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O ÚLTIMO DOS PADRINHOS / Mario Puzo
O ÚLTIMO DOS PADRINHOS / Mario Puzo

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O ÚLTIMO DOS PADRINHOS

Parte I

 

Vincent, ainda que satisfeito, resmungou:

- O que é que eles podem ensinar-me?

O Don olhou-o fixamente.

- Os teus bolos podiam ser melhores - disse. - Mas o principal objectivo é aprenderes os aspectos financeiros da gestão de uma empresa deste tipo. Quem sabe, pode ser que algum dia tenhas uma cadeia de restaurantes. O Giorgio dá-te o dinheiro.

Finalmente, voltou-se para Petie. Petie era o segundo e o mais simpático dos seus filhos. Com vinte e seis anos, pouco mais do que um rapaz, tinha um trato afável, mas o Don sabia que, no fundo da sua alma, era como uma reencarnação dos Clericuzio sicilianos.

- Petie - disse-lhe -, agora que o Pippi vai para o Oeste, passas tu a ser o Mayor do Enclave do Bronx. Fornecerás todos os soldados de que a Família precisar. Mas, além disso, comprei-te uma grande empresa de construção civil. Repararás os arranha-céus de Nova Iorque, construirás esquadras para a Polícia, pavimentarás as ruas da cidade. E um negócio garantido, mas espero que o transformes numa grande empresa. Os teus soldados poderão ter empregos legítimos e tu ganharás muito dinheiro. Começarás a trabalhar como aprendiz sob as ordens do actual proprietário. Mas lembra-te, a tua principal obrigação será fornecer soldados à família, e chefiá-los.

Voltou-se para Giorgio:

Giorgio, serás o meu sucessor. Tu e o Vincent deixarão de participar nessa parte necessária da vida da Família que envolve alguns riscos, excepto quando for absolutamente indispensável. Temos de olhar para o futuro. Os vossos filhos, e os pequenos Dante e Croccifixio, não devem crescer neste mundo. Somos ricos, já não precisamos de arriscar a vida para ganhar o pão de cada dia. Passaremos a funcionar exclusivamente como conselheiros financeiros de todas as outras Famílias. Seremos os seus apoios políticos, mediaremos as suas disputas. Mas, para isto, temos de ter cartas para jogar. Temos de ter um exército. E temos de proteger o dinheiro de toda a gente, e em troca serão eles a molhar-nos o bico. - Fez uma pausa. - Dentro de vinte, trinta anos, ter-nos-emos dissolvido no mundo legal e poderemos gozar sem medo as nossas fortunas. Essas duas crianças que hoje baptizamos nunca terão de cometer os pecados que nós cometemos, nem correr os riscos que nós corremos.

Nesse caso, para quê conservar o Enclave do Bronx? – perguntouGiorgio.

Esperamos um dia ser santos - respondeu o Don -, mas não queremos ser mártires.

Uma hora mais tarde, Don Clericuzio, da varanda da sua mansão, observava os festejos lá em baixo.

O imenso relvado, salpicado de mesas de piquenique protegidas por chapéus-de-sol verdes, estava cheio com os duzentos convidados, muitos dos quais eram soldados do Enclave do Bronx. Os baptizados eram habitualmente festas animadas, mas aquela decorria num ambiente de discreta contenção.

A vitória sobre os Santadio custara caro aos Clericuzio. O Don perdera o mais amado dos seus rapazes, Silvio. E a sua filha, Rose Marie, perdera o marido.

Agora, observava os grupos que circulavam em torno das compridas mesas carregadas de grandes jarras de escuro vinho tinto, brancas terrinas de sopa, pastas de todos os géneros, travessas cheias de uma enorme variedade de carnes e queijos cortados às fatias, cestas de pães frescos e estaladiços de todos os tamanhos e feitios. Permitiu a si mesmo o luxo de deixar-se embalar pela música do pequeno conjunto que tocava suavemente num canto do jardim.

Exactamente no meio do círculo de mesas de piquenique, avistou os dois carrinhos de bebé com as suas mantas azuis. Que corajosos eram os dois miúdos; não tinham sequer pestanejado quando o padre lhes derramara a água-benta na cabeça. Junto deles estavam as respectivas mães, Rose Marie e Nalene De Lena, a mulher de Pippi. Conseguia ver as caras dos bebés, tão limpas ainda das marcas da vida: Dante Clericuzio e Croccifixio De Lena. E ele era o responsável por garantir que aquelas duas crianças nunca teriam de sofrer para ganhar a vida. Se fosse bem sucedido, ambas entrariam para a sociedade regular do mundo. Era curioso, pensou, não haver um único homem no meio daquela multidão a prestar homenagem aos dois bebés.

Avistou Vincent, habitualmente sombrio e com uma cara como de granito, a servir um grupo de crianças do carrinho de cachorros-quentes que construíra para a festa. Parecia um desses carrinhos de cachorros-quentes que se vêem nas ruas de Nova Iorque, só que era maior, tinha um chapéu-de-sol mais colorido, e Vincent servia melhor comida. Usava um avental branco muito limpo e fazia os seus cachorros-quentes com chucrute e mostarda, com cebolas vermelhas e molho picante. Cada criança tinha de dar-lhe um beijo na face em troca do cachorro. Vincent era o mais terno dos seus filhos, apesar daquele rude aspecto exterior.

No campo de boccia [1] viu Petie a jogar com Pippi De Lena, Virginio Ballazzo e Alfred Gronevelt. Petie gostava de pregar partidas, uma faceta que o Don desaprovava, pois sempre lhe parecera perigosa. Naquele preciso momento, estava a perturbar o jogo com uma das suas brincadeiras habituais: uma das bolas saltou em pedaços ao ser atingida pela primeira vez.

Virginio Ballazzo era o lugar-tenente do Don, um executivo no âmbito da Família. De temperamento alegre e bem disposto, fingia perseguir Petie, que por sua vez fingia fugir-lhe. Don Clericuzio achou a situação irónica. Sabia que o seu filho Petie era um assassino nato, e o brincalhão e jovial Ballazzo tinha também, por direito próprio, uma certa reputação nesse campo.

Nenhum neles, porém, se comparava a Pippi.

O Don via como as mulheres na multidão olhavam para o sobrinho. Excepto as duas mães, Rose Marie e Nalene. Era um belo rapaz. Tão alto como o próprio Don, com um corpo musculoso e forte, um rosto brutalmente atraente. Muitos dos homens observavam-no também; alguns eram soldados seus, do Enclave do Bronx. Observavam o seu ar de comando, a graça felina do seu corpo em movimento, conhecedores da sua lenda, O martelo, o melhor dos Homens Qualificados.

David Redfellow, jovem, de faces rosadas, o mais poderoso traficante de droga da América, estava a beliscar as bochechas dos dois bebés deitados nos carrinhos. Finalmente, Albert Gronevelt, ainda de casaco e gravata, sentia-se obviamente pouco à vontade a jogar aquele jogo desconhecido. Gronevelt tinha aproximadamente a mesma idade que o Don, cerca de sessenta anos.

Naquele dia, Don Clericuzio ia mudar as vidas de todos eles. Para melhor, esperava.

Giorgio veio à varanda chamá-lo para a primeira reunião do dia. Os dez chefes da Máfia estavam reunidos no escritório da mansão, à espera. Giorgio já lhes expusera por alto a proposta de Don Clericuzio. O baptizado proporcionava uma excelente cobertura àquela reunião, mas nenhum deles tinha quaisquer verdadeiros laços sociais com os Clericuzio e todos desejavam regressar às suas casas o mais depressa possível.

O escritório era uma sala sem janelas, pesadamente mobilada e com um bar a um canto. Os homens sentados em redor da grande mesa de conferências, de tampo de mármore, mantinham expressões fechadas e sombrias. Cumprimentaram à vez Don Clericuzio, e aguardaram expectantes o que ele tinha para dizer.

Don Domenico mandou chamar os dois filhos, Vincent e Petie, o seu chefe-executivo, Ballazzo, e Pippi De Lena para que viessem participar na reunião. Quando chegaram, Giorgio, frio e sardónico, fez uma curta exposição introdutória.

O Don estudou os rostos dos homens à sua frente, os homens mais poderosos da sociedade ilegal que funcionava para dar resposta às verdadeiras necessidades das pessoas.

- O meu filho Giorgio já lhes explicou como tudo isto vai funcionar - disse. - A minha proposta é a seguinte. Retiro-me de todos os meus interesses, com excepção do jogo. As minhas actividades em Nova Iorque, dou-as ao meu velho amigo Virginio Ballazzo, que fundará a sua própria Família e será independente dos Clericuzio. No resto do país, cedo todos os meus interesses nos sindicatos, nos transportes, no álcool, no tabaco e nas drogas às vossas Famílias. Todo o acesso que tenho ao sistema judicial continuará disponível. O que peço em troca é que me deixem gerir os vossos lucros. Estarão a salvo e sempre ao vosso dispor. Não terão de preocupar-se com a possibilidade de o governo descobrir a origem do dinheiro. Por tudo isto, peço apenas uma comissão de cinco por cento.

Era um negócio de sonho para aqueles dez homens. Milagrosamente, os Clericuzio retiravam-se, quando na realidade poderiam perfeitamente ter avançado para controlar ou destruir os seus impérios.

Vincent deu a volta à mesa e serviu um pouco de vinho a cada um. Os homens ergueram os copos e brindaram ao afastamento do Don.

Depois de todos os chefes terem feito as suas cerimoniosas despedidas, David Redfellow entrou no escritório escoltado por Petie. Sentou-se no cadeirão de couro em frente do Don e Vincent serviu-lhe um copo de vinho. Redfellow destacava-se no meio dos outros homens não só por causa dos seus compridos cabelos louros, mas também pelo facto de usar um brinco com um diamante e um casaco de ganga com os jeans impecavelmente limpos e engomados. Tinha sangue escandinavo. Era louro, com olhos azuis claros, e mantinha sempre uma expressão jovial e um ar despreocupado.

O Don tinha para com David Redfellow uma grande dívida de gratidão. Fora ele quem lhe provara que as autoridades legais podiam ser subornadas no que respeitava à droga.

- David - disse Don Clericuzio -, vais reformar-te do negócio das drogas. Tenho uma coisa melhor para ti.

Redfellow não objectou.

- Porquê agora? - limitou-se a perguntar.

Em primeiro lugar - respondeu o Don -, porque o governo anda a dedicar demasiado tempo e atenção ao negócio. Terias de viver na ansiedade até ao fim dos teus dias. Mas, o que é mais importante, porque se tornou demasiado perigoso. O meu filho Petie e os seus soldados têm-te servido de guarda-costas. Não posso permitir que isso continue a acontecer. Os colombianos são demasiado selvagens, demasiado loucos, demasiado violentos. Eles que fiquem com o negócio da droga. Tu vais retirar-te para a Europa. Tratarei da tua protecção lá. Podes entreter-te a comprar um banco em Itália e viverás em Roma. Vamos ter muitos negócios para esses lados.

Óptimo - respondeu Redfellow. - Não falo italiano e não percebo nada de bancos.

Aprenderás ambas as coisas - afirmou Don Clericuzio. - E serás feliz em Roma. Ou podes ficar aqui, se preferires, mas nesse caso não poderás continuar a contar com a minha protecção, o Petie deixará de proteger a tua vida. Escolhe como quiseres.

Quem é que fica com o meu negócio? - quis saber Redfellow. - Recebo alguma coisa pela venda?

Os colombianos vão ficar com o teu negócio. Não se pode evitar,  são os ventos da História. Mas o governo vai fazer-lhes a vida num inferno.

Então, sim ou não?

Redfellow pensou por uns instantes e lançou uma pequena gargalhada.

Diga-me só como começar - respondeu.

O Giorgio leva-te a Roma e apresenta-te à nossa gente lá. E ao longo dos anos ir-te-á orientando. - Don Clericuzio levantou-se e abraçou-o.

Obrigado por teres ouvido os meus conselhos. Seremos sócios na Europa e, acredita, vai ser uma boa vida para ti.

Quando David Redfellow saiu, o Don mandou Giorgio chamar Alfred Gronevelt. Como proprietário do Xanadu Hotel em Vegas, Gronevelt estivera sob a protecção da agora extinta Família Santadio.

- Mr. Gronevelt - disse o Don -, continuará a dirigir o hotel sob a minha protecção. Nada tem a recear no que respeita à sua pessoa ou aos seus bens. Conservará os seus cinquenta e um por cento do hotel. Eu ficarei com os quarenta e nove por cento anteriormente detidos pelos Santadio e serei representado pela mesma identidade legal. Está de acordo?

Gronevelt era um homem de uma enorme dignidade e com uma presença física imponente, a despeito da idade. Disse, cuidadosamente:

Se ficar, terei de dirigir o hotel com a mesma autoridade. Caso contrário, vender-lhe-ei a minha parte.

Vender uma mina de ouro? - exclamou o Don, incrédulo. - Não, não! Não tenha medo de mim. Sou acima de tudo um homem de negócios. Se os Santadio fossem um pouco mais moderados, nenhuma daquelas coisas terríveis precisaria de ter acontecido. Agora eles já não existem. Mas o senhor e eu somos homens razoáveis. Os meus delegados recebem a parte dos Santadio. E Joseph De Lena, Pippi, recebe toda a consideração a que tem direito. Será ele o meu bruglione no Oeste, com um salário de cem mil dólares anuais pago pelo seu hotel, da maneira que lhe parecer a si mais conveniente. E se tiver problemas, seja de que tipo forem, seja com quem for, vá ter com ele. E, no seu negócio, há sempre problemas.

Gronevelt, um homem alto e magro, parecia muito calmo.

- Por que me favorece? - perguntou. - Tem outras opções mais lucrativas.

Don Domenico respondeu gravemente:

- Porque o senhor é um génio naquilo que faz. Toda a gente em Las Vegas o diz. E para provar a minha estima, dou-lhe algo em troca.

Grovenelt sorriu ao ouvir isto.

- Dá-me mais que o suficiente. O meu hotel. Que outra coisa poderia ser tão importante?

O Don sorriu-lhe benevolentemente, pois embora fosse um homem sério, gostava de surpreender as pessoas com o seu poder.

- Vai poder nomear o novo membro da Comissão de Jogo do Nevada - disse -. Há uma vaga.

Por uma das poucas vezes na sua vida, Gronevelt ficou surpreendido, e também impressionado. Mas, sobretudo, estava entusiasmado, pois antevia para o seu hotel um futuro com que nunca tinha sequer sonhado.

Se puder fazer uma coisa dessas, seremos todos muito ricos nos próximos anos.

Está feito - respondeu o Don. - Agora vá divertir-se um pouco.

Vou regressar a Vegas - disse Gronevelt. - Não me parece sensato deixar que toda a gente saiba que fui recebido em sua casa.

O Don assentiu.

- Giorgio, manda alguém levar Mr. Gronevelt a Nova Iorque.

Agora, além do Don, só os seus três filhos, Pippi De Lena e Virginio Ballazzo se encontravam na sala. Pareciam ligeiramente aturdidos. Só Giorgio sabia o que se preparava. Todos os outros ignoravam os planos de Don Clericuzio.

Ballazzo era jovem para bruglione, apenas dois ou três anos mais velho do que Pippi. Controlava os sindicatos, os transportes dos grandes armazéns de roupas e um pouco de drogas. Don Domenico informou-o de que doravante iria operar independentemente dos Clericuzio. Teria apenas de pagar um tributo de dez por cento. Tirando isso, disporia de um controlo total sobre as suas operações.

Virginio Ballazzo não queria crer em tanta generosidade. Era normalmente um homem extrovertido, que expressava os seus agradecimentos e as suas queixas com veemência, mas naquele momento estava demasiado cheio de gratidão para fazer fosse o que fosse além de abraçar o Don.

- Desses dez por cento, reservarei cinco para quando fores velho ou se te acontecer alguma coisa - disse-lhe Don Clericuzio. - Agora desculpa-me, mas as pessoas mudam, têm a memória fraca, a gratidão por generosidades antigas vai esmorecendo. Deixa-me lembrar-te que deves ser sempre muito exacto nas tuas contas. - Fez uma curta pausa. - Ao fim e ao cabo, eu não sou essa gente dos impostos, não posso aplicar-te aqueles juros terríveis e aquelas multas que eles aplicam.

Ballazzo compreendeu. Com Don Domenico, o castigo era sempre seguro e rápido. Nem sequer haveria aviso. E o castigo era sempre a morte. Ao fim e ao cabo, de que outra maneira se podia tratar um inimigo?

Don Clericuzio despediu Ballazzo, mas quando acompanhou Pippi à porta, puxou-o para si e disse-lhe ao ouvido:

- Lembra-te, tu eu temos um segredo. Tens de o guardar para sempre. Eu nunca te dei a ordem.

No relvado diante da mansão, Rose Marie Clericuzio esperava para falar com Pippi De Lena. Era uma viúva muito jovem e muito bonita, mas o preto não lhe ficava bem. O luto pelo marido e pelo irmão suprimia a vivacidade natural tão necessário ao seu tipo especial de beleza. Os seus grandes olhos castanhos estavam demasiado escuros, o tom azeitonado da sua pele demasiado pálido. Só o vestido enfeitado de fitas azuis de Dante, o filho recém-baptizado que tinha nos braços, punha nela uma pincelada de cor. Durante todo o dia, mantivera-se curiosamente distante do pai, Don Clericuzio, e dos três irmãos, Giorgio, Vincent e Petie. Mas agora esperava por Pippi.

Eram primos, Pippi dez anos mais velho, e, quando era ainda uma adolescente, apaixonara-se loucamente por ele. Mas Pippi mostrara-se sempre paternal, distante. Embora famoso pela sua fraqueza no que respeitava à carne, fora demasiado prudente para ceder a essa fraqueza com a filha do seu Don.

- Olá, Pippi - disse Marie Rose. - Parabéns.

Pippi sorriu com um encanto que fez o seu rosto brutal parecer atraente. Inclinou-se para beijar a testa do bebé, notando com surpresa que o cabelo, que ainda conservava um leve cheiro a incenso da igreja, parecia demasiado denso para uma criança tão pequena.

- Dante Clericuzio, um bonito nome - disse.

Não era um elogio inocente. Marie Rose conservara o nome de solteira para si própria e para o filho agora privado do pai. O Don convencera-a a fazê-lo através de uma lógica impecável, mas mesmo assim ela sentia uma certa culpa.

Talvez levada por esta culpa, perguntou.

- Como foi que convenceste a tua mulher protestante a celebrar uma cerimónia católica e dar ao filho um nome tão religioso?

Pippi sorriu-lhe.

- A minha mulher ama-me e gosta de me fazer a vontade.

Era verdade, pensou Rose Marie. A mulher de Pippi amava-o porque não o conhecia. Não como ela própria o conhecera e em tempos o amara.

- Chamaste ao teu filho Croccifixio - comentou. - Podias ao menos ter agradado à Nalene com um nome americano.

Dei-lhe o nome do teu avô, para agradar ao teu pai – respondeu Pippi.

Como é obrigação de todos nós - replicou ela. Mas a ironia do comentário foi disfarçada pelo sorriso. Rose Marie tinha uma estrutura óssea tal que o sorriso lhe aparecia naturalmente no rosto e lhe dava um ar de doçura que roubava a mordacidade ao que quer que dissesse. Fez uma pequena pausa, hesitante. - Obrigada por me teres salvo a vida.

Pippi ficou a olhar para ela por um momento, surpreendido, ligeiramente apreensivo. Depois disse, suavemente:

- Nunca estiveste em perigo. - Passou-lhe um braço pelos ombros. - Acredita - continuou -, não penses nessas coisas. Esquece tudo. Temos vidas felizes à nossa frente. Esquece o passado.

Rose Marie inclinou a cabeça para beijar o filho, mas na realidade para esconder o rosto.

- Compreendo tudo - disse, sabendo que ele havia de repetir aquela conversa ao tio e aos primos. -Já me conformei. - Queria que a família soubesse que continuava a amá-los a todos e que estava contente por o filho ter sido recebido no seio da Família, santificado pela água-benta e salvo das penas do inferno.

Nesse momento, Virginio Ballazzo pegou em Rose Marie e em Pippi e levou-os para o centro do relvado. Don Domenico Clericuzio emergiu da mansão, seguido pelos seus três filhos.

Com os homens de fato completo, as mulheres de vestido comprido, as crianças vestidas de cetim, a Família Clericuzio formou um semicírculo diante do fotógrafo. A multidão de convidados aplaudiu e gritou parabéns, e o momento foi registado para a posteridade: um momento de paz, de vitória e de amor.

Mais tarde, a fotografia foi ampliada, emoldurada e pendurada no gabinete particular do Don, ao lado da fotografia de Silvio, o filho morto na guerra contra os Santadio.

Don Clericuzio assistiu ao resto dos festejos da varanda do seu quarto.

Rose Marie contornou o campo de boccia, empurrando o carrinho de bebé, e a mulher de Pippi, Nalene, magra, alta e elegante, atravessou o relvado e foi juntar-se-lhe, levando Croccifixio nos braços. Deitou a criança no carrinho, ao lado de Dante, e as duas mulheres ficaram a olhar amorosamente para os filhos.

O Don sentiu-se invadir por uma onda de alegria ao pensar que aquelas duas crianças viveriam vidas protegidas e tranqüilas e nunca teriam de saber o preço que fora necessário pagar para lhes assegurar o seu feliz destino.

Viu então Petie meter um biberão de leite dentro do carrinho, e todos se riram quando os dois bebés se puseram a lutar por ele. Rose Marie pegou no filho ao colo, e o Don lembrou-se dela tal como tinha sido apenas poucos anos antes. Suspirou. Não há nada tão belo como uma mulher apaixonada, nem nada tão triste como quando essa mulher fica viúva, pensou, com pena.

Rose Marie era, dos seus filhos, a que mais amara; sempre tão alegre, tão cheia de vida. Mas Rose Marie tinha mudado. A perda do irmão e do marido fora um golpe demasiado grande. No entanto, o Don bem o sabia, os verdadeiros apaixonados voltam sempre a apaixonar-se, e as viúvas acabam por cansar-se de trapos pretos. E agora ela tinha um filho para amar.

O Don recordou a sua vida passada e espantou-se por ter chegado a um desfecho tão feliz. Tomara, é certo, algumas decisões monstruosas para conseguir poder e riqueza, mas sentia poucos remorsos. Fora tudo necessário, e o tempo encarregara-se de demonstrar que tivera razão. Outros homens que gemessem pelos seus pecados. Ele, Don Clericuzio, aceitava-os e punha a sua fé num Deus que, sabia, havia de perdoar-lhe.

Pippi estava agora a jogar boccia com três soldados do Enclave do Bronx, homens mais velhos do que ele, que tinham sólidos negócios no Enclave, mas que o admiravam sem reservas. Pippi, com a sua alegria e graça habituais, continuava no centro das atenções. Era uma lenda, tinha jogado boccia contra os Santadio.

Pippi estava exuberante, gritando de alegria quando a sua bola conseguia afastar a de um adversário da bola-alvo. Que homem, aquele Pippi, pensou o Don. Um soldado fiel, um companheiro agradável. Forte e rápido, astuto e resistente.

O seu querido amigo Virginio Ballazzo aparecera no campo de boccia. Era o único homem que podia rivalizar com Pippi em habilidade. Ballazzo fez um floreado com o braço ao lançar a bola, e ouviu-se um coro de felicitações quando acertou no alvo. Ergueu a mão na direcção da varanda, num gesto de triunfo, e o Don aplaudiu. Sentia-se orgulhoso por homens como aqueles terem crescido e prosperado sob o seu mando, como todos os que se tinham reunido em Quogue naquele Domingo de Ramos. E por saber que a sua clarividência e visão de futuro ia protegê-los a todos durante os anos difíceis que se aproximavam.

O que o Don não podia prever era as sementes do mal já presentes em espíritos que nem tinham ainda começado a formar-se.

 

Hollywood. Las Vegas. 1990.

 

Os cabelos ruivos de Boz Skannet reflectiam a luz amarelada do sol da primavera californiana. O seu corpo tenso, musculado, vibrava, pronto para entrar numa grande batalha. Todo o seu ser se exaltava à ideia de que aquilo que ia fazer seria visto por um bilião de pessoas em todo o mundo.

No cós elástico dos calções de ténis que vestia trazia uma pequena pistola, escondida pelo blusão de fecho de correr fechado de cima a baixo. Era um blusão branco, atravessado por grandes desenhos verticais vermelhos em forma de raios. Uma fita escarlate com pintas azuis cingia-lhe a testa.

Na mão direita segurava uma grande garrafa prateada de água mineral. Boz Skannet apresentava-se perfeitamente equipado para o mundo do espectáculo em que estava prestes a entrar.

Esse mundo era uma enorme multidão reunida diante do Dorothy Chandler Pavilion em Los Angeles, uma multidão que aguardava a chegada das estrelas de cinema para a cerimónia de atribuição dos Óscares. Enormes tribunas especialmente construídas para a ocasião eram ocupadas pelos espectadores; a rua propriamente dita estava cheia de câmaras de TV e de repórteres, prontos a transmitir para todo o mundo as imagens do acontecimento. Naquela noite, as pessoas iam ver as grandes estrelas em carne e osso, despidas das suas peles míticas e sujeitas ao perder-e-ganhar da vida real.

Seguranças uniformizados, com os bastões castanhos e luzidios enfiados nos coldres, formavam um perímetro para manter os espectadores à distância.

Boz Skannet não se preocupou com eles. Era mais forte, mais rápido e mais duro do que aqueles homens, e tinha por si a vantagem da surpresa. Estava atento aos repórteres de televisão e aos cameramen que deambulavam de um lado para o outro em busca de uma estrela que pudessem interceptar. Mas esses estariam mais interessados em registar do que em impedir.

Uma limusina branca deteve-se diante da porta do Pavilion, e Skannet viu Athena Aquitane, "a mulher mais bela do mundo", na opinião de várias revistas. Quando ela apareceu, a multidão comprimiu-se contra as barreiras, gritando o seu nome. As câmaras cercaram-na e levaram a sua beleza aos quatro cantos da Terra. Ela acenou.

Skannet saltou por cima da vedação da tribuna. Ziguezagueou por entre as barreiras destinadas a controlar o trânsito, viu as camisas castanhas dos guardas começarem a convergir, num padrão familiar. Não vinham no ângulo certo. Passou por eles tão facilmente como, anos antes, passava pelos defesas no campo de futebol [2]. E chegou no segundo exacto. Ali estava Athena a falar para um microfone, com a cabeça levemente inclinada para mostrar às câmaras o seu melhor ângulo. Havia três homens junto dela. Skannet certificou-se de que a câmara o tinha enquadrado e então lançou o líquido da garrafa à cara de Athena Aquitane.

- Aqui tens um pouco de ácido, grande cabra! - gritou. Depois voltou-se directamente para a câmara e, com uma expressão composta, séria e muito digna, disse:- Ela merecia-o.

No instante seguinte foi engolfado por uma vaga de homens vestindo camisas castanhas, brandindo bastões. Deixou-se cair de joelhos.

No último instante, Athena Aquitane tinha-lhe visto a cara. Ouvira-o gritar e voltara a cara, de modo que o líquido a atingira na face e na orelha.

Um bilião de telespectadores viram como tudo aconteceu. O rosto encantador de Athena, o líquido prateado na sua face, o choque e o horror, a expressão de espanto ao reconhecer o agressor, a máscara de puro medo que durante um segundo destruiu toda a sua arrogante beleza.

Um bilião de telespectadores viram como a polícia arrastava Boz Skannet para longe. Parecia ele próprio uma estrela de cinema ao erguer as mãos algemadas num gesto de vitória, antes de cair por terra quando um agente enfurecido, tendo-lhe descoberto a pistola no cós dos calções, lhe desferiu uma seca e violentíssima bastonada nos rins.

Athena Aquitane, ainda abalada pelo choque, limpou automaticamente o líquido da face. Não teve qualquer sensação de queimadura. As gotas que lhe ficaram na mão começavam a dissolver-se. As pessoas comprimiam-se à sua volta, para a protegerem, para a levarem dali.

Libertou-se delas e disse calmamente:

- E apenas água. - Lambeu as gotas da mão, para se certificar. Depois tentou sorrir. - Típico do meu marido - acrescentou.

Athena, mostrando a grande coragem que ajudara a fazer dela uma lenda, entrou rapidamente no pavilhão onde se desenrolaria a cerimónia de entrega dos galardões da Academia. Quando recebeu o Oscar para a melhor actriz, a multidão pôs-se de pé e aplaudiu pelo que que pareceu uma eternidade.

Na fresca suite do terraço do Xanadu Casino Hotel de Las Vegas, o proprietário, um velho de oitenta e cinco anos, estava a morrer. Mas, naquele dia de Primavera, tinha a sensação de conseguir ouvir, dezasseis pisos mais abaixo, o saltitar de uma bola de marfim nos ressaltos vermelhos e negros das roletas, o murmúrio distante dos jogadores que falavam rouca e implora-tivamente aos dados que lançavam, o zumbido dos milhares de slot machines que devoravam moedas de prata.

Alfred Gronevelt estava tão feliz quanto um homem pode estar na hora da morte. Durante quase noventa anos fora fura-vidas, chulo diletante, jogador, cúmplice de um assassínio, manobrador político, e, finalmente, o rigoroso mas benévolo dono do Xanadu Casino Hotel. Por medo de ser traído, nunca amara verdadeiramente um único ser humano, mas fora bom para muitos. Não sentia remorsos. Agora, aproveitava o mais que podia os pequenos prazeres que a vida lhe permitia. Como a volta que todas as tardes dava pelas instalações do Casino.

Croccifixio "Cross" De Lena, o seu braço-direito havia pelo menos cinco anos, entrou no quarto e perguntou: "Pronto, Alfred." E Gronevelt sorriu-lhe e assentiu com a cabeça.

Cross pegou nele e sentou-o na cadeira de rodas, a enfermeira envolveu-o em mantas e o criado foi pôr-se no seu lugar, pronto para empurrar. A enfermeira entregou a Cross uma caixa de comprimidos e abriu a porta da suite. Ficaria ali. Gronevelt não suportava a sua companhia naqueles passeios.

A cadeira de rodas rolou suavemente sobre a relva artificial do jardim fronteiro à suite e entrou no elevador privado que descia os dezasseis andares até ao Casino.

Gronevelt sentava-se muito direito na sua cadeira, olhando à esquerda e à direita. Era aquele o seu prazer, ver homens e mulheres tentarem batê-lo num jogo em que as probabilidades estavam eternamente do seu lado. A cadeira de rodas atravessou lentamente a área do vinte-e-um e da roleta, contornou a mesa de bacará, percorreu a floresta das mesas de dados. Os jogadores mal reparavam no velho que passava por eles na sua cadeira de rodas, com os olhos brilhantes e atentos e um sorriso divertido no rosto esquelético. Jogadores em cadeiras de rodas eram comuns em Las Vegas. Talvez pensassem que o destino lhes devia um pouco de sorte pelos seus infortúnios.

Finalmente, a cadeira entrou na cafetaria-restaurante. O criado deixou-os no compartimento privado e retirou-se para outra mesa, à espera de ordens.

Através da parede de vidro, Gronevelt via a enorme piscina, a água a brilhar com um azul quente ao sol do Nevada; jovens mães com crianças emergiam à superfície, como outros tantos brinquedos coloridos. Sentiu uma pequena pontada de prazer ao pensar que tudo aquilo fora obra sua.

- Alfred, coma qualquer coisa - estava Cross De Lena a dizer. Gronevelt sorriu-lhe. Achava-o extraordinariamente bonito, de uma maneira que o tornava atraente tanto para os homens como para as mulheres, e era uma das poucas pessoas em quem quase conseguira confiar ao longo de toda a sua vida.

- Adoro este negócio - disse. - Cross, és o herdeiro da minha parte no hotel, e sei que vais ter de lidar com os nossos sócios em Nova Iorque. Mas nunca deixes o Xanadu.

Cross bateu ao de leve na mão do velho, de ossos nodosos por baixo da pele.

- Não deixarei - prometeu.

Gronevelt sentiu o vidro da parede trazer-lhe o calor do sol para o sangue.

- Cross - disse-, ensinei-te tudo. Ambos fizemos algumas coisas difíceis, verdadeiramente duras de fazer. Nunca olhes para trás. Sabes que as percentagens funcionam de maneiras diferentes. Faz tantas boas acções quantas puderes. Compensa sempre. Não estou a falar de te apaixonares ou de te deixares dominar pelo ódio. Essas são jogadas péssimas em termos de percentagens.

Bebericaram café juntos. Gronevelt comeu um estaladiço pastel de massa folhada. Cross bebeu sumo de laranja com o café.

- Uma coisa - continuou. - Nunca dês uma villa a alguém que não tenha jogado um milhão. Nunca esqueças isto. As villas são lendárias. São muito importantes.

Cross voltou a tocar na mão do velho, mas desta vez deixou a sua ficar. O seu afecto era genuíno. De certa maneira, amava mais Gronevelt do que o seu próprio pai.

- Não se preocupe - disse. - As villas são sagradas. Mais alguma coisa?

Os olhos de Gronevelt eram opacos, velados por cataratas que escondiam o antigo fogo.

Tem cuidado - aconselhou. - Tem sempre muito cuidado.

Terei - prometeu Cross, e então, para afastar do espírito do velho a ideia da morte iminente, perguntou:- Quando é que me conta a história da grande guerra contra os Santadio? Na altura trabalhava para eles. Nunca ninguém fala sobre isso.

Gronevelt suspirou como os velhos suspiram, apenas um murmúrio, quase despido de emoção.

Bem sei que o tempo começa a escassear - disse. - Mas ainda não posso falar contigo. Pergunta ao teu pai.

Já perguntei. Recusou-se a falar.

O passado é o passado - murmurou Gronevelt. - Nunca lá voltes. Nem para procurar desculpas, nem justificações, nem felicidade. Tu és o que és, e o mundo é o que é.

De novo na suite do terraço, a enfermeira deu a Gronevelt o seu banho da tarde e mediu-lhe os sinais vitais. Franziu o sobrolho, e Gronevelt disse:

- São apenas percentagens.

Nessa noite dormiu profundamente e, quando a aurora rompeu, pediu à enfermeira que o ajudasse a chegar à varanda. Ela instalou-o na grande cadeira de braços e envolveu-o em mantas. Depois sentou-se ao lado dele e pegou-lhe na mão, para lhe medir o pulso. Quando tentou retirar a mão, Gronevelt continuou a agarrar-lha. Ela não insistiu e ficaram ambos a ver o sol subir acima do deserto.

O sol era uma bola vermelha que transformava o céu de negro azulado em laranja escuro. Gronevelt via os courts de ténis, o campo de golfe, a piscina, as sete villas que refulgiam como outros tantos Versalhes, todas elas ostentando a bandeira do Xanadu Hotel: fundo verde com pombas brancas. E, para além delas, o interminável deserto de areia.

Criei tudo isto, pensou Gronevelt. Ergui cúpulas de prazer no meio da desolação. E construí para mim mesmo uma vida feliz. Tudo isto a partir do nada. Tentei ser um homem tão bom quanto é possível neste mundo. Deverei ser julgado? Voltou em pensamento ao tempo da sua infância, quando ele e os amigos, filósofos de catorze anos, discutiam Deus e os valores morais, como os rapazes faziam nessa altura.

"Se pudesses ganhar um milhão de dólares carregando num botão e matando um milhão de chineses", dizia-lhe triunfantemente um dos amigos, como se estivesse a colocá-lo perante um grande e irresolúvel dilema moral, "eras capaz de fazê-lo?" E, depois de muitas discussões, todos concordavam que não. Excepto Gronevelt.

E tinha razão, pensava agora. Não por causa da sua vida bem sucedida, mas porque o grande dilema já nem sequer se punha. Já não era um dilema. Já só se podia pôr de uma maneira:

"Serias capaz de carregar no botão para matar dez milhões de chineses" - porquê chineses? - "por cem dólares?" A pergunta era agora essa.

O mundo estava a tornar-se escarlate de luz, e Gronevelt apertou a mão da enfermeira para manter o equilíbrio. Era capaz de olhar directamente para o sol, graças ao escudo das cataratas. Pensou confusamente em certas mulheres que conhecera e amara e em certas coisas que fizera. E nos homens que derrotara impiedosamente, e nas vezes em que se mostrara misericordioso. Pensou em Cross como num filho e teve pena dele, e de todos os Santadio, e dos Clericuzio. E sentiu-se feliz por ir deixar tudo aquilo para trás. O que era melhor, ao fim e ao cabo: viver uma vida feliz ou uma vida moral? E seria preciso ser chinês para decidir?

Esta última confusão destruiu-o definitivamente. A enfermeira, que lhe segurava a mão, sentiu-a ficar fria, pôr-se tensa. Inclinou-se para procurar-lhe o pulso e a respiração. Não havia dúvida. Alfred Gronevelt deixara de existir.

Cross De Lena, herdeiro e sucessor, encarregou-se de organizar as exéquias solenes de Gronevelt. Todas as personalidades de Las Vegas, todos os grandes jogadores, todas as suas antigas amigas ou amantes, todo o pessoal do hotel, tinham de ser convidados ou avisados. Porque Alfred Gronevelt fora o génio indisputado do jogo em Las Vegas.

Angariara e contribuíra com fundos para construir igrejas de todas as religiões, pois, como costumava dizer, "As pessoas que acreditam na religião e no jogo merecem uma recompensa qualquer pela sua fé." Impedira a construção de bairros de lata, edificara hospitais e escolas de primeira qualidade. Sempre, como afirmava, por uma questão de interesse próprio. Desprezava Atlantic City, onde, sob a orientação do estado, os senhores do jogo embolsavam o dinheiro todo e não faziam nada pelas infraestruturas sociais.

Gronevelt fora o primeiro a convencer o público de que o jogo não era um vício sórdido mas uma fonte de entretenimento da classe média, tão normal como o golfe ou baseball. Transformara o jogo numa indústria respeitável na América. Las Vegas em peso havia de querer prestar-lhe homenagem.

Cross pôs de lado as suas emoções pessoais. Experimentava uma profunda sensação de perda, pois houvera um genuíno laço de afecto entre eles durante toda a sua vida. E agora era dono de cinquenta e um por cento do Xanadu Hotel. Que valiam pelo menos 500 milhões.

Sabia que a sua vida tinha de mudar. Sendo tão mais poderoso e rico, haveria forçosamente muito mais perigos. As suas relações com Don Clericuzio e a Família tornar-se-iam mais delicadas, na medida em que era agora sócio deles num empreendimento colossal.

O primeiro telefonema que Cross fez foi para Quogue, onde falou com Giorgio, que lhe deu determinadas instruções. Giorgio disse-lhe que ninguém da Família estaria presente no funeral, com excepção de Pippi. Dante seguiria no próximo avião para cumprir a missão de que já tinham falado, mas não assistiria à cerimónia. O facto de ele, Cross, ser agora proprietário de metade do hotel não foi sequer referido.

Havia uma mensagem da irmã, Claudia, mas quando lhe ligou foi atendido pelo gravador de chamadas. Havia outra mensagem de Ernest Vail. Gostava de Vail, tinha guardados no cofre cinquenta mil dólares em vales com a assinatura dele, mas Vail teria de esperar até depois do funeral.

A terceira mensagem era do pai, Pippi, que fora amigo de Gronevelt durante muitos, muitos anos. E de cujo conselho ele agora necessitava para conduzir a sua vida futura. Como iria o pai reagir ao seu novo estatuto, à sua nova riqueza? O problema era tão delicado como a maneira de lidar com os Clericuzio, que teriam de adaptar-se ao facto de o seu bruglione no Oeste se ter tornado um homem poderoso e rico por direito próprio.

De que o Don se mostraria justo, Cross não tinha a mínima dúvida; que o seu próprio pai o apoiaria era um dado praticamente adquirido. Mas, e os filhos do Don, Giorgio, Vincent e Petie, como reagiriam? E o neto, Dante? Ele e Dante eram inimigos desde que tinham sido baptizados juntos na capela particular do Don. Toda a Família o sabia.

E agora Dante ia chegar a Las Vegas para fazer o "serviço" em Big Tim the Rustler. Isso aborrecia-o, pois tinha uma espécie de simpatia perversa por Big Tim. A sentença fora, porém, pronunciada pelo próprio Don, e Cross preocupava-se com a maneira como Dante faria o trabalho.

O funeral de Alfred Gronevelt foi o maior a que Las Vegas alguma vez assistira, um tributo ao génio. O corpo ficou em câmara ardente na igreja protestante que o dinheiro dele ajudara a construir e que combinava a grandiosidade das catedrais europeias com as paredes castanhas e ligeiramente inclinadas da cultura americana nativa. E que, com o tradicional espírito prático de Las Vegas, tinha um imenso parque de estacionamento, decorado com motivos americanos nativos e não religiosos europeus.

O coro que cantou os louvores ao Senhor e encomendou a alma de Gronevelt ao Céu pertencia à universidade onde ele financiara três cadeiras de humanidades.

Centenas de acompanhantes, que tinham completado os seus estudos graças às bolsas que Gronevelt instituíra, arvoravam expressões convincentemente pesarosas. Alguns dos presentes eram grandes jogadores que haviam perdido fortunas no hotel e pareciam moderadamente contentes por terem finalmente levado a melhor sobre Gronevelt. Várias mulheres, sozinhas, algumas de meia idade, choravam em silêncio. Havia representantes das sinagogas judaicas e das igrejas católicas que ajudara a construir.

Encerrar o casino seria contrário a tudo aquilo em que Gronevelt acreditara, mas havia os gerentes e os croupiers que não estavam no turno do dia. Até alguns ocupantes das villas fizeram a sua aparição, e foram recebidos com especial deferência por Cross e por Pippi.

O governador do estado do Nevada, Walter Wavven, assistiu à cerimónia, acompanhado pelo mayor. A própria Strip foi vedada ao trânsito, para que a longa procissão de carros fúnebres prateados, limusinas negras e acompanhantes a pé pudesse seguir o corpo até ao cemitério e Alfred Gronevelt pudesse, uma última vez, atravessar o mundo que tinha criado.

Nessa noite, os cidadãos visitantes de Vegas prestaram a Gronevelt o tributo final que ele mais teria apreciado. Jogaram com um frenesi que estabeleceu um novo recorde de receitas, exceptuando, evidentemente, a noite de Ano Novo. Enterraram o seu dinheiro com o corpo dele, em sinal de respeito.

E, no fim desse dia, Cross De Lena preparou-se para começar a sua nova vida.

Nessa noite, sozinha na sua casa de praia na Malibu Colony, Athena Aquitane procurava decidir o que fazer. Sentada no sofá, a pensar, estremeceu levemente ao sentir a brisa que soprava do oceano e entrava pelas portas abertas da janela de sacada.

É difícil imaginar uma estrela de cinema mundialmente famosa como era quando criança. é difícil imaginá-la a passar pelo processo de se tornar uma mulher. Tão poderoso é o carisma das estrelas de cinema que é como se as suas imagens adultas, de heróis ou de beldades, tivessem surgido, já completamente formadas, da cabeça de Zeus. Nunca fizeram chichi na cama, nunca tiveram acne, nunca foram feias, nunca sofreram da paralisante timidez e falta de graça da adolescência, nunca se masturbaram, nunca suplicaram amor, nunca estiveram à mercê do destino. Athena tinha muita dificuldade, agora, em recordar sequer uma pessoa assim.

Pensou que nascera uma das pessoas mais afortunadas do mundo. Todas as coisas boas lhe aconteciam naturalmente. Tinha uma mãe e um pai extraordinários, que reconheciam os seus dons e os acarinhavam. Adoravam a sua beleza física, mas faziam tudo o que podiam por lhe educar o espírito. O pai guiava-a nos desportos, a mãe na literatura e nas artes. Não conseguia lembrar-se de um único momento da sua infância em que se tivesse sentido infeliz. Até fazer dezassete anos.

Apaixonou-se por Boz Skannet, que era quatro anos mais velho, uma estrela regional do futebol na universidade que freqüentava. Os pais eram os donos do maior banco do estado do Texas. Boz era quase tão bonito quanto Athena era bela, e além disso era divertido, era encantador, e adorava-a. Os seus corpos perfeitos atraíram-se como dois ímans, os nervos a faiscar como cabos de alta tensão, a pele toda ela seda e leite. Entraram num paraíso especial e, para terem a certeza de que duraria para sempre, casaram-se.

Passados poucos meses, Athena engravidou, mas, com a sua habitual perfeição corporal, ganhou muito pouco peso; nunca se sentia enjoada e a idéia de ter um bebé deliciava-a. Por isso continuou a ir à universidade, a ter aulas de representação, a jogar golfe e ténis. Boz batia-a no ténis, mas ela derrotava-o facilmente no golfe.

Boz foi trabalhar para o banco do pai. Depois de ter o filho, uma menina a que deu o nome de Bethany, Athena continuou a ir às aulas, uma vez que Boz ganhava o suficiente para contratar uma ama e uma criada. O casamento tornou Athena ainda mais sedenta de conhecimentos. Lia vorazmente, sobretudo peças de teatro. Pirandello deliciava-a, Strindberg assustava-a, Tennessee Williams fazia-a chorar. Tornou-se mais vibrante, a sua inteligência como que constituiu uma moldura para a sua beleza física, dando-lhe uma dignidade que a beleza por vezes não tem. Não é de espantar que muitos homens, jovens e velhos, se apaixonassem por ela. Os amigos de Boz Skan-net invejavam-no por ter uma mulher assim. Athena orgulhava-se da sua perfeição, até que, anos mais tarde, se apercebeu de que essa mesma perfeição irritava muita gente, incluindo amigos e amantes.

Boz dizia, na brincadeira, que era como ter um Rolls e ser obrigado a estacioná-lo na rua todas as noites. Era suficientemente inteligente para saber que a mulher estava destinada a outros vôos, para saber que ela era extraordinária. E via muito claramente que estava condenado a perdê-la, como perdera os seus próprios sonhos. Não houvera uma guerra em que pudesse provar a sua coragem, embora se soubesse destemido. Sabia que tinha encanto e beleza física, mas nenhum talento especial. Não estava interessado em amealhar uma imensa fortuna.

Tinha ciúmes dos dons de Athena, da maneira como ela estava certa do seu lugar no mundo.

Por isso Boz cumpriu o seu destino. Começou a beber de mais, a seduzir as mulheres dos colegas e, no banco do pai, realizou algumas transacções menos claras. Tornou-se orgulhoso da sua astúcia, como qualquer homem se orgulha de uma habilidade recém-adquirida, e utilizou-a para esconder o seu crescente ódio pela mulher. Ou não seria heróico odiar alguém tão belo e perfeito como Athena?

Boz tinha uma saúde extraordinária, apesar do seu deboche. Também, cuidava dela. Treinava todos os dias no ginásio, começou a ter lições de pugilismo. Adorava o universo primitivamente físico do ringue, onde podia esmurrar a cara de um ser humano, a astúcia de, no último instante, substituir um directo por um gancho, o estoicismo de agüentar o castigo. Adorava a caça, a sensação de poder que lhe proporcionava ver cair fulminado o animal visado. E adorava seduzir mulheres ingénuas, os esquemas, os ardis e as estratégias da conquista e do romance.

Então, com essa astúcia recém-adquirida, começou a procurar uma solução. Ele e Athena teriam mais filhos. Quatro, cinco, seis. Isso havia de voltar a juntá-los. Isso havia de impedi-la de voar para longe. Mas, dessa vez, Athena percebeu o que ele queria, e disse não. Disse mais: "Se queres filhos, vai tê-los com essas mulheres com quem andas a dormir."

Foi a primeira vez que lhe falou com dureza. Não ficou espantado por ela saber das suas infidelidades; não tentara escondê-las. Na realidade, isso fazia parte do seu jogo; nesse caso, teria sido ele a afastá-la, e não ela a abandoná-lo.

Athena apercebeu-se do que estava a passar-se com Boz, mas era demasiado jovem e estava demasiado centrada na sua própria vida para lhe dar a atenção necessária. Foi só quando ele se revelou cruel que Athena descobriu a têmpera do seu próprio carácter, uma impaciência intransigente para com a estupidez.

Boz começou a fazer aquelas coisas que os homens que odeiam as mulheres fazem. E Athena convenceu-se de que ele tinha enlouquecido.

Era sempre ele quem ia buscar a roupa à lavanderia, pois, como costumava dizer, "Querida, o teu tempo é muito mais precioso que o meu. Tens todas essas aulas especiais de teatro e de música, além do trabalho na universidade." E pensava que ela não notava o despeito e a censura, por causa do tom despreocupado da sua voz.

Um dia, Boz chegou a casa com os braços carregados de vestidos dela, quando Athena estava a tomar banho. Olhou de cima para ela, toda cabelos de ouro e pele branca, seios redondos e nádegas enfeitadas com salpicos de espuma. Com uma voz tensa, disse: "Que tal se eu atirasse esta porcaria toda para dentro da banheira?" Mas, em vez disso, pendurou os vestidos no armário, ajudou-a a sair da água e secou-a com uma toalha cor-de-rosa. Depois fizeram amor. Umas semanas mais tarde, a cena repetiu-se, mas desta vez ele atirou as roupas para dentro da banheira.

Certa noite ameaçou partir toda a louça que estava em cima da mesa, mas não o fez. Uma semana mais tarde, destruiu tudo o que havia na cozinha. Pedia sempre desculpa depois desta cenas, e tentava sempre ir para a cama com ela. Mas agora Athena repelia-o, e passaram a dormir em quartos separados.

Noutra ocasião, ao jantar, Boz levantou um punho e disse: "A tua cara é demasiado perfeita. Talvez se eu te partisse o nariz ficasses com mais carácter, como o Marlon Brando."

Athena correu para a cozinha e ele seguiu-a. Ela estava terrivelmente assustada e pegou numa faca. Boz riu-se e disse: "Essa é uma coisa que não sabes fazer." E tinha razão. Tirou-lhe a faca da mão com toda a facilidade. Depois acrescentou: "Estava só a brincar. O teu mal é não teres sentido de humor."

Athena, com vinte anos, poderia ter-se voltado para os pais em busca de ajuda, mas não o fez, e não tinha o costume de abrir-se com os amigos. Em vez disso, pensou muito bem em tudo aquilo, confiou na sua inteligência. Compreendeu que nunca conseguiria acabar a universidade, a situação era demasiado perigosa. Sabia que as autoridades não poderiam protegê-la. Considerou por instantes a possibilidade de se esforçar para que Boz voltasse a amá-la verdadeiramente, para que voltasse a ser o Boz dos velhos tempos, mas agora sentia uma tal aversão física por ele que não suportava sequer a idéia de sentir as mãos dele tocarem-lhe, e sabia que nunca seria capaz de fazer uma representação convincente de amor, embora a opção apelasse ao seu sentido dramático.

O que Boz fez e que finalmente a convenceu de que tinha de sair não teve nada a ver com ela, mas com Bethany.

Uma das suas brincadeiras habituais consistia em atirar a criança ao ar e fingir que não ia apanhá-la, só o fazendo no último instante. Mas, uma vez, deixou a menina cair, aparentemente por acidente, em cima do sofá. Até que, certo dia, a deixou muito deliberadamente cair no chão. Athena lançou um grito de horror e correu a pegar na bebé ao colo, para a acalmar, para a confortar. Passou a noite acordada, sentada junto do berço da filha, para se certificar de que estava bem. Bethany ficou com um grande galo na cabeça. Boz desculpou-se lacrimosamente, prometendo nunca mais repetir aquela brincadeira. Mas Athena tinha tomado uma decisão.

No dia seguinte, liquidou as suas contas bancárias. Estabeleceu um intricado plano de viagens, para que os seus movimentos não pudessem ser seguidos. Dois dias mais tarde, quando Boz chegou a casa, ela e a menina tinham desaparecido.

Seis meses depois, Athena reapareceu em Los Angeles, sem a filha, e iniciou a sua carreira. Arranjou sem dificuldade um agente de nível médio e começou a trabalhar em pequenos grupos de teatro. Foi primeira figura numa peça no Mark Taper Fórum, o que levou a pequenos papéis em pequenos filmes, até que foi escolhida para o papel secundário num filme de classe A. No seu próximo filme, tornou-se uma estrela "Cotável" e Boz Skannet reentrou na sua vida.

Conseguiu mantê-lo à distância durante os três anos seguintes, mas não ficou supreendida com o que ele fez na Academia. Um velho truque. Desta vez, apenas uma brincadeira... mas, da próxima, a garrafa estaria cheia de ácido. - Reina a maior das confusões nos estúdios - disse nessa manhã Molly Flanders a Claudia De Lena. - Um problema com a Athena Aquitane. Estão com medo que ela não volte a trabalhar no filme, por causa do ataque na atribuição dos Oscares. E o Bantz quer-te lá. Querem que fales com ela.

Claudia fora ao escritório de Molly acompanhada por Ernest Vail.

- Telefono-lhe logo que tivermos acabado - disse. - Ela não pode estar a falar a sério.

Molly Flanders era uma advogada especializada no mundo dos espectáculos, e, numa cidade cheia de pessoas temíveis, ela era a mais temida litigante no negócio do cinema. Adorava positivamente bater-se em tribunal, e ganhava quase sempre porque era uma grande actriz, além de ter um conhecimento profundo da lei.

Antes de optar por aquela especialização, fora uma das principais advogadas de defesa do estado da Califórnia. Livrara vinte assassinos da câmara de gás. O pior que qualquer desses seus clientes tivera de suportar foram uns poucos anos por homicídios de vários graus. Mas então os nervos tinham cedido e ela passara para o mundo do espectáculo, onde, como costumava dizer, havia menos sangue e os vilões eram muito mais perversos e mais espertos.

Agora representava realizadores de Classe A, Estrelas Cotáveis e argumentistas de primeiro plano. E, na manhã seguinte à atribuição dos Oscares, uma das suas clientes preferidas, Claudia De Lena, tinha ido procurá-la. Com ela estava o seu parceiro argumentista do momento, o em tempos famoso romancista Ernest Vail.

Claudia De Lena era uma velha amiga, e, embora uma das clientes menos importantes de Flanders, sem dúvida a mais íntima. Por isso, quando Claudia lhe pedira para tomar conta do caso de Vail, ela aceitara. Agora estava arrependida. Vail aparecera com um problema que nem sequer ela podia resolver. Além disso, era um homem pelo qual não conseguia sentir qualquer espécie de afecto, embora geralmente aprendesse a gostar até dos seus clientes assassinos. O que a fazia sentir-se um pouco culpada por ter de lhe dar as más notícias.

- Ernest - disse -, examinei todos os contratos, toda a papelada legal. E não faz sentido continuar o processo contra os LoddStone Studios. A única maneira de recuperar os seus direitos é bater a bota antes de o copy- right expirar. O que significa algures nos próximos cinco anos.

Dez anos antes, Ernest Vail fora o mais famoso romancista da América, elogiado pela crítica, lido por um vasto público. Um dos seus romances tinha uma personagem com as características típicas de um produto defran-chising, que a LoddStone explorara. Os estúdios compraram os direitos, fizeram o filme e obtiveram um êxito tremendo. Duas continuações proporcionaram igualmente lucros fabulosos. Agora, tinham quatro novas continuações na forja. Infelizmente para Vail, o seu primeiro contrato cedera aos estúdios todos os direitos sobre as personagens e o título, em todos os planetas do universo, para todas as formas de entretenimento, descobertas e por descobrir. O contrato padrão para os romancistas que ainda não tinham adquirido peso na indústria do cinema.

Ernest Vail era um homem que trazia sempre no rosto uma expressão azeda, sombria. E tinha boas razões para isso. Os críticos continuavam a aplaudir os seus livros, mas o público já não os lia. Além disso, a despeito do seu talento, transformara a sua vida numa perfeita desgraça. Nos últimos vinte anos, a mulher deixara-o, levando os três filhos consigo. Ganhara dinheiro com o seu único livro que passara com êxito ao cinema, mas isso fora apenas uma vez, enquanto os estúdios iam ganhar centenas de milhões ao longo dos anos.

Explique-me isso - pediu Vail.

Os contratos são à prova de fogo - disse Molly. - A Loddstone é a proprietária das suas personagens. Só há uma escapatória. Segundo a lei do direito de autor, quando morrer, os direitos de todas as suas obras revertem para os seus herdeiros.

Pela primeira vez, Vail sorriu.

- Libertação -- disse.

- De que tipo de dinheiro estamos aqui a falar? - perguntou Claudia.

Bastante - respondeu Molly. - Cinco por cento da receita bruta. Imaginemos que eles ainda espremem mais cinco filmes daquela história e não há grandes desastres. Com uma receita de um bilião, a nível mundial, estamos a falar de trinta ou quarenta milhões. - Fez uma curta pausa e sorriu sardonicamente. - Se estivesse morto, era capaz de arranjar para os seus herdeiros muito mais do que isso. Aí é que tínhamos mesmo a pistola apontada à cabeça deles.

Telefone aos tipos da LoddStone - pediu Vail. - Quero uma reunião. Vou convencê-los de que se não me derem uma parte, me mato.

Eles não vão acreditar - afirmou Molly.

Então mato-me mesmo!

Tem juízo - interveio Claudia, amistosamente. - Ernest, tens só cinqüenta e seis anos. És demasiado novo para morrer por dinheiro.

Por princípios, pelo bem do teu país, por amor, muito bem. Mas por dinheiro, não.

Tenho de olhar pela minha mulher e pelos meus filhos – declarou Vail.

A sua ex-mulher - corrigiu Molly. - E, pelo amor de Deus, já casou outras duas vezes depois disso.

Estou a falar da minha verdadeira mulher - insistiu Vail. – Da mãe dos meus filhos.

Molly percebeu por que razão ninguém em Hollywood gostava dele. Disse:

Os estúdios não vão dar-lhe aquilo que quer. Sabem que não se matará e não se deixarão levar pelo blefe de um escritor. Se fosse uma Estrela Cotável, talvez, um realizador Classe A, talvez. Mas um escritor, nunca. Vocês não passam de merda neste negócio. Desculpa, Claudia.

O Ernest sabe disso e eu sei disso - respondeu Claudia. - Se nesta cidade não tivessem todos um medo de morte de uma folha de papel em branco, corriam connosco de uma vez por todas. Mas não há mesmo nada que possas fazer?

Molly suspirou e ligou para Eli Marrion. Tinha peso suficiente para chegar a Bobby Bantz, o presidente da LoddStone.

Depois desta conversa, Claudia e Vail tinham ido beber um copo ao Polo Lounge.

- É uma mulher grande, essa tua amiga Molly - disse Vail, pensativamente. - As mulheres grandes são mais fáceis de seduzir. E são muito mais agradáveis na cama do que as mulheres pequenas. Nunca reparaste?

Claudia perguntou a si mesma, e não pela primeira vez, por que seria tão amiga de Vail. Poucas pessoas eram. Mas ela gostava dos romances dele. Continuava a gostar.

És um parvo chapado - atirou-lhe.

Não, a sério, as mulheres grandes são mais meigas. Levam-nos o pequeno-almoço à cama, fazem um monte de pequenas coisas por nós. Coisas femininas.

