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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ULTIMO ENCANTAMENTO / Mary Stewart
O ULTIMO ENCANTAMENTO / Mary Stewart

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O ULTIMO ENCANTAMENTO

Primeira Parte

 

                         Livro I Dunpeldyr

Nenhum rei gostaria de começar seu reinado com um massacre de inocentes, mas é o que falam de Artur, apesar de ele ser res­peitado como um nobre soberano, protetor dos grandes e dos pequenos.

E mais difícil acabar com um boato do que pôr fim a uma calúnia proferida em altos brados. Além disso, na mente dos homens simples, que consideravam o Grande Rei o proprietário de suas vidas, ele não poderia ser responsabilizado por tudo o que acontecesse em seus domínios, tanto pelas coisas boas quanto pelas ruins, desde uma formidável vitória no campo de batalha até uma violenta tempestade ou perda de um rebanho.

Assim, apesar de uma bruxa ter tramado o massacre e outro rei ter dado a ordem para que fosse iniciado, e apesar de eu ter tentado de tudo para assumir a culpa, a dúvida persiste. Falam que, no primeiro ano de seu reinado, Artur, o Grande Rei, man­dou suas tropas procurarem e matarem todos os recém-nascidos, na esperança de pegar nessa rede sangrenta um único menino, o filho bastardo do rei com sua meia irmã Morgause.

"Calúnia", clamei, e seria bom poder dizer abertamente que estavam espalhando uma mentira. Só que não era bem assim. E mentira que Artur tenha dado a ordem para o massacre, mas sem dúvida seu pecado foi a principal causa do acontecido. E, apesar de uma matança de inocentes ser algo que jamais passaria por sua cabeça, é verdade que desejava a morte do próprio filho. Portanto, é justo que alguma parte da culpa recaia sobre ele, mas é igualmente justo que um pouco incida sobre mim, porque eu, Merlin, considerado um homem de visão e poder, esperei tran­qüilamente enquanto a perigosa criança era gerada. Posso supor­tar a culpa, porque atualmente considero-me além do julgamento dos homens, mas Artur ainda é jovem bastante para sentir o ferrão do boato e ser perseguido pelo remorso. E mais: quando tudo aconteceu ele era ainda mais jovem e estava envolvido na maré estonteante da vitória, do amor do povo, da aclamação dos soldados e do clima de mistério que cercou a retirada da espada de seu leito de pedra.

Contarei o que aconteceu. O rei Uther Pendragon estava à frente de seu exército em Luguvallium, capital do reino de Rheged, no norte, quando se viu diante de um grande ataque saxão comandado pelos irmãos Colgrim e Badulf, netos de Hengist. O jovem Artur, então pouco mais do que um menino, fora trazido ao seu primeiro campo de batalha pelo pai adotivo, o conde Ector de Galava, que o apresentara ao rei. Artur ignorava seu paren­tesco real, e Uther, apesar de ter-se mantido informado sobre o crescimento e educação do rapazinho, jamais o vira pessoalmente depois do nascimento. Isso porque, durante a louca noite de amor entre Uther e Ygraine, na época esposa de Gorlois, duque da Cornualha e o mais fiel comandante do rei, este tombara no cam­po de batalha. Apesar de Uther não ter sido o culpado pelo acon­tecido, ele sentira um tal peso no coração que jurara nunca re­conhecer como sua a criança que pudesse resultar daquele amor culpado. Quando chegou o momento, Artur foi entregue a mim para que o criasse, o que fiz, levando-o para longe do rei e da rainha. Todavia, eles não tiveram outro filho e finalmente o rei Uther, já enfermo e ciente do perigo que corria diante dos saxões em Luguvallium, viu-se obrigado a chamar o rapaz para reconhe­cê-lo publicamente como seu herdeiro e apresentá-lo aos nobres e reis menores.

Antes, porém, que pudesse realizar o que tencionava, os saxões atacaram. Uther, embora doente demais para liderar as tropas, foi levado ao campo de batalha numa liteira, tendo Cador, duque da Cornualha, no comando da ala direita, o rei Coei de Rheged à frente da ala esquerda, e Caw de Strathclyde e outros chefes nortistas liderando o resto dos soldados. Apenas Lot, rei de Lothian e Orkney, não se apresentou para a luta. Lot, um rei poderoso mas aliado duvidoso, manteve seus homens na reserva, alegando que os colocaria na batalha quando fosse necessário. Dizem que ele ficou na retaguarda na esperança de ver a derrota do exército de Uther, quando então reivindicaria o trono. Se foi verdade, suas esperanças deram em nada. Quando, no furor do combate em torno da liteira do rei, a espada do jovem Artur quebrou em sua mão, Uther atirou para ele a sua própria, com ela entregando, como todos entenderam, a liderança do reino. Depois disso, vol­tou a recostar-se na liteira e ficou observando o rapaz, que parecia resplandecer como um cometa em seu entusiasmo, tomar a frente de um ataque que pôs os saxões para correr.

Posteriormente, durante a festa da vitória, Lot chefiou uma facção de governantes rebeldes que se opôs ao gesto de Uther, desafiando sua escolha de sucessor. Mas, no auge das comemo­rações, o rei morreu, deixando Artur para enfrentar sozinho as contestações.

O que aconteceu então tornou-se a base para inúmeras canções e lendas. No momento, é bastante dizer que, por seu porte real e mediante o sinal enviado pelo deus, Artur mostrou ser o rei incontestável.

Mas a essa altura a semente do mal já fora lançada. No dia anterior, quando ainda não tinha conhecimento de sua ascen­dência real, Artur ficara conhecendo Morgause, a filha bastarda de Uther, e portanto sua meia irmã. Ela era linda e ele muito jovem, e estava inflamado pela sua primeira vitória, de modo que ao ser informado por uma dama de companhia que ela o convidava para uma visita a seu quarto, aceitou ansiosamente, sem a menor idéia de que o prazer daquela noite poderia resultar em mais do que o resfriamento de seu sangue e perda de sua virgindade.

A dela, com certeza, já fora perdida muito tempo antes. Tam­bém não podia ser considerada ingênua em outras coisas. Mor­gause sabia quem era Artur e pecou com ele de propósito, visando o poder. Um casamento, é claro, estava fora de questão, mas um bastardo nascido de um incesto talvez fosse uma arma poderosa em sua mão quando o velho rei, seu pai, morresse e Artur subisse ao trono.

Quando o rapaz descobriu o que fizera, esteve a ponto de aumentar seus pecados matando a meia irmã, mas eu intervim imediatamente. Bani Morgause da corte, obrigando-a a partir para York, onde a filha legítima de Uther, Morgan, estava alojada com seu séquito, esperando a hora do casamento com o rei de Lothian. Morgause, que como todos naquela época sentia um grande medo de mim, obedeceu-me sem discussão e partiu para criar seu bas­tardo no exílio. O que fez, como se verá, à custa da irmã, Morgan.

Todavia, falarei sobre isso mais tarde. Por enquanto será me­lhor voltar ao momento quando, na manhã de um novo e aus­picioso dia, já esquecido de Morgause, Artur Pendragon sentou-se sob o sol forte que banhava a cidade de Luguvallium de Rheged para receber as homenagens de seus súditos e aliados.

Eu não me encontrava lá porque já apresentara minha pro­messa de lealdade de madrugada, no santuário da floresta onde Artur erguera a espada de Maximus do altar de pedra, com esse ato declarando-se o verdadeiro rei. Quando ele e os outros prín­cipes e nobres partiram envoltos na pompa e esplendor do triunfo, fiquei ali sozinho, porque tinha uma dívida a saldar com os deu­ses do lugar.

Atualmente o chamam de capela — a Capela Perigosa, como fora batizada pelo próprio Artur —, mas já era um lugar sagrado muito antes de os homens terem assentado pedra sobre pedra para construir o altar. Fora sagrado primeiro para os deuses da terra, os pequenos espíritos que vagam pelos morros, rios e flo­restas, e para os deuses do ar, mais importantes, cujo poder se expressa através das nuvens, geadas e ventos uivantes. Ninguém sabia dizer para quem a primeira capela fora construída. Mais tarde, com a chegada dos romanos, viera Mitra, o deus dos sol­dados, e fora erigido um novo altar para ele. O lugar mantinha-se envolto na antiga santidade. Os velhos deuses continuavam re­cebendo seus sacrifícios e as nove candeias permaneciam acesas junto à porta de entrada.

Durante todos os anos em que Artur ficou na floresta Selva­gem, vivendo sob a proteção do conde Ector para o bem de sua própria segurança, mantive-me perto dele, sendo conhecido ape­nas como o guardião do santuário, o eremita da Capela Verde. Ali eu finalmente acabara escondendo a grande espada de Maximus (a quem os galeses chamam de Macsen), até o garoto cres­cer o suficiente para erguê-la e com ela expulsar e destruir os inimigos do reino. O próprio imperador fizera isso cem anos antes e os homens agora pensavam na espada como um talismã, uma arma mágica enviada pelos deuses, para ser empunhada somente na vitória e apenas pelo homem que tinha o direito de usá-la. Eu, Merlinus Ambrosius, parente de Macsen, havia reti­rado a espada de seu esconderijo subterrâneo, desde muito es­quecido, e a separado para alguém que um dia seria maior do que eu. De início coloquei-a numa caverna no fundo do lago da floresta e posteriormente no altar da capela, presa na pedra como se ali estivesse entalhada, e oculta à visão e toque comuns pelo fogo frio e branco que com minha arte chamei dos céus.

Desse fulgor sobrenatural, para espanto e terror de todos os presentes, Artur tirara a espada. Mais tarde, tendo o rei e seus nobres partido, pôde ser visto que o fogo do novo deus limpara o lugar de tudo o que antes era considerado sagrado, deixando apenas o altar para ser enfeitado unicamente em seu louvor.

Eu desde muito tempo sabia que esse deus não aceitava com­panheiros. Ele não era meu deus e eu desconfiava que nunca seria o de Artur, mas por todos os cantos da Bretanha ele estava se movimentando, esvaziando antigos santuários e mudando o estilo da adoração. Eu já vira com espanto e desgosto como seu fogo tinha varrido os sinais de uma espécie mais antiga de san­tidade e agora compreendia que ele pusera sua marca na Capela Perigosa — e talvez na própria espada.

Portanto, durante o resto do dia trabalhei para deixar o san­tuário limpo e pronto para seu novo inquilino. Levou muito tem­po. Eu ainda sentia as dores de ferimentos recentes e estava rígido devido a uma noite inteira de vigília, mas há coisas que precisam ser executados de maneira ordenada e respeitosa. Assim, final­mente terminei e, quando um pouco antes do crepúsculo o servo do santuário voltou da cidade, peguei o cavalo que ele trouxera e saí cavalgando no silêncio da floresta.

 

Apesar de ser bem tarde quando cheguei aos portões, encon­trei-os abertos e ninguém me impediu de entrar. As comemora­ções continuavam; fogueiras iluminavam o céu, o ar pulsava com as cantorias e no meio da fumaceira podia-se sentir o cheiro de carne assada e de vinho forte. Mesmo a presença do cadáver do rei, deitado na capela do mosteiro sob a guarda de seus soldados, não fora capaz de colocar rédeas nas línguas dos homens. Eram acontecimentos demais para uma cidade tão pequena; apenas os muito velhos e os muitos novos conseguiram dormir naquela noite.

Eu também não pude pregar os olhos. Já passava bem da meia-noite quando meu criado entrou, seguido de Ralf.

Ele abaixou a cabeça para não se chocar com o batente — era um rapaz muito alto — e esperou a porta ser fechada com um olhar bem mais cauteloso do que os muitos que já me lançara no passado, quando era meu pajem e temia os meus poderes.

— Ainda acordado?

— Como você pode ver.

Eu estava sentado na cadeira de espaldar alto ao lado da janela. O criado providenciara um braseiro para me proteger do frio da noite de setembro. Eu me banhara, cuidara de meus ferimentos e vestira um camisolão bem solto antes de dispensar o criado e me ajeitar para um bom descanso. Depois do clímax de fogo, dor e glória que elevara Artur à condição de rei, eu, que vivera praticamente toda a minha vida com a intenção de atingir esse objetivo, sentia necessidade de silencio e isolamento. O sono re­cusava-se a chegar, mas fiquei ali sentado, satisfeito e passivo, com os olhos fixos no brilho suave do braseiro.

Ralf, ainda armado e engalanado como eu o vira pela manhã na capela, parecia cansado e abatido, mas era jovem e o auge da noite era para ele um recomeço e não um fim.

— Você devia estar deitado — disse abruptamente. — Soube que ontem à noite foi atacado a caminho da capela. Ficou muito ferido?

— Não foi nada grave, mas os ferimentos doem bastante! Não precisa se preocupar, são mais arranhões do que cortes, e já cuidei deles. Mas receio que o cavalo que me emprestou tenha ficado manco. Lamento por isso.

— Já o vi. Também não foi muito atingido. Vai ficar bom em uma semana, no máximo. Mas você parece exausto, Merlin. De­viam... deviam deixá-lo descansar.

— E não vão deixar? — Quando o vi hesitar, ergui uma so­brancelha. — Vamos, fale logo. O que não está querendo me dizer?

O olhar cauteloso se transformou numa leve careta. Mas a voz, subitamente formal, saiu sem expressão, como a dos pala­cianos que, como se costuma dizer, nunca sabem para que lado correrá o veado.

— Príncipe Merlin, o rei me pediu para chamá-lo aos seus aposentos. Quer vê-lo assim que seja conveniente para o senhor. — Enquanto falava, Ralf olhava para uma porta na parede oposta à da janela. Até a noite anterior, Artur dormira nesse anexo de meu quarto e entrara e saíra atendendo a ordens minhas. Nossos olhares se encontraram e ele sorriu.— Em outras palavras, agora mesmo. Sinto muito, Merlin, mas essa foi a ordem que recebi pelo camareiro-mor. Eles podiam ter esperado até a manhã. Pen­sei que você já estivesse dormindo.

— Está com pena de mim? Por quê? Afinal, os reis têm de começar seu reinado em algum lugar. E ele, já descansou um pouco?

— Que nada! Mas finalmente se livrou daquele pessoal e, en­quanto estávamos no santuário, os criados arrumaram os apo­sentos reais. Ele está lá agora.

— Acompanhado?

— Só por Bedwyr.

Isso, eu sabia, significava a presença do amigo e mais um pequeno exército de camareiros e criados, e talvez alguns cortesãos esperando nas antecâmaras.

— Então peça para ele me desculpar pelo atraso de alguns minutos. Estarei lá assim que me vestir. Quer pedir a Lleu para vir me ajudar?

Meu pedido, contudo, foi terminantemente recusado. O criado foi incumbido de levar minha resposta enquanto Ralf, com a mes­ma naturalidade do passado, quando era apenas um menino, ajudou-me a me vestir. Pegou o camisolão de minhas mãos, do­brou-o e com todo o cuidado, respeitando meus membros enri­jecidos, me acomodou dentro de um traje para o dia, e depois ajoelhou-se para me calçar as sandálias e prender as fivelas.

— Foi tudo bem durante o dia? — perguntei.

— Muito bem. Nenhuma sombra para empaná-lo.

— E Lot de Lothian?

— Manteve-se no devido lugar. — Ralf sorriu, com um ar maldoso. — O que ocorreu na capela o impressionou... como a nós todos. — A última frase saiu num resmungo, enquanto ele se abaixava para prender melhor a sandália.

— E a mim também, Ralf. Não sou imune ao fogo do deus. E como esta' Artur?

— Ainda caminhando nas nuvens. — Dessa vez a careta foi de afeição. Ralf levantou-se. — Mas do mesmo jeito. Penso que já está à procura de mais tempestades. E agora vamos ao cinturão. Pode ser este?

— Está bem. Obrigado. Tempestades? Tão cedo? — Tirei o cinturão das mãos de Ralf e prendi-o sozinho. — Você pretende ficar ao lado dele para ajudá-lo a enfrentá-las, ou dá como en­cerrado seu dever?

Ralf passara os últimos nove anos em Galava de Rheged, o distante canto do país onde Artur vivera como protegido do con­de Ector. Casara-se com uma jovem da região e agora tinha filhos pequenos.

— Para dizer a verdade, ainda não pensei nisso. Tudo acon­teceu depressa demais. — Ele riu. — Mas de uma coisa tenho certeza: se ficar com ele terei saudade dos dias cheios de paz, quando eu não tinha nada mais a fazer que ficar de olho nos dois diabi... isto é, em Bedwyr e no rei! E você? Pretende continuar aqui como o eremita da Capela Verde? Sairá de seu isolamento para ir com ele?

— Sou obrigado. Dei minha palavra. Além disso, esse é o meu lugar, que também poderá ser o seu, se quiser. Nós dois fizemos dele um rei e esse é o fim da primeira parte da história. Você, diferente de mim, tem o privilégio da escolha e terá bastante tempo para se decidir. — Fiz uma pausa antes de continuar, enquanto ele abria a porta para mim e afastava-se para me deixar passar primeiro. — Nós despertamos um vento muito forte, Ralf. Vejamos agora para onde ele nos arrastará.

— E você o deixaria à vontade para isso?

— Minha mente sempre eloqüente me diz que talvez seja ne­cessário eu interferir. — Ri. — Mas, vamos, comecemos obede­cendo as ordens dele.

Algumas pessoas ainda permaneciam na antecâmara principal, mas eram na maioria criados, tirando a louça e limpando a mesa dos restos de uma refeição que aparentemente o rei acabara de fazer. Dois homens guardavam a porta dos aposentos particula­res. Em um banco encostado perto de uma janela um pajem dor­mia a sono solto. Lembrei-me de tê-lo visto quando eu estivera nessa ala do castelo, três dias antes, para conversar com Uther, já moribundo. Notei a ausência de Ulfin, o criado pessoal do velho rei e camareiro-mor. Pude adivinhar onde se encontrava. Ele serviria ao novo rei com a mesma devoção que dedicara a Uther, mas nessa noite seria encontrado na capela do mosteiro, junto de seu falecido amo. O homem que abriu a porta de Artur era um estranho para mim, como metade dos criados que tra­balhavam nessa ala. Eram homens e mulheres que normalmente serviam ao rei de Rheged quando ele ocupava o castelo, mas que agora trabalhavam ao lado dos nossos devido ao aumento de serviço causado pela ocasião e pela presença do Grande Rei.

De qualquer maneira, todos me conheciam. Quando entrei na antecâmara fez-se um súbito silêncio e todos os movimentos ces­saram de repente, como se tivesse sido lançado um encantamento. Um criado que carregava algumas travessas pareceu se petrificar no meio de seu caminho, como se tivesse se defrontado com a terrível Medusa. Todos os rostos voltados para mim se imobili­zaram de igual maneira, pálidos e boquiabertos, cheios de medo. Surpreendi o olhar de Ralf sobre mim, irônico e afetuoso, como se dissesse: "Está vendo só?". Então compreendi melhor sua pró­pria hesitação quando viera me procurar com o recado do rei. Como meu criado e companheiro ele se mantivera bem próximo de mim no passado e, muitas vezes, durante as profecias e aquilo que os homens chamam de mágica, observara e sentira meu poder em ação. Contudo, o poder que soprara e queimara dentro da Capela Perigosa na noite anterior fora de um tipo muito diferente. Mesmo assim, eu adivinhava as histórias que corriam por toda Luguvallium, rápidas e mutáveis como o próprio fogo do deus. Com toda a certeza, a gente mais humilde não falara de outro assunto durante o dia inteiro e, como acontece com todos os casos estranhos, a lenda cresceria ao ser disseminada.

Os criados continuaram me olhando com um espanto que chegava a congelar o ar, como faz o vento frio que antecede a chegada de um fantasma, mas eu já estava habituado. Passei por eles dirigindo-me à porta dos aposentos do rei e os guardas deram um passo para o lado sem nenhuma menção de tentar impedir minha entrada. Antes de o camareiro tocar a porta, esta se abriu e Bedwyr saiu.

Bedwyr, um rapaz moreno, calado, dois ou três meses mais novo que Artur, era filho de Ban, rei de Benoic e primo de um rei da Bretanha. Os dois rapazes eram amigos íntimos desde a infância, quando Bedwyr fora mandado a Galava para aprender as artes da guerra com o mestre-de-armas de Ector e participar das aulas que eu ministrava a "Emrys" (como Artur era chamado naquela época) no santuário da floresta. Na ocasião ele já dava mostras dessa estranha contradição, um guerreiro nato que tam­bém é poeta, à vontade tanto na ação como nos saraus dos cas­telos. Um puro celta, poder-se-ia dizer, enquanto Artur, assim como meu pai, o Grande Rei Ambrosius, era todo romano. Eu até esperava ver no rosto de Bedwyr o mesmo temor causado pelos eventos da noite milagrosa que vira nas outras pessoas, mas percebi nele apenas o resultado do júbilo, uma franca feli­cidade e uma total confiança no futuro.

Sorridente, Bedwyr afastou-se para me deixar passar.

— Ele está sozinho agora.

— Onde você vai dormir?

— Meu pai me alojou na torre ocidental.

— Então, boa noite, Bedwyr.

Mas, quando eu ia passar, ele me impediu. Inclinou-se rapi­damente, pegou minha mão e beijou-a.

— Eu devia ter imaginado que você tomaria as providências para tudo dar certo. Cheguei a sentir medo por alguns instantes quando Lot e seu bando de chacais começaram aquela confusão traiçoeira...

— Psiu! — repreendi-o. Ele falara baixinho, mas ali as paredes tinham ouvidos. — Por enquanto está tudo acabado. Esqueça. E vá direto encontrar-se com seu pai na torre ocidental, entendeu?

— Pelo que me disseram — seus olhos escuros brilhavam —, o rei Lot vai ocupar a torre oriental.

— Exatamente.

— Não se preocupe, Emrys já tinha me alertado. Boa noite, Merlin.

— Boa noite e um sono pacífico para todos nós. Bem que precisamos dele.

O rapaz sorriu, esboçou uma meia continência e saiu. Virei-me para o criado que segurava a porta e entrei. Ouvi-a se fechando atrás de mim.

Os apetrechos da doença haviam sido retirados do aposento, juntamente com a colcha vermelha que antes cobria o leito real. O piso fora lavado e polido e a grande cama era agora forrada por lençóis novos e uma coberta feita de peles de lobo. A poltrona forrada de vermelho, com o leão gravado no espaldar, continuava no mesmo lugar, tendo à frente sua banqueta e ao lado o tripé de ferro com o lampião para leitura. As janelas abertas deixavam entrar o ar frio da noite de setembro e o vento inclinava as chamas das velas para os lados, desenhando estranhas sombras nas pa­redes coloridas.

Artur estava sozinho perto de uma janela, um joelho apoiado numa banqueta e os cotovelos no peitoril. Durante o dia, dali se avistava a faixa de vegetação que beirava o rio. Ele, contudo, olhava para a escuridão e deu-me a impressão de que sorvia grandes goles de um outro rio, este feito de ar puro e movente. Trazia os cabelos úmidos, como se tivesse acabado de se banhar, mas continuava com as mesmas roupas que usara para as ceri­mônias, em branco e prata, com um cinturão galés de ouro cravejado de turquesas e fivela de esmalte. Tirara apenas o talim de couro e agora a grande espada Caliburn, dentro de sua bainha, pendia de um gancho situado atrás da cama. A luz dos lampiões fazia cintilar as pedras preciosas que ornamentavam o punho: esmeralda, topázio, safira, e também refulgia no anel no dedo do rapaz. O anel de Uther, onde estava gravado um dragão.

Ele ouviu-me e virou-se para mim. Parecia leve e rarefeito, como se o vento do dia houvesse soprado através dele, deixan­do-o sem peso. A pele apresentava a palidez da exaustão, mas os olhos continuavam brilhantes e vivos. Em torno dele, já pre­sente e inegável, formara-se a aura de mistério que cai como um manto sobre um rei. Ela envolvia sua cabeça, seus ombros. Nunca mais "Emrys" seria capaz de se esconder nas sombras. Isso me fez pensar como havíamos conseguido mantê-lo seguro e secreto entre homens menores.

— Você queria falar comigo — declarei.

— Quis o dia todo. Você prometeu ficar ao meu lado enquanto eu passasse por todo esse negócio de virar rei. Onde esteve o tempo todo?

— Bem perto. Fiquei no santuário... na capela... quase até o pôr-do-sol. Achei que você estaria muito ocupado para notar mi­nha ausência.

Artur deu uma risadinha.

— Ocupado? Só isso? Para mim, foi como se estivesse sendo comido vivo, ou melhor, como se estivesse nascendo de novo... e com dificuldade, como um pintinho se esforçando para quebrar a casca do ovo. Virar príncipe de um dia para o outro já foi bem duro, mas não é nada diante do cerimonial que tive de enfrentar para me tornar rei. Seria como comparar um pintinho com um cavalo.

— Se quer mesmo usar essa imagem, que seja pelo menos uma aguiazinha. — Sorri.

— Com o tempo, talvez. Esse é o problema, claro. Tempo, não houve tempo. Num instante eu não era nada, apenas o bastardo não reconhecido de alguém, dando graças pela oportunidade de participar de uma batalha e talvez ver o rei de longe, e no seguinte, tendo em poucas horas passado de príncipe a herdeiro do trono, ser o Grande Rei em pessoa, com uma quantidade de floreios e rapapés que, tenho certeza, nenhum soberano teve de suportar antes de mim.

— Acho que entendo como você se sente. — Sorri. — Nunca cheguei tão alto, claro, e, como você bem sabe, comecei muito mais embaixo, mas já vivi situações parecidas. Mas agora, meu rapaz, tente se aquietar um pouco para poder dormir. O amanhã logo chegará. Quer uma poção sonífera?

— Não, você sabe que nunca quis experimentar essas coisas. Pegarei no sono assim que você sair. Merlin, sinto muito por ter lhe pedido para vir até aqui a esta hora da noite, mas eu precisava conversar com você. Não tivemos tempo para isso hoje e com certeza não teremos amanhã.

Artur afastou-se da janela enquanto falava e foi até uma mesa onde havia folhas de papel e tabletes de cera. Pegou um estilete e alisou a cera com a extremidade rombuda. Foi um gesto dis­traído e a inclinação da cabeça fez os cabelos escuros caírem para a frente. A luz deslizou pelos contornos de seu rosto e tocou os cílios espessos. Meus olhos se marejaram de lágrimas. Senti o tempo voltar atrás. Era Ambrosius, meu pai, ao lado da mesa, mexendo com o estilete e me dizendo: "Se um rei tivesse você a seu lado, poderia governar o mundo inteiro..."

Bem, o sonho finalmente se tornara realidade. Pisquei para afastar a recordação e esperei pelas palavras do jovem rei.

— Estive pensando — disse ele abruptamente. — O exército saxão não foi completamente destruído e ainda não consegui no­tícias comprovadas sobre Colgrim ou Badulf. Penso que ambos escaparam incólumes. E possível que qualquer dia desses fique­mos sabendo que conseguiram tomar um barco, voltando para o continente ou indo para os territórios ocupados por eles no sul. Pode ser até que tenham se refugiado nas terras selvagens ao norte da muralha, na esperança de se reunirem quando tiverem reagrupado suas forças. — Ele ergueu a cabeça. — Não preciso fingir, Merlin. Você sabe muito bem que não sou um guerreiro experimentado e não tenho como julgar se a vitória que conse­guimos foi decisiva ou qual é a probabilidade de os saxões se recuperarem. Eu pedi orientação, claro. Convoquei um breve con­selho assim que a noite caiu, quando terminaram as cerimônias. Ordenei... isto é, gostaria que você estivesse conosco, mas fui informado de que só seria encontrado na capela. Coei também não pôde comparecer... Imagino que você saiba que ele foi ferido. Por acaso teve oportunidade de vê-lo? Qual foi sua impressão?

— Nada boa. Ele é velho e sofreu um corte muito feio. Sangrou demais antes de poder ser socorrido.

— Era o que eu temia. Tentei vê-lo, mas fui informado de que ele estava inconsciente. Desconfiavam de uma inflamação nos pulmões... Bem, o príncipe Urbgen, o herdeiro, veio no lugar dele, junto com Cador e Caw de Strathclyde. Ector e Ban de Benoic também estavam lá. Conversei longamente com eles e todos disseram a mesma coisa: alguém vai ter de ir ao encalço de Colgrim. Caw vai para o norte o mais rápido possível, porque precisa defender sua própria fronteira. Urbgen fica aqui em Rheged. Afinal, seu pai está à beira da morte. Portanto, a escolha mais óbvia seria Lot ou Cador. Bem, acho que todos concordamos que não pode ser Lot. Apesar de ele ter feito o juramento de lealdade durante a cerimônia na capela, ainda não confio nele e com certeza não quero vê-lo perto de Colgrim.

— Concordo inteiramente. Vai mandar Cador, então? Não tem mais dúvidas sobre ele?

Cador, duque da Cornualha, seria talvez a escolha mais indi­cada. Um homem no auge de sua força, era um guerreiro expe­rimentado e leal. Numa certa época cheguei a considerá-lo ini­migo de Artur porque tinha bons motivos para isso, mas ele mostrara ser um pessoa de juízo, equilibrada e de larga visão, capaz de enxergar além de seu ódio por Uther para sonhar com uma Bretanha unida contra o terror saxão. Por isso, ele apoiara o novo rei. E Artur, ali mesmo na Capela Perigosa, declarara Cador e seus filhos os novos herdeiros do reino.

— Bem... — Artur hesitou e continuou olhando para o estilete. Depois deixou-o cair na mesa e endireitou-se. — O problema é que, sendo minha liderança tão nova... — Ele virou-se para mim e surpreendeu o meu sorriso. O cenho franzido sumiu e foi subs­tituído por um olhar que eu conhecia bem: ansioso, impetuoso, o olhar de um menino, mas, por trás dele, uma vontade de homem que enfrentaria a ferro e fogo qualquer oposição. Uma risadinha fez mudar sua expressão. — Sim, você está certo, como sempre. Eu mesmo irei atrás de Colgrim.

— E levará Cador?

— Não, penso que devo ir sem ele. Depois do que aconteceu... a morte de meu pai e tudo o mais... depois da capela... Se vai haver mais lutas devo estar lá em pessoa, para conduzir as forças e terminar o trabalho que começamos.— Fez uma pausa, como esperando uma pergunta ou um protesto. — Pensei que você fosse tentar me impedir.

— Não. E por quê? Estou plenamente de acordo. Você precisa provar que não depende apenas da boa sorte.

— E isso mesmo. — Ele pensou por um instante. — É difícil pôr em palavras mas, desde que você me trouxe aqui e me apre­sentou ao rei, foi como se... não sei explicar exatamente, mas tenho a impressão de que alguma coisa esteve me usando, nos usando a todos...

— Sim. Um vento forte soprando e nos levando com ele.

— E agora o vento desapareceu — disse Artur sobriamente. — E teremos de contar apenas com nossas próprias forças, como se tudo... tudo até agora tivesse sido mágica e milagres que hoje não existem mais. Merlin, você notou que ninguém que estava lá comigo comentou o que houve no santuário? E como se tivesse acontecido num passado distante, como se fosse uma lenda, uma canção.

—E é fácil entender por quê. A mágica foi real e forte demais para muitos que estavam lá, mas ficou marcada na mente de todos os que assistiram a ela, e continuará na memória das pes­soas que criam as canções e as lendas. Mas isso é para o futuro. Estamos aqui, agora, e com muito o que fazer à nossa frente. Uma coisa é certa: trata-se de um trabalho que só o Grande Rei pode executar. Portanto, você deve ir em frente e agir a sua ma­neira.

O rosto jovem relaxou. As mãos pareceram ficar mais largas sobre a mesa quando ele apoiou o peso sobre elas. Pela primeira vez ficou claro que Artur estava exausto e que seria um alívio deixar o cansaço se apoderar dele, exigindo um sono revigorante.

— Não sei por que tive dúvidas de que você iria entender minha posição, Merlin. Creio que agora ficou bem claro porque eu mesmo devo ir, e sem Cador. Ele não gostou da idéia, devo confessar, mas entendeu meu objetivo. Para dizer a pura verdade, gostaria de tê-lo ao meu lado... Mas essa é uma coisa que devo fazer sozinho. É possível que eu, mais do que o povo, esteja precisando de confiança em mim mesmo.

— E você precisa de confiança em si próprio?

— Na verdade, não. — Uma sombra de sorriso passou por seu rosto. — Talvez amanhã cedo serei capaz de acreditar em tudo o que aconteceu no campo de batalha e considerá-lo abso­lutamente real, mas por enquanto é como estar vivendo um resto de sonho. Diga-me, Merlin, você acha que seria bom eu pedir a Cador para escoltar a rainha Ygraine em sua volta para o sul?

— Sem dúvida. Ele é o duque da Cornualha e, com a morte do rei, o lar da rainha em Tintagel deverá ficar sob a proteção dele. Se Cador foi capaz de superar seu ódio por Uther, com certeza há bastante tempo conseguiu forças para perdoar Ygraine por ter traído seu pai. E como hoje você anunciou que ele e os filhos serão seus herdeiros no Grande Reino, todas as dívidas estão pagas. Sim, peça a Cador para acompanhá-la. Artur pareceu aliviado.

— Então está tudo acertado. Já mandei um mensageiro avisá-la. Cador se encontrará com ela na estrada. Eles já estarão em Amesbury quando o corpo de meu pai chegar para o enterro.

— Posso entender então que você deseja que eu acompanhe todas as cerimônias do funeral?

— Se for de seu agrado. Não posso ir, como deveria, mas o corpo deve ter uma escolta digna de um Grande Rei. Acho até melhor ir você, que o conhecia bem, do que eu, que só há pouco me tornei parte da realeza. Além disso, se ele vai ficar ao lado de Ambrosius na Ciranda dos Gigantes, você deverá estar pre­sente para supervisionar o afastamento da pedra real para cava­rem a sepultura. Posso contar com seu auxílio?

— Claro. Penso que, viajando num passo adequado para um cortejo fúnebre, estaremos lá em nove dias.

— A essa altura eu também estarei chegando. — Deu um rá­pido sorriso. — Isto é, se tiver um pouco de sorte. Espero notícias sobre Colgrim, que logo deverão chegar. Pretendo sair atrás dele dentro de umas quatro ou cinco horas, assim que o dia clarear. Bedwyr irá comigo — acrescentou, como se isso lhe desse uma maior confiança e tranqüilidade.

— E quanto ao rei Lot, já que entendi que ele não vai junto? Essas palavras me renderam um olhar suave e um tom macio de um político experimentado.

— Ele também partirá amanhã cedo. Não para suas próprias terras... pelo menos até eu descobrir para onde foi Colgrim. De fato, pedi-lhe para ir direto a York. A rainha Ygraine irá para lá depois do funeral e será bom Lot estar presente para recebê-la. Suponho que, depois da celebração de seu casamento com minha irmã Morgan, poderei considerá-lo um aliado, quer eu goste disso ou não. E o resto das lutas, aconteça o que acontecer entre hoje e a época do Natal, conseguirei enfrentar sem a ajuda dele.

— Então nos encontraremos em Amesbury. E depois disso?

— Caerleon — respondeu Artur, sem a menor hesitação. — c as guerras permitirem, irei para lá. Não conheço o lugar mas, pelo que Cador me disse, Caerleon agora tem de ser meu quar­tel-general.

—Até os saxões romperem o tratado e invadirem pelo sul.

—Como sem dúvida tentarão. Mas espero que até lá os céus me concedam tempo para respirar.

—E para construir outra fortaleza.

Artur lançou-me um olhar rápido.

—Sim, era nisso que eu estava pensando. Você estará lá para me ajudar? — Em seguida, com uma súbita urgência: — Merlin, você jura que estará sempre ao meu lado para me ajudar?

—Enquanto eu for necessário. Embora me pareça — acres­centei em tom de brincadeira — que a pequenina águia está apren­dendo a voar bem rápido. — Em seguida, como eu soubesse o que se encontrava por trás da súbita incerteza, concluí: — Estarei esperando por você em Amesbury e pessoalmente o apresentarei a sua mãe.

 

Amesbury é pouco mais do que um vilarejo mas, a partir da época de Ambrosius, adquiriu uma certa grandiosidade, por ter sido seu local de nascimento e por estar perto do grande monu­mento da Ciranda das Pedras, situado na ventosa planície de Sarum. Trata-se de um círculo de enormes pedras construído pela primeira vez em épocas além da memória dos homens. Eu, usando o que insistem em ver como "artes mágicas", restaurei a Ciranda para ser um monumento de glória da Inglaterra e o local de sepultamento de seus reis. E era ali que Uther seria en­terrado — junto de seu irmão, Ambrosius.

Levamos o corpo para Amesbury sem incidentes dignos de nota e o deixamos no mosteiro, envolto em especiarias e encai­xado no interior de um tronco de carvalho escavado, onde ficou sob um palio cor de púrpura diante da capela do altar. A guarda do rei, que o acompanhava desde Luguvallium, mantinha-se em vigília, enquanto monges e freiras rezavam continuadamente diante do ataúde. Como a rainha Ygraine era cristã, Uther seria enterrado com todos os ritos e cerimônias do catolicismo, apesar de nunca ter dado a menor importância ao Deus cristão. Mesmo ali jazia com duas moedas cintilando sobre suas pálpebras, para pagar o barqueiro que cobrava essa taxa desde milênios, muito antes do nascimento de São Pedro, guardião do portão. A capela aparentemente fora erigida no local onde antes havia um san­tuário romano; era pouco mais do que um retângulo com paredes de pau a pique e pilares de madeira suportando um teto de palha, mas ostentava um belo piso de mosaico extraordinariamente bem conservado, que era mantido sempre brilhando. A maior parte do desenho, videiras e trepadeiras entrelaçadas, não ofenderia as boas almas cristãs, mas fora colocado um tapete bem no centro, na certa para cobrir alguma deusa ou deus pagão que exibia sua nudez por entre os cachos de uva.

O mosteiro refletia um pouco da recente prosperidade de Amesbury. Constituído de uma coleção de edificações de diversos estilos em torno de um pátio calçado, ele estava bem conservado, e a casa do abade, que fora desocupada para abrigar a rainha e seu séquito, era uma construção de pedras com piso de madeira e uma grande lareira em uma das paredes.

O líder da cidade também possuía uma boa casa e se apressara a me oferecê-la como alojamento, mas eu, explicando que o novo rei logo chegaria, deixei-o num frenesi de preparativos e, junto com meus criados, fui me hospedar na estalagem. Era um lugar pequeno, sem pretensões de conforto, limpo e bem aquecido con­tra os ventos frios do outono. O taverneiro me reconheceu ime­diatamente, deixando claro que continuava assombrado com o que presenciara quando eu estivera ali para cuidar da restauração da Ciranda das Pedras. Apressou-se a me dar o melhor quarto, prometendo frango e empadão de carneiro para o jantar. No en­tanto, mostrou-se aliviado quando expliquei que trouxera dois criados comigo e que eles me serviriam no quarto.

Nos últimos anos, vivendo na floresta, eu cuidara de tudo sozinho e agora não possuía meus próprios serviçais. Os homens que tinham vindo comigo eram criados de Artur. Um deles era um rapaz baixinho e bem-humorado, nascido nas colinas de Gwynedd, e o outro era Ulfin, que fora o criado pessoal de Uther. O falecido rei o salvara de uma dura servidão e o tratava com uma bondade que Ulfin recompensava com devoção. Naturalmente, agora pertencia a Artur, mas seria cruel negar-lhe a oportunidade de acompanhar o corpo do amo em sua última viagem, de modo que eu pedira especificamente pelos seus serviços. Por minha ordem ele fora ficar na capela com o ataúde, e eu duvidava muito que o veria antes do fim das cerimônias. Enquanto isso, o galés, Lleu, desfez minhas malas, pediu água quente e encarregou o mais inteligente dos meninos que trabalhavam na estalagem de ir até o mosteiro levando um bilhete para ser entregue à rainha a sua chegada. Nele eu lhe dava as boas-vindas e me oferecia para visitá-la depois de ela ter repousado da viagem. Como Ygraine já estava a par dos acontecimentos de Luguvallium, acrescentei simplesmente que Artur ainda não se encontrava em Amesbury, mas era esperado para o enterro.

Eu não estava na cidade quando ela chegou. Fora a cavalo até a Ciranda para supervisionar os preparativos para a cerimônia e ao voltar recebi a notícia de que a rainha chegara depois do meio-dia e que me chamaria quando estivesse instalada na casa do abade. Sua convocação veio ao entardecer.

O sol se pusera envolto em nuvens sombrias e, quando venci a pé a pequena distância que me separava do mosteiro, já estava quase escuro. A noite sem o brilho das estrelas dava uma im­pressão de peso, parecendo um palio de veludo negro. Lembrei-me da grande estrela-rei que cintilara na noite da morte de Ambrosius e meus pensamentos voltaram-se novamente para o rei que jazia na capela cercado de monges e nobres, os guardas como estátuas junto do ataúde. E para Ulfin, o único que chorara ao assistir a morte do soberano.

Um homem veio me receber no portão do mosteiro. Não um monge, mas um dos camareiros da rainha, que eu conhecia da Cornualha. Ele sabia quem eu era, claro, e inclinou-se com grande respeito, mas pude ver que não se recordava de nosso último encontro. Era o mesmo homem, agora mais grisalho e enrugado, que me fizera entrar nos aposentos da rainha cerca de três meses antes do nascimento de Artur, quando ela prometera deixar a criança aos meus cuidados. Nessa ocasião, temendo a inimizade de Uther, eu me apresentara disfarçado, e era por isso que o camareiro não conseguira reconhecer no príncipe alto que se apro­ximara do portão o "médico" barbado e humilde que fora cha­mado para examinar a rainha.

Ele me conduziu pelo pátio até a casa onde Ygraine se hos­pedava. Alguns porquinhos fugiram ao ouvir nossos passos e foram chamados pelos resmungos aflitos da porca, que vinham por entre as tábuas quebradas de uma barracão. Os homens e mulheres santos de Amesbury eram gente simples. Imaginei como a rainha se arranjaria nesse lugar.

Eu não precisava ter temido por ela. Ygraine fora sempre uma mulher voluntariosa e desde o casamento com Uther assumira um comportamento ainda mais altivo, possivelmente devido à irregularidade da união. Eu me recordava da casa do abade como uma residência humilde, limpa e seca, sem nenhuma pretensão ao conforto. Agora, em poucas horas, os serviçais de Ygraine tinham providenciado para torná-la luxuosa. As paredes de pedra estavam escondidas por panos vermelhos, verdes e azul-pavão, e um belíssimo tapete oriental que eu trouxera de Bizâncio de presente para a rainha. O assoalho de madeira fora escovado até ficar branco e sobre os bancos duros agora repousavam almofadas de seda e peles. Um grande fogo de troncos queimava na lareira. De um lado dela, uma poltrona de espaldar alto, estofada em lã bordada e acompanhada de uma banqueta forrada no mesmo tecido, com acabamento em franjas de ouro. A sua frente, outra poltrona, com braços torneados em forma de cabeça de leão. O lampião era um dragão de cinco cabeças esculpido em bronze. A porta que dava para o austero quarto de dormir do abade estava entreaberta e pela fresta pude divisar uma parte da cama coberta de seda pesada azul e o brilho de galões de prata. A mesa colocada junto à parede oposta à da lareira estava sendo arrumada para o jantar. Pajens vestidos de azul iam e vinham carregando pratos e canecas. Três galgos me olhavam atentamen­te, mas continuavam deitados perto das poltronas.

Quando entrei houve uma pausa nas atividades e no falatório. Todos os olhos se voltaram para a porta; um pajem que vinha trazendo uma jarra imobilizou-se e me olhou espantado, mos­trando o branco dos olhos. Alguém perto deixou cair uma escudela de madeira e os cães correram para comer os biscoitos que se espalharam pelo chão. O único barulho que se conseguiu ouvir além da lenha crepitando no fogo foi o raspar de patas e o mas­tigar dos animais.

— Boa noite — cumprimentei num tom amável.

Retribuí às reverências das damas de companhia e observei gravemente um pajem recolher a escudela caída e afastar os ca­chorros, enquanto me permitia ser conduzido pelo camareiro até perto da lareira.

— A rainha... — ele começava a dizer, quando todos os olhares que recaíam sobre mim dirigiram-se à porta do quarto, e os cães, arqueados e alegres, dançaram para receber a mulher que surgiu por ela.

Não fosse pelos aristocráticos animais e as damas fazendo re­verência, qualquer um pensaria encontrar-se diante da abadessa do mosteiro. Ygraine formava um marcante contraste com o luxo que a cercava. Estava vestida de preto dos pés à cabeça, com um véu branco escondendo os cabelos e preso atrás formando uma touca de freira. O forro das mangas largas era de seda cinza-escuro e no peito ela ostentava uma cruz feita de safiras, mas, fora isso, nada aliviava o luto de seu traje.

Fazia muito tempo que eu não via a rainha e imaginava que houvesse mudado com o passar dos anos, mas ainda assim tive uma surpresa desagradável ao me deparar com ela. A beleza continuava presente nas linhas da ossatura do rosto, nos olhos de um azul profundo e na postura altaneira, mas a graça dera lugar à dignidade e seus pulsos e mãos haviam se adelgaçado de um modo que não me agradou, como não me agradaram as olheiras quase tão azuis como os olhos. Isto, e não os danos cau­sados pela passagem dos anos, foi o que me espantou, pois eram sinais que um médico conseguia ler com perfeita clareza.

Mas eu estava ali como príncipe e emissário, não como médico, e devolvi o sorriso de boas-vindas, inclinei-me sobre a mão es­tendida e conduzi-a até a poltrona estofada. A um sinal, dois pajens puseram coleiras nos cachorros e os levaram para o fundo da sala, e ela sentou-se alisando a saia. Uma das damas de com­panhia, não mais do que uma menina, ajeitou a banqueta diante da poltrona e depois, com os olhos baixos e mãos cruzadas, pos­tou-se atrás do espaldar.

A rainha me convidou a sentar e eu a obedeci. Alguém trouxe vinho e por cima das taças comentamos o lado mais ameno de nossas viagens. Perguntei como estava passando por pura cortesia formal, sabendo que ela não poderia imaginar o que eu já per­cebera.

— E o rei? — perguntou ela finalmente. A palavra pareceu sair forçada, com uma certa dor por trás dela.

— Artur prometeu que viria para cá. Estou esperando-o ama­nhã. Não recebemos notícias do norte, de modo que não temos como saber se houve mais lutas. Mas não se alarme pela falta de informações; isso só significa que qualquer mensageiro che­garia praticamente junto com ele.

Ela fez que sim sem nenhum sinal de ansiedade. Ou não podia pensar em outras coisas além de sua dor, ou considerou meu tom tranqüilo uma garantia de profeta.

— Ele esperava mais lutas?

— Ficou lá apenas por precaução. A derrota das tropas foi decisiva, mas Colgrim conseguiu fugir, como lhe escrevi. Não recebemos informações de seu paradeiro e então Artur achou melhor não dar oportunidade para as forças dos saxões voltarem a se reunir, pelo menos enquanto estivesse aqui no sul para o enterro do pai.

— Ele é muito jovem para uma tal responsabilidade.

— Mas está mais do que pronto para ela. — Sorri. — Acre­dite-me, foi como ver um jovem falcão alçar vôo ou um pequeno cisne nadando sozinho pela primeira vez. Quando me despedi dele, Artur não dormia havia duas noites, mas estava entusias­mado e com excelente saúde.

— Estou contente por isso.

Ela falou formalmente, sem expressão, mas achei melhor me alongar.

— A morte do pai foi um choque para ele, mas você entende, é claro, que Artur não tinha intimidade com Uther e havia muito o que fazer nessa hora difícil.

— Eu não fui contemplada com essa sorte — disse Ygraine baixinho, olhando para as mãos.

Permaneci em silêncio, respeitando esse sofrimento. A paixão que unira Uther e essa mulher não se apagara com o passar dos anos. O rei fora um homem que precisava de mulher como a maioria dos homens precisa de sono e comida e, quando os deveres reais o afastavam da cama de sua consorte, a dele quase nunca ficava vazia. No entanto, quando estavam juntos, Uther era incapaz de olhar para os lados ou lhe dar motivos para abor­recimentos. O rei e a rainha tinham se amado com o tipo de amor que é enaltecido pelos menestréis, maior do que a perda da juventude e da saúde, e dos inúmeros compromissos que são ° preço da soberania. Eu acabara me convencendo de que seu filho Artur, despojado da posição real e criado na obscuridade, vivera melhor em casa dos pais adotivos em Galava do que vi­veria na corte de seu pai, onde nunca seria alvo da mesma atenção por parte de Uther e Ygraine.

Ela finalmente ergueu a cabeça e vi que seu rosto recuperara a serenidade.

— Recebi sua carta e a de Artur, mas quero saber de muito mais. Conte-me o que aconteceu em Luguvallium. Quando ele partiu para o norte, indo ao encontro de Colgrim e seu exército, eu sabia que não estava bem de saúde. Mas ele insistiu e jurou que estaria no campo de batalha, nem se tivesse de ser carregado numa liteira. E, pelo que entendi, foi isso que aconteceu, não é?

A maneira como Ygraine enfatizara o "ele" deixara claro que ela desejava ouvir a história dos últimos dias de Uther e não os milagres que tinham acompanhado Artur em sua subida ao trono.

— Sim, foi uma grande batalha e Uther, como sempre, agiu com enorme coragem. Seus criados o carregaram para o campo numa liteira e se mantiveram sempre no meio das lutas. Fiz Artur vir de Galava por ordem dele, que queria reconhecê-lo publica­mente, mas Colgrim atacou de repente e o rei teve de ir para a guerra sem fazer a proclamação. Entretanto manteve o rapaz per­to de si e, ao ver que a espada dele havia se quebrado na luta, atirou-lhe a sua. Duvido que Artur, no calor do combate, tenha entendido o gesto em sua profundidade, mas todos os que esta­vam próximos perceberam. Foi um grande gesto, feito por um grande homem.

Ygraine não falou, mas me agradeceu com os olhos. Ela sabia, mais do que ninguém, que jamais houvera afeto entre Uther e mim, e que elogios vindos de mim eram muito diferentes das bajulações da corte.

— Depois o rei se recostou em sua liteira e ficou assistindo ao filho penetrar na linha inimiga e, mesmo inexperiente, ter sua parte na derrota dos saxões. Portanto, mais tarde, quando ele finalmente apresentou o rapaz aos nobres e comandantes, seu trabalho já estava meio feito. Eles tinham presenciado a espada do reino ser entregue ao herdeiro e visto com que valor ela fora usada. Mas, na verdade, houve alguma oposição...

Hesitei. Fora a mesma oposição que matara Uther. Apenas algumas horas antes do momento determinado pela natureza, mas com a mesma certeza de um golpe de machado. E o rei Lot, o chefe da facção oposta, estava para se casar com Morgan, a filha de Ygraine.

—Ah, sim — disse a rainha calmamente. — O rei de Lothian.

Ouvi qualquer coisa a esse respeito. Quero saber exatamente o que aconteceu.

Eu devia conhecê-la. Contei a história toda, não omitindo nada. A oposição feroz, a traição, a morte súbita do rei, que o fez calar. Também falei sobre a aclamação de Artur pelos restantes, mas minimizando meu papel nesse acontecimento. ("Se Artur conse­guiu pegar a espada de Macsen, obteve-a pela vontade de Deus, e, se tem Merlin ao seu lado, então, por qualquer deus que ele adore, eu também o seguirei") Não me demorei na descrição da cena na capela, falando apenas dos juramentos dos nobres, da submissão de Lot e da declaração de Artur fazendo de Cador, o filho de Gorlois, seu legítimo herdeiro.

E foram essas palavras que fizeram, pela primeira vez, os belos olhos azuis se iluminarem. A rainha sorriu e pude ver que o fato era uma novidade para ela e que de certa forma estava contri­buindo para aplacar a culpa que sempre sentira pela morte do primeiro marido. Aparentemente, Cador, quer por delicadeza, quer porque ainda se mantinha distanciado de Ygraine, não lhe contara nada. Ela estendeu a mão para pegar a taça de vinho e ficou bebendo-o aos golinhos, sorrindo, enquanto eu terminava a história.

Uma outra coisa, e muito importante, também seria novidade para a rainha, mas me calei sobre ela. Todavia, essa parte do relato ressoava alto em minha mente, e por isso, quando Ygraine falou de novo, devo ter saltado como um coelho assustado.

— E Morgause?

— O quê?

— Você ainda não falou nela. Morgause deve ter sentido muito a morte do pai. Foi sorte ela poder estar perto dele nessa hora. Nós dois sempre tivemos motivos para agradecer a Deus pelos seus talentos.

— Ela cuidou dele com devoção — falei num tom impessoal. — Tenho certeza de que sentirá uma grande falta de Uther.

— Ela virá com Artur?

— Não, foi para York, ficar com Morgan.

Para meu alívio, Ygraine não fez mais perguntas sobre Morgause e mudou de assunto, perguntando onde eu estava hospe­dado.

— Na estalagem. Eu já a conhecia de outra época, quando estive trabalhando aqui. É um lugar simples, mas eles estão se esforçando para me manter confortável. Entretanto, não me de­morarei aqui. — Olhei à volta, como apontando todo o luxo que acompanhava a rainha. — E você, planeja uma longa estada?

— Só por alguns dias.

Se notara o meu olhar, ela não demonstrou. Eu, que normal­mente não sou versado nos modos das mulheres, de repente com­preendi que a riqueza e formosura que nos cercavam não eram para o conforto de Ygraine, mas pretendia-se com isso criar um cenário adequado para seu primeiro encontro com o filho. O car­mesim e o ouro, os perfumes e velas preciosas eram o escudo e espada encantada dessa mulher de meia-idade.

— Diga-me... — Sua voz saiu abruptamente, como se estivesse saindo direto da preocupação que ela tentava esconder. — Ele me culpa pelo acontecido?

Meu respeito por Ygraine me fez responder-lhe sem rodeios nem pretensões de esconder que o assunto era igualmente im­portante para mim.

— Penso que você não deve temer esse encontro. Quando Artur ficou sabendo quem eram seus verdadeiros pais e qual seria sua herança, estranhou vocês terem achado adequado negar-lhe essa informação. Claro que no primeiro momento mostrou-se indig­nado, não podemos culpá-lo por isso. De fato, Artur já começara a suspeitar que era da nobreza, mas imaginou que, como em meu próprio caso, você sabe... esse parentesco era distorcido. Mas juro que não mostrou o menor sinal de amargura ou raiva, e só insistiu em saber o motivo. Quando lhe contei a história de seu nascimento e afastamento da corte, ele disse... Vou lhe transmitir as palavras exatas: "Vejo a situação do mesmo modo que ela a viu, como você me explicou; ser um príncipe é ser sempre go­vernado pela necessidade. Ela não me entregou para a adoção por motivos fúteis".

Houve um pequeno silêncio. Pensei ouvir ecoando em minha memória as palavras com que Artur terminara: "Vivi melhor na floresta, pensando não ter mãe e ser seu filho bastardo, Merlin, do que se tivesse ficado no castelo de meu pai, esperando ano após ano a rainha ter um outro filho que talvez quisesse me superar".

O rosto de Ygraine estava bem mais relaxado; ouvi-a suspirar. As pálpebras inferiores tremiam ligeiramente, como se fossem as vibrações de uma harpa. A cor voltou a sua cútis e ela olhou para mim parecendo a moça de anos atrás, quando me suplicara para pegar o bebê e escondê-lo da fúria de Uther.

— Agora diga-me... como é ele?

— Então não lhe contaram ao trazerem notícias da batalha? — Sorri.

— Sim, contaram. Disseram que ele é alto como um carvalho e mais forte que o gigante Fionn, e que matou novecentos homens sozinho. É Ambrosius ressuscitado ou o próprio Maximus, bran­dindo a espada como se estivesse distribuindo raios de tempes­tade. Durante a batalha, em torno dele havia uma aura como as que existem nos retratos dos deuses que participaram da queda de Tróia. Além disso ele é a sombra e espírito de Merlin e um grande cão de caça o acompanha por todos os cantos e os dois conversam como se fossem amigos. — Os olhos de Ygraine dan­çavam. — Pelo teor da descrição, você já deve ter desconfiado que os mensageiros foram cornualeses morenos das tropas de Cador. Eles sempre preferem cantar um poema do que apresentar um fato. E eu quero fatos.

Ela sempre quisera. E Artur, a exemplo da mãe, também sem­pre preferira lidar com fatos. Deixava a poesia para Bedwyr. Eu ofereci o que me foi pedido.

— Essa última parte está bem próxima da verdade, mas eles entenderam tudo ao contrário. É Merlin a sombra e o espírito de Artur. E o cachorro existe, ele é Cabal, que lhe foi presenteado por seu amigo Bedwyr. Quanto ao resto, o que poderei lhe dizer? Você verá com seus próprios olhos amanhã... Ele é alto e se parece mais com Uther do que com você, embora tenha herdado a co­loração de meu pai, pois tem olhos e cabelos tão escuros como os meus. É forte, cheio de coragem e resistência, e tudo o mais que seus cornualeses contaram, só que reduzido ao tamanho nor­mal. Também tem sangue quente e o entusiasmo da juventude, e às vezes se mostra impulsivo ou arrogante, mas sob essa capa possui um extraordinário bom senso e um crescente poder de controle. E, sobretudo, tem o que considero uma grande virtude: está sempre pronto a me escutar.

Essas palavras me valeram um outro sorriso afetuoso da rai­nha.

— Você quis brincar, mas concordo que é mesmo uma grande virtude! Ele tem sorte de poder contar com você, Merlin. Como cristã, não me é permitido acreditar em sua magia e, na verdade, não acredito nela como o povo humilde. Mas, seja o que for e de onde venha, já vi seu poder em ação e sei que ele é bom e que você o usa com prudência. Creio que vem do que eu chamo de Deus. Sim, fique ao lado de meu filho.

— Ficarei enquanto ele precisar de mim.

O silêncio caiu entre nós enquanto ambos olhávamos para o fogo. Os olhos de Ygraine pareciam sonhar sob a sombra dos cílios espessos e seu rosto novamente tornou-se imóvel e tran­qüilo. Eu, contudo, tive a impressão de que se tratava da quietude que espera nas profundezas da floresta, enquanto por cima o vento ruge e as árvores sentem a tempestade sacudi-las até a raiz.

Um menino veio na ponta dos pés e colocou mais troncos na lareira. As chamas saltaram e a madeira estalou. Continuei ob­servando o fogo. Para mim, também, aquela era uma pausa de espera. As chamas agora eram apenas chamas.

O menino afastou-se em silêncio. A jovem dama de companhia pegou a taça da mão da rainha e depois, num gesto tímido, es­tendeu a sua em minha direção. Era uma menina muito bonita, magra como uma varinha de condão, de olhos cinzentos e cabelos castanho-claros. Olhava meio assustada para mim e eu tomei o cuidado de não tocar sua mão enquanto lhe entregava a taça. Ela afastou-se rapidamente com a bandeja e eu pude perguntar baixinho:

— Ygraine, seu médico veio com você?

As pálpebras bem-feitas estremeceram. Ela não olhou para mim e também abaixou a voz.

— Veio. Agora ele sempre viaja comigo. —E quem é ele?

—Seu nome é Melchior. Disse que o conhece.

—Melchior? Um rapaz que fiquei conhecendo em Pergamum quando eu estudava medicina?

—É ele mesmo. Só que não é mais um rapaz. Já estava comigo quando Morgan nasceu.

—É um bom homem — elogiei, satisfeito.

Ela me olhou de soslaio. A menina continuava longe de nós, conversando com o resto das mulheres no outro lado da sala.

—Eu devia saber que não conseguiria esconder nada de você.

Não contará nada ao meu filho, não é?

Dei minha palavra. No momento em que a vira depois de todos aqueles anos tive certeza de que era vítima de uma doença mortal, mas Artur, que não a conhecia e não era versado em medicina, dificilmente notaria alguma coisa. Haveria tempo para isso depois. Agora era hora de começo e não de final.

A menina voltou e murmurou algo para a rainha, que fez um aceno e levantou-se. Eu também me levantei. O camareiro vinha se aproximando com cerimônia, dando aos aposentos empresta­dos mais um toque de realeza. Ygraine começou a virar-se para mim, erguendo a mão para me convidar para jantar, quando subitamente a cena foi interrompida. Do lado de fora veio o toque distante de uma trombeta; depois outro, mas próximo, e então ouviu-se o estardalhaço da chegada de cavaleiros em algum lugar fora dos muros do mosteiro.

A rainha ergueu a cabeça, mostrando algo da antiga juventude e coragem.

— O rei?

Sua voz saiu alegre e rápida. Em torno da sala, correu como um eco o murmúrio das mulheres. A menina ao lado de Ygraine estava tensa como um cordão de arco e vi um rubor de emoção cobrir a pele sedosa desde o colo até a testa.

— Chegou rápido — falei, num tom seco e preciso, querendo acalmar minha pulsação, que se acelerara ao ouvir o crescendo de patas de cavalos.

Tolo, censurei-me, ele agora faz tudo sozinho. Você o soltou e o perdeu. Esse é um falcão que jamais aceitará a venda nos

olhos de novo. Mantenha-se nas sombras, profeta do rei, veja suas visões e sonhe seus sonhos. Deixe a vida para ele e espere pelo momento em que será considerado necessário.

Houve uma batida na porta e em seguida veio a voz apressada de um criado. O camareiro dirigia-se para ela quando um menino entrou correndo com a mensagem, esquecendo-se dos floreios da corte:

— Com a permissão da rainha... o rei está aqui e quer ver o príncipe Merlin. Agora mesmo.

Enquanto eu saía, ouvi a sala antes em silêncio explodir num burburinho, enquanto os pajens corriam de um lado para outro, rearrumando as mesas, trazendo velas novas e mais perfumes e vinho; as damas de companhia, tagarelando como galinhas aflitas, seguiram a rainha que entrava em seu quarto.

 

—Ela chegou, não é? Já me contaram.

