, mas o caminho estava cortado - disse José, segurando-me pelos ombros - Por isso saímos da cidade e fomos para o Sobral. Ficámos lá. Todas as vezes que tentámos voltar, as portas... - ao falar, abanava a cabeça -. Não podíamos correr o risco.

Reza tirou o gorro que trazia e perguntou numa voz ansiosa:

- Estão... estão todos bem?

- Não sei onde está o judas - respondi. O meu coração latejava dentro do meu peito como se quisesse escapar-se quando acrescentei: - E o teu pai, Reza... renunciou ao seu corpo e voltou para o Senhor.

O gorro tombou-lhe das mãos. Abriu os olhos como se tentasse compreeender. Adiantei-me para lhe tomar as mãos, mas ela desviou-se.

- O que antes foi o corpo de teu pai jaz ali na cave - murmurei. A sua face tornara-se repentinamente pálida, os olhos vítreos. Desceu a vê-lo como que violentada por um jugo. Em baixo, minha mãe, Cinfa, José e eu permanecemos atrás, enquanto ela se ajoelhava para tocar a medo com a ponta dos dedos o corpo do pai. Se alguém tem de se resignar à morte, então deixemos que esse encontro se faça a sós. Quando ela começou a pender para o chão como uma criança, deixei a minha mão repousar na sua cabeça. Sentia as suas lágrimas penetrar-me como se através de um sussurro.

- Quando é que foi, mãe? - perguntou, voltando-se para tia Ester. Minha tia não respondeu, ainda refugiada dentro de si própria.

- Sabes se El-Rei restabeleceu a ordem na cidade? - perguntei a José.

- Ainda não. Dizem que está com medo de voltar. O povo começou a clamar pela sua morte.

Reza orava por meu tio. Quando se voltou, minha tia Ester levantou-se como um espectro, deslizou para junto do corpo dele e voltou a tapá-lo com o tapete. Depois voltou a sentar-se e a ficar na mesma atitude de pedra.

Quando Reza pegou nela, foi como se um muro interior tivesse desabado dentro da menina sem unha, que desatou a gemer como se lhe estivessem a torcer as entranhas.

- Conhece-la? - perguntei.

- É a Aviboa. É filha da minha vizinha Graça. Sabes se ela...

- Só lá estava a menina - respondi, com um encolher de ombros. É um pecado, sei-o bem, mas ao responder pensava: «Porque é que em vez dela não encontrei antes meu irmão Judas?»

É quase meio-dia de quarta-feira, estamos a sete horas do cair da sexta noite da Páscoa, e eu terminei já todos os desenhos de que preciso. Reza assegurara-nos que a cidade se aquietara e por isso saímos, minha mãe, Reza, José, Cinfa, Aviboa e eu, em fila, com o passo ainda inseguro, deste nosso longo exílio. Levo Farid para o quarto de minha mãe, para estar mais fresco, lavo-lhe o rosto com aguardente e aplico-lhe uma compressa na fronte. Os olhos não podem resistir a cerrar-se, mas continua desperto, tacteando incessantemente o meu braço com os dedos que me questionam acerca de Samir.

Tia Ester tinha ficado em baixo em comunhão com as trevas que reinavam na cave.

Começámos a preparar os corpos de meu tio e da rapariga para o enterro, entoando cânticos enquanto os lavamos. Lavo o rosto de meu tio sete vezes com água fria e três vezes com água quente. E, segundo o preceituado, primeiro a barriga, depois os ombros, depois os braços, o pescoço, as partes, dedos dos pés, dedos das mãos, olhos e narinas. Percorre-me uma cálida onda de tristeza e de alegria ao segurar nas minhas as mãos de mármore da velha couraça de meu tio.

Tinha-nos fugido para Deus. Estou, assim, novamente a sós com um homem que tinham matado. A visão interior chega-nos em relâmpagos, diz o Zohar. E assim é.

O corte que lhe divide o pescoço tinha-se tornado escuro. O sangue tinha coagulado em crostas de cerâmica. Quatro vezes lhe lavo os dedos da mão, e de todas as vezes ficam ainda sujos de tinta. Que é como um artista deve comparecer perante Deus. Tia Ester leva as tesouras ao cabelo e corta uma das suas madeixas tingidas de hena que depois coloca sobre o peito de meu tio.

Qual o poeta hebraico que disse que a madeixa cortada de uma viúva é feita de filamentos de lágrimas de sangue?

Depois de vestirmos meu mestre com as suas vestes alvas, minha mãe polvilha a simbólica poeira de Jerusalém sobre os seus olhos e as suas partes íntimas. Dou a mão a Cinfa, enquanto ela acena um adeus.

Nunca mais o vemos - diz ela, os olhos cansados e raiados de sangue, muito abertos e curiosos, mais que tristes ou assustados.

Assim, não - assinto - A próxima vez que o vires será com as mãos estendidas para ti a receber-te junto de Deus.

As minhas palavras confiantes contradizem o profundo terror que leva os meus olhos a cerrarem-se: esquecera a sensação do abraço de meu mestre.

Depomo-lo sobre o seu xaile ritual e cobrimo-lo com a mortalha de linho que Reza e minha mãe tinham cosido. Quando pela derradeira vez a sua face se aparta de Mim, fecho os olhos para o reter nessa escuridão. Torna-se assim numa simples sombra violeta e eu já não consigo invocar o seu halo. Será que irá desvanecer-se antes ainda que eu deixe de poder invocar a sua voz?

Lavámos a rapariga com igual cuidado. Reza ajuda agora também, depois de mandar Aviboa brincar com Roseta no pátio. Brites, a nossa lavadeira, aparece inesperadamente à porta da cozinha. Dotada de uma natureza alegre, apresenta em geral um rosto desanuviado. Hoje, porém, chega com uma expressão sombria e fala com uma voz enrouquecida. Traz-nos na sua carrocita o último rol de roupa, lavada e engomada e, como prenda, um bacalhau salgado do tamanho de um braço de homem. Beijamo-nos e nem precisamos de trocar qualquer palavra. O silêncio da nossa dor compartilhada assenta-me no peito como uma pedra pesada.

- Vim cá chamá-los à noite - sussurra, finalmente.

- Não podíamos responder, mas agradeço-lhe - digo, levando de novo os lábios à sua face, deixando-a depois com minha mãe, para que, juntas, as lágrimas de ambas se confundissem.

Não conseguimos encontrar um único caixão para vender nas imediações. Não ficara vivo nenhum carpinteiro judeu que os pudesse fazer. E recuso-me a recorrer para tal a um cristão-velho. Levamos pois meu tio e a rapariga nas suas mortalhas para a carroça que pedimos à viúva do Doutor Montesinhos. O burro é o de Brites, que ela insistiu em ceder. Face às minhas escusas, sussurrou-me: «Por favor, Beri, podias ser meu filho.»

Sinto um premente impulso de escapar do tempo presente para um passado mais feliz, a que tenho de me opor para conseguir levar a cabo as minhas obrigações religiosas. E acima de tudo descobrir quem matou meu tio.

Tia Ester toma lugar na carroça sentada no banco de pau, as mãos cruzadas no regaço, o cabelo cortado com tesouradas à toa. Minha mãe, Reza e eu caminhamos à ilharga do burrinho. Saímos de Lisboa por oriente. Olhares cristãos vêem-nos partir, sem perguntas: sabem bem onde nos dirigimos. Cinfa fica em casa com José, o marido de Reza.