Claudia encolheu os ombros. Vail continuou:

- As mulheres grandes têm bom coração. Houve uma que me levou a casa uma noite, depois de uma festa, e não sabia mesmo o que fazer comigo. Pôs-se a olhar à volta, no quarto, exactamente como a minha mãe costumava olhar para a cozinha quando não havia nada que comer em casa e ela estava a tentar descobrir como preparar uma refeição Estava a perguntar a si mesma como diabo íamos nós divertir-nos com o material disponível.

Acabaram lentamente as bebidas. Claudia sentiu uma onda de ternura, como sempre que ele se mostrava assim aberto e desarmante.

Sabes como é que eu e a Molly nos tornámos amigas? - perguntou. - Ela estava a defender um tipo qualquer que tinha assassinado a namorada e precisava de um bom diálogo para ele usar no tribunal. Escrevi a cena como se fosse um filme, e o tipo safou-se com uma acusação de homicídio não premeditado. Acho que escrevi o diálogo e o enredo para três outros casos antes de acabarmos com aquilo.

Odeio Hollywood - disse Vail.

Só odeias Hollywood porque os tipos da LoddStone te lixaram com essa história do livro.

Não, não é só isso. Sou como aquelas civilizações antigas, os Astecas, ou os Impérios Chineses, ou os índios Américanos Nativos, que foram destruídas por pessoas com uma tecnologia mais sofisticada. Sou um escritor a sério. Escrevo romances que fazem apelo à inteligência. Esse tipo de escrita é uma tecnologia muito antiquada. Não consigo agüentar-me contra os filmes. Os filmes têm câmaras, têm cenários, têm música e têm aquelas caras muito grandes. Como é que um escritor pode conjurar tudo isso apenas com palavras? E os filmes estreitaram o campo de batalha. Não precisam de conquistar o cérebro, só o coração.

Vai-te lixar! E eu, não sou uma escritora? - respondeu-lhe Claudia. - Um argumentista não é um escritor? Só dizes isso porque não és bom nesse tipo de trabalho.

Vail deu-lhe uma palmadinha num ombro.

- Não estou a querer rebaixar-te - disse. - Nem sequer estou a querer rebaixar o cinema como arte. Estou apenas a definir.

- Tens a sorte de eu gostar dos teus livros. Não admira que ninguém aqui goste de ti.

Vail sorriu amavelmente.

Não, não - disse -, não é que não gostem de mim. Desprezam- -me. Mas quando os meus herdeiros recuperarem os direitos depois da minha morte, hão-de respeitar-me.

Não estás a falar a sério, pois não? - perguntou Claudia.

Acho que estou. E uma perspectiva muito tentadora. Suicídio. É politicamente incorrecto, nos tempos que correm?

Oh, merda! - exclamou Claudia. Passou um braço pelo pescoço de Vail. - A luta ainda agora está a começar - acrescentou. - Tenho a certeza de que eles vão ouvir quando eu defender o teu ponto de vista. Okay?

Vail sorriu-lhe.

- Não há pressa - disse Vail. - Vou demorar pelo menos seis meses a pensar como hei-de dar conta de mim. Detesto a violência.

Claudia compreendeu subitamente que Vail estava a falar a sério. Ficou surpreendida pelo pânico que sentiu ao pensar na morte dele. Não que o amasse, embora tivessem sido amantes durante um curto período de tempo. Não era sequer por ser muito amiga dele. Era a ideia de que os belos livros que escrevera pudessem ter menos força para ele do que o dinheiro. Que a arte dele pudesse deixar-se derrotar por um adversário tão desprezível como o dinheiro. Em desespero de causa, disse:

- Se as coisas correrem pelo pior, vamos a Las Vegas ver o meu irmão Cross. Ele gosta de ti. Há-de fazer qualquer coisa.

Vail riu-se.

- Ele não gosta assim tanto de mim.

O Cross tem bom coração. Conheço o meu irmão.

Não, não conheces - disse Vail.

Na noite da atribuição dos Oscares, Athena deixara o Dorothy Chan-dler Pavilion sem participar nas celebrações, regressara a casa e fora directamente para a cama. Deu voltas e voltas durante horas, sem conseguir dormir. Sentia todos os músculos do corpo tensos, como cordas de violino. Não vou deixá-lo fazer isto outra vez, pensou. Outra vez, não. Recuso-me a voltar a viver aterrorizada.

Preparou uma chávena de chá e tentou bebê-la, mas quando notou o ligeiro tremor da mão que a segurava impacientou-se, saiu para a varanda e encostou-se à balaustrada, a olhar para o escuro céu nocturno. Ficou ali durante horas, mas o seu coração continuava a bater descompassadamente, de terror.

Vestiu-se. Calções brancos e sapatos de ténis. E quando o sol vermelho começou a despontar acima do horizonte, correu. Correu cada vez mais depressa ao longo da praia, tentando manter-se na areia dura e molhada, tentando acompanhar a linha de espuma, enquanto a água fria lhe molhava os pés. Tinha de desanuviar a cabeça. Não podia deixar-se vencer por Boz. Trabalhara demasiado, durante demasiado tempo. E ele ia matá-la, não tinha a mínima dúvida a esse respeito. Mas primeiro havia de brincar com ela, atormentá-la, e finalmente havia de desfigurá-la, torná-la feia, pensando que essa seria a maneira de voltar a tê-la só para si. Sentiu a sua própria fúria a bater-lhe na garganta como um tambor, e depois o vento fresco a salpicar-lhe o rosto com água do mar. Não, jurou. Não!

Pensou nos estúdios. Iam ficar frenéticos, iam ameaçá-la. Mas era o dinheiro, e não ela, que os preocupava. Pensou na sua amiga Claudia, em como aquilo poderia ter sido a grande oportunidade dela, e sentiu-se triste. Pensou em todos os outros, mas sabia que não podia dar-se ao luxo de sentir compaixão. Boz era louco, e pessoas que não eram loucas iam tentar argumentar com ele. Ele era suficientemente esperto para os deixar pensar que podiam ganhar, mas ela sabia que não. Não podia correr aquele risco. Não podia permitir-se correr aquele risco...

Quando chegou junto das grandes rochas negras que assinalavam a extremidade norte da praia, estava completamente sem fôlego. Sentou-se, tentando acalmar o bater do coração. Levantou os olhos ao ouvir o grito das gaivotas que desciam dos ares em amplas curvas e pareciam deslizar sobre superfície das ondas. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas, mas limpou-as com um gesto de determinação. Engoliu o nó que se lhe formara na garganta. E, pela primeira vez em muito tempo, desejou que os pais não estivessem tão longe. Uma parte dela sentia-se como uma criança pequena e queria desesperadamente correr para casa, para alguém que a abraçasse e lhe dissesse que estava tudo bem. Sorriu para si mesma, um sorriso torcido e triste, ao recordar os tempos em que acreditara realmente que isso era possível. Agora, era tão amada por toda a gente, tão admirada, tão adorada... e depois? Sentiu-se mais vazia do que teria julgado possível qualquer ser humano sentir-se, mais sozinha. Por vezes, quando se imaginava uma mulher vulgar com o seu marido e os seus filhos, uma mulher que vivia uma vida normal, sentia tanta saudade. Pára com isso! ordenou a si mesma. Pensa. Agora é contigo. Arranja um plano e segue-o. Não é só a tua vida que depende de ti...

A manhã ia a meio quando regressou a casa. E entrou de cabeça erguida e os olhos a fitarem bem em frente. Sabia o que tinha a fazer.

Boz Skannet passou aquela noite na prisão. Quando foi posto em liberdade, o advogado dele organizou uma conferência de imprensa. Skannet disse aos jornalistas que estava casado com Athena Aquitane, embora não a visse havia dez anos, e que o que fizera fora uma simples brincadeira. o líquido era apenas água. Vaticinou que Athena não apresentaria queixa, dando a entender que sabia um segredo terrível a respeito dela. Neste ponto provou ter razão. Não foi apresentada queixa.

Nesse dia, Athena Aquitane informou a LoddStone Studios, os estúdios que estavam a rodar um dos filmes mais caros da história do cinema, que não voltaria ao trabalho. Devido ao ataque de que fora vítima, temia pela sua vida.

Sem ela, o filme, um épico histórico chamado Messalina, não podia ser acabado. Os cinquenta milhões de dólares já investidos seriam uma perda total. Também significava que, por causa daquilo, nunca mais nenhum grande estúdio se dignaria oferecer um papel a Athena Aquitane.

A LoddStone Studios emitiu um comunicado no qual se dizia que a sua estrela sofria de um caso extremo de exaustão mas que, dentro de um mês, estaria em condições de recomeçar as filmagens.

 

A LoddStone Studios era a mais poderosa produtora de filmes de Hollywood, mas mesmo assim a recusa de Athena Aquitane de voltar ao trabalho constituía uma brincadeira cara. Não era, felizmente, muito freqüente o simples "Talento" estar em situação de provocar um abalo tão grande, mas Messalina era a "locomotiva" do estúdio para a época de Natal, o grande filme que havia de impulsionar todas as outras produções da LoddStone durante o longo e duro Inverno.

Acontecia que o sábado seguinte era a data marcada para o Festival da Fraternidade, a festa de beneficência que todos os anos decorria na vasta propriedade de Eli Marrion, principal accionista e presidente do conselho de administração da LoddStone, em Beverly Hills.

Escondida nas ravinas sobranceiras a Beverly Hills, a casa de Eli Marrion era uma enorme mansão com vinte divisões, mas, estranhamente, um único quatro de cama. Eli Marrion não gostava que outras pessoas dormissem em sua casa. Havia bangalôs para os visitantes, claro, além de duas quadras de ténis e uma grande piscina. Seis das salas da mansão estavam reservadas à vasta colecção de quadros do proprietário Quinhentas das personalidades mais eminentes de Hollywood tinham sido convidadas para a festa, com a "entrada" a mil dólares por cabeça. Havia bares, e tendas-bufetes, e tendas para dançar, espalhados pelos terrenos, e havia uma banda. Mas o acesso à casa propriamente dita estava vedado. As instalações sanitárias eram asseguradas por unidades portáteis instaladas em tendas alegremente decoradas e inteligentemente concebidas.

A mansão, os bangalôs dos convidados, as quadras de ténis e a piscina estavam isolados por um cordão e guardados por seguranças. Nenhum dos convidados se sentiu ofendido por isto. Eli Marrion era uma personagem demasiado importante para que alguém se ofendesse com ele.

Enquanto os convidados deambulavam, conversando e dançando durante as três horas obrigatórias, Marrion encontrava-se na enorme sala de reuniões da mansão, reunido com um grupo de pessoas extremamente preocupadas com a conclusão do filme Messalina.

Eli Marrion dominava a reunião. O seu corpo tinha oitenta anos, mas tão habilmente disfarçados que ninguém lhe daria mais de sessenta. Os cabelos cinzentos, impecavelmente cortados, tinham o tom exacto de prateado, o fato escuro alargava-lhe os ombros, punha-lhe um pouco mais de carne sobre os ossos, disfarçava-lhe as canelas finas como tubos. Sapatos castanhos ancoravam-no à terra. A camisa branca era verticalmente atravessada por uma gravata rosa que lhe punha uma ligeira nota de cor na palidez acinzentada do rosto. Mas o seu domínio sobre a LoddStone Studios só era absoluto quando ele desejava que fosse. Havia alturas em que se tornava mais prudente deixar que meros mortais exercessem o seu livre arbítrio.

A recusa de Athena Aquitane de completar um filme em curso de produção era um problema suficientemente grave para merecer a atenção pessoal do próprio Marrion. Messalina, uma produção de cem milhões de dólares, a "locomotiva" do estúdio, com direitos para a TV, vídeo, cabo e mercados estrangeiros antecipadamente vendidos para cobrir os custos, era um tesouro dourado prestes a afundar-se, como um galeão espanhol, para nunca mais ser recuperado.

E havia a própria Athena. Com trinta anos, uma grande estrela, já contratada para uma outra superprodução da LoddStone. Um verdadeiro "Talento", que era o que havia de mais valioso. Marrion adorava o talento.

Tal como a dinamite, porém, o Talento podia ser perigoso, e era preciso controlá-lo. Para isso, havia que tratá-lo com amor, com lisonja na sua forma mais abjecta, cobri-lo de bens materiais. Havia que ser pai, mãe, irmão, irmã e até amante. Nenhum sacrifício era demasiado grande. Mas chegava uma altura em que se não podia ser fraco, em que era até imperioso ser implacável.

Por isso, reunidas ali naquela sala com Marrion, estavam as pessoas capazes de executar a sua vontade. Bobby Bantz, Skippy Deere, Melo Stuart e Dita Tommey.

Eli Marrion, ao enfrentá-los na sua familiar sala de reuniões, vinte milhões de dólares em quadros, mesas, cadeiras e alcatifas, com os copos e garrafas de cristal a somarem pelo menos mais meio milhão, sentia os ossos como que a quererem ceder dentro do seu corpo. Era espantoso como cada dia se tornava mais difícil apresentar-se ao mundo no papel da personagem toda-poderosa que era suposto ser.

As manhãs já não eram refrescantes, barbear-se, abotoar os botões da camisa, fazer o nó da gravata custava-lhe um esforço imenso. Mais perigosa ainda era a fraqueza mental, um mal que assumia a forma de piedade pelas pessoas menos poderosas do que ele. Estava a usar Bobby Bantz cada vez mais, a dar-lhe mais poder. Ao fim e ao cabo, o homem era trinta anos mais novo e o seu amigo mais chegado, sempre leal durante todo aquele tempo.

Bantz era presidente e executivo-chefe dos estúdios. Durante mais de trinta anos, fora o homem-de-mão de Marrion e, com passar do tempo, tinham-se tornado muito próximos, como pai e filho, como é costume dizer-se. Estavam perfeitos um para o outro. Depois dos setenta, Marrion começara a tornar-se demasiado mole para fazer certas coisas que tinham absolutamente de ser feitas.

Era Bantz quem pegava nos filmes, depois de os realizadores terem feito as suas montagens artísticas, e os tornava aceitáveis para o grande público. Era Bantz quem discutia percentagens com os realizadores, com as estrelas, com os escritores, e os obrigava a irem a tribunal para receberem ou chegarem a acordo por bastante menos. Era Bantz quem negociava contratos muito duros com os Talentos. Especialmente com os escritores.

Bantz recusava-se a conceder a mínima importância aos escritores. Claro que era preciso um texto qualquer para começar, mas Bantz acreditava que o êxito ou a morte de um filme dependiam da escolha dos actores. O poder das estrelas. Os realizadores eram importantes porque estavam em condições de roubar os olhos da cara a quem tinha de pagar. Os produtores, que também não eram nada pecos quando se tratava de meter a mão no saco, eram precisos para produzirem a energia louca que faz arrancar um filme.

Mas os escritores? Tudo o que tinham de fazer era rabiscar as tais palavras iniciais numa folha de papel em branco. Contratava-se então mais uma dúzia deles para trabalhar o produto original. Depois o produtor dava forma ao enredo. O realizador inventava "Cenas" (por vezes um filme completamente diferente) e as estrelas apareciam com novas inspirações para os diálogos. Era então a vez do Grupo Criativo do estúdio que, em longos memorandos cuidadosamente pensados, dava aos escritores opiniões, ideias para o enredo e listas de coisas que queriam ver incluídas. Bantz tinha visto muitos guiões de um milhão de dólares produzidos pelos mais importantes argumentistas, pagara muitos milhões só para verificar que, uma vez terminado, o filme não incluía uma única cena ou palavra de diálogo do texto original. Eli tinha, é certo, um fraquinho pelos escritores, mas isso só porque era tão fácil lixá-los nos contratos.

Marrion e Bantz tinham percorrido juntos o mundo, vendendo filmes a festivais de cinema e às grandes distribuidoras, em Londres, em Paris e em Cannes, em Tóquio e em Singapura. Tinham decidido a sorte de muitos jovens artistas. Tinham governado juntos um Império, como imperador e principal vassalo.

Eli Marrion e Bobby Bantz estavam de acordo em que os Talentos, aqueles que escreviam, representavam e realizavam os filmes, eram as pessoas mais ingratas deste mundo. Oh, aqueles jovens e puros aspirantes a artistas podiam ser tão simpáticos, tão gratos pela oportunidade que lhes era dada, tão dóceis enquanto lutavam por chegar ao topo! Mas como mudavam depois de conseguirem a fama! Abelhas transformadas em vespas raivosas. Era muito natural que Marrion e Bantz mantivessem um corpo de vinte advogados só para lidar com eles.

Por que seria que davam sempre tanta chatice? Que estavam sempre tão infelizes? Não havia a mínima dúvida, aqueles que procuravam o dinheiro e não a arte tinham carreiras muito mais longas, tiravam muito mais prazer da vida, eram pessoas melhores e socialmente muito mais apreciadas do que esses artistas que tentavam mostrar a centelha divina existente no ser humano. Era uma pena não se poder fazer um filme sobre isso. O dinheiro era muito mais saudável do que a arte e o amor. Mas o público nunca aceitaria esta verdade.

Bobby Bantz fora buscá-los à festa que continuava a decorrer nos jardins da mansão. O único Talento ali presente era a realizadora de Messalina, Dita Tommey, definitivamente "Classe A" e reconhecidamente a melhor a trabalhar com as estrelas do sexo feminino, o que de momento, em Hollywood, significava ser feminista e não homossexual. O facto de ela ser também lésbica era irrelevante para todos os homens reunidos na sala de conferências. Dita Tommey trabalhava dentro dos orçamentos, os seus filmes ganhavam dinheiro e as suas ligações com mulheres causavam menos problemas num filme do que quando os realizadores do sexo masculino se punham a ir para a cama com as actrizes. As amantes lésbicas das mulheres famosas eram sempre dóceis.

Eli Marrion sentou-se à cabeceira da mesa de reuniões e deixou Bantz conduzir o diálogo.

- Dita - começou Bantz -, diz-nos exactamente qual é a situação no que respeita ao filme e quais são as tuas ideias sobre como resolver a situação. Raios, ainda nem sequer compreendemos o problema.

Tommey era uma mulher baixa e compacta, que ia sempre direita ao assunto.

- A Athena está mortalmente assustada. Não voltará ao trabalho a menos que vocês, os génios, descubram qualquer coisa capaz de eliminar esse medo. Se ela não voltar, vocês ficam sem cinqüenta milhões de dólares. Não podemos acabar o filme sem ela. - Fez uma pequena pausa antes de acrescentar: - Filmei as cenas em que ela não entra a semana passada, de modo que lhes poupei aí alguma coisa.

- Porra de filme - rosnou Bantz. - Nunca quis fazê-lo.

Isto provocou a reacção dos outros homens presentes na sala; o produtor, Skippy Deere, disse: "Vai-te lixar, Bobby!", e Melo Stuart, o agente de Athena Aquitane, resmungou: "Tretas."

Na realidade, Messalina fora entusiasticamente apoiado por todos eles. Recebera uma das "luzes verdes" mais fáceis da história.

Messalina contava a história do Império Romano no tempo do imperador Cláudio, mas de uma perspectiva feminista. A História, escrita por homens, descrevia a imperatriz Messalina como uma rameira corrupta e assassina, que certa noite conduziu toda a população de Roma numa orgia de deboche sexual. Mas no filme que recriava a sua vida quase dois mil anos antes, ela aparecia como uma heroína trágica, uma Antígona, uma nova Medeia. Uma mulher que, usando as únicas armas ao seu alcance, tentara modificar um mundo em que os homens eram de tal modo dominadores que tratavam os membros do sexo feminino, quase metade da raça humana, como se fossem escravos.

Era uma ideia genial - grandes cenas de sexo e um tema forte e altamente popular - mas que exigia um conjunto perfeito para tornar credível toda aquela história. Em primeiro lugar, Claudia De Lena escrevera um guião interessante e com uma linha narrativa forte. A escolha de Dita Tommey para realizadora fora uma opção pragmática e politicamente correcta. A mulher tinha uma inteligência seca e era uma excelente realizadora. Athena Aquitane era perfeita como Messalina e até ao momento dominara completamente o filme. Era deslumbrantemente bela de cara e de corpo, e a maneira genial como representava tornava tudo plausível. Mais do que isso, era uma das únicas três Estrelas Cotáveis do sexo feminino existentes em todo o mundo. Claudia, com o seu génio um pouco extravagante, dera-lhe inclusivamente uma cena em que Messalina, seduzida pelo poder crescente das lendas cristãs, salvava alguns mártires condenados à morte no circo. Quando Tommey lera a cena, dissera a Claudia: "Eh, há um limite!" Claudia sorrira e respondera: "No cinema, não."

Temos de interromper o filme até que a Athena volte ao trabalho - disse Skippy Deere. - Isso vai custar-nos cento e cinquenta mil por dia. A situação é a seguinte. Gastámos cinquenta milhões. Estamos a meio caminho, não podemos correr com a Athena e não podemos obrigá-la. Por tanto, se ela não regressa, deitamos o filme para a sucata.

Não podemos deitar o filme para a sucata - replicou Bantz. - O seguro não cobre a recusa ao trabalho dos actores. Atirem-na de um avião, e nesse caso o seguro paga. Melo, é a si que compete fazê-la voltar. A responsabilidade é sua.

Sou o agente dela - protestou Melo Stuart -, mas há um limite para a influência que qualquer pessoa pode ter sobre uma mulher como a Athena. Deixe-me dizer-lhe isto. Ela está genuinamente assustada. Não se trata de uma dessas coisas temperamentais. Está assustada, mas é uma mulher inteligente, de modo que deve ter uma boa razão. Trata-se de uma situação muito perigosa, muito delicada.

Se ela lixar um filme de cem milhões de dólares - declarou Bantz -, nunca mais voltará a trabalhar. Disse-lhe isso?

Ela sabe.

Quem é a pessoa mais indicada para falar com ela? - perguntou Bantz. - Skippy, tu já tentaste e falhaste. Dita, sei que fizeste o melhor possível. Até eu tentei!

Tu não contas, Bobby - atirou-lhe Ditta Tommey. - Ela detesta-te.

Pois sim - replicou Bantz, duramente. - Há muita gente que não gosta do meu estilo, mas mesmo assim continua a ouvir o que eu digo.

Bobby - interveio Tommey, conciliadoramente -, nenhum dos Talentos gosta de ti, mas a Athena não gosta de ti pessoalmente.

Dei-lhe o papel que fez dela uma estrela - resmungou Bantz.

Ela já nasceu estrela - contrapôs Stuart, calmamente. - Teve sorte em apanhá-la.

Dita, tu és amiga dela - insistiu Bantz. - É tua obrigação fazê-la voltar ao trabalho.

A Athena não é minha amiga. É uma colega que me respeita porque, depois de ter tentado engatá-la, desisti graciosamente sem insistir. Ao contrário de ti, Bobby. Há anos que andas a insistir.

Dita - perguntou Bobby, num tom falsamente amável - quem diabo é ela para nos lixar desta maneira? Eli, tens de impor a lei!

Todas as atenções se voltaram para o velho, que parecia entediado. Eli Marrion era tão magro que certa vez um actor dissera por brincadeira que devia usar uma borracha no alto da cabeça, mas o comentário fora mais malicioso do que apropriado. Marrion tinha uma cabeça comparativamente grande e uma cara de gorila que poderia pertencer a um homem muito mais pesado, com um nariz largo e uma boca fina; era, no entanto, uma cara curiosamente benévola, quase meiga, havia até quem dissesse atraente. Mas os olhos traíam-no: eram cinzentos e frios, e irradiavam uma inteligência e uma concentração tão absolutas que assustavam a maior parte das pessoas. Era talvez por essa razão que insistia com toda a gente para que o tratasse pelo primeiro nome.

Marrion falou numa voz despida de emoção:

- Se a Athena não os ouve a vocês, também não me ouvirá a mim. A minha posição de autoridade não a intimidará. O que torna ainda mais intrigante o facto de ela estar tão assustada por causa do estúpido ataque daquele maluco. Não haverá maneira de resolver isto com dinheiro?

- Vamos tentar - disse Bantz.- Mas para Athena não fará a mínima diferença. Não confia nele.

Skippy Deere, o produtor, interveio na conversa:

Já tentámos a força. Pedi a uns amigos meus na polícia que lhe dessem um apertão, mas o tipo é duro. A família tem dinheiro e relações políticas, e ainda por cima o homem é maluco.

Quanto exactamente é que o estúdio perde se matar o filme? - perguntou Stuart. - Farei o melhor que puder para os compensar em futuros negócios.

Ninguém ali estava interessado em dizer a Stuart a verdadeira extensão dos prejuízos; como agente de Athena, a informação dar-lhe-ia um importante poder negocial. Marrion não respondeu, mas fez um gesto de cabeça na direcção de Bantz.

Ainda que relutantemente, Bantz começou:

- O dinheiro gasto até agora foram cinquenta milhões. Okay, podemos aguentar-nos com cinquenta milhões. Mas vamos ter de devolver o dinheiro do estrangeiro, o dinheiro do vídeo, e ficamos sem locomotiva para o Natal.

Isso pode custar-nos - fez uma pausa, incapaz de decidir-se a revelar o valor exacto. - E depois, se somarmos os lucros perdidos... merda, duzentos milhões de dólares. Teria de dar um jeito numa grande porção de negócios, Melo.

Stuart sorriu, a pensar que ia ter de subir a cotação de Athena.

- Mas verdadeiramente, em dinheiro saído do vosso bolso, perdem só cinquenta milhões - disse.

Quando Marrion falou, a sua voz tinha perdido toda a gentileza.

- Melo - perguntou -, quanto é que vai custar-nos fazer a sua cliente voltar ao trabalho?

Todos compreenderam o que se tinha passado. Marrion decidira agir como se aquilo fosse uma manobra para conseguir mais dinheiro.

Melo leu a mensagem. Quanto é que vais arrancar-nos com esta tua aldra-bicezinha? Aquilo era um ataque à sua honestidade, mas não tinha a mínima intenção de se dar por ofendido. Com Marrion, nunca. Se tivesse sido Bantz a fazer a pergunta, ter-se-ia mostrado adequadamente indignado.

Stuart era um homem muito poderoso no mundo do cinema. Não tinha de lamber as botas a ninguém, nem sequer a Marrion. Controlava uma "escuderia" de cinco realizadores Classe A, não estritamente Cotáveis, mas sem dúvida muito fortes; dois actores Cotáveis e uma actriz, Athena. O que significava que tinha três pessoas capazes de garantir a luz verde para qualquer filme. Mas mesmo assim não seria sensato irritar Marrion. Stuart tornara-se poderoso evitando precisamente esse tipo de riscos. Claro que aquela parecia a ocasião ideal para dar um golpe, mas na verdade não. Era uma dessas raras ocasiões em que a honestidade compensa.

Um dos grandes trunfos de Stuart era a sua sinceridade: acreditava verdadeiramente naquilo que vendia, e acreditara no talento de Athena dez anos antes, quando ela era uma desconhecida. Acreditava nela agora. Mas, se conseguisse fazê-la mudar de ideias e voltar ao trabalho? Com certeza isso havia de valer alguma coisa. Era uma opção que não se podia pôr de parte.

- Não é uma questão de dinheiro - disse, apaixonadamente. Sentiu a exaltação da sua própria sinceridade. - Podiam oferecer-lhe mais um milhão e mesmo assim ela não voltava. Têm de resolver o problema do raio do marido.

Fez-se um silêncio pesado. Estavam todos muito atentos. Fora mencionada uma quantia em dinheiro. Tratar-se-ia de uma jogada de abertura?

- Ela não aceita dinheiro - confirmou Skippy Deere.

Dita Tommey encolheu os ombros. Não acreditava numa palavra do que Melo dissera. Mas o dinheiro não era dela. Bantz limitou-se a manter os olhos cravados em Stuart, que continuou a olhar friamente para Marrion.

Marrion analisou correctamente o comentário de Stuart. Athena não voltaria por dinheiro. O Talento nunca tinha destas astúcias. Decidiu pôr termo à reunião. Disse:

- Melo, explique muito claramente à sua cliente que se não volta ao trabalho dentro de um mês, os estúdios abandonam o filme e arcam com os prejuízos. Depois processamo-la e arrancamos-lhe tudo o que tem. Ela deve saber que depois disto não voltará a trabalhar para nenhum dos principais estúdios americanos. - Passeou os olhos em torno da mesa. - Que diabo, são apenas cinquenta milhões.

Todos sabiam que estava a falar a sério, que tinha perdido a paciência. Dita Tommey entrou em pânico. Aquele filme representava mais para ela do que para qualquer dos outros. Era o seu filho. Se tivesse êxito, passaria a contar-se entre o grupo dos realizadores Cotáveis. Bastaria o seu OK para conseguir uma luz verde. Levada pelo desespero, disse:

- Peçam à Claudia De Lena que fale com ela. E uma das amigas mais íntimas de Athena.

Os homens presentes na sala ficaram estupefactos por Tommey ter trazido à baila o nome de uma escritora numa reunião daquele nível e por pensar que uma estrela com a dimensão de Athena daria ouvidos a uma simples argumentista, por muito boa que ela fosse.

- Nem sei o que é pior - resmungou Bobby Bantz, depreciativamente -, se uma estrela andar a fornicar com alguém abaixo da linha ou ser amiga de uma escritora.

Ao ouvir isto, Marrion perdeu novamente a paciência.

- Bobby, não tragas coisas sem importância para uma reunião de negócios. A Claudia que fale com ela. Mas resolvamos este assunto de uma maneira ou de outra. Temos outros filmes para fazer.

No dia seguinte, porém, chegou aos escritórios da LoddStone Studios um cheque de cinco milhões de dólares. Era de Athena Aquitane. Estava a devolver o adiantamento que recebera para fazer Messalina.

O assunto estava agora nas mãos dos advogados.

Em apenas quinze anos, Andrew Pollard fizera da Pacific Ocean Securi-ty a mais prestigiada organização de protecção da Costa Oeste. Tendo começado num conjunto de quartos de hotel, possuía agora um edifício de quatro andares em Santa Monica, com mais de cinquenta empregados permanentes, quinhentos investigadores e guardas em regime de freelance e ainda um grupo de reserva variável que trabalhava para ele durante uma boa parte do ano.

A Pacific Ocean Security prestava serviços aos muito ricos e muito famosos. Protegia as casas dos magnatas do cinema com pessoal armado e aparelhagem electrónica. Fornecia guarda-costas às grandes estrelas e produtores. Providenciava pessoal uniformizado para o controlo de multidões em grandes acontecimentos dos media como, por exemplo, a cerimónia da atribuição dos Óscares. Fazia trabalho de investigação em áreas sensíveis, como obter contra-informação destinada a combater tentativas de chantagem.

Andrew Pollard teve êxito porque era um maníaco do pormenor. Colocava nos terrenos das casas dos seus clientes ricos sinais luminosos com as palavras RESPOSTA ARMADA que à noite flamejavam numa explosão de luzes vermelhas, e as suas patrulhas rondavam continuamente a vizinhança das grandes mansões muradas. Escolhendo cuidadosamente os seus colaboradores, pagava salários suficientemente altos para que estes se preocupassem com a possibilidade de perderem o emprego. Podia dar-se ao luxo de ser generoso. Os seus clientes eram as pessoas mais ricas do país, e pagavam correspondentemente. Era também suficientemente esperto para manter uma estreita relação de trabalho com o Departamento de Polícia de Los Angeles, a todos os níveis. Era amigo de Jim Losey, o lendário detective que se tornara um ídolo para os polícias de rua. Mas, acima de tudo, tinha o apoio da Família Clericuzio.

Quinze anos antes, quando era apenas um jovem polícia, ainda um pouco descuidado, fora apanhado pela Unidade de Assuntos Internos do Departamento de Polícia de Nova Iorque. Tratara-se de um pequeno suborno, quase impossível de evitar. Mas Pollard mantivera-se firme e recusara-se a denunciar os seus superiores envolvidos no esquema. Os apaniguados da Família Clericuzio observaram isto e puseram em movimento uma série de movimentos legais dos quais resultara que fora feita a Andrew Pollard a seguinte proposta: demitir-se do Departamento de Polícia de Nova Iorque e escapar ao castigo.

Pollard emigrara para Los Angeles com a mulher e o filho, e a Família dera-lhe o dinheiro necessário para montar a Pacific Ocean Security Com-pany. Depois, a Família fez constar que os clientes de Pollard não deviam ser incomodados, as suas casas não podiam ser arrombadas, as suas pessoas não deviam ser assaltadas, as suas jóias não podiam ser roubadas e, caso fossem, por engano, deviam ser devolvidas. Por isso os refulgentes sinais com as palavras RESPOSTA ARMADA incluíam também o nome da empresa encarregada da protecção.

O êxito de Andrew Pollard era quase mágico, as casas colocadas sob a sua protecção nunca eram tocadas. Os seus guarda-costas eram quase tão bem treinados como os homens do FBI, de modo que a empresa nunca era processada por crimes praticados pelos seus próprios agentes, assédio sexual contra os empregadores ou abuso sexual de crianças, tudo ocorrências frequentes no mundo da segurança privada. Havia alguns casos de tentativa de chantagem, e havia alguns guardas que vendiam segredos íntimos aos jornais de escândalos, mas isso era inevitável. No cômputo geral, Pollard dirigia uma actividade limpa e eficiente.

A sua empresa tinha acesso por computador a informações confidenciais sobre pessoas de todos os estratos da sociedade. E era muito natural que quando a Família Clericuzio precisava de dados, estes lhe fossem imediatamente fornecidos. Pollard ganhava muito bem a vida e estava agradecido à Família. Por outro lado, aparecia de vez em quando um trabalho que não podia pedir a um dos seus guardas para fazer; nessas ocasiões ia ter com o bruglione do Oeste, que o ajudava fornecendo a mão-de-obra especializada.

Para certos predadores mais astutos, Los Angeles e Hollywood eram uma espécie de selva paradisíaca, fervilhante de vítimas. Havia os executivos do mundo do cinema atraídos para as armadilhas amorosas dos chantagistas, as estrelas que escondiam a sua homossexualidade, os realizadores Sado-masoquistas, os produtores pedófilos, todos vivendo no pavor de que os seus segredos deixassem de o ser. Pollard era conhecido por tratar estes casos com delicadeza e discrição. Sabia negociar o pagamento mais baixo possível e tomar as medidas necessárias para que não houvesse segunda "dentada".

Bobby Bantz chamou Andrew Pollard ao seu gabinete no dia seguinte ao da atribuição dos Óscares.

Quero toda a informação que conseguir juntar sobre este tipo Boz Skannet - disse a Pollard. - Quero tudo o que houver a respeito da Athena Aquitane. Para uma estrela desta dimensão, não sabemos quase nada a seu respeito. Também quero que chegue a um acordo com esse Skannet. Precisamos da Athena por mais três a seis meses, para acabar o filme. Arranje as coisas com o Skannet de modo que ele desapareça para longe. Ofereça-lhe vinte mil por mês, mas pode ir até aos cem.

E depois disso ele pode fazer o que quiser? - perguntou Pollard, calmamente.

Depois, o caso é com as autoridades - respondeu Bantz. - Vai ter de andar com muito cuidado, Andrew. Este tipo pertence a uma família poderosa. A indústria cinematográfica não pode ser acusada de tácticas menos ortodoxas; isso iria arruinar o filme e prejudicar os estúdios. Limite-se a chegar a um acordo. Vamos também usar a sua empresa para garantir a segurança pessoal dela.

E se ele não aceitar o acordo? -perguntou Pollard.

Nesse caso, terão de guardá-la noite e dia. Até o filme estar acabado.

Podíamos apertar um pouco com ele - propôs Pollard.- De uma maneira legal, claro. Não estou a sugerir coisa nenhuma.

O tipo está demasiado bem relacionado. As autoridades policiais tratam-no com luvas de veludo. Até o Jim Losey, que é tão amigo do Skippy Deere, se recusa a recorrer à força. Além do problema de relações públicas, os estúdios poderiam ser processados numa enorme quantidade de dinheiro. Não quero com isto dizer que deva tratá-lo como uma flor de estufa, mas...

Pollard percebeu a mensagem. Um pouco de músculo para assustar o homem, mas pagar-lhe o que ele quiser.

- Vou precisar de contratos - disse.

Bantz tirou um sobrescrito da gaveta da secretária.

- Ele assina três vias, e está aí um cheque de cinquenta mil dólares como pagamento inicial. Os valores no contrato estão em aberto. Preencha-os você depois de fazer o acordo.

Quando Pollard já ia a sair, Bantz acrescentou:

- A sua gente não ajudou muito na atribuição dos Óscares. Parecia que tinham a porra dos pés colados ao chão.

Pollard não se ofendeu. Bantz era assim mesmo.

- Era pessoal vulgar, para controlo de multidões. Não se preocupe, vou pôr a minha melhor equipa a tratar de Miss Aquitane.

Vinte e quatro horas mais tarde, os computadores da Pacific Ocean Security sabiam tudo a respeito de Boz Skannet. Tinha trinta e quatro anos, licenciara-se pela A&M do Texas, onde jogara como avançado na equipa local, tendo feito em seguida uma época no futebol profissional. O pai era proprietário de um banco de média dimensão, em Houston, mas, mais importante do que isso, o tio dirigia a máquina política dos democratas no Texas e era amigo íntimo do presidente. A mistura com tudo isto, havia uma grande porção de dinheiro.

Boz Skannet era em si mesmo uma peça de respeito. Como vice-presidente do banco do pai escapara por uma unha negra a ver-se inculpado numa tramóia relacionada com o licenciamento de uma exploração petrolífera. Fora preso seis vezes por ofensas corporais. Num desses casos, espancara tão brutalmente dois agentes da polícia que estes tinham sido hospitalizados. Não chegara a ser acusado, pois pagara aos polícias para não apresentarem queixa. Havia um caso de assédio sexual, resolvido extrajudicialmente. Antes de tudo isto, casara com Athena aos vinte e um anos e fora pai de uma menina no ano seguinte. A criança chamava-se Bethany. Com vinte anos de idade, a mulher desaparecera, levando a filha.

Tudo isto deu a Andrew Pollard uma imagem do que tinha pela frente. Um tipo perigoso. Um tipo que guardava rancor contra a mulher durante dez anos, um tipo que enfrentava polícias armados e era suficientemente duro para os mandar para o hospital. As possibilidades de assustar um homem assim eram nulas. Era pagar-lhe o dinheiro, fazê-lo assinar o contrato e não se envolver mais naquela história.

Pollard telefonou a Jim Losey, que estava a tratar do caso Skannet na Polícia de Los Angeles. Pollard admirava muitíssimo Losey, que era o polícia que ele teria gostado de ser. Tinham uma boa relação funcional. Todos os anos, no Natal, Losey recebia um bom presente da Pacific Ocean Security. Agora Pollard queria o material da polícia, queria saber tudo o que Losey tinha a respeito daquele caso.

Jim - pediu Pollard -, podes mandar-me o que tiveres sobre o Boz Skannet? Preciso da morada do homem em L. A. E gostaria de saber mais coisas a respeito dele.

Claro - respondeu Losey. - Mas as queixas contra ele foram retiradas. Qual é o teu interesse nisto?

Serviço de protecção. Até que ponto é que o tipo é perigoso?

- é doido como o raio que o parta. Diz à tua equipa de guarda-costas que se o virem aproximar-se o melhor é começarem a disparar.

- Nesse caso tu prendias-me - disse Pollard, com uma gargalhada. - é contra a lei.

- Pois é - respondeu Losey. - Tinha de ser. Puta de vida.

Boz Skannet estava instalado num modesto hotel da Ocean Avenue, em Santa Monica, o que preocupou Pollard, porque ficava apenas a quinze minutos de carro da casa de Athena, na Malibu Colony.

Mandou uma equipa de quatro homens guardar a casa de Athena e pôs dois de vigilância ao hotel de Skannet. Depois combinou um encontro com o próprio Skannet, nessa tarde.

Pollard levou consigo três dos seus homens mais fortes e mais duros. Com um tipo como Skannet, nunca se sabia o que podia acontecer.

Skannet levou-os para a suite que ocupava no hotel. Mostrou-se afável, recebeu-os com um sorriso, mas não ofereceu bebidas. Curiosamente, vestia um fato completo, com camisa e gravata, talvez para mostrar que, ao fim e ao cabo, continuava a ser um banqueiro. Pollard apresentou-se a si mesmo e aos seus guarda-costas, que se identificaram como funcionários da Pacific Ocean Security. Skannet sorriu-lhes e disse:

- Não há dúvida que são grandes. Aposto cem dólares em como sou capaz de dar conta de qualquer um de vocês numa luta limpa.

Os três guarda-costas, todos homens bem treinados, limitaram-se a sorrir-lhe delicadamente, mas Pollard ofendeu-se. Um gesto calculado.

- Estamos aqui para falar de negócios, Mr. Skannet - disse -, não para ouvir ameaças. A LoddStone Studios está preparada para lhe pagar imediatamente cinquenta mil dólares e mais vinte mil por mês durante oito meses. Tudo o que precisa fazer é sair de Los Angeles.

Pollard tirou da pasta os contratos e o cheque. Skannet estudou-os.

Contratos muito simples - comentou. - Nem sequer preciso de um advogado. Mas também é pouco dinheiro. Estava a pensar em cem mil agora e cinquenta mil por mês.

É demasiado - disse Pollard. - Temos uma ordem restritiva contra si assinada por um juiz. Aproxime-se a menos de um quarteirão de distância de Athena e vai preso. Temos segurança montada em torno da sua mulher vinte e quatro horas por dia. E montei equipas de vigilância para acompanharem todos os seus movimentos. O melhor para si é aceitar este dinheiro.

Devia ter vindo mais cedo para a Califórnia - troçou Skannet. - As ruas estão pavimentadas a ouro. Por que é que hão-de pagar-me seja o que for?

Os estúdios querem tranquilizar Miss Aquitane - respondeu Pollard.

Ela é realmente uma grande estrela - disse Skannet, divertido. Bom, sempre foi especial. E pensar que costumava comê-la cinco vezes por dia. - Sorriu aos três homens. - E inteligente, ainda por cima.

Pollard estudou-o com curiosidade. Era um tipo atraente, no género do duro cowboy da Marlboro que aparece nos anúncios dos cigarros, excepto que tinha uma pele vermelha do sol e do álcool e uma constituição física mais maciça. Falava com aquele encantador sotaque do Sul, que era simultaneamente divertido e perigoso. Muitas mulheres apaixonavam-se por homens assim. Em Nova Iorque, conhecera alguns polícias com aquele aspecto, e costumavam fazer autênticas razias entre o sexo oposto. Mandava-se um deles tratar de um caso de homicídio, e uma semana mais tarde estava a consolar a viúva. Jim Losey era um polícia desse tipo, agora que pensava nisso. Pollard nunca tivera essa sorte.

- Limitemo-nos ao nosso negócio - disse. Queria que Skannet assinasse o contrato e recebesse o cheque diante de testemunhas. Depois, se houvesse necessidade disso, talvez os estúdios pudessem processá-lo por extorsão.

Skannet sentou-se à mesa.

- Tem uma caneta? - perguntou.

Pollard tirou a sua caneta da pasta e escreveu a quantia de vinte mil dólares nos espaços em branco. Skannet reparou nisto e comentou, divertido:

Ah, podia então ter pedido mais! - Assinou as três cópias e perguntou:- Quando é que tenho de sair de Los Angeles?

Esta mesma noite - respondeu Pollard. - Eu acompanho-o ao avião.

Não, obrigado - recusou Skannet. - Acho que vou de carro até Las Vegas jogar este cheque.

Estarei a vigiá-lo - avisou Pollard. Chegara o momento, pensou, em que convinha fazer uma sugestão de força. - Deixe-me avisá-lo, se volta a aparecer em Los Angeles, mando-o prender por extorsão.

O rosto vermelho de Skannet brilhou de alegria.

- Bem gostava - disse. - Ainda hei-de ser tão famoso como a Athena.

Nessa noite, a equipa de vigilância informou que Boz Skannet abandonara o hotel em Santa Monica, mas só para ir instalar-se no Beverly Hills Hotel, e que depositara os cinquenta mil dólares numa conta que tinha no Bank of América. Isto indicou a Pollard um certo número de coisas. Que Skannet dispunha de influência, uma vez que conseguira instalar-se no Beverly Hills Hotel, e que se estava nas tintas para o acordo que fizera. Comunicou a Bantz o que acabava de saber e pediu instruções. Bantz disse-lhe que se conservasse quieto e calado. Tinham mostrado o contrato a Athena, numa tentativa de tranquilizá-la e fazê-la regressar ao trabalho. Não disse a Pollard que ela se limitara a rir-se-lhes na cara.

- Pode anular o cheque - sugeriu Pollard.

Não - respondeu Bantz. - Ele levanta-o, e então apanhamo-lo por fraude, extorsão, ou seja lá o que for. Só não quero que a Athena saiba que ele continua na cidade.

Vou duplicar a segurança dela - disse Pollard. - Mas se o tipo é doido, e se quiser realmente fazer-lhe mal, não vai adiantar nada.

Está a fazer blefe - afirmou Bantz. - Se não o fez da primeira vez, por que haveria de fazê-lo agora?

Eu digo-lhe porquê - respondeu Pollard. - Fomos visitar o quarto dele. Adivinhe o que encontrámos? Um frasco com ácido a sério.

- Oh, merda! - exclamou Bantz. - Não pode dizer à polícia? Ao Jim Losey, talvez?

Possuir um frasco com ácido não é crime. Entrar por arrombamento num quarto, é. O Skannet pode mandar-me para a prisão.

Você nunca me disse nada disto - decidiu Bantz. - Nunca tivemos esta conversa. E esqueça o que sabe.

Com certeza, Mr. Bantz - respondeu Pollard. - E nem sequer vou debitar-lhe a informação.

Obrigadinho - disse Bantz, sarcasticamente. - Vá dando notícias.

Claudia foi posta ao corrente do que se passava por Skippy Deere. E instruída sobre o que fazer, como era próprio dos respectivos papéis de produtor e argumentista num filme.

- Tens positivamente de lamber as botas à Athena - disse-lhe Deere. - Tens de suplicar, tens de chorar, tens de ter um ataque de nervos. Tens de recordar-lhe tudo o que fizeste por ela como amiga íntima e verdadeira e como companheira de trabalho. Tens de convencê-la a voltar ao filme.

Claudia estava habituada a Skippy.

- Porquê eu? - perguntou friamente. - Tu és o produtor, a Dita a realizadora, o Bantz é presidente da LoddStone. Vão vocês lamber-lhe as botas. Têm mais experiência do que eu.

- Porque este sempre foi um projecto teu - insistiu Deere. - Escreveste o guião original, escolheste-me a mim e escolheste a Athena. Se o projecto falhar, o teu nome ficará ligado a esse falhanço.

Quando Deere saiu e ficou sozinha no seu gabinete, Claudia soube que ele tinha razão. No seu desespero, lembrou-se do irmão, Cross. Ele era a única pessoa que podia ajudá-la, ajudá-la a fazer desaparecer aquele problema chamado Boz Skannet. Detestava a ideia de servir-se da sua amizade por Athena para tentar convencê-la, e mesmo assim era muito provável que ela se recusasse a dar-lhe ouvidos. Mas Cross nunca o faria. Nunca o tinha feito.

Ligou para o Xanadu Hotel, em Vegas, mas disseram-lhe que Cross estaria em Quogue durante os próximos dias. Isto trouxe-lhe de volta todas as recordações de infância que sempre tentara esquecer. Nunca telefonaria para o irmão em Quogue. Nunca mais voltaria a ter, voluntariamente, fosse o que fosse a ver com os Clericuzio. Nunca mais queria recordar a sua infância, nem lembrar-se do pai ou de qualquer dos Clericuzio.

Livro II

Os Clericuzio e Pippi De Lena.

 

A lenda de ferocidade da família Clericuzio nascera havia mais de um século, na Sicília. Durante vinte anos, os Clericuzio tinham travado uma guerra sem quartel com uma família rival, a propósito dos direitos de propriedade de um pedaço de floresta. O patriarca da família adversária, Don Pietra Forlenza, encontrava-se no seu leito de morte, tendo sobrevivido a oitenta e cinco anos de lutas apenas para tombar vitimado por uma trombose que, na previsão do médico, lhe poria termo à vida no espaço de uma semana. Um membro dos Clericuzio conseguiu entrar no quarto do moribundo e matou-o à facada, gritando que o velho não tinha direito a uma morte tranquila.

Don Domenico Clericuzio contava frequentemente esta história de assassínio apenas para mostrar a loucura dos antigos costumes, para fazer notar que a ferocidade gratuita não passava de fanfarronice. A ferocidade era uma arma demasiado poderosa para ser desperdiçada, tinha sempre de ter um propósito importante.

E podia sem dúvida prová-lo, pois fora a ferocidade que levara à destruição da Família Clericuzio na Sicília. Quando Mussolini e os seus fascistas assumiram o poder absoluto em Itália, compreenderam imediatamente que a Máfia tinha de ser destruída. Fizeram-no suspendendo a aplicação normal das leis e usando uma força armada irresistível. A Máfia foi vencida à custa de milhares de inocentes enviados para a prisão ou para o exílio juntamente com os seus membros.

Só o clã Clericuzio teve a audácia de se opor pela força aos decretos dos fascistas. Assassinaram um prefeito fascista local, atacaram as guarnições fascistas. E, o que foi talvez o acto que mais enfureceu os seus inimigos, quando Mussolini fez um discurso em Palermo, roubaram-lhe o chapéu-de-coco e o guarda-chuva importados de Inglaterra, de que ele tanto gostava. Foi este toque de desprezo e de humor camponês, ao fazer de Mussolini o alvo da risota de toda a Sicília, que levou finalmente à destruição da família.

Houve uma concentração maciça de forças armadas na província. Quinhentos membros do clã Clericuzio foram pura e simplesmente mortos. Outros quinhentos foram exilados para áridas ilhas do Mediterrâneo, que serviam de colónias penais. Só o núcleo mais restrito dos Clericuzio sobreviveu, e família despachou o jovem Domenico para a América. Onde, provando que quem sai aos seus não degenera, Don Domenico Clericuzio construiu o seu próprio império; com muito mais astúcia e previsão do que os seus antepassados tinham revelado na Sicília. Mas nunca esqueceu que um Estado sem lei era o grande inimigo. E por isso amava a América.

Pouco depois de chegar, tinham-lhe referido a famosa máxima da justiça americana segundo a qual é preferível deixar em liberdade cem culpados castigar um único inocente. A beleza do conceito deixou-o quase sem fala e a partir desse momento tornou-se um ardente patriota. A América era o seu país. Nunca mais sairia da América.

Inspirado nisto, Don Domenico Clericuzio construiu o seu império na América mais solidamente do que o seu clã fizera na Sicília. Assegurai a sua amizade a todas as instituições políticas e judiciais através de grandes donativos em dinheiro. Em vez de se limitar a uma ou duas fontes de rendimento, resolveu diversificar, na melhor tradição do espírito empresarial americano. Havia a indústria de construção, a indústria de eliminação de lixos os diferentes meios de transporte. Mas o grande rio de dinheiro vinha do jogo, que era a sua paixão, em contraste com os rendimentos da droga um negócio de que, apesar de muito rentável, ele desconfiava. Assim, anos mais tarde, era apenas no jogo que deixava a Família Clericuzio envolver -se operacionalmente. No resto, os Clericuzio "molhavam o bico", com un dízimo de cinco por cento.

E assim, passados vinte e cinco anos, os sonhos e os planos do Doi começavam a realizar-se. O jogo estava a tornar-se respeitável e, o que era ainda mais importante, mais legal de dia para dia. Havia as inúmeras lotarias estaduais, essas autênticas fraudes perpetradas pelo governo contra os seus cidadãos. Os prémios eram pagos ao longo de vinte anos, o que, na realidade, significava que o estado não pagava um centavo desses prémios, mas apenas os juros do dinheiro retido. E aquilo que pagava era ainda por cima sujeito a impostos. Uma enorme trapaça. Don Clericuzio estava por dentro dos por menores porque a sua Família era proprietária de uma das empresas de gestão que, a troco de excelentes honorários, administravam o funcionamento dessas lotarias em vários estados.

O que o Don esperava, porém, era o dia em que as apostas no desporto se tornassem legais em todos os Estados Unidos, como agora eram única mente no estado do Nevada. Sabia disto pela percentagem que recebia de jogo ilegal. Os lucros de um só jogo da Super Bowl, se as apostas se tornassem legais, ascenderiam a um bilião de dólares. Em apenas um dia. A World Series, com os seu sete jogos, proporcionaria um rendimento igual. O futebol universitário, o hóquei, o basquetebol, tudo isso eram ricos mananciais. Depois, haveria as intricadas e aliciantes lotarias sobre os acontecimentos desportivos, minas de ouro legais. Don Domenico sabia que não viveria o suficiente para ver esse dia glorioso, mas que mundo havia de ser para os seus filhos! Os Clericuzio seriam iguais aos príncipes da Renascença. Tornar-se-iam patronos das artes, conselheiros de chefes de governo, figuras respeitáveis nos livros de História. O arrastar da cauda de um manto de ouro apagaria as suas origens sicilianas. Todos os seus descendentes, os seus seguidores, os seus verdadeiros amigos, estariam seguros para todo o sempre. O Don via verdadeiramente a sociedade civilizada, o mundo, como uma grande árvore cujos frutos deviam alimentar e proteger a humanidade. Mas nas raízes dessa árvore estaria a pitão imortal dos Clericuzio, sugando alimento de uma fonte que nunca poderia esgotar-se.

Se a Família Clericuzio era a Santa Igreja para os muitos impérios da Máfia espalhados pelos Estados Unidos, então o chefe da Família, Don Domenico Clericuzio, era o papa, admirado não apenas pela sua inteligência, mas pela sua força.

Don Domenico era igualmente reverenciado pelo estrito código moral que impunha à sua Família. Cada homem, mulher e criança era inteiramente responsável pelas suas próprias acções, fosse qual fosse a pressão, o remorso ou a dureza das circunstâncias. As acções definiam um homem; as palavras eram peidos ao vento. Desdenhava todas as ciências sociais, todas as psicologias. Era um católico devoto: pagamento pelos pecados neste mundo, perdão no outro. Todas as dívidas tinham de ser pagas, e era estrito no seu julgamento neste mundo.

E na sua lealdade. As criaturas do seu sangue em primeiro lugar; Deus em segundo (não era verdade que tinha uma capela em casa?) e, em terceiro, as suas obrigações para com todos os súbditos pertencentes ao domínio da Família Clericuzio.

Quanto à sociedade, ao governo - patriota como era - nunca entrava na equação. Don Clericuzio nascera na Sicília, onde a sociedade e o governo eram o inimigo. O seu conceito de livre arbítrio era muito claro. Uma pessoa podia escolher ser um escravo e ganhar o pão quotidiano sem dignidade nem esperança, ou ganhar a vida como um homem merecedor de respeito. A Família de um homem era a sua sociedade, o seu Deus, o seu juiz, e os seus seguidores protegiam-no. Para com esses, o chefe assumia um dever: certificar-se de que tinham sempre pão para a boca, o respeito do mundo e protecção contra o castigo de outros homens.

Don Domenico não construíra o seu império para que um dia os seus filhos e os seus netos se perdessem na massa inerme da humanidade. Construíra e continuava a construir poder para que o nome e a fortuna da Família sobrevivessem tanto como a própria Igreja. Que maior propósito poderia um homem ter neste mundo do que ganhar o seu pão quotidiano e depois apresentar-se no outro a uma divindade misericordiosa? Quanto aos restantes homens e às suas deficientes estruturas sociais, podiam ir todos deitar-a afogar.

Don Domenico elevou a sua Família aos píncaros do poder. Fê-lo com uma crueldade digna dos Bórgia e uma subtileza própria de Maquiavel, maturadas a um sólido know-how comercial muito americano. Mas, acima de tudo, com um amor de patriarca pelos seus seguidores. A virtude era recompensada. As ofensas eram punidas. Todos tinham a subsistência garantida Finalmente, como o Don tinha planeado, os Clericuzio atingiram altus tais que já não tinham de participar nas operações normais da actividade criminosa, a não ser nas circunstâncias mais extremas. As outras Famílias da Máfia serviam nomeadamente de barões executivos, ou brugliones, que em caso de necessidade, iam ter com os Clericuzio de chapéu na mão. Em italiano, as palavras "bruglione" e "barone" rimam, mas "bruglione" significa alguém que atrapalha as tarefas mais simples. Fora a ironia de Don Domei co, espicaçada pelos constantes pedidos de ajuda por parte dos barões, que transformara a palavra "barão" em bruglione. Os Clericuzio faziam as pazes entre eles, tiravam-nos da prisão, escondiam-lhes os lucros ilícitos na Europa arranjavam maneiras infalíveis de eles introduzirem as suas drogas na América, usavam a sua influência junto de juizes e outras autoridades governamentais, tanto estaduais como federais. Como regra geral, ninguém pede ajuda para resolver questões a nível municipal. Se um bruglione não tinha capacidade para influenciar a cidade onde vivia, era porque não merecia lugar que ocupava.

O génio económico do filho mais velho de Don Domenico, Giorgi cimentava o poder da Família. Como uma espécie de lavanderia divina, branqueava as grandes quantidades de dinheiro sujo que a civilização moderna cospe das suas entranhas. Era sempre Giorgio quem tentava moderar a ferocidade do pai. Acima de tudo, Giorgio esforçava-se por manter os Clericuzio longe da ribalta. Por isso a Família existia, mesmo para as autoridades como uma espécie de OVNI. Falava-se de avistamentos esparsos, corria rumores, histórias de horror e de magnanimidade. Havia referências em arquivos da Polícia e do FBI, mas não havia notícias nos jornais, nem sequer naquelas publicações que se especializavam em descrever as proezas de várias outras Famílias da Máfia que, devido a falta de cuidado ou excesso de ego, caíam em desgraça.

Não que a Família Clericuzio fosse um tigre sem dentes. Os dois irmãos mais novos, Vincent e Petie, se bem que não tão inteligentes como Gior-gio, tinham quase a ferocidade do Don. E dispunham de um exército de executores que viviam num enclave do Bronx que sempre fora italiano. Este enclave de quarenta quarteirões poderia servir de cenário para um filme sobre a Velha Itália. Não se viam lá judeus barbudos, ou negros, ou asiáticos, ou boémios, nem nenhum destes grupos ali possuía qualquer estabelecimento comercial. Não havia um único restaurante chinês. Os Clericuzio eram proprietários ou controlavam todos os terrenos e prédios da zona. Claro que alguns dos filhos destas famílias italianas deixavam crescer os cabelos e transformavam-se em rebeldes tocadores de guitarra, mas eram rapidamente despachados para junto de parentes na Califórnia. Todos os anos chegava da Sicília um novo contingente de imigrantes, cuidadosamente seleccionados, para repovoar. O Enclave do Bronx, rodeado por zonas que tinham o mais alto índice de criminalidade do mundo, era um oásis de paz e sossego.

Pippi De Lena fora promovido de Mayor do Enclave do Bronx a bruglione da área de Las Vegas por conta dos Clericuzio. Mas permanecia sob a dependência directa da Família, que continuava a ter necessidade dos seus talentos especiais.