Artur mais atrapalhava do que ajudava um criado a tirar suas botas enlameadas. Ulfin, para minha surpresa, acabara voltando da capela e agora eu podia vê-lo no quarto ao lado, orientando os serviçais da casa na abertura das bagagens. Lá fora a cidade parecia ter explodido em gritos, tochas, tropel de cavalos e gritos de ordem. De tanto em tanto ouvia-se por cima da confusão a risadinha meio histérica de uma moça. Nem todos em Amesbury estavam de luto.

O próprio rei não se mostrava compungido. Finalmente con­seguiu se livrar das bocas e tirou a capa pesada. Seus olhos vol­taram-se para mim numa paródia do olhar de soslaio que eu recebera de Ygraine.

— Já falou com ela?

— Sim, acabo de deixá-la. Ela ia me convidar para o jantar, mas agora creio que planeja alimentá-lo em meu lugar. Como chegou hoje com certeza você notará que está cansada da viagem, mas ela já conseguiu repousar um pouco e sem dúvida dormirá muito melhor depois de conhecê-lo. Mas não o esperávamos antes da metade da manhã.

— Velocidade de César. — Artur sorriu, citando uma das frases de meu pai. Sem dúvida eu, na condição de seu professor, a empregara com um certo exagero. — Para isso, viemos em nú­mero pequeno e pudemos acelerar a marcha. O resto virá mais tarde. Creio que chegarão a tempo para o enterro.

— E quem está vindo?

— Maelgon de Gwynedd e seu filho Maelgon. O irmão de Urbgen de Rheged, o terceiro filho do velho Coei, me parece que seu nome é Morien. Caw não pôde vir e está mandando Riderch em seu lugar... ainda bem, porque não suporto Heuil, aquele fanfarrão de boca suja. Deixe-me ver... Ynyr e Gwilim, Bors... me informaram que Ceretic de Elmet está vindo de Loidis.

Ele continuou citando nomes. Parecia que a maioria dos reis do norte tinham enviado filhos ou substitutos à altura. Claro, com o restante das tropas saxãs ainda vagando pela região, eles queriam ficar vigiando suas próprias fronteiras. A situação era considerada muito grave, contou Artur, enquanto se lavava na bacia que um criado lhe trouxera.

— Até o pai de Bedwyr voltou para casa. Desculpou-se ale­gando cansaço, mas cá entre nós creio que deseja ficar de olho nos movimentos de Lot para me informar sobre eles.

— E Lot?

— Foi para York. Tomei a precaução de mandar vigiá-lo. Mor­gan continua lá ou veio se encontrar com a rainha?

— Ela ficou lá. Mas está faltando um rei; você não contou nada sobre ele.

O criado deu uma toalha a Artur e ele desapareceu dentro dela, enxugando os cabelos. Sua voz saiu abafada.

— Quem?

— Colgrim.

Artur emergiu da toalha, com a pele rosada e olhos brilhantes. Parecia ter uns dez anos de idade.

— E precisa perguntar? — A voz não era de um menino, mas de um homem, cheia de fingida arrogância, mas que por baixo cio tom de brincadeira era bem real. Muito bem, deuses, pensei, vocês o puseram no trono e não podem acusá-lo de orgulho, mas mesmo assim me surpreendi fazendo o sinal.

— Não preciso, mas estou perguntando. Artur subitamente ficou sério.

— Foi um trabalho mais duro do que esperávamos. Pode-se dizer que a segunda metade da batalha ainda estava para ser vencida. Quebramos suas fileiras em Luguvallium e Badulf mor­reu devido aos ferimentos, mas Colgrim escapou incólume e reuniu suas forças em algum lugar do leste. Não foi simplesmente um caso de caçar fugitivos. Eles eram muitos e estavam deses­perados. Se estivéssemos em menor número poderíamos ter tido uma surpresa. Duvido que teriam atacado de novo, porque se dirigiam para o mar, mas quando os surpreendemos a meio do caminho eles nos enfrentaram na margem do rio Glein. Você conhece essa parte do país?

— Não muito bem.

— É selvagem e montanhosa, com muita vegetação e cheia de riachos descendo colinas. Lugar ruim para lutar, mas atrapa­lhou os dois lados. Colgrim conseguiu fugir de novo, mas agora não existe mais a possibilidade de ele parar para reunir as tropas que se dispersaram. Foi para o leste e esse é um dos motivos por que Ban voltou para seus territórios. A propósito, Ban teve a gentileza de deixar Bedwyr vir comigo. — Artur estava em pé, agora obedecendo as mãos de seu criado enquanto era vestido. — Estou contente — terminou laconicamente, enquanto o homem fechava o broche que prendia a capa em um dos ombros.

— Por Bedwyr ter vindo com você? Mas...

— Não. Por Colgrim ter escapado de novo.

— Verdade?

— Ele é um homem corajoso.

— Mesmo assim, você vai ter de matá-lo.

— Sei disso. Agora...

O criado afastou-se, dando seu serviço por terminado. O rei fora vestido em trajes cinza-escuro e a capa tinha uma gola de pele preciosa, que se repetia nas bordas. Ulfin entrou no quarto trazendo um pequeno baú de madeira entalhada onde era guar­dada a coroa informal do rei, um círculo de ouro de modelo austero. Os rubis captaram a luz e responderam ao brilho das pedras preciosas do broche e do colar. Mas, quando Ulfin ia tirá-la de seu ninho de veludo, Artur balançou a cabeça.

— Não hoje. E melhor sem nada.

Ulfin fechou a caixa e saiu do quarto acompanhado pelo criado. Quando a porta se fechou atrás deles, Artur virou-se para mim e vi em seu olhar a mesma hesitação de Ygraine.

— Devo entender que ela está esperando por mim?

— Está.

Ele mexeu no broche que segurava a capa, picou o dedo e praguejou. Depois, meio sorrindo:

— Parece que não houve muitos casos como este. Como al­guém conversa com a mãe que o deu em adoção logo depois do nascimento?

— Como você conversou com seu pai?

— Isso é diferente, você sabe muito bem.

— Certo. Quer que eu o apresente?

— Ia pedir-lhe isso... Bem, é melhor acabarmos logo com essa história. Algumas situações não melhoram com o adiamento... Olhe, você tem certeza sobre o jantar? Estou morto de fome, não comi nada desde a madrugada.

— Tenho. Eles estavam providenciando novos pratos quando saí.

Artur respirou fundo, como um nadador se preparando para um mergulho profundo.

— Vamos, então?

 

Ygraine esperava em pé junto de sua poltrona, iluminada pelo fogo. Tinha o rosto corado por causa do calor e a luz das chamas pulsava sobre sua pele, tornando rosada a touca branca. Estava linda. O brilho avermelhado purgara as sombras azuladas de seu rosto e lhe emprestara um ar de juventude que se repetia nos olhos brilhantes.

Artur fez uma pausa junto à porta.

Vi as safiras da cruz que Ygraine trazia no pescoço cintilarem enquanto seu peito subia e descia. Seus lábios se entreabriram, como se ela fosse falar, mas não emitiram nenhum som.

Artur avançou devagar, rígido e cheio de dignidade, o que o fez parecer ainda mais jovem. Fui caminhando ao seu lado, en­saiando mentalmente as palavras adequadas para a apresentação, mas no final não houve necessidade de dizer nada. A rainha, que já enfrentara momentos ainda piores em sua vida, tomou as rédeas da situação. Encarou o filho por um instante, como se fosse capaz de ver sua alma, e depois fez uma reverência.

— Meu senhor...

Artur estendeu as mãos rapidamente e a fez levantar. Cumprimentou-a com um beijo breve e formal, mas segurou as mãos delicadas um pouco mais do que mandava a etiqueta da corte.

—Mãe? — experimentou. Era o nome que antes reservava para Drusilla, a esposa do conde Ector. Em seguida, com alívio:

—Minha senhora, lamento não ter chegado mais cedo para poder recebê-la, mas a situação no norte era grave. Creio que Merlin já lhe contou tudo. Mas vim o mais rapidamente possível.

—E chegou antes do que esperávamos. Imagino que foi bem sucedido em sua empreitada. Então terminou o perigo repre­sentado pelas forças de Colgrim?

— Por enquanto. Pelo menos conseguimos tempo para respirar e... e fazer o que tem de ser feito aqui em Amesbury. Lamento pelo seu luto e sofrimento, senhora, eu... — Artur hesitou e depois falou com uma simplicidade que claramente a confortou e o dei­xou mais seguro: — Não devo fingir que senti a perda como talvez deveria. Mal o conheci como pai, mas durante toda minha vida o vi como meu rei, um rei valoroso. Seu povo está enlutado e eu, sendo parte dele, também estou.

— Agora cabe a você cuidar desse povo como o rei sempre tentou fazer.

Houve uma pausa enquanto eles mediam um ao outro. Ygraine era um pouco mais alta do que o filho e, talvez se dando conta disso, fez um sinal para a poltrona que eu ocupara anteriormente e sentou-se na sua. Um pajem aproximou-se trazendo vinho e houve um suspiro generalizado e o roçar de sedas. A rainha começou a falar sobre a cerimônia do dia seguinte. Artur, agora mais relaxado, respondeu com facilidade e logo os dois conver­savam mais à vontade. Mas, por trás das troca de gentilezas típica da corte, podia se sentir a força do que jazia entre eles sem ser posto em palavras. O ar estava tão tenso, suas mentes tão voltadas uma para a outra que pareciam ter se esquecido de minha pre­sença. Olhei para a mesa posta no outro canto da sala e depois para as mulheres e meninas ao lado da rainha. Todos olhavam para Artur, os homens com interesse e algum temor (sem dúvida já estavam a par das histórias mirabolantes que contavam sobre ele), as mulheres com algo mais acrescido à curiosidade e as duas meninas num verdadeiro transe de emoção.

O camareiro estava perto da mesa. Captou meu olhar e me fez uma pergunta muda. Balancei a cabeça, concordando. File atravessou a sala até chegar ao lado da rainha e murmurou al­guma coisa. Ela sorriu com um certo alívio e levantou-se, no que foi acompanhada pelo rei. Notei que agora a mesa estava arru­mada para três, mas quando o camareiro se aproximou de mim eu fiz que não. Artur e a mãe poderiam dispensar os criados depois do jantar e a conversa fluiria mais facilmente. Ficariam melhor sozinhos. Por isso pedi licença para me retirar, ignorando o olhar quase suplicante de Artur, e fui para a estalagem ver se os outros hóspedes tinham deixado alguma coisa para eu comer.

 

O dia amanheceu ensolarado. As nuvens pareciam ter se amon­toado todas no horizonte e uma cotovia cantava, como se fosse primavera. Um tempo claro assim no final de setembro costuma trazer geada e um vento insistente, e em nenhum lugar os ventos são tão penetrantes como na Grande Planície, mas o dia do enterro de Uther parecia ter sido emprestado do início do verão, com vento cálido e céu azul, e raios de sol tingindo de ouro a Ciranda das Pedras.

A cerimônia ao lado da tumba foi longa e as sombras colossais da Ciranda acompanharam o giro do sol até os raios dourados caírem a pino no centro do círculo, tornando mais fácil se ver o solo, a sepultura e as grandes nuvens escuras no horizonte jun­tando-se e movimentando-se como exércitos, do que o meio do círculo, onde estavam os padres e nobres carregados de jóias, usando o branco do luto. Um pavilhão fora montado para a rainha e ela estava sob sua sombra, composta e pálida entre as damas de companhia, não mostrando sinal de fadiga ou enfermidade. Artur, comigo a seu lado, manteve-se junto à cova.

Finalmente tudo terminou. Os padres partiram e logo em se­guida foi a vez do rei e dos nobres. Enquanto atravessávamos a relva na direção dos cavalos e liteiras, já pudemos ouvir o ruído de terra caindo sobre madeira. Mas logo um barulho mais alto o encobriu. Olhei para cima a tempo de ver no céu de setembro um bando de pássaros, ágeis, pretos e pequenos, tagarelando em sua migração. O último grupo de andorinhas partindo para o sul, levando o verão consigo.

— Esperemos que os saxões tenham entendido essa mensagem dos pássaros — disse Artur baixinho. — Eu bem que gostaria de ter o inverno todo para descansarmos antes das lutas reco­meçarem. Além disso, tenho de cuidar de Caerleon. Gostaria de ir para lá hoje mesmo.

Mas, naturalmente, ele, como todos nós, seria obrigado a ficar em Amesbury enquanto a rainha permanecesse ali. Ela voltou direto para o mosteiro depois da cerimônia e não mais apareceu em público, passando os dias em repouso ou conversando com o filho. Artur ficava com ela o máximo que suas atividades per­mitiam, enquanto o séquito real preparava tudo para a viagem a York, que aconteceria assim que sua senhora se sentisse capaz de enfrentar longas horas na estrada.

Artur escondeu bem a impaciência e ocupou-se em exercitar as tropas e conversar longamente com seus amigos e comandan­tes. Dia após dia eu o via cada vez mais absorvido no que estava fazendo e no que o esperava. Estive poucas vezes com ele e Ygraine; passei a maior tempo na Ciranda dos Gigantes, supervisio­nando a recolocação da imensa pedra-rei em seu leito acima da tumba real.

Finalmente, oito dias depois do enterro de Uther, a rainha partiu para o norte. Artur, cortesmente, acompanhou o séquito pela estrada para Cunetio durante algum tempo e depois, vendo-o afastar-se a distância soltou um longo suspiro de alívio e logo conduziu seus guerreiros para fora de Amesbury numa manobra rápida, que mostrou o quanto estavam bem treinados. Era o quin­to dia de outubro e chovia copiosamente. Estávamos nos diri­gindo para o estuário do rio Severn, onde tomaríamos a balsa para Caerleon, a Cidade das Legiões.

 

No lugar onde a balsa faz a travessia, o rio Severn é bem largo e tem grandes marés que avançam rapidamente sobre suas mar­gens. Meninos vigiam o gado dia e noite, pois um rebanho inteiro pode ser tragado pela lama vermelha, espessa e áspera, sumindo para sempre. Quando as marés de primavera e outono enfrentam a correnteza do rio, forma-se uma onda tão alta como a que vi em Pergamum por ocasião do terremoto. No lado sul, o estuário é limitado por escarpas; a margem norte é pantanosa, mas a uma pequena distância da linha de preamar o terreno vai ficando pe­dregoso e bem drenado, elevando-se suavemente até se transfor­mar em um campo verdejante, cheio de carvalhos e castanheiras.

Montamos acampamento nesse local mais alto e, enquanto as tendas eram preparadas, Artur, com Ynyr e Gwillim, reis de Guent e Dyfed, saiu para explorar os arredores, e depois do jantar ficou em sua tenda para receber os chefes dos vilarejos próximos. Os moradores da região, incluindo os pescadores que vivem nas cavernas dos penhascos, amontoavam-se junto aos limites do acampamento na esperança de ver o novo rei. Artur ouviu aten­tamente todos os chefes, aceitando tanto homenagens quanto re­clamações. Depois de uma ou duas horas, pedi permissão com um olhar e saí da tenda. Fazia muito tempo que não sentia o cheiro das colinas de minha terra e, além disso, havia um lugar próximo que sempre quisera visitar, mas nunca tivera a oportu­nidade.

Era o antes famoso santuário de Nodens, que é Nuatha da Mão de Prata, conhecido em Gales como Llud ou Bilis, o senhor do Sobrenatural, cujos portões ficam nas colinas ocas. Fora ele que guardara a espada depois de eu tê-la tirado de sua sepultura sob o piso do templo de Mitra em Segontium. Eu a deixara a seus cuidados na caverna submersa do lago, também sagrada para ele antes de finalmente levá-la para a Capela Verde. Por­tanto, tinha uma dívida com Llud.

Esse santuário junto ao rio Severn era muito mais antigo do que o templo de Mitra ou a capela. Informações sobre sua origem há muito tinham desaparecido, não sendo nem mesmo tema de poemas e canções. De início fora uma fortaleza, onde devia haver uma pedra ou fonte dedicada ao deus que cuidava dos espíritos dos mortos. Com a descoberta do minério de ferro, começara a extração em toda a região, a qual se prolongara por toda a duração do período romano. Talvez tenham sido os romanos os primeiros a dar ao lugar o nome de morro dos Anões, por causa dos homens baixos e morenos que trabalhavam nesse lugar. A mineração ter­minara havia muito tempo, mas o nome persistia, como persis­tiam as histórias sobre os Antigos que eram vistos espreitando por entre os troncos de carvalho, ou sobre os que saíam do centro da terra em longas fileiras em noites de tempestade para se juntar ao séquito do Rei das Trevas, que emergia de sua colina oca cavalgando à frente de uma horda de fantasmas e espíritos en­cantados.

Atingi o alto do morro atrás do acampamento e caminhei por entre os carvalhos na direção de um riacho no fundo do vale. Uma boa lua de outono iluminava meu caminho. As folhas das castanheiras já estavam caindo e flutuavam aqui e ali até se de­positar na relva, mas as dos carvalhos, embora secas, continua­vam firmes, enchendo o ar de ruídos provocados pelo vaivém dos galhos. Chovera à tarde e o solo tinha um cheiro gostoso, rico. Solo fértil para arar, época boa para a colheita das nozes e castanhas, tempo dos esquilos antes da chegada do inverno.

Percebi algo se movimentando diante de mim enquanto eu descia. Um barulho de mato pisado, de galhos se afastando, um leve tropel. Depois, com um som semelhante ao de uma rápida chuva de granizo, vi passar um bando de veados, tão apressados como as andorinhas migrando para o sul. Estavam bem perto de mim e pude ver até o brilho de seus olhos. Veados malhados e alguns brancos, com flancos parecendo prateados por causa do luar. Eles passaram correndo, descendo para o pé do vale, e logo desapareceram atrás das colinas.

Dizem que um veado branco é uma criatura mágica. Eu tam­bém penso assim. Por essa época eu já vira dois deles e cada um fora o arauto de uma maravilha. Os que passaram por mim tam­bém me pareceram mágicos. Talvez assombrassem, junto com os espíritos, a colina onde ainda existia a porta que levava para o outro mundo.

Atravessei o riacho e comecei a subir o morro para atingir as ruínas que o coroavam. Abri caminho por entre o entulho que devia ser o que restara de uma muralha externa, e enfrentei a parte mais íngreme da trilha até me deparar com um alto portão em um muro coberto de trepadeiras. Estava aberto. Eu entrei.

Encontrei-me num amplo pátio, que ocupava toda a extensão do topo da colina. O luar, que ficava mais forte a cada minuto, revelou-me o piso quebrado, com mato crescendo nas rachaduras. Dois lados do pátio eram fechados por muros altos e os outros dois exibiam sinais de, em outras épocas, ter abrigado grandes edifícios, dos quais ainda restavam algumas partes com telhado. Sob aquela luz o lugar continuava imponente, pois os muros e pilares davam a impressão de estar intactos. Apenas uma coruja, voando silenciosa de uma janela superior, mostrou que tudo ali estava deserto desde muito tempo e se desfazendo sob a intem­périe.

Avistei uma construção situada quase no centro do pátio. O espigão do telhado parecia querer alcançar a lua, mas só restara a parte dianteira da estrutura e a luz passava sem obstáculos pelas janelas vazias. Ali devia ser o santuário. As ruínas nas duas bordas do pátio eram o que restava das hospedarias e dormitórios antes ocupados pelos fiéis e peregrinos vindos de longe. Pude ver algumas celas particulares, sem janelas, iguais às que encon­trara em Pergamum, onde as pessoas dormiam esperando por sonhos de cura ou visões divinatórias.

Avancei vagarosamente pelo pavimento quebrado. Sabia o que encontraria: um santuário vazio e poeirento, como o esquecido templo de Mitra em Segontium. Mas era possível, disse a mim mesmo enquanto subia os degraus e me via perto dos ainda impressionantes portais da cella central, bem possível que, tal como os carvalhos, a relva e os rios, esses seres feitos do ar, da terra e da água de meu doce país fossem mais difíceis de desalojar que os deuses visitantes de Roma. Um deles, como eu há muito acreditava, era o meu. Talvez estivesse ali, onde o vento da noite soprava em meio ao santuário vazio, enchendo-o com o som das árvores.

O luar vindo através das janelas superiores e buracos no te­lhado iluminava o lugar com um brilho de pureza. Um pedaço de madeira meio preso no alto de uma das paredes balançava na brisa e ia de um lado a outro, formando um alternar de luz e sombra. Era como estar no fundo de um poço. O ar, a sombra e a luz me pareciam ser água, pura e fria, contra a pele. O mosaico sob meus pés, ondulado e desnivelado onde o solo afundara, brilhava como o fundo de um mar onde nadavam estranhas cria­turas formadas pela luz prateada. De trás das paredes quebradas chegava o murmúrio das árvores.

Fiquei ali, imóvel, calado, por um longo tempo. O suficiente para a coruja voltar planando em asas silenciosas e empoleirar-se na janela. O suficiente para o vento amainar e o pedaço de ma­deira quase se imobilizar. O suficiente para a lua ir para trás da parede e as criaturas marinhas sob meus pés desaparecerem na escuridão.

Nada se mexia ou falava. Nenhuma presença ali. Disse a mim mesmo, com humildade, que isso não significava nada. Eu, antes um mago e profeta poderoso, fora levado por uma gigantesca maré até os portais do deus e agora vinha voltando para uma praia estéril. Se houvesse vozes ali, não ouviria. Voltara a ser um mero mortal.

Virei-me para deixar o lugar. Foi então que senti cheiro de fumaça.

Não de fumaça de sacrifícios; fumaça comum, de lenha, a que seguiu-se também um leve aroma de comida. Vinha de algum lugar atrás da hospedaria arruinada, à esquerda. Atravessei o pátio, passei sob os restos de um grande arco e, guiado pelo odor e depois pelo brilho de um pequeno fogo, consegui chegar a uma câmara onde um cão acordou e começou a latir, e duas pessoas se levantaram abruptamente.

Eram um homem e um menino, possivelmente pai e filho. Gente pobre, a julgar pelas roupas simples e rotas, mas com a expressão daqueles homens que são os únicos donos de si mes­mos.

Eles se movimentaram com a velocidade do medo. O cão, velho e cansado, com o focinho grisalho e um olho esbranquiçado, não atacou, mas me enfrentou rosnando. O homem pôs-se de pé, segurando uma faca. O menino, a desafiar o intruso com toda a valentia dos doze ou treze anos, brandiu um pedaço de lenha.

— A paz esteja convosco — falei e depois repeti a saudação no dialeto dos dois. — Vim orar aqui, mas ninguém me atendeu. Então senti o cheiro da fumaça e vim ver se o deus ainda mantinha algum servo neste lugar.

O cão rosnou mais alto. O homem abaixou a ponta da faca, mas continuou segurando-a firmemente.

— Quem é você? — perguntou.

— Apenas um estranho que está temporariamente nesta região. Muitas vezes ouvi falar do famoso santuário de Nodens e apro­veitei a oportunidade para visitá-lo. O senhor é seu guardião?

— Sou. Está procurando alojamento por uma noite?

— Não era minha intenção. Mas por que tocou no assunto? Tem condições de me oferecê-lo?

— As vezes.

Ele me olhava com desconfiança. O menino, mais confiante ou talvez vendo que eu estava desarmado, virou-se e colocou o pedaço de lenha no fogo. O cão, agora em silêncio, avançou para tocar minha mão com o focinho grisalho e balançou o rabo.

— E um bom cão — comentou o homem. — E já foi muito valente. Mas agora está velho e surdo.

Seu tom não era mais hostil, e diante do ato do cachorro, a faca desaparecera.

— E sábio também — acrescentei. Afaguei a cabeça peluda erguida para mim. — E do tipo que sabe ver o vento.

— Ver o vento?

O menino virou-se para mim com os olhos arregalados. O homem lançou-me um olhar intrigado. Expliquei:

— Nunca ouviu falar isso sobre um cão de olho branco? Por mais velho e lerdo que seja, ele pôde ver que vim com boas intenções. Meu nome é Myrddin Emrys e vim de Dyfed, um lugar a oeste daqui, perto de Maridunum. Passei muito tempo viajando e agora estou voltando para casa. — Dei-lhe meu nome galés porque, com certeza, como todos os outros, ele já ouvira falar de Merlin, o mago, e o temor não é bom entre pessoas que vão compartilhar de um mesmo fogo. — Posso entrar e me aque­cer um pouco enquanto você me conta sobre o santuário?

Eles abriram espaço para mim e o menino puxou um banquinho. Depois de várias perguntas, o homem relaxou e começou a falar com mais desenvoltura. Chamava-se Mog, que de fato não é um nome próprio e significa apenas "servidor", mas houve um rei que não hesitou em se denominar Mog Nuatha. Já o me­nino tinha um nome grandioso, emprestado de um imperador.

— Constâncio será o servo depois de mim — informou Mog. Ele continuou a falar com orgulho e saudades do período áureo do templo, cerca de meio século depois da partida das legiões romanas, quando um imperador pagão mandara reconstruí-lo. Mas, muito antes dessa época, um "Mog Nuatha" habitara o tem­plo com toda a família. Agora só restavam ele e o filho; sua esposa não se achava no momento porque descera para o vilarejo pretendendo ajudar a irmã doente e fazer compras no mercado.

— Isso, se tiver lugar para ela se mexer — resmungou Mog. — Daqui dá para ver o rio e hoje de manhã era atravessado por numerosos barcos. Constâncio me explicou que se tratava do exér­cito vindo com o novo rei. — Ele parou de falar e olhou aten­tamente para mim. — Por acaso o senhor é soldado? Está com eles?

— A resposta é sim para a última pergunta e não para a an­terior. Como pode ver, não sou um soldado, mas estou com o rei.

— Então o que o senhor é? Um secretário?

— Mais ou menos.

Ele balançou a cabeça, aceitando minha lacônica explicação. O menino, mantendo-se em silêncio, estava sentado de pernas cruzadas ao lado do cachorro. O pai voltou a fazer perguntas.

— Como é esse rapaz para quem o rei Uther deu sua espada, como contam por aí?

— Ele é jovem, mas já mostrou ser homem e um bom soldado. Tem jeito para liderar e bom senso bastante para ouvir os mais velhos.

O homem fez que sim novamente. Seria inútil falar com esses dois sobre poder e glória. Viviam nessas colinas distantes e, sem dúvida, o que acontecia por trás dos bosques de carvalho não fazia grande diferença. Mog me perguntou sobre a única coisa pela qual tinha real interesse.

— Esse jovem rei, Artur, é cristão? Será que vai querer arrasar nosso templo em nome desse novo deus egoísta, de quem tanto falam, ou está disposto a respeitar os antigos?

Respondi com tranqüilidade e o mais sinceramente que podia.

— Ele será coroado pelos bispos católicos e se ajoelhará diante do Deus de seus pais, mas é um homem desta terra e conhece os deuses daqui e o povo que ainda os servem nas colinas e fontes.

Meu olho captara, numa estante larga longe do fogo, vários objetos cuidadosamente limpos e arranjados. Eu vira coisas se­melhantes em Pergamum e outros locais de cura divina. Oferen­das para os deuses. Partes do corpo humano feitas de cera ou madeira, estatuetas de peixes ou animais que carregavam alguma mensagem de súplica ou gratidão.

— Você verá — prossegui — que os exércitos do novo rei passarão por aqui sem perturbá-lo e que, se por acaso ele vier até aqui, fará uma prece ao deus deste lugar e lhe deixará uma oferenda. Exatamente como eu.

— Isso é bom — disse o menino subitamente, e exibiu os dentes muito brancos num sorriso satisfeito.

Sorri para ele e deixei cair duas moedas na mão estendida.

— Para o santuário e para seus servos.

Mog resmungou alguma coisa e Constando levantou-se, foi para junto de um armário e voltou com pequeno odre e uma caneca amassada. O homem pegou sua caneca do chão e o menino nos serviu.

— A sua saúde — brindou Mog, e bebemos. Era hidromel, doce e forte. Limpando a boca na manga, ele falou: — O senhor esteve perguntando coisas do passado e respondemos o melhor e pudemos. Agora, cavalheiro, conte-me o que esteve aconte­cendo no norte. Ouvimos falar de guerras e de reis morrendo e sendo coroados. É verdade que os saxões foram embora? É ver­dade que o rei Uther Pendragon manteve esse príncipe escondido e o fez aparecer no campo de batalha de repente, onde ele matou quatrocentos monstros saxões com uma espada mágica e bebeu o sangue deles?

Foi então que mais uma vez contei a história, enquanto o me­nino alimentava o fogo em silêncio e as chamas saltavam, ilu­minando as oferendas na prateleira. O cão pegara no sono com a cabeça recostada em meu pé, o calor esquentando seu pêlo áspero. Enquanto eu falava o odre passava de um para outro e, quando terminei meu relato com o enterro de Uther e os planos de Artur para reforçar Caerleon para as guerras da primavera, o hidromel estava acabando e a lenha virará cinzas. Meu anfitrião sacudiu o odre.

— Acabou. E devo dizer que em nenhuma outra noite caiu tão bem. Obrigado pelas novidades, senhor. Vivemos distantes de tudo, mas saiba que, mesmo as coisas que acontecem lá na Bretanha (era como se ele estivesse falando de um país longín­quo), às vezes repercutem nestas paragens. Rezaremos para que o senhor esteja certo sobre o novo rei. Olhe, se porventura um dia tiver oportunidade de se aproximar dele, diga-lhe que en­quanto ele for leal ao verdadeiro país, terá aqui dois servos à disposição.

— Eu lhe direi. — Levantei-me. — Obrigado pela atenção e pela bebida. Lamento ter perturbado seu sono. Partirei agora e vocês poderão voltar a ele.

— Vai partir agora? Mas ainda é noite fechada e o senhor encontrará trancada a porta da hospedaria. Ou será que está no acampamento? As sentinelas não o deixarão passar sem a senha determinada pelo rei. É melhor ficar aqui. Não... — protestou enquanto eu começava uma recusa — ...ainda mantemos um quarto arrumado, como antigamente, quando vinha gente de lon­ge para ter sonhos. A cama é boa e o lugar seco e saudável. Nem todas as tavernas têm isso a oferecer aos seus hóspedes. Por favor, fique.

Hesitei. O menino ergueu o rosto para mim, com os olhos brilhantes, e o cachorro, que acordara quando levantei, balançou o rabo e soltou um bocejo, esticando as patas enrijecidas.

— E, fique... — suplicou Constando.

Eu podia ver que era importante para eles eu aceitar o convite. Minha estada traria de volta um pouco da antiga santidade do lugar. Alguém no quarto de hóspedes, que era mantido limpo e arejado à espera de fiéis que não vinham mais.

— Será um prazer — aceitei.

O menino, com um grande sorriso, enfiou uma tocha no meio das brasas e esperou que se acendesse.

— Venha, meu senhor, por aqui.

Enquanto eu o seguia, Mog, acomodando-se nos cobertores ao lado do fogo, proferiu a frase que há milênios era usada nos templos de cura:

— Durma bem, amigo. Que o deus lhe mande um sonho.

 

Seja quem for que o tenha mandado, o sonho veio e foi pro­fético.

Sonhei com Morgause, que eu expulsara da corte de Uther em Luguvallium, acompanhada por uma escolta com ordens de ajudá-la a atravessar com segurança a cadeia dos Peninos e daí seguir para York, onde se encontraria com sua meia irmã, Mor­gan.

O sonho veio espasmodicamente, como se eu estivesse avis­tando o horizonte através de nuvens que o vento afastava de tanto em tanto. Primeiro vi o grupo num entardecer de um dia chuvoso, onde a garoa fina e constante transformara o cascalho da estrada numa lama escorregadia. Eles haviam feito uma pausa na margem de um rio que se tornara caudaloso devido à chuva. Não reconheci o lugar. Para continuar, precisariam atravessar o rio, que normalmente devia ser raso, mas que agora era uma torrente com ondas quebrando contra uma pequena ilha, como se esta fosse um navio no oceano. Não avistei nenhuma casa ou caverna onde pudessem se abrigar. Na outra margem a estrada serpenteava por entre árvores encharcadas, subindo para uma área montanhosa.

Com a noite caindo rápido, parecia que o grupo teria de passar noite ali, esperando o rio abaixar. O oficial em comando ex­plicava a situação a Morgause. Não pude ouvir o que dizia, mas dava a impressão de estar bravo e seu cavalo, apesar de cansado, mostrava-se agitado. Adivinhei que a escolha de caminho não fora dele. Normalmente, quem sai de Luguvallium percorre o planalto até atingir a estrada que leva para o oeste perto de Brocavum e atravessa as montanhas na região de Verterae. Esse pas­so, que é mantido fortificado e sempre em boas condições, ofe­receria pelo menos um posto de parada onde encontrariam uma estalagem e comida para os animais, o que seria a escolha natural para um soldado. Em vez disso, eles deviam ter tomado a estrada velha, não muito usada. Eu nunca viajara por esse caminho, mas sabia que ele cruzava o planalto, indo para o vale das colinas Dubglas e daí subindo para as montanhas, que eram atravessadas no passo formado pelos rios Tribuit e Isara. Esse passo é chamado de vão dos Peninos e no passado os romanos o mantinham for­tificado, patrulhando constantemente a estrada. E um terreno sel­vagem e até hoje, no alto dos morros e escarpas acima da linha de vegetação, existem cavernas onde vivem os Antigos. Se essa era mesmo a estrada que Morgause usava eu não conseguia captar o que a levara a isso.

Neblina espessa; chuva em pancadas; a torrente caudalosa ar­rancando galhos dos arbustos ribeirinhos. Depois veio a escuridão e um intervalo no sonho escondeu o resto da cena para mim.

Em seguida vi onde tinham parado. Um lugar no alto do passo onde havia um marco de estrada, e de onde se avistava o começo de uma trilha que, depois de atravessar um bosque, levava para um vale distante, onde brilhavam algumas luzes. Morgause apon­tava para elas e tive a impressão de que havia uma discussão em progresso.

Eu continuava sem ouvir nada, mas a causa da disputa estava óbvia. O oficial avançara para o lado de Morgause e inclinado para a frente na sela, argumentava colericamente, apontando pri­meiro para o marco e depois para a estrada larga á frente deles. Um fraco raio de luz caiu sobre o marco e pude ler inscrito na pedra o nome OLICANA. Não deu para ver o número indicando a distância, mas o que o homem dizia estava claro. Seria loucura abandonarem a estrada principal, por meio da qual mais cedo ou mais tarde atingiriam o conforto oferecido pela cidade de Olicana, pela probabilidade daquela casa distante (se fosse mesmo uma casa) poder acomodá-los. Seus homens, que haviam se apro­ximado, o apoiavam abertamente. Ao lado de Morgause, suas damas de companhia a observavam aflitas, parecendo suplicar com olhares que ela obedecesse ao oficial.

Depois de algum tempo, Morgause desistiu com um gesto re­signado. O grupo se rearranjou. As mulheres, satisfeitas, incita­ram as montarias a se juntarem em torno de sua ama. Todavia, antes que o grupo avançasse quinze ou vinte passos, uma das damas de companhia soltou um gritinho aflito e em seguida vi Morgause largar as rédeas do cavalo e estender a mão num gesto delicado, como tentando procurar apoio, enquanto cambaleava na sela. O oficial, voltando rapidamente, emparelhou seu cavalo com o dela e estendeu o braço para ampará-la. Ela caiu contra o homem, inerte.

Não havia mais nada a fazer senão aceitar a derrota. Em poucos minutos vi o grupo vencendo com dificuldade a trilha enlameada descendo para a luz no vale distante. Morgause, envolta pela capa pregueada, permanecia imóvel nos braços do oficial.

Mas eu, que conheço bem as bruxas, sabia que Morgause estava desperta e que, oculta pelo capuz forrado de pele, sorria triunfante enquanto os homens de Artur a levavam para a casa onde, por motivos que só ela conhecia, pretendia ficar.

Quando as brumas da visão novamente se desfizeram, vi um quarto elegantemente arrumado, com uma cama com entalhes dourados e um braseiro lançando sua luz vermelha sobre Mor­gause, nela deitada. As damas de companhia que a cercavam eram as mesmas que eu vira em Luguvallium, inclusive a mo­cinha chamada Lind, que conduzira Artur até o quarto de sua ama, enquanto as mulheres mais velhas dormiam entorpecidas por uma poção qualquer. Lind estava pálida e cansada; lembrei-me de que Morgause, em sua fúria contra mim, mandara açoitá-la. Agora ela servia sua senhora um tanto assustada, com os lábios fechados numa linha fina e olhos baixos. A mais idosa das damas de companhia, enrijecida por causa da viagem extenuante, res­mungava baixinho enquanto executava suas tarefas. Morgause, porém, não mostrava nenhum sinal de doença nem mesmo de fadiga, como eu esperava. Recostada nos travesseiros bordados, parecia fixar os olhos verdes salpicados de dourado em algo distante e agradável, e exibia o mesmo sorriso que eu vira em seus lábios enquanto Artur dormia a seu lado.

Devo ter acordado ali, sacudido para fora do sonho pelo ódio e aflição, mas a mão do deus continuava em mim porque voltei a cair no sono e me vi de novo no mesmo quarto. Devia ter se passado um bom tempo, dias até, o necessário para Lot, rei de Lothian, assistir às cerimônias de Luguvallium e depois, por or­dem de Artur, tomar a estrada para York. Com certeza sua força principal fora diretamente para essa cidade, mas ele com um pequeno grupo de cavaleiros velozes, saíra do caminho para en­contrar-se com Morgause.

De repente tudo o que fora combinado entre eles ficou claro para mim. Morgause enviara uma mensagem a Lot antes de sair da corte, forçara sua escolta a andar devagar, escolhendo um caminho mais difícil que exigiria um tempo bem maior de viagem, e finalmente, pretextando doença, buscara abrigo na privacidade da casa de um amigo. Pensei ter entendido seu plano. Tendo fracassado na tentativa de alcançar o poder mediante a sedução de Artur, de algum modo persuadira Lot a se encontrar com ela e agora, com suas artes de bruxa, tentaria obter seus favores, de modo a conquistar uma posição de destaque na corte da irmã, a futura rainha de Lothian.

No instante seguinte, enquanto o sonho prosseguia, vi o tipo de armas que estava empregando; bruxaria, poderia dizer alguém, mas do tipo que todas as mulheres sabem fazer. Novamente sur­giu diante de mim o quarto iluminado pela luz avermelhada do braseiro e, ao lado dele, numa mesinha, vinho e comida em tra­vessas de prata. Morgause estava em pé e a luz tornava rosada sua camisola branca e a pele muito clara, transformando em uma cascata de ouro os cabelos cacheados que iam até a cintura. Mes­mo eu, que a detestava, tive de admitir que era uma linda mulher. Os olhos verdes salpicados de dourado, levemente erguidos nos cantos externos, fitavam a porta. Morgause estava sozinha.

A porta se abriu e Lot entrou. O rei de Lothian era um homem grande e moreno, com ombros largos e olhos febris. Gostava mui­to de jóias e elas cintilavam em pulseiras, anéis e num pesado colar cravejado de topázios. No ombro, onde os cabelos longos tocavam sua capa, estava um magnífico broche de granada o ouro, no estilo saxão. Um pensamento sombrio passou por minha mente. Poderia ser um presente do próprio Colgrim.

Morgause falava. Mais uma vez eu não pude ouvir. O sonho era uma visão de movimento e cores. Ela não fez menção de saudar o recém-chegado e Lot não parecia surpreso. Falou alguma coisa dirigindo-se à mesa e pegou a jarra com um gesto brusco, deixando cair vinho na toalha e no chão. Morgause riu. Não houve um sorriso de retorno por parte de Lot. Ele bebeu o vinho com avidez, atirou o copo no chão, avançou para Morgause com as mãos ainda sujas da viagem e agarrando o decote da camisola, rasgou-a ao meio, expondo o corpo rosado até o umbigo. Um segundo depois beijava-a com paixão, parecendo querer devorá-la. Não se dera ao trabalho de fechar a porta e Lind, a jovem dama de companhia, talvez intrigada com o barulho causado pelo copo, enfiou a cabeça pela fresta para ver se sua senhora precisava dela. Não mostrou surpresa diante da cena mas, talvez assustada com a violência do homem, hesitou por um segundo, como se pensasse correr em auxílio de Morgause. Mas então, como eu, Lind viu o corpo seminu amoldar-se ao de Lot e as mãos delicadas se entrelaçarem nos cabelos negros e ainda úmi­dos da chuva. A camisola escorregou para o chão. Morgause disse alguma coisa e riu. Lot afastou-se um pouco, sem largá-la. Lind recuou e a porta se fechou. Lot pegou Morgause nos braços e em quatro longos passos venceu a distância até a cama.

Bruxaria, sem dúvida. Se fosse um estupro, teria sido preci­pitado. Para uma sedução, fora rápido demais. Podem me chamar de ingênuo ou burro, o que quiserem, mas de início só pude pensar, vagando entre a névoa de meu sonho, que algum encan­tamento estivesse em ação. Veio-me à mente a história da poção de Circe, que fez os marinheiros de Ulisses se transformarem em porcos. Só algum tempo depois, quando Lot ergueu o braço nu para puxar as cobertas e aumentar a chama do lampião, e Mor­gause sentou-se apoiada nos travesseiros, parecendo estonteada de sexo e sono, foi que comecei a desconfiar da verdade. Lot levantou-se, caminhou por entre as roupas espalhadas pelo chão e foi servir-se de mais vinho. Depois de beber, encheu novamente o copo, levou-o para a amante e sentou-se a seu lado, com as costas apoiadas na cabeceira da cama, e começou a conversar. Morgause, inclinando-se sobre ele, balançava a cabeça e respon­dia agora com seriedade. Enquanto falavam, a mão de Lot desceu para apalpar os seios que tocavam sua cintura. Foi um gesto distraído, sem dúvida muito comum para o rei de Lothian, famoso nelas suas aventuras, mas seria para Morgause, a suposta donzela que ainda usava cabelos soltos em público e falava em tom re­catado? Ela pareceu nem notar o gesto. Só então, numa clareza súbita, foi que entendi a verdade. Os dois já tinham estado ali antes e se conheciam muito bem, Quando ela se deitara com Artur os dois já eram amantes. Estavam tão acostumados um com o outro que podiam ficar entrelaçados numa cama, conver­sando... Sobre o quê?

Traição, naturalmente, foi meu primeiro pensamento. Traição contra o Grande Rei que ambos, por diferentes razões, tinham motivo para odiar. Morgause, há muito cheia de inveja de sua meia irmã que pela lei a precedia em tudo, conquistara seu noivo com as artes que, agora eu sabia, aprendera com muitos outros amantes. Então viera a tentativa de Lot de assumir o poder em Luguvallium. O golpe fracassara e Morgause, que não estava a par das qualidades morais de Artur, em especial a força e a cle­mência que o fariam aceitar novamente o rei de Lothian como seu aliado, voltara-se para o próprio irmão na sua ânsia pelo poder.

E agora? Morgause tinha alguns poderes mágicos. Talvez sou­besse, como eu, que concebera de seu incesto com Artur e tinha de arranjar um marido. Quem melhor do que Lot? Se ele pudesse ser convencido de que o filho era seu, Morgause roubaria de sua odiada irmã o marido e o reino de Lothian, e conseguiria um ninho adequado para criar seu bastardo em segurança.

Tudo indicava que ela seria bem sucedida. Quando a névoa abriu-se de novo, vi os dois rindo juntos. Morgause afastara as cobertas e estava sentada perto da cabeceira da cama, com os cabelos rosa dourados cobrindo os ombros como se fosse um manto de seda. Continuava nua, mas agora usava a coroa de Lot, um fino aro de ouro onde cintilavam topázios e as pérolas azuladas que são encontradas nos rios do norte. Seus olhos brilhantes estavam estreitados, o que me fez lembrar de um gato. Lot riu gostosamente quando ergueu o copo e bebeu, como se estivesse fazendo um brinde. Quando ergueu novamente a mão, o copo entornou e o vinho caiu nos seios de Morgause como se fosse gotas de sangue. Ela continuou imóvel, sorrindo, e o rei inclinou-se para lambê-lo.

A fumaça do braseiro aumentou e eu pude sentir seu cheiro, como se estivesse a seu lado. Depois, dando graças aos céus, acordei na noite fria e silenciosa do santuário, mas o pesadelo continuava escorrendo por todo o meu corpo, como se fosse suor.

Para qualquer outra pessoa, o quadro não teria sido escanda­loso. A moça era linda e o homem vistoso e viril e, sendo ambos solteiros, não existia nada de errado no fato dela desejar a coroa de rainha. Cenas desse tipo são encontradas às dúzias nas agra­dáveis noites dos meados do verão. Todavia, para mim, existe algo de muito sagrado numa coroa, pois ela é o símbolo do elo misterioso que existe entre o deus e o rei, e o rei e seu povo. Vê-la na cabeça dessa moça calculista enquanto Lot, seu legítimo dono, agia como se fosse um animal bebendo água, foi como encontrar um altar profanado por escarro.

Levantei-me de um salto, enfiei a cabeça na bacia com água e lavei de minha mente a desagradável visão.

 

Às doze horas do dia seguinte, quando chegamos a Caerleon, um forte sol de outubro secava o chão e apenas nos cantos das muralhas e edifícios restava um pouco de gelo sujo. As árvores ao longo da margem do rio, com troncos escuros e folhas amarelas redondas, lembrando moedas, estavam imóveis e pareciam ter sido bordadas contra o céu azul. Folhas secas, ainda duras por causa da geada, estalavam sob os cascos de nossos cavalos. O aroma de pão fresco e carne assada vindo das cozinhas do acam­pamento trouxe-me à memória a visita que no passado eu fizera à cidade em companhia de Tremorinus, o mestre engenheiro que reconstruíra o quartel para Ambrosius, instalando ali as melhores cozinhas militares do país.

Contei meus pensamentos a Caius Valerius, meu velho amigo e atual companheiro de viagem, e ele concordou:

— Esperemos que o rei reserve um bom período para seu almoço antes de começar a inspeção.

— Pode ficar tranqüilo, ele tem um ótimo apetite.

— Sim, claro, afinal, ainda é um rapaz em crescimento.

As palavras saíram num tom de orgulho indulgente, sem o menor vestígio de bajulação. lira algo bem típico de Valerius, um veterano que lutara com Ambrosius em Kaerconan, servindo depois a Uther com a mesma dedicação, e que fora um dos co­mandantes que haviam lutado ao lado de Artur na batalha do no Glein. Se homens dessa estatura estavam dispostos a aceitar o jovem rei com respeito e confiar em sua liderança, eu podia dar minha missão por terminada. O pensamento veio limpo, sem nenhuma sensação de perda ou declínio, trazendo uma calma nova para mim. Sim, calculei, estou mesmo envelhecendo. Percebi que Valerius me perguntara alguma coisa.

— Desculpe. Eu estava distraído com meus pensamentos. Você disse...

— Perguntei se você vai ficar aqui até a coroação.

— Acho que não. É possível que Artur precise de mim por algum tempo, pois sei que está pensando em reconstruir Caerleon. Espero, contudo, obter permissão para partir logo depois do Na­tal, mas voltarei para a coroação.

— Se os saxões nos derem tempo para ela.

— Bem falado. Deixar a cerimônia para Pentecostes me pareceu um pouco arriscado, mas foi escolha dos bispos e o rei achou melhor não contrariá-los.

— Hum! Se eles resolvessem colaborar e fazer orações real­mente contritas, talvez Deus segurasse a ofensiva de primavera por mais algum tempo. Pentecostes, hein? Será que estão espe­rando que volte a cair fogo dos céus... e, desta vez, o fogo deles? — Valerius lançou-me um olhar de soslaio. — O que me diz disso, Merlin?

Eu sabia bem o que ele queria dizer. Desde que o fogo branco tomara conta da Capela Perigosa, os cristãos tinham começado a compará-lo com o que, num certo dia de Pentecostes, caíra sobre os servos escolhidos pelo seu deus. Não vi motivos para contestar essa interpretação do que ocorrera na floresta, porque era necessário que os cristãos, com seu poder crescente, aceitas­sem Artur como o rei indicado pelo seu deus. Além disso, por tudo o que eu sabia, a história era verdadeira.

Valerius esperava por uma resposta. Sorri para ele.

— Só digo que, se eles sabem de onde veio o fogo, têm maior conhecimento do que eu.

— Ah, claro! — O tom mostrou um ligeiro desdém. Valerius não presenciara Artur levantar a espada do meio do fogo na Capela Perigosa porque naquela noite era o comandante da pa­trulha noturna de Luguvallium, mas, como todo o mundo, ficara sabendo do caso. E, também como os outros, evitava tocar diretamente no assunto. — Quer dizer então que você vai nos deixar depois do Natal? Para onde pretende ir, Merlin?

— Vou voltar para Maridunum, para o meu lar. Já se passaram cinco anos... não, seis anos desde que estive lá. Quero ver se está tudo em ordem.

— Então providencie para chegar a tempo para a coroação. Haverá grandes festejos por ocasião do Pentecostes. Seria uma pena perdê-los.

Nessa ocasião, pensei, Morgause estaria perto de sua hora, mas em voz alta só disse:

—Oh, sim. Com ou sem saxões, teremos grandes festejos em Pentecostes.

Então falamos sobre outras coisas até chegarmos aos nossos alojamentos, onde já nos esperava o convite para almoçarmos com o rei e seus oficiais.

 

Caerleon, a antiga Cidade das Legiões romana, fora recons­truída por Ambrosius e desde então era mantida bem conservada e guardada. Artur estava disposto a ampliá-la quase até atingir o tamanho original e torná-la, ao mesmo tempo, uma fortaleza e residência do rei. A antiga cidade real de Winchester agora ficava perto demais da fronteira dos territórios ocupados pelos saxões e, como estava situada na margem do rio Itchen, era vul­nerável a novos ataques com barcos de guerra. Londres conti­nuava segura e nenhum saxão se aventurara a invadir o vale do Tâmisa, mas na época de Uther as chalupas haviam penetrado até Vangniacae, e atualmente Rutupiae e a ilha de Thanet con­tinuavam em poder do inimigo. Considerava-se que lá estava a verdadeira ameaça e que ela crescia a cada ano, e desde que Uther subira ao trono Londres começara a entrar em decadência. Agora era uma cidade que enfrentava dias difíceis; muitos de seus prédios tinham ruído devido à idade e ao desleixo, a pobreza aumentava à medida que os mercados eram transferidos para outras localidades e os que tinham meios para isso estavam se mudando para lugares mais seguros. Era voz corrente que ela jamais voltaria a ser uma capital.

Portanto, até que a nova fortaleza estivesse pronta para en­frentar qualquer invasão importante a partir da costa saxã, Artur planejava fazer de Caerleon o seu quartel-general. Não poderia haver escolha melhor. A pouco menos de doze quilômetros ficava Guent, a capital do rei Ynyr, com sua fortaleza situada numa curva do rio, mas longe do perigo das inundações. As montanhas protegiam sua retaguarda e o lado leste fazia fronteira com a área pantanosa resultante do encontro dos rios Isca e Afon Lwyd. Naturalmente, Caerleon só podia defender uma pequena parte do território que agora se encontrava sob o escudo de Artur, mas ofereceria uma boa base para sua política de constituir uma defesa móvel.

Fiquei com ele por todo esse primeiro inverno. Uma vez me perguntou com uni ar zombeteiro quando eu pretendia partir para minha toca nas alturas, mas só respondi: "Mais tarde", e deixei por isso mesmo.

Não contei a Artur sobre o sonho que tivera no santuário de Nodens porque o novo rei já tinha muito em que pensar. Eu também dava graças por ele aparentemente ter se esquecido das possíveis conseqüências da noite que passara com Morgause. Ha­veria tempo suficiente para conversarmos quando viessem as no­tícias sobre o futuro casamento em York.

Elas não só vieram, como também acabaram chegando a tempo de sustar os preparativos para a partida da corte para o norte, onde assistiria à cerimônia, ficando em seguida para o Natal. O mensageiro primeiro entregou uma longa explicação de Ygraine para o rei e depois, informado de que eu caminhava pela beira do rio, foi me procurar para deixar em mãos uma carta particular da rainha. Eu passara a manhã inteira supervisionando o assen­tamento de uma nova tubulação e agora os homens estavam al­moçando. Como os soldados que treinavam no campo perto do antigo anfiteatro tinham se dispersado, havia um agradável si­lêncio nessa tarde cinzenta de inverno.

Agradeci ao homem e esperei-o afastar-se antes de quebrar o selo.

Meu sonho fora profético. Lot e Morgause estavam casados. Antes mesmo de a rainha Ygraine e seu séquito chegarem a York já se sabia que eles tinham se apresentado à população como noivos. Morgause — a essa altura eu já estava lendo nas entre­linhas — entrara na cidade cavalgando orgulhosamente ao lado

Lot este corado de triunfo e coberto de jóias, e a cidade, que preparava para um casamento real onde teria oportunidade , ver o Grande Rei em pessoa, engoliu o desapontamento e, ara não desperdiçar o dinheiro já reservado para a grande oca­sião, fizera a festa do mesmo jeito. O rei de Lothian, contou Ygraine, apresentara-se a ela cheio de humildade e enviara presentes para os principais chefes de York, o que lhe garantira boas-vindas calorosas. Quanto a Morgan — pude captar o tom satisfeito nas palavras de sua mãe — ela não mostrara nem raiva nem humi­lhação; rira às gargalhadas e depois chorara com o que pareceu ser puro alívio. Comparecera aos festejos com um alegre vestido vermelho e nenhuma moça demonstrara maior vivacidade (Ygrai­ne terminou com um toque de acidez que eu conhecia bem), apesar de Morgause ter ostentado sua nova coroa desde a ma­drugada até a hora de dormir...

Ocorreu-me que a reação da rainha também fora de alívio. Nunca tivera motivos para morrer de amores por Morgause, e Morgan, ao contrário de Artur, fora uma criança que conseguira criar pessoalmente. Ficou claro que, apesar de nem lhes passar pela idéia contestar a ordem deixada por Uther, tanto ela como Morgan não estavam contentes com a perspectiva de um casa­mento com o rei de Lothian. Imaginei se Morgan sabia mais sobre o caso do que revelara à mãe. Era possível até que Morgause, sendo quem era, estivesse se vangloriando de ter deitado com Lot quando ele ainda era noivo de sua detestada irmã.

Pelo que pude sentir nas palavras de Ygraine, ela não descon­fiava disso e nem lhe passava pela cabeça que a gravidez da noiva fosse um possível motivo para o casamento apressado. Re­zei para não haver nenhuma insinuação sobre uma criança, na carta enviada a Artur. Ele estava assoberbado com tantas ceri­mônias e preparativos para a guerra; a raiva e a aflição poderiam ficar para mais tarde. Uma vez coroado, estaria livre para se empenhar na formidável tarefa de defender seu país e não devia ser tolhido por desagradáveis assuntos relacionados com mulhe­res, nos quais, porém, infelizmente, eu teria de me envolver.

Artur atirou a carta ao chão. Estava furioso, mas tentava se controlar.

— E então? Imagino que você já esteja sabendo.

— Estou.

— E há quanto tempo?

— A rainha, sua mãe, me escreveu. Acabo de ler minha carta. Creio que ela contém as mesmas notícias que estão na sua.

— Não foi o que perguntei!

— Se está me perguntando se eu sabia que isso iria acontecer — disse eu suavemente —, a resposta é sim.

— Você sabia? — O olhar furioso se tornou mais brilhante. — Por que não me contou?

— Por dois motivos: porque você estava ocupado com coisas mais importantes e porque eu não tinha plena certeza.

— Não tinha plena certeza? Ora, Merlin! Você?

— Artur, tudo o que eu sabia ou suspeitava sobre esse caso me veio em um sonho que tive há algumas semanas. Não foi como os outros. Veio como um pesadelo causado pelo excesso de vinho, ou por eu ter pensado demais naquela gata brava e em suas artes. O rei Lot também estava em minha mente. No sonho vi os dois juntos e Morgause experimentava a coroa dele. Por acaso lhe parece o suficiente para eu apresentar um relatório que deixaria a corte de cabelo em pé e o faria correr para York para brigar com Lot?

— Você tinha obrigação de me contar! — A boca de Artur fechou-se numa linha teimosa e irritada. Vi que a verdadeira origem da raiva era a ansiedade a respeito de Morgause.

— Se eu continuasse sendo o profeta do rei. Não — falei er­guendo a mão ao ver o olhar indignado —, não estou servindo uma outra pessoa. Mas não sou mais um profeta, Artur, pensei que você tivesse entendido.

— Entendido, o quê?

— A noite em que você pegou a espada que eu tinha escondido no fogo foi a última em que o poder me visitou. Vimos como ficou o lugar, quando tudo acabou e a capela se esvaziou. O fogo quebrou a pedra onde estava a espada e destruiu as relíquias sagradas. Ele não me atingiu, mas penso que nesse momento nesse momento sugou o poder de mim, talvez para sempre, queimando-o com o resto Pensei que você tivesse ao menos desconfiado.

—Como eu poderia? — O tom de Artur tinha mudado. Não havia mais raiva, só uma nova compreensão. — Você continuou parecendo o mesmo de antes. Lúcido e tão seguro de si que con­versar com você é como consultar um oráculo.

—Ora, Artur, não me ofenda! — brinquei. — Os oráculos nunca foram grande coisa. Mulheres velhas ou mocinhas retar­dadas resmungando no meio da fumaça. Se tenho lhe parecido tão seguro de mim nestas últimas semanas é porque até agora apenas me consultaram sobre fatos relacionados com minha vida profissional, só isso.

— "Só isso?" Sim, claro, seria mais do que suficiente para qualquer rei que não conhecesse seu outro lado... Mas creio que estou entendendo. Acho que aconteceu o mesmo para nós dois. As visões e sonhos desapareceram e agora temos de viver de acordo com as leis dos homens. Você logo compreendeu e foi por isso que aceitou minha decisão de ir pessoalmente à procura de Colgrim. — Artur caminhou até o lugar onde caíra a carta; pegou-a e levou-a para a mesa. Inclinou-se sobre ela com um ar sombrio, mas seu olhar estava distante. Depois ergueu a cabeça. — E o que faremos com os anos que estão por vir? Os combates serão penosos e não terminarão nem neste nem no próximo ano. Você está me dizendo que não poderei contar mais com sua aju­da? Não falo sobre máquinas de guerra ou seu conhecimento de medicina. Estou perguntando se não receberei a "mágica" da qual soldados tanto falam, a ajuda que você deu a Ambrosius e meu pai.

— Com essa você pode contar. — Sorri. Eu sabia que Artur estava pensando no efeito que minhas profecias e principalmente minha presença exercia sobre as tropas. — Os soldados conti­nuarão pensando o que pensavam de mim antes da noite na capela. Além disso, não vejo mais necessidade de profecias a respeito das guerras em que você vai se envolver. Todos sabem 0 que eu disse. Lá fora, nos campos de batalha, na largura e comprimento da Bretanha, existe glória para você e para eles. Você terá êxito após êxito e no final... não sei quanto tempo le­vará... conquistará a vitória. Isso foi o que lhe disse e continua sendo verdade. É o trabalho para o qual você foi treinado. Agora vá fazê-lo e deixe-me encontrar um jeito de fazer o meu.

— Isso então significa que, como você conseguiu fazer o filhote de águia alçar vôo, agora pode ficar na terra? Que vai esperar pela vitória e depois voltará a me ajudar na reconstrução?

— Tudo ao seu tempo — falei, apontando a carta amassada — Agora tenho de ajudá-lo a lidar com situações como essa Depois de Pentecostes, com sua permissão, irei para o norte, para Lothian.

Houve uma pausa enquanto eu via o alívio colorir as faces de Artur. Ele não perguntou o que eu pretendia fazer lá, e disse apenas:

— Fico satisfeito com isso, você sabe. Será que precisamos conversar sobre a causa dos acontecimentos em York?

— Não.

— Você estava certo, como sempre. O que ela queria era poder e não importava o meio de consegui-lo. Agora vejo bem isso. Só posso lhe dizer que estou contente porque tudo indica que ela não reivindicará possíveis direitos. — Um pequeno gesto afastou os pensamentos sobre Morgause e suas tramas. — Mas duas coi­sas permanecem. A mais importante é que preciso de Lot como aliado. Você estava certo mais uma vez ao não me contar sobre o sonho. Eu, sem dúvida, teria brigado com ele. Da maneira como estão as coisas... — Artur ergueu os ombros.

Eu só fiz que sim com um gesto de cabeça.

— Do modo estão as coisas você pode aceitar o casamento de Lot com sua meia irmã e considerá-lo um selo no acordo entre os dois reinos. Essa, afinal, era a aliança que Uther queria quando pensou em casar uma filha com o rei de Lothian. Creio que por enquanto podemos ignorar os motivos para essa troca de noivas.

— E creio que tudo está mais fácil porque, pelo que a rainha escreveu, Morgan não deu grande importância ao acontecido. Se ela tivesse se sentido menosprezada... esse seria o segundo pro­blema do qual lhe falei. Sua carta também conta que Morgan não demonstrou nada senão alívio?

— Sim. Há pouco estive interrogando o mensageiro que veio de York. Ele me contou que Urbgen de Rheged estava em York para o casamento e que Morgan só tinha olhos para ele.

Como o velho Coei morrera logo depois da batalha de Luguvallium, Urbgen se tornara o rei de Rheged. Era um homem de cerca de quarenta anos, um notável guerreiro, bem apessoado e ainda vigoroso. Ficara viúvo dois ou três anos antes.

Os olhos de Artur brilharam, interessados.

—Urbgen de Rheged? Essa seria uma união e tanto! Urbgen... sim. Ele e Maelgon de Gwynedd são os melhores guerreiros do norte e, pelo que me contaram, jamais houve dúvida sobre sua lealdade. Juntos eles manteriam firmemente a região e eu...

Eu terminei por ele:

—E você poderia ignorar Lot e sua rainha.

—Exatamente. Será que Urbgen receberá bem a sugestão de um casamento com Morgan?

— Ele vai se considerar um homem de sorte. E creio que Mor­gan viverá melhor do que se tivesse casado com o outro.

Penso que breve você receberá uma outra carta. E saiba que isto é uma intuição informada e não uma profecia.

— Merlin, você está aborrecido com sua perda?

