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O VAGABUNDO / Bernard Cornwell
O VAGABUNDO / Bernard Cornwell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O VAGABUNDO

Primeira Parte

 

                           Inglaterra, Outubro de 1346

                           Setas no Monte

Corria o mês de Outubro, aquela época do ano em que o gado é morto para o Inverno e o vento norte traz consigo uma promessa de gelo. As folhas dos castanheiros são agora douradas, as faias parecem árvores de fogo e os carvalhos feitos de bronze. Ao crepúsculo, Thomas de Hookton, a sua mulher Eleanor e o padre Hobbe, seu amigo, chegaram a uma quinta no monte e o dono recusou-se a abrir-lhes a porta, embora lhes gritasse que podiam dormir no estábulo. A chuva açoitava o colmo enlameado. Thomas conduziu o cavalo para o abrigo que partilhavam com um monte de lenha, seis porcos numa pocilga de madeira e penas espalhadas que indicavam o local onde uma galinha tinha sido depenada. Essas penas recordaram ao padre Hobbe que era dia de São Gallus e contou a Eleanor que esse santo homem, ao regressar a casa, numa noite de Inverno, encontrara um urso que lhe roubara a ceia.

 

- Enxotou o animal - disse o padre Hobbe. - Fez-lhe um belo sermão e depois obrigou-o a ir buscar lenha.

 

- Já vi uma imagem assim - disse Eleanor. - O urso não se tornou seu servo?

 

- Sim, porque Gallus era um homem santo - explicou o padre Hobbe.

- Os ursos não vão apanhar lenha para toda a gente! Só para os santos.

 

- Um santo - interrompeu Thomas -, que é o santo patrono das galinhas. - Thomas sabia tudo a respeito de santos, mais até do que o padre Hobbe. - Para que quer uma galinha ter um santo? - perguntou com ar sarcástico.

 

- Gallus é o patrono das galinhas? - perguntou Eleanor confundida pelo tom de Thomas. - Não é dos ursos?

 

- Das galinhas - confirmou o padre Hobbe. - Ou melhor, de todas as aves de capoeira.

 

- Mas porquê? - desejava saber Eleanor.

 

- Porque uma vez expulsou um demónio de uma jovem. - O padre Hobbe, de rosto largo, cabelo todo espetado, nascera no campo, era jovem e impulsivo e adorava contar histórias dos santos. - Um grupo de bispos tinha tentado expulsar o demónio - continuou. - Todos eles falharam, mas o bendito Gallus apareceu e amaldiçoou o demónio. Rogou-lhe uma praga e ele guinchou de terror - o padre Hobbe acenou com as mãos para imitar o pânico do espírito maligno - fugindo do corpo da jovem, em forma de uma galinha preta... frango. Um frango preto.

 

- Nunca vi essa imagem - comentou Eleanor no seu inglês com sotaque, para logo a seguir olhar pela porta do estábulo. - Mas bem gostaria de ver um urso a apanhar lenha - acrescentou melancólica.

 

Thomas sentou-se a seu lado, olhando para a escuridão húmida, coberta por uma leve bruma. Não tinha a certeza de que fosse de facto o dia de São Gallus, pois tinha perdido o sentido do tempo enquanto viajavam. Talvez fosse já dia de Santa Audrey. Sabia que era Outubro e sabia que tinham passado mil trezentos e quarenta e seis anos desde o nascimento de Cristo, mas não tinha a certeza de que dia era. Era fácil perder a conta. Uma vez o pai dissera todos os serviços dominicais ao sábado e repetira-os no dia seguinte. Disfarçadamente, Thomas fez o sinal da cruz. Era o bastardo de um padre, facto considerado como trazendo má sorte. Estremeceu. O ar estava pesado, mas não devido ao pôr do Sol nem às nuvens de chuva ou à bruma. Deus nos ajude, pensou, mas havia um mal naquela escuridão. Voltou a fazer o sinal da cruz e, em surdina, rezou uma prece a São Gallus e ao seu urso obediente. Em Londres, vira um urso que dançava, com dentes que nada mais eram do que coutos amarelados e podres e os flancos castanhos cheios de sangue de serem picados pelo dono. Os cães vadios rosnavam-lhe e depois esquivavam-se e encolhiam-se quando ele investia.

 

- Durham é muito longe? - perguntou Eleanor, desta vez falando em francês, a sua língua nativa.