Pippi era a própria essência daquilo a que se chamava Qualificato, ou seja, um Homem Qualificado. Começara cedo, fazendo a sua estréia aos dezassete anos, e o que tornara o caso ainda mais notório fora o facto de ter usado o garrote. Porque na América, os jovens, no seu orgulho inexperiente, desdenhavam a corda. Além disso, era fisicamente muito forte, com uma boa estatura e uma musculatura intimidante. Era, evidentemente, um perito em armas de fogo e explosivos. Tirando tudo isto, era um homem encantador, devido ao seu gosto pela vida; tinha uma simpatia que punha os homens à vontade, e as mulheres gostavam da sua galanteria, que era meio rústico-siciliana e meio cinema-americano. Embora levasse o seu trabalho muito a sério, acreditava que a vida era para ser gozada.

Tinha as suas pequenas fraquezas. Bebia valentemente, estava sempre a jogar e gostava excessivamente de mulheres. Não era tão implacável quanto o Don talvez desejasse, pois apreciava demasiado a companhia de outras pessoas. Mas, de algum modo, estas fraquezas faziam dele uma arma ainda mais poderosa. Era um homem que usava os seus vícios para drenar o veneno do corpo, e não para o saturar com eles.

Em termos de carreira tinha-o ajudado, é certo, o facto de ser sobrinho do Don. Era do sangue, e isso revelou-se importante quando Pippi quebrou a tradição familiar.

Nenhum homem consegue viver uma vida inteira sem cometer erros Pippi De Lena, com vinte e oito anos, casou-se por amor, e, para agravar ainda mais a asneira, escolheu uma mulher totalmente inadequada para esposa de um Homem Qualificado.

Ela chamava-se Nalene Jessup e dançava no espectáculo do Xanadu Casi no Hotel. Pippi tinha sempre o cuidado de fazer notar orgulhosamente que não se tratava de uma das coristas que se saracoteavam na primeira fila com as mamas e o rabo à mostra: era uma bailarina. Nalene era também um intelectual, pelos padrões de Las Vegas. Gostava de ler, interessava-se pela política, e uma vez que as suas raízes mergulhavam na cultura WASP [3] de Sacramento, professava valores antiquados.

Eram opostos perfeitos. Pippi não tinha quaisquer interesses intelectuais, raramente lia, ouvia música ou ia ao cinema ou ao teatro. Pippi tinha cara de um touro, Nalene o rosto de uma flor. Pippi era extrovertido, cheio de encanto, e todavia destilava perigo. Nalene tinha um feitio tão doce que nem sequer as suas colegas dançarinas conseguiam arranjar zangas com ele como frequentemente faziam umas com as outras para se entreterem.

A única coisa que Pippi e Nalene tinham em comum era dançar. Porque Pippi De Lena, o temido "Martelo" dos Clericuzio, era um verdadeiro idic savant [4] quando entrava numa sala de baile. Aquela era a poesia que não conseguia ler, a galanteria medieval dos Cavaleiros da Távola Redonda, a ternura, o delicado refinamento do sexo, a única altura em que atingia qualquer coisa que não era capaz de compreender.

Para Nalene Jessup, era um vislumbre do mais profundo da alma dele Quando dançavam juntos durante horas antes de fazerem amor, o sexo ganhava para eles uma qualidade etérea, tornava-se uma verdadeira comumicação entre duas almas gémeas. Ele falava com ela enquanto dançavam, sozinhos no apartamento dela ou nas pistas de baile dos hotéis de Las Vegas Era um bom contador de histórias, e tinha boas histórias para contar. Exprimia a sua adoração por ela de uma maneira lisonjeira e espirituosa, Tinha uma esmagadora presença masculina, que depunha aos pés de Nalen como um escravo, e escutava-a. Sentia-se orgulhoso e interessado quando ela falava de livros, de teatro, dos deveres da democracia para com os menos privilegiados, dos direitos dos negros, da libertação da África do Sul, do dever de alimentar os infelizes pobres do terceiro mundo. Pippi deixava-se entusiasmar por estes sentimentos. Eram exóticos para ele.

Ajudava o facto de se adequarem bem sexualmente, de os seus opostos se atraírem. Era bom para o amor de ambos que Pippi visse a verdadeira Nalene, mas que Nalene não conseguisse ver o verdadeiro Pippi. O que ela via era um homem que a adorava, que a cobria de presentes, que a ouvia falar dos seus sonhos.

Casaram-se uma semana depois de se terem conhecido. Nalene tinha apenas dezoito anos, não fazia a mínima ideia do que estava a fazer. Pippi tinha vinte e oito e estava verdadeiramente apaixonado. Também ele fora criado no meio de valores antiquados, certamente de pólos diferentes, e ambos desejavam uma família. Nalene era órfã e Pippi estava relutante em incluir os Clericuzio na sua recém-descoberta felicidade. Além disso, sabia que não aprovariam. Mais valia enfrentá-los com o facto consumado e ir trabalhando a partir daí, pouco a pouco. Casaram numa capela de Las Vegas.

Houve aqui, porém, um outro lapso de julgamento. Don Clericuzio aprovava que Pippi se casasse. Como muitas vezes dizia: "O principal dever de um homem na vida é ganhar a sua própria subsistência", mas com que propósito se não tiver mulher e filhos? O Don ficou magoado por não ter sido consultado, por o casamento não ter sido celebrado no seio da Família. Ao fim e ao cabo, Pippi tinha sangue dos Clericuzio.

"Podem ir os dois dançar para o fundo do oceano", comentou, despeitadamente, mas nem por isso deixou de enviar magníficos presentes de casamento. A escritura de uma casa, a propriedade de uma agência de cobranças que rendia, para a época, uns principescos cem mil dólares por ano, uma promoção. Pippi De Lena continuaria a servir a Família Clericuzio no Oeste como um dos seus brugliones mais chegados, mas era expulso do Enclave do Bronx, pois como poderia a sua estranha mulher viver em harmonia com os verdadeiros fiéis? Era tão estrangeira para eles como os muçulmanos, os negros, os judeus ortodoxos e os asiáticos que tinham banido. Assim, em essência, embora Pippi continuasse a ser o martelo dos Clericuzio, embora fosse um barão local, perdera alguma influência no palácio de Quogue.

O padrinho na modesta cerimónia civil foi Alfred Gronevelt, dono do Xanadu Hotel. Foi ele quem ofereceu um pequeno jantar, em que o noivo e a noiva dançaram a noite inteira. Nos anos que se seguiram, Gronevelt e Pippi De Lena criaram entre si uma amizade íntima e leal.

O casamento durou o suficiente para produzir dois filhos: um rapaz < uma rapariga. O mais velho, baptizado com o nome de Croccifixio mas a quem todos chamavam Cross, era, aos dez anos, a imagem física da mãe com um corpo gracioso e um rosto quase efeminadamente bonito. Tinha no entanto, a força física e a soberba coordenação motora do pai. A mais nova, Claudia, com nove anos, era a imagem do pai: feições toscas, que se a frescura e a inocência da infância impediam de ser feias; faltavam-lhe, porém todos os dotes paternos. Em contrapartida, herdara da mãe o amor pelos livros pela música, pelo teatro, e também a doçura de espírito. Era, pois, muito natural que Cross e Pippi se sentissem próximos um do outro, e que Claudia se voltasse mais para a mãe.

Nos onze anos que passaram antes que a família De Lena se desfizesse as coisas correram bastante bem. Pippi estabeleceu-se em Vegas como < bruglione, o cobrador do Xanadu Hotel, continuando a ser o martelo do Clericuzio. Enriqueceu, fazia uma boa vida, ainda que, em virtude das regras do Don, sem ostentação. Jogava, bebia, dançava com a mulher, brincava com os filhos e tentava prepará-los para fazerem a sua entrada no mundo dos adultos.

Pippi aprendera, ao longo da sua perigosa vida, a olhar para o futuro, Era essa uma das razões do seu êxito. Muito cedo, viu para além de Cros a criança, Cross o homem. Queria que esse futuro homem fosse seu aliado Ou talvez quisesse apenas um ser humano que lhe fosse próximo e em quem pudesse confiar totalmente.

Por isso treinou Cross, ensinou-lhe todos os truques da arte de jogar, levou-o a jantar com Gronevelt, para que pudesse ouvir histórias a respeito de todas as diferentes maneiras como um casino pode ser roubado. Gronevelt começava sempre por dizer: "Todas as noites, milhões de homens ficam acordados na cama a tentar inventar uma maneira de aldrabar o meu casino."

Pippi levou Cross à caça, ensinou-o a esfolar e tirar as vísceras aos animais, habituou-o ao cheiro do sangue, a ver as suas próprias mãos vermelhas dele. Obrigou Cross a ter lições de boxe, para que experimentasse a dor ensinou-o a usar armas de fogo e a cuidar delas, mas absteve-se de lhe ensinar o uso do garrote. Aquilo fora, ao fim e ao cabo, uma extravagância da sua juventude, e nem sequer era verdadeiramente útil nos tempos modernos Além disso, não teria maneira de explicar uma corda daquelas à mãe do rapaz Os Clericuzio possuíam uma grande cabana de caça nas montanhas do Nevada, e Pippi usava-a para as suas férias com a família. Levava os filhos à caça, enquanto Nalene ficava a ler os seus livros ao calor da lareira. Na caça, Cross abatia facilmente lobos e veados, e até alguns leões-da-montanha e ursos; era hábil, tinha queda para as armas, que tratava sempre com muito cuidado, mostrava-se invariavelmente calmo em situações de perigo, nem sequer pestanejava quando tinha de enfiar as mãos nas entranhas ensangüentadas dos animais, para retirar os intestinos escorregadios. Não tinha nojo de esfolar membros e cabeças, de preparar a presa abatida.

Claudia não revelava nenhuma destas virtudes. Sobressaltava-se ao ouvir disparar uma arma e vomitou quando teve de esfolar um veado. Ao cabo de algumas experiências, recusou-se a deixar a cabana e passava o tempo com a mãe, a ler ou a passear pela margem de um ribeiro próximo. Recusava-se inclusivamente a pescar: não era capaz de espetar o anzol no corpo mole da minhoca.

Pippi concentrou-se no filho. Instruiu o rapaz nas normas do comportamento básico: nunca mostrar ira face a uma ofensa, nunca falar de si mesmo; ganhar o respeito dos outros através de acções e não de palavras; respeitar os membros da família de sangue. Jogar era um entretenimento, não uma maneira de ganhar a vida. Ama o teu pai, a tua mãe, a tua irmã, mas livra-te de amar outra mulher que não seja a tua esposa. E uma esposa é a mulher que te der filhos. E uma vez que isso te aconteça, a tua vida estará consagrada a assegurar-lhes o pão quotidiano.

Cross mostrava-se tão bom aluno que o pai era doido por ele. Pippi adorava que o filho se parecesse com Nalene, que tivesse a mesma graça, que fosse uma réplica dela sem os dotes intelectuais que começavam a destruir o seu casamento.

Pippi nunca acreditara no sonho de Don Domenico de que toda a geração mais nova havia de fundir-se na sociedade legítima. Nem sequer acreditava que fosse essa a melhor linha de acção. Reconhecia o génio do velho, mas aquela era a faceta romântica do grande Don. Ao fim e ao cabo, os pais gostavam que os filhos trabalhassem com eles, que fossem como eles; sangue era sangue, e isso nunca mudava.

E, neste ponto, Pippi provou ter razão. A despeito de todos os planos de Don Clericuzio, até o seu próprio neto, Dante, se revelou refractário ao grande desígnio. Dante era como que um retrocesso ao velho sangue siciliano, ávido de poder, com uma vontade de ferro. Não tinha o mínimo receio de violar as leis da sociedade nem as de Deus.

Quando tinha sete anos e Claudia seis, Cross, agressivo por natureza, apanhara o hábito de dar murros na barriga da irmã, inclusivamente diante do pai. Claudia gritava a pedir ajuda. Pippi, como pai, podia resolver o problema de diversas maneiras. Podia ordenar a Cross que acabasse com aquilo e, se ele não obedecesse, podia pegar-lhe pelo cachaço e sacudi-lo no ar, como muitas vezes fazia. Ou podia ordenar a Claudia que ripostasse. Ou podia aplicar a Cross uma boa palmada, como já fizera uma ou duas vezes. Mas uma noite talvez porque acabava de jantar e estava com preguiça, ou mais provavelmente porque Nalene arranjava uma discussão sempre que ele recorria à força para disciplinar as crianças, acendeu calmamente o seu cigarro e disse: "Cross. cada vez que bateres na tua irmã, dou-lhe um dólar." Cross continuara a dar murros à irmã, e Pippi limitara-se a atirar notas de dólar para cima de Claudia, que ficara encantada, até que Cross desistira, frustrado.

Pippi afogava a mulher em presentes, mas eram o tipo de presente que o amo dá à sua escrava. Eram subornos para disfarçar a servidão de Presentes caros: anéis de diamantes, casacos de peles, viagens à Europa. Comprou-lhe uma casa de férias em Sacramento, porque ela detestava Las Vegas Quando lhe ofereceu um Bentley, vestiu um uniforme de motorista para lho entregar. Pouco antes de se separarem, deu-lhe um anel antigo que fizera parte da colecção dos Bórgia, como constava de um certificado. A única coisa que lhe limitava era o uso de cartões de crédito: Nalene tinha de pagá-lo do dinheiro que recebia para a casa. Pippi nunca os usava.

Mostrava-se liberal de muitas outras maneiras. Nalene dispunha de uma completa liberdade física, Pippi não tinha nada do ciumento marido italiano Embora nunca viajasse para o estrangeiro a não ser em negócios, autoriza Nalene a ir à Europa com as amigas, porque ela queria tão desesperadamente ver os museus de Londres, o ballet em Paris ou a ópera em Itália.

Havia alturas em que Nalene se interrogava a respeito desta falta de ciúmes, mas com os anos acabara por compreender que nenhum homem no círculo em que viviam se atreveria a fazer-lhe a corte.

Quando eles tinham casado, Don Clericuzio comentara sarcasticamente: "Pensarão que podem dançar a vida inteira?"

A resposta acabou por ser não. Nalene não era uma bailarina suficientemente boa para chegar ao topo; as suas pernas eram, paradoxalmente, demasiado compridas. Tinha um temperamento demasiado sério para ser rapariga para festas. Tudo isto a empurrara para o casamento. E fora feliz durante os primeiros quatro anos. Tomava conta das crianças, freqüentava as aulas na Universidade de Nevada e lia vorazmente.

Pippi, porém, já não estava interessado no estado do ambiente, não queria saber dos problemas dos choramingas dos pretos, que nem sequer conseguiam aprender a roubar sem se deixarem apanhar, e quanto aos Americanos Nativos, fossem eles quem fossem, bem podiam deitar-se a afogar. Discutir um livro ou uma música era algo que estava completamente para além do seu horizonte. E a exigência de Nalene de que nunca batesse mos filhos deixava-o espantado. As crianças são como animais; como se há-de ensiná-las a portarem-se de uma maneira civilizada sem lhes dar uma palmada de vez em quando? Além disso, tinha sempre o cuidado de não as magoar.

Assim, no quarto ano do seu casamento, Pippi arranjou amantes. Uma em Las Vegas, uma em Los Angeles e outra em Nova Iorque. Nalene retaliou obtendo o seu diploma de professora.

Tentavam o mais que podiam. Amavam os filhos e tornavam-lhes a vida agradável. Nalene passava longas horas com eles, a ler, a cantar e a dançar. O casamento mantinha-se de pé graças ao bom humor de Pippi. A sua vitalidade e exuberância animal conseguiam de algum modo atenuar os problemas entre marido e mulher. Os dois irmãos amavam a mãe e admiravam o pai: a mãe porque era tão meiga e boa, bonita e cheia de afecto natural; o pai porque era forte.

Ambos os pais eram excelentes professores. Com a mãe, aprenderam as graças sociais, as boas maneiras, a dançar, a vestirem-se, a arranjarem-se. o pai ensinou-os a viver no mundo, a protegerem-se da agressão física, a jogar e a treinarem o corpo na prática atlética. Nunca se ressentiram com o pai por ser fisicamente duro com eles, sobretudo porque só o fazia para os disciplinar, nunca se zangava nessas ocasiões e logo a seguir agia como se nada se tivesse passado.

Cross era destemido, mas podia ser vergado. Claudia não tinha a coragem física do irmão, mas possuía uma certa obstinação. Ajudava muito o facto de nunca lhes faltar dinheiro.

A medida que os anos passavam, Nalene observava certas coisas. Ao princípio, muito pequenas. Quando Pippi ensinava os filhos a jogar cartas - poker, vinte-e-um, gin - fazia batota e ficava-lhes com todo o dinheiro das semanadas, mas, antes de acabar, deixava-os ganhar substancialmente, para que pudessem ir dormir com a exaltação da vitória. O curioso era que Claudia, quando criança, gostava muito mais de jogar do que Cross. Mais tarde Pippi mostrava-lhes como os tinha enganado. Nalene ficava furiosa. Sentia que o marido brincava com as vidas dos filhos como brincava com a dela. Pippi explicava que fazia parte da educação deles. Ela dizia que não era educação, e sim corrupção. Ele respondia que queria prepará-los para as realidades da vida e que ela queria prepará-los para a beleza da vida.

Pippi andava sempre com demasiado dinheiro na carteira, um hábito tão suspeito aos olhos de uma esposa como aos do cobrador de impostos. Era certo que Pippi era o proprietário de um próspero negócio, a Agência de Cobranças, mas tinham um nível de vida demasiado elevado para uma empresa tão pequena.

Quando a família fazia férias no Leste e entrava no círculo social dos Clericuzio, Nalene não deixava de notar o respeito com que Pippi era tratado.

Observava os cuidados que os homens tinham para com ele, a deferência, as longas reuniões que mantinham em privado.

Havia outras pequenas coisas. Pippi tinha de viajar em negócios pelo menos uma vez por mês. Ela nada sabia dos pormenores destas viagens, e ele nunca falava delas. Pippi tinha uma licença de porte de armas, o que era natural no caso de um homem cujo trabalho consistia em cobrar tão grandes somas de dinheiro. Era extremamente cuidadoso. Nalene e as crianças nunca tinham acesso à arma, e conservava as munições guardadas numa caixa à parte e fechada à chave.

Com o correr dos anos, Pippi começou a fazer mais viagens e Nalene passava mais tempo sozinha em casa com os filhos. Ela e Pippi começaram a afastar-se sexualmente, e uma vez que era quando faziam amor que Pippi se mostrava mais terno e compreensivo, o afastamento entre os dois foi aumentando.

Nenhum homem consegue esconder a sua verdadeira natureza a alguém que viva próximo dele muitos anos. Nalene viu que Pippi era um homem completamente dedicado aos seus apetites, que era violento por natureza, embora nunca fosse violento com ela. Que era dissimulado, embora fingisse franqueza. Que embora fosse amável, era perigoso.

Tinha pequenas manias pessoais que por vezes podiam ser encantadoras. Por exemplo, as outras pessoas tinham de gostar daquilo de que ele gostava. Certa ocasião tinham levado um casal a jantar a um restaurante italiano. O casal não era grande apreciador de cozinha italiana e comeu muito pouco. Quando Pippi reparou nisto, não foi capaz de terminar a refeição.

Por vezes, falava do seu trabalho na agência de cobranças. Trabalhava com a maioria dos hotéis de Las Vegas, que o encarregavam de cobrar dívidas de jogo que os seus clientes se recusavam a pagar. Insistia com Nalene que nunca era usada a força, apenas um tipo especial de persuasão. As pessoas pagarem as suas dívidas era uma questão de honra, toda a gente era responsável pelas suas acções, e ofendia os seus princípios o facto de homens importantes nem sempre quererem cumprir as suas obrigações. Médicos, advogados, donos de empresas, aceitavam os serviços complementares do hotel e depois recusavam-se a cumprir a sua parte do acordo. Mas a esses era fácil cobrar. Ia-se aos seus escritórios e gritava-se muito, de modo que os colegas e os clientes pudessem ouvir. Fazia-se uma cena, nunca uma ameaça, chamava-se-lhes desgraçados, jogadores degenerados que negligenciavam as suas profissões para chafurdarem no vício.

Os pequenos negociantes eram mais difíceis, homens que contavam os seus tostões e tentavam sempre chegar a um acordo por menos do que deviam. Depois havia os espertalhões, que passavam cheques sem cobertura e depois protestavam que fora um engano. Um dos truques favoritos era passarem um cheque de dez mil dólares quando só tinham oito mil na conta. Mas Pippi tinha acesso às informações bancárias, de modo que se limitava a depositar na conta do devedor os dois mil dólares em falta e em seguida levantava os dez mil. Ria imenso quando explicava estes truques a Nalene.

A parte mais importante do seu trabalho, costumava dizer, era no entanto não só convencer o jogador a pagar a sua dívida, mas também a continuar a jogar. Mesmo um jogador arruinado tinha valor. Trabalhava. Ganhava dinheiro. Por isso, muito simplesmente adiava-se-lhe a dívida, incitava-se o infeliz a jogar no casino sem crédito e descontava-se-lhe a dívida sempre que ganhava.

Uma noite, Pippi contou a Nalene uma história que achava imensamente divertida. Certo dia estava a trabalhar no escritório da agência de cobranças, instalada num pequeno centro comercial perto do Xanadu Hotel, quando ouvira tiros na rua. Saíra a correr mesmo a tempo de ver dois homens mascarados a fugirem de uma joalharia próxima. Sem pensar, sacara da arma e disparara contra os dois homens, que saltaram para dentro de um carro que os esperava e escaparam. Minutos depois os polícias chegaram e, depois de terem interrogado toda a gente, prenderam-no a ele. É certo que tinha uma licença de porte de arma, mas ao dispará-la cometera o crime de "pôr em risco a segurança pública". Alfred Gronevelt tivera de ir à esquadra pagar-lhe a fiança.

- Por que diabo fiz eu aquilo? -perguntava Pippi. - O Alfred dizia que era o caçador que havia em mim. Mas eu nunca hei-de compreender. Eu, a disparar contra ladrões? Eu, a proteger a sociedade? E ainda por cima meteram-me na prisão. Meteram-me a mim, na prisão!

Estas pequenas revelações a respeito do seu carácter eram, no entanto, e em certa medida, uma astúcia da parte de Pippi. Permitiam a Nalene rápidos vislumbres de como ele era, sem nunca a deixarem penetrar no seu verdadeiro segredo. O que levou Nalene a decidir-se finalmente pelo divórcio foi o facto de Pippi De Lena ter sido preso por assassínio...

Danny Fuberta era proprietário de uma agência de viagens em Nova Iorque, que comprara com os lucros da sua actividade como agiota sob a protecção da agora extinta Família Santadio. Mas ganhava a maior parte do seu dinheiro como organizador de excursões para Las Vegas.

Um organizador de excursões assinava um contrato exclusivo com um hotel de Las Vegas para transportar grupos de turistas-jogadores. Danny Fuberta alugava um 747 todos os meses e recrutava cerca de duzentos clientes que levava para o Xanadu Hotel. Por uma taxa fixa de mil dólares, o cliente tinha direito a um vôo de ida-e-volta Nova Iorque-Las Vegas, comida e bebida grátis durante a viagem, quarto, refeições e bebidas grátis no hotel. Fuber-ta tinha sempre uma grande lista de espera para estas excursões e escolhia os seus clientes com todo o cuidado. Tinham de ser pessoas com bons empregos, ainda que não necessariamente legais, e tinham de jogar no casino pelo menos quatro horas por dia. E, claro, sempre que possível, tinham de abrir um crédito na caixa do Xanadu Hotel.

Um dos grandes trunfos de Fuberta era a sua amizade com uma vasta gama de vigaristas, assaltantes de bancos, traficantes de drogas, contrabandistas de cigarros, carteiristas e outros espécimes do submundo que ganhavam principescamente a vida nas sarjetas de Nova Iorque. Estes homens eram os seus clientes de eleição. Ao fim e ao cabo, viviam vidas cheias de stresse precisavam de umas férias relaxantes de vez em quando. Ganhavam grandes quantidades de dinheiro sujo, em notas, e adoravam jogar.

Por cada carregamento de duzentos clientes que entregava no Xanadu Hotel, Danny Fuberta recebia um honorário fixo de vinte mil dólares. Por vezes pagavam-lhe um bónus, quando os seus clientes perdiam muito. Tudo isto, somado aos lucros iniciais da viagem, proporcionava-lhe um confortável rendimento mensal. Infelizmente, Fuberta tinha a fraqueza do jogo. E chegou um momento em que as suas dívidas ultrapassaram as suas receitas.

Homem cheio de recursos, Fuberta depressa imaginou uma maneira de se tornar novamente solvente. Uma das suas obrigações como organizador de excursões era certificar o nível de crédito que o casino podia conceder a cada um dos seus clientes.

Recrutou um bando de patifes extremamente competentes e, com eles, arquitectou um plano para desfalcar o Xanadu Hotel em oitocentos mil dólares.

Começou por fornecer aos seus quatro cúmplices credenciais que os acreditavam como proprietários de grandes lojas de vestuário, com níveis de crédito altíssimos, servindo-se, no respeitante aos pormenores, dos arquivos da sua própria agência. Com base nestas credenciais, certificou cada um deles para um limite de crédito de duzentos mil dólares. Depois incluiu-os na excursão.

- Oh, foi uma festa! - disse Gronevelt mais tarde.

Durante os dois dias de estada, Fuberta e os companheiros fizeram contas enormes no serviço de quartos, convidaram as coristas mais bonitas para jantar, compraram contra assinatura prendas caríssimas nas lojas do hotel, mas isso foi o menos. Levantaram fichas pretas na caixa, assinando os respectivos vales.

Dividiram-se em duas equipas. Uma apostava com os dados, a outra apostava contra os dados. Deste modo, tudo o que podiam perder eram as percentagens, ou ficarem em casa. Levantaram assim da caixa do casino, assinando vales, um milhão de dólares em fichas, que Fuberta converteu mais tarde em dinheiro. Davam a impressão de jogarem furiosamente, mas era só espectáculo. Com tudo isto, criaram à sua volta um turbilhão de movimento. Imaginavam-se actores, falavam com os dados, zangavam-se quando perdiam, batiam palmas quando ganhavam. No final de cada dia, entregavam as suas fichas a Fuberta, que as trocava por dinheiro, e assinavam vales para levantar outras novas. Quando a comédia acabou, dois dias mais tarde, o grupo estava oitocentos mil dólares mais rico, tinham sido os felizes consumidores de outros vinte mil dólares em bens e serviços, mas tinham um milhão de dólares em vales na caixa.

Danny Fuberta, como autor do plano, recebeu quatrocentos mil, e os outros quatro patifes ficaram mais do que satisfeitos com a sua parte, sobretudo depois de Fuberta lhes ter prometido repetir a brincadeira. O que poderia ser melhor do que um longo fim-de-semana num hotel de luxo, comida e bebida à borla, belas raparigas, e mais cem mil para compor o ramalhete. Era de certeza preferível a assaltar um banco, onde um tipo tinha de arriscar a vida.

Gronevelt descobriu a golpada logo no dia seguinte. O relatório do dia mostrava um valor em vales muito elevado, mesmo para uma excursão de Fuberta. A receita da mesa, o registo da quantia que ficava depois de terminada a noite, era muito baixa para o volume de dinheiro apostado. Gronevelt pediu as gravações vídeo do "olho no céu", a câmara de vigilância. Não precisou de observar durante mais de dez minutos para compreender como toda a operação se desenrolara e ficar a saber que, sendo as identidades dos jogadores seguramente falsas, os vales no valor de um milhão de dólares que tinha na caixa eram papel para enrolar cigarros.

A sua reacção foi de impaciência. Fora vítima de inúmeros golpes ao longo dos anos, mas aquele era tão estúpido que fazia raiva. Ainda por cima, gostava de Danny Fuberta; o homem dera muito dinheiro a ganhar ao Xanadu. Já sabia o que Fuberta ia alegar: também ele fora enganado pelas identidades falsas, também ele era uma vítima inocente.

Gronevelt ficou irritado com a incompetência do seu pessoal. Os dois operadores da mesa deveriam ter-se apercebido do que estava a passar-se e detectar imediatamente as apostas cruzadas. Nem sequer fora um truque particularmente inteligente. Mas as pessoas tinham tendência para se tornarem moles quando as coisas corriam bem durante muito tempo, e Las Vegas não era excepção. Pensou com pena que teria de despedir os dois homens, ou pelo menos mandá-los de volta para a roleta. Mas havia algo que não podia evitar. Tinha de pôr toda aquela questão de Danny Fuberta nas mãos dos Clericuzio.

Em primeiro lugar, chamou Pippi De Lena ao hotel e mostrou-lhe os documentos e as gravações feitas pela câmara de vigilância. Pippi conhecia Fuberta, mas não os outros quatro, de modo que Gronevelt mandou fazer fotografias de "paralíticos" tirados das gravações e entregou-lhas.

Pippi abanou a cabeça.

Como raios pensou o Danny que podia safar-se com uma destas? Pensei que fosse mais esperto.

E um jogador - respondeu Gronevelt. - Acreditam sempre que as suas cartas são para ganhar. - Fez uma curta pausa. - O Danny vai tentar convencer-te de que não está metido nisto. Mas não te esqueças, ele teve de comprovar que eles mereciam o crédito que lhes demos. Vai dizer- -te que o fez com base nas identidades que eles lhe apresentaram. Um organizador de excursões tem de certificar-se de que cada um é quem diz ser. Ele tinha de saber.

Pippi sorriu e deu-lhe uma palmada nas costas.

- Não te preocupes - prometeu. - Não vai conseguir convencer-me. Riram-se ambos. Pouco importava se Dany Fuberta era ou não culpado. Era responsável pelos seus erros.

Pippi seguiu para Nova Iorque no dia seguinte. Para apresentar o caso à Família Clericuzio, em Quogue.

Depois de ter passado o portão guardado por homens armados, percorreu no carro a longa estrada pavimentada que atravessava o extenso planalto de relva, com o seu muro defendido por arame farpado e sensores electrónicos. Havia um guarda à porta da mansão. E isto era em tempo de paz.

Giorgio recebeu-o e conduziu-o através da mansão até ao jardim das traseiras. Nos canteiros tinham sido plantados tomates e pepinos, alfaces e até melões, tudo isto enquadrado por uma fileira de grandes figueiras. O Don não apreciava flores.

A Família estava reunida em torno de uma mesa de madeira, a almoçar, talvez um pouco mais cedo do que habitualmente. Lá estava o Don, brilhante de saúde apesar dos seus quase setenta anos, bebendo visivelmente o ar perfumado pelas figueiras do seu jardim. Dava de comer ao neto, Dante, que era uma criança bonita mas demasiado arrogante para um rapaz de dez anos, a idade de Cross. Pippi tinha sempre a tentação de dar-lhe uma palmada. O Don era como manteiga nas mãos daquele neto: limpava-lhe a boca, murmurava-lhe carinhos. Vincent e Petie pareciam aborrecidos. A reunião não poderia começar antes de o miúdo acabar de comer e ser levado pela mãe, Rose Marie. Don Domenico ficou a vê-lo afastar-se com um sorriso de beatitude. Depois voltou-se para Pippi.

Ah, o meu martello - disse. - Que me dizes do Fuberta, esse patife? Demos-lhes um modo de vida e ele tornou-se ganancioso à nossa custa.

Se pagar - interveio Giorgio, apaziguadoramente -, ainda pode continuar a ser uma fonte de dinheiro para nós.

Aquele era, na verdade, o único pedido de misericórdia com alguma validade.

- Não se trata de uma pequena quantia - insistiu o Don. - Temos de recuperar esse dinheiro. Pippi, o que é que te parece?

Pippi encolheu os ombros.

- Posso tentar. Mas essa gente não tem o hábito de poupar para a velhice.

Vincent, que detestava conversa fiada, pediu:

- Deixa ver as fotografias.

Pippi entregou-lhas. Vincent e Petie estudaram os rostos dos quatro cúmplices de Fuberta.

Eu e o Petie conhecemo-los - anunciou Vincent.

Óptimo - disse Pippi. - Assim sendo, podem resolver as coisas com esses quatro. O que é que faço com o Fuberta?

Mostraram desprezo por nós - interveio então Don Domenico. - Quem é que eles pensam que nós somos? Uns infelizes quaisquer que têm de recorrer à polícia? Vincent, Petie, vocês ajudam o Pippi. Quero o dinheiro de volta e esses mascalzoni castigados.

Todos compreenderam. Pippi conduziria a operação e a sentença contra os cinco homens era a morte.

O Don deixou-os para ir passear pelo jardim. Giorgio suspirou.

O velho é demasiado duro para os tempos que vivemos. Toda esta história tem mais riscos do que aquilo que vale.

Não se o Vincent e o Petie tratarem dos quatro pássaros - disse Pippi. - Está OK contigo, Vincent?

Giorgio - sugeriu Vincent -, vais ter de falar com o velho. Esses quatro tipos não hão-de ter o dinheiro. Temos de chegar a um acordo. Eles vão trabalhar, ganham-no, pagam-nos e ficam quites. Se os enterramos, não recebemos nada.

Vincent era um realista que nunca deixava que a sua sede de sangue se sobrepusesse às soluções mais práticas.

OK, eu falo com o pai a esse respeito - concordou Giorgio. - Esses eram apenas ajudantes. Mas ele não vai perdoar ao Fuberta.

O organizador de excursões vai ter de receber a mensagem - disse Pippi.

- Primo Pippi - Giorgio estava a sorrir-, que bónus estás à espera de receber neste caso?

Pippi detestava que Giorgio lhe chamasse primo. Vincent e Petie tratavam-no assim por afecto, mas Giorgio só o fazia quando estavam a negociar.

No caso do Fuberta, é o meu dever - respondeu. - Vocês deram- -me a agência de cobranças e eu recebo um salário do Xanadu. Mas recuperar o dinheiro vai ser difícil, de modo que penso que deveria receber uma percentagem. Tal como o Vincent e o Petie, se conseguirem arrancar alguma coisa a esses tipos.

E justo - admitiu Giorgio. - Mas não se trata aqui de cobrar notas de dívida. Não podes contar com os mesmos cinquenta por cento.

Não, não - apressou-se Pippi a concordar. - Deixem-me só molhar o bico.

Esta velha expressão siciliana fê-los rir. Petie disse então:

- Giorgio, não sejas mesquinho. Não precisas de me esfolar a mim e ao Vincent.

Petie dirigia agora o Enclave do Bronx, era o chefe dos Executores, e defendia constantemente a ideia de que os homens das fileiras deviam receber mais dinheiro. Ia com certeza dividir a sua parte com eles.

- Vocês são gananciosos - respondeu Giorgio, com um sorriso. - Mas vou recomendar ao velho vinte por cento.

Pippi sabia que isto significava quinze ou dez por cento. Era uma velha história, com Giorgio.

- Que tal fazermos uma vaquinha? - propôs Vincent a Pippi. Significava isto que os três dividiriam o dinheiro que fosse recuperado, não importando qual deles o conseguisse. Era um gesto amistoso. Havia muito mais probabilidades de recuperar dinheiro de pessoas que iam viver do que de uma pessoa condenada à morte. Vincent compreendia o mérito de Pippi.

- Claro, Vince - respondeu Pippi. - E obrigado.

Viu Dante a passear de mão dada com o avô no extremo oposto do jardim, e ouviu Giorgio dizer:

- Não é espantoso como o Dante e o pai se dão tão bem? O pai nunca foi assim comigo. Passam a vida a cochichar um com o outro. Bom, o velho é tão esperto que alguma coisa o miúdo há-de aprender.

Pippi viu que o garoto tinha o rosto voltado para o Don. Os dois davam a impressão de partilharem um qualquer segredo terrível que havia de dar-lhes o domínio do Céu e da Terra. Mais tarde, Pippi convenceu-se de que aquele espectáculo lhe lançara um mau olhado e estivera na origem de todos os seus infortúnios.

Pippi De Lena ganhara a sua reputação ao longo dos anos graças à maneira cuidadosa como elaborava os seus planos. Não era um simples gorila à solta, mas um técnico altamente especializado. Como tal, confiava na estratégia psicológica para o ajudar na execução de um trabalho. No caso de Danny Fuberta, eram três os problemas. Antes de mais nada, tinha de recuperar o dinheiro. Depois, tinha de coordenar cuidadosamente as suas acções com Vincent e Petie. (Essa parte foi fácil, pois Vincent e Petie eram extremamente competentes no seu trabalho. Em dois dias descobriram os vigaristas, arrancaram-lhes uma confissão e combinaram uma forma e um calendário de pagamentos). Em terceiro lugar, tinha de matar Danny Fuberta.

Não lhe foi difícil encontrar-se "acidentalmente" com Fuberta, dar largas ao seu encanto e arrastá-lo para um almoço a dois num restaurante chinês no East Side. Fuberta sabia que Pippi era o cobrador do Xanadu, tinham necessariamente tido contactos ao longo dos anos, mas Pippi parecia tão genuinamente encantado por encontrá-lo ali em Nova Iorque que Fuberta não teve maneira de recusar.

Pippi abordou o assunto como se fosse uma coisa sem importância. Esperou até terem encomendado, e então disse:

- O Gronevelt contou-me da golpada. Sabes que és responsável por aqueles que certificas para terem crédito.

Fuberta jurou a sua inocência e Pippi dirigiu-lhe um grande sorriso e deu-lhe uma amistosa palmada num ombro.

- Ora vamos, Danny. O Gronevelt tem as fitas, e os teus compinchas já cuspiram tudo. Estás metido num grande sarilho, mas eu posso resolver a coisa se devolveres o dinheiro. Até talvez consiga manter-te no negócio das excursões.

Para apoiar o que afirmava, tirou do bolso as fotografias dos quatro homens.

Aqui tens os teus rapazes - disse. - E olha que eles estão a contar tudo, a atirar com a merda toda para cima de ti. Disseram-nos como dividiram o dinheiro. De modo que, se devolveres os quatrocentos mil, arruma-se a questão.

Sim, é verdade, conheço esses quatro - admitiu Fuberta. - Mas são tipos duros, não iam pôr-se a falar.

São os Clericuzio que estão a fazer as perguntas - disse Pippi.

Oh, merda, não sabia que o hotel era deles!

Agora já sabes. Se não lhes devolves a massa, estás metido em grandes sarilhos.

O que eu devia era sair daqui para fora.

- Não, não, deixa-te estar. O pato-à-pequim é óptimo. Escuta, podemos resolver esta coisa, não é assim nada de especial. Toda a gente tenta a sua sorte de vez em quando, não é? Basta devolveres o dinheiro.

- Não tenho um centavo - respondeu Fuberta. Pela primeira vez, Pippi mostrou alguma irritação.

- Tens de mostrar um pouco de respeito - disse. - Devolve agora cem mil, e aceitamos uma nota dívida pelos outros trezentos mil.

Fuberta pensou naquilo enquanto mastigava um bolinho frito.

- Posso dar-te cinquenta mil - anunciou.

Isso é bom, é muito bom - declarou Pippi. - Podes pagar o resto abatendo aos teus honorários por organizares excursões para o hotel. Parece-te justo?

Acho que sim.

Não te preocupes mais, aprecia a comida - aconselhou Pippi. Enrolou uma febra de pato numa panqueca, regou tudo com molho doce e estendeu-a a Fuberta. - Isto é óptimo Danny- acrescentou. - Come. Depois tratamos de negócios.

Comeram gelado de chocolate à sobremesa e combinaram que Pippi iria buscar os cinquenta mil dólares à agência de viagens de Fuberta, depois das horas de expediente. Pippi pegou na conta, pagando em dinheiro.

- Danny - disse -, já reparaste que o gelado de chocolate nos restaurantes chineses tem sempre muito cacau. É óptimo. Sabes o que é que eu acho? O primeiro restaurante chinês que abriu na América enganou-se na receita, e os que vieram a seguir copiaram essa receita errada. É excelente. Um óptimo gelado de chocolate.

Danny Fuberta não passara, porém, quarenta e oito anos como vigarista e fura-vidas sem aprender a ler certos sinais. Mal deixou Pippi, desapareceu completamente, deixando recado de que andava em viagem para juntar o dinheiro que devia ao Xanadu Hotel. Pippi não ficou surpreendido. Fuberta limitava-se a usar tácticas comuns naqueles casos. Escondera-se para poder negociar em segurança. O que significava que não tinha dinheiro e que não haveria bónus, a menos que Vincent e Petie conseguissem cobrar qualquer coisa pelo seu lado. Pippi recrutou alguns homens do Enclave do Bronx para vasculhar a cidade. Fez constar que Danny Fuberta era procurado pelos Clericuzio. Passou uma semana, e Pippi começou a sentir-se cada vez mais irritado. Devia ter adivinhado que a exigência de pagamento só serviria para alertar Fuberta. Que Fuberta devia ter calculado que cinquenta mil não seriam o suficiente, mesmo que tivesse esses cinquenta mil.

Passada mais uma semana, Pippi tornou-se impaciente. Por isso, quando a oportunidade surgiu, a sua reacção foi um pouco mais precipitada do que teria sido prudente.

Danny Fuberta reapareceu num pequeno restaurante do Upper West Side. O proprietário, um soldado dos Clericuzio, fez um rápido telefonema. Pippi chegou no momento em que Fuberta ia a sair do restaurante e, para grande surpresa de Pippi, sacou de uma arma. Fuberta era um vigarista, não tinha experiência com armas de fogo. Por isso, quando disparou, falhou por mais de meio metro. Pippi meteu-lhe cinco balas no corpo.

Houve, nesta cena, uma série de pormenores infelizes. Um, uma testemunha ocular. Dois, um carro-patrulha que fez a sua aparição antes que Pippi pudesse escapar. Três, Pippi não fizera quaisquer preparativos para uma cena de tiros, a sua intenção fora convencer Fuberta a irem para um local seguro. Quatro, embora não fosse impossível alegar legítima defesa, algumas testemunhas afirmaram que Pippi fora o primeiro a disparar. Tudo parecia confirmar o velho truísmo de que uma pessoa corre sempre mais perigos com a lei quando está inocente do que quando é culpada. Além disso, Pippi tinha um silenciador na arma, em previsão da sua última e amistosa conversa com Danny Fuberta.

Ajudou bastante o facto de Pippi ter reagido de uma forma perfeita à chegada do carro-patrulha. Não tentou abrir caminho a tiro, nem nada disso; limitou-se a seguir as directivas. Os Clericuzio tinham um mandamento inviolável: nunca disparar contra um agente da autoridade. Pippi não o fez. Deixou cair a arma no passeio e afastou-a com um pontapé. Submeteu-se pacificamente à captura e negou enfaticamente ter qualquer relação com o homem que jazia morto a poucos passos de distância.

As contingências deste tipo estavam previstas e havia planos estabelecidos para lhes fazer frente. Ao fim e ao cabo, por muito cuidado que se tivesse, havia sempre que contar com a perversidade do destino. Pippi parecia ter sido engolfado por um ciclone de azar, mas sabia que tudo o que tinha de fazer era descontrair-se, que podia contar com a Família Clericuzio para o levar a bom porto.

Em primeiro lugar, havia os caríssimos advogados de defesa que o tirariam da prisão sob fiança. Depois havia os juizes e os delegados do ministério público, que podiam ser persuadidos a tornarem-se intransigentes apoiantes do direito de cada um a defender-se, as testemunhas cuja memória podia falhar, os inabalavelmente independentes jurados americanos que, ao mais pequeno encorajamento, se recusariam a condenar só pelo prazer de frustrar as autoridades. Um soldado da Família Clericuzio não tinha de se pôr aos tiros para sair de apuros, como um qualquer cão raivoso.

No entanto, pela primeira vez nos seus muitos anos ao serviço da Família Clericuzio, Pippi De Lena tinha de ser submetido a julgamento num tribunal. E a estratégia legal exigia tradicionalmente que a esposa e os filhos estivessem presentes. Era preciso que os jurados soubessem que da sua decisão dependia a felicidade daquela inocente família. Doze homens e mulheres justos e honestos teriam de endurecer os seus corações. "Dúvida razoável era uma benesse de Deus para qualquer júri empolgado pela compaixão.

Durante o julgamento, os agentes da polícia declararam que não tinham visto Pippi com a arma na mão nem a afastá-la com um pontapé. Três das testemunhas foram incapazes de identificar o arguido, as outras duas eram tão veementes na maneira como identificavam Pippi que conquistaram imediatamente as simpatias do juiz e dos jurados. O proprietári do restaurante testemunhou que seguira Danny Fuberta até à porta porque este não tinha pago a conta, que assistira a tudo e que o autor dos disparos não era definitivamente Pippi De Lena, o réu.

Pippi calçava luvas na altura do tiroteio, razão pela qual não havia impressões digitais na arma. A defesa apresentou provas médicas de que Pipi sofria de ataques intermitentes de uma doença de pele misteriosa e incurável, pelo que lhe fora recomendado o uso de luvas.

Como medida máxima de segurança, um dos jurados tinha sido subornado. Ao fim e ao cabo, Pippi era um alto executivo da Família. Mas esta última precaução revelou-se desnecessária. Pippi foi absolvido e declarado para sempre inocente aos olhos da lei.

Não, porém, aos da mulher. Seis meses depois do julgamento, Nalen De Lena anunciou ao marido que queria o divórcio.

Há um preço a pagar para aqueles que vivem a altos níveis de tensão. Partes físicas do corpo desgastam-se. Comer e beber em excesso atacam o fígado e o coração. O sono torna-se criminosamente evasivo, o espírito não reage à beleza e não investe na confiança. Pippi e Nalene sofriam ambos deste mal. Ela não o suportava na cama, e ele era incapaz de ter prazer com uma parceira que não partilhasse o seu prazer. Ela não conseguia esconder o horror que lhe causava sabê-lo um assassino. Ele sentia um alívio enorme por não ter de continuar a esconder dela a sua verdadeira maneira de ser.

- OK, divorciamo-nos - disse Pippi a Nalene. - Mas eu não fico sem os meus filhos.

- Agora sei quem tu és - replicou Nalene. - Não quero voltar a ver-te e não consentirei que os meus filhos vivam contigo.

Isto surpreendeu Pippi. Nalene nunca fora voluntariosa ou agressiva E espantou-o que ela fosse capaz de falar com ele, Pippi De Lena, daquela maneira. Mas as mulheres eram sempre imprevisíveis. Considerou então sua própria posição. Não estava preparado nem equipado para criar filhos. Cross tinha onze anos e Claudia dez, e ele reconheceu que, a despeito da sua proximidade com Cross, ambas as crianças gostavam mais da mãe do que dele. Queria ser justo para com a mulher. Ao fim e ao cabo, ela tinha-lhe dado aquilo que ele queria, uma família, filhos, uma base sólida para a sua vida, algo de que todos os homens precisam. Quem sabia o que teria sido feito dele se não fosse ela? Vamos lá conversar a respeito disto - disse. - Podemos perfeitamente separar-nos sem rancores. - Ligou a torneira do charme. – Que diabo, tivemos uns bons doze anos. Tivemos alguns momentos felizes. E tivemos dois filhos maravilhosos, graças a ti. - Fez uma pausa, novamente surpreendido pela expressão fechada dela. - Ora vamos, Nalene, tenho sido um bom pai, os meus filhos gostam de mim. E eu ajudo-te em seja o que for que quiseres fazer. Naturalmente, podes ficar com a casa aqui em Vegas. E posso arranjar-te uma das lojas do Xanadu. Roupas, jóias, antiguidades. Vais ganhar os teus cem mil por ano. E podemos compartilhar os nossos filhos.

Odeio Las Vegas - replicou Nalene. - Sempre odiei. Tenho o meu diploma de professora e um emprego em Sacramento. Já inscrevi as crianças em escolas de lá.

Foi nesse momento que Pippi, com um choque de estupefacção, compreendeu que ela era uma adversária, que era perigosa. Tratava-se de um conceito totalmente estranho para ele. As mulheres, no seu quadro de referências, nunca eram perigosas. Nem uma esposa, nem uma amante, nem uma tia, nem a mulher de um amigo, nem sequer a filha do Don, Rose Marie. Pippi sempre vivera num mundo em que as mulheres não podiam ser o inimigo. Subitamente, sentiu a raiva, a onda de energia, que era capaz de sentir em relação a um homem.

Sob o impulso deste novo sentimento, disse:

- Não vou a Sacramento para ver os meus filhos.

Ficava furioso sempre que alguém rejeitava o seu encanto, recusava a sua amizade. Negar-se a ser razoável com Pippi De Lena era brincar com o fogo. Quando se decidia pela via da confrontação, Pippi não aceitava limites. Além disso, estava espantado por a mulher ter já feito planos.

- Dizes que sabes quem eu sou - prosseguiu. - Então tem muito cuidado. Podes ir para Sacramento, por mim podes até ir para o fim do mundo. Mas só levas um dos meus filhos contigo. O outro fica comigo.

Nalene olhou friamente para ele.

- O tribunal decidirá isso - declarou. - Creio que o melhor é dizeres ao teu advogado que fale com o meu. - Quase se riu ao ver a expressão de espanto na cara dele.

- Tens um advogado?- exclamou Pippi. - Vais levar-me a tribunal? Então começou a rir. As gargalhadas pareciam apoderar-se dele. Estava quase histérico.

Era estranho ver um homem que durante doze anos fora um apaixonado suplicante, um pedinte da carne dela, o seu escudo contra as crueldades do mundo, transformar-se assim num animal perigoso e ameaçador. Nesse instante, compreendeu finalmente por que razão os outros homens o tratavam com tanto respeito, por que mostravam tanto medo dele. Naquele momento, a cara feia de Pippi não tinha nada da simpatia que a tornava desarmante. Estranhamente, Nalene estava menos assustada do que ofendida pelo facto de o amor dele por ela poder ter desaparecido tão de repente. Ao fim e ao cabo, durante doze anos tinham cuidado um do outro, rido juntos, dançado juntos, criado os filhos juntos, e agora a gratidão dele por tudo o que ela lhe dera não contava para nada.

Pippi disse-lhe, friamente:

- Não quero saber o que decides. Não quero saber do que o juiz decidir. Sê razoável, e eu serei razoável. Arma-te em dura, e ficarás sem nada.

Pela primeira vez, ela teve medo de todas aquelas coisas que amara; o corpo poderoso dele, as mãos grandes e de ossos pesados, as feições irregulares e rudes que sempre achara varonis, embora outros as dissessem feias. Durante todo o tempo que tinham estado casados, ele fora mais cortesão do que marido, nunca erguera a voz para ela, nunca dissera a mais pequena piada à sua custa, nunca lhe ralhara quando ela gastava demasiado dinheiro. E era verdade que tinha sido um bom pai, só se mostrando duro com os filhos quando eles não tratavam a mãe com o devido respeito.

Sentiu-se desfalecer, mas o rosto de Pippi tornou-se mais distinto, como que emoldurado por uma sombra. Tinha as faces mais pesadas, a ligeirís-sima cova que lhe marcava o queixo parecia tapada por uma bolinha de massa preta, entre os pêlos das espessas sobrancelhas apareciam alguns fios brancos, mas os cabelos que lhe cobriam o crânio maciço eram negros, cada fio grosso como uma crina de cavalo. Os olhos, geralmente tão risonhos, tinham-se tornado de um castanho implacável.

- Pensei que me amavas - disse Nalene. - Como é que podes assustar-me desta maneira? - Começou a chorar.

Isto desarmou Pippi.

- Escuta - tentou contemporizar-, não ligues ao que diz o teu advogado. Vamos para tribunal, e digamos que eu perco em toda a linha. Nem mesmo assim conseguirias ficar com os dois miúdos. Nalene, não me obrigues a ser duro. Não quero ser. Compreendo que não queiras continuar a viver comigo. Sempre pensei que era um felizardo por ter-te tido durante tanto tempo. Quero que sejas feliz. Conseguirás muito mais de mim do que de qualquer tribunal. Mas estou a ficar velho, não quero viver sem uma família. Por uma das poucas vezes na sua vida, Nalene não conseguiu resistir a um toque de malícia.

Tens os Clericuzio - disse.

Pois tenho - admitiu Pippi. - E tu não deves esquecer-te disso. Mas o mais importante é que não quero viver sozinho quando for velho.

Há milhões de homens que vivem - ripostou Nalene. - E mulheres também.

Porque são fracos. Estranhos decidem das suas vidas. Outras pessoas anulam as suas existências. Eu não deixo que me façam isso.

És tu quem os anula a eles? - perguntou Nalene, trocista.

Exacto. - Pippi olhou para ela e sorriu. - E exactamente isso.

Poderás visitá-los sempre que quiseres - insistiu Nalene.- Mas irão os dois viver comigo.

Neste ponto, ele voltou-lhe as costas e disse com uma voz sem inflexões:

Faz como quiseres.

Espera! - pediu Nalene. Pippi voltou-se. E ela viu-lhe no rosto algo de tão terrível na sua ferocidade sem alma que murmurou:- Se um deles quiser ficar contigo, então está bem.

Pippi ficou subitamente exuberante, como se o problema estivesse resolvido, - Óptimo! - exclamou. - O teu miúdo poderá vir visitar-me em Las Vegas e o meu poderá ir ver-te a Sacramento. é perfeito. Vamos arrumar esta questão esta noite.

Nalene tentou um último esforço:

- Não se é velho aos quarenta anos. Podes começar outra família. Pippi abanou a cabeça.

Nunca - disse. - Tu és a única mulher que alguma vez me prendeu. Casei tarde e sei que nunca mais voltarei a casar. Tens a sorte de eu ser suficientemente esperto para saber que não posso ficar contigo e eu sou suficientemente esperto para saber que não posso começar outra vez.

é verdade - assentiu Nalene -, não podes conseguir que eu volte a amar-te.

Mas podia matar-te - disse Pippi. Estava a sorrir para ela, como se fosse uma brincadeira.

Nalene olhou-o nos olhos e acreditou. Compreendeu que era aquela a fonte do seu poder, o facto de que quando fazia uma ameaça as pessoas acreditavam. Reuniu as suas últimas reservas de coragem.

Lembra-te - disse -, se ambos quiserem ficar comigo, terás de os deixar.

Eles amam o pai - afirmou Pippi. - Um deles há-de querer ficar com o velhote.

Nessa noite, depois do jantar, com a casa refrescada pelo ar condicionado enquanto lá fora o calor do deserto esbraseava ainda, a situação foi exposta a Cross e a Claudia, que tinham respectivamente onze e dez anos. Nenhum deles pareceu surpreendido. Cross, tão bonito quanto a mãe era bela, tinha já a dureza interior do pai, e a mesma prontidão de resposta. Além disso, era totalmente destemido. Falou instantaneamente:

- Eu fico com a mãe.

Claudia estava aterrorizada pela necessidade de escolher. Com a astúcia das crianças, disse:

- E eu fico com o Cross.

Pippi ficou surpreendido. Cross estava mais próximo dele do que da mãe. Cross era o que ia à caça com ele, Cross gostava de jogar cartas, de jogar golfe e de praticar boxe. Cross não tinha o mínimo interesse na obsessão da mãe pelos livros e pela música. Era Cross quem ia até à agência de cobranças fazer-lhe companhia quando ele tinha de tratar da papelada, nas manhãs de sábado. Na realidade, tivera a certeza de que seria Cross a ficar com ele. Sempre esperara que fosse Cross.

Achou graça à resposta astuciosa de Claudia. A miúda era esperta. Mas Claudia parecia-se demasiado com ele, não queria ser obrigado a olhar todos os dias para uma cara feia tão parecida com a dele. E era lógico que Claudia fosse com a mãe. Claudia amava as mesmas coisas que Nalene. Que diabo faria ele com Claudia?

Pippi estudou os filhos. Estava orgulhoso deles. Sabiam que a mãe era a mais fraca dos dois, e estavam a pôr-se do lado dela. E reparou que Nalene, com o seu instinto teatral, se preparara habilmente para a ocasião. Vestia sobriamente umas calças e uma camisola pretas, tinha os cabelos dourados presos por uma estreita fita negra, destacando o oval pálido e maravilhosamente delicado do rosto. Teve consciência da brutalidade do seu próprio aspecto, como devia aparecer aos olhos das crianças.

Resolveu abrir a torneira do encanto.

- Tudo o que peço - disse - é que um de vocês fique a fazer-me companhia. Poderão ver-se um ao outro sempre que quiserem. Não é verdade, Nalene? Com certeza não querem que eu fique a viver aqui em Las Vegas completamente sozinho.

As duas crianças olhavam fixamente para ele. Pippi voltou-se para Nalene.

- Tens de ajudar - disse. - Tens de escolher. - E então pensou furiosamente para si mesmo: "Por que raio é que me estou a ralar?"

- Prometeste que se os dois quisessem ir comigo, os deixavas - lembrou Nalene.

Vamos lá conversar - disse Pippi. Não se sentia ofendido: sabia que os filhos o amavam, mas amavam ainda mais a mãe. Achou isso natural. O que não significava que tivessem feito a escolha certa.

Não há nada para conversar - teimou Nalene, desdenhosamente.

- Tu prometeste.

Pippi não soube como pareceu terrível aos outros três. Não soube como os seus olhos se tornaram frios. Pensou que tinha conseguido controlar a voz quando falou, pensou estar a falar razoavelmente.

- Têm de escolher. Prometo que, se não resultar, se fará como tu queres. Mas eu tenho de ter uma possibilidade.

Nalene abanou a cabeça.

- Estás a ser ridículo - disse. - Vou para tribunal. Nesse instante, Pippi decidiu o que tinha de fazer.

- Não tem importância. Pode ser como tu queres. Mas pensa nisto. Pensa na nossa vida juntos. Pensa em quem tu és e em quem eu sou. Peço-te que sejas razoável. Que penses no futuro de todos nós. O Cross é como eu, a Claudia é como tu. O Cross ficará melhor comigo, a Claudia ficará melhor contigo. É assim que as coisas são. - Interrompeu-se por um instante.

- Não te basta saber que ambos gostam mais de ti do que de mim? Que sentiriam mais a tua falta do que a minha?

A última frase ficou como que suspensa no ar. Pippi não queria que os filhos compreendessem o que estava a dizer.

Mas Nalene compreendeu. Num impulso de terror, puxou Claudia para junto de si. Nesse instante Claudia olhou suplicantemente para o irmão e disse:

- Cross...

Cross manteve o rosto impassivelmente belo. O seu corpo moveu-se com graciosidade. Num instante, estava junto do pai.

- Eu fico contigo, Papá - disse.

E Pippi pegou-lhe agradecidamente na mão. Nalene estava a soluçar.

- Cross, hás-de visitar-me muitas vezes, sempre que quiseres. Hás-de ter um quarto só teu em Sacramento. Ninguém lá dormirá senão tu.

Era, ao fim e ao cabo, uma deslealdade.

Pippi quase saltou de exuberância. Era um peso tão grande que lhe tiravam da alma o facto de já não ser obrigado a fazer o que por um instante tinha decidido fazer!

- Temos de festejar! - disse. - Mesmo quando nos divorciarmos seremos duas famílias felizes, em vez de uma família feliz. E havemos de viver felizes para sempre. - Os outros olhavam para ele petrificados. – Bom, que diabo, pelo menos, vamos tentar - concluiu.