Foi o Grande Rei que me fez a pergunta; um homem capaz de ver além de seus problemas mais prementes para tentar en­tender o que significava para mim viver no mundo cotidiano quando antes eu habitava o jardim colorido de um deus.

Pensei um pouco antes de responder.

— Não tenho certeza. Já houve épocas como essa, tempos pas­sivos, a vazante depois da inundação, mas nunca aconteceu quan­do ainda estávamos no portal de grandes eventos. Não estou habituado a me sentir impotente e devo dizer que isso me de­sagrada. Todavia, se aprendi uma coisa ao longo dos anos em que o deus esteve comigo, é confiar nele. Já tenho idade bastante para caminhar tranqüilo pelo resto de minha vida e quando olho para você sinto-me realizado. Por que deveria lamentar? Sentarei num canto e ficarei observando você completar o trabalho para num. Esse é um dos privilégios da velhice.

— Velhice? Ora, Merlin, você fala como se estivesse de barbas brancas. Qual é a sua idade?

— Já vivi bastante. Estou com quase quarenta anos.

— Ora, pelo amor de Deus! Artur explodiu numa gargalhada e acabei rindo com ele. Fui levado pelo braço até um canto do salão onde ficava a mesa com meus projetos da nova Caerleon e nos absorvemos numa conversa sobre eles. Artur não tocou mais no nome de Morgause e pensei: falei de confiança, mas que maior confiança do que esta? Se eu falhar com esse rapaz, serei realmente apenas uma sombra e um nome, e foi zombaria eu ter posto a mão na espada da Bretanha. Quando, depois do Dia de Reis, solicitei permissão para viajar para Maridunum, Artur concordou meio distraído, já envolvido nos pensamentos sobre a tarefa que teria a sua frente no dia seguinte.

 

A caverna que eu herdara de Galapas, o eremita, ficava a cerca de oito quilômetros a leste de Maridunum, a cidade que guarda a foz do rio Tywy. Meu avô, o rei de Dyfed, morava em Mari­dunum e eu, criado como um desprezado bastardo na residência real, tinha um tutor preguiçoso que me deixava à vontade para vagar pelos campos. Fizera amizade com o velho sábio que vivia recluso na caverna de Bryn Myrddin, situada num monte dedi­cado a Myrddin, deus do firmamento e guardião da luz e do ar livre. Quando Galapas morreu, continuei visitando a caverna e acabei fazendo dela o meu lar. O povo simples do lugar, que costumava procurar a fonte de Myrddin em busca de seus poderes curativos, passou a recorrer a mim para tratamento e remédios. Logo minha perícia como médico ultrapassou a do velho ermitão e em pouco tempo cresceu minha fama de ter poderes para fazer o que os homens chamam de "magia", de modo que o lugar passou a ser conhecido como "o monte de Merlin". Acredito que essa gente humilde chegasse a pensar que eu era o próprio Myrd­din, o guardião da fonte.

Existe um moinho situado na margem do Tywy e é nesse ponto da estrada que começa a trilha para Bryn Myrddin. Quando che­guei a esse lugar vi que uma barcaça subira o rio e estava ancorada ali. O grande cavalo que a puxava pastava do jeito que podia na vegetação rala do inverno, enquanto um rapaz descarregava sacos no ancoradouro. Não vi o mestre barqueiro, que devia estar saciando sua sede na cabine do barco. Um menino de uns cinco ou seis anos corria de um lado para o outro, atrapalhando o serviço do moço e falando sem parar numa estranha mistura de galês e um idioma que não me era desconhecido, mas que saía o distorcido devido à língua presa que não consegui entender quase nada do que ele dizia. Porém, quando o rapaz respondeu, reconheci tanto o idioma quanto ele próprio.

—Stilicho! — chamei. Enquanto ele punha o saco junto com os outros, acrescentei em sua própria língua. — Eu devia ter mandado avisar sobre minha chegada, mas não tive tempo para isso. Voltei antes do que pretendia. Como vai?

— Meu senhor!

Ele ficou me olhando estupefato por alguns instantes e depois atravessou correndo a faixa relvada que separava a estrada do rio. Limpou as mãos nas calças, estendeu o braço para pegar minha mão e beijou-a. Vi lágrimas em seus olhos e elas me co­moveram. Stilicho era um siciliano que fora meu escravo por ocasião de minhas viagens pelo exterior. Eu o libertara em Constantinopolos, mas ele escolhera continuar comigo e vir para a Bretanha, e fora meu criado quando eu morava em Bryn Myrddin. Quando eu partira para o norte ele já estava para se casar com filha do moleiro, Mai, e pretendia descer para o vale e morar no moinho.

Stilicho continuava me dando as boas-vindas, falando em si­ciliano. O galés que aprendera desaparecera em sua excitação. O menino aproximou-se de nós curioso, com o dedo na boca.

— É seu? — perguntei. — Bonita criança.

— O mais velho — informou ele com orgulho. — São todos meninos.

— Todos? — Ergui uma sobrancelha.

— Só três — apressou-se a responder, com o olhar límpido do qual eu tão bem lembrava. — E tem mais um a caminho.

Dei uma risada e o cumprimentei, desejando outro menino. Por sorte, ele não seria forçado, como seu pai, a vender alguns filhos como escravos para poder sustentar o resto. Mai era filha única e herdaria um belo patrimônio.

Ela já herdara, como descobri em seguida. O moleiro morrera dois anos antes e agora Stilicho tocava o negócio em seu lugar.

— Mas saiba que sua casa está bem cuidada, meu senhor. Eu ou o garoto que trabalha para mim subimos todos os dias para ver se está tudo direitinho. Naturalmente, ninguém teria o atrevimento de entrar lá, e por isso o senhor a encontrará como dei­xou, só que... bem, claro que não tem nenhuma comida lá.— Ele hesitou, como em dúvida de me fazer o convite. — O senhor nos daria a honra de passar esta noite aqui? Lá no alto está frio e tem muita umidade, apesar de toda as semanas acendermos um braseiro para que os livros não se estraguem. Fique aqui, senhor, e o garoto subirá agora mesmo para acender o braseiro e pela manhã Mai e eu iremos...

— É muita gentileza sua, Stilicho, mas não sentirei muito o frio e posso acender o fogo sozinho... talvez seja bem mais rápido do que o garoto. — Sorri ao ver a expressão no rosto de Stilicho. Ele não se esquecera de algumas coisas que presenciara quando servira seu patrão mago. — Agradeço o convite, mas não quero dar trabalho. No entanto, se não for abusar de Mai, gostaria de comer alguma coisa. Enquanto descanso poderemos conversar, você me apresentará seus filhos e antes de escurecer subirei para a caverna levando algumas provisões.

— Claro, claro, será um prazer... Vou avisar Mai. Ela ficará honrada... feliz...

Eu já tivera a oportunidade de divisar um rosto pálido e olhos arregalados na fresta de uma cortina, e sabia que Mai só ficaria feliz quando visse o assustador príncipe Merlin pelas costas. Mas estava cansado da viagem e logo ao chegar eu sentira o aroma de um ensopado no fogo, que certamente tornaria mais agradável minha subida.

Stilicho, com o habitual jeito ingênuo, informou:

— Temos uma galinha gorda no fogo. O senhor vai gostar. Entre, se aqueça e descanse até o jantar. Bran cuidará de seu cavalo enquanto eu termino de descarregar o trigo da barcaça, para ela poder voltar para a cidade. Fique à vontade, meu senhor, e bem-vindo a Bryn Myrddin.

Muitas vezes eu subira a encosta daquele vale indo para Bryn Myrddin, mas de nenhuma delas me lembro tão bem como esta. E o interessante é que não houve nada de extraordinário nela, foi só uma volta ao lar.

Até este instante, quando estou escrevendo sobre ela depois de tanto tempo, cada detalhe dessa subida está vivido em minha memória. O som oco das patas do cavalo no solo endurecido pelo frio; o estalar de gravetos e folhas secas; o vôo rasante de m galo da campina em fuga; o bater de asas de um pombo assustado. Depois o sol se pondo rápido e quase branco no entardecer, fazendo cintilar a umidade congelada nas bordas das folhas, transformando-a em pó de diamantes; os galhos de aze-vinho estalando por causa dos passarinhos que se alimentavam das frutinhas; o aroma de pinheiros úmidos; um tapete de pequeninas flores de inverno douradas pelos últimos raios de luz; o ar puro e cristalino.

Abriguei o cavalo no barracão que ficava na parte inferior da escarpa e subi a trilha até atingir o morrinho de turfa que protegia a entrada da caverna. Logo eu estava em seu interior silencioso, sentindo os aromas dos quais eu tão bem lembrava, e mais per­cebendo do que ouvindo o roçar de veludo vindo dos morcegos que agora dormiam no ninho de pedras que formava uma clarabóia natural.

Stilicho me dissera a verdade: o lugar estava bem cuidado, seco e arejado, e o frio, maior do que o da tarde que eu deixara lá fora, requeria um bom fogo para ser combatido. O braseiro estava pronto para ser aceso e havia troncos secos na lareira perto da entrada. A pederneira continuava na prateleira em que eu a guardara. No passado raramente era tirada dali, mas dessa vez não dispensei seu uso e logo estava com o fogo aceso. Talvez devido à recordação de uma outra trágica volta ao meu lar, sen­ti-me meio temeroso de testar, mesmo nessa tranqüila solidão, o menor de meus poderes. Mas, pensando bem, creio que tomei essa decisão mais por cautela do que medo. Se eu ainda tinha o poder, o reservaria para coisas mais importantes do que acender um braseiro. É mais fácil criar uma tempestade a partir de um céu claro do que manipular o coração de um homem. E logo, se minha intuição ou meu cérebro não mentissem, eu precisaria de todos os tipos de poderes que seria capaz de reunir para algo ainda mais difícil do que isso: enfrentar uma mulher. O ar parece fraco quando comparado com rocha, mas é mais difícil se ver o ar do que uma montanha. Assim, usei a pederneira para acender 0 braseiro de meu quarto, depois a lareira e em seguida, já tendo esvaziado meus alforges, saí com uma jarra para pegar água na fonte. Ela nascia numa rocha coberta de samambaias ao lado da boca da caverna, corria por uma fenda e pingava numa bacia natural de pedra. Acima dela, por entre o musgo e coroada pelo orvalho congelado, ficava a imagem do deus Myrddin, o guardião das estradas do firmamento. Derramei um pouco da água do jarro em uma libação para ele e depois entrei para examinar meus livros e medicamentos.

Nada se estragara. As ervas, guardadas em potes bem fechados e selados, ainda mantinham seu frescor. Satisfeito, arrumei minha cama e em seguida fui pegar a grande harpa que guardava no fundo da caverna. Tirei suas cobertas protetoras e levei-a para perto do fogo, pretendendo afiná-la quando as cordas estivessem mais aquecidas. Esquentei um pouco de vinho e sentei-me para bebê-lo vagarosamente, enquanto pensava nas músicas que já extraíra desse elegante instrumento. Finalmente, desembrulhei a pequena harpa que me acompanhava em todas minhas viagens e devolvi-a ao seu lugar na caverna de cristal. Esta era uma ca­verna pequena, cuja boca ficava bem no alto da parede posterior da caverna principal; um afloramento de rocha a protegia de vista. Quando eu era menino, ela fora meu portal da Visão. Ali, no profundo silêncio do interior da montanha, no isolamento e escuridão, nenhum sentido funcionava, a não ser o olho da mente.

Agora, porém, ouvi o murmúrio da harpa enquanto a punha no chão. Era a mesma que construíra quando menino, tão per­feitamente cordoada que até o ar a fazia murmurar. Os sons que produzia eram estranhos e às vezes chegavam a ser muito belos, mas não formavam música como a conhecemos. Isso é muito comum na natureza. O canto da foca-cinzenta nos parece bonito, mas é formado mais pelos sons do vento e das ondas do que pela voz do animal. A harpa cantou para si mesma enquanto eu a arranjava no lugar e seu ronronar me fez lembrar de um gato sonolento se acomodando em sua almofada preferida.

— Você descanse aí — disse eu a minha pequena companheira, e diante do som de minha voz que deslizava pelas paredes cris­talinas ela voltou a murmurar.

Voltei para junto da lareira, lancei um olhar para fora, vendo que as estrelas salpicavam o céu claro da noite de inverno. Afinei a harpa grande e em seguida, de início hesitante e depois mais à vontade, fiz música.

 

Repousa, mago, enquanto a luz do dia fenece.

A visão se estreita e o distante

Horizonte desapareceu com o sol.

Contente-se com as centelhas

Do carvão, com o aroma

Da comida e o soprar

Do frio atrás da porta fechada.

Seu lar é aqui, junto de coisas simples;

Uma caneca, uma gamela, uma coberta,

Orações, uma oferenda para o deus, e sono,

O bom sono.

 

(E música, diz a harpa, E música.)

 

Como se imaginava, a primavera trouxe problemas. Colgrim, navegando cautelosamente pelo litoral leste, desembarcara nos antigos territórios federados e treinava um outro exército para substituir o que fora derrotado em Luguvallium e no vale do Glein.

A essa altura eu já estava em Caerleon, ocupado com os planos de Artur para a formação de uma cavalaria móvel.

A idéia, embora surpreendente, não era totalmente nova. Com os federados saxões já estabelecidos por tratado na região sudeste da ilha e com toda a extensão da costa leste em constante perigo, era impossível estabelecer e manter uma linha de defesa fixa. Havia, claro, certos bastiões defensivos, sendo a Muralha de Ambrosius o maior deles. (Omito a Grande Muralha de Adriano, que jamais foi uma estrutura puramente defensiva e que mesmo na época do imperador Macsen era dificílima de defender. Ela também ruíra em vários lugares, mas as obras de reforma pode­riam ser deixadas para mais tarde porque nossos inimigos não eram mais os celtas das regiões selvagens do norte, mas invasores que chegavam pelo mar e que já tinham se apoderado do sudeste da Bretanha.)

Artur estava empenhado na ampliação e restauração desses bastiões, concentrando-se especialmente no Dique Negro da Northumbria, que protege Rheged e Strathclyde, e na mais antiga das muralhas romanas, construída ao sul da planície de Sarum. O rei pensava em aumentar a extensão dessa muralha na direção norte. As várias estradas que atravessavam a planície permaneceriam abertas, mas poderiam ser rapidamente bloqueadas se houvesse qualquer tentativa do inimigo de avançar pela ensolarada região sudeste. Todavia, essas obras demorariam a ficar prontas e por enquanto Artur tinha de se contentar em fortalecer posições estratégicas, estabelecer estações de sinalização entre elas e manter abertas as estradas. Os reis e chefes bretões cuidariam de seus próprios territórios, e o Grande Rei se encarregaria de manter uma força de ataque que estaria sempre pronta para aju­dar qualquer um deles ou para fechar brechas em nossas defesas. Esse era o plano com o qual Roma defendera com êxito sua pro­víncia algum tempo antes da retirada das legiões; o conde que governava a costa saxã também se valera desse recurso e mesmo Ambrosius, mais recentemente, tivera uma força móvel.

Artur, contudo, pretendia ir mais longe. Queria que essa força se movimentasse "à velocidade de César", como gostava de dizer, explicando que conseguiria uma velocidade dez vezes maior se todos os homens estivessem montados. Hoje em dia, quando ve­mos tropas de cavalaria patrulhando as estradas e desfilando em paradas, elas nos parecem perfeitamente comuns, mas quando Artur submeteu à minha apreciação uma idéia tão revolucionária, ela caiu sobre mim com toda a força do ataque surpresa que ele esperava fazer com a nova tática. Precisaríamos de tempo, é claro, e inicialmente teríamos de ser modestos. Enquanto os homens não estivessem treinados para lutar montados, a força seria cons­tituída de oficiais e amigos do Grande Rei. Era um projeto viável, mas não poderia ser executado sem os cavalos certos, dos quais tínhamos muito poucos. Os animais nativos, de pernas curtas, embora resistentes, não tinham velocidade nem a força para car­regar um homem completamente armado.

Conversamos sobre isso dias e noites, analisando cada detalhe antes de Artur apresentar o projeto a seus comandantes. Como sempre acontece nessas ocasiões, houve resistência por parte dos que se opunham a qualquer tipo de mudança, mas o rei, contando com a ajuda de Cador, Gwilim de Dyfed e Ynyr de Caer Guent, conseguiu convencê-los mostrando-lhes mapas e planos. Eu pude contribuir muito pouco para conversas guerreiras, mas resolvi o problema dos cavalos.

Existe uma raça de cavalos que é considerada a melhor do mundo. Com toda a certeza, é a mais bonita. Eu já vira esses animais no Oriente Médio, onde os homens do deserto os prezam mais do que o ouro ou suas mulheres, mas seria muito difícil consegui-los. No entanto, eu sabia que cavalos igualmente bons poderiam ser obtidos bem mais perto de nós. Os romanos haviam trazido algumas dessas criaturas da África do Norte para a Ibéria, onde os cruzaram com os cavalos europeus de maior estrutura óssea. O resultado era um esplêndido animal, rápido e fogoso, mas resistente, ágil e obediente, características absolutamente ne­cessárias em um animal de guerra. Se Artur mandasse logo al­guém para o continente com a incumbência de comprar os ca­valos, assim que o clima permitisse um transporte seguro eles seriam trazidos para a Bretanha e quando chegasse o verão se­guinte já estaríamos com o primeiro destacamento treinado.

Portanto, quando voltei a Caerleon na primavera, envolvi-me na construção das novas cocheiras enquanto Bedwyr navegava para a Ibéria para comprar os cavalos.

Caerleon já estava transformada. As obras na fortaleza em si tinham sido completadas e agora outros edifícios surgiam aqui e ali, de modo a oferecerem suficiente conforto e grandeza para uma capital temporária. Embora Artur fosse usar a casa do co­mandante situada dentro das muralhas como quartel-general, uma outra residência (que o povo simples chamava de "palácio") estava sendo construída fora da cidadela, na encantadora curva do rio Isca que fica perto da ponte romana. Quando estivesse terminada, seria uma casa grande, com vários pátios para con­vidados e seus criados. Era uma estrutura de pedra e tijolo, com pilares pintados em cores alegres e telhado de metal dourado, como o da nova igreja cristã que ocupava o lugar do antigo templo de Mitra. Entre esses dois edifícios e a praça de armas surgiam a cada dia mais lojas, oficinas e moradias, e o vilarejo de antes estava se transformando numa cidade florescente. O povo, or­gulhoso por Artur ter escolhido Caerleon como seu quartel-ge­neral, trabalhava de bom grado para fazer dela um lugar digno para ser o centro de um reino cujo soberano desejava trazer paz.

E Artur conseguiu trazer alguma paz por volta de Pentecostes. Colgrim, com um novo exército, rompera algumas posições ao leste e o Grande Rei o enfrentara primeiro não muito longe de Humber e em seguida mais perto da fronteira saxã, nos campos pantanosos de Linnius. Colgrim morrera nessa última batalha e com isso os saxões tinham se recolhido a seu território. Artur voltou a Caerleon a tempo de se encontrar com Bedwyr, que vinha trazendo a primeira manada de cavalos do continente.

Valerius, que fora ajudar no desembarque, mostrava-se entu­siasmado:

— Chegam à altura do meu ombro e são fortes, mas tão dóceis como uma donzela. Isto é, algumas donzelas. E dizem que são muito rápidos. Ainda estão rígidos por causa da viagem e vão levar algum tempo para se recuperar. E são lindos! Olhos grandes, escuros e brilhantes, pêlo sedoso...

—E quantos ele trouxe? Será que conseguiu éguas? Quando eu estava no sul da Europa me contaram que só vendem garanhões.

—Éguas também. Trinta com esse primeiro lote de cem garanhões.

Valerius afastou-se ainda sorrindo. Eu chamei meus ajudantes e fui para os novos estábulos; queria verificar se tudo estava realmente pronto para receber os cavalos e examinar pela cen­tésima vez os arreios de batalha mais leves que os seleiros haviam feito para eles.

Enquanto eu me dirigia para lá, os sinos começaram a tocar nas torres douradas da igreja. O Grande Rei havia voltado e iam começar os preparativos para a coroação.

 

Depois de assistir à coroação de Uther eu viajara para o con­tinente e vira em Roma, Antioquia e Bizâncio esplendores que possivelmente jamais seriam alcançados pela Bretanha, mas na cerimônia em Caerleon houve uma glória jovem e primaveril que nenhuma das riquezas imperiais conseguiria comprar. Os bispos e padres estavam esplêndidos em carmesim, púrpura e branco, e seu colorido se destacava ainda mais diante dos hábitos marrons dos frades e freiras que os atendiam. Os reis, cada um com seu séquito de nobres e guerreiros, brilhavam com jóias e dourados. No alto das muralhas da fortaleza, de onde pendiam panos coloridos, o povo explodia em gritos e aplausos. As damas da corte se mostravam mais alegres que passarinhos e a rainha Ygraine, corada de orgulho e satisfação, tirara o luto e ostentava o antigo luxo. Morgan, ao lado dela, nada fazia lembrar uma noiva rejeitada; vestida em cores alegres que faziam-na parecer pouco mais do que uma menina, sorria entusiasmada, mas man­tendo a mesma compostura realesca da mãe. Elas ficaram junto com as outras mulheres, afastadas de Artur. Ouvi murmúrios entre as damas aqui e ali, e comentários abertos das matronas, que lançavam a todo instante olhares para espaço vazio ao lado do trono, mas para mim era bom ainda não haver ninguém para compartilhar da glória do rei. Ele estava sozinho no centro da igreja e a luz que passava pelos vitrais fazia cintilar os rubis em seu peito e criava painéis dourados e azuis em seu traje branco e no arminho do manto vermelho.

De início eu duvidava que Lot viria para a coroação. Os boatos ferviam, dando a impressão de que formavam uma bolha que estouraria a qualquer momento, mas mesmo assim ele compa­receu. Talvez tenha calculado que perderia mais com sua ausência do que enfrentando o rei, a rainha e a noiva rejeitada. O fato é que poucos dias antes da cerimônia as flâmulas nas cores do rei de Lothian eram notadas entre as de Urien de Gore e Aguisel de Bremenium, e as de Twydal, que governava Dumpeldyr na ausência de Lot, colorindo a estrada noroeste. Os quatro sobera­nos do norte participaram dos festejos como se nada tivesse acon­tecido em Luguvallium ou York. Lot parecia tão à vontade com seu ar confiante que era difícil se imaginar que estivesse assu­mindo uma atitude de bravata. Sem dúvida amparava-se no fato de agora ser parente próximo do Grande Rei. Pelo menos foi o que Artur comentou comigo em particular. Em público ele rece­beu com delicadeza as reverências cerimoniosas do cunhado, en­quanto eu, temeroso, imaginava se o rei de Lothian não descon­fiava que tinha o filho não nascido do rei sob sua mercê.

Morgause não veio, o que foi um alívio. Conhecendo essa dama como eu conhecia, não estranharia se ela comparecesse pelo puro prazer de exibir sua coroa de rainha para a mãe e a irmã, e desfilar a barriga crescida diante de mim e Artur. Mas, seja por medo de mim ou por cautela do marido, ela permaneceu em casa, usando como pretexto as indisposições da gravidez. Eu estaca ao lado de Artur quando Lot apresentou as desculpas de sua rainha e não vi em sem rosto ou voz nenhum vestígio de suspeita. Quanto a ele, se percebeu a súbita palidez no rosto de Artur e o olhar aflito que me lançou, não deu nenhum sinal disso.

Assim o dia foi nos apresentando suas magníficas e exaustivas horas. Os bispos não economizaram o cerimonial sagrado e, para os pagãos presentes, os auspícios eram bons. Vi muitos outros sinais além da cruz desenhados no chão por onde passaria a procissão, e em quase todas as esquinas previa-se o futuro com ossos, dados e pedras, enquanto vendedores ambulantes faziam um bom dinheiro mercadejando todos os tipos de medalhinhas e amuletos. Galos pretos haviam sido sacrificados à primeira luz da madrugada e oferendas depositadas nas encruzilhadas, onde o velho deus Hermes costumava esperar os presentes dos via­jantes para abrir seus caminhos. Fora da cidade, nos morros, vales e florestas, o povinho moreno que habitava o planalto estaria examinando seus presságios e rogando bênçãos de seu próprio deus. No centro da cidade, porém, tanto como na igreja, no pa­lácio e na fortaleza, a Cruz reinava sozinha. Quanto a Artur, ele passou o dia todo com uma dignidade calma e pálida, pesado de jóias e bordados, e rígido de cerimônia, uma marionete para os bispos santificarem. Se era isso o necessário para autenticar sua autoridade aos olhos do povo, era isso que iria fazer. Eu, todavia, que o conhecia e que fiquei ao seu lado todas as inter­mináveis horas do dia, não pude sentir nem devoção nem prece em sua compostura tranqüila. Para ele, como para todos os que tinham presenciado o acontecido, o reino fora entregue em suas mãos quando erguera a grande espada de Maximus de seu longo esquecimento e feito o voto para as árvores da floresta ouvirem.

Depois da cerimônia vieram os festejos. Festas são sempre pa­recidas, mas essa se fez notar pelo fato de Artur, que sempre mostrava bom apetite, comer muito pouco e de vez em quando lançar olhares ansiosos a sua volta, como se mal pudesse esperar pelo fim das comemorações para começar a cuidar dos negócios do Estado.

Ele me dissera que queria falar comigo naquela noite mas, corno ficou ocupado recebendo congratulações até tarde, conversei primeiro com Ygraine. Ela se retirara cedo da festa e, quando seu pajem me procurou com um recado, fiz um sinal para Artur e deixei o menino me conduzir.

A rainha estava hospedada na casa do rei e ali os sons dos festejos chegavam abafados. A porta foi aberta pela mesma me­nina bonita que eu vira com Ygraine em Amesbury. Usava pérolas nos cabelos castanho-claros e o vestido verde-escuro realçava seu olhos, que não tinham o verde dourado e maldoso de Morgause, mas o verde-claro que nos faz lembrar de um riacho da floresta refletindo as folhas novas da primavera. Tinha a pele corada, talvez devido à emoção e festejos, e sorriu para mim mostrando excelentes dentes e uma covinha quando me fez uma reverência antes de me conduzir para onde a rainha me esperava.

Ygraine me estendeu a mão. Parecia cansada e o magnífico vestido púrpura, salpicado de pérolas e prata, deixava-a ainda mais pálida, o que aumentava as sombras em tornos dos olhos e boca. Ela, contudo, mantinha a mesma compostura de sempre e foi direto ao assunto:

— Quer dizer então que ele a engravidou.

Apesar da súbita pontada em meu coração percebi que ela não desconfiava da verdade e estava se referindo a Lot e ao que lhe parecia ser a causa de ele ter rejeitado sua filha em favor de sua enteada.

— É o que parece — concordei no mesmo tom.— Isso tornou a situação mais fácil para Morgan, que era nossa maior preocu­pação.

— Foi a melhor coisa que poderia ter acontecido para ela. — Ygraine falou secamente e sorriu diante de minha expressão de ligeiro espanto. —Jamais gostei da idéia desse casamento. Apro­vei o que Uther queria de início, quando ofereceu Morgause a Lot muitos anos atrás. Seria um casamento útil para o reino e uma honra para ela. Mas Lot, com sua eterna ambição, resolveu que só ficaria contente com Morgan, e Uther acabou concordando. Naquela época teria aceitado qualquer coisa para selar um acordo com os reinos do norte contra os saxões, mas, enquanto eu en­tendia a vantagem política dessa união, lamentava pela minha filha, que não queria ver amarrada a esse traidor devasso e ga­nancioso.

— Palavras fortes, Ygraine.

—Você pode negar os fatos?

—Longe disso. Eu estava em Luguvallium, lembra-se? Mas estou satisfeito em ver que você não está ofendida. Fiquei preocupado com sua reação e a de Morgan diante da desfeita.

— De início Morgan ficou mais brava do que ofendida. Afinal, Lot é o mais importante dos reis menores e, gostasse dele ou não, ela seria rainha de um grande domínio e seus filhos rece­beriam um importante legado. E é claro que não foi agradável ser trocada por uma bastarda que jamais demonstrou carinho por ela.

—E também, quando se tratou o noivado, Urbgen de Rheged ainda tinha uma esposa.

As sobrancelhas bem-feitas ergueram-se rapidamente e os be­los olhos examinaram meu rosto impassível.

— Exatamente — concordou, sem sinal de surpresa. A palavra saiu como se fosse a última de uma discussão.

Não me admirei de Ygraine estar pensando de maneira seme­lhante à minha e à de Artur. Como seu pai, Coei, Urbgen sempre fora um fiel aliado do Grande Rei.

— Os feitos da família real de Rheged no passado, e mais recentemente em Luguvallium, hoje estão registrados junto com os de Ambrosius e Artur.

— Sim, e penso que essa união poderia ser a resposta. Não temos de nos preocupar com a lealdade de Urbgen, claro, e para Morgan seria um poder do tipo que, em minha opinião, poderá carregar bem e, quanto aos seus filhos... — Ygraine fez uma pausa. — Bem, Urbgen já tem dois, jovens crescidos e tão bons guerreiros como o pai, e ninguém pode dizer se viverão para herdar a coroa. O soberano de um reino tão grande como Rheged precisa ter muitos filhos.

— Mas lembre-se de que Urbgen já ultrapassou seus melhores anos.

— E daí? Eu não era muito mais velha do que Morgan quando Gorlois da Cornualha se casou comigo. — Penso que por um momento Ygraine esqueceu-se de como fora esse casamento: o aprisionamento de uma jovem criatura ávida por abrir as asas e ganhar os céus; a fatal paixão de Uther pela bela esposa de Gorlois; a morte do velho duque e depois a nova vida, cheia de amor, mas com muito sofrimento.

— Morgan cumprirá o seu dever. — Ygraine usou um tom seco e vi que se recordara do passado, mas seus olhos não de­monstraram fraqueza. — Se estava disposta a aceitar Lot, do qual tinha um certo medo, ficará com Urbgen de bom grado, caso Artur sugira essa aliança. E pena que Cador seja um parente próximo demais. Se Morgan se casasse com ele, ficaria perto de mim na Cornualha.

— Mas eles não são parentes de sangue. — Cador era filho de Gorlois e sua primeira mulher.

— Ainda assim, eles são próximos demais. Os homens esque­cem muito fácil e haveria falatórios sobre incesto. Não quero nenhuma pequena insinuação sobre um crime tão chocante como esse.

— Entendo. — Fiz minha voz sair fria e inalterada.

— Além, disso Cador está noivo e decidiu casar-se no verão, quando voltar para a Cornualha. Artur aprovou sua escolha. — Ygraine virou a mão que tinha no colo como para admirar os anéis que a enfeitavam. — Creio que seria bom falar de Urbgen com o rei assim que parte de sua mente esteja desocupada para ele pensar em sua irmã.

— Mas ele já pensou nela. Conversou comigo sobre o assunto e creio que logo mandará chamar Urbgen.

— Que bom! Então... — Pela primeira vez senti uma satisfação puramente humana e maternal modificar sua voz com uma ponta de despeito. — Então veremos Morgan receber o que lhe é devido em riqueza e precedência sobre aquela bruxa de olhos verdes, e Lot de Lothian se debater nas armadilhas de sua rainha!

— Você acha que Morgause criou uma armadilha para ele?

— Ora, Merlin, você a conhece muito bem. Usou suas bruxarias para consegui-lo.

— Mas parecem ter sido bruxarias muito corriqueiras.

— Talvez. Mas Lot nunca sofreu de carência de mulheres e ninguém pode negar que Morgan seria um casamento melhor para ele. E minha filha, para completar, é uma moça muito bonita. Apesar de Morgause viver se vangloriando de suas artes, Morgan esta mais bem preparada para ser a soberana de um grande reino. Ela foi criada para isso e a bastarda não.

Examinei atentamente o rosto da rainha. Sentada no banquinho ao lado da poltrona, a jovem dama de companhia com pérolas nos cabelos estava quase dormindo.

—Ygraine, que mal Morgause lhe fez para justificar essa amar­gura contra ela?

O rubor tomou conta de seu rosto em poucos segundos e por um instante pensei que ela fosse me expulsar dali, mas já tínhamos vivido muito e não precisávamos mais da armadura do orgulho. A rainha respondeu simplesmente:

—Se você está pensando que eu odiava ter uma menina sem­pre perto de mim e de Uther, com mais direito a ele do que eu, é a pura verdade. Mas foi mais do que isso. Mesmo quando Morgause era novinha, com doze ou treze anos, não mais do que isso, eu pensava nela como uma depravada. Foi por isso que recebi tão bem a notícia de seu casamento com Lot. Queria vê-la longe da corte.

A resposta fora muito mais direta do que eu esperava.

— Depravada? — repeti.

Ygraine lançou um olhar para a menina ao seu lado. Ela, de olhos fechados, cabeceava de sono. A rainha abaixou a voz, mas falou com perfeita clareza:

— Não estou sugerindo que havia algo de mau em seu rela­cionamento com o rei, apesar de nunca ter se comportado como uma filha. Aliás, ela jamais demonstrou amor filial por Uther. Extraía favores deles, isto sim, por meio de bajulação. Quando a chamei de devassa, estava pensando em sua prática de bruxa­rias. Morgause sempre foi atraída por isso e vivia correndo atrás de benzedeiras e charlatães, e qualquer conversa sobre magia a fazia arregalar os olhos como se fosse uma coruja na escuridão. O pior foi que tentou ensinar essas coisas a Morgan, quando a princesa era apenas uma criancinha. E isso que não posso perdoar. Não gosto dessas coisas e nas mãos de pessoas como Morgause...

Ygraine parou de falar. A veemência a fizera erguer a voz e a menina agora estava desperta, olhando atentamente para nós. A rainha, se recompondo, inclinou a cabeça. Um toque de ver­melho tingiu novamente suas faces.

— Príncipe Merlin, por favor, me desculpe. Não tive a intenção de desrespeitá-lo.

Soltei uma risada e vi, para minha diversão, que a menina devia ter ouvido, porque também estava rindo, mas em silêncio exibindo as covinhas por trás do ombro de sua senhora.

— Sabe, Ygraine, sou orgulhoso demais para me comparar com garotinhas brincando de encantamentos. Lamento o acon­tecido com Morgan. É verdade que Morgause tem certos poderes e também é verdade que essas coisas podem ser perigosas. Aliás poderes desse tipo são difíceis de manter e, quando mal usados, podem voltar contra quem os usa.

— Um dia, se você tiver oportunidade, converse sobre isso com Morgan. — A rainha sorriu, tentando um tom mais leve. — Ela dará ouvidos a você. Comigo, só ergue os ombros, igno­rando meus conselhos.

— Com todo o prazer. — Sorri, me sentindo como se fosse um avô convocado para passar um sermão nos mais jovens.

— Talvez Morgause, agora que é uma rainha com o verdadeiro poder, pare de procurar outros — disse Ygraine, voltando ao assunto. — E quanto a Lot? Será que agora que tem uma filha de Uther, mesmo que seja apenas uma bastarda, considera-se comprometido com a bandeira de Artur?

— Não sei dizer. Mas, a não ser que os saxões obtenham gran­des vantagens para justificar uma traição, Lot continuará man­tendo o poder que tem e lutará pelos seus próprios domínios, mesmo que não seja pelo bem do Grande Rei. Não antevejo pro­blemas entre eles — falei, sem acrescentar, como gostaria: "pelo menos não desse tipo", e terminei muito simplesmente. — Quan­do você voltar para a Cornualha, receberá notícias por meu in­termédio.

— Eu lhe serei grata por isso. Suas cartas foram um grande conforto para mim quando meu filho estava em Galava.

Conversamos mais um pouco, principalmente sobre os acon­tecimentos do dia. Quando comecei a fazer perguntas sobre sua saúde, a rainha não me deixou continuar com um sorriso que me contou que estava a par da verdade, de modo que não insisti e indaguei sobre o futuro casamento de Cador.

— Artur não me falou sobre ele. Quem é a moça?

— A filha de Dinas. Você chegou a conhecê-lo? O nome dela é Mariona. Infelizmente, o casamento foi acertado quando os dois eram crianças. Agora Mariona atingiu a maioridade e eles se ca­sarão quando o duque voltar para casa.

— Sim, eu conheci Dinas. Mas por que você disse "infeliz­mente"?

A rainha lançou um olhar afetuoso para a mocinha a seu lado.

— Porque, se não fosse por isso, eu não teria dificuldade para encontrar um marido para minha pequena Guenever.

—Mas outras oportunidades aparecerão — consolei-a.

—Esse seria para mim o casamento perfeito. — A rainha sorriu e a menina também sorriu e abaixou o olhar.

—Se eu ousasse usar meus poderes divinatórios em sua pre­sença, Ygraine, diria que surgirá um casamento tão esplêndido como esse para ela. E será logo.

Falei num tom ligeiro, com cortesia formal, e me surpreendi em captar em minha voz um eco, embora fraco e passageiro, das cadências da profecia.

Elas não perceberam nada. A rainha estendia a mão para mim, me desejando boa-noite e a jovem Guenever segurou a porta para eu passar, abaixando-se numa sorridente reverência de res­peito e graciosidade.

 

— É meu sim! — insistiu Artur. — Basta fazer as contas! Ouvi os homens falando sobre isso na casa da guarda. Não imaginavam que eu pudesse ouvir. Disseram que ela já estava de barriga no Dia de Reis e que teve sorte de laçar Lot bem cedo para poder alegar que o filho nasceu de sete meses. Merlin, você sabe tão bem quanto eu que Lot nem esteve perto dela em Luguvallium! Ele só chegou na última noite da batalha e foi nessa noite... nessa noite... — Ele parou, engasgando na palavra, e fez meia-volta para retomar o vaivém no meio da sala.

Era bem depois da meia-noite. Os sons das comemorações na cidade tinham diminuído muito, acalmados pelo frio da madru­gada. No quarto do rei as velas iam acabando, as chamas bruxuleavam sobre montinhos de cera de abelha derretida e o cheiro de mel se misturava com a fumaça acre de um lampião.

Artur virou-se novamente e voltou para parar diante de mim. Tirara a coroa e o colar cravejado de pedras preciosas, e guardara a espada, mas continuava usando a esplêndida túnica da coroação. O manto enfeitado de arminho estava atirado sobre uma mesa e agora, sob a luz fraca do lampião, fazia lembrar uma mancha de sangue. Pela porta aberta do quarto eu podia ver a cama pronta para ser ocupada, mas, apesar da hora, Artur não mostrava sinais de cansaço. Cada movimento seu era permeado por uma onda de fúria nervosa.

Ele tentava controlá-la falando em tom baixo.

— Merlin, quando naquela mesma noite conversamos sobre o que aconteceu... — Uma pausa para respirar e em seguida uma mudança de rumo, indo direto ao assunto: — Quando eu deitei incestuosamente com Morgause, perguntei a você o que aconte­ceria se ela concebesse. Lembro-me bem qual foi sua resposta. E você?

— Sim — assenti.

— Você me disse: "Os deuses são ciumentos e atuam quando há um excesso de glória. Cada homem carrega em si as sementes de sua própria morte e dentro dele já existe o esboço do tempo de vida que terá. O que realmente aconteceu nesta noite é que você mesmo estabeleceu os parâmetros desse tempo".

Não respondi. Artur me encarou com o olhar direto e descompromissado que eu conhecia muito bem.

— Merlin, quando você falou comigo daquele jeito, estava me dizendo a verdade? Foi uma profecia ou simples palavras de conforto para me ajudar a enfrentar o que aconteceria no dia seguinte?

— Foi a verdade.

— Quer dizer, então, que se ela der à luz uma criança, segundo sua previsão, ele... ou ela... será a causa de minha morte?

— Artur, compreenda, as profecias não funcionam desse jeito. Naquela noite eu não sabia, no sentido que a maioria das pessoas "sabe" uma coisa, que Morgause iria conceber e nem que a criança um dia representaria um perigo mortal para você. A sensação que tive durante todo o tempo que você passou com aquela mu­lher era de que pássaros da morte estavam pousados em meus ombros e fediam a carniça. Eu tinha um peso no coração e podia ver a morte unindo vocês dois. Morte e traição. Quando entendi o significado dessas sensações, o mal já estava feito e para nós só restou esperar o que os deuses escolheriam nos enviar.

Artur virou-se e caminhou até a porta do quarto. Apoiou o ombro no batente, ainda de costas, e só depois de vários minutos de reflexão voltou-se para mim. Avançou até a poltrona que ficava atrás da grande mesa de trabalho, sentou-se e, repousando o quei­xo na mão, pôs-se a me observar. Seus movimentos foram suaves e controlados, como de hábito, mas eu, que o conhecia bem, quase podia ver as rédeas mentais que precisava usar para se conter. A voz também saiu perfeitamente equilibrada.

— E agora sabemos que as aves de rapina estavam certas. Ela engravidou. Merlin, você me disse uma outra coisa naquela noite, quando admiti meu erro. Falou que eu pecara sem intenção e por isso era inocente. É justo então a inocência ser punida?

— Não seria um caso incomum.

— Os pecados dos pais?

Reconheci a frase. Artur citava as escrituras cristãs.

— O pecado de Uther — expliquei — caiu em você. — E agora o meu cairá sobre a criança?

Não respondi. Eu não estava gostando nada do rumo que a conversa ia tomando. Era a primeira vez que trocando idéias com Artur não me sentia a cavaleiro da situação. Tentei me con­vencer de que era devido ao cansaço. Afinal, eu continuava na vazante do poder, embora ele pudesse voltar a qualquer instante. A verdade, porém, era que eu me sentia como o pescador da lenda árabe que eu ficara conhecendo em minhas viagens pela Ásia Menor, que abrira descuidadamente uma garrafa, desper­tando um gênio centenas de vezes mais poderoso do que ele.

— Muito bem — disse o rei —, o pecado que eu e Morgause cometemos cairá sobre a criança. Então não posso permitir que ela viva. Você irá para o norte e pessoalmente dirá isso a Mor­gause. — Ele fez uma pequena pausa. — Se preferir, posso es­crever uma carta comunicando minha decisão.

Eu inspirei para responder, mas Artur continuou sem me dar tempo para falar.

— Não levando em conta suas intuições, que fui um tolo em não respeitar... será que você entende como esse negócio todo poderá se tornar perigoso se Lot descobrir a verdade? Está bem claro o que aconteceu. Achando que corria o risco de ter engra­vidado, Morgause tentou arranjar rapidamente um marido para esconder sua vergonha. Quem melhor do que Lot? Um casamento entre os dois já fora considerado no passado. Ela viu também a oportunidade de passar por cima da irmã e de arranjar um lugar para morar e um sobrenome, exatamente o que lhe faltaria depois da morte do pai. — Artur sorriu sem alegria. — E creio que ninguém melhor do que eu conhece seu poder de sedução.

— Artur, você falou em "vergonha". Por acaso está pensando que foi o primeiro na vida dela?

— Isso nem me passou pela cabeça — negou ele, um pouco depressa demais.

— Então, como sabe que ela não se deitou com Lot antes? Como sabe se já não estava grávida dele e tentou seduzir você na esperança de conseguir algum tipo de poder e vantagem? Morgause sabia que Uther estava para morrer e temia que Lot caísse em desgraça aos olhos do rei devido aos seus atos em Luguvallium. Se pudesse dizer que o filho de Lot era seu...

— Isso é adivinhação, Merlin. Não foi o que você disse naquela noite.

— Não. Mas pense comigo. Esses acontecimentos também se ajustariam à minha previsão.

— Mas não teriam a mesma força — rebateu Artur rispidamente. — Se o perigo representado por essa criança for real, o que adianta saber quem é o pai? Adivinhações não vão nos ajudar.

— Não estou fazendo adivinhações quando lhe digo que Mor­gause e Lot já eram amantes bem antes de ela levar você a sua cama. Já lhe contei que tive um sonho no santuário de Nodens. Vi os dois numa casa afastada da estrada e eles se encontraram como pessoas que são amantes há muito tempo. A criança pode muito bem ser de Lot.

— Neste caso, seria eu o seduzido para esconder a vergonha de Morgause?

— E bem possível. Você surgiu do nada, eclipsando Lot como logo em seguida eclipsaria Uther. Morgause tentou lhe atribuir a paternidade do filho de Lot, mas precisou desistir por medo de mim.

Artur permaneceu calado, pensativo.

— Bem — disse finalmente —, o tempo nos dirá a verdade. Mas será que devemos esperar? Não importa quem seja o pai dessa criança, ela é um perigo e ninguém precisa ser profeta para ver isso. Se Lot um dia descobrir, ou acreditar, que eu sou o verdadeiro pai de seu filho mais velho, com toda a certeza re­negará o voto de lealdade. Lothian é um ponto chave, Merlin, e eu preciso dessa aliança. Mesmo se Lot tivesse se casado com Morgan, ainda restariam dúvidas sobre seu caráter, enquanto ago­ra... — Artur estendeu a mão num gesto de súplica. — Merlin, isso é feito todos os dias, em todos os vilarejos do reino. Por que não pode acontecer na casa de um rei? Vá para o norte, eu lhe peço, e convença Morgause.

— E você acha que ela vai escutar? Se não quisesse a criança, já teria se livrado dela há mais tempo. Morgause não o seduziu por amor, Artur, e certamente não o perdoará por permitir que ela fosse expulsa da corte. Quanto a mim... — Sorri com azedume. — Morgause não gosta de mim e com toda a razão. Se pudesse, riria na minha cara, ou mais do que isso, riria da força que ganhou sobre nós dois por causa do seu ato tresloucado. E tenha certeza de que fará o que for mais doído para nós.

— Mas...

— Você pensa que ela fisgou Lot para dar um nome a seu filho ou para espezinhar Morgan, mas não é a verdade. Ela se viu obrigada a recorrer a um casamento com Lot porque eu es­traguei seus planos de corrompê-lo e ganhar ascendência sobre você. Como sabe que Lot é inimigo natural de nós dois, pretende nos ferir através dele, só os céus sabem quando.

Um instante de silêncio surpreso e depois a pergunta:

— É nisso que você acredita?

— Sim, Artur.

— Então continuo com a razão. — Ele suspirou. — Morgause não pode ter essa criança.

— E o que pretende fazer? Pagar alguém para servir a ela pão feito de centeio bravo?

— Você encontrará um jeito. Você...

— Não farei nada parecido.

Artur levantou-se de um modo que me fez lembrar um arco se endireitando depois de lançar a flecha. Seus olhos escuros cintilaram, refletindo a chama das velas.

— Você sempre disse que era meu servo! Você me fez rei atendendo ao desejo do deus, como costumava me contar. Agora sou rei e você tem de me obedecer.

Eu era dois dedos mais alto do que Artur. Já enfrentara outros reis e ele ainda era muito jovem. Deixei passarem alguns instantes e depois falei suavemente:

— Sou mesmo seu servo, Artur, mas sirvo o deus em primeiro lugar. Não queira me obrigar a escolher. Eu não posso interferir. O deus vai atuar conforme seus próprios desejos.

Artur continuou me encarando por alguns momentos, depois inspirou e soltou o ar como se estivesse largando um grande peso.

— E ele vai deixar que isso aconteça? Vai talvez permitir que destruam o reino que, segundo você, ele me enviou para cons­truir?

— Se o deus o fez vir ao mundo para construir esse reino, ele será construído. Não sei por quê, não finjo entender os seus de­sígnios. Só posso lhe aconselhar que confie no tempo, como eu faço, e espere. Agora, como já fez antes, ponha o problema de lado e tente esquecer dele. Eu cuidarei do que for possível.

— E o que pretende fazer?

— Viajarei para o norte.

Um momento de silêncio aflito, e depois ele falou:

— Vai para Lothian? Mas você disse que não queria ir.

— Não foi isso. Eu disse que não faria nada para matar a criança. Todavia, posso vigiar Morgause e também, com o passar do tempo, avaliar melhor qual deverá ser nossa atitude. Eu lhe mandarei notícias.

Houve outro silêncio. Vi então a tensão sair de Artur. Ele, afastando-se de mim, começou a soltar o cinturão.

— Muito bem... — falou, como se fosse fazer uma pergunta, mas se interrompeu e sorriu. Tendo mostrado o açoite, dava a impressão de estar recuando rápido para a antiga confiança e afeição. — Mas você vai esperar o resto dos festejos, não é? Eu pretendo ficar aqui por mais oito dias, se as guerras permitirem.

— Não. Penso que devo ir o mais rápido possível, aproveitando a presença de Lot aqui em Caerleon. Antes de ele chegar em casa já estarei estabelecido na área rural, onde ficarei esperando e observando, e fazendo o que for possível. Com sua permissão, partirei amanhã cedo.

— E com quem vai viajar?

— Com ninguém. Viajo muito bem sozinho.

— Mas você deve levar alguém. Não se trata de uma ida a Maridunum. Além disso, vai precisar mandar notícias.

— Usarei os mensageiros reais.

— Mesmo assim... — Artur pôs o cinturão numa cadeira e chamou por Ulfin.

Ouvi um som no quarto ao lado e depois passos discretos. Ulfin, carregando um camisolão dobrado no braço, veio vindo em nossa direção, disfarçando um bocejo.

— Meu senhor?

— Você estava no quarto enquanto conversávamos? — Não tentei esconder minha irritação.

Ulfin, impassível, estendeu o braço para ajudar Artur a soltar os fechos da túnica.

— Eu estava dormindo, meu senhor — disse ele.

Artur sentou-se e estendeu a perna. O criado ajoelhou-se para lhe tirar os sapatos.

— Ulfin — comunicou Artur —, meu primo, o príncipe Merlin, partirá para o norte amanhã, numa viagem que talvez venha a ser longa e penosa. Detesto a idéia de ficar sem seus serviços, mas quero que o acompanhe.

Ulfin, com um sapato na mão, olhou para mim e sorriu.

— Com todo o prazer.

— Mas não seria melhor você ficar com o rei? — protestei. — Esta semana, em especial...

— Eu faço o que ele manda — disse Ulfin simplesmente e inclinou-se sobre o outro pé.

Como você sempre acaba fazendo. Artur não falou as palavras em voz alta, mas elas estavam no rápido olhar que me lançou quando levantou-se para Ulfin ajudá-lo a vestir o camisolão.

— Muito bem — concordei, conformado. — Será bom tê-lo ao meu lado, Ulfin. Partiremos amanhã e talvez tenhamos de ficar longe do rei por um bom tempo. — Dei-lhe algumas ins­truções e depois virei-me para Artur. — Bem, é melhor eu me despedir. Mandarei notícias assim que for possível. Sei que não terei dificuldade em descobrir seu paradeiro.

— Naturalmente. — Ele falou no tom severo de um líder de exércitos. — Mas gostaria de mais um ou dois minutos de sua atenção. Ulfin, pode sair agora. Você tem de fazer seus próprios preparativos... Merlin, venha ver meu novo brinquedo.

— Outro?

— Outro? Ah, você deve estar pensando na cavalaria. Já viu os cavalos que Bedwyr trouxe?

— Ainda não, mas Valerius não pára de falar sobre eles.

— São esplêndidos! — Os olhos escuros brilhavam de entu­siasmo. — Fortes, fogosos e dóceis. Estão dizendo que vivem bem com pouco alimento, se for preciso, e que têm o coração tão forte que conseguem galopar o dia inteiro e em seguida se envolverem numa guerra de vida ou morte. Bedwyr trouxe alguns cavalariços com ele. Se tudo o que esses homens dizem for ver­dade, teremos uma força de cavalaria para conquistar o mundo! Vieram dois garanhões brancos, já domados, que são uma beleza, mais bonitos até do que meu Canrith. Bedwyr escolheu-os espe­cialmente para mim. — Enquanto falava, Artur me conduzia para a outra extremidade da sala, onde havia um arco entre dois pi­lares, fechado por uma cortina pesada. — Eu ainda não tive tempo de experimentá-los, mas creio que amanhã conseguirei uma folguinha entre as cerimônias. — Seu tom foi o de um menino tra­vesso e me fez rir.

— Espero que seja bem sucedido. Creio que pelo menos nesse aspecto tenho mais sorte do que o rei. Amanhã passarei o dia todo montado.

— Em seu velho cavalo preto, como sempre.

— Não. Numa mula.

— Mula? — Ele fez uma pausa, mas logo entendeu. — Claro. Você vai disfarçado.

— É necessário. Não conseguirei fazer muita coisa se entrar na fortaleza de Lot como o príncipe Merlin.

— Certo, mas tome cuidado. Não quer mesmo uma escolta, nem que seja somente na primeira etapa da viagem?

— Não se preocupe. Estarei em segurança. Mas o que você está querendo me mostrar?

— Um mapa. Veja.

Artur afastou a cortina. Entramos numa outra sala que dava para um jardim interior onde dois homens montavam guarda, carregando tochas em lugar de lanças. Nela só havia uma enorme e rústica mesa de carvalho sobre a qual vi um mapa, não pintado, mas feito de gesso, com montanhas e vales, praias e rios, mode­lado por uma pessoa habilidosa. Ali estava, para todos aprecia­rem, a Bretanha como apareceria para alguém que estivesse no alto das nuvens.

Artur recebeu meus elogios com grande satisfação.

— Eu sabia que você iria gostar! Eles só acabaram de montar ontem à noite. Formidável, não? Lembra-se de como me ensinou a fazer mapas de relevo com areia? Isto é muito melhor, porque os morros e vales não desmancham com a brisa. E ele será re­modelado à medida que formos descobrindo outros acidentes geográficos. Por exemplo, ninguém ainda sabe direito o que existe ao norte de Strathclyde. — Ele tocou um pino esculpido em ma­deira com a forma de um dragão e pintado de vermelho que estava espetado em "Caerleon". — Agora, para onde você pre­tende ir?

— Eu estou pensando em tomar a estrada que vai pelo oeste, passando por Deva e Bremet. Tenho uma visita a fazer em Vindolanda.

Artur acompanhou com a ponta do dedo a rota que subia para o norte até atingir Bremetennacum, que as pessoas preferem chamar de Bremet.

— Quer fazer uma coisa por mim, Merlin?

— Claro.

— Então vá pelo leste. O trajeto não será muito mais longo e a estrada é melhor. Aqui, está vendo? Chegando a Bremet, você tomará esta estrada que entra pelo vão dos Peninos. — O dedo indicava: saindo de Bremetennacum, tomando o rumo leste, se­guindo a velha estrada que acompanhava o rio Tribuit, depois o passo na cadeia montanhosa e a descida por Olicana para chegar ao vale de York. Em York, a Dere Street, uma estrada que per­mitiria um avanço rápido para Corstopitum e a Muralha de Adriano, e daí, ainda seguindo rumo norte, para Manau Guotodin, onde ficava Dumpeldyr, a capital de Lot.

Fiz um ar de dúvida.

— Você terá de sair do caminho para chegar a Vindolanda — continuou Artur —, mas não haverá perda de tempo. Quero que pegue a estrada velha, que entra pelo passo dos Peninos. Nunca estive lá, mas tenho recebido informações de que ela já foi muito boa, embora atualmente esteja esburacada demais para uma tropa de cavalaria. Como você viaja de mula, não encontrará dificul­dade em transitar por ela. Pretendo mandar grupos de trabalho para restaurá-la. Também terei de fortificá-la... Está vendo? Com partes do litoral leste tão abertas para o inimigo, se ele conseguir conquistar as planícies costeiras nessa região com toda a certeza tentará avançar para o interior da Bretanha usando o passo. Sei que lá já existem dois fortes e me informaram que é possível restaurá-los. Quero que dê uma boa olhada neles. Não precisa se preocupar com um relatório detalhado, só quero sua opinião se vale a pena reformá-los ou seria melhor construir novos.

— Está bem.

Quando Artur, inclinado sobre o mapa, endireitou-se, ouvimos um galo cantando. Os contornos do pátio começaram a aparecer sob o cinzento da madrugada.

— Quanto ao outro assunto, Merlin, estou em suas mãos e saiba que agradeço a Deus por isso. — Ele sorriu. — Agora é melhor dormirmos um pouco. Você tem uma longa viagem pela frente e eu enfrentarei mais um dia de festas. Tenho inveja de você, meu amigo! Boa noite e que Deus o acompanhe.

 

No dia seguinte, munidos de comida para dois dias e levando uma terceira mula para carregar a bagagem, eu e Ulfin partimos para o norte.

Eu já fizera viagens em circunstâncias tão difíceis como essa, quando ser reconhecido poderia significar desastre e até mesmo morte. For esse motivo, me tornara adepto de disfarces, o que dera origem a mais uma lenda sobre o "mago" Merlin, a que ele podia se tornar invisível para fugir de seus inimigos. Com toda a certeza eu aperfeiçoara a arte de me tornar parte da paisagem, o que fazia assumindo os ares de um ofício qualquer e freqüen­tando lugares onde ninguém imaginaria encontrar um príncipe. Os olhos das pessoas se focalizam em "o quê" e não "quem é" um viajante. Eu já me disfarçara de trovador, quando precisei obter acesso à corte de um rei, mas em geral circulava como um clínico geral ou médico de olhos, os meus preferidos, porque me davam a oportunidade de pôr em prática meus conhecimentos onde eles eram mais necessários, isto é, entre os pobres, e também me faziam ser recebido em todos os tipos de lares, exceto os mais nobres.

Foi o disfarce que escolhi. Levei minha harpa pequena, como sempre, mas apenas para meu próprio uso. Eu não me atreveria a exibir meus dotes de trovador porque me arriscava a ser con­vocado para me apresentar no castelo de Lot. Portanto, meu ins­trumento pendia da sela desgastada da mula que carregava a bagagem, embrulhada em panos para manter seu anonimato, enquanto as caixas de ungüentos e instrumentos se mantinham bem à vista.

Eu tinha um bom conhecimento da região por onde faríamos a primeira metade do percurso mas, depois de atingirmos Bremetennacum e tomarmos a direção do passo dos Peninos, entra­mos em terreno desconhecido para nós.

O passo é formado pelos vales de três rios. Dois deles, o Wharfe e o Isara, nascem por entre o calcário dos picos dos Peninos e descem suavemente para o leste, formando meandros no terreno plano. O outro rio, com inúmeros afluentes pequenos, corre para o oeste e é chamado de Tribuit. Vencendo o passo e entrando no vale do Tribuit, o inimigo teria caminho livre a*é atingir a costa oeste e os últimos bastiões de defesa da Bretanha.

Artur falara de dois fortes dentro do passo, mas fazendo per­guntas cautelosas em tavernas e conversando com homens que cruzavam meu caminho, descobri que em tempos passados exis­tira um terceiro forte que guardava a boca oeste do passo, onde o vale do Tribuit se alarga tomando a direção das terras baixas e o litoral. Ele fora construído pelos romanos como um acampa­mento temporário para descanso das tropas em marcha e, sendo feito de madeira e turfa, dele só restavam vestígios. Todavia, ocorreu-me que seria uma boa idéia inspecionar a estrada que levava ao local, já que, se estivesse em condições no mínimo razoáveis, forneceria um atalho rápido para a cavalaria que descesse de Rheged para defender o passo.

De Luguvallium para Olicana e daí para York. Devia ser a estrada onde Morgause se encontrara com Lot.

Isso me fez decidir. Eu faria o mesmo caminho e assim con­firmaria a presença dos acidentes geográficos que vira em sonho no santuário de Nodens.

Deixamos a estrada principal perto de Bremetennacum e su­bimos para o vale Tribuit pisando em cascalho, os restos de uma estrada romana há muito esquecida, e um dia de viagem nos levou ao acampamento abandonado.

Como tinham me informado, pouco restava das construções além de pedaços de muretas e valas na margem do rio e um pouco de madeira apodrecida no lugar onde antes ficavam o?. portões. Mas, como acontecia com outros acampamentos desse tipo, sua localização fora cuidadosamente estudada. Ele ficava no flanco de uma elevação coberta de mato rasteiro, de onde se tinha uma visão desimpedida de toda a área. Um pequeno afluen­te do Tribuit descia pelas colinas e passava junto às ruínas, indo desaguar no rio, que mais ao sul começava a percorrer as terras baixas em sua viagem para o oceano. Examinando o local, desejei não ver esse forte reconstruído para participar da defesa do país, já que ficava bem no interior, distante da costa leste. Todavia, ele seria útil como um campo de treinamento e base temporária para uma rápida investida por meio do passo.

Ninguém conseguira me informar o nome que o forte tivera no tempo dos romanos e, naquela noite, quando escrevi meu relatório, eu o batizei de "Tribuit".

No dia seguinte prosseguimos a viagem para o primeiro dos dois fortes mencionados por Artur e o encontramos localizado à margem de um braço pantanoso de rio, perto do início do passo. O riacho desaguava em um lago, motivo pelo qual a antiga fortaleza recebera o nome deste. Embora estivesse em ruínas, ela poderia ser reconstruída em pouco tempo, pois no vale havia abundância de madeira, pedra e turfa profunda, de excelente qualidade.

Chegamos ao local no final da tarde e, como as velhas muralhas do forte nos prometiam um bom abrigo e tudo indicava que teríamos uma noite seca e relativamente quente, resolvemos acampar ali mesmo. Na manhã seguinte começamos a subir a serra na direção de Olicana.

Bem antes do meio-dia já havíamos deixado a floresta para trás e nos encontrávamos na região de mato rasteiro. O dia estava muito bonito e o sol dissolvia os restos de névoa que cobria as ravinas. Ouvíamos água cantarolando, descendo pelas fissuras nas rochas para ir alimentar o jovem rio pedregoso. O céu matinal também estava cheio de sons; pássaros de todos os tipos diri­giam-se para seus ninhos levando a primeira refeição do dia para os filhotes. Avistamos uma loba com tetas pesadas de leite atra­vessar a estrada levando uma lebre na boca. Ela nos lançou um olhar rápido e indiferente, e logo procurou abrigo na névoa.

Estávamos numa estrada meio selvagem, uma "trilha de lobos" tão ao gosto dos Antigos. Mantive sempre os olhos nas escarpas rochosas que nos cercavam, mas não consegui vislumbrar sinais reconhecíveis de sua presença, embora sentisse que éramos ob­servados a cada passo do caminho. Sem dúvida, os ventos haviam levado para o norte a informação que o mago Merlin estava via­jando incógnito por aquelas paragens. Isso não me perturbou. Afinal, é impossível esconder segredos dos Antigos, que sabem de tudo que entra ou sai das florestas e morros. Eles e eu tínhamos entrado em acordo há muito tempo e Artur gozava de toda a sua confiança.