 

- Julgo que chegaremos amanhã - respondeu Thomas, sem deixar de olhar para o norte, para onde a escuridão pesada cobria a terra. - Ela perguntou - explicou em inglês ao padre Hobbe - quando chegaremos a Durham.

 

- Amanhã, se Deus quiser - respondeu o padre.

 

- Amanhã poderás descansar - prometeu Thomas a Eleanor em francês. Estava grávida de uma criança que, se Deus o permitisse, nasceria na Primavera. Thomas não tinha a certeza dos seus sentimentos acerca de vir a ser pai. Parecia-lhe cedo de mais para se tornar responsável, porém Eleanor sentia-se feliz e ele gostava de lhe agradar. Assim, disse-lhe que também se sentia feliz. Parte do tempo assim era.

 

- E amanhã - disse o padre Hobbe - teremos as nossas respostas.

 

- Amanhã - corrigiu-o Thomas - faremos as nossas perguntas.

 

- Deus não há-de permitir que tivéssemos chegado até aqui para ficarmos desapontados - replicou o padre Hobbe e, depois, para evitar que Thomas discutisse, estendeu a magra ceia. - É tudo o que resta do pão - disse. - Mas podemos guardar parte do queijo e a maçã para o pequeno-almoço. – Fez o sinal da cruz sobre os alimentos para os abençoar e dividiu depois o pão em três partes. - Devemos comer antes do cair da noite.

 

A escuridão trouxe um frio quebradiço. Caiu um leve aguaceiro e, por fim, o vento parou. Thomas dormiu perto da porta do estábulo e acordou algum tempo depois do cessar do vento, pois avistou uma luz no céu a norte.

 

Deu a volta, sentou-se, esqueceu-se de que tinha frio, esqueceu-se da fome, esqueceu os incómodos desconfortos da vida, pois podia ver o Graal. O Santo Graal, o mais precioso de todos os legados de Cristo ao homem, perdido há um milhar de anos ou mais. Via-o cintilando no céu, como sangue brilhante e, em seu redor, luminosos como os do resplendor de um santo, raios de luz intensa que enchiam o céu.

 

Thomas queria acreditar. Queria que o Graal existisse. Pensava que se o Graal fosse encontrado, todo o mal do mundo se afogaria nas suas profundidades. Queria tanto acreditar, que nessa noite de Outubro viu a norte o Graal como uma enorme taça ardente e os seus olhos encheram-se de lágrimas de tal forma que a imagem se ofuscou; mesmo assim, conseguia vê-la e pareceu-lhe que um vapor fervia na taça sagrada. Mais além, em alas que se erguiam nas alturas, viu anjos com asas tocadas pelo fogo. Todo o céu a norte era um fumo dourado e escarlate, cintilando na noite, como um sinal de aviso ao incrédulo Thomas.

 

- Oh, Senhor - exclamou em voz alta, lançando o cobertor para trás e ajoelhando junto à fria porta do estábulo. - Oh, Senhor!

 

- Thomas? - Junto de si, Eleanor tinha acordado. Sentou-se e olhou para a noite. - Fogo - disse em francês. - C’est un grand incendie. - Havia medo na sua voz.

 

- C’est un incendie? - perguntou Thomas, acordando completamente e vendo que, de facto, havia um enorme incêndio no horizonte de onde as chamas subiam, iluminando nas nuvens um abismo em forma de taça.

 

- Há ali um exército - murmurou Eleanor em francês. - Olha! - apontou para outro clarão, mais adiante. Já tinham visto aquelas luzes nos céus de França, a luminosidade reflectida vinda das nuvens, sob as quais o exército inglês abrira caminho através da Normandia e da Picardia.

 

Thomas continuava a olhar para norte, mas já desapontado. Tratava-se então de um exército? Não do Graal?

 

- Thomas? - Eleanor estava preocupada.

 

- É apenas um rumor - disse.