Claudia não voltou a visitar o pai e o irmão em Las Vegas depois dos primeiros dois anos. Cross ia todos os anos a Sacramento visitar a irmã e mãe, mas, a partir dos seus quinze anos, estas visitas passaram a resumir-se às férias de Natal.

Os dois diferentes pais eram dois pólos de vida diferentes. Claudia e mãe tornaram-se cada vez mais parecidas. Claudia adorava a escola; adorava livros, teatro, cinema; deleitava-se com o amor da mãe. E Nalene encontrava em Claudia a vivacidade do marido, o seu encanto. Amava a sua falt de beleza, que não tinha nada a ver com a brutalidade do pai. Eram felize juntas.

Claudia acabou a universidade e foi viver para Los Angeles, decidida a tentar a sorte no mundo do cinema. Nalene teve pena de vê-la partir, mas construíra uma vida agradável com amigos em Sacramento, e tornara-si vice-reitora de um dos principais liceus da cidade.

Também Cross e Pippi se tinham tornado uma família feliz, mas de uma maneira completamente diferente. Pippi pesava os factos. Cross era um atleta excepcional no liceu, mas um aluno medíocre. A universidade não o atraía minimamente. E, embora fosse extraordinariamente bem parecido, não se mostrava excessivamente interessado em mulheres.

Cross gostava de viver com o pai. Na realidade, por muito desagradável que fosse a decisão tomada, parecia ter acabado por revelar-se a melhor. Duas famílias felizes, sem dúvida, mas não juntas. Pippi provou ser tão bom pai para Cross como Nalene para Claudia; isto é, fez o filho à sua imagem.

Cross adorava o funcionamento do Xanadu Hotel, a manipulação dos clientes, a luta contra os artistas da golpada. E demonstrava um apetite normal pelas coristas do corpo de baile; ao fim e ao cabo, não devia julgar o filho por si mesmo. Pippi decidiu que Cross teria de juntar-se à Família. Acreditava piamente nas palavras que o Don tanto gostava de repetir: "O mais importante na vida é ganhar o pão de cada dia."

Começou por dar sociedade ao filho na agência de cobranças. Levava-o ao Xanadu Hotel para jantar com Gronevelt e manobrou de maneira que este se interessasse pelo bem-estar de Cross. Fez de Cross um dos quatro parceiros nas suas partidas de golfe com os grandes clientes do hotel, incluindo-o sempre no par que jogava contra ele próprio. Cross, com dezassete anos de idade, tinha essa característica especial do profissional do golfe: jogava sempre muito melhor um dado buraco quando as apostas eram elevadas. Cross e o parceiro ganhavam invariavelmente. Pippi aceitava de boa vontade estas derrotas; embora lhe custassem dinheiro, traziam enormes vantagens ao filho.

Levava Cross a Nova Iorque para as ocasiões sociais da Família Cleri-cuzio: todos os feriados - particularmente o 4 de Julho, que a Família festejava com grande fervor patriótico - todos os casamentos e funerais. Ao fim e ao cabo, Cross era primo direito deles, tinha o sangue de Don Domenico a correr-lhe nas veias.

Quando Pippi fez a sua passagem habitual pelas mesas de jogo do Xana-du, para ganhar, com o seu croupier especial, a avença combinada de oito mil dólares semanais, Cross sentou-se a assistir. Pippi instruiu-o sobre as percentagens de todas as formas de jogo. Ensinou-o a gerir o dinheiro do jogo, a nunca jogar quando estivesse indisposto, a nunca jogar mais de duas horas por dia, a nunca jogar mais de três vezes por semana, a nunca apostar forte quando estivesse a perder, a nunca perder a calma quando estivesse a ganhar.

Parecia-lhe perfeitamente natural um pai mostrar ao filho a fealdade do mundo real. Como sócio minoritário da agência de cobranças, Cross precisava de ter este tipo de conhecimento. Porque as cobranças nem sempre eram tão pacíficas como Pippi as descrevia a Nalene.

Em algumas das mais difíceis, Cross não dava mostras de se sentir incomodado. Era ainda demasiado jovem e demasiado bonito para inspirar temor, mas o seu corpo parecia suficientemente forte para fazer cumprir quaisquer ordens que Pippi pudesse dar.

Finalmente, para testar o filho, Pippi mandou-o sozinho fazer uma cobrança particularmente difícil, onde só a persuasão, e não a força, poderia ser usada. O simples facto de enviar Cross era em si mesmo uma indicação de que a cobrança não seria forçada, um sinal de boa vontade para com o devedor. O homem em causa, um insignificante bruglione de uma Família do Nordeste da Califórnia, devia cem mil dólares ao Xanadu. Não era um caso suficientemente importante para envolver o nome dos Clericuzio, as coisas tinham de ser resolvidas a um nível muito inferior; em suma, a luva de veludo em vez do punho de ferro.

Cross apanhou o barão da Máfia numa má altura. O homem, Falco, escutou a exposição conciliatória feita por Cross, e então sacou de uma arma e encostou-a à garganta do jovem.

- Mais uma palavra e espalho-te as putas das amígdalas pela parede! - ameaçou.

Cross, para sua grande surpresa, não sentiu medo.

Assentamos em cinquenta mil - disse. - Com certeza não vai querer matar-me por uns míseros cinquenta mil, pois não? O meu pai não havia de gostar.

Quem é o teu pai? - perguntou Falco, com a arma ainda encostada à garganta de Cross.

- Pippi De Lena - respondeu o jovem -, e vai matar-me de qualquer maneira por ter aceitado cinquenta mil.

Falco riu-se e afastou a pistola.

Está bem, diz-lhe que pago da próxima vez que for a Vegas.

Pergunte por mim quando lá for - disse Cross. - Dou-lhe o seu habitual privilégio QCB [5].

Falco reconhecera o nome de Pippi, mas também houvera algo na cara de Cross que o detivera. A ausência de medo, a frieza da resposta, a pequena piada. Tudo isto falava de alguém a quem amigos não deixariam de vingar. Mas o incidente persuadiu Cross a levar uma arma e um guarda-costas nas suas futuras cobranças.

Pippi celebrou a coragem do filho com umas férias para os dois no Xanadu. Gronevelt deu-lhes duas boas suites e ofereceu a Cross uma bolsa de fichas pretas.

Na altura Gronevelt tinha oitenta anos e os cabelos completamente brancos, mas o seu corpo continuava vigoroso e ágil. Tinha, além disso, uma veia pedagógica. Adorava ensinar Cross. Quando lhe entregou a bolsa com as fichas pretas, disse-lhe:

- Não podes ganhar, de modo que estas hão-de acabar por voltar à minha mão. Mas se me deres ouvidos, terás uma hipótese. O meu hotel tem outras diversões. Um excelente campo de golpe... há jogadores que vêm do Japão para jogar aqui. Temos óptimos restaurantes e lindas raparigas nos nossos espectáculos, em que participam as maiores estrelas do cinema e da música de todo o mundo. Temos quadras de ténis e piscinas. Temos uma excursão especial de avião que pode levar-te a ver o Grande Canyon. Tudo de borla. Não há, portanto, qualquer razão para que os cinco mil que tens nessa bolsa se percam. Não jogues.

Durante as suas férias de três dias, Cross seguiu este conselho. Todas as manhãs, jogava uma partida de golfe com Gronevelt, o pai e um grande Como o próprio autor explica mais adiante, a expressão significa, quarto, comida e bebida gratuitos (Room, Food and Beverages).

Magnata instalado no hotel. As apostas eram sempre substanciais, mas nunca exorbitantes. Gronevelt notou com satisfação que quanto mais dinheiro estava em jogo, melhor era o desempenho de Cross. "Nervos de aço, nervos de aço", dizia admirativamente a Pippi.

O que Gronevelt mais aprovava era, no entanto, o bom senso do rapaz, a sua inteligência, a maneira como sabia fazer o que era certo sem que lho dissessem. Na última manhã, o magnata que jogava com eles estava de mau humor, e por boas razões. Jogador hábil e ardoroso, tremendamente rico graças a uma lucrativa cadeia de casas pornô, perdera quinhentos mil dólares na noite anterior. Não era tanto o dinheiro em si que o incomodava, mas o facto de ter perdido o controlo no meio de uma onda de má sorte e tentado dar a volta por cima: o erro de um jogador inexperiente.

Nessa manhã, quando Gronevelt propôs uma aposta moderada de cinquenta dólares por buraco, o homem fungou e disse:

- Alfred, com aquilo que me sacou ontem à noite, pode dar-se ao luxo de apostar a sério.

Gronevelt ficou ofendido com isto. A partida matinal de golfe era uma ocasião social; misturá-la com os assuntos do casino denotava mau gosto e más maneiras. Mas, com a sua cortesia habitual, disse:

- Com certeza. Até lhe dou o Pippi como parceiro. Eu jogo com o Cross.

Jogaram. O magnata das casas porno jogou bem. Pippi também. Gronevelt também. Só Cross falhou. Fez o pior jogo de golfe que os outros alguma vez tinham visto. Entortou os drives, enterrou-se nos bunkers, atirou a bola para o minúsculo lago (construído a enormes expensas no deserto do Nevada) e perdeu completamente o domínio dos nervos com o putter'. o magnata pornográfico, cinco mil dólares mais rico e com o ego restabelecido, insistiu em que tomassem juntos o pequeno-almoço.

Lamento tê-lo deixado ficar mal, Mr. Gronevelt - desculpou-se Cross. Gronevelt olhou gravemente para ele e disse:

Um dia, com autorização do teu pai, terás de vir trabalhar para mim. Ao longo dos anos, Cross observara atentamente o relacionamento entre o pai e Gronevelt. Eram bons amigos, jantavam juntos uma vez por semana, e Pippi tinha para com Gronevelt uma deferência evidente, que não mostrava sequer relativamente aos Clericuzio. Gronevelt, pelo seu lado, parecia não recear Pippi, embora pusesse à sua disposição todas as facilidades do Xanadu, excepto uma villa. Além disso, Cross ficara a saber que o pai ganhava oito mil dólares semanais pagos pelo hotel, e não tardara a fazer a ligação. Os Clericuzio e Gronevelt eram sócios no Xanadu.

E Cross estava consciente de que Gronevelt se interessava particularmente por ele, o tratava com uma consideração especial. Como provava a bolsa com fichas pretas que lhe dera durante as suas férias. E havia muitas outras provas de simpatia e favor. Cross tinha acesso gratuito, para si mesmo e para os amigos, a todas as instalações do Xanadu. Quando acabara o liceu, o presente de Gronevelt fora um descapotável. A partir do momento em que completara dezassete anos, Gronevelt apresentara-o com um afecto evidente às bailarinas do hotel, com o objectivo de lhe dar um certo peso. Mais tarde, Cross ficara a saber que Gronevelt, apesar de velho, recebia por vezes mulheres na sua suíte do terraço, para jantar, acontecimento que, a dar crédito aos mexericos das coristas, poderia fazer a fortuna de qualquer rapariga. Gronevelt nunca tivera uma paixão a sério, mas era tão extraordinariamente generoso nas suas prendas que as mulheres adoravam-no, e qualquer uma que conservasse o seu favor durante um mês ficava rica.

Certa vez, quando, numa das suas conversas de professor para aluno, Gronevelt o instruíra sobre os segredos de dirigir um grande hotel-casino como o Xanadu, Cross atreveu-se a fazer-lhe uma pergunta relativa às mulheres no contexto das relações patrão-empregado.

Gronevelt sorriu-lhe: Deixo as mulheres que entram nos espectáculos para o director que se ocupa das diversões. Quanto às outras, trato-os exactamente como se fossem homens. Mas se estás a pedir-me um conselho sobre a tua vida amorosa, devo dizer-te o seguinte. Um homem inteligente e razoável não tem, na maior parte dos casos, nada a temer das mulheres. Deves ter cuidado com duas coisas. Primeira e mais importante: a donzela em perigo. Segundo: uma mulher que seja mais ambiciosa do que tu. Não penses que não tenho coração, poderia perfeitamente defender da mesma maneira o ponto de vista das mulheres, mas não é isso que nos interessa agora. Eu tive sorte, amei o Xanadu mais do que qualquer outra coisa no mundo. Mas devo dizer-te que lamento não ter tido filhos.

Parece viver uma vida perfeita - disse Cross.

Achas que sim? - respondeu Gronevelt. - Bom, pago o preço.

Na grande mansão, em Quogue, as mulheres da Família Clericuzio andavam entusiasmadíssimas com Cross. Com vinte anos, o jovem estava no auge da sua virilidade - era bonito, elegante, forte e, para a sua idade, surpreendentemente bem educado. Na Família corriam piadas, não inteiramente isentas daquela malícia tão característica dos camponeses sicilianos, a respeito de, graças a Deus, ele se parecer com a mãe e não com o pai.

No domingo de Páscoa, quando mais de uma centena de parentes festejavam a ressurreição de Cristo, a peça final que lhe faltava no quebra-cabeças que era o pai foi-lhe fornecida pelo seu primo Dante.

No vasto jardim murado da mansão, Cross viu uma bonita rapariga à conversa com um grupo de rapazes. Viu o pai aproximar-se da mesa do bufete para se servir de um prato de salsichas grelhadas e dirigir um comentário amistoso ao grupo de jovens. Reparou então que a rapariga que lhe chamara a atenção se encolhia visivelmente à aproximação de Pippi. As mulheres geralmente gostavam do pai; a sua fealdade, o seu bom humor e a sua alegria desarmavam-nas.

Também Dante observou a cena.

- Bonita rapariga - disse, com um sorriso. - Vamos até lá cumprimentá-la.

Aproximaram-se, e Dante fez as apresentações:

- Lila, este é o nosso primo Cross.

Lila tinha a idade deles, mas não estava ainda completamente desenvolvida como mulher; tinha a beleza levemente imperfeita da adolescência. Os seus cabelos eram da cor do mel, a pele brilhava-lhe como que refrescada por alguma fonte interior, mas a boca era demasiado vulnerável, como se não estivesse ainda completamente formada. Vestia uma camisola de angorá que lhe dava à pele um tom de ouro. Cross apaixonou-se por ela no mesmo instante.

Quando tentou falar-lhe, porém, Lila voltou-lhe as costas e procurou a protecção das matronas numa outra mesa.

- Acho que não gostou da minha cara - disse Cross, ligeiramente atrapalhado, dirigindo-se a Dante, que lhe respondeu com um sorriso perverso.

Dante transformara-se num estranho jovem transbordante de vitalidade e dotado de um rosto duro, astuto. Tinha os cabelos negros e espessos dos Clericuzio, que conservava escondidos debaixo de um curioso barrete do tipo dos que se usavam na Renascença. Era muito baixo, um pouco menos de um metro e sessenta, mas tinha uma confiança desmedida em si mesmo, talvez por ser o favorito do velho Don. Ostentava sempre um ar de malícia. Naquele momento, disse a Cross:

- O nome dela é Anacosta.

Cross lembrava-se do nome. Um ano antes, a Família Anacosta sofrera uma tragédia. O chefe da família e o filho mais velho tinham sido mortos a tiro no quarto de um hotel de Miami. Mas Dante estava a olhar para Cross, à espera de alguma resposta. Cross manteve uma expressão impassível.

E então? - disse.

Trabalhas com o teu pai, não é verdade? - perguntou Dante.

Sim.

E queres namorar a Lila? - espantou-se Dante. - Estás mas é doido! - E riu-se.

Cross adivinhou que havia ali um perigo qualquer. Permaneceu silencioso.

- Não sabes o que é que o teu pai faz? - continuou Dante.

- Claro. Cobra dívidas. Dante abanou a cabeça.

- Tens de saber. O teu pai mata pessoas por conta da Família. E o seu principal martelo.

Para Cross, foi como se todos os mistérios da sua vida tivessem sido dissipados pelo sopro de algum feiticeiro. Tornava-se tudo muito claro. A repulsa da mãe pelo pai, o respeito que os amigos e os membros da Família Clericuzio mostravam a Pippi, os misteriosos desaparecimentos do pai durante semanas seguidas, a arma que usava sempre, as piadas que não conseguia entender. Recordou o julgamento por assassínio, banido das suas recordações de infância de uma maneira curiosa, na noite em que o pai lhe pegara na mão. Então, invadiu-o uma súbita onda de afecto pelo pai, a sensação de que tinha de protegê-lo fosse como fosse, agora que ele estava tão nu.

Acima de tudo, porém, Cross sentia uma fúria enorme por Dante se ter atrevido a dizer-lhe aquela verdade.

- Não - disse -, não sei disso. E tu também não sabes disso. Ninguém sabe. - E esteve quase a acrescentar: "E tu bem podes ir-te lixar, anão de merda!", mas, em vez disso, sorriu a Dante e perguntou: - Onde diabo foste tu arranjar esse raio desse chapéu?

Virginio Ballazzo estava a organizar a caça aos ovos de Páscoa com o à vontade de um palhaço nato. Reuniu as crianças à sua volta, bonitas flores com roupas de festa, pequenos rostos como pétalas, peles frescas e suaves como casca de ovo, chapéus enfeitados de fitas, faces rosadas de excitação. Deu a cada uma um cesto de palha e um beijo na testa e gritou-lhes: "Vão!" As crianças debandaram.

O próprio Virginio Ballazzo era um espectáculo digno de ser visto, com o seu fato cortado em Londres, os sapatos vindos de Itália, a camisa feita em França, o cabelo cortado por um qualquer Miguel Angelo de Manhattan. A vida fora boa para Virginio e abençoara-o com uma filha quase tão encantadora como as crianças.

Lucille, a quem todos chamavam Ceil, tinha dezoito anos e naquele dia fazia de assistente do pai. Enquanto distribuía os cestos, os homens que se encontravam no relvado assobiavam para si mesmos admirando a sua beleza. Vestia uns calções e uma blusa branca aberta. A pele era morena, com a tonalidade rica das natas batidas. Trazia os cabelos, negros e compridos, enrolados em volta da cabeça como uma coroa. Parecia uma rainha da Primavera criada por uma saúde soberba, juventude e a genuína felicidade que um espírito alegre pode proporcionar.

Pelo canto do olho, viu Cross e Dante a discutirem, e apercebeu-se de que, por um instante, Cross sofrera um golpe devastador que o fez arrepanhar os cantos da boca.

Restava-lhe um cesto no braço, e aproximou-se do lugar onde Cross e Dante se encontravam.

- Qual de vocês quer ir caçar ovos? -perguntou, com um sorriso radiante de bom humor. Estendeu o cesto.

Ficaram os dois a olhar para ela em muda admiração. A luz do fim da manhã transformava a sua pele em ouro, os olhos dela dançavam de prazer. A blusa branca moldava-lhe o contorno dos seios de uma forma que era simultaneamente convidativa e virginal, as suas coxas redondas eram brancas como leite.

Nesse instante, uma das rapariguinhas pôs-se a gritar. Todos olharam para ela. A criança descobrira um ovo enorme, tão grande como uma bola de bowlingz berrantemente pintado de azuis e vermelhos. Estivera a tentar metê-lo no cesto, com o bonito chapelinho branco todo de banda, os olhos muito abertos de espanto e determinação. Mas o ovo partira-se e uma pequena ave voara do seu interior, e fora isso o que provocara o seu grito.

Petie atravessou o relvado a correr e pegou-lhe ao colo, para a consolar. Era uma das suas partidas habituais, e a multidão riu.

A menina endireitou cuidadosamente o chapéu, disse, numa voz aguda de indignação, "Pregaste-me uma partida", e deu um estalo na cara de Petie. Os risos da multidão redobraram quando ela se afastou a correr de Petie, que continuava a pedir-lhe desculpa. Voltou a levantá-la nos braços e ofereceu-lhe um ovo de Páscoa de joalharia, pendente de uma corrente de ouro. A rapariguinha aceitou-o e deu-lhe um beijo.

Ceil pegou na mão de Cross e levou-o para o courtàe ténis, que ficava a cerca de cem metros da mansão. Sentaram-se no pequeno abrigo com três paredes cujo lado aberto apontava na direcção contrária à área dos festejos, de modo que poderiam ter alguma intimidade.

Dante ficou a vê-los afastarem-se com uma sensação de humilhação. Tinha perfeita consciência de que Cross era mais atraente do que ele, e sentia-se preterido. No entanto, orgulhava-se de ter um primo tão bem parecido. Para sua surpresa, deu por si de cesto na mão, de modo que acabou por encolher os ombros e juntar-se à caça aos ovos.

Escondidos no abrigo, Ceil tomou o rosto de Cross entre as mãos e beijou-o nos lábios. Foram beijos ternos, quase fugidios. Mas quando ele tentou meter-lhe as mãos por baixo da blusa, ela afastou-lhas. Tinha um sorriso radiante no rosto.

- Queria beijar-te desde que tínhamos dez anos - disse. - E hoje era a ocasião perfeita.

Cross sentiu-se excitado pelos beijos dela, mas limitou-se a perguntar:

Porquê?

Porque tu és tão bonito e tão perfeito. Nada pode estar mal num dia como o de hoje. - Enfiou uma mão na dele. - Não achas que temos umas famílias maravilhosas? - disse. Então, subitamente, perguntou: - Por que foi que ficaste com o teu pai?

Foi assim que as coisas aconteceram - respondeu Cross.

E estavas a discutir com o Dante? é um tipo tão esquisito!

O Dante é bom rapaz - disse Cross. - Estávamos só a brincar. Ele é um brincalhão, como o meu tio Petie.

O Dante é demasiado bruto - declarou Ceil, e voltou a beijar Cross. Apertou-lhe as mãos com força. - O meu pai está a ganhar muito dinheiro. Vai comprar uma casa no Kentucky, tem um Rolls Royce de 1920. Já tem três carros antigos e vai comprar cavalos no Kentucky. Porque não vais lá a casa amanhã ver os carros? Sempre gostaste dos cozinhados da minha mãe.

Tenho de voltar paraVegas amanhã - disse Cross. - Agora trabalho no Xanadu.

Ceil puxou-lhe pela mão.

Detesto Las Vegas - declarou. - Acho que é uma cidade nojenta.

Eu acho que é óptima - respondeu ele, sorrindo. - Como é que a detestas, se nunca lá estiveste?

- Porque as pessoas vão lá deitar fora o dinheiro que lhes custa a ganhar - disse Ceil, cheia de indignação juvenil. - Graças a Deus, o meu pai não joga. E todas aquelas descaradas daquelas coristas!

Cross riu-se.

- Disso não sei. Limito-me a dirigir o campo de golfe. Nunca entro no casino.

Ceil sabia que ele estava a brincar com ela, mas perguntou:

Se eu te convidar para me ires visitar quando for para a universidade, tu vais?

Claro - respondeu Cross.

Naquele jogo, ele era de longe o mais experiente. E sentiu-se enternecido pela inocência dela, por aquele dar de mãos, pela sua ignorância de quem era o pai e de quais eram os verdadeiros objectivos da Família. Compreendeu que aquilo era uma experiência nova para ela, provocada pela beleza do dia, pela celebração da explosão de feminilidade no seu corpo, e sentiu-se tocado pela casta doçura dos seus beijos.

- É melhor voltarmos para a festa - disse, e regressaram de mãos dadas à área do piquenique. O pai dela, Virginio, foi o primeiro a avistá-los e esfregou um dedo contra o outro, dizendo "Juízo! Juízo!" com um ar feliz. Depois abraçou-os a ambos. Foi um dia que Cross sempre recordaria pela sua inocência, com as crianças castamente vestidas de branco para anunciar a ressurreição, e porque finalmente compreendera quem era o pai.

Quando Pippi e Cross regressaram a Las Vegas, as coisas tornaram-se diferentes entre os dois. Pippi sabia obviamente que o seu segredo fora revelado e passou a tratar Cross com mais afecto. Cross, pelo seu lado, ficou surpreendido ao verificar que os seus sentimentos relativamente ao pai não tinham mudado, que continuava a amá-lo. Não conseguia imaginar a vida sem o pai, sem a Família Clericuzio, sem Gronevelt e sem o Xanadu Hotel. Aquela era a sua vida, e não se sentia infeliz por isso. Mas começou a crescer nele uma impaciência. Havia outro passo que tinha de ser dado.

Carol Cino/Star Water Press.

 

Claudia De Lena

Athena Aquitane.

 

A caminho da casa de Athena em Mailbu, Claudia ia pensando no que poderia dizer-lhe para a convencer a voltar ao trabalho.

Aquilo era tão importante para ela como para os estúdios. Messalina era o seu primeiro argumento verdadeiramente original; os seus outros trabalhos tinham sido adaptações de romances, reconversões ou alterações de outros guiões, ou colaborações.

Por outro lado, era coprodutora de Messalina, o que lhe dava um poder que nunca antes tivera. Além de uma fatia maior dos lucros. Desta vez ia ganhar dinheiro a sério. E depois poderia dar o passo seguinte: produtora-argumentista. Era possivelmente a única pessoa a oeste do Mississipi que não queria ser realizadora; esse trabalho exigia uma crueldade nas relações humanas que ela não era capaz de tolerar.

O relacionamento de Claudia com Athena era de verdadeira intimidade, não a amizade profissional de companheiros de trabalho na mesma indústria. Athena havia de saber quanto aquele filme significava para a sua carreira. Athena era inteligente. O que verdadeiramente intrigava Claudia era aquele medo de Boz Skannet. Athena nunca tivera medo de nada nem de ninguém.

Bom, pelo menos uma coisa havia de conseguir. Havia de descobrir exactamente porque tinha Athena tanto medo, e então poderia ajudar. E, sem a mínima dúvida, tinha de salvar Athena de arruinar a sua própria carreira. Ao fim e ao cabo, quem sabia mais do que ela a respeito das complexidades e armadilhas do negócio do cinema?

Claudia De Lena sonhava com uma vida de escritora em Nova Iorque. Não se deixou desencorajar quando, com dezoito anos, o seu primeiro romance foi recusado por vinte editoras. Em vez disso, resolveu mudar-se para Los Angeles e tentar a sorte como argumentista.

Porque era inteligente, e cheia de vivacidade, e talentosa, depressa fez muitos amigos em Los Angeles. Inscreveu-se num curso de argumentistas conheceu um rapaz que era filho de um famoso cirurgião plástico. Tornaram-se amantes, e ele estava perfeitamente enfeitiçado pelo corpo e pela inteligência dela. Foi ele quem alterou a situação de "camaradas e parceiros de cama" para "relação séria". Uma noite levou-a a casa, para jantar e conhecer a família. O pai, o cirurgião plástico, ficou encantado. Depois do jantar, pôs as mãos em torno da cara dela.

- E uma injustiça que uma rapariga como tu não seja tão bonita como deveria - disse. - Não te ofendas, é uma infelicidade perfeitamente natural. E é o meu trabalho. Posso resolver isso, se me deixares.

Claudia não ficou ofendida, mas ficou indignada.

Por que diabo haveria eu de ser bonita? - perguntou, com um sorriso. - Que bem é que isso me faria? Em todo o caso, sou suficientemente bonita para o seu filho.

Claro que és! - apressou-se o cirurgião a concordar. - E quando eu acabar de tratar de ti, serás demasiado bonita para o meu filho. Es uma rapariga meiga e inteligente, mas a beleza é poder. Queres realmente passar o resto da tua vida a ver os homens juntarem-se como carneiros em volta de mulheres bonitas que não têm um décimo da tua inteligência? E será justo seres posta de parte só porque tens o nariz demasiado grosso e um queixo que parece o de um rufião da Máfia?- Deu-lhe uma palmadinha carinhosa na cara e acrescentou:- Não vai ser preciso muito. Tens uns belos olhos e uma boca bonita. E o teu corpo é suficientemente bom para uma estrela de cinema.

Claudia afastou-se dele. Sabia que era parecida com o pai; aquele comentário a respeito do rufião da Máfia tinha-lhe tocado num nervo.

Não tem importância - disse. - De qualquer maneira, não posso pagar-lhe.

Outra coisa - continuou o cirurgião. - Conheço o negócio do cinema. Já prolonguei as carreiras de muitas estrelas, homens e mulheres. Quando chegar a altura de propores um filme a um estúdio, o teu aspecto vai desempenhar um papel importante. Isto pode parecer-te injusto, eu sei que tens talento. Mas o mundo do cinema é assim. Encara isto como uma medida de carácter profissional, sem nada a ver com essa história macho-fêmea. Embora no fim o seja, evidentemente. - Viu que ela continuava hesitante. - Faço-o de graça - acrescentou. - Faço-o por ti e pelo meu filho. Embora desconfie que quando fores tão bonita quanto julgo que serás, ele perca a namorada.

Universidade da Califórnia, em Los Angeles.

 Claudia sempre soubera que não era bonita, e naquele momento a recordação de o pai ter preferido Cross voltou-lhe ao espírito. Se fosse bonita, teria o seu destino sido diferente? Pela primeira vez, olhou bem para o cirurgião. Era um homem interessante, com uns olhos meigos que pareciam compreender o que ela sentia. Riu-se.

- Muito bem! Transforme-me na Cinderela.

O cirurgião não precisou de fazer tanto. Adelgaçou-lhe o nariz, arredondou-lhe o queixo, alisou-lhe a pele. Quando Claudia reapareceu no mundo, era uma mulher interessante, de ar altivo, com um nariz perfeito, uma presença que se impunha, talvez não exactamente bonita, mas de alguma maneira ainda mais atraente.

Em termos profissionais, os resultados foram mágicos. A despeito da sua juventude, conseguiu uma entrevista pessoal com Melo Stuart, que se tornou seu agente. Conseguiu-lhe pequenas reformulações em guiões e convidou-a para festas nas quais conheceu produtores, realizadores e estrelas. Todos ficavam encantados com ela. Num espaço de cinco anos, apesar de muito nova, passou a ser classificada como argumentista de Classe A para filmes de Classe A. Na sua vida pessoal, os efeitos não foram menos espectaculares. O cirurgião tivera razão. O filho não foi capaz de enfrentar a concorrência. Claudia teve uma série de conquistas sexuais - algumas foram autênticas rendições - que faria o orgulho de qualquer estrela de cinema.

Adorava o mundo do cinema. Adorava trabalhar com outros argu-mentistas, adorava discutir com os produtores, lisonjear os realizadores: mostrar aos primeiros como era possível poupar dinheiro fazendo o argumento de uma determinada maneira, convencer os segundos de que um determinado argumento podia ser tratado a um nível artístico mais elevado. Tinha uma admiração enorme pelas actrizes e os actores, pela maneira como eles se sintonizavam com as suas palavras, fazendo-as soar melhores e mais comoventes. Adorava a magia das filmagens, que a maior parte das pessoas achava uma maçada, gostava da camaradagem da equipa de trabalho e não tinha problemas com "fornicar abaixo da linha". Entusiasmava-se com todo o processo de estrear um filme e vê-lo transformar-se num êxito ou num fracasso. Acreditava que o cinema era uma grande forma de arte, e quando a chamavam para reescrever um argumento, via-se a si mesma como alguém cuja função era melhorar e não procurava fazer alterações só para ficar com o mérito. Com vinte e cinco anos de idade, tinha uma reputação enorme e inúmeras amizades entre as estrelas, sendo a mais íntima precisamente com Athena Aquitane.

Uma das coisas que mais a surpreendia era a sua efervescente sexualidade. Ir para a cama com um homem de quem gostasse era tão natural depois como qualquer gesto de amizade. Nunca o fazia para conseguir vantagens, era demasiado talentosa para isso; pelo contrário, por vezes dizia, na brincadeira, que as estrelas iam para a cama com ela para conseguirem o seu próximo argumento.

A sua primeira aventura fora com o cirurgião, que se revelara muito mais encantador e competente do que o filho. Talvez encantado com o seu próprio trabalho, ele propusera-lhe instalá-la num apartamento com um "subsídio" semanal, não só pelo sexo, mas também pelo prazer da sua companhia. Ela recusara sem se ofender, dizendo:

Pensei que não tinha de pagar nada.

Já pagaste mais do que o suficiente - respondeu ele. - Em todo o caso, espero que possamos encontrar-nos de vez em quando.

Claro - prometeu Claudia.

O que achava de extraordinário em si mesma era o facto de conseguir fazer amor com tantos géneros diferentes de homens, das mais variadas idades, tipos e aspectos. E gostar deles todos. Era como uma aspirante a gour-met, disposta a explorar todo o género de pratos exóticos. Fazia de mentora junto dos actores e argumentistas em início de carreira, mas não era um papel que lhe agradasse. O que queria era aprender. E achava os homens mais velhos muito mais interessantes.

Em certa ocasião memorável, passou uma noite com o grande Eli Mar-rion em pessoa. Foi uma noite agradável, ainda que não inteiramente bem sucedida.Conheceram-se na festa da LoddStone Sudios, e Marrion sentiu-se intrigado com ela porque Claudia não se mostrou intimidada na sua presença e fez alguns comentários contundentemente depreciativos a propósito da última grande produção dos estúdios. Além disso, ouvira-a repelir as investidas amorosas de Bobby Bantz com um comentário espirituoso que não dava lugar a ressentimentos.

Havia já alguns anos que Eli Marrion desistira do sexo. Dava mais trabalho do que prazer, desde que se tornara quase impotente. Quando convidou Claudia para ir com ele até ao bangalô que a LoddStone possuía em Beverly Hills, deduziu que ela aceitara por causa do seu poder. Não fazia a sexual. Como seria ir para a cama com um homem tão poderoso e tão velho? Isto, só por si, não teria sido suficiente, mas Claudia achara Marrion atraente a despeito da sua idade. Aquela cara de gorila conseguia, com efeito, tornar-se bonita quando ele sorria, como, por exemplo, ao dizer-lhe que todos o tratavam por Eli, incluindo os netos. A inteligência e o encanto natural dele intrigavam-na por causa das histórias que ouvira a respeito da sua natureza implacável. Havia de ser interessante.

No quarto do apartamento térreo do bangalô do Beverly Hills Hotel, verificou, divertida, que ele era tímido. Claudia, que rejeitava qualquer espécie de timidez, ajudou-o a despir-se e, enquanto ele dobrava as roupas e as colocava nas costas de uma cadeira estofada, desembaraçou-se do vestido, abraçou-o e meteu-se com ele debaixo dos lençóis. Marrion tentou brincar:

- Diz-se que quando o rei Salomão estava a morrer, lhe metiam virgens na cama, para o aquecerem.

- Bom, nesse caso não vou ser grande ajuda - respondeu Claudia. Beijou-o e acariciou-o. Os lábios dele eram agradavelmente quentes.

A pele tinha uma secura e uma maciez cerosa que não repeliam ao tacto. Claudia ficara espantada ao descobri-lo tão magro quando o despira, e por um instante pensara naquilo que um fato de três mil dólares podia fazer por um homem. Mas até aquela magreza, aliada à grande cabeça, lhe pareceu enternecedora. Não sentiu qualquer espécie de repulsa. Ao cabo de dez minutos de carícias e beijos (o grande Eli Marrion beijava com a inocência de um rapazinho), ambos compreenderam que ele estava agora definitivamente impotente. "Esta é a última vez que estou na cama com uma mulher", pensou Marrion. Suspirou, descontraiu-se e aninhou-se nos braços dela.

- Muito bem, Eli - começou Claudia -, vou agora dizer-lhe em pormenor por que razão o seu filme é uma trampa do ponto de vista financeiro e do ponto de vista artístico. - E então, continuando a acariciá-lo ternamente, fez-lhe uma análise demolidora do argumento, do realizador e dos actores. - Não é só um mau filme - prosseguiu -, é um filme que não se consegue ver. Porque não tem uma história, de modo que tudo o que lhes resta é um raio de um realizador a mostrar uma colecção de slides a respeito da quilo que ele pensa ser uma história. E os actores limitam-se a andar por ali, porque sabem que tudo aquilo é uma trampa.

Marrion escutou-a com um sorriso benevolente. Sentia-se muito confortável. Compreendia que uma parte essencial da sua vida tinha terminado, liquidada pela aproximação da morte. O facto de nunca mais voltar a fazer amor com uma mulher, ou sequer tentar, não era humilhante. Sabia que Claudia não falaria a respeito daquela noite, e mesmo que falasse, que importância teria? Continuava a ter todo o seu poder. Continuava a poder modificar as vidas de milhares de pessoas, enquanto permanecesse vivo. E agora estava interessado na análise que ela fazia do filme.

- Não compreendes - disse. - Posso fazer com que um filme exista, mas não posso executar esse filme. Tens toda a razão, nunca mais volto a contratar esse realizador. Não é o Talento que perde o dinheiro, sou eu. Mas o Talento tem de aceitar a responsabilidade. A minha pergunta é esta:

com este filme irá ganhar dinheiro? Se se torna uma obra de arte, é apenas por um feliz acaso.

Enquanto falavam, Marrion levantou-se da cama e começou a vestir-se. Claudia detestava quando os homens se vestiam: tornava-se tão mais difícil falar com eles! Marrion, para ela, era infinitamente mais amoroso nu, por estranho que parecesse; as pernas esguias, o corpo esquelético, a grande cabeça, tudo fazia nascer nela um sentimento de terna piedade. Curiosamente, o pénis dele, flácido, era maior do que o da maior parte dos homens na mesma situação. Seria que o pénis crescia à medida que se tornava mais inútil?

Apercebeu-se de como era cansativo para Marrion abotoar a camisa e pôr os botões-de-punho. Saltou da cama para o ajudar.

Marrion estudou a nudez dela. Tinha um corpo melhor do que muitas das estrelas que levara para a cama, mas não houve qualquer excitação mental, e as células do seu corpo não reagiram àquela beleza. E ele não sentiu pena nem tristeza.

Claudia ajudou-o a enfiar as calças, abotoou-lhe a camisa, pôs-lhe os botões-de-punho. Endireitou-lhe a gravata castanha e penteou-lhe os cabelos com os dedos. Ele vestiu o casaco e ali ficou, com todo o seu poder visível recuperado. Ela beijou-o e disse:

- Foi agradável.

Marrion estava a estudá-la como se ela fosse uma qualquer espécie de adversário. Então exibiu o famoso sorriso que apagava a fealdade das suas feições. Aceitou o facto de que ela era verdadeiramente inocente, que tinha um bom coração, e acreditou que tudo isso se devia à sua juventude. Era uma pena que o mundo em que vivia houvesse forçosamente de transformá-la.

- Bom, pelo menos posso alimentar-te - disse, e ligou para o serviço de quartos.

Claudia estava esfomeada. Devorou uma sopa, um prato de pato com legumes e uma enorme taça de morangos com natas. Marrion comeu pouco, mas ajudou-a a esvaziar a garrafa de vinho. Conversaram a respeito de filmes e de livros, e Claudia ficou a saber, para sua surpresa, que Marrion era muito melhor leitor do que ela.

Teria adorado ser escritor - disse Marrion. - Gosto muito de escrever, os livros dão-me tanto prazer. Mas, sabes, raramente conheci um escritor de quem pudesse gostar pessoalmente, embora adorasse os livros deles. O Ernest Vail, por exemplo. Escreve uns livros muito belos, mas é um chato do inferno na vida real. Como é isso possível?

Porque os escritores não são os livros que escrevem - respondeu Claudia.- Os livros são distilações do melhor que há neles. Um escritor é como a tonelada de rochas que é preciso esmagar para obter um pequeno diamante, se é isso que se faz para conseguir um diamante.

- Conheces o Ernest Vail? - perguntou Marrion. Claudia apercebeu-se de que ele fizera a pergunta sem qualquer malícia. Com certeza estava ao corrente do caso dela com Vail. - Ora bem, gosto imenso do que ele escreve, mas pessoalmente não consigo suportá-lo. E agora arranjou esta guerra com os estúdios que é completamente de loucos.

Claudia deu-lhe uma palmadinha na mão, uma familiaridade permissível agora que ele a vira nua.

- Todos os Talentos têm uma guerra qualquer com os estúdios - disse. - Não é nada pessoal. E, além disso, vocês não são nenhuns amores quando se trata de negócios. Eu posso muito bem ser a única escritora em toda a cidade que gosta de si. - Riram-se ambos.

Antes de se separarem, Marrion disse a Claudia:

- Sempre que tiveres um problema, por favor, telefona-me.

Era uma maneira de dar a entender que não desejava manter aquele relacionamento pessoal.

Claudia compreendeu.

- Nunca me aproveitarei dessa oferta - respondeu. - Mas se tiver algum problema com um argumento, pode telefonar-me a mim. O conselho é grátis, mas terá de pagar o meu preço se for obrigada a reescrever.

Queria com isto dizer-lhe que, profissionalmente, ele precisaria mais dela do que ela dele. O que não era, evidentemente, verdade, mas Claudia deixou bem claro que tinha fé no seu próprio talento. Separaram-se como amigos.

O tráfego estava lento na Pacific Coast Highway. Claudia olhou para a esquerda, para ver o refulgente oceano, e espantou-se, como sempre, ao verificar como havia pouca gente na praia. Como aquilo era diferente de Long Island, onde vivera quando era mais nova. Via as asas-deltas deslizarem no céu, logo acima dos cabos de alta-tensão, e mergulharem para a praia. A sua direita avistou uma multidão reunida à volta de um carro-de-som e de um conjunto de câmaras. Alguém estava a rodar um filme. Como ela adorava a Pacific Coast Highway. E como Ernest Vail a tinha detestado. Dizia que viajar por aquele estrada era como meter-se num barco para o inferno...

Claudia De Lena conhecera Vail quando fora contratada para trabalhar no guião do romance dele, que ia ser adaptado ao cinema. Sempre adorara os livros dele, a graciosidade das frases, o modo como se encadeavam umas nas outras como notas de música. Ele compreendia a vida e as tragédias de carácter. Tinha uma capacidade inventiva que nunca deixava de deliciá-la, tal como os contos de fadas tinham encantado a sua infância. Por isso ficara entusiasmada ao conhecê-lo. Mas a realidade de Ernest Vail era uma coisa completamente diferente.

Vail andava na altura pelos cinquenta e poucos anos. A sua presença física não tinha nada da graça da prosa que escrevia. Era baixo e pesado, e tinha uma careca que não se dava ao trabalho de disfarçar. Podia compreender e amar as personagens dos seus livros, mas nada sabia das subtilezas da vida quotidiana. Talvez isso fizesse parte do seu encanto, aquela inocência infantil. Foi só depois de o conhecer melhor que Claudia se apercebeu de que por baixo daquela inocência havia uma inteligência excêntrica que até podia ser agradável. Vail era espirituoso da mesma maneira inconsciente que uma criança é espirituosa, e tinha o egotismo frágil de uma criança.

Ernest Vail parecia o homem mais feliz do mundo naquele pequeno-almoço no Polo Lounge. Os seus romances tinham-lhe conquistado uma sólida reputação junto da crítica e algum dinheiro, ainda que não muito. Então o seu último livro aparecera nas montras e tornara-se um enorme best-seller e ia ser adaptado ao cinema pela LoddStone Studios. Vail escrevera o guião, e agora Bobby Bantz e Skippy Deere estavam a dizer-lhe que era estupendo. E, para grande espanto de Claudia, Vail estava a engolir o elogio como qualquer aspirante a estrela destinada ao divã do realizador. Que diabo pensaria Vail que ela, Claudia, estava a fazer naquela reunião? O que mais a irritava era o facto de aqueles serem os mesmos Bantz e Deere que, no dia anterior, lhe tinham dito a ela que o guião era um "Monte de Merda". Não que quisessem ser ofensivos, ou sequer pejorativos. Um "Monte de Merda" era muito simplesmente uma coisa que não resultava.

Claudia não se importou com o facto de Vail não ser bonito. Ao fim e ao cabo, também ela fora feia antes de ter desabrochado para a beleza sob a faca do cirurgião. Até achou alguma graça à credulidade e ao entusiasmo dele.

- Ernest, chamámos a Claudia para o ajudar - disse Bantz. - Ela é uma grande técnica, do melhor que há, e vai fazer disto um filme a sério. Cheira-me que temos aqui um grande êxito. E não esqueça... você recebe dez por cento do líquido.

Claudia viu Vail engolir o anzol. O pobre filho da mãe nem sequer sabia que dez por cento do líquido eram dez por cento de coisa nenhuma. Vail pareceu ficar genuinamente agradecido pela ajuda.

Claro que posso aprender muito com ela - disse. - Escrever guiões é muito mais divertido do que escrever livros, mas para mim é novidade.

Ernest, você tem um jeito natural - disse tranquilizadoramente Skippy Deere. - Pode vir a ter muito trabalho por estes lados. E é bem capaz de ficar rico com este filme, sobretudo se for um êxito, e sobretudo se ganhar um Oscar.

Claudia estudou os homens. Dois vigaristas e um pato: um trio bastante comum em Hollywood. Mas o certo é que também ela não fora muito mais esperta. Não era verdade que Skippy Deere a tinha lixado, literal e figurativamente? Em todo o caso, não podia deixar de admirar Deere. Parecia tão absolutamente sincero.

Claudia sabia que o projecto estava já com grandes problemas e que o incomparável Benny Sly começara a trabalhar nas costas dela para transformar o herói intelectual de Vail num produto defranchising, fazendo dele uma mistura de James Bond, Sherlock Holmes e Casanova. Nada ficaria do livro de Vail, além dos ossos nus.

Foi levada por este sentimento de pena que Claudia aceitou jantar com Vail nessa mesma noite, para planearem como iriam trabalhar juntos no guião. Um dos truques básicos da colaboração é evitar quaisquer envolvimentos românticos, e Claudia tratou disso apresentando-se nas sessões de trabalho o menos atraente possível. O romance constituía sempre um factor de distracção quando estava a escrever.

Para seu grande espanto, os dois meses que passaram a trabalhar juntos conduziram a uma amizade duradoura. Quando foram ambos despedidos do projecto no mesmo dia, foram juntos para Vegas. Claudia sempre gostara de jogar, e Vail tinha o mesmo vício. Em Vegas, apresentou-o ao irmão, Cross, e ficou muito surpreendida quando os dois homens simpatizaram imediatamente um com o outro. Tanto quanto ela visse, não havia absolutamente qualquer base para aquela amizade. Ernest era um intelectual sem o mínimo interesse por desportos ou pelo golfe. Cross não lia um livro havia anos. Interrogou Ernest a este respeito.

- Ele é um ouvinte e eu sou um falador - foi a resposta. Que deixou Claudia convencida de que não era aquela a verdadeira explicação.

Perguntou a Cross: embora fosse seu irmão, praticamente não o conhecia. Cross ponderou a pergunta por alguns instantes, e finalmente disse:

- Não é preciso andar de olho nele; não há nada que ele queira.

E mal Cross o disse, Claudia soube que era verdade. Para ela, foi uma revelação surpreendente. Ernest Vail, para sua desgraça, era um homem que não tinha agendas escondidas.

O caso dela com Ernest Vail foi diferente. Apesar de ser um romancista de fama mundial, Vail não tinha qualquer peso em Hollywood. Além disso, não possuía quaisquer graças sociais; muito pelo contrário, inspirava antagonismo. Os seus artigos nas revistas abordavam questões sensíveis a nível nacional e eram sempre politicamente incorrectos, mas, ironicamente, isto irritava ambos os lados; escrevendo a propósito do feminismo, declarara que as mulheres seriam sempre subjugadas pelos homens até que se tornassem fisicamente iguais, e aconselhara as feministas a organizarem grupos de treino paramilitar. Com relação aos problemas raciais, escreveu um ensaio sobre linguagem no qual insistiu que os negros deviam chamar a si mesmos "coloridos", uma vez que "negro" e "preto" eram palavras usadas numa infinidade de sentidos pejorativos - pensamentos negros, preto como o diabo, negro como um túmulo - e tinham sempre conotações negativas excepto quando utilizadas em frases como "um simples vestido preto".

Logo a seguir, porém, enfurecera ambos os lados ao defender que todas as raças mediterrânicas deviam ser classificadas como "coloridas". Incluindo Italianos, Espanhóis, Gregos, etc.

Quando escreveu a respeito das classes, afirmou que as pessoas muito ricas tinham forçosamente de ser cruéis e defensivas, e que os pobres tinham necessariamente de ser criminosos, uma vez que eram obrigados a combater leis escritas pelos ricos para protegerem o seu dinheiro. Escreveu que a assistência social mais não era do que um suborno indispensável para impedir que os pobres iniciassem uma revolução. Relativamente à religião, defendeu que devia ser receitada como um medicamento.

Infelizmente, nunca ninguém conseguiu perceber se ele estava a brincar ou a falar a sério. Nenhuma destas excentricidades aparecia nos seus romances, de modo que a leitura das suas obras não proporcionava quaisquer pistas.

No entanto, quando Claudia trabalhou com ele na adaptação do romance, estabeleceu-se entre ambos uma relação íntima. Vail era um aluno dedicado, tratava-a com a maior deferência, e ela, pelo seu lado, apreciava as piadas mais ou menos amargas que ele costumava dizer, a seriedade com que falava das condições sociais. O descaso com que tratava o dinheiro na prática e se preocupava tanto com ele em abstracto não podia deixar de a espantar. Tal como a sua incapacidade de compreender como o mundo funcionava em termos de poder, especialmente Hollywood. Deram-se tão bem que ela lhe pediu para ler o romance que escrevera. Sentiu-se lisonjeada quando ele apareceu nos estúdios, no dia seguinte, com um monte de notas sobre a leitura que fizera.

O romance acabara finalmente por ser publicado aproveitando a embalagem do sucesso dela como argumentista e graças à pressão exercida em determinados círculos por Melo Stuart. Recebera algumas críticas moderadamente elogiosas e outras bastante mais duras, apenas porque ela era argumentista. Mas Claudia continuava a adorar o seu livro. Não vendeu, nem ninguém se interessou por comprar os direitos para o cinema. Mas estava impresso. Claudia ofereceu um exemplar a Vail, com uma dedicatória: "Ao maior romancista vivo da América." Não ajudou.

- És uma rapariga com sorte - disse-lhe Vail. - Não és uma romancista, és uma argumentista. Nunca serás uma romancista.

Então, sem malícia nem ironia, passou a meia hora seguinte a tentar dissecar o romance dela e a demonstrar-lhe que era um disparate, que não tinha estrutura, nem profundidade, nem densidade nas personagens, e que até o diálogo, o ponto forte dela, era horroroso, sem objectivo. Foi um assassínio brutal, mas executado com uma lógica tão implacável que Claudia teve de reconhecer a verdade.

Vail concluiu com aquilo que certamente julgou ser uma amabilidade:

- É um livro muito bom para uma rapariga de dezoito anos. Todos os erros que apontei podem ser corrigidos pela experiência, simplesmente crescendo. Mas há uma coisa que nunca conseguirás corrigir. Não tens linguagem.

Ao ouvir isto, ainda que esmagada, Claudia ofendeu-se. Alguns dos críticos tinham elogiado a qualidade lírica da sua escrita.

- Nisso estás enganado - protestou. - Tentei escrever frases perfeitas. E aquilo que mais admiro nos teus livros é a poesia da linguagem.

Pela primeira vez, Vail sorriu.

- Obrigado - disse. - Mas eu não tento ser poético. A minha linguagem nasce das emoções das personagens. A tua linguagem, a tua poesia neste livro, é imposta. É completamente falsa.

Claudia desfez-se em lágrimas.

- Quem raio pensas tu que és? - disse. - Como és capaz de dizer uma coisa tão terrivelmente destrutiva? Como é que podes ser tão estuporadamente categórico?

Vail pareceu divertido.

Ouve, podes escrever livros publicáveis e mesmo assim morrer de fome. Mas para quê, quando és uma argumentista genial? Quanto a eu ser categórico, isto é a única coisa que sei, mas sei-o absolutamente. Ou então estou enganado.

Não, não estás enganado - respondeu Claudia. - Mas és um filho da puta sádico.

Vail olhou intensamente para ela.

- Es dotada - disse -. Tens um ouvido excepcional para o diálogo do cinema, és perita a construir uma linha de enredo. Compreendes verdadeiramente o cinema. Por que é que queres ser ferreiro em vez de mecânico de automóveis? Es uma pessoa do cinema, não és uma romancista.

Claudia fixou nele uns olhos muito abertos de espanto.

Nem sequer sabes a que ponto estás a ser insultuoso.

Claro que sei - declarou Vail. - Mas é para teu próprio bem.

- Não consigo acreditar que és a mesma pessoa que escreveu aqueles livros - disse ela, venenosamente. - Ninguém acreditaria que foste tu.

Vail lançou uma gargalhada, deliciado.

- É verdade. Não achas maravilhoso?

Durante toda a semana seguinte, ele mostrou-se extremamente formal enquanto trabalhavam no guião. Partia do princípio que a amizade entre ambos estava acabada. Finalmente. Claudia disse-lhe:

Ernest, não sejas tão rígido. Eu perdoo-te. Até acredito que tenhas razão. Mas porque tiveste de ser tão bruto? Até pensei que estavas a fazer uma daquelas jogadas de poder masculino. Tu sabes, humilhar-me e então levar-me para a cama. Mas sei que és demasiado parvo para isso. Pelo amor de Deus, dá um pouco de açúcar com os teus remédios!

Só tenho uma coisa a meu favor - respondeu ele, encolhendo os ombros. - Se não sou honesto a respeito destas coisas, então não sou nada. Além disso, fui bruto porque gosto verdadeiramente de ti. Tu nem sequer sabes a que ponto és uma raridade.

- Por causa do meu talento, da minha inteligência ou da minha beleza? - perguntou Claudia, sorrindo.

Vail agitou uma mão, como que a afastar todas aquelas hipóteses.

- Não, não - disse. - Porque tu és abençoada, uma pessoa muito feliz. Nenhuma tragédia será jamais capaz de te derrubar. Isso é muito raro.

Claudia pensou um pouco naquilo.

Sabes - respondeu -, há qualquer coisa de levemente insultuoso no que acabas de dizer. Não significará isso que sou basicamente estúpida? - Fez uma curta pausa. - As pessoas melancólicas são consideradas mais sensíveis.

Pois - retorquiu Vail. - Eu sou melancólico, de modo que sou mais sensível do que tu?

Riram-se ambos, e ela abraçou-o.

Obrigada por seres tão franco - disse.

Não te tornes demasiado confiante. Como a minha mãe costumava dizer, a vida é como uma caixa de granadas de mão, nunca se sabe qual delas pode mandar-nos pelos ares.

Claudia estava a rir quando perguntou:

- Pelo amor de Deus, tens sempre de pôr uma nota de tragédia em tudo o que dizes? Nunca serás um argumentista, e essa frase prova-o.

- Mas é mais verdadeira - afirmou Vail.

Antes que chegassem ao fim da sua colaboração no guião, Claudia arrastou-o para a cama. Gostava suficientemente dele para querer vê-lo despido de roupas, para que pudessem realmente falar, para que pudessem verdadeiramente trocar confidências.

Como amante, Vail era muito mais entusiasta do que sabedor. Mostrava-se também mais agradecido do que a maioria dos homens. E, o que era o melhor de tudo, gostava de conversar depois do sexo, a nudez não lhe inibia a queda para as prelecções nem a excentricidade dos pontos de vista. E Claudia adorava vê-lo nu. Sem roupas, Vail parecia ter a agilidade e a impetuosidade de um macaco, e era muito peludo: o peito coberto por um denso velo, grandes tufos de pelos nos ombros e nas costas. Além disso, era guloso como um macaco, deitando as mãos ao corpo dela como se fosse um fruto suspenso de uma árvore. O apetite dele divertiu Claudia. Deliciava-se com a inerente comédia de sexo. Dava-lhe vontade de rir pensar que aquele homem era famoso no mundo inteiro, que ela o vira na TV e o achara um pouco pomposo no modo como falava a respeito de literatura, do estado lastimável em que se encontrava o mundo, muito digno com aquele cachimbo que raramente fumava e parecendo muito professoral com o seu casaco de tweed com cotoveleiras de cabedal. Mas Vail era muito mais divertido na cama do que na TV; perdia a pose de estrela.

Nunca se falou entre eles de "verdadeiro amor", de uma "relação". Claudia não tinha a mínima necessidade disso e Vail tinha apenas uma percepção literária do termo. Ambos aceitavam o facto de ele ser trinta anos mais velho e, além disso, nada de especial, a não ser pela sua fama. Nada tinham em comum excepto a literatura, que era, ambos concordavam, talvez a pior base possível para fundar um casamento.

Em todo o caso, ela adorava discutir com ele a respeito de cinema. Ernest sustentava que o cinema não era arte, era uma regressão às imagens primitivas pintadas nas paredes de cavernas esquecidas. O filme não tinha linguagem, e uma vez que o progresso da espécie humana dependia da linguagem, era meramente uma arte regressiva, menor.

- Nesse caso - contrapunha Claudia -, a pintura não é uma arte, Bach e Beethoven não são arte, Miguel Angelo não é arte. Estás a dizer parvoíces.

E então apercebia-se de que ele estava só a espicaçá-la, que gostava de a provocar, se bem que, prudentemente, só depois de terem feito amor.

Quando acabaram por ser ambos despedidos do argumento, tinham-se tornado bons amigos. E, antes de regressar a Nova Iorque, Vail deu-lhe um pequeno anel em espiral com quatro pedras de cores diferentes. Não parecia caro, mas era uma antiguidade valiosa que ele gastara muito tempo a procurar. Desde então, Claudia passara a usá-lo sempre. No seu espírito, transformou-se numa espécie de talismã.

Quando ele partiu, porém, a relação sexual entre os dois terminou. Quando e se ele regressasse a Los Angeles, ela estaria no meio de outro caso.

Vail reconhecia que o sexo entre eles fora mais uma questão de amizade do que de paixão.O presente de despedida dela foi uma instrução completa sobre como as coisas funcionavam em Hollywood. Explicou-lhe que o argumento em que ambos tinham trabalhado estava a ser reescrito pelo grande Benny Sly, o lendário "refazedor" de argumentos, que fora inclusivamente nomeado para um Oscar especial nessa nova categoria. E que Benny Sly se especializara em transformar histórias que seriam fatalmente fracassos no circuito comercial em bombas de cem milhões de dólares. Com toda a certeza ia transformar o livro de Vail num filme que Vail havia de detestar, mas que sem a mínima dúvida faria montões de dinheiro.

- Não faz mal - disse Vail. - Tenho dez por cento do lucro líquido. Ficarei rico.

Claudia olhou para ele exasperada.

- Líquido? - exclamou. - Também compras dinheiro da Confederação? Nunca verás um centavo, por muito que o filme ganhe. A LoddStone tem um jeito especial para fazer desaparecer dinheiro. Ouve, eu já tive percentagens sobre o líquido de cinco filmes que fizeram um monte de massa e nunca recebi um tostão. E tu também não vais receber.

Vail voltou a encolher os ombros. Parecia não se interessar, o que tornaria as suas acções nos anos seguintes ainda mais difíceis de entender.

O próximo caso amoroso de Claudia fê-la lembrar-se de Ernest dizer que a vida era como uma caixa de granadas de mão. Pela primeira vez, apesar da sua inteligência, apaixonou-se moderadamente por um homem totalmente inadequado. Um jovem realizador "genial". Depois disso apaixonou-se perdida e completamente por um homem por quem a maior parte das mulheres do mundo se teria apaixonado. E igualmente inadequado.

A explosão inicial de ego que o facto de ser capaz de atrair aqueles machos tão indiscutivelmente de primeira classe provocara nela não tardara a ser afogada pela maneira como eles a tratavam.