Paramos no ponto mais alto da serra. Olhei a minha volta. A névoa se dissipara de todo e eu pude avistar todo o terreno pe­dregoso, entremeado de samambaias, e, a distância, as alturas ainda enevoadas de uma montanha. A direita da estrada come­çava a descida para o largo vale do rio Isara; dali se podia ver água cintilando por entre as árvores da mata fechada.

Esse lugar ensolarado em nada fazia lembrar a área embaçada pela chuva que servira de pano de fundo para uma das cenas de minha visão, mas lá estava o marco com o nome OLICANA e a trilha que descia a encosta íngreme na direção das árvores do vale. Entre elas, pouco visíveis devido à ramagem abundante, ficavam os muros de uma casa de considerável tamanho.

Ulfin, fazendo sua mula se alinhar com a minha, apontou para essa direção.

— Se soubéssemos da existência dessa casa, poderíamos ter procurado pousada nela e passado melhor a noite.

— Duvido — disse eu vagarosamente. — Tenho certeza de que ganhamos mais dormindo sob o céu estrelado.

Ulfin lançou-me um olhar de curiosidade.

— Pensei que o senhor não conhecesse este caminho. Já esteve nessa casa?

— Digamos apenas que eu sabia de sua existência e que gos­taria de conhecer mais sobre ela. Na próxima vez que passarmos por um vilarejo ou encontrarmos um pastor, descubra para mim quem é o dono dela.

Ulfin lançou-me um outro olhar intrigado, mas não disse mais nada e continuamos em frente.

Olicana, o segundo dos dois fortes mencionados por Artur, ficava a quinze quilômetros dali e, para minha surpresa, a estrada, que fazia uma descida íngreme e em seguida atravessava um trecho considerável de terreno pantanoso, estava em perfeitas condições. As valetas e aterros pareciam ter sido restaurados há pouco tempo. Uma boa ponte de madeira atravessava o Isara e a várzea entre ele e o afluente seguinte estava limpa e calçada. Em conseqüência pudemos avançar com facilidade e antes cio início da noite atingimos áreas habitadas. Havia uma cidade de bom tamanho em Olicana. Encontramos alojamento numa taverna que ficava perto das muralhas da fortaleza e que logo desco­brimos ser freqüentada pelos soldados da guarnição.

Depois de ter visto a estrada bem conservada e a ordem nas ruas e praça da cidadezinha, não foi surpresa para mim constatar que a fortaleza estava bem cuidada. Pontes e portões eram sólidos e robustos, e as peças em ferro batido pareciam novas. Conver­sando na taverna, fazendo perguntas cautelosas e ouvindo muito, consegui entender que uma guarnição de defesa fora colocada ali no tempo de Uther, com ordens para vigiar a estrada que passava pelo passo e ficar de olho nas torres de sinalização si­tuadas ao leste. Tratava-se de ume medida de emergência, tomada afobadamente durante os piores anos do terror saxão, e os mes­mos homens continuavam ali, entediados e sem mais esperança de serem chamados de volta, mas mantidos em bom nível de eficiência pelo comandante que certamente achava que merecia algo melhor do que esse desanimador posto avançado.

O modo mais fácil de obter as informações que precisava seria me apresentar a esse oficial, que em seguida enviaria meu rela­tório direto para o rei. Assim, deixando Ulfin na hospedaria, apre­sentei-me na sala da guarda portando o salvo-conduto que Artur me dera.

Pela velocidade com que passei pelos vários postos de guarda e ausência de surpresa com meu aspecto e principalmente diante de minha recusa em declinar meu nome e ofício para qualquer outra pessoa senão o comandante, calculei que era freqüente a presença de mensageiros nesse lugar. Se realmente se tratava de um posto avançado esquecido (afinal, nem eu nem os conselheiros do rei tínhamos conhecimento de sua existência) então esses men­sageiros só podiam ser espiões. Essa desconfiança me tornava mais ansioso para conhecer o comandante.

Fui revistado antes de ser admitido na fortaleza, um procedi­mento absolutamente normal. Depois dois guardas me escoltaram até o prédio onde ficava o quartel general. Olhei a minha volta. O lugar era bem iluminado e pude avistar por todos os lados ruas, pátios, poços, oficinas e alojamentos em perfeito estado de conservação. Passamos por lojas de carpinteiros, seleiros e fer­reiros. Pelo tamanho dos cadeados nas portas dos celeiros deduzi que eles estavam cheios. O forte não era muito grande, mas ainda podia receber um bom número de soldados. Haveria acomoda­ções suficientes para a cavalaria de Artur.

Meu salvo-conduto foi entregue em um outro posto de guarda e em seguida me conduziram à sala do comandante. Minha es­colta retirou-se com uma rapidez que falou por si. Era para essa sala que vinham os espiões e a chegada de alguém no meio da noite não causava surpresa.

O comandante me recebeu em pé, numa deferência não à mi­nha pessoa, mas ao selo do rei. A primeira coisa que notei foi sua juventude, pois não teria mais do que vinte e dois anos. A segunda foi que ele estava cansado e as rugas de tensão em seu rosto me indicavam a causa desse desgaste: sua juventude, a so­lidão do posto nesse lugar distante, onde estava à frente de ho­mens duros e entediados; a constante vigilância enquanto as on­das de invasão avançavam e recuavam ao longo da costa leste. Tudo isso o ano inteiro, inverno após inverno, verão após verão, sem ajuda, sem retaguarda. Entendi que depois de Uther man­dá-lo guarnecer o forte, o que devia ter acontecido quatro anos antes, se esquecera completamente de sua existência.

— O senhor tem notícias para mim? — O tom impessoal não disfarçava qualquer tipo de ansiedade. Ela, com certeza, há muito fora dissipada pela frustração.

— Poderei lhe transmitir todas as novidades que forem de meu conhecimento quando terminar a tarefa que me trouxe até aqui. Fui enviado para obter informações e apreciaria sua gen­tileza em me fornecê-las. Preciso enviar um relatório para o Gran­de Rei e gostaria que um mensageiro o levasse assim que estiver pronto.

— Isso pode ser facilmente arranjado. Quer que seja agora mesmo? Terei um homem pronto em meia hora, no máximo.

— Não, não é tão urgente. Poderíamos conversar antes disso? O comandante sentou-se e me indicou uma poltrona. Pela pri­meira vez surgiu uma centelha de interesse em seu rosto cansado.

— Será que isso significa que esse relatório tem relação com Olicana? Posso saber por quê?

— Naturalmente. O rei me pediu para descobrir tudo o que eu pudesse sobre este lugar e também sobre a fortaleza arruinada situada no passo, a que chamam de Forte do Lago.

— Eu a conheço. Está em ruínas há uns duzentos anos. Foi destruída por ocasião da rebelião dos brigantianos e abandonada. Este forte teve o mesmo destino, mas foi reconstruído por Ambrosius. Pelo que me contaram, ele também pretendia reerguer Forte do Lago. Se eu tivesse ordens, poderia... — Ele se inter­rompeu. — Muito bem... o senhor veio de Bremet? Então deve saber que a alguns quilômetros ao norte da estrada existem as ruínas de um outro forte. Em minha opinião, ele seria igualmente vital para qualquer estratégia relacionada com o passo nos Peninos. Dizem que Ambrosius pensava a mesma coisa. Ele foi capaz de ver a importância desta região para a defesa do país. — Não houve ênfase perceptível nesse ''ele", mas a insinuação estava clara. Uther não somente se esquecera da existência de Olicana e sua guarnição, como não dera a devida atenção à es­trada que atravessava o passo dos Peninos.

— Mas o atual rei pensa como o senhor — apressei-me a dizer.

— Ele deseja voltar a fortificar o passo, não apenas para evitar uma penetração vinda do leste, se for necessário, mas também para usá-lo como uma via de ataque. Fui encarregado de verificar as reais condições da região e ver o que pode ser feito. Penso que o senhor receberá topógrafos e construtores aqui em Olicana assim que meus relatórios forem examinados. Quanto a este lugar, ele está num estado de prontidão inesperado. O rei ficará satisfeito ao saber disso.

Em seguida, contei ao comandante os planos de Artur sobre constituir uma força de cavalaria móvel. Ele escutou ansiosamen­te, o tédio esquecido, e as perguntas que fez me mostraram que recebia boas informações sobre o que acontecia na costa leste. Mais importante, mostrou ter um conhecimento bastante íntimo dos movimentos e estratégia saxões.

Deixei para pensar nessa constatação mais tarde e comecei a fazer minhas próprias perguntas sobre as acomodações e supri­mentos de Olicana. Depois de alguns minutos, o comandante levantou-se, foi para junto de um baú fechado com outro dos grandes cadeados, abriu-o e tirou pergaminhos e placas de argila onde, logo percebi, estavam listas detalhadas sobre tudo o que eu pretendia investigar.

Examinei-os por alguns minutos antes de notar que o coman­dante me observava, esperava, com outras listas nas mãos.

— Penso... — começou ele, e hesitou. Em um segundo decidiu continuar: — Penso que o rei Uther, nos últimos anos não en­tendeu o papel que o passo poderia desempenhar nas lutas que estão por vir. Quando fui enviado para cá... Eu era muito jovem na época... encarei Olicana como nada mais do que um posto avançado, onde eu... eu poderia praticar, ganhar experiência de comando. Este lugar não estava muito melhor do que Forte do Lago, e levei um bom tempo para colocá-lo em condições de funcionamento. Bem... o senhor sabe o que aconteceu. A invasão se deu mais ao norte e ao sul. O rei Uther adoeceu e o país se dividiu. Aparentemente se esqueceram de nós. De tanto em tanto eu enviava mensageiros com relatórios sobre o inimigo, esperan­do que voltassem com instruções, mas nunca obtive resposta. Então, para ficar sabendo de tudo o que se passava e, admito, à procura de distração, comecei a enviar homens... não soldados, mas principalmente rapazes da cidade com um gosto pela aven­tura... e coletei minhas próprias informações. Sei que não procedi bem, mas...

— O senhor manteve essas informações em segredo?

— Não foi por má intenção — apressou-se ele a responder. — Mandei dois ou três mensageiros com notícias que eu julgava serem valiosas, mas nunca soube mais deles nem dos documentos que carregavam. Então resolvi não enviar mais relatórios por meio de pessoas que talvez nem conseguiriam ser recebidas pelo Gran­de Rei.

— Posso lhe garantir que tudo o que envio para o rei só precisa chegar a ele em segurança para obter sua imediata atenção.

Enquanto falava, o comandante estivera me examinando disfarçadamente, talvez comparando minha aparência humilde com o modo direto como me apresentara a ele. Olhando para as listas que segurava, me disse:

— Devo confiar no senhor porque tenho comigo o salvo-con­duto com o selo do rei, no entanto... Posso saber seu nome?

— Se for esse seu desejo... mas somente para seu próprio co­nhecimento. Tenho sua palavra?

— Naturalmente. — Houve uma nota de impaciência em sua voz.

— Então sou Myrddin Emrys, comumente conhecido como Merlin. Como o senhor entenderá, estou numa viagem particular, de modo que me apresento como Emrys, um médico viajante.

— Senhor...

— Não — impedi-o —, sente-se de novo, por favor. Eu só lhe contei a verdade para lhe dar a certeza de que suas informações chegarão aos ouvidos do rei e bem rapidamente.

Posso examinar estes documentos agora?

O comandante colocou as listas diante de mim. Mais informa­ções, plantas de campos fortificados, número de soldados e ar­mamentos, movimentos de tropas cuidadosamente registrados, suprimentos, navios...

Ergui o rosto para ele, surpreso.

— Mas são informações sobre os saxões!

— E bem recentes, senhor. Tive um golpe de sorte no verão passado. Fui colocado em contato... não importa como... com um saxão, um federado de terceira geração. Como a maioria dos que nasceram nos territórios ocupados, essa pessoa deseja manter a antiga ordem. São saxões que consideram sagrada a palavra dada e, além disso... — Uma sombra de sorriso encurvou os lábios jovens e amargos. — Não confiam nos que vêm chegando. Alguns desses novos aventureiros querem desalojar os ricos federados, talvez até mais do que desejam expulsar os bretões.

— E estas informações vêm dessa pessoa. Você confia nela?

— Não encontrei motivos para desconfiar. O que pude veri­ficar, constatei ser verdade. Não tenho como estimar a qualidade das informações que o rei vem recebendo, mas penso que o senhor deveria chamar sua atenção para este trecho... aqui... sobre Elesa e Cerdic Elesing. Isso significa...

— Filho de Elesa. Sim. E Elesa seria nosso velho conhecido, Eosa?

— Isso mesmo, o filho de Horsa. Creio que o senhor sabe que depois que ele e seu parente, Octa, fugiram da prisão do rei Uther, Octa acabou morrendo em Rutupiae. Eosa, contudo, con­seguiu chegar à Germânia e convenceu Colgrim e Badulf, os filhos de Octa, a atacarem no norte. Bem, o que o senhor talvez não saiba é que antes de morrer, Octa estava reivindicando o título de "rei" aqui na Bretanha. Não seria muito mais do que o posto de chefia que já possuía como filho de Hengist, e parece que nem Colgrim nem Badulf deram muita atenção a esse desejo. Mas agora eles também estão mortos e...

— Eosa faz a mesma reivindicação. Entendo. E com maior êxito?

— É o que parece. Ele se intitula "rei dos saxões ocidentais" e seu jovem filho, Cerdic, é conhecido como o "Aetheling", o que indica que seria filho de algum semideus ou herói da anti­güidade. Claro que isso é comum entre os chefes, mas o impor­tante é que o povo acredita nessa ascendência divina. Penso que o senhor já entendeu que isso dá uma nova cor às invasões saxãs.

— E essa situação está de acordo com o que o senhor me disse sobre os federados há muito estabelecidos nos territórios da costa leste.

— Exatamente. Eosa e Cerdic defendem essa posição. Essa conversa de um "reino"... eles estão prometendo estabilidade, e direitos, para os residentes, e morte rápida para os invasores. E Eosa já se mostrou ser mais do que um aventureiro esperto; con­seguiu estabelecer uma lenda sobre parentesco com os heróis da antigüidade, é aceito como legislador e mostrou ter poder sufi­ciente para implantar novos costumes. Conseguiu até modificar os ritos fúnebres. Hoje em dia não incineram mais os mortos em piras funerárias com todo seu armamento, porque isso, de acordo com Cerdic, é puro disperdício. — Novamente a sombra de sor­riso nos lábios severos. — Eles instruíram os sacerdotes para pu­rificar as armas do morto, e depois voltam a utilizá-las. Atual­mente os saxões acreditam que uma lança usada por um guerreiro valente tornará seu novo dono tão bom, ou melhor, do que o antigo... e que uma arma tirada de um guerreiro vencido será mais poderosa porque deseja aproveitar essa segunda oportuni­dade. Eu lhe digo, senhor, Eosa é um homem perigoso, talvez o mais perigoso que apareceu desde Hengist.

Não tentei esconder que estava impressionado.

— O Grande Rei entenderá muito bem essa situação assim que tiver nossos relatórios em mãos. Prometo que eles serão le­vadas à sua atenção na hora em que chegarem. O senhor, claro, sabe como são valiosas suas informações. Com que rapidez pode me preparar cópias destes documentos?

— Eu já tenho cópias e por isso elas podem ser enviadas agora mesmo.

— Ótimo. Agora, se me permitir, acrescentarei uma palavra ao seu relatório e mandarei o meu próprio pelo mesmo mensa­geiro.

O comandante trouxe o material de escrita e em seguida di­rigiu-se para a porta.

— Vou providenciar o portador.

— Obrigado. Mas espere um momento...

Ele parou. Tínhamos estado conversando em latim, mas havia algo no modo como o comandante o usava que me contou que ele era da região oeste da Bretanha.

— Na taverna me disseram que seu nome era Gerontius. Por acaso estarei certo ao adivinhar que uma vez foi Gereint?

File sorriu, o que tirou anos que sua aparência.

— Ainda é, senhor.

— Artur gostará de saber disso — falei, e comecei a escrever. O comandante permaneceu imóvel por um instante, depois foi abrir a porta e falou com alguém que estava ali fora. Voltou e, indo para uma mesinha, encheu um copo de vinho e colocou-o perto de mim. Ouvi-o respirar fundo uma vez, como se estivesse para falar, mas não disse nada.

Finalmente terminei. O comandante voltou a abrir a porta e dessa vez voltou seguido por um homem, um sujeito magro que aparentava ter acabado de acordar, mas que já estava vestido para enfrentar as estradas. Uma sacola de couro com um fecho resistente pendia de seu ombro. Ele guardou os pergaminhos que lhe entregamos, anunciando que partiria imediatamente e comeria alguma coisa no caminho.

O tom tenso com que Gereint transmitiu as instruções para o mensageiro foi mais uma prova da importância das informações.

— Será melhor você ir por Lindum. A esta altura o rei deve ter partido de Caerleon com a intenção de voltar a Linnuis. Quan­do você chegar a Lindum certamente terá notícias dele.

O homem fez que sim e partiu. Assim, poucas horas depois de eu chegar a Olicana, meu relatório, e muito mais, estava a caminho, o que me deixava livre para voltar meus pensamentos para Dumpeldyr e o que encontraria por lá.

Mas, antes de tudo, eu precisaria pagar a Gereint pelo seus serviços. Ele me serviu mais vinho e pôs-se a me fazer perguntas sobre a ascensão de Artur ao trono em Luguvallium, e o que acontecera depois disso. Ele merecia minha gratidão e eu a dei sob a forma de novidades. Foi só por volta da ronda da meia-noite que chegou minha vez de perguntar.

— Logo depois de Luguvallium, Lot de Lothian passou por aqui?

— Passou, mas não entrou em Olicana. Há um caminho... atual­mente é pouco mais do que uma trilha... que sai da estrada prin­cipal e leva para o leste. Ele é muito ruim e atravessa um terreno pantanoso, o que é sempre um risco, e por isso, apesar de ser o modo mais rápido de se chegar ao norte, é pouco utilizado.

— E Lot usou essa estrada, mesmo indo para o sul, para York? Será que queria evitar ser visto em Olicana?

— Na hora não pensei nisso. O rei Lot tem uma casa perto dessa estrada e imaginei que ele preferira passar a noite nela.

— Então a casa é dele? Entendo. Sim, eu a vi quando atra­vessava o passo. Um lugar aconchegante, mas solitário.

— Ele a usa muito pouco.

— Mas o senhor sabia que ele estava lá?

— Sei de praticamente tudo o que acontece aqui por perto. — Gereint fez um gesto na direção do baú com o cadeado. — Como uma solteirona na janela de sua casa, tenho pouco a fazer senão vigiar meus vizinhos.

— Tenho motivos para ser grato a isso. Então o senhor deve saber quem se encontrou com Lot nessa casa.

Gereint me encarou por alguns segundos, como se quisesse ter meu olhar, e depois sorriu.

— Uma certa dama semi-real. Piles vieram separados e partiram separados, mas chegaram juntos a York. — Um erguer de so­brancelhas. — Mas como o senhor ficou sabendo disso?

— Tenho meus próprios métodos de espionagem.

— Com certeza... — Gereint sorriu placidamente. — Bem, agora está ludo acertado e correto diante de Deus e dos homens. O rei de Lothian foi a Caerleon e de lá acompanhará o Grande Rei até Linnuis, enquanto sua nova rainha fica em Dumpeldyr até o nas­cimento da criança. O senhor está sabendo sobre a criança, não é?

— Sim.

— Eles já tinham se encontrado aqui várias vezes — disse Gereint, e fez um aceno de cabeça que era como se acrescentasse: "E agora vemos os resultados desses encontros".

— Então eles se encontravam? Freqüentemente? E desde quan­do?

— Desde que estou aqui, umas três ou quatro vezes. — O tom de Gereint não era o de alguém que passasse à frente me­xericos de taverna, mas o de um oficial transmitindo informações reservadas. — Uma vez os dois ficaram aqui por quase um mês, mas se mantiveram fechados. Eu soube de sua presença por meio de um relatório. Ninguém os viu pessoalmente.

Revi em minha mente a cena em que Lot e Morgause conver­savam na cama muito à vontade. Sim, eu estava certo. Amantes há longo tempo. Desejei poder acreditar no que eu sugerira a Artur, que o filho poderia ser de Lot. Pelo menos, pelo tom neutro com que Gereint falara da criança, isso era o que os homens de Olicana pensavam.

— E agora — sorriu ele —, o amor falou mais alto, apesar da política. Seria presunçoso de minha parte perguntar se o Grande Rei se irritou com o acontecido?

O comandante de Olicana fizera por merecer uma resposta sincera, de modo que a recebeu.

— Ele ficou enraivecido, como seria de se esperar, pelo modo como foi feito o casamento, mas agora entende que ele servirá tão bem como o que se pretendia de início. Morgause é sua meia-irmã, de modo que a aliança com o rei Lot continua valendo. H Morgan está livre para se casar com outra pessoa.

— Rheged.

— Talvez.

Gereint sorriu e deixou o assunto morrer. Conversamos mais um pouco e então levantei-me para sair.

— Diga-me mais uma coisa — perguntei. — Seus informantes lhe deram notícias sobre o paradeiro de Merlin?

— Não. Recebi um relatório falando de dois viajantes, mas não havia nem uma insinuação que um deles pudesse ser o se­nhor.

— Nem para onde eles estariam indo?

— Não, senhor. Fiquei satisfeito.

— Creio que não preciso voltar a dizer que ninguém deve saber quem sou. O senhor também não incluirá esta nossa en­trevista em seu relatório.

— Isso está bem compreendido. Senhor...

— Sim?

— No que diz respeito ao relatório que enviou sobre Tribuit e o Forte do Lago, o senhor disse que logo virão topógrafos e construtores. Creio que eu poderia ganhar um bom tempo para eles mandando imediatamente para lá meus próprios grupos de trabalho. Esse pessoal poderia cuidar das medidas preliminares, como capinar o mato, cortar turfa e madeira, cavar valetas... O senhor autorizaria essa missão?

— Eu? Não tenho autoridade para isso.

— Não tem autoridade? — Gereint começou a rir. — Sim, já entendi. Se eu falar que recebi autorização de Merlin, todos co­meçarão a perguntar como ela chegou a mim e talvez se lembrem de um certo médico viajante que vendia ervas e ungüentos... Bem, já que esse mesmo viajante me trouxe uma carta do Grande Rei, minha própria autoridade será suficiente.

— Ela já foi mais do que suficiente por um longo tempo — concordei, e me despedi, satisfeito.

 

Assim viajamos para o norte. Quando entramos na principal estrada que chega a York, a que chamam de Dere Street, o per­curso tornou-se mais fácil, permitindo uma boa velocidade. Al­gumas vezes pernoitamos em estalagens mas, como o tempo es­tava firme e quente, avançávamos enquanto havia luz e ao anoi­tecer acampávamos em alguma clareira florida na beira da es­trada. Depois de comermos eu tocava harpa e cantava, e Ulfin escutava, entretido com seus próprios sonhos, enquanto o fogo morria em cinzas brancas e as estrelas apareciam.

Ulfin era um bom companheiro. Nós nos conhecíamos desde meninos. Na época eu estava no continente com Ambrosius, que montava o exército que iria derrotar Vortigern e tomar a Bretanha Maior, e Ulfin era criado — escravo, na verdade — de meu tutor, Belasius. Ele levara uma vida de sacrifícios com esse estranho e cruel homem, mas depois de sua morte Uther o convocara para fazer parte de sua criadagem particular, onde em pouco tempo estava ocupando um posto de confiança. Ulfin devia ter agora uns trinta e cinco anos; os cabelos castanhos e olhos cinzentos ainda conservavam parte do brilho da juventude, mas ele era extremamente calado e contido como acontece com os que têm de sobreviver sozinhos ou como acompanhantes de outros ho­mens. Os anos vividos como bode expiatório de Belasius tinham deixado sua marca.

Numa certa noite eu compus uma canção e usei como platéia as colinas suaves ao norte de Vinovia, onde riachos apressados

serpenteiam no fundos dos vales cobertos de vegetação, enquanto a estrada larga corre na região mais alta, onde só existe mato rasteiro por quilômetros e quilômetros, salpicado aqui e ali por pequenos bosques de pinheiros e bétulas prateadas.

Estávamos num desses bosques, protegidos do sereno pelos galhos sedosos das bétulas, e fiz esta canção, a que chamei de lamento e da qual tenho ouvido diferentes versões ao longo destes anos, em especial uma feita por um famoso cantor saxão:

 

Quem não tem companhia

procura muitas vezes a misericórdia,

A graça,

Do deus criador.

Pobre, pobre do homem fiel

Que vive mais do que seu senhor.

Ele vê o mundo em ruínas,

Como uma muralha derrubada pelo vento,

Como um castelo vazio onde a neve

Entra pelas janelas,

Flutua até a cama quebrada

E a lareira negra.

 

Que saudade da taça cintilante!

Que saudade do salão de festas!

Que saudade da espada que mantinha

O redil e o pomar

Protegidos das garras do lobo!

O caçador está morto

O legislador, o mantenedor, está morto,

Enquanto o lobo, com a águia

E o corvo,

Reinam sozinhos em seu lugar.

 

Absorto na música, só ergui o rosto quando o último acorde ainda vibrava na harpa e então vi duas coisas: em primeiro lugar, Ulfin, sentado a minha frente, no outro lado da fogueira, embe­vecido, com lágrimas escorrendo pelo rosto, e em segundo, que não estávamos sozinhos. Nenhum de nós dois, envolvidos pela canção, tinha notado a aproximação de duas pessoas caminhando pela relva macia da campina.

Ulfin os viu no mesmo momento que eu, e levantou-se de um salto já empunhando uma faca, mas logo ficou claro que eram pessoas de paz e a lâmina voltou para sua bainha antes mesmo de eu dar a ordem para guardá-la. O primeiro dos viajantes sorriu, erguendo a mão num gesto tranqüilizador.

— Não pretendemos lhes fazer mal, senhor. Sempre gostei muito de musica e fiquei encantado com o seu talento.

Eu agradeci e, como se minhas palavras tivessem sido um convite, o homem chegou mais perto da fogueira e sentou-se, enquanto o menino que o acompanhava livrava-se com um sor­riso de alívio das sacolas que carregava antes de se acomodar. Ele ficou longe do fogo, mas ali ainda recebia o calor dos troncos que amainava a leve triagem da noite.

O recém-chegado era um homem baixo, idoso, com a barba grisalha bem aparada e sobrancelhas rebeldes sobre olhos casta­nhos e míopes. Seu traje estava desgastado pela viagem, mas limpo, os sapatos e o cinturão eram de couro macio e podia-se notar de longe a boa qualidade do tecido da capa. Surpreendeu-me notar que a fivela do cinto era de ouro, ou então espessamente banhada, e trabalhada num modelo elaborado. O menino, que de início pensei ser seu neto, estava igualmente bem vestido e tinha no pescoço uma correntinha de ouro com um pendente que parecia ser um talismã. Todavia, quando ele começou a ar­rumar os cobertores para os dois, as mangas deslizaram para trás e pude ver no antebraço direito a cicatriz franzida de uma marca feita com ferro em brasa. Um escravo. O velho era de fato um homem de posses.

— O senhor me permite? — Ele dirigiu-se a mim sem nenhuma hesitação. Nossas roupas simples e apetrechos modestos lhe di­ziam que éramos pessoas comuns, talvez até abaixo de seu nível social. — Perdemos o rumo algumas léguas atrás e dei graças quando escutei a música e vi a fogueira. Imaginei que vocês não poderiam estar muito longe da estrada. Agora há pouco o garoto me disse que ela fica logo ali. — Ele apontou numa direção geral. — Bendito seja o fogo de Vulcano! Essas colinas não apresentam perigo durante o dia, mas quando escurece são traiçoeiras para homens e animais...

Ele continuou falando. Fiz um sinal a Ulfin para pegar o frasco de vinho e oferecer-lhe um gole, mas o velho se fez de rogado.

— Não, não. Obrigado, meu bom senhor, mas nós trouxemos comida. Não quero dar trabalho, além de repartir o fogo e ter companhia para a noite. Meu nome é Beltane e meu criado cha­ma-se Ninian.

— Somos Emrys e Ulfin. Seja bem-vindo e fique à vontade. Não quer mesmo um pouco de vinho? Temos bastante.

— Eu também. Ficarei ofendido se vocês não aceitarem um pouco do meu. E extremamente bom, espero que concordem co­migo... — Depois, por sobre o ombro: — Comida, garoto, bem rápido, e ofereça aos cavalheiros aqui um pouco do vinho que o comandante nos deu.

— Vocês estão vindo de longe? — perguntei. A etiqueta das estradas não permite que alguém pergunte diretamente de onde um homem veio nem para onde vai, mas espera-se que ele conte tudo, mesmo que a informação seja obviamente mentirosa.

Beltane respondeu sem titubear, enquanto comia a perna de frango que o menino lhe servira.

— De York. Passamos o inverno lá. Raramente saímos de um lugar assim tão tarde, mas... hum... a cidade estava cheia... hum... — Ele engoliu e acrescentou mais claramente: — Uma época mui­to propícia. Os negócios estavam bons e por isso me demorei mais do que o comum.

— O senhor veio por Catraeth? — O homem falara em bretão, de modo que usei o nome antigo. Os romanos a chamavam de Cataracta.

— Não. Vim pela estrada que fica a leste da planície. Eu não a recomendo. Foi um alívio quando avistamos a trilha que chega à Dere Street, mas esse tolo — um erguer de ombros na direção do escravo — não percebeu quando passamos pelo marco e eu dependo dele para me orientar. Minha vista é ruim, só vejo de perto. Bem, Ninian estava com a cabeça nas nuvens, como sempre, e quando começou a entardecer não tínhamos a menor idéia de onde estávamos nem a que distância nos encontrávamos da ci­dade. Já passamos por ela, meu senhor? Meu receio é que tenha ficado muito para trás.

— Lamento, mas é verdade. Passamos por ela no fim da tarde. O senhor tinha negócios a fazer lá?

— Faço negócios em todas as cidades.

Surpreendi-me com sua despreocupação e dei graças pelo ve­lho não fazer menção de castigar o menino. Ele estava ao meu lado, me servindo uma caneca de vinho com um ar de severa concentração. Pelo que me parecia, Beltane devia ser desses que ladram e não mordem, porque Ninian não mostrava o menor sinal de medo. Agradeci-o e ele levantou os olhos e sorriu. Percebi então que o velho tinha suas razões de reclamar. Obviamente os pensamentos dos garoto, apesar da aparente concentração em suas tarefas, estavam a léguas de distância. O sorriso doce e enevoado veio do interior de um sonho que o envolvia. Os olhos, sob a mistura de luar e de fogo, eram cinzento-claros, orlados de um anel cor de fumaça. Percebi neles, e também na graça involuntária dos gestos, algo que me pareceu conhecido... Senti o ar da noite soprando em minhas costas e os cabelos em minha nuca se eriçaram.

O menino se afastara sem dizer nada e agora estava inclinado perto de Ulfin com o frasco.

— Experimente, senhor — insistiu Beltane. — E coisa boa. Ganhei de um dos oficiais da guarnição de Ebor... Só Deus sabe como coisa tão fina foi parar em suas mãos, mas é sempre melhor não perguntar, certo? — Uma leve piscadela, enquanto voltava a mastigar o frango.

O vinho era mesmo especial, um tinto suave e saboroso que poderia rivalizar com os que eu tomara na Gália ou Itália. Cum­primentei o velho pela sua excelência, imaginando que serviços ele teria prestado para conseguir um pagamento tão bom.

— Ah! — Sorriu ele, com o mesmo jeito complacente. — O senhor deve estar pensando o que eu teria feito para ganhar essa beleza, não é?

— Bem, para falar a verdade... Mas, diga-me, por acaso o se­nhor é um mágico, já que consegue ler pensamentos?

— Não desse tipo — disse ele, com uma risadinha. — Mas também sei o que o senhor está pensando agora.

— Verdade?

— Aposto que está imaginando se eu não seria o mago do

Grande Rei viajando disfarçado! Acredita que só esse tipo de magia extrairia um vinho dessa qualidade de Vitruvius... E, como todos sabemos, Merlin costuma andar por essas estradas exata­mente como eu, acompanhado de um único escravo, se muito, e qualquer um o tomaria por um simples comerciante. Acertei?

— Sobre o vinho, sim. Imagino, então, que o senhor seja mais do que um "simples comerciante"?

— Pode-se dizer que sim. — O velho acenou com a cabeça, todo cheio de importância. — Mas, quanto a Merlin, me contaram que partiu de Caerleon. Ninguém sabe para onde nem o que foi procurar, mas com ele é sempre assim. Comentam em York que o Grande Rei já estará de volta a Linnuis antes da mudança de lua, mas Merlin desapareceu no dia seguinte à coroação. — Ele olhou para mim e Ulfin com interesse. — Vocês por acaso têm notícias do que anda acontecendo?

A curiosidade de Beltane não era mais do que o gosto por novidades, tão comum aos mercadores viajantes. Pessoas assim vivem levando e trazendo informações, e por isso são bem-vindas em todos os lugares.

Ulfin fez que não. Tinha o rosto impassível, como se fosse entalhado em madeira. Ninian não prestava atenção à conversa. Estava com a cabeça virada para a escuridão aromática das co­linas. Ouvimos o canto abafado de um pássaro noturno; com ele, a alegria chegou e saiu de seu rosto, num fulgor fugaz, mas tão belo como o das estrelas que víamos quando as folhas das árvores balançavam sob a brisa suave. Então era assim que ele se dis­tanciava de um amo tagarela e se recuperava da lida diária.

— Viemos do oeste, de Deva — falei, dando a Beltane a in­formação que tentava obter com rodeios. — Mas as notícias que tenho são velhas. Viajamos vagarosamente. Sou médico e sempre encontro trabalho.

— Verdade? Interessante. Mas com certeza ouviremos novi­dades quando chegarmos a Cor Bridge. O senhor também vai para lá? — Diante de meu aceno positivo, ele continuou. — Ótimo, ótimo. Mas não tenham receio de viajar comigo! Não sou nenhum mago disfarçado, embora tenha meios de encantar a própria rai­nha Morgause.

Ulfin ergueu a cabeça de um salto, mas eu apenas perguntei:

— Como?

— Por meio de meu ofício. Minha magia especial. Aposto que nem mesmo Merlin poderia fazê-la sem treinar por uma vida toda, como eu! — Ele terminou com outra de suas risadinhas complacentes.

— Podemos saber qual é ela? — Minha pergunta foi mera cortesia. Era óbvio que, Beltane esperava ansiosamente uma opor­tunidade para nos contar sobre seu ofício.

— Vou lhes mostrar. — Ele engoliu a última migalha de bo­lacha de aveia, limpou delicadamente os lábios e tomou outro gole de vinho. — Ninian! Ninian! Desça das nuvens! Logo vai ter tempo para sonhar de novo. Pegue o pacote e aumente o fogo. Preciso de mais luz.

Ulfin pegou um bom pedaço de lenha e atirou-o no fogo. As chamas aumentaram. O menino foi buscar um embrulho, que vi ser um rolo de pelica; ajoelhou-se ao meu lado, soltou as tiras e abriu o pacote no chão.

Um resplendor nos fez piscar os olhos. Ouro cintilando sob a luz avermelhada da fogueira, esmaltes pretos e escarlates, pérolas delicadas, granadas e pedras semipreciosas, engastadas em jóias de extremo bom gosto. Vi broches, alfinetes, colares, amuletos, fivelas para sandálias ou cinturões, e uma pequena guirlanda de flores em prata, um gracioso fecho para um cinto feminino. Al­gumas peças tinham forma de animais e a que mais me chamou a atenção foi um dragão em filigrana, cujo olho era uma granada reluzente.

Ergui o rosto e vi o velho me observando ansiosamente. Não economizei elogios.

— Que esplêndido trabalho. Maravilhoso. Nunca vi nada tão fino.

Beltane corou de satisfação. Agora que eu sabia quem era ele e o que fazia, não precisei mais ser cauteloso. Os artistas vivem de elogios como abelhas vivem de néctar. Além disso, não são de dar muita atenção às coisas não relacionadas com sua arte. Compreendi que Beltane estava pouco interessado em minha pes­soa e que as perguntas de antes eram totalmente inocentes, típicas de um mascate ansioso por novidades. E, com os eventos de Luguvallium continuavam sendo o principal assunto para conversas em torno de fogueiras, nada como passar para a frente a notícia que Merlin costumava viajar disfarçado. Tive plena certeza de que o velho não tinha idéia de quem era seu interlocutor nessa noite.

Fiz várias perguntas sobre sua arte, impulsionado pelo inte­resse que sempre tive nas habilidades das pessoas. Confirmei minha primeira impressão de que era ele mesmo quem fazia as jóias e entendi por que fora pago pelo comandante com um vinho de tão alta qualidade.

— Sua vista... Estragou-a por causa do seu ofício?

— Não, não. Minha vista só é ruim de longe, de perto vejo muito bem, o que é uma bênção para um artista como eu. Mesmo agora que estou longe da juventude, consigo ver os detalhes com toda a clareza, embora seja incapaz de ter uma imagem nítida de seu rosto, meu caro senhor, e nem mesmo destas árvores que nos protegem... — Beltane encolheu os ombros e sorriu. — É por isso que mantenho comigo esse moleque sonhador. Sem Ninian eu não poderia viajar como faço, embora em certas ocasiões, como hoje, por exemplo, tenha de confiar mais na sorte do que nos olhos desse tolinho para não me atolar nos pântanos.

Percebi que suas queixas eram rotineiras. O menino ignorou por completo o tom amargo. Aproveitara o pretexto de me mos­trar as jóias para ficar junto à fogueira.

— E agora? — perguntei a Beltane. — O senhor me mostrou peças dignas das cortes de reis. Elas me parecem boas demais para as feiras. Onde pretende vendê-las?

— Será que não adivinhou? Estou indo para Dunpeldyr, em Lothian. Com o rei casado de novo e uma rainha tão linda como a primavera, com toda a certeza haverá procura por coisas bonitas como as minhas.

Estendi as mãos para aquecê-las no calor da fogueira.

— Oh, é mesmo — falei —, o rei acabou se casando com a princesa Morgause. Estava noivo de uma e ficou com a outra. Ouvi falar qualquer coisa a respeito. O senhor estava lá?

— Sim, sim. Ninguém poderia culpar o rei Lot pela escolha, era o que diziam. A princesa Morgan é bonita e filha legítima de um rei, mas a outra... bem, o senhor sabe como são as pessoas. Falam que nenhum homem, especialmente alguém como Lot de Lothian, seria incapaz de se aproximar dessa dama sem desejar levá-la para a cama.

— Sua vista foi suficiente para lhe dar esse tipo de informações? — perguntei, vendo Ulfin sorrir.

— Não precisei de minha vista. — Beltane riu robustamente.

— Tenho ouvidos muito bons e ouço todas as conversas. Além disso, tive a oportunidade de chegar perto dela e senti seu per­fume e captei o brilho de seus cabelos sob o sol. Mandei o garoto descrevê-la minuciosamente e então fiz esta corrente para ela. O senhor acha que o rei quererá comprá-la?

Toquei a jóia encantadora. Os elos delicados de ouro segura­vam flores de pérolas e citrino engastadas em filigrana.

— O rei Lot será um tolo se não a quiser. E, se a rainha a vir antes, ele sem dúvida será obrigado a comprá-la.

— Foi o que imaginei. — Beltane sorriu. — Quando eu chegar a Dunpeldyr, ela estará recuperada e pensando em coisas bonitas. O senhor está sabendo? A rainha deu à luz há quinze dias, bem antes da data esperada.

A súbita imobilidade de Ulfin fez uma pausa de silêncio mais barulhenta do que um grito. Ninian ergueu a cabeça. Senti meus nervos se contraírem. O ourives, percebendo o aguçamento de atenção que estava recebendo, pareceu satisfeito.

— Vocês não sabiam?

— Não. Depois que passamos Irsurium não pernoitamos mais em cidades. Há duas semanas? Tem certeza?

— Tenho, senhor. Talvez certeza demais para o conforto de certas pessoas. — Beltane explodiu numa gargalhada. — Nunca vi tanta gente contando nos dedos, pensei que fossem gastá-los! E por mais que contassem, mesmo com a melhor boa vontade do mundo, a concepção da criança caía em setembro. Os mexe­ricos dizem que foi em Euguvallium, quando o rei Uther morreu.

— Entendo — falei, com indiferença. — E o rei Lot? Pelo que me disseram ele partiu para Linnuis com o objetivo de encon­trar-se com Artur.

— E verdade. Acho que a notícia ainda não chegou a ele. Eu fiquei sabendo quando pernoitamos em Elfete, na estrada leste, porque o mensageiro da rainha estava passando por ali. Ele con­tou que escolhera essa rota mais comprida para evitar encrencas,

mas aposto que recebeu ordens para ir bem devagar. Assim, quan­do o rei Lot ficar sabendo já terá se passado um intervalo mais decente desde o casamento.

— E a criança? — prossegui fingindo uma indiferença difícil para mim. — Um menino?

— Sim, e, pelo que contam, bastante doentio. E possível que Lot já não tenha um herdeiro quando a notícia chegar a ele.

— Não diga... — Achei melhor mudar de assunto.

Mas estou curioso, o senhor não tem medo de viajar por essas estradas com uma carga tão valiosa?

— Para falar a verdade, tenho sim. Em geral, quando fecho minha oficina no fim do inverno e saio por essas estradas, só carrego comigo coisas mais baratas, bijuterias que vendo nas fei­ras, e no máximo algumas peças mais finas de prata para os comerciantes e suas mulheres. Só que desta vez tive azar e não consegui terminar estas jóias a tempo de mostrá-las à rainha Morgause antes de ela partir para o norte, de modo que não me restou outra escolha... Mas tive sorte de encontrar em meu ca­minho um homem honesto como o senhor. Não preciso ser um Merlin para ver isso. Sei que é um homem honesto e um cava­lheiro como eu. Mas, diga-me, será que minha sorte durará até amanhã? Terei o prazer de contar com sua companhia, senhor, pelo menos até Cor Bridge?

Eu já me decidira sobre isso.

— Se quiser, até Dunpeldyr. Estou indo para lá. E, se o senhor pretende ir parando no caminho para vender suas mercadorias, não tenho objeções a fazer. Recentemente recebi uma notícia que me fez perder a pressa de chegar lá.

Beltane mostrou-se encantado e felizmente não conseguiu ver a expressão de surpresa de Ulfin. Eu já decidira que o ourives poderia ser muito útil para mim. Calculei que dificilmente teria ficado em York, perdendo a primavera, época de bons negócios, para fazer as ricas jóias que me mostrara, sem algum tipo de garantia de que Morgause pelo menos aceitaria vê-las. Ele con­tinuou papagueando alegremente, precisando de muito pouco encorajamento para me contar mais sobre os acontecimentos em York, e acabei descobrindo que eu estava certo em minhas su­posições. De alguma maneira ele conseguira despertar a atenção de Lind, a jovem camareira de Morgause e, em troca de uma corrente e brincos de pouco valor, a convencera a falar de suas jóias à rainha. A moça levara uma ou duas peças para Morgause ver e voltara com a notícia de que a rainha estava interessada. Deixei Beltane falar à vontade e depois disse num tom casual:

— O senhor falou alguma coisa sobre a rainha e Merlin. Pelo que entendi, ela colocou soldados à procura dele. Por que isso?

— Não, o senhor me entendeu mal. Foi uma brincadeira. Quan­do eu estava em York, ouvindo todos aqueles mexericos, ouvi alguém dizer que Merlin e a rainha tinham brigado em Luguvallium e que agora ela falava dele com ódio, quando antes sem­pre se mostrara admiradora de suas artes, chegando a parecer invejosa. E, como ultimamente ninguém sabia dizer onde estaria Merlin, alguns pensaram que... Mas, rainha ou não, que mal po­deria fazer para um homem como ele?

E você, pensei, tem muita sorte de enxergar mal, senão eu teria de tomar providências contra um sujeitinho tão falante. Mas eu me sentia satisfeito por ter encontrado Beltane e ainda pensava nisso quando finalmente até ele decidiu que era hora de dormir e nos enrolamos em nossos cobertores. Sim, sua presença daria credibilidade a meu disfarce e ele poderia ser meus ouvidos e receptor de informações na corte de Morgause. E quanto a Ninian, que atuava como seus "olhos"? Novamente senti uma brisa ge­lada em minha nuca e meus pensamentos se embaralharam numa sombra repentina. O que seria isso? Uma premonição? O primeiro sinal de uma volta do poder? Mas até mesmo essa especulação sumiu enquanto a brisa passava pelos galhos aveludados das árvores e o último pedaço de lenha se transformava em cinza. A noite sem sonhos fechou-se sobre mim. Recusei-me a pensar no menino doentio em Dumpeldyr, exceto para desejar que não vingasse, de modo a não me criar problemas.

Mas eu sabia que essa era uma esperança vã.

 

Menos de cinqüenta quilômetros separam Vinovia da cidade que fica junto a Cor Bridge, mas levamos seis dias para chegar lá. Em vez de viajarmos pela estrada, fizemos caminhos às vezes até bem difíceis, visitando todas as granjas e vilarejos, por mais humildes que fossem.

Como não tínhamos motivo para pressa, o percurso foi bem agradável. Beltane estava obviamente contente com nossa com­panhia e o trabalho de Ninian tornou-se mais fácil porque nossa mula de carga aliviou-o de seus pacotes desajeitados. O ourives falava sem parar, mas era um homem de bom coração e, acima de tudo, um artesão meticuloso e honesto, uma qualidade que sempre merece respeito. Nosso progresso tornou-se mais vaga­roso ainda porque ele não se negava a fazer pequenos consertos, em especial nos lugares mais pobres. Já nos vilarejos maiores ou em tavernas, passava a maior parte do tempo ocupado, mostran­do e vendendo suas jóias.

O menino o acompanhava em todas essas ocasiões mas, nas viagens entre as aldeias e nas noites no acampamento, acabamos fazendo um estranho tipo de amizade. Era muito calado, mas quando descobriu que eu estudara a vida cios pássaros e animais, que devido à minha profissão eu tinha um conhecimento deta­lhado das propriedades das plantas e que, à noite, eu conseguia ler o mapa das estrelas, passou a ficar junto de mim sempre que possível, e depois de algum tempo já encontrava coragem para fazer perguntas. Adorava música e tinha um bom ouvido, e por isso comecei ensinando-o a afinar a harpa. Apesar de ser anal­fabeto, mostrava inteligência quando se interessava por alguma coisa e percebi que, se tivesse um professor dedicado, poderia se desenvolver notavelmente. Quando chegamos a Cor Bridge, eu já alimentava a idéia de ser eu mesmo esse mestre e imaginei se Beltane estaria disposto a vender Ninian para ser meu criado. Com isso em mente, passei a manter os olhos abertos sempre que entrávamos em alguma granja ou sítio, no caso de ali haver um menino escravo que eu pudesse comprar para o ourives em troca do dele.

De vez em quando eu ainda sentia a pequena nuvem de opres­são, o arrepio de alguma previsão vaga que me tornava inquieto e apreensivo, me avisando de que uma perturbação espreitava de algum lugar, pronta a atacar. Todavia, depois de algum tempo desisti de tentar adivinhar o que seria, pois tinha certeza de que não dizia respeito a Artur. Se fosse relacionada com Morgause, não havia motivo para me preocupar com ela antes do tempo, pois eu imaginava que me manteria em razoável segurança mes­mo morando em Dunpeldyr. A rainha tinha muitas coisas em que pensar no momento, sendo talvez a maior delas a volta do marido, que podia contar nos dedos como qualquer outro homem.

Além disso, o problema talvez não fosse mais do que um abor­recimento trivial, que logo seria esquecido. É sempre difícil dizer, quando os deuses permitem a abertura dos véus do futuro, se a sombra que vem à luz será grande o bastante para cobrir os domínios de um rei ou se apenas fará uma criança chorar em seu sono.

Finalmente chegamos à cidade de Cor Bridge, situada na região de suaves colinas que fica ao sul da Grande Muralha. No tempo dos romanos esse local era chamado de Corstopitum e na con­fluência da Dere Street com a estrada leste—oeste construída por Agricola, fora erigido um forte bem aparelhado. Com passar do tempo, nessa área privilegiada fora surgindo uma aldeia, que acabou se tornando uma cidade florescente, pela qual passava todo o trânsito civil e militar vindo dos quatro cantos da Bretanha. Atualmente o forte está em ruínas e grande parte de suas pedras foram usadas para construir outros prédios, mas ao oeste dele, numa curva do terreno elevado à margem do rio Burn, a cidade continua próspera e crescente, com casas, estalagens e lojas, e um mercado livre afamado em toda a região.

A bela ponte romana, que deu â cidade seu nome moderno, Cor Bridge, ainda existe e atravessa o rio Tyne no ponto onde o rio Burn deságua nele vindo cio norte. Nesse local existe um moinho e a madeira da ponte geme continuamente sob as cargas de grãos. Mais abaixo fica o ancoradouro para as barcaças. O rio Cor é pouco mais do que um riacho, mas desce em cachoeira e por isso aciona a roda do moinho, mas nessa região o Tyne é largo e rápido, com vegetação abundante nas margens. O vale é fértil e extenso, cheio de árvores frutíferas plantadas no meio de milharais, e ao norte se eleva numa região montanhosa, com pequenos lagos cintilando ao sol. Mais adiante, no alto das es­carpas de basalto, corre a Grande Muralha do imperador Adriano, que acompanha o relevo do terreno, subindo e descendo, de onde se tem visão livre até onde o olho perde a terra no horizonte enevoado do céu.

Eu não conhecia a região. Como explicara a Artur, só escolhera esse caminho porque tinha uma visita a fazer. Um dos secretários de Ambrosius, com o qual eu convivera no continente e poste­riormente em Winchester e Caerleon, decidira se estabelecer no norte depois da morte de meu pai. O dinheiro que recebera como herança fora mais do que suficiente para ele comprar uma pro­priedade perto de Vindolanda, na estrada de Agricola, onde cul­tivava plantas raras e, segundo haviam me informado, escrevia a história da época em que acompanhara Ambrosius. Seu nome era Blaise.

Hospedamo-nos na parte velha da cidade, numa estalagem construída na área onde antigamente ficava a cidadela da forta­leza original. Beltane, com uma súbita e inabalável obstinação, recusara-se a pagar o pedágio cobrado na ponte, de modo que tivemos de atravessar o rio a vau, a uns quinhentos metros a jusante, e depois voltar acompanhando a margem até atingirmos o portão leste de Cor Bridge.

Anoitecia quando chegamos lá, de modo que nos hospedamos na primeira taverna que encontramos, um lugar bem respeitável, perto da praça do mercado. Apesar da hora, havia muita gente indo e vindo. De longe podíamos ouvir serviçais mexericando ao lado da cisterna pública enquanto enchiam suas jarras de água e por entre o burburinho e gargalhadas podia-se ouvir o mur­murar de uma fonte. Numa casa não muito longe dali uma mulher entoava uma música de fiar. Beltane mostrava-se entusiasmado com a perspectiva de vender muito no dia seguinte e, na verdade, começou a negociar naquela noite mesmo, quando os fregueses chegaram para uma bebida depois do jantar. Não fiquei para presenciar porque Ulfin viera me avisar que encontrara uma casa de banhos ainda em funcionamento perto da muralha oeste e me dirigi para lá, de onde só saí refrescado e relaxado para me retirar para o quarto.

Acordamos cedo, mas Beltane e o menino tinham madrugado. Enquanto eu e Ulfin tomávamos o desjejum sob uma árvore fron­dosa que crescia no pátio dianteiro da taverna vi que o ourives já estava com a banca montada num lugar estratégico, perto da cisterna, o que significava que Ninian abrira um tapete no chão e espalhara sobre ele as bijuterias adequadas para o gosto e bolso de pessoas comuns. As jóias permaneciam cuidadosamente es­condidas no forro de bolsas de couro.

Beltane estava em seu elemento, tagarelando com cada pas­sante que parasse por um minuto para admirar as peças em ex­posição. O menino, como de hábito, mantinha-se em silêncio e com paciência e gestos graciosos rearranjava as peças que os in­teressados tinham manuseado e largado displicentemente sobre o tapete, e recebia o dinheiro ou mercadorias que eram dados em pagamento. Nos intervalos, sentado de pernas cruzadas, cos­turava as tiras de suas sandálias, que tinham sofrido bastante durante a viagem.

Beltane tagarelava sem parar com a freguesia:

— E este aqui, senhora, o que lhe parece? — Eu já o vira em ação e podia imaginar o que estaria dizendo para uma mulher rechonchuda que carregava uma cesta de bolos. — As pedras ficam embutidas em filigrana, está vendo? Aprendi a arte em Bizâncio e garanto que mesmo lá a senhora não encontraria uma obra tão fina... E saiba que já fiz esse mesmo modelo em ouro para muitas damas deste país. Este? É o mesmo trabalho, feito em cobre, e fica muito mais em conta, claro... Veja as cores. Segure o broche contra a luz para ela ver, Ninian... Assim. Repare como

o metal envolve as pedras. O fio de cobre é bem fininho. Tenho de fazer toda a armação e depois coloco as pedras. Não, madame, não poderiam ser preciosas a esse preço! Mas eu mesmo faço o vidro e a senhora há de concordar que tenho bom gosto para cores. Entendo, madame... Mas veja então aquele passarinho. Ni­nian, mostre a ela... Lindo, não? Ou então o leão. Pode ter certeza de que não encontrará coisa parecida em nenhum canto deste país. Ora, nesse broche tem quase tanto cobre quanto na moeda que a senhora me pagará por ele...

Nesse momento Ulfin apareceu trazendo as mulas. Ficara com­binado que nós dois iríamos a Vindolanda, passaríamos a noite lá e voltaríamos no dia seguinte, enquanto Beltane e o menino ficavam negociando no mercado. Paguei pelo desjejum e fui até a praça para me despedir deles.

— Já estão de partida? — Beltane falou sem tirar os olhos da mulher, que examinava uma pulseirinha. — Então uma boa via­gem, mestre Emrys, nos veremos amanhã à noite... Sinto muito, madame, não estamos precisando de bolos, por mais cheirosos que eles estejam. O preço hoje é uma moeda de cobre. Ah, ob­rigado. A senhora não vai se arrepender. Ninian, prenda a pul­seira para a madame... Lindo, a senhora parece uma dama da nobreza, pode acreditar. Se a visse, a rainha Ygraine, que é a mais importante da Bretanha, ficaria até com inveja. Ninian! — chamou enquanto a mulher se afastava, usando o tom implicante que usava com o menino. —Não fique parado aí feito um bobo, com a boca cheia de água. Pegue essa moeda e vá comprar um par de sapatos. Quando partirmos para o norte, não quero ver você se arrastando pela estrada porque os seus estão soltando as...

— Não! — Falei sem perceber e só me dei conta quando vi os dois olhando para mim, surpresos. E não sei o que me impeliu a acrescentar: — Deixe Ninian comprar o bolo, Beltane. As san­dálias ainda têm conserto. Veja, ele está com fome, o sol já está alto...

O ourives franziu os olhos para mim. Finalmente, um pouco para minha surpresa, falou:

— Está certo. Vá logo, Ninian.

O menino me lançou um olhar alegre e depois entrou no meio dos passantes indo atrás da mulher com a cesta de bolos. Pensei que Beltane fosse me repreender, mas não foi o que aconteceu. Ele começou a rearranjar as bijuterias e disse apenas:

— O senhor está certo. Os meninos estão sempre morrendo de fome e ele é um garoto bom e fiel. Que ande descalço, se for preciso, mas de barriga cheia. Não é sempre que conseguimos doces e aqueles bolos estavam mesmo com um cheiro delicioso.

Enquanto nos dirigíamos para o oeste, seguindo a margem do rio, Ulfin perguntou, não escondendo uma súbita preocupação comigo.

— O que foi, meu senhor? Sente-se bem? O senhor me parece um pouco pálido...

Fiz que não e ele não disse mais nada, mas deve ter visto as lágrimas que escorreram frias em minhas faces sob o vento quente do verão.

 

Mestre Blaise nos recebeu numa aconchegante casinha feita de arenito rosado, construída em torno de um pequeno pátio com macieiras crescendo perto dos muros e roseiras trepadeiras escondendo os modernos pilares quadrados.

No passado ali morara um moleiro e o riacho que antes movia o moinho passava por perto, com a queda d'água controlada por degraus e margens muradas, onde cresciam folhagens e florzinhas. A uns cem passos abaixo da casa, o riacho desaparecia sob um dossel de árvores frondosas. Acima desse bosque, na encosta que ficava na parte traseira da propriedade, ficava o jardim mu­rado onde Blaise cultivava suas preciosas plantas.

Ele me reconheceu imediatamente, apesar de fazer um bom tempo que não nos víamos e pouco depois estava instruindo a mulher que cuidava da casa junto com a filha para providencia­rem acomodações para nós. Ulfin foi cuidar das mulas no estábulo e Blaise e eu ficamos livres para conversar.

A luz dura bastante no norte durante o verão, de modo que depois do jantar pudemos ir para o terraço que ficava acima do riacho. O calor ainda irradiava das pedras e o ar estava perfumado com o aroma de alecrim e ciprestes. Aqui e ali, nas sombras por entre as árvores, podia-se divisar a forma pálida de estátuas. Um pássaro cantou perto de nós enquanto o velho, que agora gostava de se apresentar como um magister artium, falava sobre o passado num latim puro, sem nenhum sotaque. A noite parecia ter sido emprestada da Itália e eu poderia ser novamente um rapaz se aventurando pelo mundo.

Quando disse isso a Blaise, ele sorriu de prazer.

— Sim, este lugar, no verão, também me faz lembrar daqueles tempos. Acho que todos tentamos nos manter dentro dos valores que eram importantes para nós quando estávamos em nosso auge. Você sabia que eu estudei em Roma antes de ter o privilégio de entrar a serviço de seu pai? Esses, sim, foram os grandes anos de minha vida! Mas talvez tenhamos a tendência de ficar olhando demais para trás à medida que vamos envelhecendo...

Falei algo delicado sobre isso ser uma grande vantagem para um historiador e perguntei se ele estava disposto a me honrar com uma leitura de seu trabalho. Já notara um lampião aceso e os rolos de pergaminho numa mesa de pedra.

— Quer mesmo escutar? — Blaise me conduziu até lá rapida­mente. — Tenho certeza de que algumas partes terão um interesse muito especial para você e creio que poderá me ajudar no acrés­cimo de alguns trechos. Por acaso tenho aqui comigo este rolo... sim, é ele mesmo... Vamos sentar? As pedras estão secas e não há sereno. Creio que poderemos ficar bem aqui perto das rosas...

O trecho que ele escolheu para ler foi seu relato sobre o que aconteceu depois da volta de Ambrosius à Bretanha Maior e nessa época passara a maior parte do tempo ao lado de meu pai, en­quanto eu estava envolvido em outras atividades. Depois de ler, Blaise fez as perguntas para obter o esclarecimento que desejava e pude fornecer detalhes sobre a batalha final com Hengist em Kaerconan e o subseqüente cerco a York, e principalmente sobre o trabalho de reconstrução e colonização que seguiu-se depois. Contei também sobre a campanha que Uther fizera contra Gilloman na Irlanda, pois o acompanhara enquanto Ambrosius per­manecia em Winchester. Blaise ficara com meu pai e por isso pudera me fazer um relato minucioso sobre sua morte.

Ele me contou tudo de novo.

— Eu ainda posso ver o grande quarto em Winchester, os médicos e os nobres todos por perto, seu pai recostado nos tra­vesseiros, perto da morte, mas falando com a mesma sensatez de sempre, conversando com você como se estivesse lá. Eu me mantinha a seu lado, pronto para escrever qualquer coisa que fosse necessária e mais de uma vez olhei para os pés da cama, pensando em vê-lo ali. E esse tempo todo você estava vindo das guerras irlandesas, trazendo a grande pedra que ficaria na tumba do rei.

Blaise começou a balançar a cabeça, como fazem os velhos, quando estão desejando ficar no tempo em que se deram os even­tos, mas eu o trouxe de volta ao presente.

— E até onde pretende ir com sua história?

— Oh, tento registrar tudo o que acontece mas, como agora estou fora do centro dos acontecimentos, sou obrigado a depender de conversas na cidade ou de pessoas que vêm me visitar, e fica difícil para mim saber o quanto estou perdendo. Tenho corres­pondentes, mas às vezes eles são displicentes. Esse jovens de hoje... Foi ótimo você ter vindo, Merlin, este é um grande dia para mim. Por que não fica por aqui mais tempo? Levo uma vida simples, mas sei que este lugar é agradável e temos tanto a conversar, tanto... E você precisa ver meu vinhedo. Uvas bran­cas, doces como o mel quando temos um bom ano. Também cultivo figos e pêssegos e até tive algum êxito com uma tangerineira que veio da Itália.

— Lamento, mas desta vez não posso ficar — falei, com sincero pesar. — Parto para o norte amanhã. Mas se for possível voltarei sem demora e, quem sabe, com muito para lhe contar. Prometo! Há muitas coisas importantes acontecendo e você poderá prestar um grande serviço à humanidade registrando-as para a posteri­dade. Enquanto isso, eu lhe escreverei de tempos em tempos, contando as novidades. Espero estar novamente ao lado de Artur antes do inverno e prometo mantê-lo informado sobre os acon­tecimentos.

Blaise mostrou-se encantado. Conversamos por mais algum tempo e, quando os insetos noturnos começaram a se reunir em torno do lampião, o levamos para dentro e nos recolhemos para dormir.