Muitos judeus dirigem-se também para a Quinta das Amendoeiras, como é conhecida a grande propriedade com uma impressionante torre de cantaria roída pelo tempo no meio, que fica a cerca de duas milhas a oriente da cidade. Aarão Poejo, o seu dono, era um judeu vindo das serranias de Bragança, pois a sua noiva algarvia se vira atacada de tremores mortais com os ares gélidos do nordeste. A lembrar-lhe a sua terra natal, trouxera consigo pés de amendoeira e de castanheiro que aqui plantara. A casa inicial, agora reduzida a umas poucas fiadas de blocos de pedra à altura da cintura de uma pessoa e a desmoronar-se, tinha sido trocada por uma torre octogonal construída segundo uma das visões de Poejo. Ao que se conta, tinha visto marinheiros de cabelos compridos e máscaras de ferro saqueando Lisboa e lançando fogo aos bairros dos judeus. A rude estrutura tinha sido dotada de um torreão de três andares a servir de torre de vigia. Dali, como o descobrimos, eu e Farid, durante uma das nossas missões de espionagem quando crianças, podia avistar-se o Tejo com os seus próprios postos de atalaia e conseguir assim um aviso antecipado em caso de ataque. Por ironia da sorte, anos mais tarde, no tempo da conversão, a mulher de Poejo foi apedrejada até à morte pelos vizinhos escuros e atarracados que conhecera durante anos. De qualquer modo, conta a história que Poejo e as filhas tentaram em vão deitar abaixo a casa da torre na própria noite em que lhe tinham matado a mulher. De manhã, exaustos, desesperados, escavaram um enorme tronco de castanheiro, içaram para lá o corpo e aí o inumaram. Apesar de entretanto o tronco se ter voltado a fechar com o correr dos anos, aquela árvore, exactamente a sul da torre, ainda hoje não dá mais que uns ramos denegridos e desnudados, como que roída pelo remorso. Diz-se também que exala um cheiro pestilento no tempo do Yom Kippur. Daí a fama que a quinta ganhou nas redondezas de lugar de poderes ocultos, adequada para receber os que foram martirizados por causa do seu judaísmo.

Quanto a Poejo, depois de assim ter dado pousada ao corpo da mulher, mais uma vez colheu estacas das suas árvores e juntamente com as filhas rumou para sul através do Algarve, sobreviveu à travessia do mar e instalou-se em Marrocos, nas proximidades de Tetuão. Deste modo, as amendoeiras da quinta, como tantas outras em Portugal, ficaram durante muito tempo ao abandono.

Ainda agora, ao passar, se podem ver os seus frutos verdes desafiando o esquecimento e pontuando como notas de música os ramos descarnados e demasiado longos.

Da Pequena Jerusalém e da Judiaria Pequena e mesmo da ruazinha judaica do outro lado da cidade perto da Igreja das Carmelitas, todos carregam os seus Mortos. Uns, como nós, em carroças puxadas a burros; outros, a maior parte, transportando os seus entes amados em carros de mão de madeira. Os mais velhos orientam-nos para os terrenos que ainda não foram usados como cemitério. Ao passar saúdo os que vou encontrando, sem trocar nenhuma palavra, a não ser para perguntar se alguém teria visto Judas ou algum dos iniciados ainda vivos.

Frei Carlos e Diego, Ninguém os vira.

Cavo duas covas com a ajuda de três jornaleiros mouros, que ali andavam para ganharem algumas moedas. Têm uns olhos escuros silenciosos e não fazem nenhuma pergunta. Reza insiste em ajudar. «Tenho de fazer alguma coisa, Beri

- diz ela - Se fico quieta, é como se sentisse o mundo a afundar-se.» Fita-me com um olhar perdido e chupa nervosamente a ponta do cabelo, um hábito de quando era pequena e que agora lhe voltava.

Para meu tio, minha mãe escolhe um sítio junto a uma pequena amendoeira com os braços em candelabro erguidos para o céu turquesa. A rapariga fica a repousar ao pé de um sobreiro possante de ramos estendidos como um avô a recebê-la nos braços. O escriba Isaac Ben Farraj junta-se aos nossos cânticos. Veio cá enterrar a cabeça de Moisés Almal. Compreendo então que era Isaac o louco que eu vira nas fogueiras do Rossio correr a salvar das chamas o que restava do seu amigo, para poupar o seu espectro ao vaguear eterno na Esfera Terrena.

- já vi cristãos que baste para uma vida - confidencia-me ele - Ando a aprender turco. É fácil, escreve-se com caracteres árabes. Vou apanhar o primeiro barco para Salónica que cá aparecer. Dizem que se está a tornar numa cidade de judeus. De qualquer modo, era o que tu devias fazer também.

- E a sua casa aqui?

- Daqui a pouco todos os nossos amigos se terão ido de Portugal, ao fim e ao cabo. E de uma coisa podes estar certo: não hei-de cometer o mesmo erro que a mulher de Lot!

Lembrando-me da mensagem caída do turbante de Diego, que tinha o nome «Isaac», pergunto-lhe: - Tinha marcado algum encontro com Diego, o impressor, antes de os motins começarem?

- Não, que me lembre.

- E o vigésimo nono deste mês, a próxima sexta-feira, diz-lhe alguma coisa de especial?

Isaac coça os pêlos brancos e ralos do queixo, alongando o lábio inferior:

- Se calhar tens algum problema e precisas de ajuda. Mas tens de ser mais claro se queres que eu perceba - diz-me, pegando-me na mão e pondo os olhos em mim carinhosamente.

Compreendo imediatamente como era tolice o ter-me ocorrido que ele pudesse ser o Isaac a que se referia a mensagem: pois se nunca tivera nenhuma relação com o círculo de iniciados nem nenhuma razão de disputa com meu tio!

- Não é nada - respondo. Peço-lhe então que procure chamar à vida minha tia Ester, rogando-lho em persa. Mas ela replica com um olhar glacial.

Sete vezes dou a volta ao túmulo de meu tio rezando, tal como deveria ser para um Ba'al Shem, Mestre do Divino Nome. A voz da minha oração em hebraico, elevando-se e caindo como água sobre muros de grés gasto pelo tempo, deve ter origem num passado remoto. Sinto-me impelido a caminhar e afasto-me da minha família para enterrar debaixo de um limoeiro a mão da senhora Rosamonte. Ao mesmo tempo que lho agradeço, pego no anel de água-marinha como uma sua última dádiva e guardo-o na minha bolsa, juntamente com a mensagem de Diego e a aliança da rapariga. Talvez que o anel possa ainda vir a resgatar a vida de outra andorinha retida pelo faraó.

Voltando para junto da minha família, detenho-me por instantes com a minha mão espalmada no tronco maciço de um sobreiro, a que recentemente tinham retirado a sua casca preciosa. Por qualquer ignota razão, talvez para melhor sentir a energia daquele gigante verdejante, fechei os olhos. De imediato, uma luz intensa abrasa a escuridão com um fogo laranja e negro, enquanto um calor húmido parece atravessar-me. Ouço um grande restolho das folhas por cima de mim, como se uma águia ou uma garça tivesse vindo pousar-se nos ramos cimeiros. «É verdade, estamos aqui - ouve-se a voz de meu tio - Mas não abras os olhos. O nosso resplendor poderia ofuscar-te.» Comprimo as pálpebras como protecção, enquanto a voz prossegue: «Berequias, a casca de uma árvore não é uma mera imagem poética. É também uma presença real que contigo partilha a Esfera Terrena. Cresce, morre, e pode ser retirada por um corticeiro. Palpa com a tua mão a solidez que existe debaixo da casca.» Aperto o tronco entre as minhas duas mãos, sentindo um poder fluido subir da terra e espalhar-se pelas minhas pernas e pela minha cabeça. «Sentiste-te atraído por esta árvore porque ela te fez recordar que uma máscara pode ser mais que uma metáfora - diz ele - Pode ser também um adorno verdadeiro.» Penso então: «Por favor, tio, suplico-te, fala-me do modo mais simples possivel.» Num tom impetuoso, ele responde: «Falamos na linguagem da Esfera Celeste e não conhecemos outro modo de comunicar!» Depois, voltando ao mesmo tom compreensivo, prosseguiu: «Lembra-te: a nossa sombra é a tua luz. A nossa maior simplicidade é o teu maior paradoxo. Escuta, Berequias. Não deves nunca enviar as tuas iluminuras por um portador que não seja capaz de se reconhecer a si próprio ao espelho de um dia para o outro. E lembra-te da visão daquele que fala com dez línguas.» Com isto, sinto um estremecimento das minhas mãos e um adejar por cima de mim. As trevas incandescentes sob as minhas pálpebras esmorecem até se tornarem cinzentas: a ave, meu tio, voara para longe. Abrindo os olhos, fixo o dossel vazio das folhas que me cobrem, desenhado contra o vasto céu cinzento. As palavras de meu tio ecoam dentro de mim: «Não deves nunca enviar as tuas iluminuras por um portador que não seja capaz de se reconhecer a si próprio ao espelho de um dia para o outro.» Seria uma alusão a alguém destituído do conhecimento de si próprio? Ou a alguém, talvez, sem memória, que procure deixar para trás o seu passado, negar a sua existência? Alguém que não é capaz de se reconhecer porque não quer recordar a história que fez com que seja o que hoje é? «E lembra-te da visão daquele que fala com dez línguas.» Farid! Só podia ser uma referência aos seus dez dedos, as suas dez línguas. O meu mestre queria aconselhar-me a confiar na visão de Farid para descobrir a identidade do homem que «não era capaz de se reconhecer a si Próprio». Por um instante, sinto-me tentado a invocar meu tio novamente usando a fita de pergaminho que trago no pulso e pedir-lhe uma resposta mais clara na linguagem da Esfera Terrena. Mas, no profundo das minhas entranhas, temo entrar nos domínios da Cabala prática. Meu tio devia ter as suas razões para me falar por enigmas!