O realizador, um homem desagradável, tipo fuinha, poucos anos mais velho do que ela, fizera três filmes do género incorformista, que não só tinham sido um êxito junto da crítica como também tinham ganho bom dinheiro. Todos os estúdios tentaram apanhá-lo. A LoddStone deu-lhe um contrato para fazer três filmes e deu-lhe Claudia para reescrever o guião que ele se preparava para rodar.

Um dos elementos do génio do realizador era ter uma visão muito claro daquilo que queria. De início condescendera com Claudia por ela ser mulher e escritora, duas condições de inferioridade na estrutura de poder de Hollywood. Começaram imediatamente a discutir.

Ele pediu-lhe que escrevesse uma cena que ela sentia não se enquadrar na estrutura do enredo. Claudia reconheceu que a cena, em si mesma, seria espectacular, mas achou que a sua única função era permitir ao realizador mostrar as suas habilidades.

Não posso escrever essa cena - disse. - Não tem nada a ver com a história. E apenas acção e câmara.

E para isso mesmo que serve o cinema - respondeu o realizador, secamente. - Escreva a cena tal como a discutimos.

Não quero perder o seu tempo nem o meu - declarou Claudia.

- Escreva-a você com a merda da sua câmara.

O realizador nem sequer perdeu tempo a ficar zangado.

- Está despedida! - disse. - Fora do filme!- E bateu as palmas. Skippy Deere e Bobby Bantz conseguiram, no entanto, reconciliá-los, o que só foi possível porque o realizador ficara intrigado pela teimosia dela. O filme foi um êxito, e Claudia teve de admitir que isso ficou a dever-se mais ao talento dele como realizador do que ao dela como escritora. Muito simplesmente, não fora capaz de captar a visão dele. Caíram na cama quase por acidente, mas aí o realizador revelou-se uma decepção. Recusou despir-se completamente e fez amor com a camisa vestida. Mas, mesmo assim, Claudia sonhava que haviam de fazer grandes filmes juntos. Uma das melhores duplas realizador-argumentista de todos os tempos. Estava perfeitamente disposta a ser o parceiro subordinado, a deixar o seu talento servir o génio dele. Criariam grande arte juntos e tornar-se-iam uma lenda. O romance durou um mês, até que Claudia terminou o "borrão" do argumento de Messalina e lho mostrou. Ela leu-o e atirou-o para um lado.

- Um monte de tretas feministas com mamas e cus - sentenciou.

- És uma rapariga esperta, mas esse não é o filme que eu estou disposto a gastar um ano da minha vida a fazer.

- Mas é apenas um primeiro esboço - protestou Claudia.

- Jesus, detesto as pessoas que tentam tirar proveito de uma relação pessoal para conseguirem fazer um filme - respondeu o realizador.

Nesse preciso instante, Claudia "desapaixonou-se" completamente dele. Ficou furiosa.

Não preciso de ir para a cama contigo para fazer um filme - declarou.

Claro que não - disse o realizador. - És talentosa e tens fama de ser uma das melhores quecas na indústria do cinema.

Agora Claudia estava horrorizada. Nunca falava a respeito dos seus parceiros sexuais. E detestou o tom dele, como se fosse vergonhoso para as mulheres fazerem o mesmo que os homens faziam.

Tens talento - atirou-lhe, venenosamente -, mas um homem que fornica com a camisa vestida tem uma reputação ainda pior. E eu, pelo menos, nunca levei ninguém para a cama prometendo-lhe um teste de câmara.

Foi aqui que acabou a relação entre ambos, e foi aqui que Claudia começou a pensar em Dita Tommey como realizadora. Decidiu que só uma mulher poderia fazer justiça ao seu argumento.

Ora, que se lixasse, pensou Claudia. O filho da mãe não gostava de se pôr nu e não gostava de conversar depois de fazer amor. Era na verdade um génio no que respeitava aos filmes, mas faltava-lhe linguagem. E, para génio, era um tipo sem ponta de interesse, excepto quando falava de cinema.

Claudia aproximava-se agora da grande curva da Pacific Coast High-way, que mostra o oceano como um grande espelho reflectindo as falésias à sua direita. Era o seu lugar preferido em todo o mundo, cheio de uma beleza natural que nunca deixava de a emocionar. Ficava a uns escassos dez minutos de Malibu Colony, onde Athena vivia. Claudia tentou dar forma ao seu pedido: para salvar o filme, para fazer Athena voltar. Lembrou-se que em diversas alturas das suas vidas tinham tido o mesmo amante, e sentiu uma onda de orgulho à ideia de que um homem que amasse Athena pudesse amá-la a ela.

O sol estava no auge do seu brilho, transformando, como um lapi-dador, as ondas do Pacífico em grandes diamantes. Claudia travou bruscamente. Teve a sensação que uma das asas-delta ia pousar mesmo à frente do carro. Suspensa do aparelho, uma jovem, com um seio a saltar-lhe da blusa, fez-lhe um gesto de adeus e continuou a mergulhar em direcção à praia. Porque é que autorizavam aquilo, porque é que a polícia não aparecia? Abanou a cabeça e pisou o acelerador. O tráfego estava a diminuir e a estrada fez uma curva, escondendo o oceano, que só voltaria aparecer meia milha mais adiante. Como o verdadeiro amor, pensou Claudia, sorrindo. Na sua vida, o verdadeiro amor reaparecia sempre.

Quando se apaixonou a sério, foi uma experiência simultaneamente educativa e dolorosa. E a culpa não foi verdadeiramente dela, pois o homem em questão era Steve Stallings, uma estrela Altamente Cotável e o ídolo de milhões de mulheres no mundo inteiro. Tinha uma espantosa beleza masculina, um encanto genuíno e uma enorme vivacidade alimentada por um prudente consumo de cocaína. Tinha, além disso, imenso talento como actor. Mas mais do que qualquer outra coisa, era um Don Juan. Fornicava todas as mulheres ao seu alcance, quer filmasse em África, numa pequena cidade do Oeste americano, em Bombaim, em Singapura, em Tóquio, em Londres, em Roma ou em Paris. Fazia isto quase com o espírito do grande senhor que dá esmola aos pobres, como um acto de caridade cristã. Nunca sequer se punha a questão de uma relação, tal como um pedinte não espera ser convidado para as festas do seu benfeitor. Ficou tão encantado com Claudia que o caso durou vinte e sete dias.

Foram vinte e sete dias humilhantes para Cláudia, apesar do prazer. Steve Stallings era um amante irresistível, com a ajuda da cocaína. E sentia-se ainda mais à vontade nu do que Claudia. O facto de ter um corpo perfeitamente proporcionado ajudava, claro. Claudia surpreendera-o bastas vezes a examinar-se ao espelho, como uma mulher faria para ajeitar o chapéu.

Claudia sabia que era uma concubina menor. Quando marcavam encontros, ele telefonava sempre a dizer que ia chegar uma hora atrasado e depois acabava por aparecer seis horas mais tarde. Por vezes telefonava a cancelar pura e simplesmente. Ela não passava de uma solução de recurso para a noite. Além disso, quando faziam amor, ele insistia sempre que ela também tomasse cocaína, o que era agradável, mas lhe baralhava de tal modo o cérebro que ficava incapaz de trabalhar durante os dias seguintes, e quando teimava em escrever, não confiava naquilo que fazia. Compreendeu que estava a tornar-se aquilo que mais detestava no mundo: uma mulher cuja vida inteira dependia dos caprichos de um homem.

Sentia-se humilhada por não passar de uma quarta ou quinta escolha, mas não o culpava verdadeiramente a ele. Culpava-se a si mesma. Ao fim e ao cabo, naquele ponto da sua fama, Steve Stallings podia ter praticamente qualquer mulher na América, e escolhera-a a ela. Stallings acabaria por envelhecer e ficar menos irresistível, tornar-se-ia menos famoso e começaria a usar cada vez mais cocaína. Tinha de aproveitar enquanto estava no auge. Claudia estava apaixonada e, por uma das poucas vezes em toda a sua vida, terrivelmente infeliz.

Por isso, quando, no vigésimo sétimo dia, Stallings telefonou a anunciar que ia chegar uma hora atrasado, ela disse-lhe:

- Não te incomodes, Steve. Vou deixar a tua casa de gueixas. Houve uma pausa, e quando ele respondeu não pareceu surpreendido.

Continuamos amigos, espero - disse. - Gostei muito da tua com panhia.

Claro - disse Claudia, e desligou. Pela primeira vez, não queria "continuar amiga" no final de um caso amoroso. O que realmente a irritava era a sua própria falta de inteligência. Era evidente que todo aquele com portamento da parte dele fora um truque para a fazer ir-se embora, e que ela demorara demasiado tempo a perceber a deixa. Era deprimente. Como pudera ser tão parva? Chorou, mas uma semana mais tarde descobriu que não sentia a mínima falta de estar apaixonada. Podia fazer o que quisesse com o seu próprio tempo e podia voltar a trabalhar. Era um prazer regressar à sua escrita com a cabeça limpa de cocaína e de amor verdadeiro.

Depois de o realizador-amante-genial ter rejeitado o seu guião, Claudia trabalhou furiosamente durante seis meses a reescrevê-lo.

Claudia De Lena escreveu o seu argumento original de Messalina como um espirituoso manifesto de propaganda feminista. Mas, ao cabo de cinco anos no negócio do cinema, sabia que qualquer mensagem tinha de ser disfarçada com ingredientes mais básicos, como ganância, sexo, assassínio e fé na humanidade. Sabia que tinha de escrever grandes papéis não só para Athena Aquitane, mas também para pelo menos três outras estrelas femininas em papéis secundários. Os bons papéis femininos eram tão raros que o argumento ia atrair estrelas de primeira grandeza. E depois, absolutamente essencial, havia o grande vilão - encantador, implacável, bem parecido e espirituoso. Neste ponto inspirou-se em recordações do pai.

Quisera inicialmente abordar uma mulher produtora independente com peso suficiente, mas os directores de estúdios com capacidade para dar luz verde a um filme eram quase todos homens. Gostariam do argumento, mas teriam medo de que tudo aquilo se transformasse numa peça de propaganda feminista demasiado descarada se tivesse mulheres na produção e na realização. Haviam de querer a mão pelo menos de um homem algures. Claudia já decidira que Dita Tommey seria a realizadora.

Tommey ia com certeza aceitar, pois aquele era um filme de mega-orça-mento. Um tal filme, se tivesse êxito, colocá-la-ia na classe dos Cotáveis. E mesmo que não tivesse, contribuiria para a sua reputação. Um filme caro que falhasse era por vezes mais prestigioso para um realizador do que um filme barato que ganhasse dinheiro.

Outra razão era que Dita Tommey gostava exclusivamente de mulheres, e aquele filme dar-lhe-ia acesso a quatro mulheres famosas e bonitas.

Queria Tommey porque tinham trabalhado as duas num filme, alguns anos antes, e fora uma boa experiência. Dita era muito directa, muito esperta, muito talentosa. Além disso, não era um realizador do género "mata-argumentistas", dos que iam buscar amigos para os ajudar a reescrever o guião só para aparecerem no genérico. Nunca exigia a inclusão do seu nome entre os argumentistas a menos que tivesse contribuído com a sua justa parte, e não praticava agressivamente o assédio sexual, como muitos realizadores e estrelas. Se bem que a expressão "assédio sexual" não tivesse verdadeiramente cabimento no mundo do cinema, onde a venda de sexo, ou dos seus simulacros, fazia parte integrante do negócio.

Teve o cuidado de mandar o argumento a Skippy Deere numa sexta-feira, sabendo que ele só os lia cuidadosamente durante o fim-de-semana. Mandou-lho porque, a despeito das suas traições, era o melhor produtor de Hollywood. E porque nunca era capaz de cortar definitivamente uma velha relação. Resultou. Recebeu uma chamada dele no domingo de manhã. Queria almoçar com ela nesse mesmo dia.

Atirou o computador para dentro do Mercedes e vestiu roupas de trabalho: uma camisa de ganga azul, de homem, uns blue jeans já bastante estafados e uns mocassins. Prendeu o cabelo com um lenço vermelho.

Meteu pela Ocean Avenue em Santa Monica. No Palisades Park, que separava a Ocean Avenue da Pacific Coast Highway, viu os "sem abrigo" de Santa Monica, homens e mulheres, a reunirem-se para o seu almoço de domingo. Trabalhadores sociais voluntários serviam-lhes de comer e de beber, todos os domingos, no ambiente puro e fresco do parque, nas pequenas mesas de madeira. Claudia seguia sempre aquele caminho para poder vê-los, para recordar a si mesma a existência daquele outro mundo onde as pessoas não tinham Mercedes nem piscinas e não faziam as suas compras em Rodeo Drive. Nos primeiros anos, oferecera-se muitas vezes para servir os desalojados no parque; agora limitava-se a mandar um cheque à igreja que os alimentava. Tornara-se demasiado duro passar de um mundo para o outro, embotava o seu desejo de ser bem sucedida. Não conseguia impedir-se de observar os homens, tão pobremente vestidos, com as suas vidas em ruínas e alguns deles, no entanto, cheios de uma estranha dignidade. Viver assim sem esperança parecia-lhe uma coisa extraordinária, e, todavia, era apenas uma questão de dinheiro, o dinheiro que ela ganhava tão facilmente a escrever argumentos para o cinema. Aquilo que ganhava em seis meses era mais do que aqueles homens viam em toda a sua vida.

Em casa de Skippy Deere, nas ravinas de Beverly Hills, foi guiada pela governanta até à piscina, com as suas berrantes cabinas às riscas azuis e amarelas. Deere estava sentado numa cadeira de praia almofadada. A seu lado, em cima de uma pequena mesa de mármore, havia um telefone e um monte de papéis. Tinha postos os óculos de ler de armação vermelha, que só usava em casa. Na mão direita segurava um copo alto de água de Evian gelada.

Levantou-se para a abraçar.

- Claudia - disse -, temos negócios a tratar, e depressa.

Ela estava a avaliar-lhe a voz. Geralmente, era capaz de adivinhar as reacções aos seus argumentos pelo tom das vozes. Havia o elogio cuidadosamente modulado, que significava um "não" definitivo. Depois havia a voz jovial, entusiasmada, que expressava uma admiração sem limites e era quase sempre seguida por pelo menos três razões pelas quais o argumento falar de dinheiro e de direitos de controlo. Isso significava "Sim".

- Isto pode ser um grande filme - disse a Claudia.- Muito, muito grande. Na realidade, o que não pode é ser pequeno. Eu sei o que estás a tentar fazer, és uma rapariga muito esperta, mas o que eu vou tentar vender aos estúdios é o sexo. Claro que, às actrizes, venderei a parte do feminismo. Quanto ao actor principal, será fácil arranjá-lo se conseguires adoçá-lo um bocadinho, dar-lhe mais alguns momentos como boa pessoa. Sei muito bem que queres ser produtora-associada nesta coisa, mas eu é que mando. Podes dar as tuas opiniões, não sou um homem fechado à razão.

Quero ter uma palavra a dizer no que respeita ao realizador - decla rou Claudia.

Claro, tu, os estúdios e os actores - respondeu Deere, com uma gargalhada.

Não o vendo se não me deixarem aprovar o realizador - insistiu Claudia.

Está bem - concordou Deere. - Nesse caso começa por dizer aos estúdios que queres ser tu a realizar, depois desiste. Eles ficarão tão aliviados que te darão o direito de aprovação. - Fez uma curta pausa. - Em quem é que estás a pensar?

Dita Tommey.

Óptimo. Inteligente. As actrizes adoram-na. E os estúdios também. Faz as coisas dentro do orçamento e não se serve dele em proveito próprio. Mas eu e tu escolhemos o elenco antes de a metermos nisto.

A quem vais propô-lo? - perguntou Claudia.

À LoddStone. Eles alinham bastante bem comigo, de modo que não teremos de discutir muito a questão dos actores e do realizador. Claudia, escreveste um argumento perfeito. Inteligente, emocionante, com uma grande perspectiva sobre o feminismo nos tempos antigos, e isso hoje é um tema quente. E sexo. Justificas Messalina e todas as mulheres. Vou falar com o Melo e a Molly Flanders a respeito do teu contrato, e ela depois entende-se com os tipos da LoddStone.

Sacana! - exclamou Claudia. - Já tinhas falado com a LoddStone?

Ontem à noite - confirmou Deere, com um sorriso. - Levei-lhes o argumento e eles deram-me a luz verde, se conseguir pôr tudo a andar. E escuta, Claudia, não me venhas com merdas. Sei que tens a Athena no bolso para esta coisa, e é por isso que estás a mostrar-te tão dura. - Fez uma pausa. - Foi o que eu disse à LoddStone. Agora, vamos ao trabalho.

Assim começara o grande projecto. Não podia deixá-lo ir agora por água abaixo.

Claudia estava a aproximar-se do semáforo onde teria de virar à esquerda e meter pela estrada particular que a conduziria a Malibu Colony. Pela primeira vez, teve uma sensação de pânico. Athena era tão obstinada, como todas as estrelas têm de ser, que nunca mudaria de ideias. Não importava; se Athena lhe dissesse que não, iria a Las Vegas pedir ajuda ao irmão. Cross nunca lhe falhara. Nem enquanto cresciam, nem quando ela fora viver com a mãe, nem quando a mãe morrera.

Claudia tinha uma recordação das grandes ocasiões festivas na mansão dos Clericuzio, em Long Island. Um cenário de um conto de fadas dos irmãos Grimm, uma mansão rodeada de altos muros, ela e Cross a brincarem entre as figueiras. Havia dois grupos de rapazes com idades compreendidas entre os oito e os doze anos. O grupo adversário era chefiado por Dante Clericuzio, neto do velho Don, que os vigiava de uma janela do primeiro andar, como um dragão.

Dante era um rapaz agressivo, que gostava de lutar, gostava de ser general, e o único que se atrevia a desafiar Cross para um combate físico. Dante conseguira deitar Claudia ao chão e estava a bater-lhe, esforçando-se por submetê-la, quando Cross aparecera. Então Dante e Cross tinham lutado. O que na altura impressionara Claudia fora a confiança do irmão face à ferocidade de Dante. E Cross vencera com toda a facilidade.

Por isso Claudia não conseguia compreender a escolha da mãe. Como era preferível que não gostasse mais de Cross? Cross era muito mais merecedor do que ela. Provara-o ao escolher ficar com o pai. E Claudia nunca duvidara de que o que ele queria era ficar com a mãe e com ela.

Nos anos que se seguiram à separação, a família ainda manteve uma espécie de relação. Claudia acabou por saber, por conversas, pela linguagem corporal das pessoas à sua volta, que Cross conseguira atingir até um certo ponto a proeminência do pai. O afecto entre ela e o irmão tinha permanecido constante, embora fossem agora completamente diferentes. Claudia compreendia que Cross fazia parte da Família Clericuzio, e ela não.

Dois anos depois de se ter mudado para Los Angeles, quando tinha vinte anos, a mãe, Nalene, adoecera com um cancro. Cross, que na altura trabalhava para Gronevelt no Xanadu depois de ter dado as suas provas com os Clericuzio, fora passar as duas últimas semanas com elas em Sacramento. Contratara enfermeiras para estarem presentes vinte e quatro horas por dia, uma cozinheira e uma governanta. Estavam os três a viver juntos pela primeira vez desde a separação da família. Nalene proibiu Pippi de ir visitá-la.

O cancro afectara a vista de Nalene, de modo que Claudia lia constan-temente para ela, revistas, jornais e livros. Cross encarregava-se de fazer as compras. Por vezes tinha de ir a Las Vegas, para tratar de assuntos do hotel, mas regressava sempre antes do fim da tarde.

Durante a noite, Cross e Claudia faziam turnos para segurar na mão da mãe e confortá-la. E embora estivesse fortemente medicada, ela apertava-lhes continuamente as mãos. Por vezes tinha alucinações e pensava que os filhos eram novamente pequenos. Uma noite terrível começou a chorar e pediu perdão a Cross pelo que lhe tinha feito. Cross abraçou-a e jurou-lhe que tudo tinha resultado da melhor maneira.

Durante as longas noites, enquanto a mãe estava mergulhada no sono profundo provocado pelas drogas, Cross e Claudia contavam um ao outro os pormenores das suas vidas.

Cross explicou que tinha vendido a agência de cobranças e abandonado a Família Clericuzio, embora eles tivessem usado a sua influência para lhe conseguir o lugar no Xanadu Hotel. Fez uma levíssima alusão ao seu poder e disse a Claudia que seria sempre bem-vinda no Xanadu, com privilégios QCB - quarto, comida e bebida por conta da casa. Claudia perguntou-lhe como é que podia fazer aquilo, e ele respondeu, não sem uma ponta de orgulho: "Sou eu quem faz as contas."

Claudia achou aquele orgulho cómico e um pouco triste.

Aparentemente, sentira a morte da mãe muito mais do que Cross, mas a experiência voltara a juntá-los. Recuperaram a intimidade dos tempos da infância. Claudia foi com alguma frequência a Vegas, nos anos seguintes, conheceu Gronevelt, e observou o relacionamento entre o velho e o irmão. Durante esses anos, verificou que Cross tinha uma qualquer espécie de poder, mas que nunca relacionava esse poder com a Família Clericuzio. Uma vez que cortara todos os laços com os Clericuzio e deixara de ir aos funerais, casamentos e baptizados, não sabia que Cross continuava a fazer parte da estrutura social da Família. E Cross nunca falava esse respeito. Raramente via o pai, que não mostrava o mais pequeno interesse por ela.

A noite da Passagem de Ano era o grande acontecimento de Las Vegas, com gente de todo o mundo a confluir para a cidade, mas Cross tinha sempre uma suite para a irmã. Claudia não era grande jogadora, mas na véspera do Ano Novo deixava-se entusiasmar. Tinha levado consigo um jovem aspirante a actor e estava a tentar impressioná-lo. Perdera um pouco a cabeça e assinara vales no valor de cinquenta mil dólares. Cross apareceu na suite com os vales na mão, e havia uma expressão estranha no seu rosto. Claudia reconheceu-a mal ele falou. Era a cara do pai.

- Claudia - disse -, pensei que fosses mais esperta do que eu. Que raio é isto?

Claudia sentiu-se um pouco envergonhada. Cross aconselhara-a inúmeras vezes a nunca se meter em paradas altas. E a nunca aumentar as apostas quando estivesse a perder. E a nunca jogar mais de duas ou três horas por dia, porque o tempo que uma pessoa passava a jogar era a maior armadilha. E ela ignorara todos os seus avisos...

- Dá-me uma ou duas semanas, e eu pago isso -pediu. Ficou surpreendida com reacção dele:

Mais depressa te matava do que te deixava pagar estes vales. - Com gestos lentos e deliberados, rasgou os papéis e guardou os pedaços no bolso. - Ouve, convido-te para vires aqui porque gosto de te ver, não para ficar com o teu dinheiro. Mete isto na tua cabeça, não podes ganhar. Não tem nada a ver com sorte. Dois e dois são quatro.

Okay, okay - disse Claudia.

Não me importo de rasgar estes papéis, mas detesto que sejas estú pida - rematou ele, antes de sair.

Não voltaram a tocar no assunto, mas Claudia ficou a pensar. Cross teria realmente tanto poder? Gronevelt aprovaria o que ele fizera, ou chegaria sequer a saber o que se passara?

Depois disso tinha havido outros incidentes, mas o mais arrepiante envolvera uma mulher chamada Loretta Lang.

Loretta cantava e dançava, como primeira figura, no espectáculo de variedades do Xanadu. Tinha uma vivacidade e uma espécie de exuberância cheia de humor que encantou Claudia. Cross apresentou-as depois do espectáculo.

Loretta Lang era tão encantadora em pessoa como no palco. Mas Claudia notou que Cross não estava encantado, que na realidade parecia até um pouco irritado com a vivacidade dela.

Na visita seguinte, Claudia levou Melo Stuart para uma noite em Las Vegas, de modo que pudessem ambos assistir ao espectáculo do Xanadu. Melo fora mais para fazer a vontade a Claudia, sem esperar grande coisa. Observou apreciativamente e em seguida disse a Claudia:

- A rapariga tem boas possibilidades. Não a cantar ou a dançar, mas é uma cómica nata. Uma mulher com essa característica vale ouro.

Nos bastidores, quando lhe apresentaram Loretta, Melo fez a sua cara mais séria e disse:

- Loretta, gostei imenso de si. Adorei. Compreende? Pode ir ter comi go a Los Angeles na próxima semana? Vou arranjar-lhe um teste de câmara para mostrar a um amigo meu que trabalha no cinema. Mas antes disso terá de assinar um contrato com a minha agência. Sabe, tenho de trabalhar muito antes de começar a ganhar algum dinheiro. O negócio é assim, mas lembre-se, adorei.

Loretta lançou-lhe os braços ao pescoço. Não havia ali fingimento nem cálculo, notou Claudia. Marcou-se uma data e foram os três jantar juntos, para festejar, antes de Melo apanhar o primeiro avião da manhã de regresso a L. A.

Durante o jantar, Loretta confessou que já estava sob contrato com uma agência especializada em espectáculos para clubes nocturnos. Um contrato válido por mais três anos. Melo garantiu-lhe que tudo se podia arranjar.

Mas não podia. A agência a que Loretta estava ligada insistia em controlar-lhe a carreira durante os próximos três anos. Loretta, em pânico, surpreendeu Claudia pedindo-lhe que apelasse ao irmão.

Que diabo pode o Cross fazer?- espantou-se Claudia.

Ele tem imenso peso na cidade - respondeu Loretta. - Pode chegar a um acordo que não me corte as pernas. Por favor?

Quando Claudia subiu à suite do terraço do hotel e apresentou o problema a Cross, o irmão olhou para ela, irritado, e abanou a cabeça.

Que importância tem? - perguntou Claudia. - Só estou a pedir-te que dês uma palavrinha, mais nada.

És uma parva - respondeu Cross. - Já vi centenas de tipas como ela. Servem-se dos amigos como tu até onde podem e depois adeus boa viagem!

E depois? A Loretta tem talento a sério. Uma coisa destas poderia transformar-lhe a vida inteira para melhor.

Cross abanou novamente a cabeça.

Não me peças isso - disse.

Porque não? - estranhou Claudia. Estava habituada a pedir favores para outras pessoas, era uma coisa que fazia parte do negócio do cinema.

Porque se me meto nisso, tenho de ser bem sucedido - respondeu Cross.

- Não estou à espera que sejas bem sucedido. Só estou a pedir-te que faças o melhor que puderes. Pelo menos para eu poder dizer à Loretta que tentámos.

Cross riu-se.

- És realmente parva - disse. - Está bem, diz à Loretta e ao tipo da agência para estarem aqui amanhã de manhã. Às dez em ponto. E tu é melhor vires também.

Na reunião da manhã seguinte, Claudia viu pela primeira vez o agente de Loretta. Chamava-se Tolly Nevans e vestia ao estilo informal de Las Vegas, adequado à seriedade da ocasião. Ou seja, usava um blazer azul sobre uma camisa branca sem colarinho e calças de ganga.

Prazer em voltar a vê-lo, Cross - disse Nevans.

Já nos conhecíamos? - perguntou Cross. Nunca se ocupava pessoalmente dos pormenores ligados ao espectáculo de variedades.

Há muito tempo - respondeu Nevans, suavemente. - Quando a Loretta apareceu pela primeira vez no Xanadu.

Claudia notou a diferença entre os agentes de L. A., que lidavam com os grandes nomes do cinema e aquele Tolly Nevans, que se movia no mundo mais insignificante dos artistas de variedades. Nevans estava um pouco mais nervoso, a sua presença física não era tão dominadora. Faltava-lhe a segurança total e inabalável de um Melo Stuart.

Loretta beijou Cross na face, mas não lhe disse nada. Naquele momento não mostrava sequer vestígios da sua habitual vivacidade. Sentou-se ao lado de Claudia, que sentiu a tensão em que ela estava.

Cross tinha-se vestido para jogar golfe, calças e camisola brancas, sapatos de ténis. Na cabeça tinha um barrete de baseball azul. Ofereceu bebidas, mas ninguém aceitou. Então, num tom extremamente tranquilo, disse:

Vamos lá resolver este assunto. Loretta?

O Tolly quer ficar com uma percentagem de tudo o que eu ganhar - começou ela, numa voz que tremia. - Isso inclui qualquer trabalho para o cinema. Mas a agência de L. A., muito naturalmente, quer receber a sua percentagem completa sobre qualquer trabalho no cinema que me arranje. Não posso pagar duas percentagens. E depois o Tolly quer ter a última palavra a respeito de tudo o que eu faça. Os tipos de L. A. não aceitam uma coisas dessas, e eu também não.

Nevans encolheu os ombros.

Temos um contrato - disse. - Tudo o que pretendemos é que ela o cumpra.

Mas nesse caso o meu agente para o cinema não assina comigo - protestou Loretta.

A mim parece-me muito simples - interveio Cross. - Tudo o que tens a fazer, Loretta, é rescindir o teu contrato com a agência do Nevans e indemnizá-los.

A Loretta é uma grande artista - declarou Nevans -, que nos dá muito dinheiro a ganhar. Sempre a promovemos, sempre acreditámos no talento dela. Investimos uma porção de massa. Não podemos largá-la agora que está a dar lucro.

- Loretta, paga-lhe e rescinde o contrato - insistiu Cross. Loretta quase gemeu:

- Não posso pagar duas percentagens! É demasiado pesado! Claudia tentou controlar o sorriso que lhe subiu aos lábios. Cross não.

Nevans parecia ofendido. Finalmente, Cross disse:

- Claudia, vai buscar os teus tacos de golfe. Quero fazer nove buracos contigo. Encontramo-nos lá em baixo junto ao caixa, logo que tenha resolvido isto aqui.

Claudia estivera a perguntar a si mesma por que razão se teria Cross vestido para aquele encontro de uma maneira tão informal. Como se não o levasse a sério. Ofendera-a a ela, e sabia que tinha ofendido Loretta. Mas tranquilizara Tolly. O homem não propusera qualquer espécie de compromisso. Por isso Claudia respondeu:

- Acho que vou ficar por aqui. Quero ver Salomão em acção. Cross nunca seria capaz de se zangar com a irmã. Riu-se, e ela devolveu- lhe um sorriso. Então Cross voltou-se para Nevans.

Vejo que não está disposto a ceder. E acho que tem razão. Que tal uma percentagem do que ela ganhar no cinema durante um ano? Mas terá de abrir mão do controlo, ou a coisa não funciona.

Não lhe dou nada disso! - irrompeu Loretta, furiosa.

Nem é o que eu quero - replicou Nevans. - A percentagem está muito bem, mas supõe que te arranjávamos um trabalho dos grandes e tu estavas presa num filme. Perdíamos um monte de dinheiro.

Cross suspirou e disse, quase com tristeza:

- Tolly, quero que liberte a rapariga desse contrato. éum pedido. O nosso hotel faz muitos negócios consigo. Faça-me um favor.

Pela primeira vez, Nevans pareceu alarmado. Disse, num tom quase implorativo:

Gostava imenso de lhe fazer esse favor, Cross, mas tenho de falar com os meus sócios na agência. - Fez uma pausa. - Talvez consiga arranjar uma venda do contrato.

Não - respondeu Cross. - Estou a pedir um favor, não um negócio. E quero a sua resposta agora, de modo a poder saborear o meu jogo de golfe. - Calou-se por um instante. - Diga apenas sim ou não.

Claudia ficou chocada por esta súbita brusquidão. Cross não estava a ameaçar nem a intimidar ninguém, tanto quanto pudesse ver. Na realidade, dava até a impressão de querer desistir de todo o assunto, como se tivesse perdido o interesse. Mas Claudia viu que Nevans estava abalado.

A resposta de Nevans foi surpreendente:

- Mas isso é injusto! - protestou. Lançou um olhar carregado de censura a Loretta, que baixou os olhos.

É apenas um pedido. - Cross puxou a pala do barrete de baseball para um lado.- Pode dizer que não. Depende de si.

Não, não - disse Nevans, apressadamente. - Só não sabia que fazia tanto empenho, que eram tão bons amigos.

De súbito, Claudia assistiu a uma transformação espantosa na atitude do irmão. Cross inclinou-se para a frente e deu a Tolly Nevans um meio abraço de afecto. Um sorriso aqueceu-lhe o rosto. O filho da mãe era bonito a valer, pensou. E então Cross disse, numa voz cheia de gratidão:

- Tolly, não vou esquecer isto. Ouça, tem carta branca aqui no Xanadu para qualquer novo talento que queira promover, com o nome em terceiro lugar no cartaz, pelo menos. Vou até organizar um espectáculo especial com todos os artistas da sua agência, e nessa noite quero que você e os seus sócios jantem comigo aqui no hotel. Telefone-me sempre que quiser e eu dou ordens para que tenha entrada livre. Linha directa. Okay?

Claudia compreendeu duas coisas. Que Cross demonstrara delibe-radamente o seu poder. E que tivera o cuidado de recompensar Nevans de alguma maneira, mas só depois de ele se ter submetido, e não antes. Tolly Nevans teria a sua noite especial, resplandeceria na companhia do poder, por essa noite.

Claudia compreendeu ainda que Cross a deixara assistir àquela exibição do seu poder para lhe mostrar que a amava, e que esse amor tinha uma força material. E pareceu-lhe notar no rosto perfeitamente desenhado do irmão, naquela beleza que invejava desde a infância, nos lábios sensuais, no nariz perfeito, nos olhos amendoados, um ligeiro endurecimento, como se estivessem a transformar-se no mármore das estátuas antigas.

Claudia saiu da Pacific Coast Highway e continuou até ao portão de Malibu Colony. Adorava aquele lugar, as casas mesmo junto à praia, com o oceano a brilhar diante delas, e, lá muito ao longe, voltou a ver reflectidas na superfície das águas as montanhas que lhes ficavam por trás. Estacionou o carro diante da casa de Athena.

Boz Skannet estava estendido na praia pública do lado sul da vedação que a separava de Malibu Colony. Era uma simples vedação de arame, que descia pela areia e se prolongava cerca de dez passos mar dentro. Mas tratava-se meramente de uma barreira formal. Quem se afastasse o suficiente podia com toda a facilidade contorná-la a nado.

Boz estava a reconhecer o terreno para o seu próximo ataque a Athena. Sendo apenas uma viagem exploratória, fora de carro até à praia pública, com os calções de banho vestidos por baixo de uma T-shirt e umas calças.

No saco de praia, mais exactamente um saco de ténis, levava um frasco cheio de ácido envolto em toalhas.

Do ponto onde se encontrava podia olhar através da vedação para a casa de Athena. Podia ver os dois seguranças privados na praia. Estavam armados. Se as traseiras estavam protegidas, a parte da frente certamente também o estaria. Não se importava de ferir os guardas, mas não queria parecer um louco a chacinar uma porção de gente. Isso reflectir-se-ia negativamente na sua justificada destruição de Athena.

Boz Skannet despiu as calças e a T-shirt e voltou a estender-se na toalha, ficando a olhar para o imenso lençol azul do Pacífico que se estendia para lá da areia. O calor do sol fê-lo ficar sonolento. Pensou em Athena.

Na universidade ouvira um professor que, durante uma conferência sobre os ensaios de Emerson, citara: "A beleza é a sua própria justificação." Seria Emerson? Seria a beleza? O facto é que pensara em Athena.

É tão raro encontrar um ser humano tão belo na sua forma física e tão virtuoso nas outras partes da sua natureza. E por isso pensara em Thena. Toda a gente lhe chamava Thena, nos tempos em que ela era apenas uma rapariga.

Ele amara-a tanto na sua juventude que vivera num sonho de felicidade em que ela o amava. Nunca pensara que a vida pudesse ser tão doce. E, pouco a pouco, tudo fora sendo desfeito.

Como se atrevia ela a ser tão perfeita? Como se atrevia ela a exigir tanto amor? Como se atrevia ela a fazer que tantas pessoas a amassem? Não saberia como isso podia ser perigoso?

E Boz interrogava-se a si mesmo. Porque fora que o seu próprio amor se transformara em ódio? Era muito simples, na verdade. Porque sabia que não poderia possuí-la até ao fim das suas vidas; que um dia teria inevitavelmente de a perder.

Nesse dia ela deitar-se-ia com outros homens, nesse dia ela desapareceria do seu paraíso. E não voltaria a pensar nele.

Sentiu o sol deixar de aquecer-lhe a cara e abriu os olhos. De pé junto dele estava um homem muito grande, muito bem vestido, segurando uma cadeira de praia desdobrável. Boz reconheceu-o. Era Jim Losey, o detective que o interrogara depois de ele ter lançado a água à cara de Thena.

Boz piscou os olhos para o ver melhor.

- Que coincidência, termos ambos vindo tomar banho à mesma praia. Que raio é que você quer?

Losey desdobrou a cadeira e sentou-se nela.

- Foi a minha ex-mulher que me deu esta cadeira. Eu andava a prender e a interrogar tantos surfistas que ela achou que mais valia fazê-lo confortavelmente. - Olhou para Boz Skannet quase com bondade. - Só quero fazer-lhe algumas perguntas. Primeira, o que é que está a fazer tão perto da casa de Miss Aquitane? Está a violar a ordem restritiva do juiz.

- Estou numa praia pública, há uma vedação entre nós e eu estou de calções de banho. Tenho ar de quem está a assediá-la?

Losey tinha um sorriso de compreensão espalhado no rosto.

- Ouça, se eu fosse casado com um borracho daqueles, também não conseguia manter-me afastado. Que tal deixar-me dar uma vista de olhos ao seu saco de praia?

Boz pôs o saco debaixo da cabeça.

- Não - disse. - A menos que tenha um mandato. Losey dirigiu-lhe um sorriso amistoso.

- Não me obrigue a prendê-lo -pediu. - Ou a dar-lhe uma tareia do caraças e depois tirar-lhe o saco.

Esta espicaçou Boz. Pôs-se de pé, ofereceu o saco a Losey, mas logo a seguir afastou-o e desafiou.

- Tente vir buscá-lo.

Losey sobressaltou-se. Pelas suas contas, nunca encontrara ninguém mais duro do que ele próprio. Noutra situação, teria sacado do cassetete ou da arma e dado uma tareia monstra naquele desgraçado. Talvez fosse a areia por baixo dos pés que o fez hesitar, ou talvez fosse a total ausência de medo que Skannet mostrava.

Boz estava a sorrir.

- Vai ter de dar-me um tiro - disse. - Temos os dois o mesmo tama nho, mas eu sou mais forte. E se me der um tiro, não terá motivo justificável.

Losey admirou a perspicácia do homem. Numa luta a murro, o resultado poderia ser duvidoso, e ele não tinha realmente um motivo justificável para usar a arma.

- Está bem - acabou por dizer. Dobrou a cadeira e começou a afas tar-se. Então voltou-se e acrescentou, com uma nota de admiração: - Você é um tipo mesmo rijo. Ganhou. Mas não me dê um motivo justificável. Não medi a distância daqui até à casa, é bem possível que não esteja de facto a violar a ordem do juiz...

Boz lançou uma gargalhada.

- Não lhe vou dar motivo, descanse.

Ficou a ver Jim afastar-se pela praia, meter-se no carro e arrancar. Então enfiou a toalha dentro do saco e dirigiu-se ao seu próprio carro. Meteu o saco na bagageira, tirou a chave da ignição do porta-chaves e escondeu-a debaixo do banco da frente. Depois voltou à praia, entrou na água e contornou a nado a extremidade da vedação.

 

Amena Aquitane chegara ao estrelato pela via tradicional, que o público raramente conhece. Passara longos anos a treinar: aulas de representação, aulas de dança e movimento, lições de voz, leitura intensiva de literatura dramática, tudo coisas necessárias para a arte de representar.

E, evidentemente, o trabalho de base. Fez a ronda dos agentes, aturou realizadores e produtores moderadamente libidinosos, suportou os assaltos sexuais mais dinossaurianos de chefes e directores de estúdios.

No primeiro ano ganhou a vida a fazer anúncios e um pouco como modelo, aparecendo escassamente vestida junto dos carros à venda nos salões automóveis. Mas isso foi só durante o primeiro ano. Por essa altura, os seus dotes como actriz começaram a dar frutos. Teve amantes que a cobriram de jóias e de dinheiro. Alguns deles propuseram-lhe casamento. Os seus casos amorosos foram todos breves e terminaram sem ressentimentos.

Nada disto fora doloroso ou humilhante para ela, nem mesmo quando o comprador de um Rolls-Royce partira do princípio que ela estava incluída no preço. Athena acalmara-lhe os ânimos com uma brincadeira, dizendo-lhe que estava enganado, que custava tanto como o carro. Gostava de homens, apreciava o sexo, mas só como meio para atingir objectivos mais sérios. Os homens não eram uma parte importante do seu mundo.

Representar era a Vida. O seu conhecimento secreto de si mesma era sério. Os perigos do mundo eram sérios. Mas representar vinha antes de tudo o mais. Não os pequenos papéis no cinema que lhe permitiam pagar as despesas, mas os grandes papéis nas grandes peças levadas à cena pelos grupos de teatro locais, e depois as peças no Mark Taper Fórum, que finalmente a cata-pultaram para os grandes papéis no cinema.

A sua verdadeira vida eram os papéis que representava, sentia-se mais viva quando dava corpo às suas personagens, trazia-as dentro de si enquanto vivia a sua existência normal de todos os dias. Os seus casos amorosos eram como diversões, como jogar golfe ou ténis, ou jantar fora com os amigos; partes de um sonho, sem consistência.

A vida real só acontecia na catedral do teatro: maquilhar-se, acrescentar uma mancha de cor à roupa, as feições a contorcerem-se ao sabor das emoções das frases da peça, e então, olhando para a profunda escuridão do público - Deus a mostrar finalmente o rosto - lutava pela sua vida. Chorava, apaixonava-se, gritava de angústia, pedia perdão pelos seus pecados secretos, e por vezes sentia a alegria redentora da felicidade encontrada.

Tinha fome de fama e de êxito para apagar o seu passado, para afogar as recordações de Boz Skannet, da filha que tinham tido, da traição que lhe fizera a sua própria beleza; o presente de uma fada-madrinha maliciosa e perversa.

Como qualquer artista, queria que o mundo a amasse. Sabia que era bela - como poderia deixar de saber, quando todo o seu universo lho dizia constantemente - mas sabia também que era inteligente. E por isso, desde o início, sempre acreditou em si mesma. Aquilo em que não podia realmente acreditar, ao princípio, era que possuía os ingredientes indispensáveis do verdadeiro génio: uma energia e uma concentração enormes. E curiosidade.

Representar e a música eram os verdadeiros amores de Athena, e para ser capaz de se concentrar nestas coisas, usava a sua energia para se tornar perita em tudo o mais. Aprendeu a consertar um carro, tornou-se uma cozinheira soberba, uma excelente praticante de diversos desportos. Estudou a arte de fazer amor na literatura e na vida, sabendo como era importante na profissão que escolhera.

Tinha uma falha. Não suportava infligir dor a outro ser humano, e uma vez que nesta vida isso é impossível de evitar, era uma mulher infeliz. Tomava, no entanto, decisões duras que promoviam a sua ascensão no mundo. Usava o seu poder como Estrela Cotável, mostrava-se por vezes de uma frieza que era tão intensa quanto a sua beleza. Homens poderosos suplicavam-lhe que entrasse nos seus filmes, outros homens suplicavam-lhe que os deixasse entrar na sua cama. Influenciava, quando não impunha, a escolha do realizador e dos restantes actores. Podia cometer pequenos crimes sem ser castigada, ofender os costumes, desafiar quase todas as moralidades, e quem saberia dizer qual era a verdadeira Athena? Tinha a inescrutabilidade de todas as Estrelas Cotáveis, era uma gémea, não conseguia separar a sua verdadeira vida das vidas que vivia na tela.

Tudo isso e o mundo amava-a, mas não era o suficiente. Athena conhecia a sua fealdade interior. Havia uma pessoa que não a amava, e isso fazia-a sofrer. Faz parte da definição de uma actriz cair no desespero se receber cem críticas elogiosas e uma única adversa.

No final dos seus primeiros cinco anos em Los Angeles, Athena conseguiu o seu primeiro papel de estrela num filme e fez a sua grande conquista.

Como todos os actores de topo, Steve Stallings tinha direito de veto sobre a principal figura feminina em cada um dos seus filmes. Viu Athena numa peça no Mark Taper Fórum e reconheceu o seu talento. Mas, acima de tudo, ficou impressionado pela beleza dela; por isso a escolheu para contracenar com ele no seu próximo filme.

Athena ficou completamente surpreendida e lisonjeada. Sabia que aquela era a sua grande oportunidade, e, de início, não compreendeu por que razão tinha sido escolhida. Foi o seu agente, Melo Stuart, quem a esclareceu.

Estavam no gabinete de Melo, uma sala maravilhosamente decorada com bricabraque oriental, carpetes bordadas a fio de ouro e móveis pesados e confortáveis, tudo isto banhado numa luz artificial, uma vez que os cortinados estavam corridos para não deixar entrar o brilho ofuscante do sol. Melo, que preferia tomar um chá à inglesa no seu gabinete a sair para almoçar, pegava nas minúsculas sanduíches e como que as atirava para dentro da boca enquanto falava. Só saía para almoçar com os seus clientes verdadeiramente famosos.

Merece esta oportunidade - disse a Athena. - É uma grande actriz. Mas só por cá anda há uns poucos anos e, apesar da sua inteligência, está ainda um pouco verde. Por isso não se ofenda com o que vou dizer-lhe... o que se passa é o seguinte. - Interrompeu-se por um instante. - Normal mente não explicaria isto; normalmente não seria necessário.

Mas como eu estou tão verde... - disse Athena, sorrindo.

Não exactamente verde - respondeu Melo. - Mas está tão comple tamente concentrada na sua arte que por vezes parece não se aperceber das complexidades sociais da indústria.

Athena parecia divertida.

- Diga-me então como consegui o papel.

- O agente do Stallings telefonou-me. Disse-me que ele a tinha visto na peça do Taper e ficara deslumbrado com a sua actuação. Quere-a absolu tamente neste filme. Depois telefonou-me o produtor, para negociar, e chegá mos a um acordo. Salário simples, duzentos mil, sem percentagem nos lucros... isso virá mais tarde na sua carreira... e sem compromissos para novos filmes. Para si, é uma proposta óptima.

Obrigada - disse Athena.

Não devia ter de dizer-lhe isto - continuou Melo. - O Steve tem o hábito de se apaixonar loucamente pelas suas parceiras nos filmes. Sinceramente, mas é um apaixonado muito ardente.

Melo, não precisa de explicar tintim por tintim - interrompeu-o Athena.

Sinto que é minha obrigação - respondeu Melo.

Olhou para ela com ternura. Ele próprio, habitualmente tão impenetrável, se apaixonara por Athena, no princípio, mas uma vez que ela nunca se comportara de uma maneira que pudesse considerar-se sedutora, ele percebera a deixa e abstivera-se de revelar os seus sentimentos. Ela era, ao fim e ao cabo, um bem, uma propriedade valiosa que no futuro lhe renderia milhões.

Está a tentar dizer-me que é suposto eu saltar-lhe para o colo da primeira vez que estivermos sozinhos? - perguntou, secamente. - O meu grande talento não é suficiente?

De modo nenhum. E absolutamente. Uma grande actriz é uma grande actriz, em quaisquer circunstâncias. Mas sabe como é que uma pessoa se torna uma grande estrela no cinema? A dada altura, tem de conseguir um grande papel exactamente no momento certo. E este é um grande papel para si. Não pode dar-se ao luxo de o perder. E o que é que tem de tão difícil apaixonar-se por Steve Stallings? Um milhão de mulheres em todo o mundo amam-no, por que não a Athena? Deveria sentir-se lisonjeada.

Sinto-me lisonjeada - replicou ela, friamente. - Mas... e se eu o detestar?

Melo meteu outra sanduíche na boca.

- Detestá-lo porquê? é um homem encantador, juro-lhe. Mas, pelo menos, namorisque-o até terem filmado demasiadas cenas consigo para poderem corrê-la do filme.

- E se eu for tão boa que eles não queiram correr comigo? Melo suspirou.

Para dizer a verdade, o Steve não vai dar tempo para isso. Se não estiver apaixonada por ele passados três dias, está fora do filme.

Isso é assédio sexual - disse Athena, rindo.

Não pode haver assédio sexual na indústria do cinema. De uma maneira ou de outra, está a pôr o corpo à venda a partir do momento em que entra.

Estou a referir-me à parte em que tenho de apaixonar-me por ele - explicou Athena. - Uma simples queca não lhe basta?

Quecas tem ele sempre e quando quiser - respondeu Melo. - Está apaixonado por si, de modo que quer amor em troca. Até ao fim das filmagens. - Suspirou. - Depois disso, acabar-se-á a paixão, porque estarão ambos demasiado ocupados a trabalhar. - Fez uma curta pausa. - Não vai ser insultuoso para a sua dignidade - continuou. - Uma estrela como o Steve mostra o seu interesse. A destinatária, neste caso a Athena, corresponde ou revela falta de interesse no interesse dele. Ele mandar-lhe-á flores no primeiro dia. No segundo dia, depois do ensaio, convidá-la-á para jantar e estudar o guião. Nada de forçado. Excepto, claro, que será excluída do filme se não for. Com o salário por inteiro, posso conseguir-lhe isso.

Melo, não acha que eu sou suficientemente boa actriz para vencer sem ter de vender o meu corpo? - perguntou Athena, com fingida censura.

Claro que é. E nova, apenas vinte e cinco anos. Pode esperar mais dois ou três, talvez até quatro ou cinco anos. Tenho uma fé absoluta no seu talento. Mas experimente. Toda a gente adora o Steve.

Correu exactamente como Melo tinha predito. Athena recebeu flores no primeiro dia. No segundo dia ensaiaram com toda a equipa. Era uma comédia dramática em que o riso conduzia às lágrimas, uma das coisas mais difíceis de conseguir. Athena ficou impressionada com a técnica de Stallings. Steve lia a sua parte com uma voz monótona, sem fazer o mínimo esforço para impressionar, mas mesmo assim as frases saíam vivas, e nas variações ele escolhia invariavelmente a mais verdadeira. Representaram uma cena de doze maneiras diferentes e reagiram um ao outro, seguiram-se um ao outro como bailarinos. No fim, ele murmurou, "Óptimo, óptimo", e sorriu-lhe com uma admiração respeitosa que era puramente profissional.

No fim desse dia, Steve ligou finalmente o charme.

Penso que este pode ser um grande filme por sua causa - disse. - Que tal juntarmo-nos esta noite e trabalharmos a sério o guião? - Interrompeu-se por um instante e depois acrescentou, com um sorriso arrapazado perfeitamente encantador: - Fomos verdadeiramente bons juntos.

Obrigada - respondeu Athena. - Quando e onde?

No mesmo instante, o rosto de Steve expressou um horror delicado e brincalhão.

- Oh, não! - exclamou. - A escolha é sua.

Nesse momento, Athena decidiu aceitar o seu papel e representá-lo como uma verdadeira profissional. Ele era a super-estrela. Ela era a recém-chegada. Mas todas as escolhas lhe cabiam a ele e o dever dela era escolher aquilo que ele queria. As palavras de Melo soaram-lhe nos ouvidos: "... esperar dois, três, quatro, cinco anos". Não podia esperar.

- Importar-se-ia de ir a minha casa? - sugeriu. - Farei um jantar simples, para podermos trabalhar enquanto comemos. - Fez uma pausa e acrescentou: - Às sete?

Porque era uma perfeccionista, Athena preparou-se física e mentalmente para a dupla sedução. O jantar seria ligeiro, de modo a não afectar o trabalho ou o desempenho sexual de qualquer deles. Embora raramente tocasse em álcool, comprou uma garrafa de vinho branco. A refeição seria uma demonstração do seu talento de cozinheira, mas prepará-la-ia enquanto estivessem a trabalhar.

Roupas. Compreendia que era suposto a sedução ser acidental, sem qualquer intenção prévia. Mas também não podia usá-las como um sinal para o repelir. Como actor, Steve estaria alerta para interpretar os mais pequenos indícios.

Vestiu uns jeans já desbotados, que lhe realçavam o desenho das nádegas e cujo azul desmaiado e manchado de branco tinha um ar juvenilmente convidativo. Sem cinto. Por cima, uma fina blusa de seda branca que, embora nada revelasse, sugeria a cor mais leitosa dos seios que cobria. Enfeitou as orelhas com uns pequenos brincos redondos, de mola, verdes para condizer com os olhos. Continuava mesmo assim a ser um pouco severo de mais, a dar um pouco uma impressão de retraimento. Foi então que lhe ocorreu um rasgo de génio. Pintou as unhas dos pés de vermelho vivo e recebeu-o descalça.

Steve Stallings chegou com uma garrafa de bom vinho tinto, não excepcional, mas muito bom. Também ele se vestira para trabalhar. Calças largas, de bombazina castanha, camisa de ganga azul, ténis brancos, os cabelos negros descuidadamente penteados. Debaixo do braço levava um exemplar do guião, com papéis amarelos a marcar várias páginas. A única coisa que o denunciava era um levíssimo aroma a água-de-colónia.

Comeram informalmente na mesa da cozinha. Ele elogiou-lhe os dotes culinários, e com razão. E, enquanto comiam, iam folheando os respectivos guiões, comparando notas, ensaiando diálogos.

Depois do jantar, passaram para a sala e representaram algumas cenas específicas, que tinham assinalado como mais problemáticas. Através de tudo isto, estavam ambos muito conscientes um do outro, e isso afectou-lhes o trabalho.

Athena notou que Steve representava o seu papel na perfeição. Foi profissional, respeitoso. Só os olhos traíam a sua genuína admiração pela beleza dela, o apreço pelo seu talento de actriz, pelo seu domínio do material. Finalmente, perguntou-lhe se estava demasiado cansada para representar a cena de amor, crucial no argumento do filme.

Por essa altura, já o jantar tinha sido confortavelmente digerido. Por essa altura, já eram amigos íntimos, como as personagens no guião. Representaram a cena de amor; Steve beijou-a levemente nos lábios, mas quase sem lhe tocar no corpo. Depois do primeiro e casto beijo, olhou-a no fundo dos olhos e, com um tom perfeito de emoção na voz, disse:

- Desejava fazer isto desde o primeiro instante em que te vi.

Athena sustentou-lhe o olhar. Então baixou os olhos, puxou-lhe suavemente a cabeça para baixo e beijou-o. Estava dado o sinal necessário. Ficaram ambos surpreendidos com a genuína paixão com que ele correspondeu. O que provava que era ela melhor actriz do que ele actor, pensou Athena. Mas ele era experiente. Enquanto a despia, as suas mãos acariciaram-lhe a pele, explorou-a com os dedos, tocou-lhe com a língua na face interior da coxa, e o corpo dela respondeu. Não era assim tão terrível, pensou Athena, seguin-do-o até ao quarto. E depois, Steve era tão espantosamente bonito. O seu rosto clássico, cheio de paixão, tinha uma intensidade que não podia ser reproduzida em filme, que, em filme, teria parecido lasciva. Quando fazia amor na tela, era sempre muito mais espiritual.

Athena representava agora o papel de uma mulher dominada por uma louca paixão física. Estavam perfeitamente sincronizados e, num momento de explosão ofuscante, atingiram simultaneamente o clímax. Deitados de costas, exaustos, ambos perguntaram a si mesmos como teria a cena resultado se tivesse sido filmada, e decidiram que não fora suficientemente boa para um único take. Não revelara carácter, como deveria, nem contribuíra para o desenrolar da história. Faltara-lhe a emoção íntima e terna do verdadeiro amor, ou até da verdadeira luxúria. Teriam tido de repeti-la.

Steve Stallings apaixonou-se, mas isso era uma coisa que lhe acontecia constantemente. Athena, mau grado o facto de aquilo ter sido de certa maneira uma violação profissional, estava contente por as coisas terem corrido tão bem. Não havia ali nenhum lado negativo, a não ser, talvez, a questão do livre arbítrio. E podia dizer-se a respeito de qualquer vida que a supressão do livre arbítrio, judiciosamente exercida, era muitas vezes necessária para a sobrevivência humana.

Steve estava contente por agora, na rodagem do seu novo filme, tudo estar como devia ser. Tinha uma boa companheira de trabalho. A relação entre os dois ia ser agradável, não se veria obrigado a andar por aí à procura de sexo. Além disso, raramente tivera uma mulher tão dotada de talento e beleza como Athena, e ainda por cima boa na cama. E obviamente loucamente apaixonada por ele, o que, é claro, poderia vir a tornar-se um problema mais tarde.

O que aconteceu a seguir cimentou o amor que os unia. Saltaram ambos da cama e disseram: "Voltemos ao trabalho!" Pegaram cada um no seu guião e, ainda nus, puseram-se a aperfeiçoar as respectivas deixas.

Houve, no entanto, uma pequena nota desconcertante para Athena quando Steve vestiu as cuecas. Eram cor de salmão, e especialmente concebidas de modo a destacar o desenho firme das nádegas, essas nádegas que constituíam um motivo de êxtase para as suas fãs. Outro momento estranho foi quando anunciou, muito orgulhoso, que usara um preservativo fabricado especialmente para ele por uma empresa em que tinha investido algum dinheiro. Era praticamente impossível notar que se estava a usar um. Eram, além disso, cem por cento seguros. Perguntou a Athena que nome de marca lhe parecia melhor para os seus preservativos: Excalibur ou Rei Artur. Pessoalmente, gostava mais de Rei Artur. Athena ponderou a questão por alguns momentos. Então perguntou, com fingida seriedade:

Talvez um nome mais politicamente correcto?

Tens razão! - concordou Steve. - São tão caros de produzir que temos de vendê-los a ambos os sexos. A nossa frase-chave na publicidade vai ser "O Preservativo das Estrelas". Que te parece, como nome? Preservativos Estrela!

o filme como o caso amoroso entre eles foram grandes sucessos. Athena subira com êxito o primeiro degrau da escada que conduzia ao es-trelato, e cada um dos filmes que fez durante os cinco anos seguintes consolidou essa vitória O caso amoroso, como é da natureza da maior parte dos casos amorosos, foi também um êxito, mas, naturalmente, de curta duração. Steve e Athena amavam-se um ao outro com a ajuda do guião, mas esse amor tinha o humor e o desprendimento que a fama dele e a ambição dela tornavam necessários. Nenhum deles podia dar-se ao luxo de estar mais apaixonado do que o outro, e esta igualdade no amor significava a morte da paixão. Havia, por outro lado, a questão geográfica. O caso acabou quando acabaram as filmagens. Athena foi filmar para a índia, Steve foi filmar para Itália. Houve telefonemas e prendas e cartões trocados no Natal, chegaram inclusivamente a voar os dois até ao Havai para um fim-de-semana delicioso. Trabalharem juntos num filme era como serem Cavaleiros da Távola Redonda. Procurar fama e fortuna era demandar o Santo Graal. Tinham de fazê-lo cada um por si.