A janela de meu quarto dava para o terraço onde estávamos antes. Antes de deitar fiquei um bom tempo apoiado no peitoril, olhando para a noite e sentindo os aromas trazidos pela brisa fresca. O pássaro noturno já não mais cantava e agora só o mur­murar do riacho quebrava o silêncio. A lua nova brilhava rodeada de estrelas. Ali, longe das luzes e sons de cidades ou aldeias, a noite era mais profunda e o céu se estendia, sem limites, muito além das esferas, para um mundo inimaginável, onde deuses caminhavam e sóis e luas pareciam pétalas caindo macias. Existe um poder nas noites desse tipo que atraem os olhos e o coração dos homens para o alto, para fora, muito além do barro pesado que os prende à terra. A música também faz isso, a lua cheia igualmente e, imagino, também o amor, embora na época eu jamais o houvesse experimentado, exceto na adoração aos deuses. As lágrimas vieram de novo e eu as deixei cair. Sabia agora qual era a nuvem que vinha pairando sobre meu horizonte desde do encontro casual na estrada que cortava as campinas perto de York. Eu não sabia como, mas o menino Ninian, tão novinho e calado, com uma graça em sua aparência e movimentos que pa­reciam desmentir a feia cicatriz de escravo, tinha em torno de si a marca de uma morte anunciada. Qualquer homem choraria diante dessa aura mas eu também estava chorando por mim mes­mo; por Merlin, o mago, que via, mas nada podia fazer; que caminhava sozinho pelas alturas solitárias onde parecia ser im­possível alguém se aproximar dele. No rosto imóvel e olhos aten­tos do menino, naquela noite no acampamento, quando os pás­saros tinham cantado, eu captara um relance do que poderia ter sido. Pois, pela primeira vez desde os tempos em que eu ficava sentado aos pés de Galapas para aprender a arte da magia, eu encontrara alguém a quem poderia ensinar por prazer, como se estivesse passando à frente um tesouro. Não como os outros ti­nham querido aprender, desejando poder ou emoção, pretenden­do perseguir um inimigo ou realizar uma ambição, mas porque ele vira, com olhos cie criança, como os deuses se movem com os ventos, falam com o mar e dormem nas macias ervas, e como o deus maior é a soma de tudo o que existe na face desta linda terra. A mágica é uma porta pela qual o mortal às vezes consegue passar, para encontrar os portões nas colinas ocas e adentrar os saguões de um outro mundo. Não fosse por aquela aura de fa­talidade, eu poderia abrir esses portões para Ninian e, quando não mais precisasse dela, lhe entregaria a chave.

E agora ele estava morto. Creio que eu já sabia disso quando interrompera Beltane no mercado. O protesto áspero, que saíra sem pensar, sem eu saber por quê. O conhecimento veio depois. No entanto, sempre que eu falava nesse tom, os homens me obe­deciam sem hesitação e assim, pelo menos o menino conseguira seus bolos e seu descanso ao sol.

Afastei-me da janela, deixando lá fora a lua e as estrelas, e fui me deitar.

 

— Pelo menos ele comeu os bolos e aproveitou o sol — disse Beltane, o ourives, enquanto jantávamos na noite seguinte. Estava incomumente calado e parecia perdido. Apesar da língua ácida, era apegado ao menino.

— Mas... afogado... — Ulfin falou num tom de descrédito, mas captei um brilho em seu olhar que me contou que começara a entender o que acontecera. — Mas, como foi isso?

— Ontem à noite, ele me trouxe de volta para cá e guardou as coisas. Foi um dia de bons negócios e sabíamos que íamos comer bem. Ninian trabalhara o dia inteiro e, quando viu alguns meninos passando para ir tomar banho no rio, perguntou se podia acom­panhá-los. Tinha mania de se lavar, o pobre coitado... O dia fora muito quente, havia muita poeira e estéreo no mercado, por isso deixei-o ir. Só sei que uni pouco depois os meninos voltaram cor­rendo, contando o que acontecera. Ele deve ter caído num buraco. Me contaram que esse rio é traiçoeiro. Como eu poderia saber? Anteontem, quando atravessamos a vau, ninguém diria que...

— E o corpo? — indagou Ulfin, depois de ver que eu não ia falar.

— Desapareceu. Os meninos contaram que foi levado pelo rio como se fosse um tronco. Eles o viram de longe e não puderam fazer nada. Foi uma morte ruim, a morte de um cachorrinho. Gostaria que fosse encontrado para enterrá-lo como gente.

Ulfin falou algumas palavras de consolo e o pesar de Beltane foi melhorando enquanto ele comia e bebia.

Na manhã seguinte o sol brilhou de novo e nós três partimos para o norte e em quatro dias chegamos ao condado de Votadini, que na língua da Bretanha chama-se Manau Guotodin.

 

Cerca de dez dias depois, incluindo as paradas para negociar, chegamos à cidade de Dunpeldyr, a capital de Lot. Era o final da tarde de um dia cinzento e a chuva começara a cair. Tivemos a sorte de encontrar alojamento satisfatório numa hospedaria per­to do portão sul.

A cidade era pouco mais do que um amontoado de casas, lojas e oficinas nas encostas de um enorme rochedo, em cujo topo fora construído o castelo. No passado, essa plataforma con­tinha a cidadela, a fortaleza e a cidade, mas agora havia casas entre as escarpas e o rio, quase atingindo as muralhas. O rio, também chamado Tyne, acompanha o contorno do rochedo e depois corre em amplos meandros por um trecho em planície até chegar ao seu estuário arenoso. Existem duas pontes, uma de madeira, assentada em pilares de pedras, que fica na estrada que acaba no principal portão do castelo, e uma estreita, de tá­buas, que leva para uma trilha íngreme e daí para um portão lateral. Nesse lugar nunca existira uma abertura planejada de ruas; a cidade fora surgindo ao acaso, sem preocupação com a beleza ou lazer. Dunpeldyr é feia, com casas de tijolos com te­lhados de turfa e becos íngremes que em tempo chuvoso se tor­nam cachoeiras de água suja. O rio, bonito de longe, ali está cheio de mato e detritos. Entre ele e a parte leste do rochedo fica o mercado, onde Beltane iria montar sua banca.

Eu sabia que havia algo que devia fazer sem demora. Se como eu planejara, Beltane seria meus "olhos" no interior do castelo, Ulfin e eu não podíamos ser vistos com ele. Portanto, como o velho dependia de um serviçal para ajudá-lo a caminhar e vender, tínhamos de encontrar alguém para substituir o menino que se afogara. Ofereci-me para cuidar disso para ele, que concordou cheio de gratidão.

Eu avistara uma pedreira não muito distante dos portões da cidade, um lugar pequeno, mas ainda em funcionamento. Na manhã seguinte, cuidadosamente anônimo numa capa puída, cor de terra, fui até lá e procurei o capataz, um enorme e simpático rufião, que caminhava entre instalações semi-arruinadas e traba­lhadores igualmente semi-arruinados, como se fosse um grande senhor tomando a fresca em sua mansão rural.

Ele me olhou de alto a baixo com desdém.

— Criados saudáveis são muito caros, senhor. — Pude ver, enquanto o homem falava, que ele estava me avaliando e che­gando a uma conclusão bem ruim. — Também não tenho nin­guém que possa dispensar. Num lugar como este, só se encontra a ralé... prisioneiros, criminosos, gente desse tipo. Praticamente nunca aparece um escravo para uma casa de respeito, alguém de confiança para trabalhar na lavoura ou com qualquer tipo de ofício. E músculos custam caro. É melhor o senhor esperar pela feira. Aí surge gente de todo o tipo, querendo se empregar ou vendendo a si mesmo ou seus fedelhos em troca de comida... Mas, para isso, será melhor esperar pelo inverno, quando os pre­ços são mais baixos.

— Não quero esperar e me disponho a pagar bem. Estou de passagem e preciso de um homem ou um menino. Não faço questão que tenha um ofício, só que saiba se manter limpo, que seja fiel a seu amo e tenha forças para viajar até mesmo no in­verno, quando as estradas ficam péssimas.

Enquanto eu falava, vi o homem assumir um ar mais cortês e percebi que a avaliação melhorara um pouco.

— Viajar? Então é isso que o senhor faz?

Não vi motivos para lhe contar que o criado não era para mim.

— Sou médico.

Minha resposta teve o efeito habitual. O homem começou a me contar ansiosamente sobre suas várias enfermidades, bastante naturais num homem de quarenta anos e poucos anos.

— Muito bem — falei, quando ele terminou —-, creio que posso ajudá-lo, mas será uma ajuda mútua. Se o senhor tem alguém aqui que possa dispensar para ser meu criado... e deve ser barato, já que me informou que só consegue a ralé... talvez possamos fazer um acordo. E mais uma coisa. Como deve imaginar, na minha profissão é preciso saber guardar segredo. Não quero ne­nhum boquirroto; faço questão de que seja de pouco falar.

Ao ouvir isso, o grandalhão arregalou os olhos e depois soltou uma gargalhada, batendo a mão na coxa como se tivesse ouvido a melhor piada do mundo. Ainda rindo, virou a cabeça para trás e berrou: — Casso! Venha cá! Depressa, seu palerma! Seu dia de sorte chegou, rapaz, e veio trazendo um novo amo e uma vida de aventuras!

Um mocinho magro e alto separou-se de um grupo que que­brava pedras sob um telheiro que parecia a ponto de desabar. Endireitou-se devagar e ficou olhando em nossa direção por uns bons segundos antes de largar a picareta e aproximar-se.

— Posso lhe arranjar este, mestre doutor. — O capataz sorriu, exibindo dentes ruins, e acrescentou, gargalhando: — Ele é tudo o que o senhor pediu.

O jovem chegou perto de nós e ficou parado, com os braços pendentes e olhos fixos no chão. Devia ter uns dezoito ou deze­nove anos. Parecia forte, e tinha de ser para suportar essa vida por mais de seis meses, mas deu-me a impressão de ser burro, no limiar da idiotia.

— Casso? — falei. Ele olhou para mim e vi que estava apenas exausto. Numa vida sem prazer ou esperança havia poucos mo­tivos para gastar energia com pensamentos.

O capataz riu de novo.

— Não adianta falar com ele. Se quiser saber alguma coisa, pergunte a mim ou então terá que procurar a resposta sozinho. — Ele pegou o pulso do rapazinho e levantou o braço. — Está vendo? Forte como uma mula, pulmões fortes. E discreto, como o senhor pediu. Discreto até demais. Casso é mudo.

O mocinho não mostrou sinal de perturbação em ser exibido como um animal, mas diante da última sentença fixou os olhos nos meus por um instante. Vi então que eu estivem enganado. Havia pensamento ali e também esperança. Todavia, logo vi a esperança morrer.

— Imagino que ele ouve bem, certo? — Falei. — O que causou a mudez, o senhor sabe?

— Foi a própria língua dele. — O capataz estava a ponto de soltar outra gargalhada, mas captou o meu olhar e só pigarreou. — O senhor não poderá curá-lo, mestre doutor, a língua dele foi cortada. Eu nunca soube direito o que aconteceu, mas ele servia em Bremenium e parece que abriu demais a boca. E se existe alguém que não tem a menor paciência com gente insolente é o senhor Aguisel... Mas, enfim, ele aprendeu a lição. Veio para cá com um lote de escravos que trabalhou na reforma da ponte e nunca me deu trabalho. Só sei que era criado de casa, por isso o senhor tem aqui uma pechincha. Casso... Ei, vocês aí!

Enquanto falava, o capataz ficara de olho nos homens que quebravam pedras e agora estava indo para lá, reclamando que tinham aproveitando a oportunidade para encostar o corpo.

Olhei atentamente para Casso. Eu captara o gesto rápido de negativa quando o capataz falara em "insolência".

— Você trabalhava na casa de Aguisel? — indaguei. Um aceno de cabeça.

— Entendo.

E eu entendia mesmo. Aguisel tinha péssima fama. Era o chacal de acompanhava Lot, o lobo, e seu covil era a fortaleza de Bre­menium, que ficava mais ao sul. Boatos freqüentes diziam que ele tinha o hábito de usar escravos mudos ou cegos.

— Estou certo em pensar que você viu alguma coisa que jamais deveria contar?

Outro aceno positivo. Desta vez os olhos se mantiveram fixos em mim. Com certeza fazia muito tempo que alguém tentara até mesmo essa comunicação limitada.

— Foi o que pensei, já ouvi contar muitas histórias sobre o senhor Aguisel. Você sabe ler ou escrever.. Casso?

Ele fez que não vigorosamente.

— Dê graças a isso — falei secamente. — Se soubesse, a esta altura estaria morto.

O capataz voltava para nós, depois de xingar os homens e se satisfazer com o ritmo de trabalho. Tive de pensar rapidamente.

A mudez do rapaz não seria problema para Beltane, que falava por dois, mas eu estivera me baseando na hipótese de que o novo escravo iria ser os olhos de seu amo enquanto estivéssemos em Dunpeldyr. No entanto, agora eu conhecia bem o ourives e sabia que ele me contaria tudo o que se passava na casa de Lot. Sua vista não era boa, mas eu só precisava de sua audição para me manter a par do que era comentado lá; a aparência do lugar não teria a menor importância para mim. Se Beltane não ficasse contente com Casso, até minha partida da cidade eu com certeza encontraria outro escravo, mas por enquanto o tempo era pouco e me interessava comprar discrição, mesmo que forçada, e a leal­dade que costuma vir com a gratidão.

— E então? — perguntou o capataz.

— Qualquer um que tenha sobrevivido ao serviço em Breme­nium é suficientemente forte para qualquer coisa que eu possa vir a precisar. Muito bem, ficarei com ele.

— Esplêndido! Esplêndido!

O sujeito fez tantos elogios à minha escolha e aos talentos de Casso que comecei a imaginar se os escravos não seriam seus ou se estava prevendo a entrada de um bom dinheiro para seu próprio bolso, porque comunicaria ao seu patrão que um de seus homens havia morrido.

Quando o homem começou a falar sobre o preço de Casso, mandei o rapaz pegar suas coisas e me esperar na rua. Nunca entendi por que um escravo ou prisioneiro deve ser privado de um mínimo de auto-respeito. Quando o vi se afastar, voltei a regatear com o capataz.

— Agora lembre-se de que eu disse que pagaria parte do preço em remédios. Posso ser encontrado na hospedaria que fica perto do portão sul. Se me procurar esta noite ou mandar alguém em seu nome, terei os medicamentos prontos. E só perguntar pelo mestre Emrys. E agora, quanto ao dinheiro...

Finalmente acabamos concordando e então, seguido pelo rapaz que eu comprara, voltei para a taverna.

Casso não escondeu sua decepção quando soube que não iria ficar comigo, mas com Beltane. Todavia, no fim do dia, com a boa comida, calor e companhia alegre da gente que lotava o salão da taverna, ele me fez lembrar de uma planta que depois de estar murchando na escuridão fora colocada num vaso com água sob a luz do sol. Beltane mostrava-se extremamente grato a mim e não perdeu tempo em iniciar uma longa e feliz exposição sobre seu ofício para o rapaz. Crasso dificilmente encontraria um outro lugar onde sua mutilação seria tão pouco importante e, de fato, cerca de uma ou duas horas depois, Beltane já estava vendo gran­des vantagens em ter um escravo mudo. O rapaz parecia beber suas palavras enquanto tocava as bijuterias com os dedos calosos e era fácil ver seu cérebro saindo do torpor causado pela exaustão e se expandindo em prazer.

A taverna era pequena e não tinha mesas separadas, mas no final do corredor, longe do fogo, havia uma alcova com uma mesa e dois bancos onde pudemos conseguir um pouco de pri­vacidade. Ninguém prestou grande atenção em nós e ficamos ali o resto da noite, ouvindo os boatos que corriam pelo local. O mais importante foi que Artur lutara e vencera duas outras ba­talhas e que os saxões tinham aceitado seus termos. O Grande Rei ficaria em Linnuis por mais algum tempo, mas Lot era es­perado a qualquer momento.

Ele só chegou quatro dias depois.

Passei esses dias dentro de casa, escrevendo para Ygraine e para Artur, e deixei as noites para caminhar, conhecendo a cidade e seus arredores. Dunpeldyr era pequena e não costumava atrair estranhos, e foi por isso que eu só saía depois do pôr-do-sol, quando a maioria dos habitantes estava jantando. Pelo mesmo motivo, não anunciei meu ofício. Qualquer um que se aproxi­masse de nosso grupo era logo monopolizado por Beltane. Creio que imaginavam que eu era um tipo qualquer de escriba, e bem pobre. Ulfin ficara encarregado de vigiar os portões da cidade, ouvindo o máximo de novidades que pudesse e esperando no­tícias sobre a chegada de Lot. Beltane, inocente e sem desconfiar de nada, cuidava de suas vendas. Ele montou seu fogão na praça diante da taverna e começou a ensinar a Casso os fundamentos da arte de consertar bijuterias e jóias. Isso, naturalmente, acabou chamando a atenção dos passantes e logo o ourives estava cheio de fregueses.

No terceiro dia essa atividade trouxe o resultado que todos esperávamos. A mocinha Lind viu Beltane na praça e foi con­versar com ele, e o ourives, depois de presenteá-la com uma fivela, deu-lhe um bilhete para ser entregue à rainha. No dia seguinte veio a ordem para ele se apresentar no palácio, o que fez com grande satisfação, acompanhado de Casso, carregado de pacotes.

Mesmo que pudesse falar, o escravo não teria contado nada. Assim que os dois pararam no portão da guarda real, Casso re­cebeu ordens para esperar, enquanto uma camareira conduzia Beltane até os aposentos da rainha.

O ourives voltou à taverna ao anoitecer, borbulhando de no­vidades. Apesar de toda sua conversa sobre gente importante, essa fora a primeira vez que entrara no castelo de um rei e Morgause seria a primeira rainha a usar suas jóias. A admiração que sentira por ela em York agora se transformara em pura adoração; de perto, sua beleza em tons de rosa e dourado atuava como uma poção embriagadora sobre qualquer homem, mesmo alguém velho e míope como ele. Casso e eu, porque Ulfin continuava vigiando os portões, tivemos de ouvir um relato literal sobre os encantos da rainha, sua elegância, os elogios que fizera às jóias, sua generosidade em comprar três delas e, até sobre os vários aromas que ela exalava. Beltane se esforçou ao máximo para fazer uma descrição acurada dos esplendores da sala onde Morgause o recebera, mas disso só pudemos ter impressões passageiras, devido à miopia. O quadro que ele nos transmitiu foi uma névoa perfumada de luz e cor; os raios de sol vindos de uma janela, refletindo no cetim de um robe cor de âmbar e inflamando o dourado e rosa dos cabelos; o farfalhar de seda e o calor e estalar dos troncos na lareira, e música. Uma voz de menina entoando uma cantiga de ninar.

— Quer dizer então que a criança estava lá?

— Sim. Dormindo num berço perto da lareira. Pude vê-lo bem destacado contra as chamas e a mocinha o embalando e cantando. Um dossel de seda e creio que gaze, com um sininho que batia com o vaivém, e brilhava à luz do fogo. Um berço real. Uma coisa linda! Como gostaria de ter minha antiga vista de volta, nem que fosse apenas para vê-lo!

— E você chegou a ver o menino?

A resposta foi negativa. O bebê acordara e chorara um pouco, mas a mocinha o tinha aquietado sem tirá-lo do berço. Naquele momento a rainha estava experimentando uma gargantilha e sem nem mesmo olhar para trás tirara o espelho da mão da babá e a mandara ninar a criança.

— Uma voz bonita — contou Beltane —, mas uma cantiga muito triste. De fato, eu nem reconheceria sua dona se ela não tivesse falado comigo ontem na praça. Tão magrinha e ansiosa, parecendo um ratinho assustado. O nome dela é Lind, mas acho que vocês já sabem disso. Nome estranho para uma donzela, não é? Não existe uma cobra com esse nome?

— Creio que sim. Você sabe qual é o nome do menino?

— Elas o chamaram de Mordred.

Beltane começou a fazer menção de repetir a descrição do berço e do quadro criado pela mocinha enquanto o embalava, mas eu o fiz voltar para o que me interessava.

— E elas falaram alguma coisa sobre a volta do rei Lot? Beltane, um artista que só se importava com seu trabalho, nem mesmo desconfiou das implicações da pergunta. Todo feliz, con­tou que a rainha parecia mais entusiasmada do que uma menininha. Ficava perguntando se o seu marido gostaria do colar, se os brincos combinavam com o tom de seus olhos, tornando-os mais brilhantes. Acrescentou também que devia pelo menos me­tade da venda que fizera à próxima chegada do rei.

— Ela não mostrou medo dele?

— Medo? — repetiu Beltane, com um ar intrigado. — Claro que não. E por que deveria sentir medo? Ela estava toda feliz. "Não vejo a hora de chegar para ver que belo filho eu lhe dei, tão parecido com o pai como se fossem dois lobos." E ria sem parar. Foi uma brincadeira, sabe, mestre Emrys? For aqui o rei Lot é conhecido como "O Lobo" e o povo sente orgulho disso, como seria de se esperar nessa gente meio selvagem aqui do norte. For que a rainha sentiria medo?

— Eu estava pensando nos boatos que o senhor mesmo nos transmitiu há algum tempo atrás.

— Ora, isso... Bem, saiba que era só falatório. Sei onde está querendo chegar, mestre Emrys. Os mexericos maldosos que andam correndo por aí. Esse tipo de conversa sempre surge quando um nascimento acontece antes da data marcada, quanto mais no castelo de um rei, onde, por assim dizer, existe muita coisa em jogo.

— Então foi mesmo antes dos nove meses?

— Sim, é o que dizem. Pegou todos de surpresa. Os médicos do rei estavam com ele e foram as mulheres que fizeram o parto. Mas graças a Deus, tudo deu certo. Lembra-se de como nos con­taram que o pequeno príncipe era doentio? Ele nasceu mesmo fraquinho, mas agora está indo bem e vem engordando. Quem me contou foi a donzela Lind, enquanto voltávamos para o por­tão.

Beltane inclinou-se sobre a mesa, balançando a cabeça com alegre ênfase.

— Portanto, mestre Emrys, era tudo mentira e para se saber a verdade é bastante conversar com a rainha. Como uma criatura tão linda trairia o marido? Ora, ela falava como se fosse nova­mente uma noiva sempre que alguém mencionava a volta do rei. Oh, claro, pode ter certeza, foram só mexericos inventados em York por pessoas que têm motivos para ficarem com ciúmes... O senhor sabe de quem estou falando, não é? E a criança é a cara do pai. Todas as mulheres dizem a mesma coisa: "Quando o rei Lot chegar será como se estivesse se vendo num espelho. O anjinho é o retrato do pai".

E assim o ourives continuou falando enquanto Casso, ocupan­do-se com o polimento de algumas fivelas baratas, ouvia e sorria e eu deixava a conversa passar enquanto me envolvia com meus próprios pensamentos.

Como o pai? Cabelos escuros, olhos castanhos, eram atributos tanto de Lot como de Artur. E se o destino tivesse ficado a favor de Artur? Haveria pelo menos um mínimo de probabilidade que Morgause fora engravidada por Lot e depois seduzira Artur numa tentativa de prendê-lo a ela?

Relutantemente afastei minha esperança. Em Luguvallium, quando sentira o perigo iminente, eu estava numa época de auge de poder, mas não precisaria dele para desconfiar de Morgause. Eu viera para Lothian com a intenção de vigiá-la e agora as informações que recebera de Beltane poderiam estar me alertando sobre o que eu deveria observar mais atentamente.

Nesse momento Ulfin entrou na taverna, sacudindo os pingos de chuva da capa. Logo nos avistou e fez-me um sinal quase imperceptível. Levantei-me pedindo licença a Beltane, e fui ao seu encontro.

— Tenho novidades — disse ele baixinho. — O mensageiro da rainha acabou de chegar. Eu o vi. O cavalo estava quase es­gotado. O guarda do portão... aquele com quem fiz amizade... me contou que o rei vem vindo, viajando ligeiro. É esperado hoje à noite ou amanhã.

— Ótimo, obrigado. Mas você esteve fora o dia todo. Vá vestir roupas secas e comer alguma coisa. Acabo de ouvir algo de Bel­tane que me diz que seria proveitoso vigiar o portão dos fundos do castelo. Eu lhe contarei tudo depois. Quando terminar de co­mer, venha se encontrar comigo. Procurarei um lugar seco e fora de vista para ficarmos esperando. — Voltamos à alcova e pedi um favor a Beltane. — Você poderia me ceder Casso por uma meia hora?

— Claro, claro, mas precisarei dele depois. Tenho de consertar uma fivela do camareiro-mor que prometi entregar amanhã mes­mo.

— Ele voltará logo. Vamos, Casso?

O escravo já estava em pé. Ulfin, com uma sombra de apreen­são no olhar, falou:

— O senhor sabe o que deverá fazer agora?

— Estou só adivinhando. Já lhe disse que o poder não está envolvido neste caso. — Falei baixinho e por causa do barulho na taverna Beltane não pôde me escutar. Mas Casso ouviu e olhou rapidamente para mim e Ulfin. Sorri para ele: — Não se preocupe, rapaz, Ulfin e eu temos negócios aqui que não afetarão você ou seu amo. Venha comigo.

— Eu poderia ir — protestou Ulfin.

— Não. Primeiro se cuide. Troque de roupa e coma, assim descansará um pouco. Casso...

Saímos caminhando pelo labirinto de ruas sujas. A chuva, que agora caía fina e constante, formava poças enlameadas e desfazia o estéreo em massas fedorentas. As luzes que às vezes víamos nas casas eram fracas, chamas fumacentas protegidas do vento frio da noite por couros de boi ou sacos de aniagem. Nada in­terferia com nossa visão noturna, de modo que pudemos encon­trar o caminho com facilidade pelas ruelas brilhantes de chuva. Depois de algum tempo estávamos na escarpa da rocha que era cheia de árvores e, ao olharmos para cima, vimos a forma amea­çadora do castelo. Uma lanterna pendia na escuridão, marcando o local do portão dos fundos.

Casso, que estivera me seguindo, tocou meu braço e apontou para uma viela estreita, pouco mais do que um vertedouro para a água de chuva, que eu não detectara em minhas inspeções anteriores. No fundo dela eu podia ouvir, bem alto acima do chiado constante da chuva fina, o barulho do rio.

— Um atalho para a pontezinha?

Casso balançou a cabeça vigorosamente.

Descemos com todo o cuidado para não escorregar nas pedras limosas. Pude ver uma parte do rio, a água agitada por uma cachoeira artificial e a grande pá de um moinho. Depois dela, delineada pelo brilho refletido da espuma, estava a ponte de pe­destres.

Não havia ninguém por perto. O moinho não estava em fun­cionamento. Uma trilha enlameada levava para ele, passando pelo capim encharcado da margem do rio.

Irritado e meio desconfiado, imaginei por que Casso escolhera esse caminho. Talvez tivesse apenas captado uma necessidade de segredo, embora as ruas estivessem desertas nessa hora da noite. Mas então o barulho de vozes e o movimento luminoso de uma lanterna me fizeram procurar abrigo na soleira do moi­nho.

Três homens vindo pela rua. Estavam apressados, conversando em voz baixa e vi uma garrafa passando de mão em mão. Serviçais do castelo, com certeza, voltando da taverna. Eles pararam no final da ponte e olharam para trás. Agora era possível distinguir algo de furtivo em seus movimentos. Um deles disse alguma coisa e ouvi uma gargalhada, logo abafada. Eles continuaram o caminho, mas antes disso pude vê-los com clareza sob a luz da lanterna. Estavam armados e obviamente sóbrios.

Casso continuava bem junto de mim, encostado o máximo possível na porta fechada do moinho. Os homens passaram ra­pidamente pela ponte, seus passos soando ocos nas pranchas de madeira.

A luz fraca do lampião me mostrara uma outra coisa. Logo depois do moinho, onde a viela fazia uma curva, uma outra porta, e aberta. Pela pilha de madeira e serragem no interior, calculei que ali devia ser a oficina de um carpinteiro. Estava deserta, mas dentro do galpão principal ainda brilhavam os restos de uma fogueira. Dessa escuridão protetora eu poderia ver e ouvir tudo o que se aproximasse da ponte.

Casso correu à minha frente, entrando logo no calor agradável dessa verdadeira caverna, e pegou uns pedaços de lenha, que levou para perto da fogueira, fazendo menção de atirá-los sobre as brasas.

— Só um — falei baixinho. — Isso, muito bem. Agora, volte e vá buscar Ulfin. Depois disso, volte à taverna, se enxugue bem e esqueça sobre nós.

Um aceno de cabeça, um sorriso e em seguida uma pantomima para me mostrar que meu segredo, fosse qual fosse, estaria em segurança com ele. Só os céus saberiam dizer o que Casso ima­ginava sobre minhas atitudes. Talvez acreditasse que eu era um militar numa missão de reconhecimento ou um espião.

— Casso. Você gostaria de aprender a ler e escrever?

Imobilidade. O sorriso desapareceu. No brilho crescente da fo­gueira eu o vi rígido, todo olhos, com um ar de descrédito, como se fosse um viajante perdido a quem alguém oferecera uma di­reção quando ele já se considerava totalmente perdido. Ele só fez que sim uma vez e foi quase uma convulsão.

— Tomarei providências para isso. Agora vá... e obrigado. Boa noite.

Ele saiu correndo, como se a viela fedorenta estivesse ilumi­nada pelo sol e na metade da subida eu o vi saltitar como um jovem animal subitamente libertado da jaula. Voltei a entrar na oficina e, agora mais calmo, pude ver que ali se confeccionavam rodas de carroça. Perto da fogueira, que na verdade era a forja, estava o banquinho de onde provavelmente um menino acionava o fole. Sentei-me para esperar, abrindo minha capa molhada para esquentar ao calor do fogo.

Lá fora, abafando o som agradável da chuva, vinha o ronco da cascata que acionava o moinho. Uma pá da grande roda devia estar solta e estalava ao ser martelada pela água. A oficina do carpinteiro cheirava a madeira fresca e resina em secagem. O crepitar do fofo era claramente audível na escuridão aquecida. O tempo ia passando.

Certa vez eu me sentara assim, sozinho, ao lado de um fogo, com a mente numa câmara de parto, enquanto o deus me revelava o destino de um menino. Era uma noite límpida, o vento soprava sobre o mar tranqüilo e a grande estrela-rei brilhava no veludo negro do céu. Nessa época eu era jovem, seguro de mim e do deus que me impulsionava. Agora eu não tinha mais certeza de nada, exceto de que faria de tudo para desviar o mal que Morgause estava planejando, mas sabendo que eu seria como um galho seco tentando conter a força de uma torrente.

Eu, contudo, retinha o poder que existia no conhecimento. O raciocínio me conduzira até ali e logo seria possível ver se eu entendera corretamente as manobras daquela bruxa. E, apesar de meu deus ter me abandonado, eu ainda possuía muito mais poder do que é concedido aos homens comuns: tinha um rei a meu dispor.

Ulfin chegou para compartilhar da vigília comigo, exatamente como fizera em Tintagel. Não o ouvi se aproximar, apenas vi quando sua figura escondeu a leve luminosidade que vinha pela porta aberta.

— Aqui — falei, e ele entrou tateando, até chegar perto do fogo.

— Nada ainda, meu senhor?

— Nada.

— O que o senhor espera?

— Não tenho muita certeza, mas creio que alguém passará por aqui esta noite, vindo de parte da rainha.

Senti-o estreitar os olhos para tentar ver meu rosto na escuri­dão.

— Porque Lot deve chegar a qualquer momento?

— Isso. Você ouviu mais alguma novidade a respeito dele?

— Não. Foi o que eu lhe contei. Sabem que está vindo o mais rápido possível e deverá chegar a qualquer momento.

— Bem, de qualquer maneira Morgause precisa se certificar.

— Se certificar, do quê, meu senhor?

— O filho do Grande Rei. Uma pausa.

— O senhor está pensando que eles tirarão a criança do castelo para o caso de Lot acreditar nos boatos e querer matar o bebê? Mas nesse caso...

— Sim? Prossiga.

— Nada, meu senhor. Eu só estava imaginando... O senhor acha que o trarão por este caminho?

— Não. Penso que já o trouxeram.

— É mesmo? O senhor viu para onde foram?

— Não enquanto eu estava aqui. Eu quis dizer que tenho cer­teza de que o bebê que está no castelo não é o filho de Artur. Eles trocaram as crianças.

Ouvi uma longa inspiração na escuridão.

— Por medo de Lot?

— Claro. Pense, Ulfin. Morgause pode contar o que quiser a Lot, mas com certeza ele já ouviu o que todos estão dizendo, desde que se tornou público que a rainha estava grávida. Claro que Morgause vem tentando convencê-lo de que é o pai da criança e que o parto foi prematuro, e pode ser que ele acredite. Mas o que você imagina que Lot fará se desconfiar que Morgause está mentindo e que o filho de outro homem, e principalmente o filho de Artur, ocupa o berço real e será o herdeiro de Lothian? Seja o que acontecer, sempre existe a possibilidade de que ele matará o menino. E Morgause sabe disso.

— O senhor acha que ele ouviu os boatos de que o pai pode ser o Grande Rei?

— Lot não teria como evitar. Artur não fez segredo a ninguém de sua visita ao quarto de Morgause e ela agiu da mesma forma. Queria que o caso se tornasse público, isso fazia parte de seu plano. Posteriormente, quando obriguei-a a modificá-lo, Morgau­se com toda a certeza ameaçou suas damas de companhia para ficarem de boca fechada, mas os guardas viram Artur e pela manhã todos os homens em Luguvallium ficaram sabendo do acontecido. Portanto, o que Lot pode fazer? Ele não toleraria a presença de um bastardo qualquer, mas o filho de Artur poderia ser perigoso.

Ulfin ficou em silêncio por um instante e depois falou:

— Estou me lembrando de Tintagel. Não da noite em que levamos o rei Uther para o castelo, mas da outra, quando a rainha Ygraine lhe deu Artur para escondê-lo do rei.

— Sim.

— O senhor pretende ficar com essa criança também, para salvá-la de Lot?

A voz de Ulfin, normalmente baixa e agradável, soou esganiçada devido a algum tipo de tensão. Mal prestei atenção nisso. Vindo do meio da noite, por sobre o barulho do rio, eu ouvira um som abafado de patas de cavalo. Não um ruído, mais uma vibração que o solo transmitiu, que pulsou por alguns segundos e logo desapareceu.

— O que você disse, Ulfin?

— Eu estava imaginando se o senhor tem certeza sobre a crian­ça que está no castelo.

— Só tenho certeza do que os fatos me dizem. Analise a si­tuação. Morgause mentiu sobre a data do nascimento, para que se pudesse alegar que o parto foi prematuro. Naturalmente, pode ter sido um expediente para salvar a honra do casal. Afinal, coisas desse tipo vivem acontecendo. Mas pense no que foi feito. Mor­gause deu um jeito para nenhum médico estar presente e depois contou que o nascimento fora inesperado e tão rápido que não houve tempo para se chamar testemunhas aos seus aposentos, como é normal nos nascimentos reais. Com ela só estavam as damas de companhia, que afinal são como suas escravas.

— Mas, com que objetivo...

— Com a única intenção de arranjar uma criança para ser morta por Lot, se ele quiser, deixando incólume o filho dela e de Artur.

Um soluço de surpresa.

— O senhor quer dizer...

— Tudo se ajusta, não é? Penso que ela já tinha providenciado a troca com uma mulher que estava para dar à luz na mesma ocasião. Talvez uma mulher pobre, que receberia de bom grado o dinheiro para segurar a língua e estaria mais do que disposta a amamentar o bebê real. Só podemos adivinhar o que Morgause lhe contou, mas com certeza a mulher não tinha idéia de que seu filho estaria correndo perigo. Assim, o bebê plebeu está no castelo, enquanto o filho de Artur, o instrumento de poder de Morgause, está escondido por perto. Não acredito que tenha sido levado para longe, pois ela quererá notícias sobre ele de tanto em tanto.

— Então, se for essa a verdade, quando o rei Lot chegar aqui...

— Morgause terá de tomar alguma atitude. Se ele matar a criança, Morgause terá de se certificar que a verdadeira mãe não fique sabendo. Talvez seja obrigada a encontrar um outro lar para Mordred.

— Mas...

— Ulfin, não temos como salvar o bebê que está no castelo. Só Morgause poderá fazê-lo e se quiser, claro. Além disso, não temos certeza de que a criança corre perigo. Afinal, Lot não é tão selvagem assim.

— E toda a conversa no castelo? Enquanto eu jantava, Beltane me contou que esteve lá e as mulheres ficaram dizendo que o bebê é a cara de Lot e tudo o mais. Será que o senhor não está enganado? E se a criança for mesmo do rei? A data do nascimento combinaria. É também possível que tenha sido mesmo um parto prematuro. Contaram a Beltane que o bebê é pequenino e doentio.

— Pode até ser. Como lhe disse, eu estive apenas adivinhando, mas sabemos muito bem que Morgause é traiçoeira e inimiga de Artur. Suas ações, e as de Lot, devem ser vigiadas. Além disso, Artur quererá saber da exata verdade.

— Naturalmente. Agora estou entendendo. Uma das coisas que podemos fazer é descobrir quem teve um menino na mesma época em que a rainha deu à luz. Farei perguntas discretas por aí. Arranjei uns dois ou três companheiros de taverna muito úteis.

— Numa cidade tão pequena como esta, indagações desse tipo causariam desconfiança. Além disso, não há tempo. Ouça!

Podíamos sentir bem fortes agora as vibrações no solo. Uma tropa em velocidade. Depois veio o som, cada vez mais perto, bem mais forte que o do rio e em seguida os ruídos da cidade, enquanto os habitantes saíam para ver. Homens gritando, ma­deira batendo em pedra quando os portões foram rapidamente abertos; o tilintar de arreios e bater de armaduras; o resfolegar de cavalos cansados. Mais gritos e um eco vindo do castelo no rochedo, muito acima de nós e depois o som de uma trombeta.

A ponte principal balançou, emitindo um trovejar. Os portões pesados rangeram e se fecharam. Os sons se restringiram ao pátio interno e logo foram abafados pelos ruídos mais próximos de nós.

Levantei-me e fui até a porta da oficina e olhei para onde, bem acima do telhado do moinho, o castelo dominava a rocha, envolto em garoa. A chuva forte parará. Eu via movimento de luzes. Janelas se iluminavam e escureciam enquanto os serviçais do rei o conduziam pelos corredores do castelo. Na ala oeste havia duas janelas iluminadas. As luzes que se moviam foram para lá e ficaram.

— Lot voltou para casa — constatei.

 

Um sino soou em algum lugar do castelo. Meia-noite. Encostado ao batente da porta da oficina do carpinteiro, massageei meus ombros doloridos por causa da umidade da noite. Atrás de mim, Ulfin colocou outro pedaço de lenha no fogo, tomando o maior cuidado para nenhuma chama repentina atrair a atenção de al­guém ainda acordado. O silêncio da cidade, que voltara ao seu estupor noturno, era quebrado apenas pelo latido de cães e oca­sionalmente pelo pio de uma coruja vindo das árvores que co­briam o lado mais íngreme do rochedo.

Caminhei silenciosamente, deixando o abrigo da porta, e di­rigi-me para a rua que ficava perto do final da ponte. Olhei para o castelo. Ainda havia luz nas janelas altas e as tochas dos guar­das, vermelhas e fumacentas se movimentavam pelo alto das muralhas que abrangiam o pátio interno.

Ulfin, ao meu lado, inspirou para fazer uma pergunta.

Ela não foi feita. Alguém, correndo de cabeça abaixada na ponte de pedestres deu de encontro comigo, soltou um soluço de susto que se transformou num gritinho desafinado e tentou desviar-se.

Igualmente surpreso, demorei a reagir, mas Ulfin saltou para a frente, agarrou um braço e impediu o grito seguinte. A figura encapuzada tentou se desvencilhar, mas foi facilmente contida.

— Uma moça — disse Ulfin, surpreso.

— Dentro da oficina — falei rapidamente e tomei a dianteira. Uma vez lá, atirei um outro pedaço de lenha na forja. As chamas saltaram e Ulfin trouxe sua prisioneira, ainda se contorcendo e chutando, para perto da luz. O capuz tombara para trás e eu a reconheci com satisfação.

— Lind.

Ela se enrijeceu nos braços de Ulfin. Vi o medo nos olhos arregalados acima da mão que tampava sua boca. De repente ela ficou imóvel, como faz a perdiz antes de dar o bote para fugir. Tinha me reconhecido.

— Sim — falei. — Sou Merlin. Estava esperando por você, Lind. Vou mandar Ulfin soltá-la e você não dará nem um pio.

Ela balançou a cabeça, concordando. Ulfin destampou-lhe a boca, mas continuou segurando-a pelo braço.

— Solte-a — ordenei.

Ele me obedeceu e movimentou-se de modo a ficar entre Lind e a porta, mas não precisaria ter se dado a esse trabalho. Assim que largou a mocinha, ela correu para mim e atirou-se de joelhos sobre a serragem. Agarrou-se à minha capa, com o corpo estre­mecendo por causa do choro convulsivo.

— Oh, meu senhor! Meu senhor, me ajude!

— Não vim para lhe fazer mal nem para prejudicar a criança. — Para acalmá-la, procurei falar o mais friamente possível. — O Grande Rei me mandou para conseguir notícias sobre seu filho. Você sabe que não posso procurar a rainha pessoalmente, por isso fiquei esperando uma oportunidade. O que aconteceu no castelo?

Lind, porém, não conseguia falar. Continuava agarrada a mim, soluçando em desespero. Fui mais delicado.

— Seja o que for que aconteceu, Lind, não posso ajudá-la se não souber de nada. Venha mais para perto do fogo, recompo­nha-se e depois fale.

Todavia, quando tentei puxar minha capa de suas mãos, ela se agarrou ainda mais. Os soluços eram violentos.

— Não me obrigue a ficar aqui, meu senhor! Deixe-me ir ou então me ajude! O senhor tem o poder... é homem de confiança de Artur... não tem medo de minha ama...

— Eu a ajudarei se você me contar o que está acontecendo.

Quero notícias sobre o filho do rei Artur. Foi Lot quem chegou agora há pouco?

— Sim. Sim! Faz uma hora, mais ou menos. Ele é louco, louco! E ela não fez nada para impedi-lo. Ficou ali, rindo, sem levantar um dedo e deixou...

— Deixou o que?

— Deixou o rei matar o bebê!

— Ele matou a criança que Morgause colocou no castelo? Lind estava aflita demais para captar a estranheza da pergunta.

— Sim, sim! — Ela engoliu em seco, com grande dificuldade. — E era filho dele, seu próprio filho. Eu assisti o parto e juro pelos meus deuses lares! Foi...

— Que história é essa? — A pergunta veio de Ulfin, ainda vigiando a porta.

— Lind! — Abaixei-me, obriguei-a a ficar em pé e a amparei para não cair. — Não temos tempo para quebra-cabeças. Fale! Conte-me tudo o que aconteceu.

Ela mordeu as costas das mão numa tentativa de se controlar e depois de alguns instantes conseguiu falar com relativa clareza.

— Quando o rei Lot chegou, estava furioso. Sabíamos que ele viria bravo, mas nunca imaginamos... Ouviu os boatos comen­tando que o Grande Rei tinha se deitado com ela. O senhor sabe, estava lá... O rei Lot atirou-se como um maluco sobre a rainha, sacudiu-a pelos ombros, chamando-a de prostituta, adúltera... Nós todas, as damas de companhia, estávamos lá, mas ele não se importou. Se ela... se ela tivesse falado com jeito com o rei, mentido até... — Lind engoliu um outro soluço. — Imaginávamos que ia fazer isso... Ela poderia tê-lo acalmado. O rei nunca con­seguiu resistir a ela. Teria acreditado... Mas só ficou rindo na cara dele, dizendo: "Mas você não vê que ele é a sua cara? Você acha mesmo que um garoto como Artur poderia gerar um filho assim tão forte? O rei berrou: "Então é verdade? Você se deitou com ele?" Ela riu de novo e continuou: "E por que não faria isso? Você não queria se casar comigo. Preferia a melosa da Morgan em vez de mim". — Lind enxugou as faces. — Isso deixou o rei ainda mais furioso. — Ela estremeceu. — Se tivesse visto como ele estava, até o senhor sentiria medo.

— Sem dúvida. E Morgause?

— Ela não mostrou medo. Continuou parada ali, na frente dele, sorrindo. Parecia querer levá-lo à loucura.

— Claro. Continue, Lind, rápido!

A mocinha agora estava bem mais controlada. Eu a soltei de­vagar. Ela conseguiu ficar em pé, embora ainda tremesse muito, com os braços cruzados sobre o peito como fazem as mulheres quando estão desesperadas.

— Ele arrancou o dossel do berço. O bebê começou a chorar. "Minha cara?", gritou. "Só porque é moreno? Ora, o moleque Pendragon é tão moreno como eu!" Depois o rei virou-se para nós e ordenou que saíssemos dali. Corremos como ratos assus­tados. O rei parecia um cachorro doido, um lobo! As outras mu­lheres logo estavam no corredor, mas eu me escondi atrás de uma das cortinas da antecâmara. Pensei... pensei...

— Pensou o quê, vamos!

Lind balançou a cabeça e as lágrimas cintilaram à luz do fogo.

— Foi então que ele... O bebê parou de chorar. Ouvi um ba­rulho como se o berço tivesse tombado. A rainha continuou a falar com a maior calma... não sei como pôde... "Você deveria ter acreditado em mim. Essa criança era mesmo seu filho. Nasceu de uma dessas vadias da cidade com que você andou se deitando. Eu lhe disse que havia uma grande semelhança." Ela soltou uma gargalhada. O rei não falou por algum tempo. Eu podia ouvir sua respiração ofegante. Depois ele disse: "Cabelos escuros, pele morena. Uma criança nascida da vadia de Artur teria os mesmos traços! Então onde está ele, o bastardo?" "Era uma criança doen­tia. Ele morreu." O rei não acreditou: "Você continua mentindo!" Então a rainha disse bem devagar: "Sim, estou mentindo. Mandei a parteira levá-lo embora e me encontrar um filho digno de ser apresentado a você. Talvez eu tenha errado, mas fiz isso para salvar meu nome e sua honra. Eu odiei a criança desde que soube que engravidara. Como poderia querer dar à luz o filho de um outro homem? Tive esperanças de que seria seu filho, não dele, mas era dele mesmo. E verdade que nasceu doentio. Esperamos que a essa altura já esteja morto". O rei então falou: "Temos de fazer mais do que esperar. Precisamos ter absoluta certeza".

Desta vez foi Ulfin que incentivou Lind a continuar.

— E então, o que aconteceu depois?

— A rainha esperou por um momento e depois... — A mocinha suspirou, trêmula. — Ela falou de um jeito... parecia estar brin­cando, como uma namorada desafiando um namorado a fazer uma coisa perigosa. "E como pretende fazer isso, rei de Lothian, se não for mandando matar todos os que nasceram nesta cidade por volta do primeiro de maio? Já lhe disse que não sei para onde levaram o filho de Artur." O rei nem parou para pensar. Ele continuava ofegante como se estivesse correndo. "Então é exatamente isso que eu vou fazer! Sim, meninos e meninas. De outro modo, como saberei a verdade sobre essa maldita criança?" — Lind respirou fundo por um instante de continuou. — Eu devia ter fugido da antecâmara naquele instante, mas não con­segui. Era como se estivesse paralisada. A rainha começou a dizer alguma coisa sobre o que o povo diria, mas o rei Lot a empurrou para o lado e veio até a porta do corredor para gritar pelos seus comandantes. Eles vieram correndo e o rei continuou falando aos gritos, dando a ordem... todos os bebês da cidade... Nem me lembro do que os homens disseram. Estava fazendo força para não desmaiar, porque se eu caísse no chão eles me veriam. Mas ouvi a rainha dizer alguma coisa com voz chorosa, algo sobre ordens do Grande Rei, e como ele não tolerava os boatos que estavam correndo desde Luguvallium. Depois os soldados saíram e percebi que a rainha não estava chorando, senhor Merlin, mas rindo de novo e agradando o rei. Pelo jeito que falava com ele, qualquer um pensaria que estivesse congratulando-o por um grande feito. Ele também começou a rir e falou: "Sim, que falem mal de Artur e não de mim. Isso denegrirá seu nome muito mais do que qualquer coisa que eu poderia inventar". Então os dois voltaram para o quarto e fecharam a porta. Ouvi a rainha me chamar, mas fugi. Ela é má, má! Sempre tive ódio dela, mas morro me medo porque ela é bruxa. E fiquei ali ouvindo, sem fazer nada para impedi-los...

— Ninguém lhe culpará pelo que sua senhora fez, Lind — consolei-a. — Mas mesmo assim agora você pode se redimir. Leve-me para onde o filho do Grande Rei está escondido.

A mocinha estremeceu e lançou um olhar aflito sobre o ombro, como se estivesse para fugir.

— Vamos, Lind, por que ter medo de mim? Você veio correndo do castelo para protegê-lo, não é? Mas não há muito que possa fazer sozinha. Não conseguirá nem se proteger. Mas, se estiver disposta a me ajudar, eu a protegerei. Você sabe que vai precisar disso. Ouça!

Acima de nós, os portões principais do castelo se abriram com um estrondo. Através da vegetação podíamos ver o movimento de tochas, avançando para a ponte principal. Com elas vieram o clamor de armas, barulho de patas e gritos de ordem.

— Eles já saíram — disse Ulfin urgentemente. — É tarde de­mais.

— Não! — gritou Lind. — A casa de Masha fica no outro lado do rochedo. Eles irão lá por último! Eu lhe mostrarei, meu senhor. Por aqui!

Sem outra palavra Lind correu para a porta e eu e Ulfin a seguimos no mesmo ritmo.

Subimos por onde viéramos, atravessamos um espaço aberto, descemos uma outra viela íngreme que traçava um caminho tor­tuoso até o rio e dali um trecho pantanoso, onde nada mais se movia, exceto ratos assustados. Estava muito escuro por ali e tínhamos que andar devagar, embora o horror do que iria acon­tecer bufasse em nossas nucas como um cão farejador. Bem atrás de nós, no outro lado da cidade, começaram a vir os sons. Os primeiros foram os latidos de cachorros. Depois gritos dos sol­dados, relinchos dos cavalos. Portas batendo, mulheres gritando, homens berrando e de tanto em tanto o entrechocar de lâminas. Já estive em muitas cidades saqueadas, mas aquele barulho era bem diferente.

— Aqui! — gritou Lind, se esforçando para recuperar o fôlego e entrando numa outra trilha tortuosa que saía da margem do rio.

Os ruídos que vinham do outro lado da cidade continuavam a sujar a noite. Atingirmos uma viela escorregadia, subimos uma escada e entramos numa rua estreita. Ali tudo continuava em silêncio, mas já víamos algumas luzes nas casas onde os mora­dores estavam acordando assustados com o barulho inusitado. Passamos correndo pela rua e no final nos vimos na relva de um campo onde estava amarrado um burrico. Atravessamos um pomar, um barracão aberto de ferreiro e nos vimos perto de uma casinha bem tratada, cercada por espinheiros podados e com um jardim onde havia um pombal e uma casinha de cachorro.

A porta estava aberta, ainda balançando nas dobradiças. O cão, preso numa corrente, rosnava e saltava como um louco. As pombas voavam à nossa volta. Não havia nem luz nem barulho na casa.

Lind atravessou correndo o jardim e entrou na escuridão.

— Macha? Macha?

Havia um lampião numa prateleira perto da porta. Não havia tempo para procurar por uma pederneira. Afastei Lind para o lado com um gesto delicado.

— Leve-a para fora — ordenei a Ulfin e, enquanto ele me obedecia, peguei o lampião e balancei-o bem alto. A chama surgiu no pavio, forte e luminosa. Ouvi Lind reter o ar num suspiro de susto. A luz brilhante mostrou-nos todos os cantos do chalé: a cama contra a parede, a mesa e o banco pesados; as panelas e louça; o banquinho, com a roca ao lado; a lareira limpa e o chão de pedra bem lavado, exceto no lugar onde o corpo esparramado da mulher jazia sobre o sangue que vertera de sua garganta cor­tada. O berço junto à cama estava vazio.

 

Lind e Ulfin esperavam junto ao pomar. A moça agora estava calada, chocada demais até para chorar; à luz do lampião, seu rosto mostrava-se doentio, pálido como cera. Ulfin, que a ampa­rava, também estava pálido. O cão choramingou uma vez, sen­tou-se e então soltou um grande uivo que ecoou, abafando os sons assustadores que vinham das ruas mais próximas.

Fechei a porta da casa e me dirigi para junto dos dois.

— Lamento, Lind, não há nada que possamos fazer. Devemos sair daqui sem perda de tempo. Você conhece a taverna que fica perto do portão sul? Quer nos levar até lá evitando o centro da cidade? Procure controlar seu medo. Já disse que vou protegê-la e por enquanto o melhor para você é ficar conosco. Vamos.

Ela não se mexeu.

— Eles levaram o bebê! Pegaram o bebê e mataram Macha! —Virou-se para mim com os olhos arregalados. — Por que ma­taram Macha? O rei jamais ordenaria uma coisa dessas. Ela era sua preferida!

— Sim, por que teriam feito isso? — Depois, num gesto urgente, sacudi seu ombro para despertá-la do choque. — Agora venha, menina, não podemos ficar aqui. Os homens não voltarão, mas enquanto estiver nas ruas você corre perigo. Leve-nos ao portão sul.

— Foi ela! Ela quem contou onde o bebê estava! — gritou Lind, como se não tivesse me ouvido. — Vieram aqui primeiro. Demorei demais. Se vocês não tivessem me parado na ponte...

— Você estaria morta também — completou Ulfin. Seu tom de voz era perfeitamente normal, como se os terrores da noite não o tivessem afetado. — O que poderia fazer? O que Macha pôde fazer? Eles ã teriam matado antes de entrar no jardim. Agora faça o que meu senhor mandou. Por acaso está pensando em ir procurar a rainha e contar o que aconteceu aqui? Pode ter certeza de que Morgause já sabe para onde você veio. Logo estarão a sua procura.

Foi brutal mas funcionou. Ao ouvir o nome de Morgause, Lind recobrou a compostura. Lançou um último olhar de pavor para a casa e depois cobriu a cabeça com o capuz e entrou no pomar. Antes de segui-la, eu fui até o cachorro e coloquei a mão em sua cabeça. Os uivos de tristeza pararam mas ele ainda tremia muito. Tirei meu punhal da cinta e cortei a corda que o prendia à casinha. Ele não se mexeu e eu deixei-o ali.

Um bom número de crianças foi levado naquela noite. Alguém, talvez uma parteira, deve ter informado os soldados sobre onde deveriam procurar. Quando voltamos à taverna depois de um longo trajeto pela periferia da cidade, o horror havia terminado e não se viam mais soldados. Ninguém se aproximou de nós ou pareceu nos notar. As pessoas andavam de um lado para outro, sem rumo ou espiavam apavoradas pelas frestas das portas. Avis­tamos vários grupinhos em torno de uma mulher em prantos ou de um homem que reclamava, indignado. Gente pobre incapaz de ir contra os desejos de seu rei. A fúria real varrera a cidade, deixando para eles apenas a dor.

Ouvi os xingamentos e o nome de Lot; afinal tinham sido seus soldados. Mas junto com o nome de Lot veio o de Artur. A mentira já estava funcionando e, com o tempo, era fácil adivinhar, ela suplantaria a verdade. Artur era o Grande Rei e a principal fonte de todo bem e todo mal.

O povo, porém, fora poupado de uma coisa; não houvera ho­locausto de sangue. A morte de Macha fora a única. Os soldados tinham tirado os bebês de seus berços e os levado para a escu­ridão. Um ou outro pai que tentara resistir estava machucado, mas de um modo geral não existira grande violência.

Foi o que Beltane me contou, ofegante. Nós o encontramos na porta da taverna, completamente vestido e tremendo de agitação. Ele nem mesmo notou a presença de Lind. Pegou-me pelo braço e relatou os acontecimentos da noite numa torrente de palavras e exclamações. O que captei de mais importante foi que os sol­dados não tinham levado as crianças para muito longe.

— Ainda vivas e chorando! O senhor pode imaginar, mestre Emrys? — O velho torcia as mãos, lamentando. — Terrível, ter­rível, são tempos selvagens, sem dúvida. Toda essa conversa so­bre ordens do rei Artur. Quem acreditaria numa coisa dessas? Mas é melhor ninguém abrir a boca. Bico calado. Quanto mais cedo pegarmos a estrada, melhor. Aqui não é lugar para comer­ciantes honestos. Por mim eu já estaria longe daqui, mas fiquei esperando pelo senhor. Imaginei que poderia ter sido chamado para ajudar porque me disseram que há homens feridos. Eles vão afogar as crianças, sabe? Pelos deuses! E pensar que hoje mesmo eu... Ah, Casso, bom rapaz. Mestre Emrys, tomei a liber­dade de mandar selar seus animais. Tinha certeza de que con­cordaria comigo. Devemos partir imediatamente. Já paguei o taverneiro e depois o senhor acertará comigo... A propósito, o se­nhor verá que agora nós também temos mulas. Fazia muito tempo que eu queria comprar e hoje, com o que me pagaram no castelo... Que horror! Que horror! Uma dama tão bonita, quem poderia pensar... Mas é melhor parar. As paredes têm ouvidos e estes são tempo terríveis. Quem é esse? — Beltane estreitava os olhos para Lind, que estava agarrada ao braço de Ulfin, a ponto de desmaiar. — Ora, será... não é a jovem donzela...

— Mais tarde — falei rapidamente. — Sem perguntas, por enquanto. Ela virá conosco. Enquanto isso, mestre Beltane, eu lhe agradeço. O senhor foi um bom amigo. Sim, devemos partir sem demora. A moça ficará na mula da bagagem. Ulfin, você disse que fez amizade com um dos guardas do portão. Vá na frente e dê um jeito para passarmos por eles sem problemas. Descubra para onde foram os soldados. — Estendi-lhe um sa­quinho de moedas. — Suborne-os, se for necessário.

Mas não houve necessidade disso. Os portões estavam sendo fechados quando chegamos lá, mas os guardas não fizeram men­ção de impedir nossa passagem. De fato, pela conversa em voz baixa que pudemos captar, eles estavam tão chocados como o resto da população e pareceram achar bem normal comerciantes pacíficos juntarem suas coisas apressadamente e deixarem a ci­dade no meio da noite.

Quando já estávamos afastados da casa da guarda, puxei as rédeas da mula.

— Mestre Beltane, tenho de cuidar de um negócio. Não, não vou voltar à cidade, não se preocupe. Logo mais estarei com vocês. Vá para a estalagem onde nos hospedamos antes de virmos para cá. Lembra-se dela? Aquela com as giestas na frente. Espere por nós lá. Lind, você ficará em segurança com esses homens. Não tenha medo, mas é melhor ficar de boca fechada até eu voltar. Entendeu? — Ela fez que sim, ainda meio entorpecida. — Então, mestre Beltane, nos encontramos na Giesta Florida?

— Claro, claro. Para falar a verdade, não estou entendendo nada, mas amanhã...

— Amanhã, espero, tudo será esclarecido. Por enquanto, boa noite.

Eles começaram a se afastar. Puxei com força as rédeas de minha mula.

— Ulfin?

— Eles pegaram a estrada leste, meu senhor. E foi para lá que nos dirigimos.

 

Usando mulas não seria normal esperar que alcançaríamos a tropa montada, mas nossos animais estavam descansados en­quanto os dos soldados provavelmente seriam os mesmos que os tinham trazido dos campos de batalha no sul.

Portanto, quando depois de meia hora de cavalgada continuamos sem vê-los ou ouvi-los, eu freei minha mula e virei-me na sela.

— Ulfin. Quero falar com você.

Ele aproximou-se de mim. Na escuridão ventosa eu não podia ver seu rosto, mas algo emanou dele que pude sentir claramente. Estava com medo.

Ele não demonstrara medo antes, nem mesmo na casa de Macha. E ali onde estávamos só podia haver uma única fonte de temor: eu mesmo.

— Por que mentiu para mim?

— Meu senhor...

— Os soldados não vieram por aqui. Ouvi-o engolir em seco.

— Não, meu senhor.

— Então, que caminho eles tomaram?

— Para o mar. Creio... disseram que iam pôr as crianças num barco e deixá-lo à deriva. O rei falou que assim as colocaria nas mãos de Deus para que os inocentes...

— Que besteira é essa? Lot falar em mão de Deus? Na verdade receou o que o povo poderia fazer se visse os bebês de garganta cortada! Sem dúvida mandou espalhar que Artur ordenou o mas­sacre, mas ele procurou abrandar a sentença, dando uma opor­tunidade de vida aos bebês. A praia, então. Onde?

— Não sei, meu senhor.

— Você está falando a verdade?

— Sim, juro. Existem vários caminhos e ninguém soube dizer ao certo.

— Entendo. Se alguém ficasse sabendo, os pais talvez pensas­sem em segui-los. Portanto vamos voltar e pegar a primeira trilha que leva para a praia. Andaremos ao longo dela procurando pelos soldados. Venha.

Mas quando eu virava a cabeça da mula, a mão de Ulfin fe­chou-se em torno das rédeas. Era um gesto que ele jamais se atreveria a fazer se não fosse por desespero. — Meu senhor, per­doe-me. O que está tentando fazer? Depois de tudo o que acon­teceu... ainda está pensando em encontrar a criança?

— O que você está dizendo? É o filho de Artur!

— Mas o próprio Artur quer vê-lo morto!

Então era isso. Eu devia ter adivinhado há muito tempo. A mula começou a querer corcovear por causa das rédeas puxadas.

— Quer dizer então que você estava ouvindo em Caerleon. Escutou o que Artur me disse naquela noite.

— Sim. — Desta vez mal consegui ouvi-lo. — Recusar-se a assassinar uma criança, meu senhor, é mais do que compreensí­vel. Mas quando alguém comete o assassinato por nós...

— Não há necessidade de tentar impedi-lo? Talvez não. Mas como você estava bisbilhotando naquela noite, deve ter ouvido também eu dizer ao rei que respondo a uma autoridade acima dele. Até agora meus deuses não me disseram ou mostraram nada. Você imagina que desejariam que imitássemos Lot e sua rainha cadela? Além disso, você ouviu a calúnia que está caindo sobre Artur. Pela sua honra ou mesmo pela sua paz de espírito, ele tem de saber a verdade. Por isso estou aqui, para observar e relatar. Farei o que for necessário. Agora largue minhas rédeas.