- Beri! - chamou minha mãe do fundo do campo. Dirigindo-me para ela, penso: «O mundo interfere sempre mais e mais na minha vida interior de contemplação. Tal como meu tio o previra.»

Reza e eu lavamos as mãos num regato próximo e saímos logo de seguida da Quinta das Amendoeiras, pois receio pela vida de Farid. E havia também o perigo de os cristãos-velhos atacarem como gafanhotos a todo o momento.

Antes de chegarmos a casa, salto da carroça para perguntar por Frei Carlos na Igreja de São Pedro. Não há ainda sinais dele e os seus aposentos continuam fechados. Subo pois as ruas e escadas de Alfama que levam a casa de Diego.

O sapateiro que no dia anterior me ajudara a escapar chama-me da sua porta e faz-me sinal para ir ter com ele.

- Não entre! - murmura ele.

- Porquê?

- Veio cá um homem à procura do seu amigo Diego. Saiu há bocadinho. Mas antes andou por aqui a espreitar. Se calhar ainda está à espera, escondido. Faça de conta que agradece e se despede e vá-se embora daqui!

Faço ainda melhor: finjo que me rio e pergunto:

- E quem é ele?

- Não faço ideia. É do Norte. É forte e loiro. Agradeço com uma vénia e parto, a cadência dos passos repetindo a pergunta: «Será que o mesmo homem que matou meu tio, persegue agora Diego?»

Em casa, Reza está a fazer ovos cozidos para o almoço. De costume, seria tarefa dos vizinhos cozinhar as nossas refeições durante os sete dias de luto, mas não há ninguém que não esteja por sua vez de luto. Os cacos de louça tinham sido varridos para o pátio e o chão esfregado. Até a perna da mesa que tinham partido estava pregada no sítio.

- Foi a Brites que fez tudo, enquanto nós saímos - explica Reza - Anda agora com os outros a limpar a loja.

- A tia Ester também está lá? - pergunto.

- Não. Está a olhar pelo Farid no quarto de tua mãe.

- E a Aviboa?

- Está lá, também. Anda a ajudar a limpar. Não sai da beira da Cinfa. Reza chupa as pontas do cabelo e suspira - Sabes? Vou ter de ficar com ela. Não a posso deixar entregue a si própria. Graça, a mãe dela, era viúva e filha única.

- Ela é judia?

- Uma menina de quatro anos!? - exclamou Reza, com os olhos coruscantes - Que homem és tu, Berequias Zarco, para perguntares uma coisa dessas sobre uma orfã? Julgas que as crianças já nascem a saber hebraico, ou quê? Que diferença achas que fazia...

- Reza, não me estás a compreender. Isso pouco me importa. É só porque isso pode trazer complicações.

- Complicações é o que menos me falta - suspira novamente e põe-me a mão no braço para se desculpar - O pai dela era cristão-novo, a Graça era cristã-velha.

- Mais vale não dizer a minha mãe que... pelo menos por agora. Reza assente com um aceno e eu dou-lhe um beijo no rosto. Abrindo suavemente a porta do quarto de minha mãe, deparo com Farid deitado de lado, tapado com dois pesados cobertores, a tiritar. Tia Ester está sentada na sua cadeira aos pés da cama, continuando a fitar o vazio, com as mãos cruzadas no regaço. Dou-lhe um beijo na sua fronte gelada.

Um lençol amarrotado e sujo de sangue tinha sido retirado da cama e atirado a um canto. Farid abre os olhos, mas não sorri nem mostra qualquer outro sinal de reconhecimento. Tiro um cobertor de lã da minha cama e deito-o para cima dele, ajoelho-me a seu lado, faço menção de lhe pegar na mão. Afasta-me com um gesto:

- Pode ser peste - dizem os seus gestos.

- já mexes as mãos com mais força - minto. Apertamo-nos os dedos e ele fecha de novo os olhos.

Sento-me desenhando os contornos do mapa de Portugal, da Grécia e da Turquia como formas de um jogo de xadrês onde eu e a minha família servíssemos de peões. Assim que o tremor de Farid diminui e ele adormece, fico durante uns instantes a acariciar-lhe o cabelo. Recolho o lençol sujo, que entrouxo debaixo do braço, saio em pontas dos pés pelo meu quarto para esconder de minha mãe a incontinência do meu amigo, temendo que ela decida que o abandonemos por estar a piorar. Reza estremece quando me vê, mas depois a sua expressão mostra-me que está comigo. Escondo o lençol atrás de uma moita de loendros junto ao telheiro. Mais tarde, digo a Brites onde está e que tenha cuidado com os humores da doença quando o lavar. Como não temos vinagre, lavo as mãos com sabão preto e água e vou para a cave fazer a minha lista de suspeitos, a começar pelos dois iniciados ainda vivos, num pedaço de velino em caracteres minúsculos, formando o nome hebraico de meu tio:

Frei Carlos, Diego Gonçalves, Rabino Losa, Miguel Ribeiro, Ao escrever a última letra, acode-me um pensamento: «A rapariga que enterrámos há-de apontar como um catavento em direcção ao nome certo.» Pego no desenho que fizera dela, enfio o martelo na bolsa e corro todas as padarias à roda de Alfama e da Graça, pressentindo que ela seria a chave, que se conseguir descobrir quem ela é, descobrirei também quem é que destruiu o meu futuro.

Agora que a calma voltou de novo, os meus olhos apercebem-se de como Lisboa se tornou numa cidade de olhos cristãos à espreita, de estrume e esterco, de madeira em estilhaços, de pedras ensanguentadas. Nenhum da meia dúzia de padeiros ou aprendizes a quem perguntei conhece a rapariga. Atalho pela Sé e encaminho-me para a Pequena Jerusalém. As lojas estão fechadas, as ruas sujas de detritos. As mulheres lavam do sangue as soleiras das portas. Uma cama fumega no meio do Largo da Sinagoga, como que à espera do seu dono. A padaria de Simão Kol, por trás dos Paços da Ribeira, está entaipada. Contorno-a, passando por um montão de couves podres e cebolas disputadas por bandos de gatos vadios, entre os quais avisto um com os testículos peludos inchados com o tamanho de limões. Quando bato à porta da casa de Mestre Kol, ele assoma à janela. A cara por barbear e o olhar acossado são os sintomas de uma doença que nos consome a todos. «Pedro Zarco?» - pergunta ele. Quando confirMO, aponta para o pátio e eu espero à cancela. Manda-me entrar e abraça-me e dá-me um beijo. O peito arqueja como um fole quando soluça. Veste o áspero linho do luto. Xiri?» - pergunto, ciciando o nome do seu único filho, tão transido de medo como se fosse um dos secretos nomes de Deus.

- Sim - responde, dando-me a mão -. Como está a tua família? - pergunta.

- Meu tio Abraão morreu.

- Como é possível que... Mas as suas palavras desvanecem-se, pois sabe, tal como eu, que neste mundo mesmo um gaon, um génio, um homem de prodígios, pode ser morto por uma simples lâmina. Em resposta às minhas perguntas sobre Judas, responde apenas com um abano da cabeça.