Tinham corrido boatos a respeito de um eventual casamento. O que era, evidentemente, uma impossibilidade. Athena apreciou o seu caso amoroso, mas nunca lhe perdeu de vista o lado cómico. Embora fizesse questão, como actriz profissional que era, de parecer mais apaixonada do que Steve, era-lhe quase impossível não rir às gargalhadas. Steve era tão sincero, tão perfeito no seu papel de amante ardente e sensível, que era quase como assistir a um dos seus filmes.

A beleza física dele podia ser apreciada, mas não constantemente admirada. O uso permanente que ele fazia das drogas e da bebida era de tal maneira controlado que se tornava impossível condená-lo. Steve tratava a cocaína como se fosse um medicamento, o álcool tornava-o ainda mais encantador. O seu enorme êxito não fizera dele uma pessoa prepotente ou caprichosa.

Foi, por isso, uma enorme surpresa quando Steve lhe propôs casamento. Athena recusou bem-humoradamente. Sabia que ele ia para a cama com tudo o que se mexesse, quando filmava no exterior, em Hollywood e até na clínica de reabilitação onde fazia curtas estadas sempre que o seu problema com a droga entrava em descontrolo. Não era um homem que quisesse ter como parte semipermanente da sua vida.

Steve aceitou bem a recusa. Fora uma fraqueza momentânea, resultante de um excesso de cocaína. Ficou quase aliviado.

Durante os cinco anos seguintes, enquanto a estrela de Athena continuava a sua ascensão até ao topo, a de Steve empalidecia. Continuava a ser um ídolo para os seus fãs, especialmente as mulheres, mas era infeliz ou pouco inteligente na escolha dos papéis que interpretava. As drogas e o álcool tornaram-no mais desleixado nos seus hábitos de trabalho. Através de Melo Stuart, Steve tinha pedido a Athena o principal papel masculino em Messalina. O sapato mudara de pé. Athena consentiu e deu-lhe o papel. Disse sim levada por um perverso sentimento de gratidão e porque ele era perfeito para a personagem, deixando todavia claro que não seria obrigado a dormir com ela.

Ao longo daqueles cinco anos, Athena tivera alguns casos amorosos de pouca monta. Um deles fora com um jovem produtor chamado Kevin Mar-rion, o único filho de Eli Marrion.

Kevin Marrion era, com a idade dela, um veterano do negócio do cinema. Produzira o seu grande filme com vinte e um anos, e fora um grande êxito. O que o convencera de que era um génio do cinema. Desde essa altura produzira três fracassos totais e agora só o pai lhe dava alguma credibilidade na indústria.

Kevin Marrion era extremamente bem parecido: ao fim e ao cabo, a mãe, a primeira mulher de Eli Marrion, fora uma das mulheres mais belas do cinema. Infelizmente, o filho tinha um tipo de beleza que deixava a câmara indiferente, de modo que falhou todos os seus testes para actor. Como artista sério, o seu futuro era como produtor.

Athena e Kevin conheceram-se quando ele lhe pediu para ser a estrela do seu próximo filme. Athena escutou-o cheia de espanto e de horror. Kevin falava com essa inocência especial das pessoas que se levam a sério.

- Este é o melhor argumento que já li - disse ele. - Devo dizer-lhe com toda a sinceridade que ajudei a escrevê-lo. Athena, você é absolutamente a única actriz que merece o papel. Podia ter qualquer actriz que quisesse, mas quero-a a si. - E olhou-a intensamente nos olhos, para melhor a convencer da sua sinceridade.

Athena estava fascinada pela maneira como ele defendia o argumento. Era a história de uma mulher sem casa que vivia nas ruas e se redimia ao encontrar uma criança abandonada num caixote de lixo, tornando-se então a líder dos sem-abrigo da América. Metade do filme consistia nela a empurrar o carrinho de supermercado em que transportava todos os seus bens. E, depois de ter sobrevivido ao álcool, às drogas, à fome, à violação e a uma tentativa do governo para lhe tirar a criança, chegava a concorrer à presidência dos Estados Unidos por uma lista independente. Não ganhava, porém - e isso era o grande toque de classe do argumento.

O fascínio de Athena era na verdade horror. Tratava-se de um argumento que lhe exigia que se tornasse uma mulher sem abrigo, desesperada, vestida de farrapos e movendo-se num ambiente de desolação. Visualmente, um desastre. O sentimentalismo era rançoso, o nível de inteligência da construção dramática roçava a idiotia. Era uma cretinice confusa e sem ponta por onde se lhe pegasse.

- Se aceitar o papel, morrerei feliz - afirmou Kevin.

E Athena pensou: "Sou eu que estou doida, ou este tipo é completa-mente estúpido?" Kevin era, no entanto, um produtor importante. Obviamente sincero, e obviamente um homem que tinha poder para fazer as coisas acontecerem. Olhou em desespero para Melo Stuart, que lhe sorriu encora-jadoramente. Mas ela estava incapaz de falar.

Maravilhosa. Uma ideia maravilhosa - disse então Melo. - Clássico. Ascensão e queda. Queda e ascensão. A verdadeira essência do drama. Mas, Kevin, sabe como é importante para a Athena, depois do seu primeiro êxito, a escolha do próximo filme. Deixe-nos ler o argumento, e depois voltamos a falar.

Com certeza- respondeu Kevin, entregando-lhes ambos os exemplares do argumento. - Tenho a certeza de que vão adorar.

Melo levou Athena a um pequeno restaurante tailandês em Melrose. Encomendaram o almoço e passaram os olhos pelo guião.

Mais depressa me mato! - exclamou Athena. - Esse tipo é atrasado mental, ou quê?

Continua a não compreender o negócio do cinema - respondeu Melo. - O Kevin é inteligente. Apenas, está a querer fazer uma coisa para a qual não está equipado. Já vi pior.

Onde? Quando? - quis saber Athena.

Não me lembro, assim de repente. A Athena é já uma estrela suficientemente grande para dizer que não, mas não suficientemente grande para arranjar inimigos desnecessários.

O Eli Marrion é demasiado inteligente para apoiar o filho numa destas - contrapôs Athena. - Deve saber que este argumento é uma porcaria.

- Claro - admitiu Melo. - Até costuma dizer, na brincadeira, que tem um filho que faz filmes comerciais que são fracassos e uma filha que faz filmes sérios que perdem dinheiro. Mas o Eli tem de fazer os filhos felizes. Nós não. Dizemos não a este filme. Mas há um problema. A LoddStone detém os direitos de um grande romance que tem um papel óptimo para si. Se disser que não ao Kevin, é capaz de não conseguir esse papel.

Athena encolheu os ombros.

Desta vez espero.

Porque não aceitar os dois papéis? Ponha como condição fazer primeiro o romance. Depois arranjaremos maneira de não fazer o filme do Kevin.

E isso não vai arranjar-me inimigos? - perguntou Athena, sorrindo.

O primeiro filme vai ser um grande êxito, de modo que não terá importância. Nessa altura já poderá dar-se ao luxo de fazer inimigos.

Tem a certeza que depois consigo livrar-me do filme do Kevin?

Se eu não a safar dessa, pode despedir-me - declarou Melo. Já tinha chegado a acordo com Eli Marrion, que não podia dizer directamente que não ao filho e arranjara aquele subterfúgio para escapar ao desastre. Eli queria que Athena e Melo ficassem como os vilões. E Melo pouco se importava. Parte do trabalho de qualquer agente era ser o mau da fita.

Tudo resultou da melhor maneira. O primeiro papel, no filme feito a partir do romance, transformou Athena numa estrela de primeiríssima grandeza. Mas, infelizmente, as consequências fizeram-na decidir-se por um período de castidade absoluta.

Era previsível que, durante o simulacro que foi a pré-produção do filme de Kevin, que nunca chegaria a ser feito, ele se apaixonasse por ela. Kevin Marrion era um jovem relativamente inocente, para produtor, e perseguiu Athena com uma sinceridade e um ardor indisfarçados. A sinceridade e a consciência social eram, sem dúvida, os seus maiores encantos. Certa noite, num momento de fraqueza agravado pela sensação de culpa que lhe inspirava o facto de estar a traí-lo naquela questão do filme, Athena levou-o para a cama. Foi suficientemente agradável e Kevin insistiu em casamento.

Entretanto, Athena e Melo tinham convencido Claudia De Lena a rees-crever o argumento. Claudia transformou-o numa farsa, e Kevin despediu-a. Ficou tão furioso que se tornou aborrecido.

Para Athena, o caso entre os dois era conveniente. Encaixava lindamente no seu calendário de trabalho, além de que o entusiasmo de Kevin na cama não deixava de ser agradável. E a insistência dele em falar de casamento, mesmo sem acordo pré-nupcial, era lisonjeira, uma vez que um dia acabaria por herdar a LoddStone Studios.

Uma noite, porém, depois de ouvi-lo falar interminavelmente a respeito dos filmes que iam fazer juntos, uma espécie de relâmpago atravessou o espírito de Athena: "Se sou obrigada a ouvir este tipo mais um minuto que seja, mato-me!" Como muitas pessoas bondosas que o desespero leva à crueldade, Athena foi até ao fim. Sabendo que de qualquer maneira havia de ficar cheia de remorsos, despejou tudo. Naquele momento, disse a Kevin que não só não casaria com ele, como nunca mais voltariam a ir para a cama juntos e, além disso, não aceitava entrar no filme.

Kevin ficou petrificado.

Temos um contrato - acabou por dizer -, e vamos exigir o seu cumprimento. Estás a trair-me de todas as maneiras.

Eu sei - respondeu Athena. - Fala com o Melo. - Sentia-se enojada consigo mesma. Claro que Kevin tinha razão, mas não deixou de achar curioso o facto de ele estar mais preocupado com o filme do que com o seu amor por ela.

Foi depois deste caso, com a sua carreira artística assegurada, que Athena perdeu o interesse pelos homens. Tinha coisas mais importantes para fazer, coisas em que o amor e os homens não tinham lugar.

Athena Aquitane e Claudia De Lena tornaram-se amigas unicamente porque Claudia era persistente quando queria conquistar a amizade das mulheres com quem simpatizava. Conhecera Athena quando estava a reescre-ver o argumento de um dos seus primeiros filmes, numa altura em que não era ainda uma grande estrela.

Athena insistira em ajudá-la com o argumento, e embora isto fosse regra geral uma situação assustadora para o escritor, acabou por revelar-se inteligente e uma grande ajuda. O seu instinto no que respeitava às personagens e à história estava invariavelmente certo e quase nunca era egoísta. Era suficientemente inteligente para saber que quanto mais fortes fossem as personagens à sua volta, mais teria de trabalhar no seu próprio papel.

Trabalhavam com muita frequência na casa de Athena em Malibu, e foi aí que descobriram que tinham muita coisa em comum. Ambas eram atletas: grandes nadadoras, excelentes praticantes de golfe e muito boas no courtde ténis. Juntas, derrotavam a maioria dos pares masculinos dos courts de Malibu Beach. Por isso, quando acabou a rodagem do filme, continuaram amigas.

Claudia contou a Athena tudo a respeito de si mesma. Athena contou a Claudia muito pouco. Era esse tipo de amizade. Claudia reconhecia o facto, mas não se importava. Contou a Athena o seu caso com Steve Stallings. Athena riu deliciada, e as duas compararam notas. Sim, concordaram, Steve era divertido, e óptimo na cama. E tão talentoso! Era um actor maravilhosamente dotado e um homem verdadeiramente encantador.

- Era quase tão bonito como tu - disse Claudia, que não tinha problemas em admirar generosamente a beleza nos outros.

Athena deu a impressão de não ter ouvido. Era um hábito que tinha, quando alguém referia a sua beleza.

- Mas será melhor actor? - perguntou, maliciosamente.

- Oh, não, tu és muito melhor! - afirmou Claudia. E então, numa tentativa de levar Athena a revelar mais qualquer coisa sobre si mesma, acrescentou:- Mas ele é uma pessoa muito mais feliz do que tu.

A sério? Talvez. Mas um dia há-de ser muito mais infeliz do que eu alguma vez serei.

Sim - concordou Claudia -, a cocaína e a bebida hão-de dar cabo dele. Não vai envelhecer bem. Mas é inteligente, talvez se adapte.

Não quero tornar-me nunca no que ele vai ser - disse Athena. - E não me tornarei.

És o meu herói! - exclamou Claudia. - Mas não vais conseguir vencer o processo de envelhecimento. Sei que não bebes e nem sequer fazes grandes farras, mas os teus segredos hão-de ser a tua morte.

Os meus segredos hão-de ser a minha salvação - disse Athena, com uma gargalhada. - Os meus segredos são tão banais que nem sequer merecem ser contados. Nós, as estrelas de cinema, precisamos de mistério.

Todos os sábados de manhã, quando não estavam a trabalhar, iam às compras juntas a Rodeo Drive. Claudia ficava sempre espantada pela maneira como Athena conseguia disfarçar-se de modo a não ser reconhecida pelos fãs nem pelos empregados nas lojas. Usava uma cabeleira preta e roupas largas para esconder as formas do corpo. Maquilhava-se de modo a fazer o queixo parecer mais largo, os lábios mais cheios, mas o mais espantoso era que parecia capaz de alterar as feições para formar uma cara diferente. Também usava lentes de contacto, que lhe transformavam os olhos verdes e brilhantes num avelã mais discreto. E a voz dela adquiria um suave sotaque do Sul.

Quando comprava alguma coisa, debitava-a nos cartões de crédito de Claudia e pagava-lhe depois com um cheque enquanto almoçavam. Era maravilhoso poderem descontrair-se num restaurante como pessoas completa-mente vulgares; como Claudia dizia a brincar, nunca ninguém reconhecia uma argumentista.

Duas vezes por mês, Claudia passava o fim-de-semana inteiro na casa de Athena em Malibu Beach, a nadar e jogar ténis. Claudia dera a ler a Athena a versão revista de Messalina, e Athena pedira-lhe o papel principal. Como se não fosse uma grande estrela e não devesse ser Claudia a pedir-lhe a ela.

Por isso, quando Claudia chegou a Malibu para convencer Athena a voltar a trabalhar no filme, tinha algumas esperanças de sucesso. Ao fim e ao cabo, Athena não só arruinaria a sua própria carreira como prejudicaria a da amiga.

A primeira coisa que a abalou foi a apertada vigilância em torno da casa de Athena, além dos seguranças habituais à entrada de Malibu Colony.

Dois homens com o uniforme da Ocean Security Company guardavam o portão da casa propriamente dita. Outros dois patrulhavam o grande jardim que se estendia do outro lado. Quando a diminuta governante sul-americana a conduziu à grande sala voltada para o mar, viu mais dois homens na praia, lá fora. Todos eles estavam armados de bastões e pistolas.

Athena recebeu Claudia com um abraço apertado.

Vou ter saudades tuas - disse. - Para a semana já cá não estou.

Por que é que estás a ser tão louca? - perguntou Claudia. - Vais deixar que um filho da mãe qualquer, um cretino machista, arruine a tua vida. E a minha também. Não posso crer que sejas tão medrosa. Ouve, fico contigo esta noite, amanhã pedimos licenças de porte de arma e começamos a treinar. Dentro de dois dias somos atiradoras especiais.

Athena riu-se e deu-lhe outro abraço.

- Isso é o teu sangue mafioso a vir ao de cima - disse. Claudia contara-lhe a respeito dos Clericuzio e do pai.

Prepararam bebidas e sentaram-se em grandes cadeiras estofadas que lhes proporcionavam uma vista do oceano, que era como olhar para um retrato do mar em tons profundos de azul-esverdeado.

- Não vais conseguir fazer-me mudar de ideias e não estou a ser medrosa - continuou Athena. - Vou contar-te o segredo que tanto queres saber, e depois tu podes contar aos estúdios, e talvez então todos compreendam.

Contou então a Claudia toda a história do seu casamento. Disse-lhe como Boz Skannet era sádico e cruel, e como a humilhava deliberadamente, e como ela fugira...

Com o seu espírito arguto, de contadora de histórias, Claudia sentiu que faltava qualquer coisa no relato de Athena, que ela estava a deixar propositadamente de fora alguns elementos importantes.

- O que foi que aconteceu à criança? - perguntou.

As feições de Athena como que se transformaram numa máscara de estrela de cinema.

- Não posso dizer-te mais nada a esse respeito neste momento. Na realidade, aquilo que te disse sobre ter tido uma filha é para ficar entre nós as duas. É a única parte que não podes contar aos estúdios. Estou a confiar em ti.

Claudia soube que não podia, nem devia, insistir naquele ponto.

Mas porque é que abandonas o filme? - perguntou. - Estarás protegida. Depois, poderás desaparecer.

Não. A LoddStone só me protegerá enquanto durarem as filmagens. Seja como for, isso não importa. Conheço o Boz. Nada poderá detê-lo. Se ficar, nunca chegarei a acabar o filme.

Nesse momento, ambas repararam num homem em calções de banho que, saindo da água, avançava para a casa. Os dois seguranças interceptaram-no. Um dos guardas fez soar um apito e os dois homens que vigiavam o jardim apareceram a correr. Numa situação de quatro para um, o homem em calções de banho pareceu recuar ligeiramente.

Athena estava de pé, claramente abalada.

- É o Boz - disse em voz baixa, dirigindo-se a Claudia. - Está a fazer isto para me assustar. Desta vez é só teatro. - Saiu para a varanda e olhou para os cinco homens. Claudia seguiu-a.

Boz Skannet fitou-as, com os olhos semicerrados, o rosto bronzeado pintado pelo sol. O seu corpo, coberto apenas pelos calções de banho, tinha um aspecto letal.

Sorriu e disse:

- Olá, Athena! Não me convidas para uma bebida? Athena dirigiu-lhe um sorriso luminoso.

Convidava, se tivesse veneno. Infringiste a ordem do tribunal... Podia mandar-te prender.

Ná, não fazias uma coisa dessas! - afirmou Boz. - Somos demasiado chegados, temos demasiados segredos juntos.

Embora sorrisse, o seu rosto tinha uma expressão selvagem que recordou a Claudia os homens que apareciam nas festas dos Clerricuzio, em Quogue.

Contornou a vedação a nado, vindo da praia pública - disse um dos guardas. - Deve ter lá um carro. Ou, se quiser, podemos mandá-lo prender.

Não - respondeu Athena. - Levem-no até ao carro. E digam à agência que quero mais quatro guardas à volta da casa.

Boz continuava com o rosto levantado para a varanda, e o seu corpo parecia uma grande estátua de bronze plantada na areia.

Até à vista, Athena - disse ele, antes de se afastar, rodeado pelos guardas.

O homem mete medo - murmurou Claudia. - Talvez tenhas razão. Seria preciso um canhão para o deter.

Telefono-te antes de fugir! - disse Athena, num tom propositadamente teatral. - Poderemos jantar juntas uma última vez.

Claudia estava quase a chorar. Boz assustara-a a sério, recordara-lhe o pai.

Vou a Las Vegas falar com o meu irmão Cross. Ele é esperto e conhece uma porção de gente. Tenho a certeza de que poderá ajudar. Não te vás embora antes de eu voltar.

Por que haveria ele de ajudar? - perguntou Athena. - E como? Pertence à Máfia?

Claro que não - respondeu Claudia, indignadamente. - Vai ajudar porque é meu amigo. - Disse isto com uma nota de orgulho na voz. - Eu sou a única pessoa de quem ele realmente gosta, exceptuando o meu pai.

Athena olhou para ela de sobrolho franzido.

Esse teu irmão parece-me um pouco nebuloso. E tu és muito ingénua, para alguém que trabalha no cinema. E, a propósito, porque é que vais para a cama com tantos homens? Não és uma actriz, e não acredito que sejas uma cabra.

Isso não é segredo nenhum - respondeu Claudia. - Porque é que os homens vão para a cama com tantas mulheres? - Abraçou Athena. - Vou até Las Vegas. Não saias daqui antes de eu voltar.

Nessa noite, Athena sentou-se na varanda e ficou a olhar para o oceano, negro sob um céu sem lua. Reviu os seus planos e pensou em Claudia com ternura. Era realmente curioso o facto de ela não conseguir ver no irmão aquilo que ele na verdade era. Mas essa era uma das coisas que o amor fazia às pessoas.

Quando Claudia se encontrou com Skippy Deere, algumas horas mais tarde, e lhe contou a história de Athena, ficaram ambos sentados em silêncio durante algum tempo. Finalmente, Deere disse:

Houve coisas que ela não te contou. Fui falar com esse Boz Skannet esta tarde e tentei comprá-lo. Recusou. E avisou-me de que se tentássemos alguma brincadeira, entregava aos jornais uma história capaz de nos arruinar. A respeito de como a Athena se desembaraçou da filha.

Isso não é verdade! - explodiu Claudia, subitamente furiosa. - Qualquer pessoa que conheça a Athena sabe que ela não seria capaz de uma coisa dessas!

Claro! - apressou-se Deere a concordar. - Mas nós não conhecíamos a Athena quando ela tinha vinte anos.

Vai-te lixar tu também! Vou a Las Vegas falar com o meu irmão Cross, que tem mais miolos e mais tomates que vocês todos juntos. Ele há-de resolver isto!

- Não acredito que consiga assustar um tipo como o Boz Skannet - disse Deere. - Acredita que tentámos. - Mas estava a ver em tudo aquilo uma nova possibilidade.

Sabia certas coisas a respeito de Cross. Cross andava à procura de uma maneira de entrar no negócio do cinema. Investira em seis dos filmes de Deere e, no cômputo geral, perdera dinheiro, o que provava que não era assim tão esperto. Dizia-se que tinha "ligações", que dispunha de alguma influência na Máfia. Isso não o tornava perigoso. Deere duvidava que Cross pudesse ajudá-los naquela questão do Boz Skannet. Mas um produtor estava sempre disposto a ouvir, um produtor era um homem especializado em jogar nas probabilidades, por muito remotas que parecessem. Além disso, podia sempre convencer Cross a investir noutro filme. Era sempre útil ter um sócio minoritário sem qualquer espécie de controlo sobre o filme e as finanças.

Depois de uma curta pausa, Skippy Deere voltou-se para Claudia e acrescentou:

- Vou contigo.

Claudia De Lena gostava de Skippy Deere apesar do facto de, certa vez, ele a ter enganado em meio milhão de dólares. Gostava de Deere pelos seus defeitos e pela diversidade da sua corrupção, e porque Skippy Deere era sempre boa companhia, tudo qualidades admiráveis num produtor.

Anos antes, tinham trabalhado juntos num filme e sido amigos. Já nessa altura, Deere era um dos mais bem sucedidos e pitorescos produtores de Hollywood. Certa vez, durante umas filmagens em estúdio, o actor principal gabara-se de ter ido para a cama com a mulher dele. Deere, que estava a ouvi-lo numa plataforma situada a uma altura de três andares, saltara e fora aterrar em cima da cabeça do actor, partindo-lhe uma clavícula, além de lhe esborrachar o nariz com um belo gancho da direita.

Claudia tinha outra recordação. Andavam os dois a passear por Rodeo Drive, e ela vira uma blusa numa montra. Era a blusa mais bonita que alguma vez vira. Branca, com umas riscas verdes quase invisíveis, tão maravilhosa que poderia ter sido pintada por Monet. A loja era uma daquelas que exigiam uma marcação antes de se poder sequer entrar, e o dono era um médico de grande fama. Nenhum problema. Skippy Deere era amigo pessoal do proprietário, e amigo de uma série de directores de estúdios, de dirigentes de grandes empresas, de líderes de países de todo o mundo ocidental.

Quando entraram na loja, o empregado anunciou que a blusa custava quinhentos dólares. Claudia cambaleou, levou as mãos ao peito.

- Quinhentos dólares por uma blusa? - preguntou. - Não me faça rir!

O empregado cambaleou por sua vez, siderado pelo descaramento de Claudia.

- O tecido é do melhor - disse. - Feita à mão... E as riscas são de um verde que não existe em nenhum outro tecido em parte alguma do mundo. O preço é muito razoável!

Deere estava a sorrir.

- Não a compres, Claudia - disse. - Sabes quanto é que te vai custar de cada vez que a mandares à lavanderia? Pelo menos trinta dólares! De cada vez que a usares, trinta palhaços! E vais ter de tomar conta dela como se fosse uma criança. Nada de nódoas de comida, e absolutamente não podes fumar. Se lhe fazes um buraco, bang!, lá se vão quinhentos dólares!

Claudia sorriu ao empregado.

- Diga-me uma coisa - pediu - recebo algum brinde se comprar a blusa?

O empregado, um homem magnificamente vestido, tinha lágrimas nos olhos quando disse:

- Por favor... saia! Saíram da loja.

Desde quando é que um empregado pode pôr um cliente no olho da rua? - perguntou Claudia, a rir.

Estás em Rodeo Drive - respondeu Deere. -Já tiveste muita sorte só por conseguires entrar.

No dia seguinte, quando Claudia chegou aos estúdios, havia uma caixa embrulhada em papel de oferta em cima da sua secretária. Continha uma dúzia das tais blusas, e uma nota de Skippy Deere: "Para usar exclusivamente nas cerimónias de atribuição dos Oscares."

Claudia sabia que tanto o empregado da loja como Skippy Deere eram ambos uns aldrabões cheios de prosápia. Algum tempo mais tarde viu as mesmas maravilhosas riscas no vestido de uma mulher e numa fita especial de ténis, de cem dólares.

E o filme em que ambos estavam a trabalhar era uma xaropada amorosa que tinha tantas possibilidades de ser nomeado para os Oscares como Deere de chegar a juiz do Supremo Tribunal. Mas ficou comovida.

E então chegara o dia em que o filme em que ambos tinham trabalhado atingira o número mágico de cem milhões de dólares de receita bruta, e Claudia pensara que estava rica. Skippy Deere convidara-a para jantar, para festejar. Skippy estava efervescente de satisfação.

- Hoje é o meu dia de sorte! - disse. - O filme passou a barreira dos cem milhões, a secretária do Bobby Bantz fez-me uma mamada de gritos e a minha ex-mulher morreu num desastre de automóvel.

Estavam outros dois produtores a jantar com eles, e ambos quase saltaram das cadeiras ao ouvir isto. Claudia pensou que Deere estava a brincar. Mas Deere continuou, dirigindo-se aos dois colegas:

- Estou a ver os vossos olhos verdes de inveja! Poupo quinhentos mil por ano em pensão de alimentos e os meus dois filhos herdam os bens da mãe, tudo o que ela conseguiu arrancar-me, de modo que deixo de ser obrigado a sustentá-los.

Claudia sentiu-se subitamente deprimida. Deere voltou-se para ela.

- Estou a ser sincero. É o que qualquer homem pensaria, mas nunca se atreveria a dizer em voz alta.

Skippy Deere subira a pulso no mundo do cinema. Filho de um carpinteiro, trabalhara com o pai em casa de inúmeras estrelas de cinema. Numa dessas situações que provavelmente só acontecem em Holywood, tornara-se amante de uma grande actriz já de meia idade, que lhe arranjara um lugar como aprendiz na empresa do agente com quem trabalhava, numa espécie de prelúdio para se ver livre dele.

Deere trabalhara duramente, aprendera a controlar a sua natureza fogosa. Acima de tudo, aprendera a bajular o Talento, a tratar com jovens realizadores em trajectória ascendente, a dar a volta às novas estrelas recém-chegadas ao firmamento do cinema, a tornar-se amigo de escritores e argumentistas. Troçava do seu próprio comportamento, citando um grande cardeal da Renascença que defendia a causa do papa Bórgia diante do rei de França. Quando o monarca lhe mostrara o rabo e defecara para expressar o seu desprezo pelo papa, o cardeal exclamara: "Oh, o traseiro de um anjo!", e correra a beijá-lo.

Deere dispunha, em todo o caso, das ferramentas indispensáveis. Aprendeu a arte da negociação, que simplificara a esta simples regras: "Pedir tudo." Tornou-se literato, desenvolvendo uma aptidão especial para descobrir romances capazes de se transformarem em grandes filmes. Era capaz de detectar os bons actores. Estudou os pormenores da produção, as diferentes maneiras de roubar dinheiro do orçamento de um filme. Tornou-se um produtor bem sucedido, um dos que eram capazes de pôr na tela cinquenta por cento do argumento e setenta por cento do orçamento.

Ajudara-o bastante o facto de gostar de ler e também de ser capaz de escrever. Não numa folha de papel completamente em branco, mas era hábil a cortar cenas e a rever diálogos, e conseguia até, por vezes, criar pequenas cenas de acção, que ocasionalmente ficavam bem no filme, embora raramente fossem relevantes para o desenrolar da história. Aquilo de que mais se orgulhava, o que mais contribuía para o êxito comercial dos seus filmes, era o facto de ser especialmente bom no que respeitava aos finais, que eram quase sempre triunfantes, a exaltação do bem sobre o mal - e quando isso não vinha a propósito, a doçura da derrota. A sua obra-prima fora o final de um filme que tinha a ver com a destruição de Nova Iorque por uma bomba atómica e em que todas as personagens acabavam por se tornarem melhores seres humanos, dedicados a amar o próximo, incluindo o indivíduo que fizera explodir a bomba. Na altura fora obrigado a contratar cinco escritores suplementares para conseguir a proeza.

Tudo isto ter-lhe-ia servido muito pouco como produtor se não fosse particularmente astuto em matéria de finanças. Era capaz de ir buscar investimentos à cabeça de um tinhoso. Os homens ricos gostavam da sua companhia, tal como as belas mulheres que trazia constantememte penduradas do braço. Estrelas e realizadores achavam graça à maneira sincera e descomplexada como ele apreciava as coisas boas da vida. Conseguia praticamente tudo o que queria da parte dos estúdios, e aprendera que era possível obter luz verde para qualquer filme desde que o suborno fosse suficientemente grande. As suas listas de cartões e prendas de Natal eram intermináveis, e incluíam estrelas, críticos dos jornais e revistas e até pessoas altamente colocadas na Polícia. Chamava a todos queridos amigos e, quando deixavam de lhe ser úteis, cortava-os da lista de prendas, mas nunca da de cartões.

Uma das chaves para ser produtor era possuir qualquer coisa. Podia ser um romance obscuro, mesmo um fracasso de vendas, mas qualquer coisa concreta de que pudesse falar com os dirigentes dos estúdios. Deere detinha os direitos de vários destes romances com opções por cinco anos, pagando quinhentos dólares por ano. Ou então comprava um argumento e trabalhava-o com o autor até o transformar em qualquer coisa que um dos estúdios quisesse comprar. Era trabalho delicado, uma vez que os escritores são sempre tão frágeis. "Frágil" era a sua palavra preferida para designar as pessoas que considerava idiotas. Revelava-se particularmente útil no caso das estrelas do sexo feminino.

Uma das suas relações mais bem sucedidas fora com Claudia De Lena, e uma das mais agradáveis também. Tinha gostado verdadeiramente da garota e quisera ensinar-lhe como as coisas aconteciam. Tinham passado três meses juntos a trabalhar num argumento. Iam jantar juntos, jogavam golfe juntos (Deere ficara muito surpreendido quando Claudia o batera). Iam à pista de corridas de Santa Anita. Nadavam na piscina de Deere, com secretárias em fato de banho a anotar o que eles ditavam. Claudia chegara inclusivamente a levá-lo um fim-de-semana ao Xanadu, para lhe apresentar o irmão. Uma vez por outra, dormiam juntos.

O filme fora um grande êxito financeiro, e Claudia partira do princípio que o acordo particular que fizera ia render-lhe uma porção de dinheiro.

Tinha uma percentagem da percentagem de Skippy Deere, e sabia que ele estava sempre colocado "a montante", como costumava chamar aos resultados brutos. Mas o que Claudia ignorava era que Deere tinha duas percentagens, uma sobre o bruto, outra sobre o líquido. E que o negócio que fizera com ele se referia à percentagem sobre o líquido. O que, apesar de o filme ter facturado cem milhões de dólares, se resumiu a coisa nenhuma. Os métodos de contabilidade dos estúdios, a percentagem de Deere sobre o bruto e o custo do filme comeram facilmente o valor dos resultados líquidos.

Claudia processou-o, e Deere chegou a acordo por uma pequena soma para preservar a amizade entre ambos. Quando Claudia o acusou, ele respondeu-lhe:

- Isso não tem nada a ver com as nossas relações pessoais. E um assunto entre os nossos advogados.

Skippy Deere dizia frequentemente: "Em tempos fui humano; depois casei-me." Mais do que isso, apaixonara-se verdadeiramente pela mulher. Apresentava como desculpa o facto de ser muito novo, naquela altura, e de já então o seu olho infalível ter visto nela todas as marcas de uma actriz de talento. Nisto estava certo, mas a mulher, Christi, não tinha aquela qualidade mágica que faz de uma actriz uma estrela. O melhor a que conseguia aspirar era ao terceiro papel feminino.

Deere, no entanto, amava-a sinceramente. Quando se tornara uma potência na indústria do cinema, fizera o possível e o impossível por transformar Christi numa estrela. Reclamara o pagamento de favores feitos a outros produtores, a realizadores, a directores de estúdios, para lhe conseguir bons papéis. Em meia dúzia de filmes, Christi chegara a segunda figura. Mas, à medida que envelhecia, as ofertas de trabalho tornavam-se menos numerosas. Tiveram dois filhos, mas Christi sentia-se cada vez mais infeliz, e isto consumia uma boa parte do tempo que Skippy tinha de dedicar ao trabalho.

Skippy Deere, como a maior parte dos produtores, era um homem loucamente atarefado. Tinha de viajar por todo o mundo para vigiar os seus filmes, conseguir investimentos, desenvolver projectos. Entrando em contacto com tantas mulheres bonitas e gentis, e precisando de companhia, acabara por arranjar numerosas ligações românticas, que desfrutava com prazer, mas continuava a amar a mulher.

Certo dia, uma rapariga do Desenvolvimento de Projectos levara-lhe um argumento que, segundo ela, era perfeito para Christi, um papel de estrela à prova de fogo exactamente adequado ao seu tipo de talento. Era um filme sombrio, a história de uma mulher que assassinava o marido por amor de um jovem poeta e depois tinha de fugir ao desgosto dos filhos e às suspeitas no fim, evidentemente, encontrava a redenção. Uma história descaradamente inverosímil, mas talvez resultasse.

Skippy Deere tinha dois problemas: convencer um estúdio a fazer o filme e depois convencê-los a dar o papel a Christi.

Serviu-se de todos os seus recursos. Aceitou um acordo financeiro particular. Conseguiu convencer um grande actor a aceitar um papel que era na verdade de "corpo presente" e conseguiu que Dita Tommey fosse a realizadora. Correu tudo como num sonho. Christi desempenhou o principal papel na perfeição, Deere produziu o filme na perfeição - ou seja, noventa por cento do orçamento apareceu efectivamente na tela.

Durante todo esse tempo, Djeere nunca foi infiel à mulher, excepto durante a noite que passou em Londres para tratar da distribuição, e mesmo assim só cedeu porque a rapariga era tão magra que os aspectos logísticos do acto lhe despertaram a curiosidade.

Resultou. O filme foi um êxito comercial e Deere acabou por ganhar mais com o seu acordo particular do que provavelmente teria ganho num negócio normal, e Christi ganhou o Oscar para a melhor actriz.

E, tal como Deere disse mais tarde a Claudia, era ali que o filme devia ter terminado: Felizes Para Sempre. Agora, porém, a mulher descobrira uma nova auto-estima, agora tinha uma noção do seu verdadeiro valor. A prova foi que se transformou numa estrela-veículo, passou a receber argumentos entregues por mensageiro com papéis próprios para as grandes divas, as figuras mágicas do celulóide. Deere aconselhou-a a escolher qualquer coisa mais adequada para ela, uma vez que o filme seguinte seria crucial. Nunca se preocupara com o facto de ela lhe ser ou não fiel. Na realidade, concedia-lhe todo o direito de se divertir quando estava a filmar fora. Mas agora, nos poucos meses que se seguiram à atribuição do Oscar - adorada por toda a gente, convidada para todas as grandes festas, aparecendo nas colunas de todas as revistas da especialidade, cortejada por jovens actores que se esfarrapavam para conseguir um papel - Christi desabrochou numa espécie de rejuvenescida feminilidade. Começou a sair, abertamente, com actores quinze anos mais novos do que ela. As jornalistas das chamadas colunas sociais apontaram o facto; as mais feministas encorajaram-na entusiasticamente.

Skippy Deere aguentou tudo isto aparentemente muito bem. Compreendia o que estava a passar-se. Ao fim e ao cabo, não ia ele também para a cama com raparigas? Porquê, então, recusar à mulher os mesmos prazeres? Por outro lado, porque haveria de continuar a esforçar-se daquela maneira para promover a carreira de Christi? Especialmente depois de ela ter tido o desplante de lhe pedir um papel para um dos seus jovens amantes? Deixou de procurar argumentos para ela, deixou de fazer campanha a favor dela junto de outros produtores, realizadores e directores de estúdios. E eles, sendo homens mais velhos, ofenderam-se por ele, numa atitude de solidariedade masculina, e deixaram de dar a Christi qualquer espécie de tratamento especial.

Christi fez mais dois filmes como actriz principal; foram ambos falhanços comerciais, porque ela estava mal escolhida para o papel. E foi assim que Christi gastou o crédito profissional que o Oscar lhe proporcionara. Em três anos, estava de regresso às terceiras figuras.

Entretanto, tinha-se apaixonado por um jovem que aspirava a ser produtor, que era até muito parecido com o marido dela, mas que não dispunha de capital. Por isso Christi pediu o divórcio, conseguindo uma monumental pensão de alimentos de meio milhão de dólares anuais. Os advogados dela nunca chegaram a saber dos bens que Deere tinha na Europa, de modo que se separaram em termos amistosos. E agora, passados sete anos, ela morria num acidente de automóvel. Por essa altura, embora continuasse a fazer parte da lista de cartões de Natal de Deere, fora igualmente incluída na sua famosa lista "A Vida é Demasiado Curta", onde reunia os nomes daqueles cujos telefonemas não atendia.

Claudia tinha, pois, uma espécie de afecto perverso por Skippy Deere. Pelo facto de ele se mostrar aos outros tal como era, por viver a vida tão descaradamente no seu próprio interesse, pela sua capacidade de olhar uma pessoa nos olhos e chamar-lhe amiga sem se preocupar com o facto de essa pessoa saber perfeitamente que ele nunca seria capaz de um gesto de amizade. Por ele ser tão alegre, tão ardentemente hipócrita. E, além disso, Deere era um excelente persuasor. E era o único homem que conhecia capaz de medir forças com Cross em termos de astúcia. Apanharam o primeiro avião para Las Vegas.

 

Cross De Lena

Os Clericuzio Carol Gino/Star

Water Press

 

Quando Cross chegou aos vinte e um anos, Pippi De Lena estava impaciente por vê-lo seguir o seu próprio destino. O facto mais importante na vida de um homem, e nisto todos estavam de acordo, era que devia sustentar-se a si mesmo. Devia ganhar o seu pão, pôr um tecto por cima da sua cabeça e roupas nas suas costas, alimentar os filhos. Para o conseguir sem sofrimentos desnecessários, precisava de ter um certo poder neste mundo. De onde se seguia, tão seguramente como a noite se segue ao dia, que Cross devia ocupar o seu lugar na Família Clericuzio. Para isso, teria inevitavelmente de prestar provas.

Cross tinha uma boa reputação na Família. A resposta que dera a Dante, quando este lhe dissera que Pippi era um martelo, era frequentemente citada pelo próprio Don Domenico, que saboreava as palavras quase com êxtase: "Eu não sei disso. Tu não sabes disso. Ninguém sabe disso. Onde diabo foste arranjar esse raio desse chapéu?" Que resposta, exclamava o Don, deliciado. Um rapaz tão novo e já tão discreto, tão inteligente, fazia honra ao pai. Temos de dar uma oportunidade a este moço. Tudo isto fora relatado a Pippi, pelo que este sabia que chegara a altura.

Começou a preparar Cross. Mandou-o fazer algumas cobranças difíceis, que exigiam o uso da força. Discutiu com ele a história antiga da Família e a maneira como as operações eram executadas. Sempre o mais simples possível, insistiu. Quando a coisa era mais complicada, havia que planear tudo ao mais pequeno pormenor. O simples era mesmo simples, e estava tudo dito. Isolava-se uma pequena área geográfica e apanhava-se o alvo dentro dessa área. Primeiro a vigilância, depois o carro com o atirador, depois outros carros para cortar o caminho a eventuais perseguidores, e depois uma pessoa desaparecia durante algum tempo para não poder ser imediatamente interrogada. Isso era o simples. Quando era preciso caprichar, caprichava-se. Podia-se sonhar tudo o que se quisesse, desde que fosse solidamente planeado. Só se ia para o complicado quando era absolutamente necessário.

- Explicou inclusivamente a Cross o significado de algumas palavras de código. Uma "Comunhão" era quando o corpo da vítima desaparecia. Complicado. Uma "Confirmação" era quando o corpo era encontrado. Simples.

Depois fez-lhe um breve resumo sobre a Família. Falou a respeito da grande guerra contra os Santadio, que estabelecera definitivamente a sua predominância. Nada disse sobre o seu próprio papel nessa guerra e foi muito parco nos pormenores. Em contrapartida, elogiou Giorgio, Vincent e Petie. Mas acima de tudo elogiou Don Domenico, pela sua grande clarividência.

Os Clericuzio tinham tecido muitas teias, mas a mais extensa de todas era o jogo. Dominavam todas as formas de jogo, em casinos ou ilegais, nos Estados Unidos. Dispunham de uma influência muito subtil nos casinos dos Américanos Nativos, tinham uma influência muito grande nas apostas desportivas, legais no Nevada, ilegais em todo o resto do país. A Família possuía fábricas de slot machines e tinha interesses na fabricação de dados e de cartas, no abastecimento de louças e de talheres, nas lavanderias que serviam os grandes hotéis-casinos. O jogo era a grande jóia do seu império, e estavam a levar a cabo uma campanha de relações públicas com o objectivo de tornar a sua prática legal em todos os estados da União. Sobretudo as apostas desportivas, que, conforme indicavam os estudos feitos, iriam gerar lucros colossais.

A legalização do jogo em todo o território dos Estados Unidos, imposta por uma lei federal, era agora o Santo Graal da Família Clericuzio. Não apenas os casinos e as lotarias, mas também a possibilidade de apostar nos desportos: baseball, basquetebol, futebol e todos os outros. Os desportos eram sagrados na América, e uma vez que o jogo fosse legalizado, essa sacralidade estender-se-lhe-ia também. Os lucros seriam enormes.

Giorgio, cuja empresa geria algumas das lotarias estaduais, dera à Família uma ideia dos números envolvidos. Um mínimo de dois biliões de dólares eram apostados na Super Bowl [6] em todos os Estados Unidos, a maior parte ilegalmente. Em Las Vegas, só as apostas legais no desporto excediam os cinquenta milhões de dólares. A World Series [7], dependendo do número de jogos jogados, totalizava mais um bilião. O basquetebol era muito mais pequeno, mas as inúmeras finais representavam outro bilião, isto sem contar as apostas diárias durante a época.

Uma vez legalizado, tudo isto poderia ser facilmente duplicado ou triplicado através de lotarias especiais e de apostas combinadas, excepto no caso da Super Bowl, cujos resultados se multiplicariam por dez e poderia inclusivamente proporcionar uma receita líquida de um bilião de dólares num só dia. O total geral poderia atingir cem biliões de dólares, e a beleza de tudo aquilo era o facto de não haver produtividade envolvida, sendo as únicas despesas as resultantes do marketing e da administração.

E a Família Clericuzio possuía o know how, os apoios políticos e a força bruta que lhe permitiriam controlar uma grande parte deste mercado. Gior-gio apresentou mapas que mostravam os complicados prémios que era possível construir com base nas provas desportivas. O jogo seria um poderoso íman para atrair dinheiro dessa gigantesca mina de ouro que era o povo americano.

O jogo era, pois, uma actividade de baixo risco e com um enorme potencial de crescimento. Para conseguir a sua legalização, a Família não olharia a despesas e estava até disposta a correr riscos consideráveis.

Os Clericuzio ganhavam igualmente algum dinheiro com a droga, mas só ao nível mais elevado. O risco era demasiado grande. Controlavam o processamento na Europa, proporcionavam a protecção política e a intervenção judicial, e branqueavam o dinheiro. A posição da Família no que respeitava à droga era legalmente inatacável e extremamente lucrativa. O dinheiro sujo passava por uma série de bancos europeus e alguns americanos. A estrutura da lei era ultrapassada pelos flancos.

Apesar de tudo isto, porém, como Pippi teve o cuidado de fazer notar, havia alturas em que era preciso correr riscos, em que era preciso mostrar o punho de ferro. O que a Família fazia com extrema discrição e uma ferocidade mortífera. E era nessas alturas que um homem tinha de ganhar a boa vida que fazia, tinha verdadeiramente de ganhar o seu pão quotidiano.

Pouco depois do seu vigésimo primeiro aniversário, Cross foi finalmente posto à prova.

Entre os "bens" do seu activo político a que a Família Clericuzio atribuía mais valor contava-se Walter Wawen, governador do Nevada. Wavven era um homem de cinquenta e poucos anos, alto e magro, que usava um chapéu de cowboy mas vestia sempre elegantes fatos feitos por medida. Bastante bem parecido, demonstrava, apesar de casado, um saudável apetite pelos membros do sexo feminino. Era igualmente um grande apreciador de boa comida e de boa bebida, gostava de apostar nas provas desportivas e jogava entusiasticamente no casino. Tinha, porém, demasiada consciência dos sentimentos do público para revelar estas facetas do seu carácter, ou arriscar envolver-se em ligações românticas. Confiava, pois, em Alfred Gronevelt e no Xanadu Hotel para lhe satisfazerem estes apetites, preservando ao mesmo tempo a sua imagem política e pessoal de homem temente a Deus e defensor irredutível dos antigos valores familiares.

Gronevelt reconhecera muito cedo os dotes especiais de Wavven e proporcionara-lhe a base financeira que lhe tinha permitido progredir na carreira política. Quando Wavven se tornara governador do Nevada e lhe apetecia um fim-de-semana descontraído, Gronevelt dava-lhe uma das suas disputadas villas.

As villas tinham sido a grande inspiração de Gronevelt... • Alfred Gronevelt chegara a Las Vegas cedo, quando a cidade era ainda basicamente uma povoação do Oeste onde os cowboys se juntavam para jogar, e pusera-se a estudar o jogo e os jogadores como um brilhante cientista poderia estudar um insecto importante em termos de evolução. O grande mistério que nunca seria resolvido era a razão por que homens muito ricos continuavam a perder tempo a jogar para ganharem um dinheiro de que não precisavam. Gronevelt decidiu que o faziam para esconder outros vícios, ou porque desejavam dominar a própria sorte, mas que acima de tudo era para demonstrarem uma qualquer espécie de superioridade em relação aos seus semelhantes. Portanto, pensou, quando jogavam, deviam ser tratados como deuses. Jogariam então como os deuses jogavam, ou como os reis de França em Versalhes.

E assim Gronevelt gastou cem milhões de dólares para mandar construir sete luxuosas villas e um casino especial, que mais parecia uma caixa de jóias, nos terrenos do hotel (com a sua previsão habitual, comprara muito mais terreno do que o Xanadu necessitava). Aquelas villas eram pequenos palácios, cada uma delas com capacidade para alojar seis casais em seis apartamentos, e não simples suites, diferentes. A decoração era magnífica: carpetes tecidas à mão, pavimentos de mármore, torneiras de ouro nas casas de banho, ricas tapeçarias nas paredes; o pessoal das salas de jantar e das cozinhas era fornecido pelo hotel. Os mais modernos equipamentos audiovisuais transformavam as salas de estar em autênticas salas de espectáculos. Os bares destas villas estavam equipados com os melhores vinhos e bebidas, além de uma caixa de ilegalíssimos charutos havanos. Cada villa tinha a sua piscina exterior e jacuzzi interior. Tudo isto era oferecido gratuitamente ao jogador.

Na área de segurança especial onde se erguiam as villas situava-se igualmente o pequeno casino oval chamado a Pérola, onde os grandes jogadores podiam jogar longe das vistas da multidão e onde a aposta mínima no bacará era de mil dólares. Neste casino, até as fichas eram diferentes: a preta, de cem dólares, era o valor mais baixo; as de quinhentos dólares eram de um branco pálido, orladas a ouro; a azul com uma risca de ouro puro valia mil dólares, e a ficha de dez mil dólares, especialmente concebida, tinha um diamante verdadeiro incrustado no ouro de que era feita. No entanto, numa concessão às senhoras, a roleta aceitava trocar fichas de cem dólares em modestas fichas de cinco.

Era espantoso que homens e mulheres imensamente ricos caíssem neste logro. Pelas contas de Gronevelt, todos estes extravagantes privilégios QCB custavam ao hotel cinquenta mil dólares semanais. Mas esse dinheiro era dedutível nos impostos. Além disso, os preços de todas aquelas coisas eram inflacionados no papel. Os números (Gronevelt mantinha uma contabilidade separada) mostravam que cada villa proporcionava em média um lucro de um milhão de dólares por semana. Os restaurantes de luxo que serviam as villas e alguns outros hóspedes importantes representavam também uma fonte de receita em termos de dedução nos impostos. Nas folhas de despesa, um jantar para quatro custava mais de mil dólares, os quais, uma vez que os hóspedes não pagavam, eram lançados como custos do exercício e deduzidos nos impostos. Considerando que as refeições não custavam ao hotel mais de cem dólares, incluindo o pessoal, só aí havia um lucro.

E assim, para Gronevelt, as sete villas eram como sete coroas que ele atribuía exclusivamente aos jogadores que arriscavam ou perdiam mais de um milhão de dólares durante uma estada de dois ou três dias. Não importava se ganhavam ou perdiam. Tinham apenas de jogá-los. E tinham de ser rápidos a pagar as suas dívidas, pois caso contrário viam-se relegados para uma das suites do hotel, as quais, embora luxuosas, não se comparavam às villas.

Claro que havia mais qualquer coisa. Aquelas villas eram lugares para onde importantes figuras públicas podiam levar as suas amantes ou os seus namorados, onde podiam jogar anonimamente. E, por estranho que parecesse, havia titãs do mundo dos negócios e da indústria, homens que valiam centenas de milhões de dólares, que inclusivamente tinham esposas e amantes, e que se sentiam sozinhos, desejosos de uma companhia feminina livre de cuidados, de mulheres dotadas de uma compreensão excepcional. Para estes homens, Gronevelt equipava as suas villas com o necessário.

O governador Walter Wavven era um desses homens. E era a única excepção que Gronevelt permitia à sua regra do milhão de dólares. Jogava modestamente, e mesmo assim com uma bolsa discretamente fornecida pelo próprio Gronevelt, e quando os seus vales excediam um certo valor, eram postos de parte para serem pagos por ganhos futuros.

Wawen ia para o Xanadu para se descontrair, jogar golfe no campo do hotel, beber e cortejar as beldades fornecidas por Gronevelt.

Gronevelt manteve este jogo durante muito tempo. Em vinte anos, nunca pediu um favor concreto, apenas o direito de apresentar os seus argumentos a favor de qualquer legislação que ajudasse o negócio dos casinos em Las Vegas. A maior parte das vezes, os seus pontos de vista prevaleciam;

quando isso não acontecia, o governador dava-lhe uma explicação pormenorizada sobre as realidades políticas que o tinham impedido. Mas o governador prestava-lhe um valioso serviço apresentando-o a juizes influentes e a políticos que podiam ser manipulados à custa de dinheiro.

Gronevelt alimentava no mais fundo do seu coração a esperança de que, contra todas as probabilidades, o governador Walter Wavven chegasse um dia a presidente dos Estados Unidos. Se isso acontecesse, as recompensas seriam enormes.

A Sorte, porém, compraz-se a desfazer os planos mais argutos, como Gronevelt sempre soubera. A mais insignificante das criaturas pode ser o agente causador da perda do mais poderoso dos homens. Neste caso particular, esse agente foi um rapaz de vinte e cinco anos que se apaixonou pela filha mais velha do governador, uma jovem de dezoito.

Wavven estava casado com uma mulher bonita e inteligente, que era mais aberta e mais liberal nos seus pontos de vista políticos do que o marido, embora trabalhassem bem em equipa. Tinham três filhos, e esta família era um importante trunfo político para o governador. Marcy, a mais velha, frequentava Berkeley, por sua própria escolha e da mãe, mas não do pai.

Livre da rigidez de uma casa onde a política impunha restrições inultrapassáveis, Marcy deixou-se fascinar pela liberdade daquele novo meio, pela orientação política moderadamente esquerdista da universidade, pela sua abertura a novos tipos de música, pelas visões de si mesma e da vida que as drogas lhe proporcionaram. Digna filha do pai, era franca no seu interesse sexual. Com essa inocência e o instinto natural para a justiça próprio dos jovens, as suas simpatias iam para os pobres, para a classe operária, para as minorias desfavorecidas. Também se apaixonou pela pureza da arte. Foi, pois, muito naturalmente que começou a dar-se com outros estudantes que eram músicos e poetas. E foi ainda mais naturalmente que, após meia dúzia de encontros ocasionais, se apaixonou por um colega que escrevia peças de teatro, tocava guitarra e era pobre.

Chamava-se Theo Tatoski e era perfeito para um romance de universidade. Era moreno, bonito, vinha de uma família de católicos que trabalhavam nas fábricas de automóveis de Detroit e, com um talento de poeta para a aliteração, jurava sempre que preferia montar mulheres a montar motores. Apesar disto, tinha vários empregos em part-time para pagar o alojamento e a comida. Levava-se a si mesmo muito a sério, defeito que era em parte compensado pelo facto de ter verdadeiro talento.

Marcy e Theo foram inseparáveis durante dois anos. Marcy levou-o a casa, para conhecer a família, e ficou encantada ao verificar que ele não se deixava impressionar pelo pai. Mais tarde, no quarto onde ambos dormiram na mansão oficial, Theo informou-a de que o pai dela era um aldrabão típico.

Talvez tivesse detectado a condescendência com que fora tratado; o governador e a mulher tinham-se mostrado super-simpáticos, super-delicados, absolutamente decididos a receber condignamente o companheiro escolhido pela filha, embora intimamente deplorassem uma ligação tão inadequada. A mãe não estava preocupada, sabia que o encanto de Theo se desvaneceria quando Marcy crescesse. O pai estava bastante menos à vontade, mas tentou compensar isso dando mostras de uma afabilidade fora do comum, mesmo para um político. Ao fim e ao cabo, o governador era um campeão da classe operária, de acordo com a sua plataforma política, a mãe era uma liberal convicta. Um romance com Theo só poderia dar a Marcy uma perspectiva mais vasta da vida. Entretanto, Marcy e Theo viviam juntos, e planeavam casar quando acabassem os respectivos cursos. Theo escreveria e interpretaria as suas peças, Marcy seria a sua musa e professora de literatura.

Um arranjo estável. O jovem casal parecia não fazer um uso excessivo de drogas, a relação sexual entre os dois não tinha nada de especial. O governador pensou, ainda que vagamente, que se as coisas chegassem ao pior, aquele casamento poderia ajudá-lo politicamente: seria uma indicação para o público de que, apesar das suas origens puramente WASP, da sua fortuna e da sua cultura, aceitava democraticamente um operário como genro.

E assim todos se ajustaram à situação. Os pais só gostariam que Theo não fosse tão chato.

Mas os jovens são perversos. Marcy, no seu último ano na universidade, apaixonou-se por um colega que era rico e socialmente muito mais aceitável para os pais. Mas continuava a querer conservar Theo como amigo. Achava excitante fazer malabarismos com dois amantes sem cometer o pecado técnico do adultério. Na sua inocência, isto fazia-a sentir-se única.

A surpresa foi Theo. Reagiu à situação não como um tolerante radical de Berkeley, mas como um conde polaco. A despeito da sua poesia, das suas pretensões boémias, da sua música, dos ensinamentos de professoras feministas, de toda a atmosfera de laxismo sexual de Berkeley, tornou-se violentamente ciumento.

Theo sempre fora caprichosamente excêntrico, era algo que fazia parte do seu encanto juvenil. Em conversas, tomava com frequência a posição extremamente revolucionária de que mandar pelos ares cem pessoas inocentes era um pequeno preço a pagar por uma sociedade livre no futuro. Marcy sabia, porém, que ele nunca seria capaz de fazer semelhante coisa. Certa vez, ao regressarem ao apartamento depois de duas semanas de férias, tinham encontrado uma ninhada de ratos recém-nascidos instalada na cama deles. Theo limitara-se a pôr os bichos na rua, sem lhes fazer mal. Marcy achara o gesto encantador.

Quando, porém, Theo soube que Marcy tinha outro amante, deu-lhe uma bofetada. Depois desfez-se em lágrimas e suplicou-lhe que lhe perdoasse. Ela perdoou. Continuava a achar excitante fazer amor com ele, ainda mais excitante agora que o facto de Theo saber que ela o traía lhe dava mais poder sobre ele. Mas ele tornou-se cada vez mais violento, estavam cons-tantemente a discutir, viverem juntos deixou de ter graça, e Marcy abandonou o apartamento.

O outro amante desapareceu. Marcy teve alguns outros casos. Mas ela e Theo continuaram amigos, e dormiam juntos de vez em quando. Marcy planeava ir para leste e fazer o mestrado numa universidade da Ivy League [8], Theo mudou-se para Los Angeles para escrever peças e aguardar uma oportunidade de trabalhar para o cinema. Um dos seus trabalhos, uma curta peça musical, ia ser levado à cena por um pequeno grupo teatral, que daria apenas três representações. Convidou Marcy para ir assistir.

Marcy foi de avião até Los Angeles para assistir à peça. Era tão má que metade do público abandonou a sala. Por isso Marcy resolveu passar a noite no apartamento de Theo, para o consolar. O que aconteceu nessa noite nunca ficou exactamente esclarecido. O que se provou foi que, às primeiras horas da manhã, Theo assassinou Marcy, dando-lhe uma facada em cada olho. Depois cravara a faca no próprio estômago e chamara a polícia. A tempo de salvar a sua vida, mas não a de Marcy.

O julgamento na Califórnia foi, naturalmente, um grande acontecimento mediático. Uma filha do governador do Nevada morta à facada por um poeta operário que fora seu amante durante três anos e que ela abandonara.

A advogada de defesa foi Molly Flanders, especializada com êxito em crimes passionais, embora aquele acabasse por vir a ser o seu último caso criminal antes de se dedicar ao direito específico do mundo do espectáculo. As suas tácticas foram clássicas. Várias testemunhas declararam que Marcy tivera pelo menos seis amantes, enquanto Theo acreditava que estavam para casar. A rica, socialmente proeminente e promíscua Marcy abandonara o seu sincero e apaixonado poeta-operário, que não aguentara o choque. Flanders alegou "loucura momentânea" em defesa do seu cliente. A frase mais apreciada (escrita por Claudia De Lena a pedido de Molly) foi "Ele é para sempre não responsável por aquilo que fez." Uma frase que teria provocado em Don Clericuzio um ataque de fúria.