Ulfin obedeceu e esporeei a mula para entrar num galope. Voltamos apressados pela estrada.

Era o caminho que tínhamos percorrido ao chegar a Dunpeldyr. Tentei me recordar do que vira no litoral. Uma região de altos penhascos com pequenas praias em meia-lua entre eles. Um grande promontório rochoso entrava mar adentro a uma certa distância da cidade. Não conseguiríamos dar a volta nele, mas com certeza haveria uma trilha que nos levaria para a praia no outro lado. Dali, poderíamos acompanhar a costa até a embocadura do Tyne.

Muito devagar, mas perceptivelmente, a noite estava se trans­formando em madrugada. Tornou-se possível vermos melhor o caminho. O grande promontório estava à nossa direita e depois dele havia a praia arenosa e cinzenta. Fizemos os animais galo­parem pela trilha que levava a ela.

A maré estava baixa e a areia dura e molhada, facilitando nosso avanço. Avistamos o farol que fica numa massa de grandes pedras, com seu fogo ainda brilhando vermelho. Calculei que logo veríamos o enorme rochedo com o castelo no alto e a parte plana onde o rio se encontra com o mar.

Demos a volta em um pequeno cabo, as mulas escolhendo caminho por entre as pedras batidas por pequenas ondas. Agora podíamos ver Dunpeldyr ao longe e muitas luzes brilhantes. A nossa frente estava a última praia antes da cidade. As árvores marcavam o curso do rio e o ponto onde suas águas se alargavam para encontrar o mar. E, na estrada que acompanhava a margem do Tyne, saltitavam as tochas dos homens que voltavam à cidade num trote tranqüilo. A missão estava terminada.

Freei minha mula. Ulfin parou logo atrás de mim, ofegante. Depois de algum tempo eu falei:

— Parece que seu desejo foi atendido.

— Meu senhor, me perdoe. Só pensei...

— O que tenho a perdoar? Como posso repreendê-lo por que­rer servir a seu amo em primeiro lugar?

— Eu devia ter pensado que o senhor sabia o que estava fa­zendo.

— Quando eu mesmo não sabia... você foi mais sábio do que eu, Ulfin. Pelo menos, como tudo está feito e Artur sem dúvida levará parte da culpa, podemos ser perdoados por desejarmos que o filho de Morgause tenha morrido com o resto.

— Como qualquer um deles conseguiria escapar? Olhe, meu senhor.

Virei-me para onde ele apontava.

Já em alto-mar, além de um pequeno cabo rochoso no final da baía de Dunpeldyr, o crescente de uma vela podia ser visto na luz fraca do início da madrugada. O vento soprando constante para o mar, levava o barco para fora com a velocidade de uma gaivota. Os inocentes jaziam ali, ao sabor do vento e das ondas, enquanto o barco subia e descia, levando sua triste carga para bem longe da praia.

A vela se desfez no cinzento do horizonte. O mar suspirava e murmurava sob o vento forte. Acima dos sons da praia ouvi um lamento agudo que foi diminuindo enquanto o escutávamos. Mas de repente ele voltou forte, bem sobre nós, como se alguma alma, já deixando o barco condenado, estivesse voltando para a terra. Ulfin estremeceu como se tivesse visto um fantasma e eu fiz o sinal contra o mal, mas era só uma gaivota planando na corrente de vento.

Ulfin não disse nada e eu fiquei em silêncio. Havia alguma coisa naquela madrugada escura, algo que pesava sobre mim, me fazendo sofrer. Não apenas pelo destino das crianças e com toda certeza não por causa da morte do filho de Artur, mas a visão da vela desaparecendo no mar cinzento e os sons tristonhos que vinham da escuridão encontraram um eco no mais profundo de minha alma.

Continuei ali parado até o vento diminuir e as ondas virem lamber a praia e o lamento dolorido da gaivota morrer no mar.

 

                                     Livro II Camelot

Por mais que desejasse fazê-lo, não pude partir imediatamente de Dunpeldyr. Artur continuava em Linnuis e esperava meu re­latório, não apenas sobre o massacre, mas sobre o que acontecera depois. Penso que Ulfin imaginava que seria dispensado mas, como achei mais seguro não me hospedar na cidade, fiquei no Giesta Florida e mantive-o a meu lado para agir como mensageiro e repositório de informações. Beltane, que ficara extremamente abalado com os acontecimentos da noite de terror, quis voltar logo para o sul. Mantive minha promessa a Casso, apesar de ela ter sido feita num impulso, mas há muito descobri que impulsos desse tipo têm uma fonte comum que não deve ser contrariada. Portanto, conversei com Beltane e o convenci, até com facilidade, das vantagens de ter um criado que soubesse ler e escrever. Deixei claro também que eu estava passando Casso para ele por muito menos do que me custara com a condição de ver meu desejo atendido. O bom homem concordou comigo e prometeu que ele mesmo ensinaria o rapaz. Feito isso os dois se despediram de nós e tomaram rumo sul, dirigindo-se a York. Lind foi com eles, pois conhecia um homem em York que poderia protegê-la. Era um pequeno comerciante, um sujeito respeitável que falara em casamento, mas a quem ela rejeitara por medo de Morgause. Quando os vi desaparecer na estrada, sentei-me para esperar o que os dias seguintes iriam trazer.

Cerca de dois ou três dias depois da volta de Lot, os restos do barco dos bebês começaram a dar na praia e com eles os corpos. Estava claro que o barco batera numa pedra em algum lugar e fora quebrado pela maré. As pobres mulheres que desciam para a praia entravam em lúgubres discussões sobre que criança seria filho de quem. Vagavam pela areia, chorando muito e fa­lando pouco, acostumadas como estavam a receber sem pergun­tas, como animais, o que seus senhores lhe davam, fossem es­molas ou golpes. Ficou claro para mim, sentado nas sombras da cervejaria e ouvindo, que, apesar da história sobre a responsa­bilidade de Artur no massacre, a maioria dos cidadãos atribuía a culpa às pessoas certas, Morgause e Lot, que se deixara levar pela fúria ao descobrir que fora traído. E, como os homens são homens em todos os lugares, estes logo começaram a mostrar a tendência de não acusar demais seu rei pelo violento ataque de cólera. Afinal, qualquer sujeito perderia a cabeça numa situação parecida. Voltar para casa e descobrir que a mulher dera à luz o filho de um outro homem seria mais do que motivo para jus­tificar uma reação terrível. Quanto ao morticínio, bem, um so­berano é um soberano, e tem de pensar primeiro em seu trono. E, falando de reis, Lot agira com sabedoria e recompensara re­giamente os pais enlutados. Por mais que as mulheres ainda fos­sem lamentar a perda de seus filhos, os varões aceitaram o ato do rei e a peça de ouro que viera depois como uma atitude plau­sível para um homem que tivera de lavar sua honra com sangue.

E Artur? Fiz a pergunta numa noite em que eu conversava com um grupinho: se os boatos que tinham surgido fossem ver­dadeiros e o Grande Rei estava mesmo envolvido no massacre, por que não tentar compreender sua atitude? Ora, se o menino Mordred era de fato seu bastardo, nascido de sua meia irmã, seria praticamente um refém ao ser criado por Lot, que jamais fora um amigo fiel, e nesse caso poder-se-ia dizer que a política justificava o ato. Por outro lado, que outra maneira melhor de manter a amizade e a aliança com o rei de Lothian, senão man­dando matar o intruso em seu castelo e assumir a responsabili­dade pelo feito?

Depois dessa pergunta houve murmúrios e acenos negativos, que finalmente se fundiram num tipo de concordância. Então apresentei um outro tópico. Todos sabiam que em assunto de política, a política alta e secreta relacionada com um reino tão importante como Lothian, as decisões sobre questões civis não eram tomadas pelo jovem Artur e ficavam a cargo do seu prin­cipal conselheiro, Merlin. Ora, o que acontecera só podia ter sido ordenado por uma mente cruel e tortuosa, e não por um valente e jovem soldado que passava a maior parte de seus dias lutando contra os inimigos da Bretanha e que pouco tempo tinha para política de dormitório, como se costumava dizer...

Assim, como uma semente de grama, a idéia foi plantada e, tão rapidamente como a grama, ela se expandiu e cresceu; assim, quando chegaram as notícias sobre mais uma vitória de Artur, o massacre já estava se tornando coisa do passado e o culpado por ele, fosse Lot, Merlin ou o Grande Rei, quase perdoado. Ficou claro que Artur tivera pouco a ver com ele senão entender sua necessidade. Além disso, a maioria daqueles bebês teria morrido na mais tenra infância de uma doença ou outra, e isso sem resultar numa recompensa em ouro para os pais. Quando às mulheres, elas logo estariam grávidas de novo e acabariam esquecendo suas lágrimas.

A rainha inclusive. O rei Lot agora era elogiado por ter assu­mido uma atitude verdadeiramente real. Voltara à sua casa en­furecido, livrara-se do bastardo (por ordem de Artur ou sua), plantara a semente para o nascimento de um príncipe herdeiro com seu sangue e depois partira de novo, sem que sua lealdade para com o Grande Rei ficasse diminuída. Morgause, longe de parecer amedrontada com a violência do marido ou apreensiva com a reação do povo, deu-me a impressão, pelo menos nas duas ou três vezes em que a vi saindo a cavalo do castelo, de estar muito satisfeita consigo mesma. Mesmo que seus súditos acre­ditassem que tinha uma parcela de culpa no massacre, ela agora estava protegida dos falatórios porque carregava em seu ventre o verdadeiro herdeiro do reino.

Se Morgause lamentava a perda do filho, não dava sinal disso, o que provava, segundo diziam, que fora mesmo seduzida por Artur e jamais desejara o bastardo que se vira obrigada a carregar no ventre. Mas, para mim, esperando e observando anonima­mente, essa atitude começou a significar algo bem diferente. Eu não acreditava que o menino Mordred fora levado para o barco dos inocentes e me lembrava bem dos três homens armados, fingindo estar bêbados, que haviam retornado ao castelo pelo portão dos fundos um pouco antes da volta de Lot e depois da chegada do mensageiro de Morgause, vindo do sul. E me recor­dava de Macha, com a garganta cortada, caída ao lado do berço vazio. E de Lind, que saíra correndo do castelo, sem ordem ou conhecimento de Morgause, para avisar Macha e levar Mordred para um lugar seguro.

Juntando essas peças do quebra-cabeça, acreditei ter consegui­do um bom quadro do que acontecera. Macha fora escolhida para criar Mordred porque tivera um bastardo de Lot, o que explicava a calma e satisfação de Morgause ao assistir à morte do menino. Sabendo que seu filho estava em segurança e tendo o outro menino pronto para ser sacrificado, ela esperara tranqüi­lamente pela volta do marido. Assim que fora avisada de que o rei se aproximava furioso, mandara seus guarda-costas levarem Mordred para um outro lugar e matarem Macha, que, se soubesse do acontecido com seu filho, talvez se visse tentada a trair a rainha. Mas agora a fúria de Lot fora aplacada, a cidade estava calma e em algum lugar, eu tinha certeza, a criança que era a arma de Morgause para conquistar o poder, crescia em segurança.

Depois que Lot partiu para voltar a se juntar a Artur, mandei Ulfin para o sul, mas continuei em Lothian. Com o rei fora do caminho, voltei a morar no centro de Dunpeldyr e tentei de todas as maneiras descobrir alguma pista sobre o paradeiro de Mordred. Não sei o que faria se o tivesse encontrado, mas meu deus foi piedoso e não pôs esse fardo em minhas costas. Fiquei quatro meses naquela cidadezinha esquálida e, apesar de ter andando pela praia dia e noite, falando com meu deus em todas as línguas e de todas as maneiras que conhecia, não vi nada, nem com os olhos da mente nem em sonhos, que pudesse me orientar na procura do filho de Artur.

Com o passar do tempo comecei a acreditar que talvez estivesse enganado e que Mordred se afogara no mar escuro com os outros inocentes.

Assim, finalmente, quando o outono começou a ser tocado pelas primeiras friagens do inverno e chegaram notícias de que a batalha em Linnuis terminara e Lot logo voltaria para casa, deixei Dunpeldyr com um suspiro de alívio. Artur chegaria a Caerleon para passar o Natal e com certeza procuraria por mim. Só fiz uma pausa em minha longa viagem: os três dias que passei com Blaise para lhe transmitir as novidades. Em seguida tomei rumo sul, para estar lá quando o Grande Rei voltasse.

 

Ele chegou na segunda semana de dezembro, quando as gea­das já tinham queimado a vegetação rasteira e crianças saíam para colher azevinho pensando nos enfeites de Natal. Mal ter­minou de se banhar e trocar de roupa mandou me chamar e me recebeu na mesma sala onde conversáramos antes de eu viajar. Dessa vez, contudo, vi a porta que dava para o quarto fechada e ficamos totalmente sós.

Artur havia mudado bastante desde o Pentecostes. Estava bem mais alto — essa é a idade em que os jovens crescem rápido como trepadeiras — com ombros mais largos e o bronzeado típico da vida de soldado que vinha levando. Essa, porém, não era a verdadeira diferença que eu notava nele. O que me chamou a atenção foi a aura de autoridade, a atitude que demonstrava que agora ele sabia o que estava fazendo e para onde estava indo.

Não fosse por isso, a conversa teria sido uma repetição daquela que eu tivera com o jovem Artur antes de partir para o norte.

— Dizem que ordenei essa coisa abominável! — Artur mal se dera ao trabalho de me cumprimentar. Andava de um lado para o outro da sala como em nosso último encontro, com os mesmos movimentos fortes e flexíveis de um leão, mas os passos agora eram mais largos. — Você mesmo estava nesta sala quando eu disse não, deixe isso para o deus. E agora isto!

— Mas era o que você queria, concorda?

— Todas essas mortes? Não seja tolo! Acha que eu teria feito uma coisa dessas? Ou você?

A pergunta não precisava de resposta.

— Lot nunca se destacou pela sabedoria e controle, e, além disso, estava tomado de fúria. Pode-se dizer que o ato foi sugerido a ele ou que no mínimo alguém o incentivou.

— Morgause? — Foi um olhar rápido e penetrante. — É o que eu penso, também.

— Imagino que Ulfin já lhe contou tudo. Será que também lhe contou sobre a atitude que tomou nesse caso?

— Que ele tentou enganá-lo para deixar o destino cuidar das crianças? Sim, contou. — Uma breve pausa. — Ulfin cometeu um erro e eu o censurei por isso, mas como pode alguém se irritar diante de um ato de devoção? Ele sabia que tudo ficaria mais fácil para mim sem essa criança. Mas os outros bebês... pouco tempo depois de eu ter jurado proteger meu povo... meu nome envolvido em boatos...

— Não precisa se preocupar. Duvido que alguém realmente acredite que você foi o culpado.

— Talvez, mas sempre existirão os que acreditam, e isso já é muito para mim. Lot teve uma desculpa, uma explicação que os homens comuns podem entender. Mas... e eu? Por acaso posso divulgar por todo o país e o continente que Merlin, o profeta, me avisou de que a criança poderia ser perigosa para mim, de modo que o mandei assassinar junto com muitos outros só por medo de vê-lo escapar da rede? Que tipo de rei isso me faz? Alguém da laia de Lot?

— Só posso repetir que duvido que você seja acusado de res­ponsável pelo que aconteceu. As mulheres de Morgause estavam por perto e os comandantes viram bem de onde veio a ordem. E temos também a escolta de Lot... não posso imaginá-lo vindo do sul sem externar suas intenções e com certeza seus homens sabiam que ele estava voltando para lavar a honra. Não sei o que Ulfin lhe contou, mas quando deixei Dunpeldyr a maioria das pessoas estava acusando Lot de ter ordenado o massacre e os que ainda responsabilizavam o Grande Rei garantiam que você agiu assim aconselhado por mim.

— O quê? — Agora Artur estava realmente bravo. — Por acaso sou o tipo de rei que não consegue decidir por si mesmo? Se existe uma possibilidade de a culpa ser dividida entre nós, exijo que caia apenas sobre mim. Você sabe disso. Lembra-se tão bem como eu do que lhe falei no dia de sua partida.

Eu também não teria resposta para isso e me calei. Artur con­tinuou andando de um lado para outro antes de prosseguir:

— Seja quem for que tenha dado a ordem, saiba que me sinto culpado. E, por todos os deuses do céu e do inferno, eu jamais teria agido assim! Isso é o tipo de coisa que se carrega pela vida inteira e dura mais do que nós! Não serei lembrado como o rei que expulsou os saxões da Bretanha, mas como o homem que repetiu o massacre de Herodes na cidade de Dunpeldyr! — Artur subitamente parou de falar. — Por que esse sorrisinho? Onde está a graça?

— Duvido que você precise se preocupar com o nome que deixará quando partir deste mundo.

— É você que está dizendo, mas...

— Foi o que eu disse. — A mudança de tempo do verbo ou algo em meu tom de voz o fez se interromper. Nossos olhares se encontraram e se mantiveram firmes. — Sim, eu, Merlin, disse isso. E falei quando tinha poder. E a verdade. Você está certo por ter se aborrecido tanto diante dessa abominação e também por assumir pelo menos parte da culpa. Mas, se o acontecido passar para a História como um ato seu, você será absolvido de culpa. Acredite-me, Artur. O que está por vir o absolverá de qualquer pecado.

A raiva arrefecera e agora ele refletia. Falou vagarosamente:

— Quer dizer que um perigo qualquer resultará do nascimento e morte do bastardo? Algo tão terrível que os homens saberão que o massacre foi justificado?

— Não foi isso que eu quis dizer. Como...

— Lembre-se, Merlin, você fez uma outra profecia. Insinuou... Não, me falou que o filho de Morgause poderia representar um perigo para mim. Pois agora a criança está morta. Seria esse o perigo? O acontecido atirará lama sobre meu nome? — Ele fez uma pausa com um ar chocado. — Será que talvez um dia um dos homens cujos filhos foram assassinados tentará se vingar de mim numa tocaia? Era esse o tipo de coisa que você tinha em mente?

— Já lhe disse várias vezes que não vi nada de específico. E não falei que o filho de Morgause "poderia" representar um pe­rigo. Falei que ele "seria" um perigo para você. E, se minhas palavras forem dignas de crédito, será um perigo direto e não uma arma na mão de outro homem.

Agora Artur estava imóvel, mas mostrava a mesma tensão de antes. Franziu as sobrancelhas para mim, intrigado.

— Está querendo dizer que o massacre não surtiu o efeito desejado? Que a criança... Mordred, não é? Que ele continua vivo?

— Foi em que passei a acreditar. Artur fez um ar de espanto.

— Ele se salvou?

— É possível. Ou foi salvo pelo acaso e está vivendo em algum lugar desconhecido, onde crescerá sem saber quem é, como acon­teceu com você, Artur, e vocês talvez venham a se defrontar um dia, como Laio se encontrou com Édipo e foi morto por ele na ignorância da verdade...

— Estou disposto a enfrentar o risco. Todos temos de morrer num dia ou no outro. Ou?

— Ou ele jamais esteve naquele barco. Artur balançou a cabeça gravemente.

— Morgause... sim. Seria bem possível. O que o faz pensar assim?

Contei-lhe o pouco o que eu sabia e as conclusões que eu extraíra desse conhecimento.

— Morgause devia saber com certeza que as reações de Lot seriam violentas e era de seu interesse manter a criança viva. Não iria se arriscar a ver seu filho morto pelo marido. Está claro que planejou tudo. Sabemos que impeliu Lot a chegar ao estado de fúria que o fez ordenar o massacre e sabemos também que foi ela que começou o boato de que você era o culpado. Então o que fez? Acalmou os temores de Lot e tornou segura sua própria posição. E creio, tanto por conhecê-la bem como pelas minhas observações, que também conseguiu...

— Manter vivo o seu instrumento de poder. — A cor desa­parecera das faces de Artur. Agora estava absolutamente frio, os olhos parecendo placas de ardósia molhadas pela chuva gelada. Esse era o Artur que outros homens costumavam ver, mas que eu não conhecia. Quantos saxões tinham enfrentado esse olhar antes de morrer? Ele continuou amargamente: — Acho que já paguei bastante por aquela noite de luxúria. Você devia ter dei­xado que eu a matasse. É melhor que ela nunca se apresente diante de mim, se não for de joelhos, me pedindo perdão. — O tom foi o de um voto sagrado e mudou logo em seguida. — Mas diga-me, quando foi que você voltou do norte?

— Ontem.

— Ontem! Mas eu pensei... Eu imaginava que essa abominação tinha acontecido há meses.

— E é verdade. Fiquei para observar as reações aos aconteci­mentos. Depois comecei a tirar minhas conclusões e continuei lá para ver se Morgause faria algum movimento que poderia me mostrar onde a criança estava escondida. Por isso fui ficando até chegar a notícia que você deixara Linnuis e que Lot logo voltaria a Dunpeldyr.

— Entendo. Você fez toda essa viagem e até agora eu o deixei em pé, sendo interrogado como se fosse um guarda surpreendido dormindo durante seu turno. Me perdoa por isso?

— Não tenho nada a perdoar. Já descansei da viagem, mas agora eu gostaria mesmo de me sentar. Obrigado.

Falei isso enquanto Artur puxava uma poltrona para mim e sentava-se do outro lado da grande mesa.

— Merlin, em seus relatórios você não disse nada sobre essa idéia de Mordred ainda estar vivo. Ulfin nem mesmo mencionou essa possibilidade.

— Não creio que ele tenha pensado nisso. Como lhe disse, só tirei essa conclusão bem depois da partida dele, depois de ob­servar e pensar muito. Todavia, ainda não tenho prova de que estou certo e nada, senão a lembrança de uma antiga intuição, para me dizer se isso é ou não importante. Mas uma coisa posso lhe dizer: pelo tranqüilo contentamento que o profeta do rei vem sentindo em seus ossos ultimamente, afirmo que qualquer ameaça vinda de Mordred, quer direta ou indireta, só aparecerá daqui a muito tempo.

Artur lançou-me um olhar onde não existiam mais vestígios de raiva.

— Quer dizer então que eu tenho tempo.

— Sim. O que aconteceu foi ruim e você tinha o direito de estar indignado. Mas o fato está caindo no esquecimento e logo será apagado pelo fogo de suas vitórias. Portanto, esqueça de tudo agora e pense apenas no que está por vir. O tempo gasto com uma raiva do passado é tempo perdido.

Finalmente a tensão desapareceu e voltei a ver o sorriso alegre que eu conhecia tão bem.

— Eu sei, eu sei. Alguém que constrói, nunca que destrói.

Quantas vezes você já me disse isso? Mas eu sou apenas um mortal. Tenho primeiro de quebrar para abrir espaço... Está certo, vou esquecer do que aconteceu. Existe muito a ser planejado e feito, e não posso desperdiçar tempo. De fato... — O sorriso tornou-se maior. — Ouvi dizer que o rei Lot está planejando mudar sua capital mais para o norte. Pode ser que, apesar de ter colocado a culpa em mim, ele esteja se sentindo pouco à von­tade em Dunpeldyr. Pelo que me contaram, as ilhas Orkney são férteis e bastante agradáveis no verão, mas têm a tendência de ficar completamente isoladas no inverno.

— Sim, a não ser que o mar venha a se congelar.

— E isso — sorriu Artur com uma satisfação de garoto —, com toda a certeza é algo que está acima de todos os poderes que Morgause possa ter. Portanto, a distância nos ajudará a es­quecermos de Lot e seus feitos...

Artur mexeu nos documentos e placas que argila que tinha sobre a mesa. Eu pensava que deveria ter procurado Mordred com maior empenho. Se Lot tivesse contado a sua rainha seus planos de mudar a corte mais para o norte com bastante ante­cedência, era possível ela ter tomado providências para mandar o menino para lá.

— Você sabe alguma coisa sobre sonhos, Merlin? A pergunta me pegou de surpresa.

— Sonhos? Bem, eu já tive vários.

— Sim, que pergunta mais tola. — Ele sorriu. — O que quis dizer foi: você é capaz de decifrar o sonho de uma outra pessoa?

— Acho difícil. Quando os meus significam alguma coisa, vêm bem claros. Por quê? Seu sono tem sido perturbado?

— Já faz várias noites. — Ele hesitou e continuou mexendo nas coisas sobre a mesa. — Parece algo muito trivial para rep­resentar problemas, mas o sonho é bem nítido e sempre o mesmo.

— Conte-me.

— Estou sempre sozinho e caçando. Nenhum cachorro, só eu e meu cavalo, acompanhando o rastro de um veado. Essa parte varia um pouco, mas sempre sei que a caçada está durando várias horas. Então, quando parece que estou para alcançar o veado ele salta para dentro de um bosque fechado e desaparece. Nesse mesmo instante meu cavalo cai morto e sou atirado à relva. Às vezes acordo aqui mas, quando volto a pegar no sono, ainda estou caído à beira de um riacho, com o cavalo morto a meu lado. Então subitamente ouço cães de caça se aproximando, mui­tos deles, e sento-me e fico olhando à volta. Bem, já tive esse sonho tantas vezes que, mesmo ainda sonhando, sei o que esperar e sinto medo... não é um bando de cães, mas um único animal. Uma fera estranha que não consigo descrever, embora já a tenha visto muitas vezes. Ele vem correndo, rompendo o mato rasteiro e os arbustos, e faz um barulho que parece o de cinqüenta perdigueiros latindo atrás da caça. Ele não liga para mim nem para o meu cavalo,-pára na margem do riacho, bebe água, e depois sai correndo, perdendo-se na floresta.

— Esse é o fim? — perguntei, vendo-o parar.

— Não. O final varia também, mas sempre depois do animal surge um cavaleiro, sozinho e a pé, que me diz que ele também matou um cavalo em sua procura pela caça. Toda vez... toda noite que acontece o sonho, tento perguntar-lhe que animal é aquele e o que procura com tanto empenho mas, quando ele está para me contar, meu escudeiro chega com um outro cavalo para mim e o cavaleiro se apodera dele sem nenhum gesto de cortesia, monta e se prepara para se afastar. Nesse instante seguro suas rédeas para impedi-lo, suplicando-lhe para que me deixe em­preender a busca, "porque sou o Grande Rei e sou eu quem devo me arriscar em qualquer empreitada que represente perigo". Mas ele afasta minha mão com um gesto brusco, dizendo: "Mais tarde. Mais tarde, quando você precisar, poderá me encontrar aqui e então responderei pelo que fiz". E ele sai galopando, me deixando sozinho na floresta. Quando acordo, ainda tenho uma sensação de temor. Merlin, o que acha que isso significa?

Balancei a cabeça num gesto de negativa.

— Não sei lhe dizer. Eu poderia ser leviano e dizer que trata-se de uma lição de humildade, que até mesmo o Grande Rei não tem de assumir toda a responsabilidade...

— Quer dizer que devo deixá-lo arcar sozinho com a culpa pelo massacre? Isso nunca, Merlin!

— Eu disse que essa seria uma interpretação leviana. Não tenho idéia do verdadeiro significado de seu sonho. Talvez não seja mais do que uma mistura de preocupação e indigestão. Mas uma coisa posso lhe dizer e é a mesma que vivo repetindo: sejam quais forem os perigos que surgirem a sua frente, você superará todos e atingirá a glória. E aconteça o que acontecer, seja o que você já fez, seja o que irá fazer, sua morte será venerada. Eu irei sumindo como a música quando a harpa pára de vibrar e os homens chamarão meu final de vergonhoso. Mas você viverá para sempre na imaginação e coração dos homens. Mas, meu rei e amigo, você ainda tem anos e anos pela frente. Portanto, agora conte-me o que aconteceu em Linnuis.

Conversamos por um longo tempo sobre o assunto e no final Artur voltou ao futuro imediato.

— Enquanto as estradas não se abrirem na primavera pode­remos continuar com as obras em Caerleon. Você ficará aqui para cuidar delas. Quero que comece a obra de meu novo quartel-ge­neral. — Olhei para ele com uma certa surpresa. — Sim, já con­versamos sobre isso antes. O que foi bom no tempo de Vortigern ou mesmo de Ambrosius não será suficiente daqui a um ou dois anos. O quadro no leste está se modificando. Venha ver no mapa... Esse comandante que você encontrou, Gereint, foi um verdadeiro achado. Já mandei buscá-lo porque é o tipo de pessoa que preciso ao meu lado. As informações que enviou a Linnuis foram de um valor incalculável. Ele lhe contou sobre Eosa e Cerdic? Estamos recebendo informações, mas tenho certeza de que a razão está com ele. A última novidade é que Eosa voltou para a Germânia e está prometendo o sol, a lua e as estrelas, além de um reino saxão estável para qualquer um que se disponha a segui-lo.

Conversamos sobre as informações vindas de Gereint por al­gum tempo.

— Ele também está certo sobre o vão dos Peninos. Começamos a trabalhar no passo assim que recebi seus relatórios... Creio que o novo ataque virá do norte. Estou esperando notícias de Caw e Urbgen, mas não tenho dúvidas de que, mais cedo ou mais tarde, será aqui, no sudoeste, que teremos a grande investida. Usando Rutupiae como base e ficando com os territórios, ou "rei­nos", como querem, na retaguarda, eles virão por aqui, aqui e aqui... — Artur indicava os locais no mapa em relevo. — Voltamos de Linnuis por aqui e pudemos fazer um bom reconhecimento do terreno. Já mandei corrigir essa área no mapa e logo o novo relevo ficará pronto. Você conhece essa região?

— Mais ou menos. Viajei por essa estrada, mas minha mente estava em outras coisas.

— Não há pressa. Se pudermos começar em abril ou maio e desde que você faça seus milagres habituais... Pense num bom local para o novo quartel-general. Fará isso por mim?

— Com todo o prazer. Como lhe disse, não conheço bem a região, mas enquanto você falava algo veio à minha mente. Existe um morro que comanda toda esta área... e, se estou bem lembrado, é plano no topo e grande o bastante para abrigar um exército, ama cidade, o que você quiser. Imagino que dali se pode ver a ilha de Vidro, Ynys Witrin, é o nome regional, e uma boa parte ia cadeia de sinalização que cobre o sudoeste.

— Mostre-me onde é — disse Artur com urgência.

— Em algum lugar por aqui — apontei. — Não tenho bem certeza e penso que o mapa está falho nesta parte.

— O nome do morro?

Não sei. É um monte e um rio circunda sua base. Se não estou enganado o rio chama-se Camel. Lembro-me de ter lido que existiu uma fortaleza nessa região antes da chegada dos romanos e talvez tenha sido nesse mesmo morro.

— Então deve haver uma estrada que leve a ele.

— Sim, talvez seja esta aqui, que circunda o lago onde fica a lha de Vidro.

Continuamos apontando e conversando sobre o mapa. Quando criados apareceram para acender os lampiões e trazer o jantar, Artur endireitou-se, afastando os cabelos escuros da testa, e sorriu.

— Bem, teremos de esperar até o fim das festas, mas vá para lá assim que puder, Merlin, e estude a região. Nem preciso dizer, você terá toda a ajuda de que precisar. E agora venha jantar comigo e eu lhe contarei tudo sobre a luta em Blackwater. Já contei esse caso tantas vezes que ele vem crescendo e às vezes nem eu o reconheço mais. Mas como você ainda não ouviu...

— Prometo-lhe que acreditarei em cada palavra. Artur riu.

— Sempre soube que eu podia confiar em você.

 

Soprava uma doce brisa no tranqüilo dia de primavera quando completei uma curva na estrada e avistei o morro chamado Ca­melo t.

Na verdade, só mais tarde ele ganhou esse nome. Na época era conhecido como Caer Camel devido ao nome do riacho que corria em preguiçosos meandros pelas terras planas ao redor antes de circundar o sopé do monte. Este tinha, como eu dissera a Artur, o topo achatado e, se não era muito alto, apresentava a vantagem de oferecer uma boa visão em todas as direções, e suas encostas eram íngremes o bastante para permitir uma formidável defesa. Enquanto eu estava em Caerleon, procurara me informar sobre a região e agora sabia por que os celtas, e os romanos depois deles, tinham-no escolhido para abrigar fortalezas. A vista para o leste é parcialmente obstruída por uma série de colinas, mas para o sul e o oeste tem-se uma visão clara até o horizonte. No lado noroeste o mar está a menos de quinze quilômetros e as marés se espalham e invadem o terreno pantanoso que ali­menta o grande lago onde fica a ilha de Vidro. Essa ilha, na verdade um pequeno arquipélago, jaz sobre a superfície vítrea do lago como se fosse uma mulher em repouso e, de fato, desde tempos imemoriais ela é dedicada à Grande Deusa, cujo santuário fica perto do castelo do rei.

A região em torno do lago, com suaves elevações que se des­tacam no terreno pantanoso, cheio de lagoas e diques, rico em flora e fauna, é conhecida como Summer Country, o país do verão. O rei do lugar era um jovem chamado Melwas, fiel par­tidário de Artur, que me hospedou em minhas primeiras vistorias de Caer Camel e sentia-se honrado em saber que o Grande Rei planejava construir sua principal fortaleza na borda de seus do­mínios. Mostrou-se profundamente interessado nos mapas que lhe mostrei e prometeu ajuda de todos os tipos, desde homens para trabalhar na construção até a organização de uma força de defesa para proteger o local durante as obras.

O rei Melwas se oferecera para me mostrar pessoalmente o monte Camel, mas eu preferia fazer minha primeira vistoria so­zinho e consegui dispensar cortesmente sua ajuda. Ele e seus jovens amigos fizeram a primeira parte do trajeto comigo e depois entraram numa trilha estreita que cortava o terreno pantanoso para se entregarem ao seu esporte predileto. O lugar é perfeito para a caça. Achei um bom presságio quando logo depois de me separar deles vi Melwas soltar seu falcão na direção de um bando de patos em migração vindo do sudeste e em poucos segundos a ave matar um deles e voltar para o punho de seu dono. Depois, com vivas e risadas o grupo de rapazes desapareceu por entre os salgueiros e eu continuei sozinho meu caminho.

Estivera certo em supor que os romanos haviam construído uma estrada para servir sua fortaleza em Caer Camel. Ela cir­cunda o lago e atinge uma faixa de terra seca e dura que se estende para o leste, onde se encontra com a antiga via Fosse, e mais à frente faz uma nova curva para o sul, indo para o vilarejo no sopé do monte. Originalmente, ali fora uma aldeia celta e posteriormente o vicus da fortaleza romana, cujos habitantes tra­balhavam o solo e fugiam para trás das muralhas em ocasiões de perigo, mas agora havia muito pouco a ser visto enquanto eu cavalgava entre as cabanas com telhados de palha meio apodre­cidos. Aqui e ali olhos me observavam por frestas de portas ou uma voz de mulher chamava por uma criança. As patas de meu cavalo se afundavam em lama e estéreo, mas por sorte logo ti­vemos de atravessar o rio com água pelos joelhos do animal e assim houve oportunidade para uma certa limpeza. Na outra margem comecei a subir por entre as árvores e logo estava numa curva íngreme da estrada obviamente feita para dar passagem para bigas e outros carros de guerra.

Embora eu soubesse o que deveria esperar, fiquei abismado com o tamanho do topo do monte. Atravessei as ruínas do portão sudoeste e me vi diante de um grande campo que na outra ex­tremidade subia rapidamente formando um espinhaço, cujo pico mais alto ficava a oeste do centro, para onde me dirigi. O campo, na verdade um platô, estava salpicado de restos de edificações e cercado em todos os lados por fossos e ruínas de muralhas. Logo após essas obras externas, os lados do morro desciam ín­gremes, agora cobertos de árvores e arbustos espinhosos que em outras épocas eram podados para não ocultarem possíveis inva­sores. Avistei uma trilha no platô que levava para uma abertura na muralha norte e seguindo-a pude ver que a meio caminho da encosta havia uma fonte situada no meio de um bosque. Devia ser o poço da Senhora, dedicado à deusa. O outro manancial, o principal fornecedor de água para a fortaleza, ficava junto à es­trada íngreme que levava ao portão nordeste, no canto oposto ao do caminho pelo qual eu subira. Tive a impressão de que os animais ainda bebiam nele e, enquanto eu olhava, um pequeno rebanho apareceu na abertura da muralha e espalhou-se vaga­rosamente para pastar ao sol, ao som de um leve tilintar de sinetas. O condutor dos animais surgiu por último, uma figura franzina, que de início imaginei ser um menino, mas que depois vi, pelo modo como se apoiava num cajado, que era um velho. Virei meu cavalo para lá e o fiz andar cuidadosamente por entre as pedras das ruínas das edificações. Havia uma enorme quantidade de boas pedras cortadas à maneira romana, que deviam ter vindo de uma pedreira próxima. O velho olhou na minha direção e parou, obviamente assustado. Ergui a mão num sinal de saudação de paz. O gesto ou o fato de eu estar sozinho e desarmado deve tê-lo tranqüilizado e ele sentou-se numa mureta, a minha espera.

Quando me aproximei dele desmontei e deixei o cavalo pastar.

— Saudações, meu pai.

— Para você também. — Não foi mais do que um murmúrio, no sotaque arrastado da região. Ele examinou meu rosto com os olhos já toldados de catarata. — Você não é daqui.

— Estou vindo do oeste.

Percebi que a afirmação não fora suficiente para acalmar sua desconfiança. O povo da região tinha uma longa história de guer­ras.

— Então por que saiu da estrada? O que quer aqui em cima?

— Vim em nome do Grande Rei para verificar as condições das muralhas da fortaleza.

— De novo?

Enquanto eu o encarava, surpreso, o velho enfiou a ponta do cajado no chão, como reivindicando aquela parte do território, falou com uma voz trêmula de raiva:

— Aqui era nossa terra antes do rei chegar e é nossa de novo apesar dele. Por que você não deixa tudo como está?

— Não creio... — comecei, mas logo parei porque me ocorreu súbito pensamento. — Você falou de um rei. Que rei?

— Não sei o nome dele.

— É Melwas? Ou Artur?

— Pode ser. Não sei, já lhe disse. O que você quer aqui?

— Sou um conselheiro do rei. Vim em nome dele...

— Já sei. Veio para reconstruir as muralhas e depois levar nosso gado, matar nossos filhos e estuprar nossas mulheres.

— Não! Para construir aqui uma fortaleza para proteger seu gado, crianças e mulheres.

— Ela não serviu para protegê-los antes.

Houve um silêncio. A mão do velho tremia segurando o cajado. Meu cavalo pastava delicadamente em torno de uma touceira de cardo, larga e redonda, parecendo uma roda. Uma borboleta pou­sou na crista cor de violeta de uma das flores. Uma cotovia cantou por perto.

— Meu velho — falei mansamente — nunca existiu uma for­taleza aqui em sua vida, nem na vida de seus pais. Que rei veio amá-la?

Ele olhou para mim por alguns instantes, a cabeça balançando com o tremor da idade.

— É uma história, só uma história. Meu avô me contou como povo vivia aqui, com gado, cabras e cavalos pastando esta relva doce, e eles teciam suas roupas e aravam este campo até chegar o rei que os expulsou para o fundo do vale e houve uma única sepultura para todos naquele dia, larga como um rio e tão funda como a colina oca, onde puseram o corpo do rei que morreu logo depois.

— Que colina era essa? Ynys Witrin?

— O quê? Ora, por que iriam levá-lo para lá? Ela fica num lugar estrangeiro, que chamam de Summer Country, porque é coberto de um lençol de água que só seca no meio do verão. Não, eles entraram na caverna e o deixaram lá, e puseram junto os corpos dos que morreram afogados com ele. — O velho soltou uma risada desafinada. — Eles se afundaram no lago e o povo ficou olhando e não fez nenhum gesto para salvá-lo. Foi a deusa que o levou, junto com seus belos comandantes. Quem poderia impedi-la? Dizem que depois de três dias ela o devolveu, mas ele apareceu nu, sem espada nem coroa. — Outra risada. — Sim, sim. Por isso é melhor seu rei fazer logo as pazes com ela, não esqueça de lhe dizer isso.

— Não esquecerei. Mas, diga-me, quando isso aconteceu?

— Cem anos, duzentos anos. Como posso saber?

Houve um outro silêncio, enquanto eu fazia meus cálculos. O que estava ouvindo era uma lembrança que viera passando de pai para filho à beira do fogo nos meses de inverno, mas con­firmava plenamente as informações que eu coletara. O lugar sem dúvida fora uma fortaleza desde tempos imemoriais e o tal "rei" poderia ser qualquer um dos governantes celtas que acabara sen­do derrotado nas primeiras investidas romanas ou talvez o pró­prio general romano que permanecera ali para cuidar do lugar.

— Onde é a entrada da colina? — falei subitamente.

— Que entrada?

— A porta para a tumba do rei, o lugar onde abriram espaço para sepultá-lo.

— Como vou saber? Fica lá, é tudo o que sei. E às vezes, no meio da noite, eles saem cavalgando de lá. Eu já os vi. Surgem com a lua de verão e voltam para a colina ao amanhecer. Mas, de vez em quando, em noites de tempestade, um deles é sur­preendido pela chegada da madrugada, se atrasa e encontra o portão fechado. Então, até a lua seguinte fica condenado a vagar sozinho pelo morro, e... — O velho parou de falar e de novo me olhou atentamente. — Você disse que era um homem do rei? — perguntou, com uma nota de temor na voz.

— Não tenha medo de mim, pai — acalmei-o, rindo. — Sou um homem do rei, sim, mas de um rei vivo, que virá reconstruir a fortaleza e protegerá você, seu gado, seus filhos e os filhos de seus filhos, contra o inimigo saxão que talvez venha do sul. Você continuará a ter relva doce para seus animais, eu prometo.

O velho não disse nada, mas ficou abanando a cabeça sob o sol por alguns instantes. Percebi que estava meio caduco.

— Mas por que eu deveria ter medo? — falou um pouco depois. — Sempre houve um rei aqui e sempre haverá. Um rei não é novidade.

— Mas este será.

A atenção do' velho estava me abandonando. Ele estalou a língua para as vacas, chamando-as pelos nomes.

— Ora, um rei? E vai cuidar do meu gado? Você acha que me engana com essa bobagem? A deusa, sim, cuida dos seus, por isso é melhor seu rei agradar a deusa... — Sua voz foi se transformando num resmungo que ele acompanhava com batidas do cajado.

Dei-lhe uma moeda de prata, como se ele fosse um contador de histórias itinerante, depois montei no cavalo e tomei a direção do espinhaço que marcava o ponto mais alto do platô.

 

Alguns dias depois chegou o primeiro grupo de topógrafos para começar o trabalho de medição e locação, e o chefe da equipe ficou alojado comigo no barracão que fora construído no local da obra.

Tremonius, o mestre engenheiro que me ensinara quase tudo sobre seu ofício quando eu era um rapazinho e morava no con­tinente, morrera algum tempo antes e agora o engenheiro-chefe de Artur era Derwen, que eu ficara conhecendo por ocasião da reconstrução de Caerleon na época de Ambrosius. Devido a sua coloração, cabelos ruivos e faces coradas, dava a impressão de ter gênio forte, mas na verdade era contido e calado e podia ficar mais emburrado do que uma mula quando pressionado. Todavia eu conhecia sua competência e admirava nele o modo como con­seguia fazer homens trabalharem com disposição e rapidez. Além disso, ele se esforçara para se tornar um mestre em todos os ofícios relacionados com a engenharia e não via nada de humi­lhante em arregaçar as mangas e participar do trabalho quando necessário para o cumprimento de prazos. Derwen não parecia se incomodar em obedecer minhas instruções e mostrava um res­peito elogioso pelas minhas habilidades, mas isso não era devido a qualquer talento especial que eu demonstrara em Caerleon ou Segontium — obras construídas segundo o modelo romano, cujas diretrizes se mantinham desde séculos e eram bem conhecidas por todos os construtores — mas porque ele era um aprendiz na Irlanda quando movimentei a enorme pedra-rei de Killare para a reconstrução da Ciranda dos Gigantes. Por isso nos dá­vamos bastante bem e respeitávamos nossos respectivos talentos.

A previsão de Artur sobre dificuldades no norte tinha se con­firmado e ele precisara partir para lá no fim de março, mas du­rante os meses de inverno, nós dois, junto com Derwen, havíamos passado muitas horas sobre os projetos para a nova fortaleza. Impulsionado pela minha persistência e o entusiasmo de Artur, o engenheiro finamente acabara aceitando idéias minhas, que ob­viamente classificava como malucas, para a reconstrução de Caer Camel. Velocidade e resistência. Eu queria o lugar pronto para a época em que a campanha no norte estivesse para terminar e também que fosse duradouro. O tamanho e força tinham de se adequar a essa premissa.

O tamanho não seria problema. O topo do morro era enorme, media mais de meio alqueire, mas a força... Eu fizera listas do material já existente e, examinando cuidadosamente as ruínas, calculara como o lugar fora construído pelos romanos sobre ca­mada após camada de muralhas e valetas dos celtas. Enquanto trabalhava mantive sempre em mente algumas das fortificações que eu vira em minhas viagens pelo exterior, bastiões construídos em lugares muito mais difíceis do que esse. Reconstruir dentro do modelo romano seria uma tarefa formidável, senão impossível. Mesmo se os canteiros de Derwen fossem especializados nas obras de pedra romanas, o simples tamanho de Caer Camel im­pediria essa escolha. Todavia, esses homens eram peritos em al­venaria e havia uma grande quantidade de pedras cortadas nas ruínas e uma pedreira próxima, onde obteríamos todo o cascalho necessário. Como não nos faltassem carvalhos e carpinteiros, ela­borei meu projeto final.

Ele foi executado com perfeição e o resultado está aí para todos verem. As encostas íngremes do lugar atualmente chamado Camelot estão coroadas por enormes muralhas de pedra e madeira. As sentinelas patrulham as ameias e guardam os portões. Ao portão norte chega uma boa e larga estrada para carroças e pe­destres, e do que está situado no canto sudoeste, o chamado Portão do Rei, sai uma estrada estreita em curvas, apropriada para rodas mais velozes e tropas a galope.

Atualmente essas muralhas, tão bem cuidadas nestes tempos de paz como nos dias agitados em que as construí, abrigam uma cidade buliçosa e agradável, cheia de cores, jardins e pomares. Mulheres caminham pelos terraços em ricos vestidos e as crianças brincam nos parques. As ruas estão sempre cheias de gente, ba­rulhentas com conversas, risadas e barganhas no mercado, com o ruído das patas dos cavalos velozes e lustrosos de Artur, gritos de rapazes e o clamor dos sinos da igreja. Ela se tornou rica com o comércio pacífico e esplêndida com as artes da paz. Camelot é uma visão maravilhosa e hoje em dia conhecida por viajantes vindos dos quatro cantos do mundo.

Naquela época, porém, enquanto eu caminhava por entre os restos das edificações abandonadas, ela não era mais do que uma idéia, e uma idéia derivada das duras necessidades da guerra. Começaríamos, claro, pelas muralhas externas e nelas eu plane­java usar tudo o que se encontrava ali no platô: ladrilhos de antigos pisos, lajes, restos de calçamento de pátios e da estrada. Com esse material criaríamos um base de entulho resistente que suportaria a muralha externa e ao mesmo tempo uma larga pla­taforma de combate situada no alto da parte interna. A muralha em si, vista do lado externo, ficaria parecendo um prolongamento das encostas, como uma coroa colocada na cabeça de um rei. Cortaríamos toda a vegetação nas laterais do morro acima dela e faríamos valetas verticais profundas para dificultar ao máximo qualquer invasão. Construiríamos em seguida uma segunda mu­ralha, com alicerces de pedra e o restante em madeira lisa e es­pessa. Nos portões, onde as estradas de acesso chegariam afun­dadas entre paredes laterais feitas de pedra, eu projetava construir um tipo de túnel que perfuraria a muralha, permitindo a conti­nuidade da plataforma de combate em todo o perímetro. Esses túneis, altos e largos, dariam boa passagem para carroças ou três cavaleiros colocados lado a lado, e teriam espessas portas de car­valho montadas na muralha de madeira.

Tudo isso e muito mais eu explicara a Derwen, que de início se mostrara cético, especialmente no que dizia respeito a esses portões inusitados, só se contendo em seus resmungos e recla­mações pelo respeito que tinha por mim. Ele não conhecia pre­cedentes e a maioria dos engenheiros e arquitetos trabalha a partir de projetos já bem testados, especialmente no que se refere a assuntos de guerra e defesa. Derwen não via motivos para se abandonar o habitual portão colocado entre duas torres que abri­gavam as salas da guarda. Todavia, com o passar do tempo, sentado por horas e horas diante de meus projetos e consultando as listas que eu compilara sobre os materiais já disponíveis no local, ele acabou aceitando o amálgama de pedra e madeira, e daí por diante passou a encará-la até mesmo com entusiasmo, principalmente porque qualquer fracasso seria atribuído a mim.

Nada, porém, indicava que haveria motivos para se culpar alguém. Artur, que participava das sessões de estudo do projeto, mostrava-se empolgado mas, como fazia questão de salientar quando se tratava de algum aspecto técnico, ele conhecia seu ofício e confiava em nossas opiniões sobre o nosso. Todos sabía­mos qual seria a função do lugar e tínhamos de construí-lo de acordo. Uma vez pronto, ele se encarregaria de defendê-lo, con­cluía com a brevidade da juventude e inconsciente arrogância.

Agora, finalmente no local da obra e com a chegada do tempo seco, Derwen começara a trabalhar com competência e rapidez, e antes de o velho boiadeiro levar as vacas de volta para a ordenha da noite os pinos de marcação já estavam locados, valetas haviam sido começadas e o primeiro carroção de suprimentos vinha ge­mendo pela estradinha íngreme, puxado por bois fortes e resis­tentes.

Caer Camel se reerguia. O rei logo iria voltar.

 

Ele chegou num claro dia de junho. Veio da aldeia montado em Amrei, sua égua cinzenta, e acompanhado por Bedwyr e seu irmão de criação, Cei, e cerca de uma dezena de comandantes da cavalaria. Estes agora eram comumente conhecidos como equites ou cavaleiros andantes, mas Artur só os chamava de "meus companheiros". Chegaram todos sem armaduras, como se fossem rapazes numa caçada. Artur saltou do cavalo, atirou a rédeas para Bedwyr e, enquanto os outros desmontavam e liberavam os animais para pastar, caminhou sozinho pela relva agitada pelo vento.

Ele me viu, ergueu a mão em saudação, mas não se apressou. Fez uma pausa na obra da muralha externa e atravessou a vala por uma pontezinha de pranchas, enquanto os trabalhadores iam se erguendo das tarefas à medida que respondiam a suas per­guntas. Um dos homens apontou numa direção e ele olhou à volta antes de se encaminhar para a cadeia de colinas no centro do platô, onde já estavam sendo escavados os alicerces para o seu quartel-general. Dali poderia ter uma visão mais ampla do local e talvez descobrir algum sentido no labirinto de valas e alicerces, meio ocultos sob a a teia de cordas e andaimes.

Por fim, fez uma volta em torno de si vagarosamente e depois veio em minha direção com passadas largas.

— Sim — foi tudo o que disse, com clara satisfação. Em se­guida: — Quando?

— Haverá alguma coisa para você ver no começo do inverno. Artur voltou a olhar à volta com um ar de orgulho e pude compreender que ele visualizava a obra pronta, com as muralhas poderosas, as torres orgulhosas, a pedra, madeira e ferro que envolveriam esse espaço dourado de sol, sua primeira obra de vulto. Os olhos castanhos, cheios de altivo contentamento, voltaram-se para mim.

— Eu disse que você era capaz de fazer um milagre e agora estou diante de um deles. É assim que vejo este local. Será que você é profissional demais para sentir-se emocionado quando vê o que antes era um desenho ou apenas um pensamento se trans­formando em algo real que durará para sempre?

— Creio que todos os criadores se sentem assim. Eu também.

— E como está andando rápido! Você está construindo a obra com música, como fez na Ciranda dos Gigantes?

— Usei o mesmo milagre aqui e você pode vê-lo muito bem. Os homens.

Um rápido olhar para mim, um outro para o solo remexido e trabalhadores ocupados, e depois ele voltou-se para a área onde, tão ordenadamente como numa antiga cidade murada, as oficinas de carpinteiros, ferreiros e canteiros se alinhavam e de onde vinha o barulho de vozes e marteladas.

— Sim, eu me lembrarei disso — murmurou. — Aliás, todo comandante deveria sempre se lembrar disso. Eu usarei o mesmo milagre. — Depois, virando-se para mim: — E no outro inverno?

— No inverno depois deste você terá a obra praticamente com­pleta na parte interna e poderá defender a fortaleza com segurança. Este lugar atende todos os requisitos que tínhamos em mente. Mais tarde, quando as batalhas terminarem, haverá amplo tempo e espaço para construirmos edifícios que proporcionarão conforto, graça e esplendor, dignos do Grande Rei e de suas vi­tórias. Você terá aqui um verdadeiro ninho de águia encimando um morro encantador. Uma fortaleza para os tempos de guerra e um lar para procriar nos tempos de paz.

Enquanto me ouvia, Artur fizera um breve sinal para Bedwyr e agora os rapazes haviam montado e vinham trazendo a égua Amrei pelas rédeas.

— Então já sabe? — perguntou ele, com um ar surpreso. — Eu deveria imaginar que seria impossível esconder segredos de você.

— Segredos? Não estou sabendo de nada. O que pensava me esconder?

— Nenhum. Afinal, de que adiantaria? Em outras circunstân­cias, você seria o primeiro a saber, mas, com esta obra e tudo o mais...

Eu devia estar olhando para ele com cara de idiota. Seus olhos dançavam de alegria.

— Lamento por só lhe contar agora, Merlin, mas vou me casar. Ora, ora, não faça essa cara de bravo. Eu não poderia deixar uma escolha como essa a seu cargo.

— Eu não estou bravo. Que direito teria para isso? É algo que você deve mesmo resolver sozinho. Estou contente. Os acertos já foram concluídos?

— Claro que não. Estava esperando uma oportunidade para conversarmos a respeito. Até agora só houve troca de cartas entre mim e a rainha Ygraine. A sugestão veio dela e suponho que ainda serão necessárias muitas conversas. Mas vou avisando... — Um brilho maroto surgiu nos olhos escuros. — Eu já me decidi.

Bedwyr aproximou-se de nós, desmontou e entregou a Artur as rédeas da égua.

Fiz uma pergunta com o olhar.

— Sim, Bedwyr está sabendo.

— Quer me contar quem é ela?

— O pai dela era March, que lutou sob as ordens do duque Cador e foi morto numa escaramuça na costa irlandesa. A mãe morreu em seu nascimento e desde a morte do pai, ela tem vivido sob a proteção da rainha Ygraine. Você já a conhece, pelo menos de vista. Esteve como dama de companhia em Amesbury e tam­bém na coroação.

— Eu... qual é o nome dela?

— Guenever.

Um pássaro cruzou o espaço acima de nossas cabeças e sua sombra flutuou na relva a nossos pés. Algo tocou as cordas de minha memória, algo saído de minha outra vida, quando eu tinha o poder e uma clara vidência, mas não consegui captá-lo.

— O que foi, Merlin?

A voz de Artur soou ansiosa, como a de um menino que teme uma repreensão. Ergui a cabeça e vi que Bedwyr também me observava com preocupação.

— Nada, nada mesmo. Ela é uma linda moça e seu nome é encantador. Tenho certeza de que os deuses abençoarão esse ca­samento quando chegar a hora.

Os rostos jovens se relaxaram visivelmente. Bedwyr fez um rápido comentário brincalhão e depois começou a comentar os trabalhos de construção com grande entusiasmo. Logo os dois estavam envolvidos numa conversa onde os planos de casamento ficaram de fora. Eu avistei Derwen perto da obra do portão e fomos os três até ele. Depois de trocarmos algumas palavras, Artur e Bedwyr se despediram, montaram e, seguidos pelos ca­valeiros do rei, dirigiram-se para estradinha que descia a encosta.

Eles não foram muito longe. Quando o pequeno cortejo entrou no túnel do portão, viu-se frente a frente com um bando de vacas que vinham subindo preguiçosamente. De algum lugar do meio delas surgiu, quase por encanto, o velho apoiado em seu cajado. A égua Amrei empinou de susto e Artur puxou-a para o lado e ela desceu, batendo no cavalo preto de Bedwyr, que avançou, por pouco não colidindo com uma vaca. Bedwyr ria, mas Cei gritou irritado:

— Abra caminho, seu tolo! Não está vendo que é o rei? Tire seu maldito gado do caminho. Aqui não tem lugar para ele.

— E também não tem lugar para você, meu jovem mestre — disse o velho com azedume. — Meu gado procura a parte boa da terra, que você e seus amigos não fazem mais do que estragar!

Vocês é que deveriam tirar os cavalos daqui e ir caçar no pântano, sem implicar com gente honesta e trabalhadora!

Cei jamais soubera quando deveria conter sua raiva ou até mesmo economizar saliva. Ele avançou, ultrapassando a égua de Artur, e olhou feio para o velho, com o rosto mais vermelho do que nunca.

— Você é surdo? Ou apenas burro? Quem está caçando? Somos os capitães de combate do rei e este é o Grande Rei!

Artur, sorrindo, começou:

— Ah, Cei, deixe disso... — Mas logo teve de controlar nova­mente a égua quando o velho de aproximou e levantou os olhos enevoados para" ele.

— Rei? Não, vocês não conseguem me enganar. Este aqui é só um rapazinho e o rei é homem feito. Além disso, não é hora de o rei aparecer. Ele virá nos meados do verão, com a lua cheia. Eu já o vi, junto com todos os seus soldados. — O homem fez um gesto largo com o cajado, que voltou a inquietar os animais. — Estes aqui, capitães de batalha? Garotos, isso sim! Os soldados do rei usam armadura e lanças mais compridas do que árvores e têm plumas nos capacetes e nas crinas dos cavalos. Eu os vi com meus próprios olhos, quando estava sozinho aqui, numa noite de verão. Por isso não tente me enganar. Eu conheço o rei!

Cei abriu a boca, mas Artur ergueu a mão, impedindo-o de continuar suas reprimendas, e falou com o velho como se os dois estivessem sozinhos ali.

— Um rei que esteve aqui no verão? O que está nos contando, meu pai? Que homens eram esses?

Algo em sua maneira tocou o velho. Ele já não pareceu tão certo de suas palavras. Depois me viu e apontou:

— Eu contei para ele. Sim. Ele me disse que era homem de um rei e veio com palavras doces. Um rei estava vindo, falou, que cuidaria de minhas vacas e daria pasto para elas... — Olhou a sua volta, como se estivesse vendo pela primeira vez os es­plêndidos cavalos e arreios coloridos, e as fisionomias sorridentes e seguras dos rapazes. Sua voz sumiu, dando lugar a resmungos. Artur virou-se para mim.

— Você sabe do que ele está falando?

— Uma lenda do passado, sobre uma tropa de fantasmas que, segundo contam, sai cavalgando de sua sepultura no interior de uma colina nas noites de verão. Creio que trata-se de uma his­tória do tempo dos governantes celtas ou dos romanos. Você não deve se preocupar com isso.

— Não se preocupar? — disse alguém, parecendo inquieto. Creio que foi Lamorak, um valente e nervoso cavaleiro que cos­tumava olhar para as estrelas à procura de sinais e cujos arreios viviam cheios de amuletos. — Ele fala de fantasmas e não de­vemos nos preocupar?

— Fantasmas que ele mesmo viu, aqui, neste lugar? — sur­preendeu-se um outro capitão.

Ouvi murmúrios como: "Lanças e plumas? Ora, parecem saxões".

Lamorak voltou a falar, tocando um pedaço de coral que pen­dia de uma correntinha em seu pescoço.

— Fantasmas de homens que morreram aqui e foram enter­rados no interior deste morro, exatamente no lugar onde se pre­tende construir uma fortaleza e uma cidade segura. Artur, você sabia disso?

Poucas pessoas são mais supersticiosas do que soldados. Afi­nal, são os homens que mais convivem com a morte. As risadas sumiram e um estremecimento pareceu tomar conta de todos, como se uma nuvem fria tivesse encoberto o sol.

Artur estava de cenho franzido. Também era um soldado, mas em primeiro lugar era rei e tinha de lidar com fatos. Disse com certa aspereza:

— E daí? Mostrem-me uma fortaleza que não tenha sido de­fendida por homens valentes que derramaram seu sangue nos alicerces! Por acaso somos crianças para sentirmos medo de fan­tasmas de homens que morreram aqui antes de nós, para man­terem esta terra longe das mãos dos inimigos? Se eles continuam mesmo perambulando por aqui, lutarão a nosso lado, meus com­panheiros! — Depois, virando-se para o velho, pediu: — Conte-me sua história, meu pai. Quem foi esse rei?

O velho hesitou, confuso. Depois subitamente perguntou:

— Já ouviu falar sobre Merlin, o mago?

— Merlin? — Foi Bedwyr. — Ora, não sabe...

Ele captou meu olhar e se calou. Ninguém mais falou. Artur, com um olhar em minha direção, perguntou:

— O que tem Merlin?

Os olhos enevoados se fixaram em um por um, como se o velho fosse capaz de ver claramente cada rosto. Até mesmo os cavalos se imobilizaram. O velho pareceu extrair coragem do silêncio atento e se mostrou subitamente lúcido.

— Era uma vez um rei que se pôs a construir uma fortaleza. E, como os reis de antigamente, que eram fortes e impiedosos, ele procurou por um herói que mandaria matar e enterrar sob os alicerces para mantê-los sempre firmes. Ele escolheu Merlin, que era o maior homem do país, mandou prendê-lo. Mas Merlin chamou seus dragões e voou para os céus e foi buscar um novo rei, que queimou o outro em sua torre junto com a rainha, até tudo virar apenas cinzas. Já ouviu contar essa história, moço?

— Sim.

— É verdade que você é um rei e que esses garotos são seus capitães?

— Sim.

— Então pergunte a Merlin. Dizem que ele ainda vive. Per­guntem a Merlin e ele confirmará que o rei queria ter a sepultura de um herói sob seus portões. E sabem de outra coisa que Merlin fez? Ele colocou o Grande Rei Dragão em pessoa sob as pedras gigantes e proclamou o lugar como a fortaleza mais segura de toda a Bretanha. É o que dizem.