- Desapareceu muita gente - diz ele -. E nunca mais os encontram. Engolidos pelo Leviatã. E lembra-te do que te digo... - diz ele num tom profético - O monstro só estará saciado quando nos tiver levado a todos nós. Vais Ver.

- Alguma vez viu esta rapariga? - pergunto, estendendo-lhe o meu desenho Parece-me que trabalhava numa padaria.

É parecida com a Meda Forjaj quando era nova - diz ele, estudando o retrato com os olhos semicerrados - As mesmas sobrancelhas curvas a juntarse na ponte do nariz, como asas de borboleta. Mas não a conheço.

- Quem é essa Meda Forjaj?

- Fugiu da Pequena Jerusalém nos tempos da conversão. Mas hoje deve ter uns cinquenta anos. É viúva. Não pode ser ela.

- Para onde é que se mudou?

- Para os lados de Belém, acho eu - disse ele, referindo-se à povoação próxima, de onde as caravelas portuguesas partiam para África, para a índia e para o Novo Mundo - Acho que andava a ver se conhecia algum mercador rico, não sei se estás a ver o que quero dizer - acrescenta. Encolhe os ombros, e faz um gesto a afastar qualquer juízo - Faz-se o que se pode pela vida.

- Uma mulher da idade dela, não pode viver só disso - observei eu.

- O marido importava tecidos de lã da Flandres e ela ajudava, fazia as contas. Talvez faça costura para fora, como a tua mãe. - Obrigado - abraçamo-nos brevemente, como que receosos de admitir que nos separávamos para sempre - Não volta a abrir a padaria, pois não? observei.

- Não quero voltar a alimentar este país - respondeu Simão, abanando a cabeça - Sangrador - sussurrou ele - Isso é que é uma boa profissão em Portugal!

O olhar concentrado dos cristãos-velhos que se amontoam junto da Porta de Santa Catarina eriça-me os cabelos da nuca, mas esta pronta disposição do meu corpo para encetar a fuga é desnecessária: os seus olhos são tranquilos, o ar sereno. O medo da peste e da seca e de toda a miríade de demónios que governam os seus espíritos tacanhos foram purgados, pelo menos de momento. Chego aos arredores de Belém demorado pouco tempo. Aí, centenas de africanos e de jornaleiros, dirigidos a chicote, trabalham arduamente na construção do novo mosteiro monumental de El-Rei Dom Manuel, que se calhar só lá para o próximo século estará pronto. Um canteiro coberto de pó indica-me uma padaria ali perto. Sou recebido por uma mulher magra, com um ar ressentido e amargo:

- Precisa de alguma coisa, senhor? - pergunta num portugués áspero de sotaque castelhano.

Pela entoação, compreendo que se trata de uma cristã-nova castelhana, uma das milhares que fugiram a Dom Fernando e Dona Isabel, os reis de Espanha que expulsaram os judeus em 1492. Nos seus olhos enfurecidos, vejo que detesta que a vejam em companhia de alguém do seu povo. Mostro-lhe o desenho:

- Ando à procura desta rapariga. Ela volta-me as costas e começa a passar uns doces de uns tabuleiros de madeira para sacos.

- É importante - acrescento.

- Se não quer comprar nada, desande daqui.

- Morreu - disse eu - Queria dizer isso aos pais dela. Volta-se e mira-me com uns olhos desconfiados.

- É a filha da senhora Monteiro. Porque é que...

- E onde mora a senhora Monteiro? - interrompo-a, sem paciência para tantos medos, mesmo quando vêm de alguém judeu.

- Ao fundo da rua, à direita. A casa de rodapé amarelo. Mas se calhar é melhor...

- Diga-me uma coisa, a senhora Monteiro tem alguma coisa a ver com Meda Forjaj?

- É cunhada dela - responde - Como é que...

- Sobrancelhas abertas como asas de borboleta. E a memória de um velho judeu. Ao fundo da rua, uma mulherzinha atarracada, com olhos de peixe e uma face escamosa e curtida, observa-me da porta como se eu tivesse interrompido um jogo de cartas. Usa uma cabeleira informe, feita de linho preto entrançado e engraxado.

- A senhora Monteiro é vocemecê?

- E quem é que pergunta?

- O meu nome não lhe diz nada - estendo-lhe o meu desenho: Conhece esta rapariga?

- É a Teresa. O que anda a fazer com isto?

O marido dela, um homem baixo, com ar de coelho, surge das traseiras da casa. Vem coberto de um pó branco, talvez cal, que se escapa em baforadas a cada passada que dá para se dirigir a nós. Sobre os seus olhos cinzentos, despontam umas sobrancelhas aladas. - Tem aqui um desenho da Teresa. Olha - diz a mulher.

A reacção dele fica suspensa, como se nunca tivesse visto nenhum trabalho artístico, ou como se tivesse entendido. Quando me forço a pronunciar algumas palavras hesitantes sobre a morte dela, leva os punhos ao rosto. As lágrimas brotam-lhe dos olhos. Estendo os braços para ele, mas a senhora Monteiro agarra-me os pulsos.

- Que está para aí a dizer? - pergunta ela.

- Mataram-na durante os motins de Lisboa. No domingo.

A mulher leva a mão à boca a abafar os soluços, com o terror espelhado nos olhos. O silêncio reúne-nos todos três, até que se ouviu o seu grito:

- Eu sabia que havia de acabar assim. Mataram-na com aqueles judeus todos, não foi?!

O marido dá-lhe um empurrão, corre para dentro de casa antes que eu possa responder. Ela vai de encontro à parede e cai no chão.

- Seu bastardo! - guincha ela, casquinando e cuspindo em direcção dele. Ajudo-a a erguer-se e apanho do chão o meu desenho. Como ela não tem lágrimas que possa chorar, digo-lhe:

- Foi morta na Judiaria Pequena. Sabe o que ela andava a fazer lá?

Ela arranca o desenho das minhas mãos e observa-o, como quem o está a julgar.

- É ela chapada. Foi vocemecê quem o fez?

- Fui - respondi.

- Com que então artista?! Essa cabra nojenta nunca devia ter fugido. Mas os filhos de misturas de sangue... porque era isso que ela era, não sei se sabe...

Eu cá não sou judia. Graças a Deus - faz um gesto em direcção às traseiras da casa como quem enxota moscas - Ele é que é judeu... era, quero eu dizer. É a mistura de sangues. Faz com que as raparigas desatem logo a querer um homem mal começam a ter as luas. Dizem que é a lua que causa essas coisas nos filhos desses casamentos - esfrega as mãos calosas uma na outra - Toda essa misturangada de sangues, o puro com o impuro... - abana a cabeça - Vocemecê tem talento, sabe? Não é judeu, pois não?

- Fui. Mas agora estou só a ver se consigo continuar vivo. Como muito boa gente neste monte de lixo.

O seu olhar tornou-se fixo, com uma viva repugnância. Procuro lembrar-me que também ela é uma emanação de Deus, uma ondulação da safira de amor lançada por Ele no nosso mundo muitas eras antes. Mas só consigo ver o cuspo nos seus lábios e a sua cabeleira de negro carregado.

- Podia-me dizer o que é que a Teresa estava a fazer na Judiaria Pequena? pergunto. - Não ouviu o que lhe disse? Andava por lá a abrir as pernas! Queria um passarinho circuncidado! - apercebe-se de que me desagrada aquele tom, ri-se, bate as mãos - Gostava que um daqueles grandes passarões judeus gordos viesse para ela aos saltos e começasse a sair a...

- Quem é o marido dela? - interrompi.

- Um importador com muito miolo, e grandes tomates também, ao que dizem. Peludos... como lã. A saberem a tâmaras de Marrocos - lambe os beiÇos gulosamente - Mas sem dinheiro. Nem todos têm jeito para fazer dinheiro. Ah! Descobri isso por duas vezes na minha vida! Aquele meu marido... E agora o de Teresa - abana a cabeça e franze as sobrancelhas -. Chama-se Manuel Monchique. Bem podia ao menos ter encontrado um que...

O coração parece querer saltar-me do peito. «É evidente - penso eu

O antigo aluno de meu tio... Teresa era a sua noiva cristã!»