No seu depoimento, Theo mostrou-se adequadamente esmagado. Os pais, católicos devotos, tinham convencido personalidades influentes do clero californiano a defenderam a sua causa, e estas pessoas testemunharam que o jovem tinha renunciado aos seus costumes hedonísticos e estava agora decidido a estudar para padre. Foi destacado o facto de Theo ter tentado suicidar-se e estava, portanto, arrependido, o que provava a sua loucura momentânea, como se as duas coisas andassem a par. Tudo isto embelezado pela retórica de Molly Flanders, que pintou o quadro da grande contribuição que Theo podia dar à sociedade se não fosse punido por um acto impensado provocado por uma mulher cujos costumes devassos lhe tinham desfeito o honesto coração de trabalhador. Uma rapariga rica e descuidada, agora infelizmente falecida.

Molly Flanders adorava os jurados californianos. Inteligentes, suficientemente instruídos para compreenderem as subtilezas do trauma psiquiátrico, expostos à cultura superior do teatro, do cinema, da música, da literatura, pulsavam de empatia. Quando Flanders acabou de os trabalhar, o resultado nem chegou a estar em dúvida. Theo foi considerado inocente por motivo de loucura momentânea. Foi imediatamente contratado para aparecer numa mini-série sobre a história da sua vida, não como primeiro actor, mas como uma personagem secundária que cantava canções que ele próprio compunha e serviam para ligar a história. Um final totalmente satisfatório para uma tragédia moderna.

O efeito no governador Wavven, pai da jovem assassinada, foi, porém, desastroso. Alfred Gronevelt viu o seu investimento de vinte anos ir pelo cano, pois o governador Wavven, na intimidade da sua villa, anunciou-lhe a sua intenção de não se recandidatar. Qual era a vantagem de conquistar poder se um qualquer monte de merda de um filho da puta podia matar-lhe a filha à facada, cortar-lhe quase a cabeça, e ficar-se a rir? Pior ainda, a sua adorada filha fora tratada pelos jornais e pela TV como uma cabra estúpida que não merecia outra coisa senão ser morta.

Há na vida tragédias impossíveis de curar, e para o governador aquela era uma delas. Passava agora o mais tempo possível no Xanadu, mas já não era o mesmo homem alegre e divertido de outros tempos. Perdeu o interesse pelas bailarinas do casino e pelo rolar dos dados. Limitava-se a beber e jogar golfe. O que punha a Gronevelt um problema muito delicado.

Sentia a mais profunda compreensão pelo problema do governador. Não é possível lidar com um homem durante vinte anos, mesmo com um objectivo egoísta, sem lhe ganhar algum afecto. Mas o facto era que o governador Walter Wavven, ao retirar-se da política, deixava de ser um investimento, perdia todo o seu potencial futuro. Passava a ser apenas um homem que se bastava a si mesmo à força de copos. Além disso, quando jogava, fazia-o distraidamente, e Gronevelt tinha em caixa duzentos mil dólares em vales assinados por ele. Chegara pois o momento de recusar ao governador o uso da villa. Dar-lhe-ia, certamente, a suite mais luxuosa do hotel, mas nem por isso deixaria de ser uma despromoção, e antes de chegar a esse extremo Gronevelt tinha de fazer um último esforço de reabilitação.

Certa manhã, conseguiu convencer Wawen a juntar-se-lhe para jogar golfe. Para completar os dois pares, recrutou Pippi De Lena e o filho, Cross. Pippi tinha uma crueza que o governador sempre apreciara, e Cross era um jovem tão bem parecido e tão delicado que os mais velhos gostavam sempre da sua companhia. Terminado o jogo, reuniram-se na villa do governador para um almoço tardio.

Wawen perdera muito peso e parecia não ter o mínimo cuidado com o seu aspecto. Vestia um fato de treino manchado de suor e usava na cabeça um barrete de baseball com o logo do Xanadu. Não se barbeara. Sorria muito, não o seu sorriso de político, mas uma espécie de careta envergonhada. Gronevelt reparou que tinha os dentes muito amarelos. Estava, além disso, extremamente embriagado.

Gronevelt decidiu dar o mergulho.

Walter - disse -, está a deixar mal a sua família, os seus amigos e todo o povo do Nevada. Não pode continuar assim.

Claro que posso! - replicou o governador. - Que se foda o povo do Nevada! Quem é que se rala?

Ralo-me eu. Preocupo-me consigo - afirmou Gronevelt. - Eu arranjo o dinheiro, e quero que concorra ao Senado nas próximas eleições.

Por que raio haveria de fazê-lo? Não significa nada nesta porra deste país! Sou o governador do grande estado do Nevada, e um sacana qualquer mata a minha filha e sai em liberdade! E eu tenho de aguentar. As pessoas dizem piadas a respeito da minha filha asassinada e rezam pelo assassino. Sabe para que é que eu rezo? Para que uma bomba atómica dê cabo desta merda deste país, e sobretudo do estado da Califórnia.

Pippi e Cross permaneceram silenciosos durante todo este diálogo. Estavam um pouco abalados pela intensidade dos sentimentos do governador. E ambos compreendiam que Gronevelt tinha ali um propósito qualquer.

- Tem de pôr tudo isso para trás das costas - aconselhou Gronevelt. - Não deixe que esta tragédia destrua a sua vida. - A untuosidade do seu tom teria irritado um santo.

O governador atirou o barrete de baseball para o outro lado da sala e foi ao bar servir-se de mais um whisky.

- Não consigo esquecer - disse. - Passo as noites acordado, a sonhar que estou a arrancar os olhos àquele cabrão. Quero pegar-lhe fogo, quero cortar-lhe os braços e as pernas. E quero que ele continue vivo, para poder voltar a fazer-lhe tudo outra vez! - Sorriu um sorriso de bêbado e quase caiu em cima deles. Gronevelt, Pippi e Cross viram-lhe os dentes amarelados e sentiram o hálito pútrido da sua boca.

Subitamente, Wavven pareceu menos embriagado, a sua voz tornou-se mais calma, falou num tom quase coloquial.

- Viram como ele a esfaqueou? - perguntou. - Nos olhos. O juiz não deixou o júri ver as fotografias. Para não prejudicar o réu. Mas eu, o pai, pude ver as fotografias. E o pequeno Theo sai em liberdade, com um sorriso nos lábios. Esfaqueia a minha filha nos olhos mas levanta-se todas as manhãs e vê a luz do sol. Oh, gostava de poder matá-los a todos... o juiz, os jurados, os advogados, todos!

Voltou a encher o copo e pôs-se a passear furiosamente pela sala, murmurando uma espécie de discurso atabalhoado:

Não posso continuar a falar às pessoas a respeito de tretas em que já não acredito. Não enquanto esse filho da mãe viver. Sentou-se à minha mesa, eu e a minha mulher tratámo-lo como um ser humano, embora não tivéssemos gostado dele. Demos-lhe o benefício da dúvida. Nunca dêem a ninguém o benefício da dúvida. Recebemo-lo em nossa casa, demos-lhe uma cama para dormir com a nossa filha, e ele passou o tempo todo a rir-se de nós, a dizer para si mesmo: "Quero lá saber se és governador. Quero lá saber se tens dinheiro. Quero lá saber que sejam seres humanos decentes e civilizados. Hei-de matar a tua filha quando quiser, e não há nada que possas fazer quanto a isso. Hei-de deitar-te abaixo. Hei-de foder a tua filha, e depois hei-de matá-la, e depois hei-de mandar-te lixar e hei-de sair em liberdade." - Wavven cambaleou e Cross precipitou-se para o segurar. O governador olhou para cima, para o alto tecto pintado como um mural, todo ele com anjos cor-de-rosa e santos envoltos em vestes brancas. - Quero-o morto! - gritou, no meio de uma explosão de lágrimas. - Quero-o morto!

Walter, isso há-de passar, dê tempo ao tempo - disse Gronevelt, docemente. - Candidate-se a senador. Tem os melhores anos da vida à sua frente, ainda pode fazer muita coisa.

Wawen libertou-se das mãos de Cross e respondeu a Gronevelt, com uma voz muito calma:

- Não compreende? Já não acredito em fazer seja o que for. Não posso dizer a ninguém aquilo que verdadeiramente sinto, nem sequer à minha mulher. O ódio que há em mim. E digo-lhe outra coisa. Os eleitores desprezam-me, vêem em mim um fraco. Um homem que deixa a filha ser assassinada e não tem poder para castigar o assassino. Estaria disposto a confiar o futuro do grande estado do Nevada a um homem assim?

 - A voz tornou-se irónica. - O sacaninha era bem capaz de ser eleito mais facilmente do que eu. - Fez uma pausa. - Esqueça, Alfred, não vou candidatar-me a coisa nenhuma.

Gronevelt estava a estudá-lo cuidadosamente. Estava a apanhar qualquer coisa que escapava a Pippi e a Cross. Os grandes desgostos levavam muitas vezes à fraqueza, mas Gronevelt decidiu correr o risco.

- Walter -perguntou -, candidatar-se-á ao Senado se esse homem for punido? Voltará a ser o homem que era?

O governador pareceu não compreender. Os seus olhos desviaram-se momentaneamente para Pippi e Cross, e depois fixaram-se na cara de Gronevelt. Gronevelt pediu a Pippi e a Cross:

- Esperem por mim no escritório.

Pippi e Cross saíram rapidamente. Gronevelt e o governador Wawen ficaram sozinhos. Gronevelt disse, gravemente:

- Walter, você e eu vamos ter de ser muito directos pela primeira vez nas nossas vidas. Conhecemo-nos há vinte anos; alguma vez soube que eu tivesse sido indiscreto? Então responda-me. Não há o mínimo perigo. Voltará a candidatar-se se esse rapaz morrer?

O governador dirigiu-se ao bar e deitou mais whisky no copo. Mas não o bebeu. Sorriu.

- Candidato-me no dia seguinte a ter ido ao funeral do rapaz, para mostrar que lhe perdoei - disse. - Os meus eleitores vão adorar.

Gronevelt descontraiu-se. Estava feito. Ficou tão aliviado que permitiu a si mesmo o luxo de parecer mal-educado.

- Primeiro vá ao dentista - disse ao governador. - Precisa de mandar limpar esse raio desses dentes.

Pippi e Cross estavam à espera na suite do terraço. Gronevelt levou-os para a sala, onde ficariam, mais confortáveis, e contou-lhes o que fora dito.

O governador é seguro? -perguntou Pippi.

O governador não estava tão bêbado como quis dar a entender - respondeu Gronevelt. - Transmitiu-nos a mensagem sem se comprometer verdadeiramente.

Sigo esta noite para Nova Iorque - declarou Pippi. - Uma coisa destas tem de ter o OK dos Clericuzio.

Diz-lhes que eu sou de opinião que o governador é homem para ir até ao fim - pediu Gronevelt. - Até ao topo. Seria um amigo sem preço.

Giorgio e o Don compreenderão isso - assegurou Pippi. - Só preciso de explicar o que se passa e conseguir o OK.

Gronevelt olhou para Cross e sorriu. Depois voltou-se para Pippi e disse, calmamente:

- Pippi, penso que chegou a altura de o Cross se juntar à Família. Penso que devias levá-lo contigo.

Em vez disso, no entanto, Giorgio Clericuzio resolveu deslocar-se a Las Vegas para a reunião. Queria ser informado pelo próprio Gronevelt, e Gronevelt não viajava havia mais de dez anos.

Giorgio e os seus guarda-costas ficaram instalados numa das villas, embora não fosse um dos grandes jogadores. Gronevelt era um homem que sabia abrir excepções. Tinha recusado aquelas villas a políticos poderosos, a gigantes da finança, a algumas das estrelas mais famosas de Hollywood, a belas mulheres que tinham dormido com ele, a amigos pessoais. Até a Pippi De Lena. Mas deu uma villa a Giorgio Cleriucuzio, sabendo embora que Giorgio tinha gostos espartanos, que não apreciava verdadeiramente luxos extraordinários. Todos os sinais de respeito contavam, iam-se somando, e uma falha, por mais pequena que fosse, poderia ser recordada um dia mais tarde...

Reuniram-se com Giorgio na villa. Gronevelt, Pippi e Giorgio...

Gronevelt expôs a situação:

- O governador pode ser um trunfo enorme para a Família. Se conseguir recompor-se, é capaz de chegar até ao topo. Primeiro senador, depois presidente. Se isso acontecer, terão excelentes probabilidades de ver as apostas desportivas legalizadas em todo o país. Isso significaria biliões de dólares para a Família, e esses biliões não seriam dinheiro sujo. Seriam dinheiro limpo. Digo que é uma coisa que temos de fazer.

Dinheiro limpo era muito mais valioso do que dinheiro sujo. Mas o grande trunfo de Giorgio era que nunca se deixava arrastar para decisões precipitadas.

O governador sabe que o senhor está connosco? - perguntou.

Não tem a certeza - respondeu Gronevelt.- Mas há-de ter ouvido rumores. E não é estúpido. Fiz algumas coisas para ele que ele sabe que não poderia ter feito se estivesse sozinho. E é esperto. Tudo o que disse foi que se candidataria se o miúdo morresse. Não me pediu para fazer fosse o que fosse. é um grande pantomineiro, não estava assim tão bêbado quando se veio abaixo. Acho que fez as suas contas muito bem feitas. Foi sincero, mas também estava a fingir. Não sabia como vingar-se, mas tinha uma ideia de que eu poderia fazer qualquer coisa. Está a sofrer, mas também está a manobrar. - Fez uma curta pausa. - Se lhe fizermos isto, candidatar-se-á a senador, e será o nosso senador.

Giorgio pôs-se a andar de um lado para o outro, evitando as estátuas nos seus pedestais, evitando o jacuzzi fechado por uma cortina, cujo mármore parecia brilhar através do tecido.

- Prometeu-lhe alguma coisa sem o nosso OK? - perguntou a Gronevelt.

Respondeu Gronevelt. - Era uma questão de persuasão. Eu tinha de ser positivo, para lhe dar a sensação de que ainda tem poder, ainda pode fazer as coisas acontecerem, e levá-lo a gostar novamente dessa sensação.

Giorgio suspirou.

- Detesto esta parte do negócio - disse.

Pippi sorriu. Giorgio devia estar a brincar. Ajudara a eliminar a Família Santadio com uma ferocidade que fizera o velho Don sentir-se orgulhoso.

- Penso que precisamos da experiência do Pippi para esta coisa - sugeriu Gronevelt. - E penso que é altura de o filho dele, Cross, entrar para a Família.

Giorgio olhou para Pippi.

Respondeu Pippi. - É tempo é um grande - Achas que ele está pronto? - perguntou.

Até agora têm sido só facilidades de trabalhar para ganhar a vida.

Sim, mas será capaz de fazê-lo? - insistiu Giorgio.

- Eu falo com ele - prometeu Pippi. - Há-de fazer o que for preciso. Giorgio voltou-se novamente para Gronevelt.

Bom, digamos que fazemos isto pelo governador, e se depois ele se esquece de nós? Corremos o risco, e tudo para nada. Temos aqui um homem que é governador do Nevada, a filha é assassinada e ele não faz nada. Não tem tomates.

Fez alguma coisa, veio ter comigo - respondeu Gronevelt. - Tem de compreender as pessoas como o governador. Foi precisa muita coragem para fazer o que ele fez.

Podemos então confiar nele? - perguntou Giorgio.

Vamos reservá-lo para as coisas realmente importantes - respondeu Gronevelt. - Há vinte anos que lido com ele. Garanto que cumprirá a sua parte se for tratado da maneira certa. Ele sabe como são as coisas, é muito esperto.

Pippi, tem de parecer um acidente - continuou Giorgio. - Esta coisa vai levantar uma porção de pó. Não queremos ver o governador sujeito a insinuações por parte dos seus inimigos nos jornais e na merda da TV.

Sim - corroborou Gronevelt -, é essencial que nada possa implicar o governador.

Talvez isto seja demasiado complicado para a estreia do Cross - sugeriu Giorgio.

Não, é perfeito para ele - disse Pippi. E nenhum deles pôde objec tar. No campo, Pippi era o comandante. Provara a sua capacidade em inúmeras operações daquele tipo, especialmente durante a grande guerra contra os Santadio. Muitas vezes dissera aos Clericuzio: "Quem arrisca o couro sou eu. Se me lixar, quero que seja por minha culpa, e de mais ninguém."

Giorgio bateu as palmas.

-Okay, vamos para diante. Alfred, que tal uma partida de golfe amanhã de manhã? Amanhã à noite tenho assuntos a tratar em L. A. e no dia seguinte regresso ao Leste. Pippi, manda dizer de quem precisas do Enclave, para ajudar, e diz também se o Cross está dentro ou fora.

E com isto Pippi ficou a saber que Cross nunca seria admitido no seio da Família Clericuzio se recusasse aquela operação.

O golfe tornara-se a paixão dos Clericuzios da geração de Pippi, e o velho Don dizia maliciosamente que era um jogo bom para brugliones. Nessa tarde, Pippi e Cross encontraram-se no campo do Xanadu. Tinham dispensado os carros eléctricos. Pippi queria saborear o passeio pela solidão dos greens.

Logo a seguir ao nono buraco, havia um grupo de árvores e um banco. Sentaram-se lá.

- Não vou viver eternamente - começou Pippi-, e tu tens de pensar em ganhar a vida. A agência de cobranças rende bons lucros, mas é difícil de gerir. Tens de arranjar uma posição sólida dentro da Família Clericuzio.

Pippi tinha preparado o filho, mandara-o fazer algumas cobranças difíceis, que exigiam o uso da força, contara-lhe uma parte da história da Família. Cross sabia como as coisas eram. Pippi esperara pacientemente que aparecesse a situação perfeita, um alvo que não despertasse simpatias.

Compreendo - limitou-se Cross a dizer, calmamente O tal tipo que matou a filha do governador - continuou Pippi. - Um safado de merda que se ficou a rir. Não é justo.

Cross estava a achar graça à psicologia do pai.

E o governador é nosso amigo - disse.

Isso mesmo - anuiu Pippi. - Cross, podes recusar, não te esqueças disso. Mas quero que me ajudes num trabalho que tenho de fazer.

Cross deixou correr os olhos pelos vastos relvados, pelas bandeirolas que assinalavam os buracos, completamente imóveis no ar parado do deserto, pela cadeia de montanhas prateadas que se erguiam ao longe, pelo céu que reflectia as luzes de néon da Strip, invisível do sítio onde estavam. Sabia que a sua vida estava prestes a mudar e sentiu uma pontada de medo.

- Se não gostar, posso sempre ir trabalhar para o Gronevelt - disse. Mas deixou a mão repousar por um instante no ombro do pai, para lhe dar a entender que estava a brincar.

Pippi sorriu-lhe.

- Este trabalho é para o Gronevelt. Viste-o com o governador. Pois bem, vamos fazer-lhe a vontade. O Gronevelt teve de conseguir o OK do Giorgio. E eu disse-lhe que tu me ajudarias.

Muito ao longe, num nos greens, Cross viu dois pares, dois homens e duas mulheres, tremeluzindo como desenhos animados sob a luz crua do deserto.

Tenho de prestar as minhas provas - disse. Sabia que tinha de aceitar ou passar a viver uma vida completamente diferente. E Cross adorava a vida que fazia, trabalhar com o pai, andar pelo Xanadu, os conselhos de Grone velt, as belas raparigas do corpo de baile, o dinheiro fácil, a sensação de poder. E uma vez que o fizesse, nunca mais ficaria sujeito aos destinos dos homens vulgares.

Eu trato do planeamento - declarou Pippi. - Estarei contigo a todo o momento. Não há qualquer perigo. Mas tens de ser tu a disparar.

Cross levantou-se do banco. Via as bandeiras a esvoaçar por cima das sete villas, embora não houvesse vento no campo de golfe. Pela primeira vez na sua jovem vida, sentiu a dor de um mundo que tinha de perder.

- Estou contigo - disse.

Ao longo das três semanas seguintes, Pippi deu a Cross um curso intensivo. Explicou-lhe que estavam à espera do relatório da equipa que vigiava Theo. Ficariam assim a conhecer os seus hábitos, os seus movimentos, disporiam de fotografias recentes. Além disso, um grupo operacional de seis homens, vindos do Enclave, em Nova Iorque, ia deslocar-se para Los Angeles, onde Theo continuava a viver. Todo o plano da operação dependeria do relatório da equipa de vigilância. Depois fez-lhe uma conferência a respeito da filosofia inerente.

-Isto é um negócio - disse. - Tomas todas as precauções para evitar problemas. Qualquer um é capaz de liquidar uma pessoa. O truque é nunca ser apanhado. Esse é o grande pecado. E nunca penses nas pessoas envolvidas. Quando o patrão da General Motors manda cinquenta mil tipos para o desemprego, é negócio. Não pode evitar dar-lhes cabo da vida, tem de fazê-lo. Os cigarros matam milhares de pessoas, mas que se há-de fazer? As pessoas querem fumar, e não se pode proibir um negócio que rende biliões de dólares. é o mesmo com as armas. Toda a gente tem uma arma, toda a gente mata toda a gente, mas é uma indústria de biliões de dólares, não se pode acabar com ela. Que se há-de fazer? As pessoas têm de ganhar a vida, isso vem à frente de tudo. Sempre. Quem não acreditar nisto vai viver na merda.

A Família Clericuzio era muito rigorosa, explicou Pippi a Cross.

- Tens de ter sempre o OK deles. Não podes andar para aí a matar pessoas só porque te cuspiram num sapato. A Família tem de estar do teu lado, pois eles podem garantir-te que não vais parar à prisão.

Cross escutou. Fez apenas uma pergunta:

- O Giorgio quer que pareça um acidente? Como é que conseguimos isso?

Pippi riu-se.

- Nunca deixes ninguém dizer-te como conduzir uma operação. Eles que se vão lixar. Eles dizem-me o que querem. E eu faço o que é melhor para mim. E o melhor é ser simples. Muito, muito simples. E quando tiveres de ir para o complicado, vai para o muito, muito complicado.

Quando chegaram os relatórios da vigilância, Pippi obrigou Cross a estudar todos os dados. Havia algumas fotografias de Theo, fotografias do carro em que se viam as chapas de matrícula. Um mapa do caminho que ele percorria de Brentwood a Oxnard para visitar uma namorada.

O tipo ainda consegue ter namoradas? -perguntou Cross ao pai.

Não conheces as mulheres - respondeu Pippi. - Se gostam de ti, até podes mijar no lava-louça. Se não gostam, podes fazer delas a rainha de Inglaterra, e mesmo assim continuam a cagar-te em cima.

Pippi foi a L. A. combinar as coisas com o grupo operacional. Regressou dois dias mais tarde, e disse a Cross:

- Amanhã à noite.

No dia seguinte, antes de romper a manhã, para fugirem ao calor, foram de carro de Las Vegas até Los Angeles. Enquanto atravessavam o deserto, Pippi aconselhou Cross a descontrair-se. Cross estava hipnotizado pelo glorioso nascer do sol, que parecia derreter a areia do deserto e transformá-la num profundo rio de ouro que ia lamber o sopé das montanhas, lá muito ao longe. Sentia-se ansioso. Queria despachar aquilo o mais depressa possível.

Chegaram à casa da Família na Pacific Palisades, onde os seis operacionais vindos do Enclave os aguardavam. No caminho de acesso estava um carro roubado a que haviam sido mudadas a cor e as chapas de matrícula. O grupo do Bronx trouxera igualmente as armas que seriam usadas.

Cross ficou surpreendido pelo luxo da casa. Tinha uma bela vista do oceano, do outro lado da estrada, uma piscina e um enorme solário. Tinha também seis quartos de dormir. Os homens pareciam conhecer Pippi bastante bem. Mas não foram apresentados a Cross, nem ele a eles.

Tinham onze horas para matar até ao começo da operação, à meia-noite. Os outros homens, ignorando o enorme televisor, iniciaram um jogo de cartas no solário, todos de calção de banho. Pippi sorriu a Cross e disse:

- Merda, esqueci-me da piscina.

- não faz mal - respondeu Cross. - Podemos tomar banho de cuecas.

Efectivamente, a casa ficava bem escondida, protegida por grandes árvores e uma sebe circundante.

- Até podemos ir nus - corroborou Pippi. - Ninguém pode ver-nos a não ser dos helicópteros, e esses devem estar a espreitar as miúdas a bronzearem-se nos jardins das suas casas em Malibu.

Entretiveram-se ambos a nadar e a apanhar sol durante algumas horas, após o que comeram uma refeição preparada por um dos seis homens. O almoço foi bife, cozinhado na grelha do solário, e uma salada de agrião e alface. Os outros beberam vinho tinto, mas Cross ficou-se por uma cola. Reparou que todos eles comiam e bebiam moderadamente.

Terminado o almoço, Pippi e Cross foram fazer um reconhecimento no carro roubado. Dirigiram-se ao restaurante-cafetaria situado à beira da Pacific Coast Highway, onde iriam encontrar Theo. Os relatórios da equipa de vigilância informavam que nas noites de quarta-feira, a caminho de Oxnard, Theo tinha o hábito de parar no Pacific Coast Highway Restaurant, por volta da meia-noite, para beber café e comer presunto com ovos, demorando-se cerca de uma hora. Nessa noite, uma equipa de vigilância composta por dois homens segui-lo-ia e comunicaria pelo telefone quando ele se pusesse a caminho.

De regresso à casa, Pippi reviu toda a operação com os seis homens, que disporiam de três carros. Um deles precederia o carro roubado onde Pippi e Cross viajariam, outro protegeria a retaguarda e o terceiro estaria no parque de estacionamento do restaurante preparado para qualquer emergência.

Cross e Pippi sentaram-se no solário, à espera do telefonema. Havia cinco carros no caminho de acesso à casa, todos eles pretos, brilhando ao luar como escaravelhos. Os seis homens do Enclave continuaram o seu jogo de cartas. Finalmente, às onze e meia, o telefone tocou: Theo acabava de sair de Brent-wood a caminho do restaurante. Os seis homens meteram-se em três dos carros e foram ocupar os respectivos postos. Pippi e Cross instalaram-se no carro roubado e aguardaram mais quinze minutos antes de arrancarem por sua vez. Cross levava no bolso do casaco uma pequena pistola .22 que, embora não tivesse silenciador, pouco mais barulho faria ao disparar do que uma rolha de champagne; em contrapartida, a arma de Pippi, uma Glock, soaria como um tiro de canhão. Desde aquela única vez que fora preso por assassínio, Pippi recusava-se intransigentemente a usar silenciador.

Pippi conduziu. A operação tinha sido planeada ao mais pequeno pormenor. Nenhum dos membros do grupo operacional entraria no restaurante. A polícia haveria de interrogar os empregados a respeito de todos os clientes. A equipa de vigilância informara-os sobre o que Theo vestia, que carro conduzia e qual a matrícula. O facto de o carro de Theo ser um Ford barato, vermelho vivo, facilmente identificável numa zona onde os Mercedes e os Porsche eram comuns, constituía uma circunstância afortunada para eles.

Quando Pippi e Cross chegaram ao parque de estacionamento do restaurante, verificaram que o carro de Theo já lá se encontrava. Pippi estacionou ao lado, depois desligou as luzes e a ignição e ficaram ambos sentados no escuro. Do outro lado da Pacific Coast Highway viam o oceano a brilhar, sulcado por faixas de ouro que eram o reflexo da luz da lua. Viram um dos carros da equipa parado na extremidade oposta do parque. Sabiam que os outros dois se encontravam nas respectivas posições junto à estrada, à espera para os escoltarem de regresso à casa, prontos a impedir a passagem a quaisquer perseguidores ou interceptar quaisquer problemas que surgissem à frente.

Cross consultou o relógio. Era meia-noite e meia. Teriam de esperar mais um quarto de hora. Subitamente, Pippi tocou-lhe num ombro.

- O tipo adiantou-se - disse. - Vai!

Cross viu a figura que saía do restaurante, iluminada pelo clarão das luzes da porta. Foi surpreendido pelo aspecto juvenil do indivíduo, magro e baixo, com um emaranhado de cabelos negros a encimar uma cara estreita e pálida. Theo parecia demasiado frágil para ser um assassino.

Então, aconteceu o inesperado. Em vez de se dirigir ao carro, Theo atravessou a Pacific Coast Highway, esquivando-se ao tráfego. Do outro lado, desceu à praia até à beira da água, desafiando as ondas. Ficou ali a olhar para o oceano e para a lua amarela que se punha no horizonte tão distante. Depois fez meia volta e regressou ao parque de estacionamento. Deixara as ondas chegarem-lhe aos pés, e tinha salpicos de água salgada nas botas.

Cross saiu lentamente do carro. Theo estava quase em cima dele. Cross esperou que ele passasse e sorriu-lhe delicadamente para o deixar entrar no carro. Quando Theo se instalou atrás do volante, Cross empunhou a arma. Theo, que se preparava para meter a chave na ignição, com a janela do carro aberta, ergueu os olhos ao aperceber-se da sombra. No momento em que Cross disparou, estavam a olhar directamente um para o outro. Theo pareceu petrificar-se quando a bala o atingiu na cara, que se transformou imediatamente numa máscara de sangue, com os olhos muito abertos. Cross abriu a porta e disparou mais dois tiros para a cabeça de Theo. Salpicos de sangue saltaram-lhe para a cara. Depois atirou um saco com drogas para dentro do carro de Theo e fechou a porta. Pippi ligara o motor do seu carro no instante em que Cross disparara. Abriu a porta do lado do passageiro e Cross saltou para dentro. De acordo com o plano, não largara a pistola, o que daria a ideia de uma execução planeada, em vez de um negócio de droga que dera para o torto.

Pippi saiu do parque de estacionamento e o carro de cobertura colocou-se imediatamente atrás deles. Os dois carros da frente ocuparam os seus lugares, e cinco minutos mais tarde estavam de regresso à casa. Dez minutos depois, Pippi e Cross rolavam a caminho de Las Vegas. O grupo operacional desembaraçar-se-ia do carro roubado e da arma.

Quando passaram pelo restaurante, não viram quaisquer sinais de actividade policial. Obviamente, o corpo de Theo ainda não fora descoberto. Pippi ligou o rádio do carro e ouviu as notícias. Nada.

- Perfeito - disse. - Quando se planeia como deve ser, sai sempre perfeito.

Chegaram a Las vegas quando o sol começava a nascer, transformando o deserto num soturno mar vermelho. Cross nunca esqueceria aquela viagem através do deserto, através da escuridão, através do luar, uma viagem que parecia nunca mais acabar. E então o sol a nascer e depois, um pouco mais tarde, as luzes de néon da Strip de Las Vegas a brilharem como um farol a prometer segurança, o despertar de um pesadelo. Em Vegas nunca estava escuro.

Quase nesse preciso instante, o corpo de Theo era descoberto, com a cara fantasmagoricamente branca na madrugada pálida. As notícias centraram-se no facto de o morto ter na sua posse cocaína no valor de meio milhão de dólares. Tratara-se obviamente de um negócio de droga que correra mal. O governador estava seguro.

Cross observou muita coisa em todo este acontecimento. Que a droga que deixara no carro de Theo não custara mais de dez mil dólares, embora as autoridades situassem o seu valor em meio milhão. Que o governador foi elogiado pelo facto de ter enviado as suas condolências à família de Theo. Que, uma semana mais tarde, os meios de comunicação tinham deixado completamente de falar do assunto.

Pippi e Cross foram chamados a Quogue para uma audiência com Gior-gio. Giorgio felicitou-os a ambos pela maneira eficaz e inteligente como tinham conduzido a operação, não fazendo qualquer referência ao facto de ter ficado combinado que a execução deveria ter parecido um acidente. E Cross teve consciência, durante esta visita, que os Clericuzio o tratavam com o respeito devido ao martelo da Família. A primeira prova deste respeito foi o facto de passar a ser-lhe atribuída uma percentagem das receitas do jogo, legal e ilegal, em Las Vegas. Ficava entendido que ele era a partir daquele momento um membro da Família Clericuzio, chamado a prestar serviços em ocasiões especiais, com bónus calculados com base nos riscos do projecto.

Também Gronevelt teve a sua recompensa. Depois de ter sido eleito senador, Walter Wavven passou um fim-de-semana de retiro no Xanadu. Gronevelt deu-lhe uma villa e foi felicitá-lo pela sua vitória.

O senador Wawen recuperara a antiga forma. Jogava e ganhava, fazia pequenos jantares íntimos com as bailarinas do Xanadu. Parecia completa-mente recuperado. Fez uma única referência à crise por que passara. Dirigindo-se a Gronevelt, disse:

- Alfred, no que me respeita, tem um cheque em branco. Gronevelt respondeu, com um sorriso:

- Nenhum homem pode dar-se ao luxo de andar com cheques em branco na carteira, mas obrigado.

Não queria cheques que pagassem toda a dívida do senador. Queria uma longa e continuada amizade, uma amizade que nunca acabasse.

Nos cinco anos que se seguiram, Cross tornou-se um perito no jogo e em todos os aspectos envolvidos na gestão de um casino-hotel. Fazia as vezes de assessor de Gronevelt, embora a sua função primária continuasse a ser trabalhar com o pai, não apenas na direcção da agência de cobranças, que tinha agora a garantia de vir um dia a herdar, mas também como martelo número dois da Família Clericuzio.

Com vinte e cinco anos de idade, Cross era conhecido pelos membros da Família como o Pequeno martelo. Ele próprio achava curioso o facto de encarar tão friamente aquele trabalho. Os seus alvos nunca eram pessoas que conhecesse. Eram montes de carne envoltos por uma fina e frágil película de pele. O esqueleto por baixo dessa carne dava-lhes os contornos dos animais selvagens que costumava caçar com o pai quando era rapaz. Temia o risco, mas só cerebralmente; não sentia qualquer espécie de ansiedade física. Havia, no entanto, momentos... Como, por exemplo, quando acordava de manhã com um vago terror, como se tivesse tido algum pesadelo terrível. E havia ocasiões em que se sentia deprimido, em que evocava recordações da irmã e da mãe, pequenas cenas da sua infância e de algumas visitas depois de a família se ter separado.

Lembrava-se da face da mãe, da sua carne tão quente, da sua pele acetinada, tão porosa que imaginava poder ouvir o sangue a correr por baixo dela, contido e seguro. Mas, nos seus sonhos, a pele desfazia-se como cinza, e o sangue jorrava pelas aberturas obscenas em cataratas escarlates.

O que desencadeava outras recordações. Quando a mãe o beijava com lábios frios, abraçando-o apenas por curtos instantes de delicadeza. Nunca lhe segurava na mão como segurava na de Claudia. Quando ia visitá-la e saía de casa dela ofegante, com o peito a arder como se se tivesse magoado. Nunca sentia a perda dela no presente, só sentia a perda dela no passado.

Quando pensava na irmã, Claudia, não sentia esta perda. O passado de ambos juntos existia e ela continuava a fazer parte da sua vida, embora não o suficiente. Lembrava-se de como costumavam lutar no Inverno. Conservavam as mãos enfiadas nos bolsos dos casacões e atacavam-se um ao outro. Um duelo inofensivo. Tudo era como devia ser, pensava Cross, excepto que por vezes tinha saudades da mãe e da irmã. No entanto, estava feliz com o pai e com a Família Clericuzio.

E foi assim que, com vinte e cinco anos, Cross se viu envolvido na sua última operação como martelo da Família. O alvo, dessa vez, era alguém que ele conhecera toda a sua vida...

Uma ampla investigação do FBI eliminara muitos dos barões titulares, alguns deles verdadeiros brugliones, através de todo o país, e entre eles contava-se Virginio Ballazzo, que entretanto se tornara o chefe da maior Família da Costa Leste.

Virginio Ballazo era um barão da Família Clericuzio havia mais de vinte anos e sempre cumprira lealmente a sua obrigação de "molhar o bico" aos seus mentores. Em troca, os Clericuzio tinham-no tornado rico: na altura da sua queda, Ballazzo valia cinquenta milhões de dólares. Ele e a família viviam em grande estilo. E, no entanto, o imprevisível aconteceu. Virginio Ballazzo, a despeito da sua dívida de gratidão, traiu aqueles que o tinham elevado tão alto. Violou a lei da omertà, o código que proibia dar qualquer informação às autoridades.

Uma das acusações contra ele era de assassínio, mas não foi tanto o medo de ir para a prisão que fez dele um traidor; ao fim e ao cabo, em Nova Iorque não se aplicava a pena de morte. E por muito longa que fosse a sua sentença, se chegasse sequer a ser condenado, os Clericuzio pô-lo-iam cá fora em dez anos, e garantiriam que mesmo esses dez anos seriam passados com todo o conforto. Ele conhecia o esquema. No julgamento, haveria testemunhas que cometeriam perjúrio a seu favor, alguns dos jurados seriam tentados por subornos. Mesmo depois de ter cumprido alguns anos, os advogados preparariam um novo caso, apresentando novas provas, mostrando a sua inocência. Havia um caso famoso em que os Clericuzio tinham feito exactamente isso depois de um dos seus clientes ter cumprido cinco anos. O homem fora libertado e o estado pagara-lhe mais de um milhão de dólares a título de indemnização por prisão "injustificada".

Não, Ballazzo não receava a prisão. O que o fez dele um traidor foi o facto de o governo federal ameaçar confiscar todos os seus bens ao abrigo das leis RICO aprovadas pelo Congresso para combater o crime organizado. Ballazzo não suportava a ideia de que ele e os filhos podiam perder a sua mansão em New Jersey, o condomínio de luxo na Florida, a quinta de criação de cavalos no Kentucky, que já produzira três participantes no Ken-tucky Derby. Porque as infames leis RICO permitiam ao governo confiscar os bens de qualquer pessoa presa sob uma acusação de conspiração criminosa. Os títulos e acções, os carros antigos podiam desaparecer. O próprio Don Clericuzio ficara indignado, mas o seu único comentário fora: "Os ricos hão-de lamentar esta coisa; chegará o dia em que terão de prender Wall Street em peso ao abrigo desta lei."

Não fora por sorte, mas por clarividência, que, nos últimos anos, os Clericuzio tinham retirado a confiança que sempre haviam depositado no seu velho amigo Ballazzo. Tornara-se demasiado exibicionista para o gosto da Família. O New York Times publicara um artigo sobre a sua colecção de carros antigos, mostrando Virginio Ballazzo ao volante de um Rolls-Royce de 1937, com um jovial boné de pala na cabeça. Virginio Ballazzo aparecera na TV, numa reportagem sobre o Kentucky Derby, passeando a cavalo de pingalim na mão, falando a respeito da beleza do desporto dos reis. Nessa peça era identificado como um rico importador de tapetes. Tudo isto fora demasiado para os Clericuzio, que começaram a desconfiar dele.

Quando Virginio Ballazzo iniciou conversações com o Procurador Geral dos Estados Unidos, foi o seu próprio advogado quem informou a Família. O Don, que estava semi-retirado, reassumiu imediatamente o poder que confiara ao seu filho Giorgio. Aquela era uma situação que exigia uma mão siciliana.

Foi convocada uma conferência da Família. Estiveram presentes Don Clericuzio, os seus três filhos - Giorgio, Vincent e Petie - e Pippi De Lena. Era verdade que Ballazzo poderia causar estragos na estrutura da Família, mas só os níveis mais baixos sofreriam danos sérios. O traidor podia fornecer informações valiosas, mas nenhumas provas legais. Giorgio sugeriu que, se as coisas se pusessem realmente más, poderiam sempre mudar o seu quar-tel-general para um país estrangeiro, mas o Don afastou irritadamente esta possibilidade. Onde poderiam eles viver senão na América? A América tornara-os ricos, a América era o país mais poderoso do mundo e protegia os seus ricos. Don Domenico citava frequentemente a frase "é preferível deixar que cem culpados vão em liberdade do que condenar um único inocente", e acrescentava: "Que maravilhoso país!" O mal era que toda a gente se tornava mole por causa da boa vida. Na Sicília, nunca Ballazzo ousaria tornar-se um traidor, nunca sonharia sequer violar a lei da omertà. Os seus próprios filhos o teriam morto!

- Estou demasiado velho para viver num país estrangeiro. - declarou o Don. - Não serei expulso de minha casa por um traidor.

Não passando em si mesmo de um pequeno problema, Virginio Bal-lazzo era um sintoma, uma infecção. Havia muitos mais como ele, que não obedeciam às velhas leis que eram a base da força de todos eles. Havia um bruglione da Família na Luisiana, outro em Chicago e outro ainda em Tampa que exibiam a sua riqueza, que ostentavam o seu poder diante de toda a gente. E depois, estes cafoni, quando eram apanhados, procuravam escapar ao castigo que eles próprios tinham atraído com a sua imprudência. Violando a lei da omertà. Traindo os companheiros. Esta podridão tinha de ser erradicada. Era a posição do Don. Agora, no entanto, ouviria o que os outros tinham para dizer; ao fim e ao cabo, estava velho, talvez houvesse outras soluções.

Giorgio fez um resumo da situação. Ballazzo estava a negociar com os advogados do governo. Estaria disposto a ir para a prisão se as autoridades prometessem não invocar as leis RICO, se a mulher e os filhos pudessem conservar a sua fortuna. E, evidentemente, estava a negociar a hipótese de não ser preso; para isso, teria de testemunhar em tribunal contra as pessoas que traíra. Ele e a mulher seriam colocados sob a alçada de um Programa de Protecção de Testemunhas e viveriam o resto dos seus dias sob falsas identidades, depois de se terem submetido a um pouco de cirurgia plástica. E os filhos viveriam o resto das suas vidas num respeitável conforto. Era essa a proposta.

Ballazzo, fossem quais fossem os seus defeitos, era um pai extremoso, nisso todos estavam de acordo. Tinha três filhos, que criara com todos os cuidados. Um dos rapazes estava a licenciar-se na Harvard School of Business, a rapariga, Ceil, tinha uma elegante loja de cosméticos na Quinta Avenida, e o outro rapaz fazia trabalho de computadores no programa espacial. Todos eles mereciam a boa sorte que tinham. Eram verdadeiros americanos e viviam o sonho americano.

Assim sendo - disse o velho Don -, vamos enviar ao Ballazzo uma mensagem que ele perceba. Pode dar informações sobre quem quiser. Pode mandá-los a todos para a prisão ou para o fundo do mar. Mas se diz uma só palavra contra os Clericuzio, os filhos estão condenados.

As ameaças parecem já não meter medo a ninguém - comentou Pippi De Lena.

Esta ameaça irá directamente da minha parte - respondeu Don Domenico. - Ele acreditará. Não lhe prometam nada para ele mesmo. Ele compreende.

Nunca conseguiremos chegar perto dele, depois de entrar para o Programa de Protecção - disse então Vincent.

O Don não respondeu. Em vez disso, voltou-se para Pippi De Lena e perguntou:

- E tu, meu martelo, que dizes tu a isto? Pippi De Lena encolheu os ombros.

Depois de ele testemunhar, depois de eles o esconderem no Programa de Protecção, claro que podemos. Mas o caso vai fazer barulho, vai haver montes de publicidade. Será que vale a pena? Altera alguma coisa?

A publicidade, o barulho - respondeu o Don - é precisamente o que faz que valha a pena. Enviaremos ao mundo a nossa mensagem. Digo-te mais, quando for feito, deverá ser uma bella figura.

Podíamos deixar os acontecimentos seguirem o seu curso -interveio Giorgio. - Diga o Ballazzo o que disser, não pode prejudicar-nos. Pai, a sua resposta é uma resposta de curto prazo.

Don Clericuzio ponderou estas palavras.

O que dizes é verdade. Mas, haverá uma resposta a longo prazo, seja para o que for? A vida é cheia de dúvidas, de respostas a curto prazo. E tu duvidas que o castigo impeça outros de fazerem o mesmo? Pode impedir, e pode não impedir. Alguns, certamente impedirá. O próprio Deus não foi capaz de criar um mundo sem castigo. Falarei pessoalmente com o advogado do Ballazzo. Ele compreender-me-á. Transmitirá a mensagem. E o Ballazzo acreditará. - Fez uma curta pausa, e então suspirou. - Depois do julgamento, quem se encarregará do serviço?

E a mulher? - perguntou Giorgio.

Uma boa mulher - respondeu o Don. - Mas tornou-se demasiado americana. Não podemos deixar que uma viúva tresloucada ande por aí a gritar a sua dor e os seus segredos.

Petie falou então pela primeira vez.

E os filhos dele? - perguntou. Petie era o verdadeiro assassino.

Não, a menos que seja necessário. Não somos monstros - disse Don Clericuzio. - E o Ballazzo nunca falou aos filhos dos seus negócios. Queria que o mundo inteiro acreditasse que era apenas um criador de cavalos. Ele que monte os cavalos dele no fundo do oceano. - Ficaram todos silenciosos. Então o Don acrescentou, tristemente:- Deixem os meninos em paz. Ao fim e ao cabo, vivemos num país onde os filhos não vingam os pais.

No dia seguinte, o advogado de Virginio Ballazzo transmitiu-lhe a mensagem do Don. Em todas aquelas mensagens, a linguagem era sempre floreada. Ao falar com o advogado, Don Domenico expressara a esperança de que o seu velho amigo Virginio Ballazzo só tivesse as melhores recordações dos clérigos, que velariam sempre pelos interesses do seu infortunado companheiro. O Don disse ao advogado que Virginio Ballazzo não precisava de temer pela sorte dos filhos nos lugares onde o perigo espreitava, mesmo na Quinta Avenida, pois ele, Don Clericuzio, garantia pessoalmente a sua segurança. Ele, o Don, sabia como Virginio Ballazzo amava os filhos; a prisão, a cadeira eléctrica, os demónios do inferno, nada disso conseguiria amedrontar o seu velho amigo, só a ideia de que pudesse acontecer algum mal aos filhos.

- Diga-lhe - disse o Don ao advogado - que eu, pessoalmente, eu, Don Domenico Clericuzio, garanto que nenhum infortúnio os atingirá.

O advogado transmitiu esta mensagem palavra por palavra ao seu cliente, que respondeu da seguinte maneira:

- Diga ao meu amigo, ao meu querido amigo, que cresceu junto do meu pai na Sicília, que recebo as suas garantias com a maior gratidão. Diga-lhe que só guardo as melhores recordações de todos os Clericuzio, tão pro fundas que não sou sequer capaz de falar delas. E que lhe beijo a mão.

Então Ballazzo cantou "Trá lá lá" ao seu advogado, e acrescentou:

Acho que é melhor revermos com muito cuidado o nosso testemunho. Não queremos de modo algum envolver o meu bom amigo...

Também acho - respondeu o advogado, tal como mais tarde comunicou ao Don.

Tudo aconteceu como estava previsto. Virginio Ballazzo violou a omertà e testemunhou, mandando para a prisão uma porção de gente sem importância e implicando inclusivamente um adjunto do Mayor de Nova Iorque. Mas nem uma palavra a respeito dos Clericuzio. Depois disto, os Ballazzo, marido e mulher, desapareceram nas profundezas do Programa de Protecção de Testemunhas.

Os jornais e a TV rejubilaram. A poderosa Máfia fora desmantelada. Houve centenas de fotografias, de imagens directas na TV mostrando os bandidos a serem arrastados, de algemas nos pulsos, para a prisão. Virginio Ballazzo ocupou as duas páginas centrais do Daily News: A QUEDA DE UM PADRINHO DA MAFIA. Mostrava-o com os seus carros antigos, os seus cavalos, o seu impressionante guarda-roupa londrino. Foi uma orgia.

Quando o Don confiou a Pippi De Lena a missão de descobrir o casal Ballazzo e castigá-los, disse:

- Fá-lo de maneira que a morte deles tenha tanta publicidade como a que tiveram agora. Não queremos que esqueçam o nosso Virginio.

O martelo da Família demoraria, porém, mais de um ano a cumprir a sua missão.

Cross conservava de Virginio Ballazzo a recordação simpática de um homem jovial e generoso. Ele e Pippi tinham jantado em casa do casal, pois a Signora Ballazzo tinha fama de ser uma excelente cozinheira italiana, particularmente devido ao seu macaroni e couve-flor com alho e ervas-de-cheiro, um prato de que Cross ainda se lembrava. Brincara com os filhos dos Ballazzo quando era criança e chegara até a apaixonar-se pela filha deles, Ceil, quando eram adolescentes. Ela escrevera-lhe da universidade, depois daquele domingo mágico, mas ele nunca respondera. Agora, sozinho com Pippi, declarou:

- Não quero fazer esta operação.

O pai olhou para ele e sorriu tristemente.

- Cross - disse -, por vezes acontece, tens de habituar-te. De outro modo não sobreviverás.

Cross abanou a cabeça.

- Não sou capaz. Pippi suspirou.

- OK. Eu digo-lhes que quero utilizar-te para o planeamento. Vou convencê-los a confiarem a operação ao Dante.

Pippi organizou a busca. A Família Clericuzio, à custa de subornos gigantescos, penetrou no segredo do Programa de Protecção de Testemunhas.

Os Ballazzo sentiam-se seguros nas suas novas identidades, com certidões de nascimento falsas, novos números da segurança social, novas certidões de casamento, e com a cirurgia plástica que lhes alterara os rostos de modo a fazê-los parecer dez anos mais novos. No entanto, a estrutura dos seus corpos, os seus gestos, as suas vozes, tornavam-nos mais facilmente identificáveis do que julgavam.

Os velhos hábitos custam a morrer. Numa noite de sábado, Virginio Ballazzo e a mulher foram de carro até uma pequena povoação do Dakota do Sul, próxima da cidade onde viviam, para jogarem numa baiuca local. Na viagem de regresso a casa, Pippi De Lena e Dante Clericuzio, com uma equipa de seis outros homens, interceptaram-nos. Dante, fugindo ao que que ficara planeado, não resistiu à tentação de se dar a conhecer antes de apertar o gatilho da caçadeira.

Não foi feita qualquer tentativa para esconder os corpos. Não foram levados quaisquer valores. A acção foi entendida por todos como um acto de retaliação e enviou uma mensagem ao mundo. Houve uma torrente de fúria por parte dos jornais e da televisão, as autoridades prometeram que seria feita justiça. Na realidade, o furor foi suficientemente grande para fazer parecer que todo o império dos Clericuzio estava em perigo.

Pippi foi obrigado a esconder-se na Sicília durante dois anos. Dante tornou-se o martelo número um da Família. Cross foi nomeado bruglione do império Ocidental dos Clericuzio. Não tinha a têmpera necessária para ser um verdadeiro martelo.

Antes de desaparecer na Sicília por dois anos, Pippi teve um último jantar de despedida com Don Domenico e o seu filho Giorgio.

Devo pedir desculpa pelo meu filho - disse Pippi. - O Cross é jovem, e os jovens são sentimentais. Ele era muito amigo dos Ballazzo.

Todos nós éramos amigos do Virgínio - respondeu o Don. - Nunca houve um homem de quem eu gostasse mais.

Então porque é que o matámos? - perguntou Giorgio. - Não com pensou, nem de longe, os problemas que nos tem causado.

Don Domenico olhou duramente para o filho:

Não se pode viver uma vida sem ordem. Quem tem o poder, tem a obrigação de o usar para impor uma justiça rigorosa. O Virginio Ballazzo cometeu um grande crime. O Pippi compreende isto, não é verdade, Pippi?

Claro que sim, Don Domenico - assegurou Pippi. - Mas o se nhor e eu somos da velha escola. Os nossos filhos não compreendem. - Fez uma pausa. - Queria agradecer-lhe por ter feito o Cross bruglione do Oeste enquanto eu estiver fora. Não há-de desapontá-lo.

Eu sei - disse o Don. - Tenho tanta confiança nele como tenho em ti. É inteligente, e os escrúpulos dele são os da juventude. O tempo há-de endurecer-lhe o coração.

Estavam a comer uma refeição preparada e servida por uma das mulheres cujos maridos trabalhavam no Enclave. Ela tinha-se esquecido da taça de queijo parmesão ralado do Don, e Pippi foi à cozinha buscar o raspador e trouxe a taça ao Don. Raspou cuidadosamente o queijo para dentro da taça e ficou a ver o Don mergulhar a sua grande colher de prata no monte amarelado, levá-la à boca e em seguida beber um pequeno trago do seu copo de forte vinho caseiro. Ali estava um homem "com estômago", pensou Pippi. Com mais de oitenta anos, e ainda era capaz de ordenar a morte de um prevaricador, e também de comer aquele queijo e beber aquele vinho. Perguntou, despreocupadamente:

A Rose Marie está em casa? Gostaria de despedir-me dela.

Está com um daqueles malditos ataques - respondeu Giorgio. - Trancou-se no quarto, graças a Deus, pois de contrário não teríamos podi do jantar em paz.

Ah - disse Pippi. - Sempre pensei que melhorasse com o tempo.

Ela pensa demasiado - afirmou Don Domenico. - E ama dema siado o filho. Recusa-se a compreender. O mundo é o que é, e as pessoas são o que são.

- Pippi, como é que classificas o Dante depois desta operação com os Ballazzo? - perguntou suavemente Giorgio. - Mostrou-se nervoso?

Pippi encolheu os ombros e permaneceu silencioso. O Don fez um pequeno resmungo e olhou atentamente para ele.

- Podes ser franco - disse. - O Giorgio é tio dele e eu sou o avô. Pertencemos todos ao mesmo sangue e é-nos permitido julgarmo-nos uns aos outros.

Pippi parou de comer e olhou directamente para Giorgio e para o Don. Disse, quase com pena:

- O Dante tem uma boca sangrenta.

No mundo deles, a frase designava um homem que ia mais além da selvajaria, que roçava a bestialidade na execução de um trabalho que tinha de ser feito. Era algo estritamente proibido na Família Clericuzio.

Giorgio recostou-se na cadeira e exclamou:

- Jesus Cristo!

O Don dirigiu-lhe um olhar reprovador, por causa da blasfémia, e acenou com a mão a Pippi, indicando-lhe que continuasse. Não parecia surpreendido.

Foi um bom aluno - prosseguiu Pippi. - Tem o temperamento e a força física necessários. E muito rápido, e inteligente. Mas tem demasiado prazer no trabalho que faz. Demorou demasiado tempo com os Ballazzo. Falou com eles durante dez minutos antes de matar a mulher. Depois esperou mais cinco minutos antes de matar o Virginio. Não gosto dessas coisas, mas, pior do que isso, nunca se sabe quando podem tornar-se perigosas; cada minuto conta. Noutros trabalhos foi desnecessariamente cruel, um regresso aos velhos tempos, quando se pensava que era uma boa ideia pendurar um homem num gancho de talho. Não quero entrar em pormenores.

E tudo porque esse sacana do meu sobrinho é baixo! - disse Gior gio, furiosamente. - É um estupor de um anão! E depois, usa aqueles malditos chapéus. Onde raio é que ele vai arranjá-los?

Aos mesmos lugares onde os pretos vão buscar os deles - respondeu o Don, bem humorado. - Na Sicília, quando eu lá vivi, toda a gente usava chapéus esquisitos. Sabe-se lá porquê. E quem se preocupa com isso? Deixem-se de disparates. Também eu usei chapéus esquisitos. Talvez seja hereditário. É a mãe que lhe mete todo o género de parvoíces na cabeça, desde que ele era miúdo. Devia ter casado outra vez. As viúvas são como aranhas. Tecem demasiadas teias.

Mas ele é bom no seu trabalho - disse Giorgio, com intensidade.

- Melhor do que o Cross alguma vez será - respondeu Pippi, diploma ticamente. - Mas, por vezes, penso que é maluco, como a mãe. - Fez uma pausa.- Âs vezes, até me assusta.

O Don tinha a boca cheia de queijo e de vinho.

- Giorgio - disse -, fala com o teu sobrinho, repara essa falha. Pode vir a tornar-se perigosa para todos nós na Família, um dia. Mas não lhe dês a entender que a coisa parte de mim. Ele é demasiado novo e eu sou demasiado velho. Não poderia influenciá-lo.

Pippi e Giorgio sabiam que isto era uma mentira, mas também sabiam que se o velho queria esconder o seu jogo, era porque tinha razões para isso. Nesse momento, ouviram passos no piso de cima e depois alguém a descer a escada. Rose Marie entrou na sala de jantar.

Os três homens aperceberam-se, com consternação, que estava a sofrer um dos seus ataques. Tinha os cabelos completamente em desordem, uma maquilhagem bizarra e as roupas amachucadas. E, o que era ainda pior, tinha a boca aberta, mas não saíam dela quaisquer palavras. Utilizava o corpo e o agitar das mãos para substituir a fala. Os seus gestos eram impressionantemente vívidos, melhores do que palavras. Odiava-os, queria vê-los a todos mortos, queria que as almas deles ardessem no inferno para todo o sempre. Queria que a comida os sufocasse, que o vinho os cegasse, que os pénis deles caíssem quando estivessem na cama com as mulheres. Depois pegou no prato de Pippi e no prato de Giorgio e atirou-os ao chão.

Tudo isto era permitido, mas da primeira vez, anos antes, quando ela tivera o primeiro ataque, fizera o mesmo com o prato do Don, e ele ordenara que a agarrassem e a trancassem no quarto, e depois mandou-a por três meses para uma clínica especial. Mesmo assim, Don Domenico cobriu rapidamente com a tampa a sua taça de queijo; ela cuspia muito. Então, subitamente, acabou; Rose Marie ficou muito quieta. Disse, dirigindo-se a Pippi:

- Quis vir dizer-te adeus. Espero que morras na Sicília.

Pippi sentiu uma enorme pena dela. Levantou-se e abraçou-a. Ela não resistiu. Ele beijou-a na face e disse:

- Prefiro morrer na Sicília a voltar para casa e encontrar-te assim. Ela libertou-se do abraço e correu escadas acima.

- Muito comovente - comentou Giorgio, num tom quase de troça. - Mas não és tu que tens de a aturar todos os meses. - Soltou uma pequena gargalhada ao dizer isto, mas todos sabiam que Rose Marie tinha há muito passado a menopausa e tinha os seus ataques mais de uma vez por mês.

O Don parecia o menos afectado pelo ataque da filha.

- Ou melhora, ou morre - declarou. - Senão, mando-a embora. - Depois continuou, dirigindo-se a Pippi: - Eu mando-te dizer quando puderes regressar da Sicília. Aproveita o que puderes, estamos todos a ficar mais velhos. Mas mantém-te atento a novos homens que possamos recrutar para o Enclave. Isso é importante. Temos de ter homens que possamos ter a certeza de que não vão trair-nos, que tenham a omertà nos ossos, não como os malandros nascidos neste país, que querem andar à boa vida sem terem de pagar por isso.

No dia seguinte, com Pippi a caminho da Sicília, Dante foi chamado à mansão de Quogue para passar o fim-de-semana. No primeiro dia, Gior-gio deixou-o passar o tempo todo com Rose Marie. Era tocante ver a dedicação deles um pelo outro. Dante tornava-se uma pessoa completamente diferente quando estava com a mãe. Nunca usava um dos seus estranhos chapéus, acompanhava-a em longos passeios pelos jardins, levava-a a jantar fora. Servia-a como um qualquer cortesão francês do século dezoito serviria a sua dama. Quando ela se punha a chorar histericamente, ele embalava-a nos braços, e Rose Marie nunca tinha um dos seus ataques. Falavam constantemente um com o outro, num tom de voz baixo e confidencial.

Ao jantar, Dante ajudou Rose Marie a pôr a mesa, a ralar o queijo do Don, fez-lhe companhia na cozinha. Ela preparou-lhe o seu prato favorito, penne [9] com brócolos seguido de borrego assado recheado com bacon e alho.