— E dizem a verdade — disse Artur e olhou à volta para ver onde o alívio já suplantara a preocupação. Depois dirigiu-se no­vamente ao velho. — E quanto ao rei que jaz junto com seus homens no interior do morro?

Para isso ele não obteve resposta. O velho, pressionado, tor­nou-se vago e depois ininteligível. Uma ou outra palavra pôde ser captada: capacetes, plumas, escudos redondos, cavalos pe­quenos e de novo as lanças, compridas como troncos de árvores e "capas flutuando ao vento mesmo quando não tinha vento".

Para interromper uma nova torrente de fantasmas eu falei fria­mente:

— O senhor deveria perguntar a Merlin sobre isso também, meu bom rei. Creio que sei o que ele diria.

Artur sorriu.

— O que seria, então? Virei-me para o velho.

— Você me contou que a deusa matou esse rei e seus homens, e que eles foram enterrados aqui. Contou-me também que o novo e jovem rei deveria fazer as pazes com a deusa ou ela poderia rejeitá-lo. Mas veja o que ela fez. O rei não sabia dessa história e veio para cá inspirado por ela, para construir sua fortaleza no exato lugar onde ela matou e enterrou uma tropa de fortes guer­reiros e seu líder, para serem a pedra-rei, a pedra fundamental de seu portal. E ela também lhe deu a espada e a coroa. Conte isso tudo para seu povo e diga-lhe que o rei está vindo, com a bênção da deusa, para construir uma fortaleza e para proteger você, seus filhos e deixar seu gado pastar em paz.

— Essa foi ótima, Merlin. — Lamorak sorriu.

— Merlin? — Qualquer um pensaria que o velho ouvia o nome pela primeira vez. — Sim, é o que ele diria... e já ouvi contar que ele mesmo tirou a espada das profundezas da água e a deu para o rei...

Por alguns minutos, enquanto os outros chegavam mais perto, conversando entre si, aliviados e sorridentes, o velho voltou aos seus resmungos. Só depois pareceu captar o sentido de minha última frase e voltou subitamente e com grande clareza para o assunto de suas vacas e a iniqüidade dos reis que se intrometiam com sua pastagem. Artur, com um longo olhar para mim, ouviu gravemente enquanto os rapazes continham o riso e os últimos vestígios de temor desapareciam na alegria. No final, com gentil cortesia, prometeu que o deixaria trazer seu gado para pastar enquanto o capim doce crescesse em Caer Camel e que, se esse acabasse, encontraria uma outra pastagem para ele.

— Dou-me minha palavra de Grande Rei — concluiu. Mesmo depois de tudo isso não ficou claro se o velho estava acreditando nele.

— Bem, você pode se chamar de rei ou não mas, para um garoto, mostra ter um pouco de juízo. Você ouve as palavras dos mais velhos, não é como certa gente... — dirigiu um olhar ma­lévolo na direção de Cei — ...que só pensa em gritar. Capitães de batalha, essa é boa! Qualquer um que conhece alguma coisa sobre batalhas sabe que nenhum homem consegue lutar de bar­riga vazia. Você dá pasto para minhas vacas porque vai querer comê-las.

— Já lhe disse que você terá o pasto. E sem condições.

— E quando seu construtor — um movimento de queixo em minha direção — já tiver estragado Caer Camel inteirinho, que terras você me dará?

Artur talvez não imaginara que teria sua promessa cobrada tão rapidamente, mas hesitou apenas por um instante.

— Vi boas áreas de vegetação perto do rio, atrás da aldeia. Seu eu...

— Lá não serve para gado. Cabras, talvez. O capim é azedo e está cheio dessas flores amarelas... botões de ouro. Isso é veneno para o gado.

— Verdade? Eu não sabia. Onde então existe um bom pasto?

— Naquele lado — indicou o velho. — No morro dos texugos. Ele deu uma risadinha. — Botões de ouro... Rei ou não, mocinho, por mais que as pessoas saibam das coisas, sempre tem alguém que sabe mais.

— Isso é mais uma coisa que me lembrarei para sempre — concordou Artur gravemente. — Muito bem. Se o morro dos texugos ficar sob meu domínio, você o terá.

Ele puxou as rédeas para dar passagem ao velho e, com uma saudação para mim, desceu o morro com seus cavaleiros atrás de si. Derwen me esperava perto das fundações da torre sudoeste. Um pássaro grande, talvez o mesmo de antes, passou voando perto de mim. A lembrança voltou, me fazendo parar...

...A Capela Verde acima de Galava. Os mesmos dois rostos jovens, o de Artur e o de Bedwyr, me observando atentamente enquanto eu lhes contava histórias de batalhas e lugares distantes. E no cômodo, lançada pela luz do lampião, a sombra de um pássaro — a coruja-branca que vivia no telhado —, guenhwyvar, a sombra branca, diante da qual eu sentira um arrepio, um ins­tante de perturbada previsão do qual agora não lembrava, exceto pela impressão de que o nome Guenever traria o mal para Artur.

Um pouco antes, ao ouvi-lo dizer o nome, eu não sentira ne­nhum tipo de aviso, todavia agora precisava me conformar com a idéia de que não passava de um construtor, como o velho me chamara.

Lembrei-me do orgulho e respeito nos olhos do rei enquanto observava os alicerces do "milagre" que eu estava fazendo para ele. Olhei para os desenhos em minhas mãos e senti a conhecida e puramente humana emoção daquele que constrói alguma coisa. A sombra do pássaro sumiu na luz do sol e eu me apressei na direção de Derwen. Pelo menos ainda me restavam habilidades suficientes para construir uma fortaleza segura para o meu me­nino.

 

Três meses depois Artur casou-se com Guenever em Caerleon. Ele não tivera a oportunidade de rever a noiva nesse intervalo e fui informado de que os dois não haviam conversado depois da breve troca de formalidades à época da coroação. Como o rei fora obrigado a voltar para o norte no início de julho, não pudera ir pessoalmente à Cornualha para escoltá-la até o condado de Guent mas, como se tratava do Grande Rei, era até apropriado a noiva ser trazida para a corte. Bedwyr foi dispensado por um mês e encarregado da missão de ir a Tintagel e trazer Guenever a Caerleon.

Durante todo esse verão houve lutas esporádicas no norte, em especial incursões rápidas, tocaias e escaramuças, por se tratar de uma área montanhosa e coberta de florestas, mas no final de julho Artur forçou uma batalha ao atravessar o rio Bassas. A vitória foi tão decisiva que criou uma pausa mais do que bem-vinda durante toda a época de colheita, o que finalmente per­mitiu-lhe viajar para Caerleon com mente tranqüila. Por isso, foi um casamento de quartel, como se costuma dizer, uma cerimônia encaixada no tempo livre entre outras preocupações. A noiva não estranhou, aceitando tudo com grande felicidade, como se estivesse acontecendo um luxuoso e festivo evento em York ou Londres. Houve, contudo, a habitual semana de comemorações, embora os homens mantivessem as lanças empilhadas na entrada do salão de festas e espadas à mão, e o rei tivesse passado todo o tempo livre em reunião com os oficiais, inspecionando o campo de treinamento ou inclinado sobre mapas, com os relatórios dos espiões empilhados ao seu lado.

Deixei Caer Camel na primeira semana de setembro e fui direto para Caerleon. A obra da fortaleza progredia bem e Derwen cui­daria de qualquer imprevisto. Eu sentia o coração alegre, pois tudo o que conseguira descobrir sobre a noiva depunha a seu favor. Era jovem, bem humorada, saudável, de boa família e nada mais certo do que Artur se casar e pensar em herdeiros.

Eu já estava em Caerleon quando a noiva chegou. Eles não usaram a balsa, preferindo vir pela estrada de Glevum, um alegre séquito montado em cavalos com arreios coloridos e pingentes dourados, e liteiras pintadas de novo. As damas de companhia mais jovens vestiam mantos das mais diferentes cores e seus ca­valos tinham flores trançadas nas crinas.

A noiva recusara uma liteira e montava um belo cavalo cor de creme, presente de Artur. Bedwyr, com uma capa cor de fer­rugem que o distinguia entre outros, mantinha-se à direita de Guenever, pronto a ajudá-la com as rédeas. No outro lado, vinha a princesa Morgan num cavalo voluntarioso que ela controlava sem esforço. Demonstrava excelente humor, estando tão alegre e entusiasmada como se esse fosse o cortejo de próprio casamento, marcado para breve, cedendo de bom grado o papel central nas festividades para a futura cunhada, embora fosse a representante oficial da rainha Ygraine. Junto com o duque da Cornualha, co­locaria a mão de Guenever sobre a do Grande Rei.

Artur, que ainda ignorava a gravidade da doença da mãe, ficara um tanto decepcionado ao ser informado de que ela não viria para o casamento, mas Bedwyr, assim que desmontou, tro­cou algumas palavras com ele e pude ver uma sombra toldar seu rosto antes de ele a afastar rapidamente para saudar Gue­never. O cumprimento foi formal, mas o leve sorriso juvenil por trás dele recebeu da noiva um tímido surgir de covinhas. As damas de companhia murmuraram sua aprovação e os homens assistiam a tudo com olhares indulgentes, os mais velhos apro­vando a juventude e beleza de Guenever, com o pensamento já voltado para um herdeiro do reino, e os mais jovens com uma pontinha de inveja.

Guenever agora tinha quinze anos e estava um pouco mais alta e mais feminina, mas ainda era uma criatura pequenina, com pele de pêssego e olhos alegres, e claramente encantada com a sorte que a tirara de uma vida relativamente monótona na Cor­nualha para se casar com o solteiro mais cobiçado do país.

Ela apresentou graciosamente as desculpas da rainha, não dei­xando transparecer que o mal que a afetava era muito mais do que um achaque passageiro, e o rei as aceitou com um sorriso formal e depois, dando-lhe o braço, conduziu-a até a casa onde as mulheres, inclusive a princesa Morgan, ficariam hospedadas. Era a melhor das residências fora do perímetro da fortaleza e ali elas poderiam descansar e se preparar para as cerimônias.

Artur voltou a seus aposentos e, enquanto ainda estava no corredor, pude ouvi-lo conversando em tom sério com Bedwyr, sem se referir a mulheres ou festejos. Entrou na sala já tirando o manto e Ulfin, que conhecia seus modos, já estava pronto para apanhá-lo e em seguida receber o pesado cinto com a espada.

— E então, Merlin? — disse o rei alegremente. — O que achou? Ela se tornou uma moça linda, não é?

— Ela é mesmo muito bonita e combina bem com você.

— E não é tímida nem calada, graças a Deus. Eu não tenho tempo para muitas preliminares.

Vi Bedwyr sorrindo. Nós dois sabíamos que a afirmação devia ser tomada em seu sentido literal. Artur não teria mesmo tempo nem paciência para cortejar uma noiva acanhada. Queria casa­mento e cama, e depois, tendo finalmente contentado os nobres mais velhos e agora com mente livre, poderia voltar para seus negócios inacabados no norte do país.

Era o que dizia agora, enquanto nos conduzia para a saleta onde ficava o mapa em relevo.

— Já chamei o resto do conselho e eles deverão chegar a qual­quer momento. Recebi novas informações na noite passada. A propósito, Merlin, cheguei a lhe dizer que ia convocar seu jovem comandante de Olicana, Gereint? Ele chegou ontem à noite... já teve oportunidade de vê-lo? Não? Bem, ele está vindo com os outros. Sou grato a você mais uma vez, meu amigo, Gereint é um achado e já provou sua importância mais do que uma vez. Trouxe notícias de Elmet... mas vamos deixar isso para depois. Agora quero falar sobre a rainha. Bedwyr me contou que ela não tem a menor condição de viajar. Você sabia da gravidade da doença?

— Quando a vi em Amesbury logo percebi que estava enferma, mas Ygraine recusou-se a falar no assunto em qualquer ocasião e não mostrou desejo de se consultar comigo. Que notícias você trouxe dela, Bedwyr?

— Não tenho capacidade de julgar, mas desde a coroação ela me pareceu mudada. Estava muito magra e quase não saiu de seus aposentos. Mas agora a gravidade de sua doença é evidente. Escreveu uma carta para ser entregue a Artur, mas não encontrou forças para uma segunda, que desejava enviar a você, Merlin. Por isso pediu-me para agradecer-lhe pelas notícias que vem man­dando regularmente e para lhe transmitir suas lembranças.

— Merlin, você chegou a suspeitar de alguma coisa quando a viu? — Artur me olhava com preocupação. — Seria uma doença fatal?

— Creio que sim. Quando a vi em Amesbury as sementes do mal já estavam começando a germinar e quando nos encontramos de novo, por ocasião da coroação, tive a impressão de que co­nhecia a gravidade de seu estado. Mas daí a adivinhar quanto tempo... Mesmo se eu fosse seu médico particular dificilmente teria a condição de marcar datas.

Artur simplesmente balançou a cabeça, não se dando ao tra­balho de perguntar por que eu não lhe revelara minhas suspeitas. Meus motivos para isso estavam mais do que claros.

— Não consigo... Você sabe que devo voltar para o norte assim que esse negócio acabar. — Ele falou como se o casamento fosse uma reunião do conselho ou uma inspeção de tropas. — Não posso ir à Cornualha. O que me diz de eu mandá-lo para lá?

— Seria inútil, Artur. Além disso, o médico que atende a rainha é um dos melhores que você poderia conseguir. Tive a oportu­nidade de conhecê-lo quando era um jovem estudante em Pergamum.

— Então... — Ele mexeu nos pinos espetados aqui e ali no mapa de gesso. — O problema é que sempre sentimos que existe algo que deveria estar sendo feito. Gosto de atirar os dados e não de ficar assistindo. Por favor, Merlin, já sei o que você vai dizer... a essência da sabedoria é perceber quando algo deve ser feito e quando seria inútil tentar. Só que às vezes penso que jamais chegarei à idade de ser sábio.

— Creio que o melhor que você poderia fazer, tanto pela rainha quanto por você, seria consumar seu casamento e facilitar as coi­sas para Morgan se tornar a rainha coroada de Rheged.

— Concordo inteiramente — disse Bedwyr, balançando a ca­beça. — Tive a impressão de que ela está se forçando a viver até ver os dois laços de casamento firmemente atados.

— É o que ela diz em sua carta — informou Artur e depois virou a cabeça para a porta. Do corredor vinham os sons de uma conversa acalorada. — Muito bem, Merlin, eu não gostaria mesmo de enviá-lo para a Cornualha, porque pretendo mandá-lo nova­mente para o norte. Será que Derwen pode ficar encarregado de Caer Camel?

— Claro. Ele é bem capacitado para isso, embora eu gostasse de estar de volta a tempo de aproveitar o clima da primavera.

— Não haverá motivos para você não estar aqui nessa época.

— É por causa do casamento de Morgan? Ou... será que eu devia ter sido mais cauteloso e o problema é Morgause, de novo? Mas já vou lhe avisando: se a viagem for para as ilhas Orkney, não conte comigo.

Artur soltou uma risada gostosa. Naquele momento não pa­recia minimamente preocupado com Morgause ou seu bastardo.

— Pode ficar sossegado, meu amigo, não pretendo fazê-lo en­frentar perigos, tanto os do mar do norte quanto os de Morgause. Não, trata-se de Morgan. Quero que a leve para Rheged.

— Isso sim, será um prazer. — Falei a pura verdade. Eu con­siderava os anos que passara em Rheged, na floresta que faz parte do grande território que chamam de floresta caledoniana, o ponto alto de minha vida. Fora a época em que eu ensinara e orientara Artur. — Terei tempo para visitar Ector?

— Naturalmente. Mas depois do casamento, claro... devo ad­mitir que será um sossego para mim, bem como para a rainha, vê-la seguramente estabelecida em Rheged. Talvez haja nova­mente guerra no norte com a chegada da primavera.

Essas palavras normalmente causariam estranheza, mas no contexto da época faziam pleno sentido. Eram tempos de casa­mentos de inverno. Na primavera os homens partiam de seus lares para lutar e procuravam não deixar nada inacabado. Para alguém como Urbgen de Rheged, já não muito jovem e senhor de extensos domínios, seria tolice adiar um casamento que só poderia se realizar no ano seguinte.

— Repito que terei grande prazer em acompanhar Morgan. E quando será?

— Assim que as coisas estiverem terminadas aqui, mas antes da chegada do inverno.

— Você irá para lá?

— Se puder. Mas voltaremos a falar sobre isso. Você levará cartas e, claro, meus presentes para Urbgen. — Artur fez um sinal para Ulfin, que dirigiu-se para a porta.

Um grupo de homens entrou: cavaleiros do Grande Rei, mem­bros do Conselho e alguns dos reis menores que tinham vindo a Caerleon para o casamento, como Cador e Gwilim. Não viera ninguém do norte, o que era compreensível devido à iminência de novas batalhas, e para mim foi um alívio não me deparar com Lot. Vi Gereint entre os homens mais jovens do grupo. Ele me cumprimentou com um sorriso, mas não havia tempo para conversas. A reunião durou até o anoitecer, quando foi servido o jantar, e só então saímos de lá.

Enquanto eu voltava para meus aposentos, Bedwyr e Gereint, que pareciam se conhecer, pelo menos ligeiramente, aproxima­ram-se de mim. Gereint cumprimentou-me efusivamente.

— Meu dia de sorte foi quando um certo médico itinerante chegou a Olicana.

— E creio que foi para Artur também — respondi. — E então, como estão as coisas no passo?

Ele me contou que parecia não haver perigo imediato vindo do leste. Artur fizera uma boa limpeza em Linnuis e o rei de Elmet agora vigiava a região. A estrada que atravessava o passo fora reconstruída, indo de Olicana a Tribuit, e ambos os fortes do oeste haviam sido recuperados e estavam de prontidão. Depois dessas informações a conversa virou para Caer Camel, e tanto Gereint como Bedwyr mostraram-se curiosos sobre o andamento das obras, fazendo perguntas até chegar o momento de nos se­pararmos.

— Vou deixá-los aqui — disse Gereint e fez um aceno de cabeça na direção dos aposentos do Grande Rei. — Estes são grandes dias para todos nós.

— E haverá maiores.

Bedwyr e eu continuamos juntos, com o menino que segurava a tocha andando alguns passos a nossa frente. De início conver­samos em voz baixa sobre Ygraine, e Bedwyr pôde me contar mais do que dissera diante de Artur. O médico da rainha, não querendo se comprometer com material escrito, pedira a Bedwyr para transmitir-me as informações sobre o caso, mas não havia nada de novo para mim. A rainha estava morrendo e o que ainda a mantinha viva era o desejo de ver as duas moças tão queridas para ela casadas, 'coroadas e estabelecidas, o que fazia Melchior, o médico, acreditar que ela dificilmente viveria até o Natal.

Ygraine pedira a Bedwyr para me transmitir seus agradeci­mentos e enviara um presente que deveria ser entregue a Artur depois de sua morte. Era um broche de ouro e esmalte azul e branco, com uma imagem da deusa-mãe dos cristãos, e o seu nome, MARIA, inscrito em torno da borda. Ela já dera jóias para Morgan e Guenever a título de presentes de casamento, embora sua filha já soubesse a verdade. Guenever não desconfiava de nada e Ygraine instruíra Bedwyr para não deixar escapar nada que pudesse estragar os festejos do casamento. Quanto a Artur, ela não tinha ilusões sobre o que sua morte significaria para ele, pois sacrificara seu amor pelo amor de Uther e pelo futuro do reino, e ela mesma estava resignada com seu destino, segura em sua fé.

— E o que você me diz de Guenever? — finalmente perguntei a Bedwyr. — Você teve oportunidade de conhecê-la melhor du­rante a viagem. E conhece Artur como ninguém. Acha que eles se darão bem?

— Ela é encantadora, cheia de vida e inteligente. Fez inúmeras perguntas sobre as guerras e negócios de Estado, todas pertinen­tes. Compreende perfeitamente o que Artur está fazendo e tem acompanhado todos os seus movimentos. Ficou completamente apaixonada por ele desde o primeiro instante em que o viu. Foi em Amesbury, como você deve saber. E alegre e brincalhona, mas nada nela nos faz lembrar essas mocinhas tolas que sonham se casar com um rei e pensam daí para frente sua obrigação será só usar uma coroa. Ela tem plena consciência dos encargos e deveres que a esperam. Tudo indica que a rainha Ygraine pla­nejava esse casamento há bastante tempo, e a preparou adequa­damente.

— Uma noiva real não poderia ter melhor professora do que Ygraine.

— Concordo inteiramente. Mas Guenever possui uma delica­deza e um otimismo natos, e estou contente por isso.

Começamos então a falar de Morgan.

— Esperemos que ela e Urbgen também combinem. O que acha dela? Pareceu-me satisfeita, até feliz com o casamento.

— E está mesmo — concordou Bedwyr sorrindo e, com um encolher de ombros, continuou: — Até parece que os dois sempre estiveram apaixonados e Lot nunca existiu. Você sempre diz que não sabe nada sobre mulheres e não entende o que as impulsiona. Estou na mesma situação. Acabo de passar um mês inteiro entre elas e ainda não as compreendo. E olhe que não tenho nenhum talento para eremita, como você. Elas anseiam pelo casamento, que, afinal, é um tipo de escravidão para todas e pode ser até perigoso para algumas. Veja Morgan, por exemplo: ela possui riqueza e posição, tem toda a liberdade que poderia querer e goza da proteção do Grande Rei. No entanto, teria se casado de bom grado com Lot, cuja fama é a pior possível, como sabemos, e agora está pronta a se unir a Urgben, que tem três vezes sua idade. Por quê?

— Desconfio que é por causa de Morgause.

— É possível — disse Bedwyr intrigado, depois de me lançar um rápido olhar. — Conversei com Guenever a respeito e ela me contou que desde que chegou a notícia do nascimento do outro filho de Morgause e suas cartas sobre como está governando o reino...

— De Orkney?

— Sim, é o que ela diz e parece ser a verdade. Lot passa a maior parte do tempo com Artur e alguém tem de se encarregar do governo. Bem, segundo Guenever, Morgan tem se mostrado cada vez mais irritada e começou a falar de Morgause com ódio. Também voltou a praticar o que a rainha costuma chamar de "suas artes tenebrosas". Guenever parece sentir medo delas. — Bedwyr hesitou por um instante. — Dizem que é mágica, Merlin, mas Morgan não possui nada parecido com seu poder. São coisas cheias de fumaça, praticadas num quarto fechado...

— Se foi Morgause que a ensinou, então devem mesmo ser artes tenebrosas. Por isso mesmo quando mais cedo Morgan for rainha de Rheged e tenha filhos para criar, melhor. E quanto a você, Bedwyr? Já anda pensando em casamento? — Nem de longe. — Ele riu. — Não tenho tempo para essas coisas.

Nós dois nos despedimos com sorrisos e nos afastamos um do outro.

 

No dia seguinte, com céu claro e um belo sol brilhante, com toda a pompa, música e festejos que uma alegre multidão é capaz de inventar, Artur casou-se com Guenever. Depois dos brindes, quando as tochas já estavam no fim e homens e mulheres tinham amido, bebido e dançado à farta, a noiva dirigiu-se para os aposentos particulares acompanhada de suas damas e algum tempo depois, conduzido pelos cavaleiros mais fiéis, seus companheiros, rei foi ao seu encontro.

Naquela noite tive um sonho breve e enevoado, nada mais do que um lampejo do que poderia ser uma verdadeira visão. Vi um lugar cheio de sombras frias, onde havia cortinas fechadas enfunadas pelo vento, e uma mulher deitada na cama. Não ide vê-la com clareza nem dizer quem era. De início pensei que fosse Ygraine, mas, quando entrou mais luz devido a um movimento das cortinas, achei que poderia ser Guenever. Ela estava deitada como morta ou como se estivesse dormindo profundamente depois de uma noite de amor.

 

Mais uma vez viajei para o norte, dessa vez usando sempre a estrada oeste, pela qual atingi Luguvallium. Foi mesmo um cor­tejo de casamento. O clima agradável se manteve constante ao longo do mês, o dourado mês de setembro, considerado o melhor para os viajantes, desde que o deus Hermes o escolheu para si. A mão de Hermes esteve sobre nós durante todo o trajeto. A estrada, considerada a principal via de acesso do reino de Artur, fora recuperada e até mesmo nas planícies o leito se mantinha seco, de modo que nem precisamos nos atrasar mais do que o necessário para descanso. Se ao anoitecer não víamos uma cidade ou vilarejo, acampávamos numa clareira adequada, onde comía­mos e dormíamos sob a proteção das copas das árvores. Não fosse por minhas recordações, eu poderia considerar essa viagem como realmente idílica. Duas delas me perturbaram bastante, uma porque eu imaginava que conseguira afastá-la para sempre da memória. Numa certa noite, pediram-me para cantar e, quando toquei os primeiros acordes na harpa, me pareceu que eu só teria de erguer o rosto para ver Beltane e Ninian sorrindo para mim. Depois disso o menino voltou diariamente aos meus sonhos, vin­do com ele o mais dolorido dos pesares. Era mais do que um lamento pela perda de um aluno. Junto com a tristeza vinha uma auto-acusação por não ter conseguido salvá-lo. A verdade era que a morte de Ninian representava muito mais do que o fracasso em conseguir um discípulo ou herdeiro que talvez viesse a con­tinuar minha obra. Sua perda era uma prova de minha perda.

O menino só morrera porque eu não era mais Merlin, porque não tivera poderes para prever e impedir o acidente.

A segunda perturbação foi Morgan.

Eu nunca chegara a conhecê-la bem. Ela nascera em Tintagel e fora criada lá ao longo dos anos em que eu vivera escondido em Rheged cuidando da educação de Artur. Apesar de receber notícias dela pelas cartas de Ygraine, eu só a vira pessoalmente por ocasião da coroação e depois no casamento, quando mal ha­víamos nos falado.

Tinha um físico parecido com o irmão, sendo bem alta para a idade e morena, com cabelos e olhos castanho escuros, que eu imaginava terem vindo do sangue espanhol trazido à família dos Ambrosius pelo imperador Maximus, mas o rosto lembrava o da mãe, enquanto os traços de Artur eram os de Uther. Todavia, ao contrário do irmão, sempre efusivo, mostrava-se séria e calada. Logo pude sentir nela um poder sob controle, como fogo escon­dido em cinzas frias. Havia também nela um pouco da sutileza que Morgause, sua meia irmã, possuía em abundância e que era ausente em Artur. No entanto essa é principalmente uma arma feminina e muitas vezes a única que as mulheres têm para se proteger.

Morgan recusou-se a usar a liteira e cavalgava boa parte do dia a meu lado. Suponho que quando estava com as mulheres ou entre os homens mais jovens devia conversar sobre o seu próximo casamento e o futuro que a aguardava, mas comigo sempre falou sobre o passado. Levava-me a contar meus feitos que haviam se transformado em lendas populares, como a história dos dragões em Dinas Emrys, o transporte da pedra-rei de Killare e a retirada da espada de Macsen de seu leito de pedra. Eu res­pondia às perguntas de bom grado, atendo-me aos fatos e, lembrando-me do que Ygraine e Bedwyr tinham me contado sobre suas "artes tenebrosas", procurando transmitir a ela parte do que significava "magia". Em geral as mocinhas a vêem como algo relacionado com filtros, poções e murmúrios em quartos às es­curas, encantamentos para prender o coração de um homem ou trazer a visão de um futuro namorado na véspera de certas datas. Sua principal preocupação está voltada, como seria de se esperar, para a parte ligada a Afrodite: como impedir ou favorecer a gravidez, talismãs para um parto fácil, previsões sobre o sexo de uma criança. Todavia, Morgan jamais me perguntou sobre essas coisas, o que me fez imaginar que já era bem versada nessas artes, e não se mostrava interessada nas artes da medicina e da cura, como Morgause em sua meninice. Suas perguntas envol­viam sempre o poder maior e em especial o modo como ele tocara Artur. Queria saber tudo o que se passara desde que Uther começara a cortejar sua mãe e a concepção de Artur, até a retirada da espada de Macsen do altar. Eu respondi de bom grado, pois acreditava que era seu direito estar a par de tudo o que acontecera, já que, como seria a rainha de Rheged e tudo indicava que so­breviveria ao marido, futuramente iria orientar o herdeiro dessa poderosa província. Por isso tentei lhe explicar quais eram os objetivos de Artur para os tempos de paz que viriam mais cedo ou mais tarde, procurando imbuí-la das mesmas ambições.

Depois de algum tempo notei que as perguntas de Morgan voltavam cada vez com mais freqüência para os "como" e "por quê" do poder que eu possuía. Tentei me esquivar, mas ela con­tinuou insistindo e terminou me pedindo um tipo de demons­tração pública, como se eu fosse uma velha curandeira prepa­rando mezinhas num caldeirão ou um vidente de mercado. A resposta para essa última impertinência deve ter sido gelada de­mais e a atingido fundo, porque depois disso passou a cavalgar o tempo todo com o pessoal mais jovem.

Logo vi que Morgan, como sua irmã, Morgause, não apreciava muito a companhia de mulheres. Seu mais constante interlocutor era um certo Accolon, um rapaz esplendidamente vestido, que mostrava um constante bom humor e costumava rir muito alto. Ela jamais ficou sozinha com ele mais do que seria decoroso, apesar de ele não fazer segredo de seus sentimentos. Seguia-a por todos os lados com os olhos e, sempre que podia, tocava sua mão ou fazia o cavalo se aproximar a ponto de encostar a perna na dela. Morgan não parecia notar e, pelo que pude ver quando estava por perto, não lhe concedia mais do que o olhar e respostas frias que dava aos outros membros da comitiva. Era minha, claro, a responsabilidade de entregá-la incólume e virgem (se ainda fosse) para dividir a cama com Urbgen, mas no mo­mento não tinha receios sobre sua honra. Um amante dificilmente a procuraria durante essa viagem, mesmo se fosse a seu pedido. Quando acampávamos, Morgan ficava em sua tenda com duas damas de companhia mais idosas e não demonstrava desagrado. Agia e falava como qualquer noiva real a caminho do casamento e, se o rosto bonito e olhar apaixonado de Accolon a comoviam, não deu o menor sinal disso.

Paramos pela última vez quase na fronteira das terras que são governadas pelo senhor de Caer-luel, como os bretões chamam Luguvallium. Deixamos os cavalos descansar enquanto os serviçais se ocupavam em polir os arreios e lavar a poeira das liteiras. As mulheres aproveitaram para trocar de roupas e penteados. Quando o cortejo voltou a se formar, avançamos para nos en­contrar com o grupo que nos daria as boas-vindas e estaria es­perando na periferia da cidade.

O grupo era liderado pelo próprio rei Urbgen, montado num cavalo presenteado por Artur, um garanhão castanho enfeitado com um tecido escarlate bordado a ouro. Ao lado dele caminhava um criado conduzindo pelas rédeas uma égua branca com arreios em azul e prata, que seria obviamente montada por Morgan. Urbgen era uma figura impressionante, um homem vigoroso, com braços fortes e peito largo, aparentando ser tão ativo como qual­quer guerreiro com metade de sua idade. Os cabelos e barba, que em sua juventude haviam sido loiros muito claros, agora estavam totalmente brancos, mas espessos e sedosos, destacando ainda mais a tez bronzeada pelos meses de guerra. Eu o via como um homem forte, um aliado fiel e um soberano inteligente.

Ele me cumprimentou como se eu fosse o Grande Rei em pes­soa e em seguida apresentei Morgan, que se vestira de rosa-forte e branco, prendendo os cabelos numa trança entremeada de fios de ouro. Ela estendeu a mão, fez uma profunda reverência, en­tregou a face para um rápido beijo, e depois montou na égua, enfrentando os olhares curiosos dos outros membros do séquito do rei com fria e tranqüila compostura. Vi Accolon, com uma expressão de raiva, deixar-se ficar no final do cortejo, enquanto os acompanhantes de Urbgen nos cercavam para nos conduzir à cidade situada no ponto de encontro de três rios, cercada pelas árvores avermelhadas do outono.

A viagem fora agradável, mas terminei detestando tê-la feito porque o pior de meus temores tornou-se realidade: Morgause chegou para o casamento.

Três dias antes da cerimônia um mensageiro veio galopando, trazendo a notícia de que fora avistado um navio na entrada do estuário, com a vela preta e o escudo dos orcadianos. O rei Urbgen foi recebê-lo pessoalmente no porto. Mandei meu criado se in­formar do que estava acontecendo e ele voltou bem rápido, pra­ticamente antes do pessoal das Orkneys desembarcar. Contou-me que o rei Lot não viera e quem chegara fora a rainha Morgause, com um grande séquito. Mandei o rapaz seguir para o sul com um alerta para Artur. Não seria difícil para ele inventar uma desculpa para não estar presente à cerimônia. Por sorte eu poderia me manter longe de Morgause: alguns dias antes Urbgen me pedira para inspecionar as estações de sinalização situadas na margem do estuário. Assim, com bastante pressa e uma certa falta de dignidade, saí da cidade antes de chegar a comitiva de Morgause e só voltei na véspera do casamento. Posteriormente eu soube que Morgan também evitara encontrar-se com a irmã, o que não pareceu estranho para uma noiva ocupada com os preparativos para uma cerimônia real.

Eu estava perto quando as irmãs se encontraram junto ao por­tão da igreja onde Morgan iria se casar dentro dos ritos cristãos. Ambas estavam magnificamente vestidas e acompanhadas, e tro­caram abraços e cumprimentos com encantadores sorrisos. To­davia eles eram fixos, como se tivessem sido pintados em suas bocas.

Morgan entrou na igreja usando uma coroa e jóias de incrível beleza que haviam sido presenteadas por Urbgen, mas entre elas reconheci uma que Uther dera a Ygraine nos primeiros tempos de sua paixão. O corpo esbelto mantinha-se ereto apesar do peso do manto púrpura bordado em prata e ostentando uma longa cauda, e o rosto estava calmo e muito belo. Ela me fez lembrar de Ygraine quando jovem e desejei com grande fervor que os relatos que falavam de uma profunda antipatia entre as irmãs fossem verdadeiros, porque assim Morgause não tentaria se apro­ximar de Morgan agora que esta estava à beira de uma alta po­sição e poder. Eu me sentia inquieto porque não conseguia ver outro motivo senão esse para a bruxa vir assistir pessoalmente ao triunfo da irmã e ficar em segundo plano, tanto em beleza como importância.

Nada conseguiria tirar de Morgause a beleza em tons de ouro e rosa que parecia ir aumentando com a passagem dos anos, embora todos pudessem ver que estava novamente grávida. Trou­xera consigo o filho que nascera depois de eu deixar Dunpeldyr, ainda uma criança de colo.

Morgause me surpreendeu olhando para ele e sorriu. Sabia que eu pensava no outro que, meio esperançoso, meio apreensivo, continuava procurando.

Eu, na posição de representante do Grande Rei, entrei acom­panhando a noiva. Acatando meu conselho, Artur não viera para a cerimônia.

Infelizmente, o desejo de me manter distante de Morgause não se realizou. No banquete, nós dois, como parentes da noiva, sentamos lado a lado na grande mesa. O salão era o mesmo onde Uther dera a festa da vitória que resultará em sua morte. Num quarto desse castelo Morgause deitara-se com Artur para conce­ber Mordred e, na manhã seguinte, num amargo entrechoque de vontades, eu destruíra seus planos e a expulsara para longe de Artur. Esse fora nosso último encontro. Ela obviamente conti­nuava ignorando que eu fora a Dunpeldyr e vigiara seus movi­mentos por vários meses.

Por várias vezes surpreendi-a me olhando de soslaio e ima­ginei, apreensivo, se podia perceber que agora eu não tinha mais defesa contra suas artes. Em nosso último encontro ela tentara seus truques de bruxa contra mim e eu pudera sentir sua potência quando eles se fecharam sobre minha mente, como se fossem uma teia, mas na época seria como uma aranha querer prender um falcão. Eu fizera seus encantamentos voltarem para ela, acha­tando sua fúria com a simples autoridade do poder. Mas ele agora me abandonara e eu não saberia dizer se Morgause tinha a capacidade de avaliar minha fraqueza.

Procurei um tom bem polido quando comecei a conversar com ela.

— Você tem um belo filho, Morgause. Qual é o nome dele?

— Gawain.

— Ele se parece muito com o pai.

Ela abaixou as pálpebras e disse suavemente:

— Meus dois filhos saíram muito parecidos com o pai.

— Dois?

— Ora, Merlin, onde está sua arte? Vai me dizer que acreditou nos mexericos a respeito? Você, acima de todos, devia saber que eram mentiras.

— Eu logo soube que não era verdadeiro o boato de que Artur ordenara a matança, apesar da calúnia que você lançou sobre ele.

— Eu? — Os olhos verdes se arregalaram numa expressão de inocência.

— Sim, você. O massacre pode ter sido obra de Lot, que é dado a explosões de cólera, e com certeza foram seus homens que jogaram os bebês no barco e o mandaram para o alto-mar, mas quem o levou a isso? Você tinha tudo planejado, até mesmo o assassinato daquela pobre criança no berço. Não foi Lot que matou Macha e levou o outro bebê para um esconderijo. — Repeti o tom de zombaria que ela usara comigo. — Vamos, Morgause, onde está sua arte? Você sabe que é inútil tentar se fingir de inocente comigo.

À menção do nome de Macha vi o medo surgir nos olhos verdes como uma centelha, mas não percebi outro sinal. Mor­gause continuava ereta na cadeira, os dedos em torno da haste de sua taça de ouro, virando-a vagarosamente. Pude ver uma veia pulsando aceleradamente em seu pescoço.

Para mim foi uma satisfação, embora amarga. Eu estava certo, Mordred continuava vivo, possivelmente no arquipélago chama­do de Orkneys, onde a palavra de Morgause era a lei e onde eu, sem a vidência concedida pelo poder, não poderia encontrá-lo.

— Você viu? — A voz veio bem baixa.

— Naturalmente. Quando você conseguiu esconder alguma coisa de mim? Saiba que está tudo perfeitamente claro para mim e também, talvez nem precise lembrá-la, para o Grande Rei.

Ela manteve-se imóvel, aparentemente composta, exceto pela veia que pulsava sob a pele de pêssego. Imaginei se conseguira convencê-la de que eu ainda era alguém que devia ser temido. Talvez, porque dificilmente Lind teria voltado para o seu serviço

e não havia motivo para ela se lembrar de Beltane. A gargantilha que o ourives fizera se movimentou em seu pescoço e as pedras cintilaram quando ela engoliu em seco e falou numa vozinha tão fina que quase não a consegui ouvir no burburinho do salão.

— Então, Merlin, você também deve ter visto que, apesar de eu tê-lo salvo das mãos de Lot, não sei onde está. Será que você pode informar seu paradeiro?

— Espera mesmo que eu acredite nisso?

— Você tem de acreditar porque é a pura verdade. Não sei onde ele está. — Morgause virou o rosto para me encarar. — E você?

Não respondi. Apenas sorri, peguei minha taça e bebi, mas sem olhar para Morgause senti nela um súbito relaxamento que fez minha pele se arrepiar diante da possibilidade de eu ter me enganado.

— Mesmo se eu soubesse — continuou ela —, como poderia mantê-lo perto de mim quando é tão parecido com o pai como se fossem duas gotas do mesmo vinho? — Ela bebeu da taça, colocou-a sobre a mesa e depois recostou-se na poltrona, cruzan­do os braços no colo, um gesto que destacou o ventre grávido. — Sorriu para mim; ódio e maldade sem nenhum vestígio de medo. — Então faça uma profecia a respeito deste aqui, já que não conseguiu fazer sobre o outro. É menino também?

— Não tenho a menor dúvida — previ brevemente e ela soltou uma gargalhada.

— Estou contente em saber disso. Não vejo utilidade para me­ninas. — Os olhos verdes fixaram-se na noiva, sentada bela e composta ao lado de Urbgen. Ele bebera bastante e um corado forte tomara conta de suas faces, mas mantinha a dignidade, em­bora acariciasse a nova esposa com o olhar. Morgause ficou ob­servando por um instante e depois falou com desdém: — Então finalmente minha irmã fisgou um rei, como sempre desejou. Um belo reino, sem dúvida, com uma agradável capital e muitas ter­ras. Mas um velho, já quase perto dos cinqüenta, com filhos cres­cidos... — Ela alisou a frente do vestido. — Lot pode ser um tolo sujeito a explosões de cólera, como você falou, mas é um homem no auge de suas forças.

Foi uma isca, mas eu não a mordi.

— A propósito, onde está Lot? Por que não veio com você?

Para minha surpresa, Morgause respondeu num tom normal, aparentemente abandonando o verdadeiro jogo de xadrez em que tínhamos nos empenhado. Lot voltara para o leste, indo com Urien, seu cunhado, para a Northumbria, onde estava inspecio­nando a extensão do Dique Negro. Já escrevi sobre ele antes. É um braço do mar do Norte que penetra no território e fornece uma certa defesa contra incursões vindas no litoral nordeste. Mor­gause falou sobre ele com conhecimento e, apesar de tudo, inte­ressei-me pelas informações e a conversa que se seguiu teve um clima muito mais leve. Depois alguém me perguntou qualquer coisa sobre o casamento de Artur e Morgause riu, perfeitamente à vontade:

— O que adianta perguntar essas coisas a Merlin? Ele pode saber de tudo o que acontece no mundo mas, se lhe pedirem que descreva uma festa de casamento, aposto que não será capaz de dizer qual era a cor dos cabelos ou do vestido da noiva!

Depois disso a conversa se generalizou em torno de nós, com muitas risadas e brincadeiras. Houve uma série de discursos e brindes, e eu devo ter bebido mais do que o comum, porque me lembro como as luzes das tochas aumentavam e diminuíam en­quanto a conversa e gargalhadas vinham em ondas, e com elas um perfume de mulher, mais adocicado do que o do jasmim, que pegava e prendia meus sentidos como a resina prende uma abelha. O aroma do vinho às vezes conseguia suplantá-lo. Um jarro de ouro se inclinava e minha taça voltava a se encher. Al­guém sorriu, dizendo: "Beba, meu senhor". Senti o gosto de da­mascos em minha boca, doce e pungente, e a pele da fruta tinha a textura que me fez lembrar do corpo de uma abelha ou vespa morrendo ao sol contra um muro de jardim... E durante o tempo todo havia olhos me observando, primeiro com cautelosa espe­rança, depois com desdém e em seguida com triunfo... Então me vi cercado de criados, que me ajudavam a levantar da poltrona, e ao olhar para o lado notei que a noiva já se retirara e que o rei Urbgen vigiava a porta dos seus aposentos particulares com impaciência, esperando o sinal para entrar.

A poltrona ao meu lado estava vazia.

 

Na manhã seguinte, acordei com uma dor de cabeça igual às piores que eu costumava ter depois de uma sessão de magia e por isso não saí de meus aposentos. No dia seguinte despedi-me de Urbgen e sua rainha. Já tivéramos uma série de reuniões for­mais antes da chegada de Morgause e agora, para meu imenso alívio, eu podia dar minha missão por terminada e ir para a floresta, em cujo âmago ficava o castelo de Galava, do conde Ector. Não me despedi de Morgause.

Foi bom eu estar novamente ao ar livre e dessa vez com apenas dois companheiros. A comitiva que viera com Morgan era cons­tituída principalmente de pessoas da Cornualha, que ficariam morando com ela em Luguvallium. Os dois homens que viajavam comigo haviam sido cedidos por Urbgen e, depois de me acom­panharem até Galava, voltariam para sua cidade. Em vão eu ten­tara convencer o rei de que gostaria mais de ir sozinho e que não enfrentaria perigos. Ele só ficou repetindo, sorridente, que nem mesmo minha magia valeria contra os lobos ou os fechados nevoeiros, e falando das súbitas tempestades de neve que, nessa época do ano, costumavam surpreender os viajantes nos passos entre as montanhas íngremes, resultando em morte certa. Suas palavras foram um lembrete de que, agora que o meu poder desaparecera, restando para mim apenas a fama de possuí-lo, eu estava sujeito a ser atacado por loucos ou bandoleiros como qual­quer outro viajante que enfrentasse sozinho aquelas paragens perigosas. Assim, aceitei a escolta com palavras de agradecimento e creio que, por isso, salvei minha vida.

Saímos da cidade usando a ponte e entramos no agradável vale verdejante que o rio atravessa preguiçosamente. Apesar da dor de cabeça ter desaparecido, eu ainda sentia uma certa lassidão e foi com prazer que aspirei o ar fresco perfumado pelos pinhei­ros.

Lembro-me de um pequeno incidente. Enquanto atravessáva­mos os portões da cidade e entrávamos na ponte, ouvi um grito agudo, que imaginei ser de um dos pássaros que se alimentavam dos peixes do rio. Foi então que um movimento atraiu meu olhar e avistei uma mulher com uma criança no colo, caminhando pela margem arenosa que ficava sob a ponte. A criança chorava e a mulher tentava acalmá-la. Reconheci nela a babá de Morgause. Então meu cavalo saiu da ponte e os salgueiros as esconderam de vista.

Não dei muita atenção ao incidente e pouco tempo depois já o esquecera por completo. Continuamos em frente, atravessando aldeias e granjas prósperas, com grande número de animais pas­tando na relva muito verde. Quando nos aproximamos do ninho de montanhas e lagos que sinalizam os limites da grande floresta, as colinas mais abaixo pareciam flamejar sob o sol devido às cores do outono. Logo chegamos à borda de floresta Perigosa em si, onde as árvores crescem tão juntas nos vales que impedem a entrada dos raios do sol. Pouco tempo depois atravessamos a trilha que levava para a Capela Verde. Senti vontade de visitá-la, mas isso acrescentaria algumas horas à viagem e eu sabia que quando estivesse em Galava chegaria com mais facilidade até ela. Assim, nos mantivemos na estrada, indo por ela até Petrianae.

Atualmente esse local mal merece o nome de cidade, mas nos tempos romanos era um próspero centro, devido ao seu grande mercado. Ainda existe um mercado onde algumas poucas vacas, carneiros e cereais trocam de mãos, mas Petrianae não é mais do que um amontoado de cabanas e do antigo santuário só restam alguns muros de pedra e um altar desmoronado dedicado a Mar­te, na pessoa do deus local, Cocidius. Não vi nenhuma oferenda além de uma funda de couro, como as usadas pelos pastores, colocada sobre uma pequena pilha de pedras junto a alguns degraus cobertos de limo. Imaginei de que animal, lobo ou homem violento, o pastor conseguira fugir para agradecer desse jeito.

Depois da cidade saímos da estrada e começamos a percorrer as trilhas montanhosas. Progredimos tranqüilamente, gozando do calor do sol de outono, que permaneceu nos aquecendo mesmo ao atingirmos terrenos mais altos, embora ali já fosse possível sentir certas rajadas de ar frio, significando que as primeiras gea­das não demorariam a cair.

Paramos para dar descanso aos cavalos e pouco depois um pastor veio se aproximando de nós conduzindo os carneiros de lã levemente azulada, típicos de Reghed. Como é comum nesse tipo de gente, o rapaz estava tão pouco habituado a falar que nos saudou com dificuldade e um sotaque tão carregado que até mesmo meus acompanhantes, nascidos na região, não consegui­ram entendê-lo e eu, que tenho talento para línguas, precisei me esforçar para compreender o que dizia. Parecia ter conversado com os Antigos e estava querendo transmitir a notícia que rece­bera. Artur ficara em Caerleon quase um mês depois do casa­mento e em seguida partira para o vão dos Peninos, aparente­mente seguindo para Olicana e a planície de York, onde se en­contraria com o rei de Elmet. Eu não podia dizer que isso era grande novidade para mim, mas pelo menos estava recebendo a confirmação de que não houvera movimentos de guerra para perturbar a paz do final de outono. O pastor, contudo, reservara a parte melhor para o fim. O Grande Rei fora para o norte, mas deixara a rainha grávida em seu castelo. Ao ouvir isso, meus acompanhantes fizeram um ar de claro ceticismo. Como, no es­paço de um mês, alguém podia afirmar uma coisa dessas? To­davia, quando pediram minha opinião, mostrei-me mais crédulo, pois sei que os Antigos têm meios de saber que não podem ser entendidos, mas devem ser respeitados. Se o rapaz tivesse ouvido a notícia deles...

Era verdade, mas ele não sabia mais nada. O rei fora para Elmet e a moça com quem ele se casara estava grávida. Agradeci ao pastor e dei-lhe uma moeda, o que o fez voltar para seus carneiros com um ar satisfeito.

Naquela noite ainda estávamos bem distante de estradas e não existia a possibilidade de encontrarmos alojamento, de modo que acampamos numa clareira e os homens cuidaram do fogo e da comida. Eu só bebera água durante a viagem, algo que sempre faço quando estou em território montanhoso, onde ela verte pura e fresca das fontes, mas para brindar às notícias transmitidas pelo pastor abri um frasco de vinho que viera da adega de Urbgen. Ofereci um pouco a meus companheiros, mas eles agradeceram dizendo que tomariam do seu. Assim comi e bebi sozinho, e depois deitei-me para dormir.

 

Não posso escrever sobre o que aconteceu em seguida. Os Antigos, contudo, conhecem bem a história e é possível que em algum lugar qualquer um outro homem a tenha registrado, mas eu só me recordo vagamente dela, como se fosse uma sucessão de cenas vistas num cristal escuro e esfumaçado.

Mas não foi nenhuma visão. Essas cenas me vêm à memória mais claras do que lembranças recentes. Foi um tipo de loucura, causada, como agora sei, por alguma droga colocada no vinho que tomei. Nas duas vezes anteriores em que Morgause e eu nos confrontáramos como inimigos, ela tentara atirar suas bruxarias sobre mim, mas sua magia de noviça mal resvalara em mim. Mas nessa última vez... a festa de casamento, o aroma de jasmim e o sabor de damascos. Eu, habitualmente frugal na comida e vinho, sendo carregado bêbado para a cama. Ela devia ter tentado suas artes de novo e descoberto que agora sua mágica era forte o suficiente para me enredar em suas teias pegajosas. Talvez as sementes da loucura houvessem sido plantadas na festa para ger­minarem quando eu estivesse bem distante, quando nenhuma culpa cairia sobre ela. Sua criada fora para perto da ponte com a intenção de ver qual era meu estado ao deixar a cidade e cer­tamente participara da trama para colocarem uma poção maléfica, que se somaria à primeira, em um dos frascos que eu carregaria. A sorte também ajudara Morgause. Se eu não tivesse recebido a notícia da gravidez de Guinevere, dificilmente abriria o frasco de vinho. Mas, como o planejado, eu estava bem distante de Luguvallium quando tomei o veneno. Não precisei mais procurar o motivo para Morgause ter comparecido ao casamento da irmã.

Seja qual tenha sido o veneno, meus hábitos frugais me sal­varam. Só sei do que aconteceu, depois de beber o vinho e me enrolar no cobertor para dormir, por meio de poucas informações, bastante desencontradas, e fiapos de minha memória.

Parece que os soldados, assustados pelos meus gemidos, cor­reram para junto de mim e se horrorizaram ao me ver gemendo, contorcido em dores e delirando. Fizeram o que puderam na hora, o que não foi muito, mas evitou minha morte, que certa­mente teria ocorrido se eu estivesse sozinho. Eles me obrigaram a vomitar, trouxeram seus cobertores para me aquecer mais e aumentaram o fogo. Então um deles ficou a meu lado enquanto o outro corria para o vale à procura de socorro e acomodações. Sua intenção era mandar alguém para me ajudar, enquanto pros­seguia rapidamente até Galava levando a notícia.

Quando esse homem partiu, o outro continuou mantendo o fogo alto e me dando goles de água. Depois de umas duas horas eu adormeci e, embora o sono não parecesse normal, ele apro­veitou a oportunidade para urinar. Ao ver de uma certa distância que eu continuava dormindo, resolveu pegar mais água no riacho, que ficava a pouco mais de vinte passos do acampamento. Vendo galhos secos por perto, pensou na fogueira e juntou alguns deles. Tudo isso não levou mais do que alguns minutos mas, quando ele voltou para perto do fogo, eu havia desaparecido sem deixar vestígios. Depois de me procurar por muito tempo, revirando até pedras, ele montou e partiu ao encontro de seu companheiro. Afinal, desaparecimentos estranhos eram atribuídos a Merlin, o mago, e um simples soldado não teria dúvidas do que acontecera.

Merlin havia desaparecido e tudo o que seus dois acompa­nhantes podiam fazer era apresentarem seu relatório e esperarem sua volta.

 

Foi um longo sonho. Não me recordo de seu começo, mas suponho que, impulsionado por uma força trazida pelo delírio, levantei-me dos cobertores, me afundei na vegetação espessa da­quela parte da floresta e em seguida caí em alguma vala ou bu­raco. Devo ter me recuperado a tempo para me abrigar do frio e naturalmente devo ter encontrado alimento e até feito fogo durante as semanas tempestuosas que se seguiram, mas não me recordo de nada disso. Minhas lembranças agora vêm numa série de quadros que permanecem claros e imóveis enquanto vou de um para outro, flutuando como se estivesse sendo levado pela água.

E assim vaguei pelas profundezas da floresta, oculto dos gru­pos de salvamento pela neblina espessa. Vi javalis e veados, e lobos também, mas não fui atacado. Era como se eu não tivesse corpo para ser farejado.

Então chegou a neve. Tenho uma breve visão dos flocos caindo no silêncio gelado, de árvores secas e arbustos endurecidos, e em seguida o frio terrível e silencioso...

Uma caverna, com seu cheiro peculiar e o de fumaça de turfa, o sabor de um cordial e vozes incultas falando na língua áspera dos Antigos, como se estivesse acontecendo uma confabulação a uma certa distância de mim. O fedor de peles de lobo mal curtidas, a coceira causada por ataduras ásperas e, uma vez, um pesadelo de membros amarrados e um peso me mantendo dei­tado...

Aqui vem um longo intervalo de escuridão, mas em seguida vejo o sol e nova vegetação, ouço o canto de um pássaro e surge diante de meus olhos uma encosta coberta de narcisos amarelos, parecendo feita de ouro líquido. A vida voltando à floresta: ra­posas magras andando sem fazer barulho; o solo pulsando com a saída dos texugos de suas tocas; veados elegantes e tranqüilos, e de novo os javalis, à procura de comida. E depois um sonho absurdo e enevoado de encontrar um porquinho ainda com a pelagem sedosa de um recém-nascido, sozinho, mancando com uma perna quebrada, abandonado pela sua espécie.

Então, subitamente, numa madrugada cinzenta, o som de ca­valos a galope enchendo a floresta, o tilintar de espadas e o zunir de machadinhas, os gritos e homens e feras feridas, como um sonho intermitente sobre violência, um dia inteiro de luta que terminou com um silêncio pesado e o odor de sangue e mato pisado.

Depois o silêncio e o perfume de macieiras, e o sofrimento que volta quando alguém acorda para sentir de novo uma perda que fora esquecida no sono.

 

—Merlin! — soprou Artur em meu ouvido. — Merlin!

Abri os olhos. Eu estava deitado numa cama em um cômodo que parecia ficar bem alto, porque eu só via o ápice de copas de árvores aparecendo acima do peitoril de uma janela. O sol claro e alegre de início de manhã derramava-se sobre paredes de pedra, cuja curva me mostrou que eu estava numa torre. O ar que entrava era bem frio, mas dentro do quarto um braseiro queimava e eu estava aninhado em cobertores e linho de boa qualidade chei­rando a cedro. Algum tipo de erva fora colocado sobre os carvões e a fumaça fina que emanava deles tinha um aroma fresco e resinoso. Não havia cortinas ou cortinados, mas espessas peles de carneiro cobriam quase todo o piso. Vi uma cruz de madeira na parede a minha frente. Um lar cristão e, como tudo indicava, muito rico. Numa mesinha ao lado da cama, um jarro e uma taça de cerâmica, e uma tigela de prata. Um banquinho mais distante, onde provavelmente se sentara o criado que cuidara de mim. Agora ele estava em pé, com as costas na parede e os olhos fixos não em mim, mas no rei.

Artur soltou um longo suspiro e parte da cor voltou ao seu rosto. Parecia diferente. Os olhos escuros de fadiga, pele seca, faces encovadas. A juventude desaparecera por completo de suas feições. Diante de mim estava um homem vivido, sustentado por uma vontade que diariamente o impulsionava, junto com seus seguidores, ao seus limites e mais além.

Estava ajoelhado ao lado da cama. Quando movi os olhos para fixá-los nele, sua mão de fechou em torno de meu pulso num breve gesto de alívio e encorajamento. Pude sentir os calos em sua palma.

— Merlin? Está me reconhecendo? Pode falar?

Tentei formar uma palavra, mas não consegui. Meus lábios estavam secos e rachados. Sentia a mente clara, mas o corpo se recusava a me obedecer. Artur passou os braços em torno de meus ombros, erguendo-me da cama, e a um sinal seu o criado se aproximou, encheu a taça e entregou-a a ele, que a aproximou de meus lábios. Era um estimulante, doce e forte. Pegou o guardanapo que o homem estendia, enxugou meus lábios e voltou a me acomodar contra os travesseiros.

Sorri para ele. Devo ter mostrado pouco mais do que um ligeiro movimento de músculos. Tentei falar seu nome: "Emrys", mas não ouvi nenhum som. Creio que saiu apenas como um suspiro.

— Não fale — disse ele, pegando novamente a minha mão. — Não se esforce. Fiz mal em querer forçá-lo a falar. Você está vivo e isso é o que importa. Agora descanse.

Meu olhar, vagando pelo quarto, caiu sobre algo atrás dele: minha harpa sobre uma cadeira. Ainda sem emitir qualquer som, falei: "Você encontrou minha harpa", e um grande alívio e alegria percorreram meu corpo, com se agora eu tivesse certeza que es­tava tudo bem.

— Sim, nós a encontramos — contou Artur, que seguira meu olhar. — Está em perfeitas condições. Agora descanse, meu que­rido. Tudo está bem, muito bem...

Tentei falar seu nome de novo, mas não consegui e deslizei de volta para a escuridão. Como se estivem vindo de muito longe, lembro-me de ordens dadas em voz baixa, homens apressados, passos abafados, o farfalhar de vestidos de mulheres, mãos frescas e vozes suaves. Depois o conforto do esquecimento.

Quando acordei de novo eu estava plenamente consciente, como se estivesse saindo de um sono longo e reparador. Tinha a mente clara e, apesar de me sentir muito fraco, tomei consciência plena de meu corpo. Virei a cabeça devagar e em seguida as mãos. Estavam rígidas e pesadas, mas eu as comandava. Fosse onde eu estivera vagando, eu voltara ao meu corpo, saindo do mundo dos sonhos.

Pude notar que era noite. Um criado — um outro agora — esperava perto da porta, mas uma coisa continuava a mesma. Artur ainda estava ali. Puxara o banquinho para perto da cama e sentara-se nele. Quando virou a cabeça e me viu de olhos aber­tos, seu rosto mudou. Inclinou-se e pegou novamente meu pulso, com o toque gentil de um médico querendo encontrar a pulsação.

— Por Deus — falou. — Você nos pregou um susto! O que aconteceu? Não, esqueça. Teremos tempo para isso mais tarde. Agora é bastante saber que você voltou para nós. Agora me parece melhor. Como se sente?

— Estive sonhando. — A voz não pareceu ser minha. Era como se viesse de um ponto distante, quase fora de meu controle, e saiu muito débil, como o grunhido do porquinho quando con­sertei sua perna quebrada. — Devo ter adoecido.

— Adoecido? — Artur deu uma risadinha sem o menor ves­tígio de alegria. — Você ficou completamente louco, meu caro profeta do rei. Cheguei a pensar que jamais recuperaria o juízo.

— Devo ter tido uma febre qualquer. Não me lembro... — Franzi o cenho, tentando forçar a memória. — Sim. Eu estava viajando para Galava com dois soldados de Urbgen. Acampamos perto da estrada dos lobos... Mas onde estou agora?

— Em Galava. No castelo de Ector. Voltou ao lar.

Ali fora o lar de Artur, mais do que o meu. Devido à neces­sidade de manter o segredo, eu jamais morara no castelo e passara os anos na capela da floresta. Mas, quando virei a cabeça e aspirei o aroma dos pinheiros, o cheiro fresco do lago e dos canteiros de Drusilla ao pé da torre, senti uma grande segurança, como se tivesse encontrado uma luz depois de uma grande caminhada no meio do nevoeiro.

— A batalha que presenciei? Foi de verdade ou só imaginação?

— Foi real, mas não tente conversar mais. Tudo está bem agora, repito. Repouse, repouse bastante. Como se sente?

— Faminto.

Essas palavras, como seria de se esperar, deram início a um novo burburinho. Criados trouxeram sopa, pão e mais cordiais, e a condessa Drusilla em pessoa me alimentou e de novo me acomodou para um sono pesado e bem-vindo.

Outra manhã, a mesma claridade e ar fresco do dia anterior. Eu ainda me sentia fraco, mas já tinha o controle sobre mim mesmo. Tudo indicava que o rei dera ordens de ser chamado assim que eu acordasse, mas dessa vez eu não iria permitir que ele viesse antes de eu ter feito a barba, tomado um banho e comido.

Quando finalmente ele entrou tinha um aspecto bem melhor. O brilho cansado em seus olhos havia diminuído e o rosto estava mais corado sob o bronzeado. Parte de sua característica mais especial também voltara: a força que emanava dele, a força jovem da qual os homens podiam beber, como se nele existisse uma fonte, e se sentir revigorados.

Tive de insistir para convencê-lo de que eu estava mesmo me­lhor antes de conversarmos, mas ele acabou concordando e pas­sou a me dar as novidades.

— A última notícia que tive — falei —, foi que você tinha ido para Elmet... mas creio que isso agora é história antiga. Imagino que a trégua foi rompida, não? E qual foi a batalha que assisti? Deve ter acontecido aqui, na floresta caledoniana. Quem tomou parte nela?

Artur me encarou com um olhar que achei estranho, mas res­pondeu prontamente.