Ainda há cerca de um mês tínhamos sabido que Manuel tinha conseguido uma certidão de sangue puro do Rei, para apagar a mancha» do seu passado judeu. Recentemente meu tio tinha-o descomposto na Rua da Sinagoga por causa dessa sua traição. Agora, olhando-a à luz da revelação da senhora Monteiro, aquela disputa surge tingida de cores bem mais sinistras. Sinto uns dedos gelados a afagar-me o braço, que me trazem de novo ao presente. A senhora Monteiro, enquanto me olha com um sorriso, levanta a saia e passa a mão por entre as pernas. Arranco-lhe a cabeleira e atiro-a para longe, deixando à mostra o seu crânio infestado de piolhos, onde despontam uns tufos mirrados de cabelo. O seu riso cacarejante acompanha a minha retirada. As ruas de Belém, depois os arredores de Lisboa abrem-se diante de mim, se bem que me pareça correr apenas através do mistério da morte de meu mestre. Quem sabe se Manuel não terá descoberto meu tio com Teresa, sacado de um punhal e... Mas deparo sempre com uma barreira intransponível a vedar o meu caminho para uma resposta: como poderia Manuel saber o sítio do alçapão e da geniza?

Abençoado seja Aquele que nos abre os braços da Sua graça: diante de mim tenho a Porta de São Lourenço guardada apenas por um ajuntamento preguiçoso da populaça. Atravesso-a e ladeio as ruelas desmazeladas da colina que no topo sustém as muralhas do castelo mourisco e desço apressadamente para Alfama. Estou impaciente por ver como está Farid, antes de ir ter com Manuel Monchique. Encontro minha mãe na cozinha. Um pouco atrás dela avisto Diego. O corte no queixo está já meio tapado por uma barba de vários dias, os pontos mal se vêem. Traz a cabeça coberta pelo seu turbante cor de açafrão.

O seu olhar fixa-se em mim por trás do seu largo nariz como se esperasse poder adivinhar os meus pensamentos e avança para mim a coxear como um cão ferido. Abraçamo-nos. Mas a ideia de que ele pode ter conspirado contra meu mestre torna os meus movimentos rígidos e estudados como os de um mau actor.

- Fiquei desolado com o que aconteceu a teu tio - diz ele - E ser morto por essa ralé dos cristãos... Até custa a acreditar!

As palavras de Diego não conseguem penetrar as cancelas inflexíveis que levantei em torno a mim. Não só por não confiar nele, mas também por me ter apercebido de que estava um desconhecido ao canto da cozinha, junto à lareira e não queria desvendar a minha alma dilacerada perante olhos estranhos. Um homem de peito possante e rosto de pedra, envergando a farda grosseira dos mercenários, escuta atentamente, com ambas as mãos no punho da espada embainhada. Faço um aceno interrogativo em direcção dele.

- É o meu guarda-costas - responde Diego.

- Cristão-novo?

- É. Mas tem carta de perdão. Pensei que era mais seguro. E agora que a turba matou o teu tio e tantos outros, acho que...

- O meu mestre foi morto por um judeu! - declaro.

- O quê?

- A garganta dele foi cortada por um shohet. Era a primeira vez que minha mãe ouvia o que eu pensava. Agarra-se à mesa como se o mundo lhe fugisse debaixo dos pés. Diego respira ofegante. Cobre a boca com as mãos como se quisesse evitar que tal possibilidade de traição entrasse nele. Será uma manifestação do choque sentido por um filósofo ou a explosão de cólera fingida de um criminoso?

- Mas porque é que um judeu tiraria a vida a teu tio?! - pergunta ele.

- Pode ter sido por ciúmes, pode ter sido para o roubar - minto eu, para ver a sua reacção.

- Mas de que raio estás tu a falar, Berequias?! - grita minha mãe inesperadamente -. Como te pode ter passado pela cabeça que alguém do teu próprio povo podia tirar a vida a meu irmão?!

A voz dela possui aquele tom exaltado que indica que daí a nada estará a acusar-me de ser um mau judeu. Bebo um gole de uma infusa que está por cima da lareira, fito-a nos olhos e digo:

- Roubaram um manuscrito. Nenhum cristão-velho sabia sequer que tínhamos tal coisa em casa.

Minha mãe começa a puxar o cabelo.

- Tens a certeza? - pergunta Diego. QUando confirmo com um aceno, ele agarra o meu braço.

- Onde é que estava o manuscrito?

- Na cave.

- Ele tinha livros na cave! O que é que...

- A sua última Haggada - explico.

- Ele tinha livros judaicos escondidos?

- Tinha.

- Será que não tinha juízo nenhum? Ou Diego é habilidoso a fingir ignorância ou então é porque realmente não tinha recebido uma iniciação completa e não sabia ainda da existência da geniza. Tenho de perguntar isso a Frei Carlos, se ainda estiver vivo. Mas não se sabe se ele não será capaz de mentir para implicar o seu irmão filósofo...

- Andava empenhado em levar os livros para fora de Portugal - explico a Diego -. Para os salvar da fogueira.

- Meu Deus. E com quem?

- Não sei. Ouve uma coisa, quando foi a última vez que viste meu tio?

- Sexta-feira. No hospital. Também estavas lá. Mas que estás a...

- E no domingo? - pergunto - Viste-o?

- Não. Mas para que são essas perguntas todas?

- Estou a ver se reconstituo os passos dele - minto - Onde estiveste desde domingo até hoje?

- Escondido. Com um amigo - a expressão de Diego torna-se mais dura e assume o ar ríspido que ele toma quando quer repreender alguém - Berequias, acho que me deves uma explicação. O que te leva a pensar que... - Não devo explicação nenhuma a ninguém! - exclamo com rudeza A morte de meu tio dá-me todos os direitos. E um deles é o de não atentar nas caras enfadadas como essa tua a ver se me abrandas. Pensa o que quiseres. Zanga-te, reza, invoca a Tora contra mim. Pouco me importa!

- Devia importar-te. E se...

- Está mas é calado, Diego. Diz-me só se sabes quem é o homem que anda a fazer perguntas sobre ti no sítio onde moras.

- Que homem?! De que é que estás a falar?

- Quando fui à tua procura hoje de manhã, o sapateiro que mora do outro lado da rua disse-me que tinha andado por lá um homem a perguntar por ti... loiro, forte... talvez do Norte.

Os olhos de Diego denunciavam terror.

- Sabes porque é que andarão à tua procura? - pergunto.

- Não - sussurra ele. Segura-me pelos ombros, aferrando-se a eles A não ser... a não ser que seja o mesmo que matou o teu tio!

- Também pensei nisso. Mas porque é que alguém havia de vos querer matar a ambos?

Abana a cabeça.

- Pensa bem.

- Não vejo nada - resmunga ele - Que poderíamos nós saber que...

- O meu tio tinha falado em algum livro especial que ele tivesse descoberto? Uma coisa qualquer? - Quando ele abana a cabeça, pego no retrato da rapariga morta. - E esta? - pergunto desenrolando o desenho - reconhece-la?

- Não. Quem é ela?

- Não interessa - volto a guardar o retrato na bolsa - E Dom Miguel Ribeiro? Que é que sabes dele?

- É um fidalgo, não é? É o filho do velho Rodrigo Ribeiro, o mercador de vinhos, se bem me lembro.

É esse, é. Meu tio falava nele? - pergunto. Comigo não. Mas diz-me uma coisa, Beri, tu não tens outras pistas sobre quem é o assassino? Que é que achaste na cave? Não achaste nada que denuncie esse tal homem do Norte que anda à minha procura? Preciso de saber. Se anda atrás de mim, tenho de...

- Nada - minto, sem querer ainda confiar-lhe tudo o que tinha descoberto. Afasto-me do seu olhar desconfiado e dirijo-me a minha mãe, que fita a dança das chamas na lareira. Bato-lhe no braço - Como está o Farid? - pergunto em voz baixa.

Ela volta-se para mim com um olhar Inquieto.

- Berequias, quero que me digas tudo. A Haggada foi o único livro que roubaram?

- Acho que sim. Diga lá como está o Farid.

- Não achas que devíamos...

- Mãe, diga-me lá se o Farid está... Minha mãe encolhe o queixo e volta-se com um ar de desafio.