Giorgio nunca deixava de se espantar com a relação que existia entre o Don e Dante. Dante mostrava-se solícito, servia o prato do avô, limpava cuidadosa e ostensivamente a grande colher de prata que ele costumava usar para comer o parmesão ralado. E brincava com o velho.

- Avô - disse-lhe -, se tivesses dentes novos, não precisávamos de ralar este queijo. Os dentistas de agora fazem maravilhas, são capazes de nos implantar aço nos queixos. Um milagre.

O Don respondeu no mesmo tom de brincadeira:

- Quero que os meus dentes morram comigo. E já estou demasiado velho para milagres. Por que haveria Deus de desperdiçar um milagre numa múmia como eu?

Rose Marie arranjara-se para o filho, e os vestígios da sua antiga beleza ainda se notavam. Parecia feliz por ver o pai e o filho darem-se tão bem. Tinha perdido o seu constante ar de ansiedade.

Também Giorgio estava contente. Contente por a irmã parecer feliz. Quando estava com o filho, não lhe arrasava os nervos, como de costume, e cozinhava ainda melhor. Não olhava para ele com aqueles seus olhos acusadores, e nunca tinha um dos seus ataques.

Depois de o Don e Rose Marie terem ido deitar-se, Giorgio levou Dante para o escritório. Era uma divisão onde não havia telefones nem aparelhos de televisão, nem quaisquer linhas de comunicação com o resto da casa. E tinha uma porta muito grossa. Estava agora mobilado com dois sofás de couro preto e alguns cadeiras com assentos e espaldares estofados, também de couro preto. Continuava a conter um móvel-bar equipado com um pequeno frigorífico e uma prateleira cheia de copos. Era uma sala sem janelas, como uma pequena cave.

O rosto de Dante, demasiado alerta e interessado para um homem tão novo, deixava sempre Giorgio pouco à vontade. Os olhos tinham um brilho de astúcia e Giorgio não gostava que fosse tão baixo.

Giorgio preparou bebidas para ambos e acendeu um charuto havano.

Graças a Deus não usas esses teus chapéus esquisitos quando estás com a tua mãe - disse. - Ao fim e ao cabo, porque é que os usas?

Gosto deles - respondeu Dante. - E para que o tio, e o tio Petie, e o tio Vincent reparem em mim. - Interrompeu-se por um instante e então acrescentou, com um sorriso malicioso. - Fazem-me parecer mais alto.

Era verdade, pensou Giorgio, aqueles chapéus faziam-no parecer mais atraente. Enquadravam-lhe a cara de furão de um modo que a beneficiava; as feições de Dante pareciam estranhamente descoordenadas quando vistas sem o chapéu.

Não devias usá-los em serviço - disse Giorgio. - Tornam a identificação demasiado fácil.

Os mortos não falam. Mato sempre toda a gente que me vê num serviço.

Sobrinho, deixa-te de parvoíces - irritou-se Giorgio. - Não é inteligente. E um risco. A Família não gosta de correr riscos. Agora, outra coisa. Diz-se por aí que tens uma boca sangrenta.

Pela primeira vez, Dante reagiu com fúria. Subitamente, a sua expressão tornou-se mortífera. O avô sabe disto? - perguntou. - Essa conversa vem da parte dele?

O Don não sabe nada a este respeito - mentiu Giorgio. Era um mentiroso muito hábil. - E eu nada lhe direi. Tu és o seu favorito, uma coisa destas ia entristecê-lo. Mas estou a dizer-te, acabaram-se os chapéus em serviço, e vê se manténs essa boca limpa. Agora és o martelo número um da Família e tens demasiado prazer no teu trabalho. Isso é perigoso e contra as regras da Família.

Dante pareceu nem o ouvir. Estava pensativo, agora, e o sorriso reapareceu-lhe nos lábios.

O Pippi deve ter-lhe contado - disse, afavelmente.

Sim - a resposta de Giorgio foi seca. - E o Pippi é o melhor. Pusemos-te com ele para que pudesses aprender a maneira correcta de fazer as coisas. E sabes porque é que ele é o melhor? Porque tem bom coração. Nunca é por prazer.

Dante não se conteve. Teve um ataque de riso. Rebolou-se no sofá, e depois no chão. Giorgio ficou a olhar para ele de sobrolho franzido, a pensar que era tão louco como a mãe. Finalmente, Dante pôs-se de pé, bebeu um pequeno trago da bebida e disse, cheio de bom humor.

Agora está a dizer que eu não tenho bom coração.

Exactamente - respondeu Giorgio. - És meu sobrinho, mas sei muito bem o que tu és. Mataste dois homens por uma questão pessoal qual quer, sem o consentimento da Família. O Don recusou-se a tomar medidas contra ti, nem sequer te admoestou. Depois mataste uma corista com quem andavas a dormir há mais de um ano. Porque te zangaste com ela. Deste-lhe uma Comunhão, para que o corpo não fosse encontrado pela polícia. E não foi. Pensas que és um puto muito esperto, mas a Família juntou as provas e soube que eras tu o culpado, embora nunca tivesses sido condenado num tribunal.

Dante permaneceu calado, não por medo, mas por cálculo. Finalmente, perguntou:

O Don sabe dessa trampa toda?

Sim. Mas mesmo assim continuas a ser o seu favorito. Disse-nos que deixássemos passar, que ainda és novo. Que hás-de aprender. Não quero falar-lhe sequer dessa história da boca sangrenta, ele está demasiado velho. És neto dele, a tua mãe é filha dele. Só serviria para lhe destroçar o coração.

Dante riu-se outra vez.

O Don tem coração, Pippi De Lena tem coração, o Cross tem um coração de galinha, a minha mãe tem um coração desfeito. Mas eu não tenho coração? E o tio, tem coração?

Claro - respondeu Giorgio. - Continuo a aturar-te.

Nesse caso, sou eu o único que não tem uma porra de um coração? Eu amo a minha mãe e o meu avô e eles odeiam-se ambos um ao outro. O meu avô gosta cada vez menos de mim à medida que vou crescendo. O Tio, o Vinnie e o Petie nem sequer gostam de mim, apesar de termos o mesmo sangue. Pensa que eu não sei estas coisas? Mas eu continuo a amá-los a todos, embora me ponham abaixo desse merdas desse Pippi De Lena. Ou pensam que eu também não tenho miolos?

Giorgio foi apanhado de surpresa por esta explosão. E foi também alertado pela verdade que continha.

- Estás enganado a respeito do Don, ele continua a gostar tanto de ti como sempre gostou. E o mesmo se passa com o Petie, com o Vinnie e comigo. Alguma vez deixámos de tratar-te com o respeito devido à família?

É verdade que o Don se mostra um pouco distante, mas o homem está muito velho. Quanto a mim, estou a dizer-te estas coisas para teu próprio bem. O teu trabalho é muito arriscado, tens de ter cuidado. Não podes misturar-lhe emoções pessoais. Isso seria um desastre.- O tio Vinnie e o tio Petie sabem disto? - perguntou Dante.

Não - respondeu Giorgio, o que era outra mentira. Também Vincent falara com ele a respeito do sobrinho. Petie não, mas Petie era um assassino nato. Mesmo assim, nem sequer ele gostava muito da companhia de Dante.

Mais alguma queixa a respeito da maneira como faço o meu trabalho?

Não, e não leves isto tão a peito. Estou a aconselhar-te como teu tio. Mas também falo da minha posição nesta Família. Não voltas a fazer seja a quem for uma Comunhão ou uma Confirmação sem o OK da Família. Está entendido?

Ok - respondeu Dante. - Mas continuo a ser o martelo número um, certo?

Até que o Pippi volte das suas feriazinhas. Depende do teu trabalho.

Vou passar a gostar menos do meu trabalho, se é isso que querem - declarou Dante. - OK? - E deu uma afectuosa palmadinha no ombro de Giorgio.

Óptimo. Amanhã, leva a tua mãe a jantar fora. Faz-lhe companhia. O teu avô vai ficar contente.

Claro. vi - O Vincent tem um dos seus restaurantes em East Hampton. Podes levar lá a tua mãe.

- Ela está a ficar pior? - perguntou Dante inesperadamente. Giorgio encolheu os ombros.

- Não consegue esquecer o passado. Agarra-se a histórias que devia esquecer. O Don bem lhe diz "O mundo é o que é e as pessoas são o que são", a sua velha frase. Mas ela não consegue aceitar isso. - Abraçou Dante afectuosamente, e disse. - Vamos esquecer que tivemos esta conversa. Detesto fazer estas coisas. - Como se não tivesse recebido ordens específicas do Don para o fazer.

Depois de Dante ter partido, na segunda-feira de manhã, Giorgio relatou ao pai toda a conversa. Don Domenico suspirou.

- Que garoto amoroso ele era. Que terá acontecido?

Giorgio tinha uma grande virtude. Quando queria, dizia o que pensava, mesmo ao pai, ao grande Don.

- Fala demasiado com a mãe - disse. - E tem mau sangue. Depois disto, ficaram ambos silenciosos.

E quando o Pippi voltar, o que é que fazemos com o seu neto? - perguntou Giorgio.

Apesar de tudo, penso que o Pippi deve reformar-se - respondeu Don Domenico. - O Dante tem direito à sua oportunidade de ser o primeiro. Ao fim e ao cabo, é um Clericuzio. O Pippi será conselheiro do filho, o bruglione do Oeste. Se necessário, poderá sempre ajudar o Dante. Não há ninguém mais competente do que ele nessas matérias. Como provou com os Santadio. Mas deve acabar os seus anos em paz.

O martelo Emeritus - murmurou Giorgio sarcasticamente, mas o Don fingiu não perceber a piada.

Franziu o sobrolho e voltou-se para o filho.

- Em breve terás as minhas responsabilidades. Nunca esqueças que a nossa missão é conseguir que os Clericuzio se juntem um dia à sociedade, que a família nunca deve morrer. Por muito difíceis que sejam as escolhas a fazer.

E as coisas ficaram assim. Mas passar-se-iam dois anos antes que Pippi regressasse da Sicília, depois de o assassínio dos Ballazzo se ter perdido na bruma burocrática. Uma bruma fabricada pelos Clericuzio.

 

Las Vegas.

Hollywood.

 

Cross De Lena recebeu a irmã e Skippy Deere na suite do terraço do Xanadu Hotel. Deere ficava sempre impressionado pelas diferenças entre os dois irmãos. Claudia, não exactamente bonita e no entanto tão agradável, e Cross, tão convencionalmente atraente e com um corpo esbelto mas atlético, Claudia, tão naturalmente amigável, e Cross, tão rigidamente afável e distante. Havia uma diferença entre amigável e afável, pensou Deere. Uma estava nos genes, a outra era aprendida.

Claudia e Skippy Deere instalaram-se no sofá, enquanto Cross se sentava diante deles. Claudia explicou o que se passava com Boz Skannet e depois, inclinando-se para a frente, disse:

- Ouve, Cross, por favor. Isto não é apenas uma questão de negócios. A Athena é a minha amiga mais íntima. E é verdadeiramente uma das melhores pessoas que conheço. Ajudou-me quando eu precisava de ajuda. E este é o favor mais importante que alguma vez te pedi. Ajuda a Athena a sair desta embrulhada, e nunca mais volto a pedir-te seja o que for. - Voltou-se então para Skippy Deere e acrescentou. - Conta tu ao Cross a parte do dinheiro.

Deere tomava sempre a ofensiva antes de pedir um favor.

- Já há mais de dez anos que venho ao teu hotel - disse, dirigindo- -se a Cross. - Por que é que nunca me deram uma villa?

Cross riu-se.

Têm estado sempre ocupadas.

Põe alguém na rua.

Certo. Quando receber um relatório de lucros de um dos teus filmes e quando te vir fazer uma aposta de dez mil dólares no bacará.

Eu sou irmã dele e nunca tive direito a uma villa- interveio Claudia. - Deixa-te de fitas, Skippy, e explica-lhe o problema do dinheiro.

Quando Deere acabou, Cross, lendo as notas que tomara num bloco, disse: deixa-me ver se percebi isto bem. Tu e os estúdios perdem cinquenta milhões em notas, mais os duzentos milhões em lucros projectados, se essa tal Athena não voltar ao trabalho. E ela não quer voltar ao trabalho porque tem medo de um ex-marido chamado Boz Skannet. Vocês podem tentar comprá-lo, mas mesmo assim ela recusa-se a voltar às filmagens porque não acredita que alguém consiga impedi-lo de fazer o que quiser. é tudo?

Sim - assentiu Deere. - Prometemos-lhe que estaria melhor protegida que o presidente dos Estados Unidos enquanto durarem as filmagens. Estamos a vigiar o tal Skannet vinte e quatro horas por dia. Temos guardas à volta dela vinte e quatro horas por dia. Mas nem mesmo assim ela volta ao trabalho.

Não estou a ver qual é o problema - disse Cross.

Esse tipo vem de uma família do Texas politicamente poderosa - explicou Deere. - E é duro a valer. Tentei que os nossos rapazes da segurança lhe dessem um apertão...

Qual é a vossa agência de segurança? - perguntou Cross A Pacific Ocean Security.

Porque é que estão a falar comigo?

- Porque a tua irmã disse que poderias ajudar - disse Deere. - A ideia não foi minha.

Cross voltou-se para a irmã.

- Claudia, o que foi que te levou a pensar que eu poderia ajudar? Claudia fez uma careta, pouco à vontade.

Já te vi resolver problemas no passado, Cross. És muito persuasivo, e pareces desencantar sempre uma solução. - Sorriu o seu sorriso inocente. - Além disso, és o meu irmão mais velho. Tenho fé em ti.

As tretas do costume! - disse Cross, com um suspiro, mas Deere detectou facilmente o tom de afecto subjacente a este protesto.

Ficaram os três sentados em silêncio durante algum tempo. Finalmente, Deere disse:

- Cross, viemos até cá sem grandes esperanças. Mas se andas à procura de novos investimentos, vou ter aí um projecto que é muito, muito bom.

Cross olhou para Claudia, depois para Deere, e disse pensativamente:

Skippy, quero conhecer essa Athena, e depois talvez possa resolver o vosso problema.

Óptimo! - exclamou Claudia. - Podemos ir todos amanhã, de avião. - E abraçou o irmão.

OK - concordou Deere. Já estava a tentar arranjar uma maneira de levar Cross a suportar uma parte dos seus próprios prejuízos naquela história do filme.

No dia seguinte, voaram para Los Angeles. Claudia convencera Athena a recebê-los, e depois fora a vez de Deere pegar no telefone. Aquela conversa persuadiu-o de que Athena nunca regressaria às filmagens. Isto enfureceu-o, mas no avião entreteve-se a imaginar um esquema para levar Cross a dar-lhe uma das suas estuporadas villas quando voltasse a visitar Las Vegas.

A Malibu Colony, onde Athena vivia, era uma secção de praia situada cerca de quarenta minutos a norte de Beverly Hills e de Hollywood. Compreendia mais de uma centena de casas, cada uma das quais valia entre três e seis milhões de dólares, mas que, vistas do exterior, tinham um aspecto bastante vulgar e modesto. As casas eram protegidas por um muro e algumas delas tinham portões de entrada pesadamente ornamentados.

O único acesso à urbanização propriamente dita fazia-se por uma estrada particular guardada por seguranças instalados numa ampla cabana de troncos e que controlavam a barreira de báscula. O pessoal da segurança confirmava todos os visitantes através do telefone ou graças a uma lista. Os residentes tinham nos carros autocolantes especiais, que eram mudados todas as semanas. Cross classificou o esquema como uma barreira de segurança "para chatear", mas que não funcionava a sério.

Já os homens da Pacific Ocean Security que vigiavam a casa de Athena eram outra história. Estavam uniformizados, armados, e pareciam encontrar-se em perfeita forma física.

Entraram na propriedade de Athena pelo caminho paralelo à praia. Tinha a sua própria segurança adicional, controlada pela secretária de Athena, que lhes deu passagem premindo um botão no interior de uma pequena casa de hóspedes situada perto.

Havia dois outros homens com uniformes da Pacific Ocean, e um terceiro à porta da casa. Passada a casa de hóspedes, atravessaram um comprido jardim cheio de flores e limoeiros, que perfumavam o ar salgado. Chegaram finalmente diante da casa principal, de onde se avistava a magnificência do Pacífico.

Uma pequena empregada sul-americana abriu-lhes a porta e conduziu-os, através da enorme cozinha, até uma sala que o espectáculo do oceano, entrando pelas largas janelas, parecia encher. Uma sala mobilada com móveis de bambu, mesas de vidro e grandes cadeirões de um verde profundo. A empregada atravessou-a e abriu as portas de vidro que davam acesso a um terraço sobranceiro ao oceano, um terraço largo e comprido que tinha mesas, cadeiras e uma bicicleta de exercício que parecia brilhar como prata. Para lá de tudo isto estendia-se o oceano, verde-azulado, subindo para o céu.

Quando Cross De Lena viu Athena naquele terraço, sentiu um choque de medo. Ela era muito mais maravilhosa do que no cinema, um fenómeno extremamente raro. Nunca a película conseguiria captar a cor da sua pele a profundidade dos seus olhos ou a sua tonalidade de verde. O corpo dimovia-se como se movem os grandes atletas, com uma graça física que parecia isenta de esforço. Os cabelos dourados, cortados muito curtos de uma maneira que teria parecido feia em qualquer outra mulher, coroavam a sua beleza. Vestia um fato-de-treino azul pálido que deveria disfarçar-lhe as for mas do corpo, mas não disfarçava. As pernas eram compridas em relação ao tronco, estava descalça, mas não tinha as unhas dos pés pintadas.

Foi no entanto a expressão de inteligência na cara dela, o focar da atenção, que mais o impressionaram.

Athena recebeu Skippy Deere com o habitual beijo na face, abraçou calorosamente Claudia e apertou a mão a Cross. Os olhos dela reflectiam as águas do oceano que se estendia para lá das suas costas.

- A Claudia fala muito a seu respeito - disse, dirigindo-se a Cross - O seu belo e misterioso irmão que é capaz de fazer a Terra parar, quando quer. - Riu-se, um riso perfeitamente natural, não o riso de uma mulher assustada.

Cross sentiu-se invadido por uma maravilhosa delícia, não havia outra palavra. A voz era um pouco rouca, baixa, um instrumento musical fascinante O oceano enquadrava-a, os ossos do rosto finamente cinzelados, os lábios sem pintura, generosos e da cor do vinho, a inteligência que irradiava dela Um dos curtos sermões de Gronevelt atravessou-lhe o espírito como um relâmpago: O dinheiro pode pôr-te a salvo de tudo neste mundo, excepto de uma mulher bonita.

Cross conhecera muitas mulheres bonitas em Las Vegas, tantas como em Los Angeles e em Hollywood. Mas em Vegas a beleza era simplesment beleza, com apenas um pequeno toque de talento; muitas daquelas beldades tinham falhado em Hollywood. Em Hollywood, a beleza estava casada con o talento, e, menos frequentemente, com a verdadeira arte. Ambas as cidades atraíam beleza de todos os pontos do mundo. E depois havia as actrizes que se tornavam Estrelas Cotáveis.

Estas eram as mulheres que, além do seu encanto e beleza, tinham uma certa inocência infantil, e coragem, e uma curiosidade pela profissão que podia ser elevada à condição de forma de arte e lhes dava uma certa digni dade. Embora a beleza fosse um lugar-comum em ambas as cidades, em Hollywood nasciam deusas que recebiam a adoração do mundo. Athena Aquitan era uma dessas raras deusas.

A Claudia disse-me de si que é a mulher mais bela do mundo - disse Cross calmamente, dirigindo-se a Athena.

Sim? E que disse ela a respeito do meu cérebro? - perguntou Athena Inclinou-se sobre a balaustrada do terraço e dobrou uma perna, numa espécie de exercício de ginástica. O que noutra mulher teria sido afectação, pareceu nela perfeitamente natural. Durante toda a conversa, continuou a fazer exercícios, dobrando o corpo para trás e para a frente, esticando uma perna por cima da balaustrada, acompanhando com gestos dos braços algumas das suas palavras.

Nunca adivinharias que somos parentes, eh, Thena? - disse Claudia.

Nunca! - corroborou Skippy Deere. Athena, porém, olhou para eles e declarou: Vocês os dois são até muito parecidos. E Cross soube que ela estava a falar a sério.

Agora já sabes por que é que gosto tanto dela - disse Claudia. Athena interrompeu os seus movimentos por um instante e dirigiu-se a Cross:

- Dizem que pode ajudar-me. Não estou a ver como.

Cross tentou não olhar embasbacado para ela, tentou não ver o ouro flamejante dos cabelos de Athena contra o verde profundo do mar.

Sou bom a convencer as pessoas - respondeu. - Se é verdade que a única coisa que a impede de voltar ao trabalho é o seu marido, talvez eu consiga persuadi-lo a chegar a um acordo.

Não acredito que o Boz cumpra os seus acordos - contrapôs Athena. - Os estúdios já tentaram esse caminho.

Deere começou a protestar, naquilo que para ele era uma voz contida:

- Athena, não tem realmente nada com que se preocupar, juro-lhe. Por qualquer razão, porém, as palavras soaram pouco convincentes até aos seus próprios ouvidos. Observou-os a todos cuidadosamente. Sabia como Athena era capaz de dominar um homem, as actrizes eram as pessoas mais encantadoras do mundo, quando queriam. Mas não detectou qualquer mudança em Cross.

- O Skippy recusa-se a admitir que eu possa abandonar o cinema - disse Athena. - É tão importante para ele.

- E para si não? - perguntou ele, furiosamente. Athena dirigiu-lhe um longo e frio olhar.

Foi, em tempos. Mas eu conheço o Boz. Tenho de desaparecer, tenho de começar uma vida nova. - Lançou-lhes um sorriso malicioso. - Consigo safar-me em qualquer lugar.

Posso fazer um acordo com o seu marido - afirmou Cross. - E posso garantir que ele o respeite.

Athena - insistiu Deere, num tom cheio de confiança -, há centenas de casos como este, de assédio às grandes estrelas por lunáticos.

Temos procedimentos à prova de fogo. Não há verdadeiramente o mínimo perigo.

Athena continuou a fazer os seus exercícios, erguendo uma perna acima da cabeça.

Vocês não conhecem o Boz - declarou. - Eu conheço.

E ele a única razão que a impede de voltar ao trabalho? - perguntou Cross.

Sim - respondeu Athena. - Há-de perseguir-me sem descanso. Vocês podem proteger-me até eu acabar o filme, mas, e depois?

Nunca deixei de conseguir chegar a um acordo - disse Cross. - Dar-lhe-ei aquilo que ele quiser.

Athena parou de fazer os seus exercícios. Pela primeira vez, olhou Cross directamente nos olhos.

Nunca acreditarei em nenhum acordo que o Boz faça - declarou. E voltou-lhe as costas, como que a encerrar o assunto.

Lamento tê-la feito perder o seu tempo - disse Cross.

Não perdi o meu tempo - replicou ela, alegremente. - Fiz os meus exercícios. - Voltou a olhá-lo directamente nos olhos. - Agradeço-lhe o interesse. só que estou a tentar parecer destemida, como num dos meus filmes.

Na realidade, estou morta de medo. - Então, recuperando rapidamente a compostura, disse:- A Claudia e o Skippy estão sempre a falar a respeito das suas famosas villas. Se eu for a Las Vegas, dá-me uma para me esconder?

O rosto dela estava sério, mas os olhos pareciam dançar. Estava a fazer uma demonstração do seu poder em benefício de Claudia e de Skippy. Esperava evidentemente que ele dissesse que sim, quanto mais não fosse por cortesia.

Cross sorriu-lhe.

- As villas estão habitualmente ocupadas - respondeu. Fez uma curta pausa e, com uma expressão tão séria que espantou os outros, acrescentou:- Mas, se for a Las Vegas, posso garantir-lhe que ninguém lhe fará mal.

Athena falou directamente para ele:

Ninguém é capaz de deter o Boz. Ele não se importa de ser apanhado. Seja o que for que fizer, fá-lo-á em público, para que todos vejam.

Mas porquê? - perguntou Claudia, impacientemente.

Porque em tempos me amou - respondeu Athena, com uma pequena gargalhada. - E porque a minha vida resultou melhor do que a dele. - Olhou-os a todos por um instante. - Não é uma pena que duas pessoas que se amam possam chegar a odiar-se?

A conversa foi interrompida neste ponto pela empregada sul-americana, que entrou no terraço escoltando um homem.

O homem era alto, atraente, e elegantemente vestido num estilo cosmopolita: fato Armani, camisa Turnbull Asser, gravata Gucci e sapatos Bally. Murmurou imediatamente as suas desculpas:

- A sua empregada não me disse que estava ocupada, Miss Aquitane. Julgo que ficou assustada com o meu crachá. - Mostrou a carteira com o distintivo. - Vim só pedir algumas informações sobre o incidente de há dias. Posso esperar. Ou posso voltar noutra ocasião.

As palavras eram corteses, mas a sua expressão era ousada. Olhou para os outros dois homens e cumprimentou:

Skippy Deere parecia furioso.

- Não podes falar com ela sem a presença de um advogado - disse. - Sabes isso muito bem, Jim!

O detective estendeu a mão a Claudia e a Cross e apresentou-se:

- Jim Losey.

Ambos sabiam quem ele era. O mais famoso detective de Los Angeles, cujas proezas tinham servido de base a uma mini-série. Aparecera igualmente no cinema, em pequenos papéis, e fazia parte das listas de cartões e de presentes natalícios de Deere. Skippy sentiu-se, talvez por isso, encorajado a dizer:

- Jim, dá-me uma apitadela, mais tarde, e eu trato de arranjar-te um encontro como deve ser com Miss Aquitane.

Losey sorriu-lhe amavelmente e respondeu:

- Claro, Skippy.

Athena, no entanto, interveio:

- Posso não continuar cá por muito tempo - disse. - Por que não perguntar-me agora? Não me importo.

Losey pareceria um tipo suave se não fosse a expressão constantemente vigilante dos seus olhos, a sensação que o seu corpo transmitia de estar sempre alerta e que lhe ficara dos seus muitos anos de luta contra o crime.

A frente deles? - perguntou. O corpo de Athena já não estava em movimento, e ela tinha como que apagado todo o seu encanto quando respondeu tranquilamente:

Confio mais nestas pessoas do que na polícia.

Losey não pareceu irritado pela resposta. Já devia estar habituado.

Só queria perguntar-lhe por que razão retirou a queixa contra o seu marido. Ele ameaçou-a de alguma maneira?

Oh, não! - respondeu Athena, ironicamente. - Limitou-se a atirar-me água à cara diante de um bilião de pessoas e a gritar "ácido"! No dia seguinte estava na rua.

- disse Losey, erguendo os braços num gesto de defesa. - Só pensei que talvez pudesse ajudar.

- Jim, telefona-me mais tarde - voltou a pedir Deere.

Isto fez soar uma campainha de alarme na cabeça de Cross. Olhou pensativamente para Deere, evitando olhar para Losey. E Losey evitou olhar para ele.

- Assim farei - assentiu o detective. Viu então a bolsa de Athena em cima de uma cadeira e pegou-lhe. - Vi esta bolsa em Rodeo Drive - disse. - Dois mil dólares. - Olhou directamente para Athena e perguntou, com uma delicadeza carregada de desprezo:- Talvez possa explicar-me: o que é que leva uma pessoa a pagar tanto dinheiro por uma coisa destas?

O rosto de Athena ficou como de pedra. Afastou-se da balaustrada.

- Essa pergunta é insultuosa - disse. - Saia daqui.

Losey fez-lhe uma pequena vénia e retirou-se. Estava a sorrir. Tinha causado a impressão que pretendia.

Sempre és humana, ao fim e ao cabo! - exclamou Claudia. Tinha passado um braço pelos ombros de Athena. - Por que foi que ficaste tão furiosa?

Não estava furiosa - respondeu Athena. - Estava a transmitir-lhe uma mensagem.

Depois de saírem, os três visitantes dirigiram-se ao Nate and Al's em Beverly Hill. Deere insistira com Cross que aquele era o único lugar a oeste das Rochosas onde se podia encontrar pastrami [10] e carne salgada comestíveis, além de cachorros-quentes como os de Coney Island.

Enquanto comiam, Deere disse, pensativamente:

A Athena não vai voltar ao trabalho.

Isso sempre eu soube - concordou Claudia. - O que não com preendo é por que ficou tão furiosa com aquele detective.

Deere riu-se e voltou-se para Cross.

E tu, percebeste? -perguntou.

Não - respondeu Cross.

Uma das grandes lendas de Hollywood é a ideia de que qualquer pessoa pode ir para a cama com uma estrela. Ora bem, no que respeita às estrelas do sexo masculino, é verdade, e é por isso que há sempre montes de raparigas à volta dos locais de filmagem e perto do Beverly Wilshire Hotel. No que respeita às mulheres, já não é tanto assim... Um tipo que trabalhe em casa delas, um jardineiro, um carpinteiro, pode ter sorte, às vezes a elas dá-lhes para aí, sabe-se lá porquê, aconteceu-me a mim. Os duplos safam-se bastante bem, e outros tipos da equipa podem tirar a rifa premiada, de vez em quando. Mas isso é fornicar abaixo da linha, e é prejudicial para as carreiras delas. A menos, claro, que se trate de uma Super-Estrela. Nós, os velhadas, os manda-chuva, não gostamos disso. Raios, será que o dinheiro e o poder já não significam nada?- Sorriu-lhes. - Vejam o caso desse Jim Losey. E um tipo matulão, todo bem parecido. Mata-maus a sério, é irresistivelmente atraente para as pessoas que vivem no mundo do faz-de-conta. Ele sabe-o. E serve-se disso. Por isso não anda a cheirar as saias das estrelas, intimida-as. Foi por isso que disse aquela laracha. Na realidade, foi para isso que foi a casa da Athena. Foi uma desculpa para a conhecer e achou que podia tentar a sua sorte. Aquela pergunta insultuosa era uma declaração de que queria levá-la para a cama. A Athena mandou-o para o diabo.

Porquê, é assim uma espécie de Virgem Maria? - perguntou Cross.

Para estrela de cinema, sim - respondeu Deere. Cross mudou abruptamente de assunto:

Achas que ela está a querer dar uma golpada nos estúdios, a tentar conseguir mais dinheiro?

A Athena nunca faria uma coisa dessas! - protestou Claudia. - É absolutamente honesta.

Tem algumas contas que esteja a ajustar? - insistiu Cross.

Tu não compreendes este negócio - respondeu Deere. - Em primeiro lugar, os estúdios deixar-se-iam tranquilamente levar no golpe. As estrelas estão constantemente a fazê-lo. Em segundo lugar, se tem contas a ajustar, são as que toda a gente conhece. E um pouco chalada. - Fez uma curta pausa antes de continuar:- Detesta o Bantz e também não se pode dizer que seja louca por mim. Há anos que andamos ambos a ver se conseguimos levá-la para a cama, até agora sem resultado.

É uma pena não poderes ajudar - interveio Claudia, dirigindo-se a Cross. Mas ele não lhe respondeu.

Durante todo o percurso de Malibu até ali Cross viera a pensar furiosamente. Que aquela era a oportunidade de que estava à espera. Seria perigoso, mas, se conseguisse, poderia finalmente cortar os laços que o prendiam aos Clericuzio.

Skippy - disse -, tenho uma proposta para te fazer a ti e aos estúdios. Compro o filme tal como está. Dou-lhes o dinheiro que investiram, ponho o que falta para completar o filme e deixo os estúdios distribuírem-no.

Tens cem milhões de dólares? - perguntaram Skippy Deere e Claudia em uníssono, completamente estupefactos.

Conheço pessoas que têm - respondeu Cross.

Não vais conseguir convencer a Athena a voltar, e sem a Athena, não há filme - disse Deere.

Já disse que sou um grande persuasor. Consegues arranjar-me uma reunião com o Eli Marrion? Claro - respondeu Deere. - Mas só se eu continuar a ser o produtor do filme.

 A reunião não foi assim tão fácil de conseguir. A LoddStone Studios, ou seja, Eli Marrion e Bobby Bantz, tinham de ser convencidos de que Cross De Lena não era apenas mais um fala-barato e um aldrabão, de que tinha o dinheiro e as credenciais. Era, sem dúvida, proprietário de metade do Xanadu Hotel, mas não tinha bens financeiros pessoais registados que indicassem que podia levar para a frente o negócio que propunha. Deere estava disposto a responder por ele, mas o argumento definitivo foi quando Cross apresentou uma carta de crédito no valor de cinquenta milhões de dólares.

A conselho da irmã, Cross De Lena contratou Molly Flanders para funcionar como sua advogada naquele negócio.

Molly Flanders recebeu Cross no seu gabinete sombrio. Cross estava muito alerta, sabia certas coisas a respeito dela. No mundo em que vivera toda a sua vida, nunca encontrara uma mulher que detivesse qualquer espécie de poder, e Claudia dissera-lhe que Molly Flanders era uma das pessoas mais poderosas de Hollywood. Os directores de estúdios atendiam os seus telefonemas, agentes-monstros, como Melo Stuart, procuravam a sua ajuda para os negócios mais importantes. Estrelas como Athena Aquitane usavam-na nas suas querelas com os estúdios. Flanders suspendera uma vez a produção da mini-série com mais audiência de toda a TV só porque o cheque do seu cliente, que desempenhava o principal papel, se atrasara no correio.

Cross achou-a muito mais atraente do que esperara. Era uma mulher grande, mas bem proporcionada e muitíssimo bem vestida. Aquele corpo tinha, porém, a cara de uma bruxa loura, com um nariz aquilino, uma boca generosa e uns duros olhos castanhos, que pareciam permanentemente semi-cerrados numa expressão de intensa e inteligente combatividade. Usava o cabelo entrançado e enrolado à volta da cabeça.

Molly Flanders, a despeito de toda a sua dureza, era sensível a homens atraentes e gostou de Cross assim que o viu. Ficou surpreendida, pois esperara que o irmão de Claudia fosse mais rude. Mas mais do que a beleza, viu uma força que Claudia não possuía. Cross tinha o ar alerta de alguém para quem o mundo não contém surpresas. Tudo isto não bastou, no entanto, para a convencer de que queria aceitá-lo como cliente. Tinha ouvido rumores a respeito de certas ligações, não gostava do mundo de Las Vegas e tinha dúvidas quanto à determinação dele em levar até ao fim um jogo tão gigantesco.

- Mr. De Lena - disse Molly -, deixe-me deixar desde já uma coisa bem clara. Represento Athena Aquitane como advogada, não como agente. Expliquei-lhe as consequências que terá de sofrer se persistir na sua actual linha de conduta. E estou convencida de que persistirá. Ora bem, se fizer o seu negócio com os estúdios e a Athena continuar a recusar-se a voltar ao trabalho, representá-la-ei como advogada caso tente alguma acção legal contra ela.

Cross olhou intensamente para ela. Não dispunha de quaisquer referências que lhe permitissem perceber uma mulher como Molly Flanders. Tinha de pôr a maior parte das suas cartas na mesa.

Assinarei uma declaração prometendo não processar Miss Aquitane se comprar o filme - propôs. - E tenho aqui um cheque de duzentos mil dólares, se aceitar o meu caso. E apenas uma entrada. Poderá debitar-me mais.

Deixe ver se compreendi bem - disse Molly. - Está disposto a pagar aos estúdios cinquenta milhões de dólares. Já. Põe o dinheiro para acabar o filme, ou seja, no mínimo, mais cinquenta milhões. Aposta, portanto, cem milhões de dólares em como a Athena volta ao trabalho. Além disso, aposta em que o filme será um êxito. Pode ser um fracasso. E um risco monstruoso.

Cross sabia ser encantador, quando queria. Mas sentiu que o encanto não o ajudaria com aquela mulher.

Conforme julguei compreender, com as vendas para o estrangeiro e os direitos para vídeo e TV, o filme não pode perder dinheiro, mesmo que seja um fracasso - disse. - O único verdadeiro problema é convencer Miss Aquitane a voltar ao trabalho. E, nessa parte, talvez a senhora possa ajudar-me.

Não, não posso - respondeu Molly. - Não quero enganá-lo. Já tentei e não consegui. Toda a gente tentou e não conseguiu. E o Eli Mar-rion não brinca. Liquida o filme, suporta os prejuízos e em seguida tenta arruinar a Athena. Só que eu não vou deixar.

Cross ficou intrigado.

E como poderá impedi-lo?

O Marrion vai ter de alinhar comigo. é um homem esperto. Combatê-lo-ei nos tribunais, transformarei cada negócio que a LoddStone queira fazer num autêntico inferno. A Athena nunca mais voltará a trabalhar, mas não permitirei que a deixem sem nada.

Se aceitar representar-me, poderá salvar a carreira da sua cliente - afirmou Cross. Tirou um sobrescrito do bolso interior do casaco e entregou-lho.

Ela abriu-o, estudou-o, e então pegou no telefone e fez um par de telefonemas que lhe deram a certeza de que o cheque era bom. Olhou para Cross e sorriu-lhe.

Não estou a insultá-lo - disse. - Faço o mesmo aos maiores produtores de filmes desta cidade.

Como o Skippy Deere? -perguntou Cross, com uma pequena gargalhada. - Investi em seis dos filmes dele, quatro dos quais foram êxitos, e ainda não ganhei um centavo.

Porque não me tinha a representá-lo - declarou Molly. - Agora, antes que eu concorde, vai ter de dizer-me como tenciona convencer a Athena a voltar ao trabalho. - Fez uma pausa. - Ouvi certos rumores a seu respeito.

Como eu ouvi a seu respeito - replicou Cross. - Lembro-me de aqui há alguns anos, quando ainda era advogada criminal, ter safado um garoto qualquer de uma acusação de assassínio. Ele matou a namorada e a senhora alegou loucura momentânea. Menos de um ano mais tarde o patife andava de novo à solta. - Fez uma pausa, deixando deliberadamente transparecer a sua irritação. - Na altura não se preocupou com a fama dele.

Molly fitou-o friamente.

- Não respondeu à minha pergunta.

Cross decidiu que uma mentira devia ser acompanhada por um pouco de encanto.

-Molly... Posso chamar-lhe Molly? - Ela assentiu com a cabeça e Cross continuou: - Sabe que dirijo um hotel em Las Vegas. Uma coisa aprendi. O dinheiro é mágico, com dinheiro consegue-se vencer qualquer espécie de medo. Por isso vou oferecer à Athena cinquenta por cento de todo o dinheiro que ganhar com o filme. Se conduzir bem este negócio e tivermos sorte, isso pode significar trinta milhões para ela. - Interrompeu-se por alguns instantes e perguntou, veementemente:- Ora vamos, Molly, não estaria disposta a correr alguns riscos por trinta milhões?

Molly abanou a cabeça.

A Athena não se interessa verdadeiramente por dinheiro.

A única coisa que me espanta é porque é que os estúdios não lhe propõem o mesmo negócio.

Pela primeira vez naquela conversa, Molly sorriu-lhe.

- Bem se vê que não sabe como funcionam os estúdios - disse.

- Porque têm medo que todas as estrelas tentem o mesmo golpe, se abrirem o precedente. Mas continuemos. A LoddStone vai aceitar a sua proposta, penso, porque vão ganhar uma grande porção de dinheiro só com a distribuição do filme. Vão insistir nisso. Vão, também, exigir uma percentagem dos lucros. Mas volto a dizer-lhe, a Athena não aceitará a sua proposta.

- Fez uma pausa e acrescentou, com um pequeno sorriso de provocação: - Pensei que os donos de Las Vegas nunca jogassem.

Cross devolveu-lhe o sorriso. -" Toda a gente joga. Eu faço-o, quando as percentagens são favoráveis. E, além disso, estou a planear vender o hotel e entrar para o negócio do cinema. - Fez uma pausa e deixou-a perscrutá-lo, para que pudesse ver o seu desejo de fazer parte desse mundo. - Acho que é mais interessante.

Estou a ver - disse Molly. - Não se trata, então, de um capricho passageiro?

E um pé metido na porta - respondeu Cross. - Depois de conseguir isso, vou continuar a precisar da sua ajuda.

A frase fez Molly sorrir.

- Vou representá-lo - disse. - Mas quanto a fazermos outros negócios,  vejamos primeiro se perde estes cem milhões.

Pegou no telefone e falou durante algum tempo. Quando desligou, voltou-se para Cross:

- Temos a nossa reunião com os homens da direcção de negócios da LoddStone, para lhes expormos o assunto. E você tem três dias para reconsiderar.

Cross estava impressionado.

Foi rápido - disse.

Por eles, não por mim - respondeu Molly. - Cada dia que o filme está parado custa-lhes uma fortuna.

Bem sei que não preciso de dizer isto - disse Cross -, mas a oferta que tenciono fazer a Miss Aquitane é confidencial, é para ficar entre nós os dois.

Não, não precisava dizê-lo - replicou Molly.

Apertaram as mãos e, depois de Cross sair, Molly lembrou-se de uma coisa. Por que razão mencionara Cross De Lena aquele caso antigo em que livrara o rapaz, aquela sua famosa vitória? Porquê especificamente aquele caso? Tinha livrado da prisão montes de assassinos.

Três dias mais tarde, Cross De Lena e Molly Flanders encontraram-se no gabinete dela, antes de se dirigirem à LoddStone, para darem uma vista de olhos aos documentos financeiros que Cross levava para a reunião. Feito isto, foram no Mercedes 300 SL de Molly até aos estúdios.

Depois de terem passado o portão, Molly disse a Cross:

- Olhe bem para o parque de estacionamento. Dou-lhe um dólar por cada carro americano que lá encontrar.

Passaram por um mar de elegantes carros de todas as cores, Mercedes, Aston Martin, BMW, Rolls-Royce. Cross viu um Cadillac e apontou-o.

Algum desgraçado de um argumentista de Nova Iorque - comentou Molly, jocosamente.

A LoddStone Studios cobria uma área imensa pela qual estavam espalhados pequenos edifícios que alojavam companhias produtoras independentes. O edifício principal tinha apenas dez andares e parecia pertencer ao cenário de um filme antigo. A Studios conservara o ar dos anos 20, quando começara, fazendo apenas as reparações necessárias. Cross lembrou-se do Enclave do Bronx.

Os gabinetes no edifício da Administração eram pequenos e superlotados, excepto no décimo andar, onde Eli Marrion e Bobby Bantz tinham as suas suites de executivos. Entre as duas suites havia uma enorme sala de reuniões, com um bar e respectivo barman numa das extremidades, e uma minúscula cozinha contígua ao bar. Os assentos à volta da mesa de reuniões eram luxuosas cadeiras de braços forradas a vermelho. Cartazes emoldurados de filmes da LoddStone decoravam as paredes.

A espera deles estavam Eli Marrion, Bobby Bantz, Skippy Deere, o principal conselheiro jurídico da empresa e dois outros advogados. Molly entregou ao conselheiro jurídico a papelada financeira e os três advogados sentaram-se para a lerem em conjunto. O barman serviu a cada um a bebida que tinha escolhido e eclipsou-se. Skippy Deere fez as apresentações.

Eli Marrion, como sempre, insistiu com Cross para que o tratasse pelo primeiro nome. Depois contou-lhes uma das suas histórias favoritas, que muitas vezes usava para desarmar os adversários numa negociação. O avô tinha começado a empresa no começo dos anos 20. Quisera chamar à firma Lode Stone Studios [11] , mas conservava ainda um forte sotaque germânico que confundira os advogados. Era na altura uma empresa de dez mil dólares e, quando o erro fora descoberto, parecera não valer a pena corrigi-lo. Por isso havia agora uma empresa de sete biliões de dólares com um nome que não fazia sentido. Mas, tal como Marrion apontou - nunca dizia uma graça sem dela tirar uma conclusão séria - a palavra impressa não tinha importância. Era a imagem visual do magneto a atrair luz vinda de todos os pontos do universo que tornava tão forte o logo da empresa.

Molly apresentou então a proposta. Cross pagaria à LoddStone os cinquenta milhões já gastos, dar-lhes-ia os direitos de distribuição, conservaria Skippy Deere como produtor. Por outro lado, poria o dinheiro necessário para concluir o filme. Além disso, a LoddStone receberia cinco por cento dos lucros.

Todos eles escutaram atentamente. Bobby Bantz disse:

- A percentagem é ridícula, vamos querer mais. E como é que sabemos que vocês e a Athena não estão de conluio nesta história? Que isto não é uma golpada?

Cross ficou espantado pela reacção de Molly. Sem saber muito bem porquê, esperara que as negociações decorressem de uma forma mais civilizada do que aquilo a que estava habituado no mundo de Las Vegas.

Molly, no entanto, estava quase a gritar, com o seu rosto de bruxa flamejando de fúria.

Vá-se lixar, Bobby! Tem o estupor da lata de nos acusar de cons- piração? O vosso seguro não lhes dá cobertura neste caso, reúnem-se connosco para se safarem da alhada e aproveitam para nos insultar! Se não pede desculpa imediatamente, pego em Mr. De Lena e estamos daqui para fora antes que consiga dizer merda!

Molly, Bobby, então! - interveio Skippy Deere. - Estamos a tentar salvar um filme. Pelo menos, discutamos isto até ao fim...

Eli Marrion observara toda a cena com um pequeno sorriso, mas não dissera palavra. Só falaria para dar o sim ou o não.

- Penso que é uma pergunta razoável - insistiu Bobby Bantz. - O que é que este tipo pode oferecer à Athena para a convencer a voltar que nós não possamos?

Cross permaneceu sentado e em silêncio, a sorrir. Molly dissera-lhe que a deixasse responder sempre que possível.

- Mr. De Lena tem obviamente qualquer coisa de especial para oferecer - disse. - Porque haveria ele de lhes dizer o que é? Ofereçam-lhe dez milhões pela informação e eu aconselhá-lo-ei. Por dez milhões, seria barato.

Até Bobby Bantz riu ao ouvir esta.

Eles pensam que o Cross não arriscaria tanto dinheiro a menos que tivesse uma coisa segura - explicou Skippy Deere. - Isso deixa-os um pouco desconfiados.

Skippy - disse Molly -, já te vi pagar um milhão por romances que nunca transformaste em filme. Em que é que isto é diferente?

Porque o Skippy arranja sempre maneira de conseguir que sejam os estúdios a entrar com o milhão - interveio Bobby Bantz.

Todos riram. Cross começava a ter dúvidas a respeito daquela reunião. Estava a perder a paciência. Além disso, sabia que não devia dar a ideia de estar demasiado ansioso, de modo que não faria mal se mostrasse um pouco de irritação. Disse, numa voz baixa:

- Estou nisto por um palpite. Se é demasiado complicado, talvez seja melhor esquecer o assunto.

Estamos aqui a falar de uma grande porção de dinheiro - replicou Bantz, zangado. - Este filme pode render meio bilião a nível mundial.

Se conseguirem convencer a Athena a voltar ao trabalho - disparou-lhe Molly, instantaneamente. - Posso dizer-lhes que estive com ela esta manhã. Até já cortou o cabelo, para mostrar que está a sério.

Isso resolve-se com uma peruca. Raios partam as actrizes! - enfureceu-se Bantz. Estava agora a olhar fixamente para Cross, a tentar ler-lhe a expressão do rosto. Depois de pensar por uns instantes, perguntou: - Se a Athena não voltar e você perder os cinquenta milhões e não puder acabar o filme, quem fica com a metragem já feita?

Eu - respondeu Cross.

Aha! - exclamou Bantz. - Nesse caso distribui-o tal como está. Talvez soft-porno, não?

É uma possibilidade - disse Cross.

Molly voltou-se para ele e abanou a cabeça, a avisá-lo de que devia permanecer calado.

Se aceitarem a nossa proposta - disse, dirigindo-se a Bantz -, tudo, desde o estrangeiro, o vídeo, a TV e a participação nos lucros pode ser negociado. Só há uma condição inegociável. O negócio tem de permanecer secreto. Mr. De Lena deseja aparecer apenas como coprodutor.

Por mim não há problema - declarou Skippy Deere. - Mas, no que respeita a dinheiro, o acordo que fiz com os estúdios mantém-se.

Pela primeira vez, Marrion interveio.

- Isso é à parte - disse, significando não. - Cross, dá à sua advogada plenos poderes nesta negociação? - Sim.

Quero que isto fico bem claro - continuou Marrion. - Estávamos dispostos a liquidar o filme e suportar o prejuízo. Estamos convencidos de que a Athena não vai voltar. Não queremos dar-lhe a ideia de que ela poderá voltar. Se fizer este negócio e nos pagar cinquenta milhões, não poderemos ser considerados responsáveis. Terá de processar a Athena, e ela não tem esse tipo de dinheiro.

Nunca a processarei - declarou Cross. - Se isso acontecesse, perdoar-lhe-ia a dívida.

Não tem de responder perante os seus financiadores? espantou- se Bantz.

Cross encolheu os ombros.

- Isso é corrupção - disse Marrion. - Não pode consentir que a sua atitude pessoal traia os financiadores que confiam em si. Só porque são ricos.

- Nunca achei que fosse boa ideia trair pessoas ricas - replicou Cross, mantendo uma expressão muito séria.

- Isto é um truque qualquer! - exclamou Bantz, exasperado. Transformando o rosto numa máscara de benigna autoconfiança, Cross disse:

- Tenho passado toda a minha vida a convencer pessoas. No meu hotel, em Las Vegas, tenho de convencer homens muito espertos a arriscarem o seu dinheiro contra todas as probabilidades. E faço isso tornando-os felizes. Isso significa que lhes dou aquilo que eles verdadeiramente querem. Farei o mesmo com Miss Aquitane.

Bantz detestava toda aquela ideia. Tinha a certeza de que a LoddStone estava ser aldrabada. Disse, frontalmente:

Se descobrirmos que a Athena já tinha aceitado trabalhar consigo, processá-los-emos. Não respeitaremos este acordo.

Quero estar no negócio do cinema por muito tempo - respondeu Cross. - Quero trabalhar com a LoddStone Studios. Há dinheiro que chegue para todos.

Eli Marrion estivera a estudar Cross durante toda a reunião, tentando chegar a uma conclusão a respeito dele. O homem era muito discreto, não tinha nada de fala-barato ou de aldrabão profissional. A Pacific Ocean Security não conseguira estabelecer qualquer ligação entre ele e Athena, não era provável que se tratasse de uma conspiração. Havia que tomar uma decisão, mas não era na realidade uma decisão tão difícil como as pessoas presentes na sala queriam fazer parecer. Marrion estava agora tão cansado que sentia as roupas pesarem-lhe no corpo esquelético. Queria acabar com aquilo.

- Talvez a Athena tenha pirado, talvez esteja pura e simplesmente louca - disse Skippy Deere. - Nesse caso, podemos safar-nos com o seguro.

- Está mais sã de espírito do que qualquer dos presentes nesta sala - declarou Molly Flanders. - Mais depressa alguém vos dá a vocês todos como loucos do que a ela.

Bobby Bantz olhou directamente para a cara de Cross.

Está disposto a assinar uma declaração em como não existe, neste momento, qualquer acordo entre si e a Athena?

Sim - respondeu Cross, deixando transparecer toda a antipatia que Bantz lhe inspirava.

Marrion, ao observar isto, sentiu-se satisfeito. Pelo menos essa parte da reunião estava a correr conforme o previsto. Bantz estava agora definitivamente confirmado como o mau da fita. Era espantoso como as pessoas o detestavam quase por instinto, e a culpa não era verdadeiramente dele. Era apenas o papel que lhe fora distribuído, embora tivesse de reconhecer que lhe assentava como uma luva.

Queremos vinte por cento dos lucros do filme - declarou Bantz. - Distribuímos no país e no estrangeiro. E seremos sócios em qualquer sequela.

Bobby - exclamou Deere, desesperado -, no fim do filme estão todos mortos, não pode haver sequelas!

Ok - respondeu Bantz. - Direitos sobre qualquer prequela.

Prequelas, sequelas, tretas! - interveio Molly Flanders. - Podem ficar com elas. Mas não recebem mais do que dez por cento dos lucros. Vão ganhar uma fortuna com a distribuição. E não correm qualquer risco. E pegar ou largar.

Eli Marrion já não conseguia aguentar mais. Levantou-se, pôs-se muito direito, e disse, num tom de voz comedido:

- Doze por cento. Negócio fechado. - Fez uma pausa e então, olhando directamente para Cross, acrescentou: - Não é tanto pelo dinheiro. Mas este pode ser um grande filme, e não gostaria de ter de deitá-lo para o lixo. Além disso, estou cheio de curiosidade de ver o que acontece. - Voltou-se para Molly. - Então, sim ou não?

Molly Flanders, sem olhar sequer para Cross à espera de um sinal, respondeu:

- Sim.

Mais tarde, Eli Marrion e Bobby Bantz sentaram-se sozinhos na sala de reuniões. Estavam ambos calados. Tinham aprendido ao longo dos anos que há coisas que não devem ser ditas em voz alta. Finalmente, Marrion disse:

Há aqui uma questão moral.

Assinámos o compromisso de manter o negócio secreto, Eli - respondeu Bobby Bantz. - Mas, se achas que devemos, posso fazer um telefonema.

Marrion suspirou.

Perdíamos o filme. Este Cross é a nossa única esperança. Além disso, se ele viesse a saber que a fuga partira de ti, podia haver algum perigo.

Seja ele o que for, não se atreverá a tocar na LoddStone - declarou Bantz. - O que me preocupa é deixá-lo meter o pé na porta.

Marrion bebericou do copo que tinha na mão e acendeu um charuto, sentindo como o fumo seco e com um leve cheiro a madeira lhe provocava um formigueiro no corpo.

Eli Marrion estava agora verdadeiramente cansado. Estava demasiado velho para se preocupar com eventuais futuros desastres a longo prazo. O grande desastre universal estava muito mais próximo.

- Não faças nenhum telefonema - disse -. Temos de respeitar o acordo. Além disso, pode ser que esteja a entrar na segunda meninice, mas quero ver o que é que o mágico tira do chapéu.

Skippy Deere, depois da reunião, foi para casa, pegou no telefone e convocou Jim Losey para um encontro. Durante esse encontro, obrigou Jim a jurar segredo e contou-lhe tudo o que se passara.

- Acho que devias mandar vigiar o Cross - disse. - Talvez descubras alguma coisa interessante.

Só lhe disse isto, porém, depois de ter convencido Jim Losey a assinar um contrato para desempenhar um pequeno papel numa nova mini-série a respeito dos assassinos psicopatas de Santa Monica.

Quanto a Cross De Lena, regressou a Las Vegas e, na suite do terraço do Xanadu, ponderou o novo rumo que a sua vida tomava. Por que razão decidira correr o risco? A mais importante era que os ganhos podiam ser enormes: não apenas o dinheiro, mas uma nova forma de vida. O que ele questionava, no entanto, era o motivo subjacente, a visão de Athena Aquitane emoldurada pelo verde-azulado do mar, o seu corpo em constante movimento, a ideia de que um dia ela poderia vir a conhecê-lo e a amá-lo, não para sempre, mas apenas por um momento. Que costumava Gronevelt dizer? "As mulheres nunca são tão perigosas para um homem como depois de terem sido salvas. Tem cuidado. Foge das donzelas em perigo!"

Afastou tudo isto do espírito. Contemplando do alto a Strip de Las Vegas, a parede de luzes coloridas, as multidões que se moviam no meio dessa luz, formigas carregando fardos de dinheiro que iam enterrar nalgum grande ninho, analisou, pela primeira vez, todo o problema de uma forma fria e neutral.

Se Athena Aquitane era assim tão angelical, como era então que exigia, de facto se não por palavras, como preço para voltar ao trabalho que alguém lhe matasse o marido? Com certeza toda a gente devia ter compreendido isso. A oferta da LoddStone de a proteger enquanto completasse o filme era desvalorizada pelo facto de, nesse caso, ela estar a trabalhar para a sua própria morte. Uma vez terminadas as filmagens e mal ela ficasse sozinha, Boz Skannet apanhá-la-ia.

Eli Marrion, Bobby Bantz, Skippy Deere, todos eles sabiam qual era o problema e conheciam a resposta. Mas nenhum se atreveria a dizê-la em voz alta. Para pessoas como eles, o risco era demasiado grande. Tinham subido tão alto, viviam tão bem, que tinham demasiado a perder. Para eles, o risco não compensava o ganho. Podiam aceitar os prejuízos do filme, para eles era apenas um pequeno contratempo. O que não podiam aceitar era a queda do mais alto nível da sociedade para o mais baixo. Esse risco era mortal.

Além disso, era obrigado a reconhecê-lo, tinham tomado uma decisão inteligente. Não eram peritos naquela área, estavam sujeitos a cometer erros. Mais valia tratar os cinquenta milhões de dólares como uma quebra de alguns pontos nas suas acções em Wall Street.

Havia agora, portanto, dois problemas principais. Primeiro, a execução de Boz Skannet, de tal maneira que não pudesse prejudicar fosse como fosse o filme ou Athena. O problema número dois, e muito mais complicado, era conseguir a aprovação do pai, Pippi De Lena, e da Família Clericuzio. Porque Cross sabia que nada daquilo permaneceria em segredo por muito tempo.



 

[1] Jogo equivalente à pétanque dos Franceses, e de algum modo semelhante à nossa malha, com a diferença de ser jogado com bolas. O objectivo de cada jogador é acertar com a sua bola na bola-alvo, ou afastar a bola de um adversário que esteja muito perto de o conseguir.

[2] Sempre que aqui se fala de futebol, trata-se, naturalmente, do futebol americano, que é, como se sabe, uma versão mais violenta, mais vistosa e infinitamente mais "rica" do austero e viril râguebi.

[3] White Anglo-Saxon Protestant: Branca, anglo-saxónica e protestante, ou seja, o grupo sócio-económico-cultural dominante nos E.U.A.

[4] Em francês no original. A expressão, que se traduz por "idiota sábio", refere, como o leití certamente sabe, alguém que, sendo totalmente idiota em todos os aspectos, revela capacidades excepcionais numa única área ou actividade.

[5] Drive, bunker e putter são, naturalmente, termos relacionados com a nobre do golfe. Para os leitores menos familiarizados com a linguagem do jogo, aqui fica uma explicação, respigada do dicionário: drive é uma tacada comprida, bunker uma depressão de areia que serve de obstáculo (o lago é exactamente um lago e tem a mesma função) e putter é o taco que se utiliza para enviar directamente a bola para o buraco.

[6] É a Super-Taça do futebol americano, que opõe os vencedores de duas Ligas diferentes, os profissionais e os universitários.

[7] Campeonato de baseball em que, atribuindo embora o título de "campeão mundial", participam apenas equipas americanas.

[8] Grupo de universidades americanas, entre as quais se conta Harvard, consideradas as melhores e mais prestigiosas do Leste dos Estados Unidos.

[9] Espécie de massa que se corta diagonalmente nas extremidades para lhe dar a forma de um bico de pena.

[10] Carne fumada e fortemente condimentada, uma especialidade culinária de origem húngara

[11] Lode stone, ou loadstone, significa íman. LoddStone, a cortuptela resultante, é apenas um nome, não significa coisa alguma.

 

                                                                                            CONTINUA

 

 

                      

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