— Urbgen mandou me chamar. O inimigo conseguiu romper as defesas e entrou em Strathclyde. Caw não conseguiu contê-los. Eles então forçaram passagem pela floresta com a intenção de atingirem a estrada. Foi lá que nos defrontamos. Rompemos suas linhas e os fizemos voltar. Os que ficaram para trás fugiram para o sul. Minha intenção era segui-los, mas foi então que o encon­tramos... Como eu poderia partir antes de saber que você estava em segurança, sendo bem cuidado?

— Quer dizer então que assisti mesmo ao combate? Tive a impressão que era parte de um sonho.

— Você deve ter visto tudo. Combatemos dentro da floresta, ao longo do rio. Você conhece bem o lugar, terreno bom e aberto, com árvores sem muitos galhos, espaçadas, ideal para um ataque

de surpresa com uma cavalaria ligeira. Tínhamos o terreno mon­tanhoso em nossa retaguarda e os surpreendemos quando esta­vam chegando ao ponto onde se pode atravessar o rio a vau. Ele estava cheio; fácil para cavaleiros, mas uma armadilha para soldados a pé... Mais tarde, quando voltávamos da primeira in­vestida, vieram nos contar que você estava lá. Fora encontrado vagando entre os mortos e feridos, dando instruções aos médi­cos... De início ninguém o reconheceu, mas logo começou a correr o boato de que o fantasma de Merlin estava por ali. — Um sorrisinho maroto. — Parece que os conselhos do fantasma eram muito bons, mas alguns tolos ficaram com medo e começaram a atirar pedras para espantá-lo. Foi um dos meus ordenanças, Paulus, que pôs fim nos boatos. Ele o seguiu até onde você estava vivendo e depois mandou me chamar.

— Paulus. Sim, claro. Um bom homem. Já trabalhou muito comigo. E onde eu estava morando?

— Numa pequena torre em ruínas, com um antigo pomar a sua volta. Lembra-se dela?

— Não, mas algo está voltando. Sim, ruínas cobertas de hera, corujas. Macieiras?

— Sim. Era pouco mais do que uma pilha de pedras, com um monte de agulhas de pinheiro num dos cantos para servir de cama. Muitas maçãs estragadas por ali, nozes e castanhas numa vasilha quebrada, e trapos pendurados nas árvores para secar. — Artur engoliu em seco e vi que estava comovido. — No começo pensavam que você era um desses eremitas malucos e, de fato, quando o vi... — Um sorriso mais alegre. — Você não estava tão adequado ao papel quando morou na Capela Verde.

— Posso imaginar.

E era verdade. Minha barba, antes do criado tê-la cortado, estava comprida e grisalha, e minhas mãos sobre as cobertas co­loridas pareciam magras e velhas, ossos amarrados por uma rede de veias tortas.

— Então o trouxemos para cá. Tive de partir para o sul logo em seguida. Encontramos os saxões em Caer Guinnion e o com­bate foi sangrento, mas felizmente vencemos. Pouco depois che­gou um mensageiro de Galava com notícias assustadoras. Quan­do o trouxemos para cá, sua condição física não era das piores, mas você estava completamente louco. Não reconhecia ninguém, não falava coisa com coisa, não dormia. As mulheres cuidaram de você por um bom tempo e finalmente você se aquietou e pegou no sono. Veio então uma febre forte, você delirou muito e finalmente caiu num sono tão pesado que imaginaram que es­tava para morrer. Foi isso que o mensageiro foi me comunicar no final da batalha. Vim assim que pude.

Estreitei os olhos. A claridade que vinha pela janela havia au­mentado. Artur fez um sinal para o criado, que puxou uma cor­tina.

— Vamos esclarecer as coisas, Artur. Depois de me encontrar na floresta você me trouxe para cá e em seguida foi para o sul. Houve uma outra batalha... Há quanto tempo estou aqui?

— Nós o encontramos há três semanas, mas faz sete meses que você se perdeu na floresta. Passou o inverno inteiro lá. Não é de admirar que o dávamos por morto.

— Sete meses?

Por várias vezes, quando atuava como médico, eu tivera de dar esse tipo de informação para pacientes que saíam de longas febres ou coma, e sempre vira o mesmo tipo de incredulidade e choque... O que não teria acontecido num país tão dividido e envolto em guerras como o meu? E com o seu rei? Outras coisas, até ali esquecidas nas brumas da doença, começaram a voltar à minha memória.

Olhando para Artur, vi de novo, e com temor, os maxilares encovados e as olheiras que me contavam sobre noites insones. Meu menino, que comia com o apetite de um jovem lobo e dormia como um bebê, antes uma criatura sempre relacionada com a resistência e alegria. Não houvera derrotas no campo de batalha; ali sua glória permanecia imaculada. A preocupação comigo, por mais intensa que fosse, não resultaria em tal abatimento. Restava então a vida familiar.

— Emrys, o que aconteceu?

O nome de infância veio naturalmente, pois afinal estávamos em Galava. Vi seu rosto se contorcer numa lembrança de sofri­mento. Ele inclinou a cabeça e fixou o olhar nas cobertas.

— Minha mãe, a rainha. Ela morreu.

A visão que eu tivera voltou. A mulher deitada na grande cama, as cortinas enfunadas. Sim, eu fora avisado.

— Lamento.

— A notícia chegou um pouco antes da batalha de Caer Guinnion. Lucan trouxe a notícia, junto com uma lembrança que você lhe pedira para guardar. Um broche, um talismã cristão, lembra-se? A morte da rainha não foi surpresa, mas creio que a tristeza ajudou a apressar seu fim.

— Tristeza? O que poderia... — Parei no mesmo instante. Agora voltava à minha lembrança, com toda a clareza, a noite na floresta em que eu abrira o frasco de vinho para comemorar... A mesma visão, â mulher morta na cama... O temor fechou minha garganta e foi com dificuldade que consegui falar: — Guenever?

Artur só fez que sim, sem levantar a cabeça.

— E a criança?

Desta vez ele ergueu o olhar para mim.

— Você está sabendo? Sim, é claro... Disseram que ela estava grávida, mas um pouco antes do Natal ela começou a sangrar e depois, no ano-novo, morreu sofrendo grandes dores. Se você estivesse lá... — Ele engoliu em seco.

— Lamento — repeti.

Artur continuou, numa voz tão dura que me pareceu cheia de raiva:

— Pensávamos que você estivesse morto também, mas o en­contramos no final da batalha, sujo, envelhecido e louco. Os mé­dicos de campo, porém, me deram esperanças... pelo menos isso depois de tanto sofrimento no inverno... Então tive de deixá-lo para ir a Caer Guinnion. Ganhei, mas perdi alguns bons homens. Um pouco antes o mensageiro de Ector trouxera a notícia de que você estava muito mal e talvez já tivesse morrido. Quando che­guei ontem de madrugada, pensava que encontraria seu corpo já enterrado ou cremado.

Ele parou, apoiou a testa num punho crispado e permaneceu assim. O criado, que se mantinha em pé perto da janela, captou meu olhar e saiu sem fazer barulho. Alguns instantes depois Artur se endireitou e falou num tom normal:

— Perdoe-me, mas durante toda a viagem para cá fiquei me lembrando de uma coisa que você me disse, que sua morte seria uma morte vergonhosa. Essas horas foram muito difíceis para mim.

— Mas aqui estou, com saúde e juízo recuperados, e a mente pronta a se tornar mais clara quando você me contar tudo o que aconteceu nesses últimos meses. Agora faça a gentileza de me servir um pouco desse vinho e voltar à época de sua viagem para Elmet.

Artur fez o que eu pedi e logo a conversa tornou-se muito mais fácil. Ele contou sobre sua viagem pelo vão dos Peninos até Olicana, o que encontrou lá e sobre a reunião que tivera com o rei de Elmet. Depois me fez o relato de sua volta a Caerleon e sobre o aborto espontâneo e morte da rainha. Dessa vez, quando o interroguei, ele foi capaz de responder com calma e no final ofereci-lhe o duvidoso conforto de saber que minha presença na corte não teria evitado o desenlace. Os médicos que tinham aten­dido Guenever eram competentes e haviam feito o possível para ela não sofrer demais com as dores. A criança fora mal concebida e nada seria capaz de salvá-la ou à rainha.

Depois de ouvir minhas palavras de consolo, Artur pareceu mais conformado e ele mesmo mudou de assunto. Estava ansioso para saber o que me acontecera e mostrou-se um tanto irritado quando viu que eu me recordava muito pouco do que sucedera depois da festa de casamento em Luguvallium.

— Mas será que não se lembra nem vagamente de como chegou à pequena torre onde o encontramos?

— Não, mas as imagens vêm vindo de pouquinho em pou­quinho. Devo ter vagado pela floresta e de alguma forma me mantive vivo até a chegada do inverno. Imagino que algumas das pessoas rudes que moram nas colinas tenham cuidado de mim e me dado abrigo. Sem isso eu não teria sobrevivido às nevascas. Estive pensando que elas poderiam ser gente da rainha Mab, os Antigos das regiões montanhosas, mas, se fossem eles, teriam dado um jeito de avisar você.

— E foi o que fizeram, mas a notícia só chegou depois de você desaparecer de novo. Como de hábito, os Antigos ficaram presos pela neve em suas cavernas e você estava junto. Quando a neve derreteu, eles saíram para caçar e, quando voltaram não o encontraram mais. Foi através deles que soube, pela primeira vez, que você tinha enlouquecido. Contaram que precisavam amarrá-lo durante as crises e que quando elas terminavam você ficava tranqüilo, mas muito fraco, e era nessas ocasiões que saíam à procura de alimento.

— Sim, lembro-me de estar amarrado. Imagino que nesse dia desci as encostas e fui terminar na torre arruinada perto do rio. Suponho que em minha loucura eu continuava querendo ir para Galava. Recordo-me muito vagamente da primavera. Foi então que me vi no meio da batalha e você me encontrou. Daí em diante, não me recordo de nada.

Artur me contou de novo como eu fora encontrado, magro, sujo, dizendo coisas desconexas, e sobre meu esconderijo e re­servas de nozes e maçãs, tendo apenas um porquinho com uma perna entalada por companhia.

— Então essa parte era verdade! — Sorri. — Lembro-me de ter encontrado a criaturinha e cuidado de sua perna. Se eu estava tão cadavérico como me contou, foi muita delicadeza minha não ter comido Mestre Porquinho. O que aconteceu a ele?

— Está aqui mesmo, no chiqueiro. — O primeiro toque de humor encurvou ligeiramente os lábios de Artur. — E creio que está condenado a uma longa e não muito honrosa vida. Duvido que alguém tenha coragem de encostar a mão no porquinho de estimação de um mago, que, a propósito, parece que vai se tornar um feroz javali, de modo que terminará sendo o rei do chiqueiro, o que me parece bem adequado. Merlin, você me contou o pouco que lembra depois de ter acampado na estrada dos lobos. E antes disso? O que o fez adoecer? Os homens disseram que foi uma coisa súbita. Pensaram que fosse veneno, como eu no começo. Também imaginei que a bruxa tivesse mandado alguém seqües­trá-lo naquela noite, quando você estava mal e os soldados se afastaram. Mas, se fosse assim, ela com certeza daria ordem para matá-lo. Não houve suspeita alguma sobre os homens que o acompanhavam; eram gente de Urbgen, escolhidos a dedo.

— Sem dúvida. Devo a eles minha vida.

— Eles me contaram que você bebeu vinho de seu próprio frasco e que não aceitaram seu oferecimento. Também soubemos que você saiu bêbado da festa do casamento a ponto de precisar ser carregado, e ninguém melhor do que eu para saber que jamais chegaria a esse ponto. Além disso, sentou-se ao lado de Morgause. Você tem motivo para acreditar que ela colocou alguma coisa em seu vinho?

Abri a boca para responder e até hoje juro que a palavra que começou a se formar em meus lábios foi "sim", o que, para mim, seria a verdade. Todavia, algum deus deve ter me impedido. Em vez do "sim" que estava formado em minha mente, respondi apenas:

— Não.

Devo ter soado estranho, porque vi Artur olhando fixamente para mim. Senti-me pouco à vontade e logo comecei a elaborar na resposta.

— Como posso saber? Mas creio que não foi ela. Já lhe disse que não tenho mais poderes, mas a bruxa não sabe disso. Mor­gause ainda tem medo de mim. Tentou antes e não apenas uma vez, mas duas, me prender na armadilha de seus encantamentos rudimentares. Fracassou em ambas as ocasiões e penso que não se atreveria a tentar de novo.

Artur ficou em silêncio por algum tempo e depois disse bre­vemente:

— Quando minha rainha morreu, falaram em veneno. Ao ouvir isso, protestei sinceramente:

— Sempre existe uma possibilidade mas, por favor, não a leve em consideração. Pelo que me contou, posso dizer com certeza que foi um aborto perfeitamente normal. — Em seguida, acres­centei no tom mais convincente que consegui: — Acredite-me Artur, se Morgause fosse culpada, por que eu quereria protegê-la de você?

Ele ainda parecia em dúvida, mas não continuou o assunto.

— Está bem — foi tudo o que disse. — De qualquer forma, ela agora está de asinhas cortadas, pelo menos por algum tempo. Voltou para Orkney e Lot morreu.

Eu não disse nada, mas foi um outro choque. Quanta coisa mudara nos últimos meses!

— Como? — perguntei. — E quando?

— Na batalha na floresta. Não posso dizer que chorei sua perda, mas tenho de reconhecer que estava sendo muito útil em conter aquele rato do Aguisel. Creio que logo terei problemas vindos de lá.

— Lembrei-me de mais uma coisa — falei vagarosamente. — Durante as lutas na floresta ouvi alguém dizer que o rei estava morto. Senti uma tristeza imensa porque, para mim, só existe um rei... Então era de Lot que estavam falando. Sim, pelo menos nós o conhecíamos bem e podíamos nos precaver. Agora creio que Urien vai ter de cuidar de tudo sozinho no nordeste e com Aguisel por perto... Mas teremos muito tempo para falar nisso. E quanto a Morgause? Ela apareceu grávida em Luguvallium e a esta altura já deve ter dado à luz. Outro menino?

— Dois. Gêmeos, nascidos em Dunpeldyr, para onde foi depois do casamento de Morgan. Seja bruxa ou não — disse Artur com uma certa amargura —, ela é uma boa parideira de homens. Quan­do Lot voltou a se reunir conosco aqui em Rheged, vangloriava-se de ter deixado outro menino na barriga da mulher antes de partir de Dunpeldyr. — Ele abaixou o olhar e mexeu as mãos. — Você deve ter conversado com ela por ocasião do casamento. Descobriu alguma coisa sobre o outro menino?

Não precisei perguntar de quem Artur estava falando, mas me pareceu que não conseguia dizer "meu filho".

— Só que ele está vivo.

Seus olhos se ergueram rapidamente para mim. Houve um brilho neles, reprimido no mesmo instante. Eu poderia jurar que foi de alegria. Anteriormente Artur só pensava em encontrar o menino para matá-lo.

— Morgause me disse que não sabe onde ele está — falei, forçando-me a ocultar a pena que eu sentia. — Ela pode estar mentindo, não tenho certeza. Mas deve ser verdade que o man­teve escondido de Lot. Agora poderá apresentá-lo a todos. Com a morte do marido, tem pouco a temer. Você, talvez?

Artur voltou a olhar para as mãos.

— Quanto a isso, ela não precisa ter medo de mim. — Seu tom foi duro, contido.

É tudo que me lembro dessa conversa. Ouvi alguém falar, mas tive a impressão de que o som ecoava baixinho, acompanhando as paredes curvas da torre, ou então existia apenas em minha cabeça.

"Ela é a mulher mais falsa que existe, Grande Rei, mas deve viver para criar os quatro filhos que teve com o rei de Orkney, porque eles serão seus fiéis súditos e os mais valentes de seus Companheiros."

Devo ter fechado os olhos, incapaz de lutar contra a onda de exaustão que tomava conta de mim, e adormecido porque quando os abri novamente era noite. Artur saíra e o criado estava ajoe­lhado ao lado da cama, me oferecendo um prato de sopa.

 

Tenho boa saúde e me recupero rapidamente. Logo depois dessa conversa, deixei a cama e cerca de quinze ou vinte dias depois já me sentia forte o bastante para seguir Artur, rumando para Caerleon. Ele viajara para lá duas semanas antes, porque um mensageiro trouxera a notícia de que navios de guerra haviam sido avistados no estuário do Severn, indicando que novos com­bates estavam próximos.

Eu teria gostado de ficar um pouco mais em Galava, onde passaria o verão e visitaria meus antigos esconderijos na floresta, mas depois da chegada do mensageiro decidi que não poderia perder mais tempo, embora Ector e Drusilla insistissem para eu ficar. Não havia tempo a perder. A batalha agora era iminente e teria Caerleon como quartel general e, segundo o relatório, pa­recia que os invasores estavam decididos a destruir a principal fortaleza e centro de suprimentos do Grande Rei. Eu não tinha dúvidas de que Artur defenderia Caerleon, mas sentia que era mais do que hora de eu voltar a Caer Camel para ver como Derwen agira em minha ausência.

O verão já estava em plena força quando visitei o lugar e constatei que a equipe liderada pelo engenheiro fizera maravilhas. A visão que eu tivera do local e desenhara em minhas plantas ia se tornando realidade. As obras externas estavam prontas e a grande muralha dupla, que misturava pedras com madeira, en­cimava o platô. Perfurando-a em dois cantos opostos, os portões constituíam uma cena impressionante. As espessas portas duplas de carvalho, com cravos de ferro, estavam abertas e sobre elas corria o caminho de ronda atrás de suas ameias.

Já havia sentinelas ali. Desde o inverno, como Derwen me informara, o rei mandara armar o local e agora o trabalho de acabamento estava bem protegido pela muralha e podia avançar sem interrupções. O Grande Rei mandara comunicar que em julho ou agosto pretendia estar lá com seus companheiros e toda a cavalaria.

Derwen achava que devíamos apressar as obras do quartel-general e os aposentos do rei, mas eu conhecia bem a mente de Artur e dei ordens para que o alojamento dos homens, cocheiras, cozinhas e áreas de serviço fossem terminadas em primeiro lugar. Os edifícios centrais também estavam bem adiantados, mas o rei, nessa primeira visita oficial, ficaria numa tenda de peles e madeira, como se ainda estivesse no campo de batalha.

Não houve falta de mão-de-obra local. O povo que morava perto, grato pela edificação de uma fortaleza junto de suas aldeias, viera espontaneamente para ajudar a carregar e transportar, ou para oferecer seus ofícios aos nossos trabalhadores. No meio de toda essa gente tinham vindo homens jovem demais ou velhos demais, que Derwen pretendia dispensar, mas eu os incumbi de limpar o mato de um trecho de terreno não muito distante do edifício do quartel general, onde antigamente devia ter existido um templo. Nem eu nem eles sabiam a que deus o local fora consagrado, mas conheço bem os soldados e sei que os guerreiros sentem necessidade de ter um centro espiritual, onde encontram sempre uma luz e um pequeno altar para receber oferendas es­peciais, na tentativa de convencer seu deus a descer entre eles para um momento de comunhão, em que a força pode ser rece­bida em troca de fé e esperança.

A limpeza e recuperação da fonte no alto da encosta norte, agora incluída no perímetro fortificado, ficaram a cargo das mu­lheres. Depois que os lenhadores cortaram os troncos mais grossos dos arbustos fibrosos e espinheiros, chamei-as e expliquei que o local ficaria ao seu cuidado e elas estavam mostrando grande disposição, pois era do conhecimento de todos que a fonte, em tempos imemoriais, fora consagrada à Grande Deusa. Devido aos muitos anos de abandono, o mato a cobrira por completo, impedindo que as mulheres fossem fazer suas oferendas e ora­ções. De início percebi que elas receavam que o santuário ficasse num local habitado apenas por homens, mas informei-as de que, assim que os saxões fossem expulsos, o Grande Rei pretendia transformar Caer Camel numa bela cidade, onde homens e mu­lheres entrariam e sairiam em paz, algo muito distante de um acampamento de guerreiros.

Finalmente, na parte mais baixa do platô, perto do portão nor­deste, abrimos um bom espaço para o povo e seu gado terem onde se refugiar e morar, se houvesse algum perigo.

Artur chegou. Durante a noite subitamente acendeu-se uma fogueira na principal estação de sinal, no alto do monte da ilha no lago, e por trás de seu brilho podia-se avistar o ponto de luz na baliza mais distante. Assim que o sol saiu Artur veio caval­gando pela margem do lago, à frente de seus cavaleiros. O branco continuava sendo sua cor; branco era o cavalo, branca sua ban­deira e branco seu escudo, que orgulhosamente não exibia faixas ou pinturas como os de seus cavaleiros. Na névoa perolada da madrugada, sua figura se destacava e me fez lembrar de um altivo cisne real deslizando nas águas tranqüilas do lago. Logo depois eles foram escondidos de vista pela vegetação ao sopé do morro e daí por diante só escutamos as patas dos cavalos per­correndo a nova estrada em curvas que chegava ao portão prin­cipal.

As pesadas portas de carvalho já estavam abertas para rece­bê-lo. Na parte interna, alinhados nas beiras do caminho recen­temente pavimentado, esperavam todos os que haviam partici­pado das obras. Assim, pela primeira vez> Artur, o valoroso co­mandante de batalhas, Grande Rei entre os outros reis da Bre­tanha, entrou na fortaleza que mais tarde viria a ser a sua bela cidade de Camelot.

 

Nem preciso dizer que Artur ficou extremamente satisfeito com o que viu. Naquela noite houve uma comemoração, para a qual foram convidados todos os homens, mulheres e crianças que tinham contribuído para a construção do lugar. O rei e seus cavaleiros, eu, Derwen e mais algumas pessoas nos sentamos no salão inacabado, diante da longa mesa que fora lixada há tão pouco tempo que ainda havia poeira no ar, formando halos em torno das tochas. Foi uma festa alegre, sem qualquer tipo de solenidade, como uma comemoração depois de uma batalha. Ar­tur fez um discurso, do qual não me lembro de nem uma só palavra, falando bem alto para ser ouvido pelo povo que se aco­tovelava do lado de fora. Logo depois de ser servida a comida, ele se levantou e, com um pedaço de carneiro assado numa mão e uma taça de vinho na outra, saiu do salão e começou a caminhar pelo lugar, parando ora aqui, ora ali, conversando com todos para ver se estavam bem servidos, examinando, interrogando, elogiando, no seu antigo jeito entusiasmado. Pouco tempo depois, quando o temor e respeito dos homens começaram a se derreter diante de tanta simpatia, eles começaram a fazer as mais variadas perguntas: O que acontecera em Caerleon? Em Linnuis? Em Rheged? Quando o rei viria morar em Caer Camel? Qual era a prob­abilidade de os saxões penetrarem nessa parte do país? Isso ou aquilo, aquela história que contavam, era verdade? A todos Artur respondia com paciência e honestidade, pois acreditava que as pessoas deviam ser informadas do que as aguardava, para se prepararem melhor para enfrentar o perigo.

Tudo isso aconteceu dentro do antigo estilo de Artur, quando era o jovem rei que acabara de ser coroado. Sua aparência também voltara ao normal. O cansaço e a desesperança tinham desapa­recido; a dor do luto fora posta de lado; ali estava novamente o rei que gozava da total confiança de seus súditos, do qual os homens extraíam força, sem nunca enfraquecê-lo. Pela manhã não haveria ali alguém que não estivesse disposto a morrer pelo jovem soberano. O fato de ele saber disso e ter plena consciência do efeito que causava em nada atingia sua grandeza.

Como geralmente acontecia, conversamos um pouco antes de dormir. Não tivéramos oportunidade de falar em particular desde Galava. Artur perguntou sobre minha saúde e em seguida quis ser inteirado do que eu fizera em Caer Camel e do que seria construído em seguida. Depois de algum tempo falei algo sobre a mudança que ocorrera nele. Artur fitou-me por alguns instantes e começou a falar, como se tivesse tomado uma decisão.

— Existe uma coisa que queria lhe dizer, Merlin. Não sei se tenho o direito, mas vou falar assim mesmo. Na última vez em que nos vimos em Galava, por mais doente que você estivesse, deve ter captado algo do que eu estava sentindo. Aliás, como não teria notado? Eu, como sempre, joguei todos os meus pro­blemas em suas costas, sem me preocupar se você estava ou não em condições de suportá-los.

— Não me recordo disso. Conversamos e eu lhe perguntei o que tinha acontecido.

— É verdade. Agora estou lhe pedindo para me ouvir de novo. — Ele fez uma breve pausa para reunir seus pensamentos. Parecia estranhamente hesitante, nas logo em seguida começou: — Uma vez você me disse que a vida se divide em períodos de luz e trevas, tal como o dia. É verdade. Uma infelicidade parece criar outra... foi o que aconteceu comigo. Passei um tempo de escuri­dão, o primeiro de minha vida. Quando fui vê-lo eu estava meio morto de cansaço, abalado com as duas mortes; era como se o mundo tivesse azedado e a sorte sumido. A perda de minha mãe não me causou grande dor, você sabe bem como eu me sentia em relação a ela. Para ser franco, eu choraria muito mais a morte de Drusilla ou de Ector. Mas a morte de minha rainha, a pequena Guenever... Poderia ter sido um bom casamento, Merlin, creio que o amor cresceria entre nós. O que me deixou profundamente amargurado foi a perda da criança e vê-la sofrer tanto antes de morrer, e em especial a suspeita de que ela fora envenenada por inimigos meus. Acrescentado a isso, e vou ser sincero, havia a perspectiva desagradável de ter de começar tudo de novo, pro­curar uma noiva e passar por todo o cerimonial de casamento quando existe tanta coisa por fazer.

— Você não pode estar acreditando que ela foi assassinada. Eu...

— Não. Você me tranqüilizou a esse respeito. Tive o mesmo receio em relação a sua doença, imaginando que eu seria o cul­pado indireto de sua morte. Essa foi a pior parte do meu período de escuridão. — Ele fez um gesto de resignação. — Você sempre me disse que eu sempre o teria por perto nas horas difíceis, o que tinha sido verdade até então. Mas, de repente, na hora em que mais precisei, não pude contar com você. As obras em Caer Camel apenas iniciadas, mais combates à vista e, depois deles, a organização do país, a criação de uma legislação, o estabelecimento de uma ordem civil, tantas coisas... E você assassinado. Por Deus, juro que eu teria matado a rainha de Orkney se ela tivesse cruzado meu caminho naquela época!

— É compreensível. Continue.

— Você agora já está sabendo de minhas vitórias no campo de batalha. Outros homens poderiam pensar que minha sorte estava no auge mas, para mim e em especial por causa de sua perda, era como se eu estivesse na mais escura profundeza da vida. E eu não sofria apenas devido aos sentimentos que existem entre nós, a amizade, o amor até, mas também pelo motivo que nem preciso repetir. Você sabe que me acostumei a pedir sua orientação sobre tudo, menos em assuntos relacionados com a guerra.

Artur parou de falar. Esperei que continuasse mas, quando se manteve em silêncio, eu disse:

— Bem, essa é minha função. Ninguém, nem mesmo um Gran­de Rei pode fazer tudo sozinho. Você é ainda muito jovem, Artur. Mesmo Ambrosius, com anos e anos de experiência, procurava se aconselhar nas mais variadas situações. Isso não é sinal de fraqueza, mas de prudência.

— Sei disso e não é o que estou tentando dizer. Quero lhe contar sobre uma coisa que aconteceu quando você estava doente. Fiz alguns reféns depois da batalha na floresta de Rheged. Os saxões fugiram para uma colina onde o mato era espesso, não muito distante da torre onde o encontramos. Cercamos a colina e atacamos por todos os lados, matando sem piedade, até restar apenas uns poucos homens, que se renderam incondicionalmente. Creio que todos teriam feito isso antes, mas eu não lhes dei opor­tunidade. Eu queria matar, essa é a verdade. Mas finalmente os sobreviventes se entregaram. Um deles era o antigo segundo em comando de Colgrim, um homem chamado Cynewulf. Por mim eu o teria matado ali mesmo, mas a essa altura ele estava total­mente desarmado. Libertei-o posteriormente sob a promessa de que ele pegaria seus navios e voltaria para seu país, e fiz reféns como garantia.

— Sim, foi uma medida bastante sábia, mas sabemos que não funcionou — falei sem expressão porque já estava a par do que acontecera.

— Merlin, quando soube que em vez de voltar para a Germânia, Cynewulf fora para outra parte de nosso litoral e estava incendiando aldeias, mandei matar os reféns.

— Você não teve escolha. Cynewulf não podia ter ilusões. É o que ele teria feito em seu lugar.

— Ele é um bárbaro, um estrangeiro. Eu sou diferente e penso que Cynewulf sabia disso. Deve ter pensado que eu não cumpriria a ameaça. Alguns dos reféns eram pouco mais do que meninos. O mais novo tinha treze anos, menos do que eu quando comecei a lutar. Foram trazidos à minha presença e eu ordenei sua morte.

— Você agiu certo. Agora esqueça o que aconteceu.

— Como? Eles se comportaram com grande valentia no com­bate. Mas eu tinha feito a ameaça e tive de cumpri-la. Você falou sobre uma mudança em mim e estava certo. Não sou mais o homem que eu era antes do inverno passado. Essa foi a primeira coisa realmente má que fiz até agora nas guerras.

— Todos fizemos coisas que gostaríamos de esquecer — falei pensando no comportamento de Ambrosius em Doward e em mim mesmo em Tintagel. — Talvez a guerra em si seja uma coisa má.

— Mas não estou lhe contando isso porque desejo seu conselho ou compaixão — disse Artur com impaciência. Fiquei esperando, sem saber o que pensar. Ele então continuou, escolhendo bem as palavras. — Essa foi a pior coisa que tive de fazer até agora, mas o que passou, passou. O que preciso lhe dizer é isto: se você estivesse ao meu lado, eu teria pedido sua opinião e, apesar de você já ter me dito que não possuía mais o poder da profecia, eu ainda teria esperanças... não, mais do que isso, certeza... de que você podia ver o que o futuro reservava e me aconselharia sobre o caminho a tomar.

— Mas seu profeta estava morto e você teve de escolher so­zinho o seu caminho.

— Exatamente.

— Entendo. Está querendo me dizer que agora tanto os atos como as decisões devem ser tomadas unicamente por você, em­bora eu tenha voltado.

— Não! — Artur usou um tom vigoroso. — Você me entendeu mal. Estou querendo lhe dizer algo completamente diferente. Por acaso pensa que não sei que você tem enfrentado um período de trevas desde que tirei a espada da pedra? Desculpe-me se estou me intrometendo em assuntos que não compreendo, mas quem olha para o que aconteceu desde então... Merlin, o que estou querendo lhe dizer é que... que acredito que seu deus con­tinua com você.

Houve um silêncio só perturbado pelo chiado da chama no lampião de bronze e pelos ruídos muito, muito distantes do acam­pamento lá fora. Estudamo-nos um ao outro, ele ainda no auge da juventude, eu envelhecido e tremendamente debilitado devido a minha recente doença. E, de uma maneira muito sutil, o equi­líbrio que havia entre nós estava se modificando ou já mudara por completo. Agora era Artur quem me oferecia força e consolo. Seu deus continua com você. O que o fazia pensar assim, quando só precisaria se recordar de que meu poder agora estava limitado aos truques de magia mais triviais, de minha falta de defesa contra Morgause, de minha incapacidade de descobrir qualquer coisa sobre Mordred? No entanto, ele não falara com a apaixonada convicção da juventude, mas com a calma certeza de um expe­riente juiz.

Voltei a pensar no passado, afastando de mim, pela primeira vez depois da doença, a apatia que substituíra a anterior tranqüila aceitação. Comecei a perceber onde estava a mente de Artur. Poder-se-ia dizer que eram os pensamentos de um general que consegue extrair uma vitória de uma retirada estratégica ou de um condutor de homens que é capaz, de com uma única palavra, transmitir confiança.

Seu deus continua com você, dissera. Como então explicar a be­bida envenenada, os meses de sofrimento que tinham me afastado de seu lado, obrigando-o a exercer um solitário poder? Estaria ele comigo, embora Artur não soubesse disso, na intuição que me levara a negar o envenenamento para salvar Morgause, a mãe daqueles quatro filhos, de sua vingança? Estaria comigo na perda de Mordred, cuja sobrevivência trouxera um brilho de ale­gria ao olhar de Artur? Estaria comigo quando finalmente eu sofrerá um tipo de enterro em vida que tanto temia, deixando Artur sozinho na face da terra, com Mordred, a mão do seu destino, ainda vivo?

Como se fosse o primeiro sopro de vento para um marinheiro preso numa calmaria, senti a esperança surgindo em mim. Então, além de aceitar eu devia esperar pela volta do deus com toda sua luz e força. Sim, tanto na maré baixa como na alta, podia-se sentir a plena força do mar.

Inclinei a cabeça como um homem aceitando um presente de um rei. Não havia necessidade de falar. Lemos um a mente do outro. Depois, com uma total mudança de tom, Artur perguntou:

— E então, quando este lugar ficará pronto?

— Se falarmos em termos defensivos, dentro de um mês. Está praticamente pronto.

— Foi o que me pareceu. Posso vir de Caerleon com armas e bagagens?

— Na hora que quiser.

— E depois? Quais são seus planos para si mesmo até seus serviços serem necessários para a construção em tempos de paz?

— Não fiz planos. Talvez volte para minha casa.

— Não. Fique aqui.

As palavras soaram como uma ordem. Ergui minhas sobran­celhas, intrigado.

— Merlin, estou falando sério. Quero você aqui. Não precisa­mos dividir o poder do Grande Rei em dois antes de chegar a hora em que seremos obrigados a isso. Está me entendendo?

— Sim.

— Então fique. Construa uma residência para você e fique mais algum tempo longe de sua maravilhosa caverna em Gales.

— Está bem, ficarei — prometi sorrindo —, mas não aqui, Artur. Preciso de silêncio e isolamento, coisas difíceis de conseguir numa cidade como esta será quando você vier morar nela defi­nitivamente. Peço sua permissão para escolher um local. Quando você estiver pronto para pendurar sua espada na parede atrás do trono, minha maravilhosa caverna será aqui perto e o eremita já estará instalado, pronto a ser convocado para os conselhos. Isso, se àquela altura, você se lembrar de convidá-lo.

Artur soltou uma risada e pareceu bastante satisfeito quando me deu boa-noite.

 

No dia seguinte, Artur e seus Companheiros voltaram para Ynys Witrin e eu os acompanhei porque havíamos sido convidados pelo rei Melwas e sua mãe, a rainha, para uma cerimônia de Ação de Graças pelas recentes vitórias do rei.

Embora houvesse uma igreja cristã na ilha e um mosteiro no morro que ficava perto do poço sagrado, a deidade reinante do lugar continuava sendo a deusa, a Mãe cujo santuário já existia ali desde tempos imemoriais e que era, como ainda hoje, servida pelas suas sacerdotisas, as ancillae. O culto é similar ao do fogo vestal da antiga Roma, mas creio que veio muito antes dele. O rei Melwas, como a maioria de sua gente, seguia os velhos deuses e sua mãe, uma imponente matrona, adorava a deusa e fora ex­tremamente generosa com suas virgens. Naquela época, a dama do santuário, como é chamada a suma sacerdotisa, era sua pa­rente.

Embora Artur tivesse sido criado num lar cristão, não me sur­preendi ao vê-lo aceitar o convite, mas nem todos agiram assim. Enquanto nos reuníamos perto do portão do rei, prontos a ini­ciarmos a cavalgada, captei um ou outro olhar de desagrado entre os Companheiros.

Artur percebeu para onde eu olhava, sorriu e falou baixinho:

— Será que preciso explicar para você?

— Claro que não. Sem dúvida você pensou que Melwas será seu vizinho mais próximo e ele o ajudou muito nesta obra. Tam­bém compreendeu a importância de agradar a velha rainha. E, naturalmente, está lembrando da vacas e do que lhe disseram sobre agradar à deusa.

— Vacas? Oh, o velho! Sim, claro. Eu devia imaginar que nada escaparia a você. A propósito, o convite foi veio da dama em pessoa. O povo da ilha quer dar graças pelas vitórias do ano e pedir uma bênção para Caer Camelot. Meu receio é que alguém lhes conte que usei a lembrança de minha mãe durante toda a campanha em Caer Guinnion!

Ele falava do talismã cristão, o broche com o nome MARIA gravado.

— Não precisa se preocupar com isso. Aquele santuário é tão antigo como a terra e, seja qual for a deusa que você invocar lá, a resposta virá de uma só, da única que existe desde o começo. Bem, pelo menos é o que eu penso... Mas o que dirão os bispos?

— Sou o Grande Rei — disse Artur, terminando a conversa. Nesse instante Bedwyr, que fora dar algumas instruções aos guardas dos portões, veio juntar-se a nós e logo estávamos des­cendo a encosta.

Era um dia agradável, embora cinzento, com a promessa de chuvas de verão nas nuvens. Em pouco tempo saímos da área arborizada e começamos a percorrer o terreno pantanoso. Em ambos os lados da estrada havia lençóis de água agitados pela brisa, cercados por choupos e salgueiros. Pequenas ilhas e touceiras de juncos pareciam flutuar na superfície prateada. A es­trada pavimentada, coberta de musgo e com samambaias cre­scendo entre as pedras, como costuma acontecer com todos os caminhos situados nessa planície, atravessa essa área pantanosa até alcançar o terreno mais alto, que faz lembrar um braço pro­tegendo uma extremidade da ilha. Logo as patas dos cavalos estavam batendo em pedras e a estrada começou a subir suave­mente. Do alto da colina avistamos o lago propriamente dito circundando a ilha, a superfície só quebrada pela estreita passa­gem elevada que começava no fim da estrada e por alguns barcos de pescadores.

Desse cintilante lençol de água elevava-se o monte chamado Tor, com a forma de um cone gigante, tão simétrico que parecia ter sido feito por mãos humanas. A seu lado ficava um morro menor, arredondado, e depois dele começava uma longa cadeia de colinas que lembrava uma perna meio submersa, onde ficavam os ancoradouros. Além deles só se via uma grande extensão de água até o horizonte, como se fosse um imenso espelho indo até a costa. De onde estávamos era fácil entender por que a ilha era chamada de Ynys Witrin, a ilha de Vidro. Atualmente, algumas pessoas a chamam de Avalon.

Havia pomares em todos os cantos de Ynys Witrin e as árvores ficavam tão próximas umas das outras que em torno do porto e no sopé do Tor só se percebia a presença da aldeia pela fumaça das chaminés. Aldeia, sim, porque, mesmo sendo a capital de um rei, não merecia uma designação mais grandiosa. Na encosta, acima do ponto onde as árvores terminavam, podia-se ver um punhado de cabanas onde moravam os cristãos, tanto eremitas como mulheres santas. Melwas não se importava com eles, que tinham até mesmo uma igreja construída perto do santuário da deusa. Vimos depois que ela era pouco mais de uma choupana, feita de pau a pique e com telhado de sapé, dando a impressão que seria arrancada do lugar pelo primeiro vendaval.

O santuário da deusa era bem diferente. Dizia-se que com o passar dos séculos o solo fora crescendo vagarosamente em torno, apossando-se dele, de modo que agora estava enterrado, como se fosse uma cripta. Eu jamais tivera a oportunidade de vê-lo porque normalmente os homens não podiam entrar nele, mas nesse dia a dama em pessoa nos esperava para apresentar as boas-vindas, com as mulheres e meninas atrás dela vestidas de branco e com véus cobrindo o rosto, todas carregando buquês de flores. A mulher idosa ao lado da suma sacerdotisa, com um rico manto e uma delicada coroa nos cabelos grisalhos, devia ser a mãe de Melwas. Nesse lugar ela ganhava precedência sobre o filho, que se mantinha um tanto afastado, cercado pelos seus comandantes e cavaleiros. O rei era um homem robusto e bonito, de cabelos castanhos e crespos, e barba sedosa. Continuava sol­teiro e corria o boato de que nenhuma mulher jamais conseguira passar pelo crivo do julgamento da rainha.

A dama saudou Artur e duas das donzelas mais jovens avan­çaram e colocaram um colar de flores em seu pescoço. Em seguida as mulheres cantaram em coro, entoando uma música suave. Nes­se momento o céu cinzento se abriu e um raio de sol caiu sobre nós, o que foi visto como um bom presságio. Todos se entreolharam e sorriram, e a música ficou mais forte. A dama virou-se e, acompanhada de suas mulheres, começou a descida pelo longa escadaria que levava ao santuário. A rainha a seguiu e atrás dela entrou Artur, um pouco afastado de nós, que constituíamos seu séquito. O rei Melwas veio em seguida, com seus acompanhantes. O povo ficou do lado de fora e durante toda a cerimônia podíamos ouvi-lo murmurando e mudando de posição enquanto esperavam por uma nova oportunidade de ver o lendário Artur, vencedor de nove batalhas.

O santuário não era grande e não havia lugar para mais nin­guém além dos~ presentes. A iluminação era feita por apenas meia dúzia de candeias perfumadas, colocadas em ambos os lados do arco que levava para o santuário interno. Na semi-escuridão os véus e vestidos brancos das mulheres tinham um brilho fantas­magórico e, entre todas, apenas a dama podia ser vista clara­mente. Ela tirara o véu, expondo a estola prateada que cobria seus ombros e um diadema que refletia o pouco de luz que havia. Sua figura altiva não deixava dúvidas de que era de família nobre.

O santo dos santos também estava protegido por véus e nin­guém, salvo as iniciadas, podia ver o que havia por trás deles. A cerimônia foi longa, ficamos em pé ali por quase duas horas. Desconfio que a dama quis aproveitar a ocasião ao máximo, talvez pensando num futuro patrocínio real, mas depois do que me pareceu uma eternidade finalmente aproximou-se o encerramen­to. A suma sacerdotisa aceitou a oferenda de Artur, apresentou-a à deusa com as orações apropriadas e depois emergimos na or­dem devida para a luz do dia, onde recebemos uma ovação do povo.

Foi um pequeno incidente, que talvez nem ficaria gravado em minha memória não fosse pelo que aconteceu mais tarde, por isso lembro-me claramente do clima festivo e agradável do dia, das primeiras gotas de chuva que caíram sobre nós enquanto saíamos do santuário e dos pássaros chilreando alegremente nos arbustos dourados pela abundância da pequena flor amarela a que chamam de brinco-de-princesa. O caminho para o palácio de Melwas passava por entre gramados cortados por pequenos bosques de macieiras, sob as quais as ancillae, que praticavam as artes da cura, tinham plantado canteiros de ervas medicinais. Isso me fez pensar que, se eu viesse a morar nessa região, teria pelo menos um solo melhor para minhas plantas do que o en­contrado no monte perto de Maridunum, onde ficava minha ca­verna.

A festa no palácio de Melwas se destacou pela excelência e variedade de pratos feitos com peixe e frutos do mar. O vinho, muito bom, viera de uvas cultivadas na parte seca do reino, a uns sessenta quilômetros dali, vinhedo que recentemente fora destruído numa das investidas dos saxões, que pareciam mais ousados nesse verão.

Deixamos o palácio antes da meia-noite e a lua quase cheia iluminava nosso caminho. Ela estava baixa, parecendo muito pró­xima do pico do Tor, delineando com seu jogo de luz e sombra as muralhas da fortaleza de Melwas que o encimava, sendo o lugar para o povo se refugiar em caso de algum ataque. O palácio do rei, onde fôramos recebidos, ficava na parte plana, pouco aci­ma do nível da água.

Uma névoa forte estava se elevando do lago, chegando até os joelhos de nossos cavalos. Logo o estreito caminho elevado ficaria escondido por ela. Melwas, que ia à nossa frente com seus tocheiros, nos guiou até chegarmos à margem onde começava a estrada pavimentada.

Quando olhei para trás, enquanto o rei se despedia de Artur, vi que o lago dava a impressão de ser feito de uma bruma espessa e fofa, de cujo centro elevava-se apenas o Tor. A lua subira e agora o céu estava escuro atrás dele. Perto da torre de sinalização, no alto da trilha em espiral que levava à fortaleza, uma luz brilhou e se mexeu.

Senti minha pele se arrepiar, como a de um cachorro diante de um espectro. O Tor era sabidamente um dos portões para o outro mundo e por um átimo de segundo imaginei se minha vidência havia voltado e eu estava avistando um dos guardiões do lugar, um dos espíritos flamejantes que tomavam conta do portão. Mas então tudo ficou mais claro e pude ver que era um homem com uma tocha, correndo pela trilha para ir acender a fogueira de sinalização.

Enquanto eu esporeava meu cavalo, ouvi a voz de Artur se erguer numa ordem sucinta. Um dos cavaleiros separou-se de nós e avançou num galope. Os outros, subitamente em silêncio, apressaram o passo dos cavalos, mas continuaram juntos enquan­to atrás de nós as chamas no alto do Tor erguiam-se na noite, chamando o Artur, o vencedor de nove batalhas para mais um combate.

 

A inauguração de Caer Camel coincidiu com o início de uma nova campanha que durou quatro anos, com seus sítios, escara­muças, ataques de surpresa e tocaias, e por duas vezes, já no final desse período, Artur triunfou sobre o inimigo num combate importante.

A primeira dessas duas batalhas ocorreu em resposta a um chamado de Elmet. O próprio Eosa viera da Germânia liderando guerreiros descansados que se juntariam aos saxões ocidentais já estabelecidos ao norte do Tâmisa. Cerdic formou a terceira ponta do triângulo invasor com uma força trazida em chalupas desde Rutupiae. Foi a pior ameaça desde Luguvallium. Os inva­sores chegaram em força no vale e estavam agindo segundo Artur previra desde muito tempo, pretendendo vencer a barreira mon­tanhosa pelo vão. Surpresos e talvez desconcertados com a pron­tidão do forte em Olicana, eles permaneceram ali, enquanto a mensagem era enviada a galope para o sul. A força saxã ocidental, de considerável tamanho, ficou centrada em Olicana, contida pelo rei de Elmet, mas os dois outros exércitos conseguiram avançar para o oeste por meio do passo. Artur, progredindo rapidamente pela estrada oeste, atingiu o forte Tribuit antes deles e surpreen­deu-os em Nappa Ford, onde os venceu numa verdadeira luta corpo a corpo. Em seguida, dirigiu-se a Olicana à frente da ca­valaria ligeira e, junto com o rei de Elmet, expulsou o inimigo de volta ao vale. O contra-ataque continuou também no sul e leste, até os invasores recuarem para as fronteiras que anterior­mente os continham e o "rei" saxão admitir a derrota.

Essa derrota, porém, ainda não seria a final. A fama do Grande Rei agora era tal que a simples menção de seu nome passara a significar vitória e a frase: "Artur está chegando" era um sinônimo para salvação. Quando ele voltou a ser chamado à região, assim que a temida cavalaria com o cavalo branco à frente e a figura de um dragão cintilando nos capacetes das armaduras apareceu no passo de Agned, o inimigo de dispersou em pânico e a ação foi mais uma perseguição do que uma batalha, pouco além de uma limpeza de território depois de um grande combate. Durante todas essas lutas, Gereint, que conhecia cada centímetro daquela parte do país, participou da cavalaria, ocupando um cargo de comando digno de sua capacidade. Era assim que Artur recom­pensava os que o ajudavam.

Tendo sido ferido em Nappa, Eosa nunca mais voltou ao cam­po de batalha e foi Cerdic, o Aetheling, que liderou os saxões em Agned e fez o possível para mantê-los unidos diante do apa­vorante ataque de Artur. Disseram que mais tarde, enquanto re­cuava num arremedo de ordem para os barcos que os esperavam, Cerdic jurou que quando voltasse a pôr o pê em território bretão seria para ficar e que nem mesmo Artur o impediria de atingir seu objetivo.

Mas, para isso, como eu poderia ter-lhe contado, ele teria de esperar até Artur não estar mais na face da terra.

 

Jamais foi minha intenção neste relato dar detalhes sobre os anos de lutas, pois desde o início pretendi que esta obra não seria um relato político. Além disso, atualmente todos já sabem sobre a campanha de Artur para liberar a Bretanha e limpar seu litoral dos invasores, cuja história foi escrita numa casa em Vindolanda, por mestre Blaise e o solene e calado secretário que de vez em quando aparecia para ajudá-lo. Aqui apenas repetirei que nenhuma vez, em todos os anos que foram necessários para Artur conter definitivamente os saxões, usei de mágica ou profecias para ajudá-lo. A história desse período fala de bravura humana, resistência e dedicação. Passaram-se sete anos de trabalho árduo, onde houve pelo menos doze grandes batalhas, antes de o jovem rei poder considerar o país finalmente seguro para a agricultura em maior escala e para as artes da paz.

Não é verdade, como costumam contar cantores e poetas, que Artur expulsou todos os saxões das costas da Bretanha. Ele acabou reconhecendo, como Ambrosius fizera anteriormente, que seria impossível limpar por completo a área ocupada por eles, uma região de relevo difícil e que, além disso, oferecia a possibilidade de uma rápida retirada para o mar. Desde a época de Vortigern, que os convidara a entrar na Bretanha como aliados, o litoral sudeste de nosso país era território saxão, com seus próprios governantes e leis, daí haver uma certa justificativa para Eosa reivindicar o título de rei. Se Artur decidisse ir até o fim, teria de expulsar dali moradores de terceira geração, nascidos e criados nessa costa, obrigando-os a embarcar para o país de origem de seus avós, onde talvez fossem tão mal recebidos como aqui. Ora, os homens lutam desesperadamente quando se trata de defender seus próprios lares e Artur tinha plena consciência de que uma coisa era vencer batalhas em campo aberto e outra, bem diferente, seria entrar em constantes escaramuças com homens escondidos em morros e florestas, de onde jamais seriam totalmente desa­lojados, resultando numa guerra onde nunca haveria uma vitória final. Ele tinha diante de si o exemplo dos Antigos, que, desalo­jados de suas terras pelos romanos, haviam fugido para o alto das cadeias montanhosas. Passados quatrocentos anos, eles con­tinuavam lá, em suas remotas fortalezas, enquanto seus inimigos há muito haviam se retirado da ilha. Portanto, aceitando o fato de que existiam reinos saxões dentro da Bretanha, Artur concen­trou-se em manter as fronteiras seguras, de modo a desencorajar pretensões expansionistas.

Foi nessas circunstâncias que o Grande Rei completou os vinte e um anos de idade. Ele voltou a Camelot no final de outubro e convocou uma série de conselhos. Eu assisti a todos eles e às vezes era convidado a dar uma opinião, mas na maior parte do tempo fiquei vendo e ouvindo. Minhas orientações eram dadas em particular, por trás de portas fechadas, e aos olhos do público as decisões eram tomadas apenas pelo rei, o que em grande parte refletia a verdade, porque cada vez mais eu confiava no seu jul­gamento. Artur às vezes era impulsivo e em muitos assuntos carecia de experiência ou antecedentes, mas jamais se deixava levar pela impulsividade em suas avaliações e, apesar de ser ra­zoável esperar até arrogância de alguém tão bem sucedido, criara o hábito de deixar seus comandados falarem à vontade, de modo que, quando finalmente as decisões do rei eram anunciadas, cada um deles imaginava estar ouvindo pelo menos parte de suas idéias.

Numa das últimas reuniões falou-se sobre um novo casamento do rei. Vi que Artur não esperava por isso, mas se manteve em silêncio e depois de algum tempo mostrou-se mais à vontade, pronto a ouvir as opiniões dos conselheiros idosos. Esses homens sabiam listar de cor os nomes, propriedades e linhagens das fa­mílias nobres. Ocorreu-me, enquanto eu os observava, que eles eram os mesmos que de início não tinham aceitado a proclamação de Artur como Grande Rei. Agora nem mesmo os Companheiros se mostravam mais leais do que eles. Artur os conquistara, com conquistara tudo o mais, e qualquer um juraria que havia sido cada um deles que descobrira "Emrys" na floresta Selvagem e lhe entregara a espada.

Qualquer um também pensaria que cada um desses homens estava falando sobre o casamento de um filho predileto. Houve muito confiar de barbas e acenos de cabeça, vários nomes foram sugeridos e analisados, mas nenhum deles recebeu aprovação unânime, até que um dia um homem de Gwynedd, que estivera ao lado de Artur em todas as batalhas e era parente do grande Maelgon, levantou-se e fez um discurso sobre sua terra natal.

Ora, convidar um galés moreno para se levantar e falar é como chamar um bardo para contar uma história: a coisa é feita dentro de uma determinada ordem, na cadência certa e não tem tempo para terminar. A beleza na voz do homem era tanta que depois de alguns minutos os outros participantes da reunião se acomo­daram confortavelmente para ouvir suas palavras, como se esti­vessem numa festa.

O tema de sua explanação parecia ser sua terra natal e ouvimos uma emocionada descrição da beleza de seus vales e montanhas, dos lagos azuis, do mar revolto, dos veados, águias e pássaros canoros, da bravura de seus homens e beleza das mulheres. De­pois foi a vez dos poetas e trovadores, dos pomares e campinas floridas, da riqueza dos rebanhos de gado e carneiros, e dos veios de minério nas rochas, ao que se seguiu a história das guerras e lutas na região, da coragem na derrota, da tragédia da morte dos moços e fecunda beleza do amor entre os jovens.

O homem estava chegando ao ponto. Vi Artur mexer-se na poltrona.

E, disse o orador, a riqueza, a bravura e a beleza de sua terra natal estavam presentes no sangue de seus reis, uma família... Nessa altura eu já não prestava atenção às suas palavras; estivera olhando fixamente para Artur à luz bruxuleante de um lampião mal ajustado e a cabeça me doía... que parecia ter uma genealogia tão antiga como a de Noé e seguramente duas vezes mais longa...

Havia, é claro, uma princesa: jovem, bela, descendente de uma dinastia de reis galeses que se unira a um nobre clã romano. O próprio Artur não era tão bem nascido... E agora todos entende­ram por que um panegírico tão longo e o olhar meio de soslaio para o jovem rei.

O nome dela, soubemos então, era Guinevere.

 

Eu os vi novamente. Bedwyr, moreno e ansioso, olhando para o amigo com amor e respeito. Artur-Emrys, já líder aos doze anos, cheio de energia e planos. E a sombra branca da coruja planando sobre eles, a guenhwyvar de uma paixão e um sofri­mento, de grandes obras e uma busca que levaria Bedwyr para o interior de um mundo espiritual, deixando Artur solitário, es­perando no centro da glória para tornar-se uma lenda...

Voltei para o salão. Minha cabeça parecia estalar de dor. A luz forte foi como lanças entrando em meus olhos. Sob a túnica, o suor escorria pelo meu corpo, as mãos úmidas escorregaram nos braços da poltrona. Precisei lutar para acalmar a respiração e tranqüilizar o coração, que batia como um martelo contra as costelas.

Ninguém notou minha ausência. Um bom tempo se passara e o conselho perdera a formalidade. Artur agora estava no centro de um grupo, conversando e rindo. Em torno da mesa os homens mais velhos, plenamente à vontade, trocavam idéias. Os criados haviam trazido vinho. A conversa me envolveu por todos os lados, como se fosse uma maré subindo, e nela ouvi as notas de triunfo e alívio. Estava tudo decidido: haveria uma nova rainha e uma nova sucessão. As guerras tinham acabado e a Bretanha, agora sozinha no antigo território submisso aos romanos, vivia segura atrás de seus bastiões.

Artur virou-se para mim e nossos olhares se encontraram. Eu não disse nada, mas o sorriso morreu em seu rosto. Ele levan­tou-se e avançou tão rápido como uma flecha, fazendo sinal para seu grupo ficar onde estava para que não escutasse nossa con­versa.

— Merlin, o que foi? Esse casamento? Você está pensando que...

Balancei a cabeça e a dor foi como uma serra cortando meu cérebro. Penso que gritei. A conversa diminuíra quando o rei se levantara tão subitamente e agora havia um total silêncio. Silêncio, olhos e a luz bruxuleante das chamas.

Artur inclinou-se, como se fosse pegar minha mão.

— O que foi? Você está doente? Merlin!

Sua voz aumentou, ecoou e foi levada embora. Ela não dizia respeito a mim. Nada me interessava senão a necessidade de falar. As chamas dos lampiões queimavam em algum lugar dentro de meu peito e o óleo quente se derramava em meu sangue. A respiração veio espessa, como se houvesse fumaça em meus pul­mões. Quando finalmente encontrei as palavras, elas me sur­preenderam. Eu não vira nada além dos meninos na Capela Pe­rigosa, há muito tempo, uma visão que se repetia e que talvez nem tivesse um significado especial, mas o que me ouvi dizendo numa voz áspera e sonora fez Artur se endireitar como se tivesse levado um golpe e todos os outros se levantarem, espantados:

— Ainda não acabou, rei! Pegue seu cavalo e parta! Eles rom­peram a paz e se aproximam de Badon! Homens e mulheres estão morrendo afogados em seu próprio sangue e as crianças choram antes de serem estranguladas como galinhas! Não existe nenhum rei por perto para protegê-los! Vá para lá agora, duque dos reis! Só você pode ajudá-los, o povo grita por você! Vá com seus Companheiros e ponha um fim a esse massacre! Porque, pela Luz, Artur da Bretanha, esta é a última vez e a última vitória! Vá agora mesmo!

As palavras ecoaram no silêncio. Os que nunca antes haviam me ouvido falar tomado do poder estavam pálidos; todos fizeram o sinal. Minha respiração ressoava, como a de um moribundo lutando para afastar a morte.

Depois, do grupo de homens mais jovens vieram sons de des­crédito, até de desdém. Não era de admirar. Eles tinham ouvido contar histórias sobre meus feitos passados, mas muitas delas haviam sido compiladas por poetas e agora, ao ser cantadas por trovadores, tinham o colorido de lendas. A última vez em que eu falara assim fora em Luguvallium, antes da retirada da espada do altar, e muitos deles eram crianças na época e me conheciam apenas como médico e engenheiro, ou o discreto conselheiro que conhecia o rei desde menino.

O murmúrio aumentou em torno de mim, soando como vento soprando entre as árvores.

"Não recebemos notícia nenhuma, do que ele está falando? Como se o Grande Rei fosse dar ouvidos a essa conversa e sair correndo! Artur, e nós também, já fizemos mais do que suficiente. A paz é certa, qualquer um pode ver! Badon! Onde fica isso? Bem, nenhum saxão nos atacaria aqui, sem que... Sim, mas, se nos atacarem, nesta região não existe força para contê-los, pelo menos nisso ele tem razão... Não, é bobagem, o velho perdeu o juízo de novo. Lembra-se de como o encontramos lá na floresta? Completamente maluco... A doença pode ter voltado..."

Artur não tirara os olhos de mim. Os murmúrios iam de um lado para o outro. Alguém chamou por um médico e houve uma correria perto da porta. Artur ignorou tudo. Nós dois estávamos sozinhos ali. Ele estendeu a mão e pegou meu pulso; por entre a dor vertiginosa senti sua força jovem me obrigando a sentar. Eu não percebera que estava em pé. Alguém veio com uma taça e ele trouxe o vinho para meus lábios. Virei a cabeça.

— Não, me deixe. Vá agora. Confie em mim.

— Por todos os deuses que existem — disse ele, com voz rouca —, eu confio em você. — Deu meia volta e falou: — Você, você e você também, dêem as ordens. Vamos partir imediatamente. Cuidem de tudo, não temos tempo a perder. — Depois, falando comigo, mas num tom para todos ouvirem: — Vitória, foi o que disse?

— Vitória. Como pode duvidar?

Por um instante, no meio de ondas de dor, reconheci seu olhar. Era o do menino que ao ouvir minha ordem enfrentara a chama branca e levantara a espada do altar.

— Eu não duvido de nada — sorriu Artur, inclinando-se sobre mim. Ele me beijou na face e, seguido pelos seus Companheiros, saiu rapidamente do salão.

A dor melhorou. Eu já podia ver e respirar. Levantei-me e dirigi-me para fora, à procura de ar fresco. Os que estavam no salão se afastaram, dando-me espaço para passar. Ninguém falou ou se atreveu a,fazer perguntas. Subi para o baluarte, apoiei os cotovelos no parapeito e fiquei olhando para o horizonte. O sentinela afastou-se rapidamente, não como um soldado, mas se esgueirando, com o branco dos olhos à mostra. A notícia se espa­lhara rapidamente. Puxei minha capa para mais junto ao corpo e continuei ali, respirando fundo.

Eles já tinham partido, uma tropa pequenina que iria enfrentar o poder do último ataque saxão sobre a Bretanha. O tropel dos cavalos ainda podia ser ouvido ao longe. Em algum lugar naquela escuridão, ao norte, o Tor se erguia contra o céu sem estrelas. Nada. Olhei para o leste e para o oeste. Nenhuma luz de sina­lização, nenhuma chama, nem mesmo a de uma fogueira feita às pressas. Só minha palavra.

De repente ouvi um som na escuridão. Por um instante pensei que fosse o eco do distante tropel, mas percebi nele, muito va­gamente, gritos e choque de armaduras. Poderia ser minha vidência voltando, mas minha cabeça agora estava desanuviada e a noite, com todos os seus sons e sombras, era uma noite de mortais.

Então os sons foram se aproximando e passaram por cima de mim, muito altos. Os gansos selvagens, a matilha dos cães dos céus, a Caçada Fantasmagórica que percorre o céus liderada por Llud, o rei do Sobrenatural, em épocas de guerra e tempestade. Eles haviam se erguido das águas do lago e agora voavam acima de mim. Tinham vindo direto do Tor silencioso para sobrevoar Caer Camel e dali voltariam, passando pela ilha adormecida, até o som de suas vozes e asas se perder na distância, dirigindo-se a Badon.

Com a chegada da madrugada, as luzes de sinalização se es­palharam por todo o país, mas o homem que chefiava as hordas saxãs no ataque a Badon mal colocara o pé no solo encharcado de sangue quando do escuro e chegando mais rapidamente do viriam se avisados por pombos correio ou fogueiras acesas, o Grande Rei Artur e seus cavaleiros preferidos caíram sobre eles e os destruíram, esmagando por completo o poder bárbaro até o fim dessa geração.

Foi assim que o deus voltou para mim, Merlin, seu servo. No dia seguinte saí de Caer Camel para procurar um lugar adequado para construir uma casa.

 

                                                                                CONTINUA 

 

                      

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