- Será que ensandeceu? - grito - Sempre com «devíamos assim, devíamos assado», sempre com regras de conduta. De que é que isso lhe serviu?

Com os olhos marejados de lágrimas, grita com a força do desespero:

- Como podes tratar-me assim, quando Judas ...

- Quero lá saber! - berro eu. Saio de junto deles, apercebendo-me com uma mistura de remorso e satisfação que fui eu a começar esta disputa. A morte de meu tio libertara-me da minha passada personalidade e do meu futuro e ao que parece a única herança que me restava era feita de raiva e de frustração. Vou espreitar Farid no quarto de minha mãe. Está a dormir, respira agitadamente e sobressalta-se como que possuído por algum pesadelo. Esfrego-lhe o pescoço e os braços com uma toalha humedecida, até que o seu combate interior parece acalmar-se. Consumido de medo pelo seu estado, saio precipitadamente de casa.

- Onde é que vais?! - grita-me minha mãe.

- Embora! Diego diz-me para esperar, atravessa o pátio a coxear, coçando pensativamente a barba curta do queixo.

- Se o que dizes do teu tio está certo, então talvez também tu corras perigo.

- Não faz mal. Nenhum cristão-velho volta a tocar-me! e fixando-o nos Olhos acrescento: - Nem nenhum judeu, se queres saber!

- Como és inocente, meu amigo - diz ele, tomando-me o braço carinhosamente - Não sabes do que são capazes. Berequias, na minha opinião, tu e a tua família deviam fazer as trouxas e ir embora daqui. É o que penso fazer. Ando a arrumar uns negócios, a vender o que posso e depois vou-me daqui da maneira que puder. O Rei não nos pode deter, agora que...

- Vai em paz - interrompo. E lembrando-me da mensagem dele, tiro-a da bolsa e ponho-lha na mão - Isto escapou-se do teu turbante quando caíste ao chão. Se calhar ficou um pouco suja com o sangue da Senhora Rosamonte. Desculpa. Diego lê e acena compreensivamente.

- Pois... O Isaac. É um velho conhecido meu da Andaluzia. De Ronda. Era para me lembrar de ir ter com ele nessa data. já não tenho a mesma memória de antes. O teu tio conhecia-o.

- E que quer dizer «Madre»?

- O Chafariz da Madre de Deus. Era o sítio do encontro. íamos... ficou suspenso e subitamente agarrou-me o braço, como se possuído pelo terror Mas se calhar já entendo tudo! O Isaac falou-me em vender um livro a teu tio! Na altura pensei que era em castelhano, mas se me dizes que ele tinha livros judaicos escondidos ...

- Quando?

- Dias antes da sua ... antes de domingo. Encontrámo-nos aqui. Tu estavas na loja, acho eu. Isaac disse que tinha uma cópia do «Livro dos Khazars de Judas Ha-Levi e o teu tio aspirou como se estivesse a cheirar mirto.

- Gostava de falar com ele - disse eu.

- Vou ver se o encontro e venho cá com ele hoje depois do jantar. - Quando lhe agradeço, Diego acrescenta: - Se calhar é melhor não andares por aí às voltas por Lisboa agora. Devias...

Faço um gesto a esquivar-me, saio pelo pátio fora e começo a descer a Rua de São Pedro. Quando olho para trás uma última vez, vejo a cabeça de Diego a despontar acima do muro do quintal enquanto coxeia de regresso à cozinha. Será que os rapazes que o apedrejaram foram pagos por alguém, por um dos iniciados talvez? «Não há acasos, nem coincidências - ouço a voz de meu tio Tudo tem um significado.»

Um homem de branco irrompe inesperadamente de uma porta e enfia um livro de couro diante de mim. O meu punhal está-lhe já apontado à garganta quando ele berra o meu nome: Beri! Que estás a fazer?! Baixo a arma. Era só António Escaravelho e o seu Novo Testamento comido pela traça. Era um antigo elemento do Conselho Judeu e um ourives de uma destreza incrível, que se tornara num cristão fervoroso depois da conversão forçada e um lunático ainda mais fervoroso muito pouco tempo depois. António fede mais que o estrume. A barba grisalha está encrostada de porcaria, e a sua pele curtida semeada de borbulhas vermelhas. Os seus Evangelhos exalam um cheiro de anis e de esterco, uma combinação repelente, que me leva a apertar o nariz.

Que Deus esteja contigo - crocita ele, assim que afasto o punhal. Pisca os seus olhos loucos faiscantes e empurra o meu queixo com o livro, como que a corrigir a minha posição.

- Era melhor não me abordares deste modo - respondo, afastando o livro e suspiro ao reparar nas lêndeas que lhe polvilham as farripas do cabelo. Na esperança que ele me possa avançar um pouco na pista do assassino de meu tio, pergunto-lhe: - Estavas ali no teu posto do costume perto de minha casa quando os motins começaram? Sem atender à minha pergunta, replica com um riso desdentado:

- Apresentei mais uma petição para ir a Roma ver o Papa. Parece que desta vez sempre me vão dar carta de saída.

- Ainda não vai ser desta! - grito-lhe eu, pois há anos que anda a pedir autorização para sair de Portugal, depois de o Rei ter publicado um decreto em 22 de Abril de 1499 que veda a passagem das fronteiras a todos os cristãos-novos.

- Isso é que vai! - exclama ele, como se picado pela minha falta de esperança - E tu devias juntar-te a mim, meu rapaz. Tu e Mestre Abraão!

- Para o meu mestre acabaram-se as viagens - murmuro para mim próprio, sem me arriscar a ver a reacção de António à morte de meu tio. «Porque fazer uma tão grande jornada para ver um homem tão falho de santidade?» - penso. Para minha própria surpresa, repito em voz alta para o pedinte uma frase de meu tio: - Só a ideia de ver o Papa me faz comichão na cabeça!

Será que agora vou começar a imitar os ditos de meu tio? Será desse modo que pretendo mantê-lo dentro de mim?

- Acho que ias achar redentora a visita ao Papa Júlio II - observa António - Os muçulmanos da Península Itálica são amistosos, sabes?

Muçulmanos em Itália Imagino que a seca deve ter ressequido o seu sentido da geografia.

- Ouve agora isto, amigo. Onde é que estavas no domingo, no primeiro dia dos motins? - pergunto-lhe de novo.

- Aqui perto... escondido - responde ele, levando um dedo aos lábios -. Com um amigo de quatro patas.

- Via-se de lá o nosso pátio?

- Via - replica ele - Desde o chão até ao céu, tudo faz parte do...

- E viste alguém entrar? Com uma faca... ou um rosário, talvez.

O Manuel Monchique? Lembras-te dele, um dos alunos de meu tio?

- Deve ter passado uma libelinha ou duas - diz ele - E uns quantos sapos. Nem sempre é fácil topá-los quando saltam para dentro do...

- E um homem, não viste? - Ele abana negativamente a cabeça e eu insisto - Tens a certeza? Nem o Diego Gonçalves? Sabes quem é... um impressOr, um amigo de meu tio...

- Não.

- E Frei Carlos? Ou o Rabino Losa?

Nega com a cabeça, a cada um destes nomes. O assassino deve ter entrado e saído pela loja, ou pela entrada separada de minha mãe que dá para a Rua do Templo. «Então, que a paz seja contigo» - despeço-me com uma vénia.

Vendo-me partir, lança-me num guincho: Ainda ficou algum borrego da Páscoa? Tenho um buraco na barriga maior que o da minha alma!

- Vai ter com a Cinfa - grito-lhe eu Ela que te dê a fruta que quiseres.

- Deus te abençoe, rapaz. Mais à frente, ouço os clamores dos mendigos junto dos muros da Sé. Apesar das ameaças de morte da Coroa, tinham abatido uma das vacas que o Rei,' largara à solta. Um homem escanzelado está a arrancar-lhe o couro com uma espada ferrugenta, enquanto um malabar ensopado em suor atrai o fascínio de um ajuntamento de vagabundos e cães fazendo voltear no ar três dos cascos sangrentos.

A casa de Manuel Monchique, depois da esquina, mantém-se ein silêncio. quando bato à porta. Inesperadamente, na portada de uma janela abre-se uma fresta. «Sou o Pedro Zarco» - digo, usando o meu nome cristão por precaução., Como ninguém responde, esgueiro-me para um dos lados. Atiro o martelo por cima do muro do pátio e iço-me para cima e dali salto para dentro. Deparo com a figura de duende da mãe de Manuel especada no umbral da porta das traseiras, vestida de negro, apertando nas mãos ásperas uma bilha de barro azul. Tem um ar ansioso de um bicho assustado, uma face curtida pregueada pela idade. «Sou Pedro - digo - Andei na escola com o Manuel. Sou sobrinho de mestre@@ Abraão.» Quando vou a recolher o meu martelo, atira-me com a bilha, que parte aos meus pés em duas metades perfeitas. Ela entra precipitadamente em casa.

Manuel surge à porta embrulhado numa capa escarlate de franja preta. A lâmina de uma espada que ele segura ao alto com ambas as mãos divide ao meio o seu rosto corado ainda jovem. Parece-me mais uma das grandes surpresas desta era de falsidade que pesa sobre nós. Nunca poderia imaginar que tinha diante de mim aquele rapaz tão frágil que os olhos se lhe marejavam aO mínimo sinal de vento, sempre abatido pela mais insignificante corrida nas matas à caça das suas adoradas borboletas. Agora, incha o peito como um pavão, desenhando no ar com a ponta da espada a letra yod e diz-me numa falsa voz de comando: nada Não faço ideia que dívida pensas que vieste cá cobrar, mas não levas nada de niim nem da minha família!

Vai para o diabo que te carregue! - digo - Poupa as ttuas bravatas cristãs para as v'irgens que seduzes durantte o Yom Kippur. Só vim cá por causa disto - e tirando o rolo com o retrato de dentro da bolsa, atirei-lho - Dá-lhe uma olhada, meu valente e belo cruzado de Cristo.

Manuel baixa-se e apanha o desenho com uma mão cautelosa. De imediato, os olhos luzem-lhe de surpresa.

- Onde é que arranjaste isto? - pergunta.

- Desenhei-o.

- Viste-a? - embainha a espada, precipita-se para mim. Pegando-me nas mãos como um velho amigo, pergunta: - Onde? Quando? Ela está bem?

À medida que lhe conto, sinto o seu contacto esfriar. A desconfiança ecoa na sua respiração agitada. Ou o seu talento para mentir é grande ou esta é a primeira vez que ouve falar na morte dela.

- Não podia ser ela - diz ele - Mesmo a tua mão pode enganar-se no desenho de um olho, a curva de um queixo, um...

- Ela era lavadeira ou padeira? pergunto.

- Nem uma coisa nem outra diz, com um sorriso - Enganas-te com... - vendo-me tirar da bolsa a aliança de ouro entrançado, arranca-ma das mãos. A segurança na voz começa a faltar-lhe - É do mesmo género. Mas no fundo não prova nada. Conheço mais mulheres que têm alianças destas.

- As mãos dela cheiravam a azeite, alecrim e essência de limão e tinham manchas de cinza. E tinha nas fontes duas marcas, como se tivessem sido feitas por...

O rosto de Manuel perdeu o sangue. Dobrou-se para não desmaiar. Fecha os olhos como quem vai adormecer e começa a soluçar. Recobrando o fôlego por instantes, diz: - Velas... trrabalha para o Mestre Bento. Fazem velas aromáticas. Com essências de flores. Quando a cera arrefece, cobrem-nas com azeite para ficarem frescas.

- E as marcas na testa?

- São de nascença - responde ele, com um aceno de assentimento leve, de ser tirada a ferros pela parteira. Ela não saía. Sempre com medo de dar o primeiro passo... Sempre tão temerosa, como se o mundo fosse uma escada íngreme para alguma masmorra. Eu bem tentava ajudá-la a perceber que havia um jardim lá em baixo. Queria ajudá-la a entrar nele. Éramos... éramos...

Enquanto espero que cessem as suas lágrimas, compreendo ser impossível a conjectura de uma rapariga tão recatada achada despida depois de ter tido ajuntaMento com meu tio. Subitamente, Manuel diz numa voz frouxa:

- Como é que morreu? Foi violada pelos cristãos?

- Não sei se foi violada. Acho que não. Mas tinha a garganta cortada, Manuel.

- Meu Deus... - esconde a cara nas mãos por momentos. Quando volta a olhar-me, diz: - Penso que... que já a enterraram.

- Não podíamos esperar mais, desculpa. Está na Quinta das Amendoeiras. Mostro-te o sítio exacto, logo que possa. E havemos de entoar juntos um kadish por ela. Mas fazes alguma ideia do que andaria a fazer para os meus lados?

- Saiu de casa no domingo para ir visitar o Tomás, o irmão dela, que vive perto de ti. Se calhar, ao fugir do tropel da multidão foi dar por acaso a vossa casa.

- Ela conhecia meu tio?

- Conhecia de nome, claro. Mas que eu saiba nunca o tinha visto.

- E os membros do grupo de iniciados... Diego, Frei Carlos?

- Acho que nem sequer sabia que existiam.

- Ela considerava-se judia?

- A bem dizer, não - responde, abanando a cabeça - A lei de Moisés de que a mãe deve ser judia e essas coisas... A mãe dela era cristã-velha, nasceu em Segóvia, mas desde pequena que vivia em Lisboa. No fundo uma aldeã. Mas não tentes sequer dizer-lhe isso. O pai de Teresa é um cristão-novo português, de Chaves. Quando ela se decidiu a casar comigo, eles disseram que não queriam ter nada a ver com ela. Por isso, que é que eu fiz? Arranjei uma certidão de sangue puro. Que é que querias que fizesse? Julgas que aquela megera se importa? - Diz-me que um judeu é como uma romã, o sangue que tem dentro suja tudo onde cai. Tem resposta para tudo. Como o Demónio - Manuel ergue-se e afasta o rosto contorcido pela angústia - E o teu tio nunca pôde compreender o peso que eu trazia em cima.

- Manuel, mestre Abraão também está morto. Ele sobressalta-se, inclina-se para mim. Nos seus olhos lê-se o pânico. Aceno com a cabeça a confirmar que é verdade.

Minha tia Ester foi violada e deixou de falar. Judas desapareceu. E meu tio deixou-nos. Minha mãe, Cinfa e Reza estão a salvo.

Manuel volta-se para esconder as lágrimas. Ou seria por já o saber?

- Então, Mestre Abraão nunca me perdoou - disse ele num murmúrio.

- O perdão dele era assim tão importante? - pergunto. Volta-se num rompante e fixa-me como se fosse um crime pôr tal pergunta.

- Berequias, uma certidão do Rei não mata o coração de uma pessoa!

- Eu falei com ele sobre ti. Depois de te ter tratado tão mal quando te encontrou na rua. Disse-me que da próxima vez que te visse havia de te mostrar a sua amizade. Ficava fora de si só com a ideia de sangue puro. Mas compreendeu que tinha agido mal. Podes crer que tinha uma grande estima por ti.

Dos olhos de Manuel correm lágrimas silenciosas. Apanha as metades da bilha partida.

- Como é que os cristãos o encontraram? Ele não saiu contigo? Ainda pensei em lhe mentir, mas considerei que a verdade já bastava comO enigma. Ao ouvir a minha descrição, esconde de novo o rosto entre as mãos. «É impossível!» - diz ele. Murmura a palavra uma e outra vez até a voz se tornar num cicio diluindo-se num oceano de silêncio. Avanço para ele e digo-lhe:

Temos de descobrir ao certo como é que ela entrou na cave. Talvez o irmão dela saiba.

- Se ainda estiver vivo. Enquanto caminhamos para casa de Tomás, Manuel murmura o nome de sua mulher como numa invocação mágica. Compõe uma expressão rígida de contenção, agarrado ao punho da espada. Que em nada lhe convém. Em vez do ferro polido, Manuel deveria antes empunhar uma rede de apanhar borboletas e um caderno de observações. O nosso destino é um terceiro andar de uma moradia sórdida do casario pobre abaixo do outeiro coroado pela Igreja de Santo Estêvão. Os sinos fanados estão a dar as vésperas quando chegamos e alguns cristãos-velhos arrastam-se para dentro da igreja. O sacristão enxota para longe um bando de cães aos pulos que pretendem associar-se à cerimónia. O pôr do sol abrasa o horizonte. As trevas da sexta noite da Páscoa quase se podem tocar.

O cunhado de Manuel é estofador e está a enfiar plumas numa tela quando nós chegamos. O sótão onde se encontra tresanda como uma capoeira. O pescoço é inexistente, tem umas faces sulcadas de veias como Frei Carlos e na cabeça uma franja quase sumida de cabelo castanho todo sujo. Tem estampada na cara uma expressão bovina de uma raiva obsessiva e cega, recebe as informações que trazemos sem nos olhar. Uma breve pausa nos movimentos da mão, mais nada.

- Disse que ia sair - resmunga -. Queixava-se da falta de limpeza durante o tempo das luas das mulheres.

Empurro Manuel para fora. Já sabíamos tudo o que precisávamos.

- Que me dizes ao homem?

- Ainda perguntas? A metade cristã tem os modos e a inteligência de um suíno. Já podes imaginar a sandice que deve reinar na metade judia. Teresa deve ser uma filha adoptiva. É a única explicação.

Olho para cima e vejo Tomás que se desvia da janela. Teria ele seguido a irmã e matado os dois, guiado por qualquer informe sentido de virtude religiosa herdado da mãe? Seria possível que ele e um dos iniciados que conheciam o segredo da geníza tivessem aparecido exactamente ao mesmo tempo para matar o meu tio? Será que uma tal coincidência é possível?

Duas penas descem a flutuar sobre nós. Estico-me para apanhar uma.

Estou convencido de que Teresa se considerava mais judia do que tu pensas - digo, agarrando-o vivamente. Ao ver o olhar surpreendido de Manuel pergunto: - Onde é que iria uma mulher judia assim que acaba o seu ritmo das luas?

- A um balneário - replica.

- E onde é o balneário mais próximo?

- Na Rua de São Pedro. Ao fundo da rua da vossa...

- Isso mesmo.

 

A nossa sinagoga na Judiaria Pequena tinha sido construída no ano cristão de 1374 numa pequena elevação no flanco da parte a sul das muralhas defensivas de Lisboa. No fundo dessa encosta fica um largozinho com uma grande pereira no meio, irmã de uma outra gigantesca que antes cobria de sombra o adro do nosso templo principal na Pequena Jerusalém. Uma escadaria de pedra polida sobe a vinte pés num primeiro lanço desde o emaranhado de raízes até à loja de curtumes de Samuel Aurico, seguindo-se um segundo lanço até à sinagoga. Do outro lado da sinagoga fica a Rua de São Pedro. Foi aí que os nossos antepassados puseram a entrada para a nossa micva, uma série de piscinas em cascata, duas delas destinadas aos banhos rituais, cavadas na rocha aí existente e alimentando-se numa corrente subterrânea. As hábeis negociações conduzidas pelo rabino Zacuto e outros judeus da corte pouparam-na aos confiscos de 1497 e possibilitaram que o nosso hazan, David Moisés, continuasse à sua frente. Claro que já ninguém esperava que os homens e rapazes da nossa crença fossem mergulhar nas suas águas antes do Shabat. Mas eu persistira. Ao fim e ao cabo, um banho não passa de um banho e possivelmente nem o próprio Papa poderia adivinhar o que vai na cabeça de cada um. Agora tudo mudara, já se sabe. A maldição portuguesa tinha-nos manietado os pulsos e as provas deixaram de ter qualquer importância. Por toda a Espanha, tomar banho à sexta-feira era considerado prova suficiente para tornar um homem em fumo. E que Lisboa tinha começado a sentir-se bem com o calor das fogueiras da Inquisição era uma coisa que desde a semana anterior já não deixava dúvidas a ninguém.

Naturalmente, a mesma proibição pesava sobre as nossas mulheres desde os tempos da conversão, que assim se viam impedidas de se purificarem depois de passada a sua maré que a lua governa. Mas Teresa, a mulher de Manuel, parecia ser mais fiel e corajosa do que ele imaginara. Teria ela sido surpreendida pelos cristãos quando se banhava? Pode dar-se que ela se tenha escapado antes de ter tido tempo de se vestir, atravessando a correr a rua para se refugiar em nossa casa, quatro portas a oriente da micva, no triângulo formado pela Rua de São Pedro com a Rua da Sinagoga.

A porta do balneário está fechada e ninguém responde quando batemos. «Não creio que Mestre David tenha sido poupado no domingo» - digo a Manuel, e contei-lhe como o hazan tinha faltado ao encontro que naquela tarde tínhamos marcado na Porta de Sant'Ana. Mesmo assim, Manuel chama por ele colando-se à fresta do umbral. A sexta noite da Páscoa caíra já sobre a cidade, cinzenta e puxada pelo vento, que levanta redemoinhos de poeira na calçada. Não se ouve nenhuma resposta. Manuel pergunta:

- E agora, onde havemos de ir?

- A casa dele - respondo - Sei onde é que ele guarda as chaves.

- Nunca percebi - diz ele, quando nos pomos a caminho - porque é que Mestre Abraão apreciava tanto morar assim perto do balneário e da sinagoga. Com as disputas permanentes que havia entre ele e o Rabino Losa, isso só piorava as coisas.

- Meu tio estava sempre a dizer que a nossa situação era excelente para nos desvanecermos para junto de Deus. A Rua da Sinagoga e a Rua de São Pedro convergem para nossa casa. Ele achava que um cabalista devia procurar viver numa intersecção de linhas, «onde dois se tornam em um».

Imagino que deve ser uma benção viver na convicção de que a vida é feita de padrões definidos e perceptíveis - observa Manuel com um sorriso melancólico, que me deixa adivinhar que, também ele, interroga Deus.

Subimos a rua lateral até à morada do bazan e batemos à porta. Empoleirado no beiral do telhado, vê-se um falcão de caça fugido, alerta e agitado, com uma tira de couro pendendo-lhe das garras. Quando uma mulher desengonçada de queixo ponteagudo nos grita do cimo das escadas, a ave levanta voo.

- Aqui somos todos cristãos tementes a Deus - diz a mulher numa voz tremente - Todos cristãos-velhos, sempre com o Senhor Jesus nos nossos corações - e leva as mãos postas ao peito numa posição de oração.

Mesmo do sítio onde me encontro consigo ver as unhas roídas até fazer sangue. Deve pensar que também nós andamos à caça de marranos.

- Viemos só para falar com Mestre David - digo eu numa voz apaziguadora. Não há problemas. Só queríamos saber se o viu.

Ai, meu Deus, eu já calculava. Mas aqui não o encontram. Desde domingo que não o vejo. Acho que esse dia estava destinado a aquecer o coração de Deus nas fogueiras do Rossio.

«Destinado esse dia a aquecer o coração de Deus?» - pensei. Os lisboetas com o esforço que fazem para falar por eufemismos acabam muitas vezes por usar as expressões mais absurdas e monstruosas. Haveria outro povo à face da Terra mais capaz de tornar com a sua linguagem um escorpião numa rosa?

- Por acaso tem a chave de casa dele? - pergunto.

- Tenho, tenho - responde ela.

- Podemos dar uma vista de olhos?

- Só um momento, que eu já desço.

Surge ao fundo das escadas alisando o avental escuro com mãos nervosas. Não levanta os olhos, evitando o nosso olhar. Numa voz hesitante, díz:

- Quando o senhor David aqui apareceu pela primeira vez pensámos que ele era uma pessoa de bem. Foi por isso que lhe alugámos a casa. Só depois é que percebemos que era marrano. Mas ele prometeu-nos sair no fim deste mês.

Fazia um esforço patético para se distanciar do seu inquilino. Na sua voz tranquila, Manuel diz: «Ele era o hazan desta parte da cidade, não sei se sabia.» Usa estas palavras próprias porque suspeita, tal como eu, que também ela era uma judia secreta. Usar a palavra hebraica hazan é uma maneira de Manuel lhe dar a entender que também sabemos hebreu e que...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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