 

Era o bastardo de um padre e fora criado ouvindo as sagradas escrituras. No Evangelho segundo São Mateus fora prometido que, no fim dos tempos, haveria batalhas e rumores de batalhas. As escrituras prometiam que o mundo chegaria ao fim num tumulto de guerra e de sangue e, na última aldeia, onde os habitantes lhes tinham lançado olhares suspeitos, um sacerdote mal-humorado tinha-os acusado de serem espiões escoceses. O padre Hobbe tinha-se insurgido contra aquilo, ameaçando puxar as orelhas ao seu colega, mas Thomas acalmara-os a ambos e falara com um pastor que dissera ter visto fumo nas colinas a norte. Os escoceses, dissera o pastor, marchavam para sul, embora a mulher do padre se risse da ideia, afirmando que as tropas escocesas nada mais eram do que ladrões de gado. ”Fechem bem a porta à noite”, aconselhou, ”e eles deixam-vos em paz.” A luz longínqua desaparecia. Não era o Graal.

 

- Thomas? - Eleanor franziu a testa.

 

- Tive um sonho - disse ele. - Foi só um sonho.

 

- Senti o bebé mexer - disse ela tocando-lhe no ombro. - Vamos casar?

 

- Em Durham - prometeu-lhe. Era bastardo e não queria que um filho dele carregasse consigo a mesma marca. - Amanhã chegaremos à cidade garantiu a Eleanor. - Tu e eu casaremos numa igreja e faremos as nossas perguntas.

 

E, implorava ele, que uma das respostas seja que a Relíquia não existe. Que seja um sonho, um mero artifício de fogo e nuvens num céu nocturno, senão Thomas receava chegar à loucura. Desejava abandonar a busca; queria desistir da Relíquia e voltar a ser o que era e o que queria ser: um arqueiro de Inglaterra.

 

Bernard de Taillebourg, francês, frade dominicano e inquisidor, passou a noite de Outono numa pocilga e, quando a madrugada chegou espessa e branca de nevoeiro, ajoelhou e agradeceu a Deus pelo privilégio de ter dormido sobre palha suja. A seguir, preocupado com a sua importante tarefa, disse uma oração a São Domingos, implorando ao santo que intercedesse junto de Deus para que lhe facilitasse o trabalho naquele dia.

 

- Como a chama da tua boca ilumina a verdade - disse em voz alta -, assim o faça com o caminho do nosso êxito.

 

Na intensidade da sua emoção, avançou e bateu com a cabeça num duro pilar de pedra que suportava um dos cantos da pocilga. A dor invadiu-lhe o crânio e ele insistiu ainda mais, esfregando a pele até sentir o sangue escorrer-lhe pelo nariz.

 

- Bendito São Domingos - exclamou. - Bendito São Domingos! Deus seja louvado pela vossa glória! Iluminai o nosso caminho! - Tinha já sangue nos lábios e lambeu-o enquanto reflectia em toda a dor que os santos e mártires tinham suportado pela Igreja. Pôs as mãos e havia um sorriso no seu rosto perturbado.

 

Os soldados que, na noite anterior, tinham queimado grande parte da aldeia, violado as mulheres que haviam sobrevivido e matado os homens que as tentavam proteger, viam agora o padre bater repetidamente com a cabeça na pedra ensanguentada.

 

- Oh São Domingos! - dizia em voz sufocada Bernard de Taillebourg.

 

- Oh, São Domingos!

 

Alguns deles faziam o sinal da cruz, pois sabiam quando se encontravam em presença de um santo. Um ou dois até ajoelharam, embora fosse pouco cómodo com as suas cotas de malha, mas a maioria limitou-se a olhar o padre com ar desconfiado, ou então olhavam para o criado deste que, sentado fora da pocilga, lhes devolvia o olhar.

 

Tal como Bernard de Taillebourg o criado era francês, mas havia qualquer coisa no jovem que sugeria uma origem mais exótica. Tinha uma pele doentia, quase tão escura como a de um mouro e uma cabeleira longa e lisa que, juntamente com o rosto esguio, lhe dava um ar selvagem. Usava uma cota de malha e uma espada e, embora fosse apenas o criado de um padre, tinha um porte confiante e digno. A sua veste era elegante, coisa estranha naquele exército esfarrapado. Ninguém lhe conhecia o nome. Nem sequer queriam perguntar, tal como também não perguntavam porque não comia nem falava com os outros criados e se mantinha estranhamente à parte. Naquele momento, o misterioso criado observava os soldados tendo na mão uma faca de lâmina longa e fina. Assim que se apercebeu que havia bastantes a olhar para ele, balançou-a sobre um dedo esticado. A faca estava colocada sobre a ponta afiada e não picava a pele do criado pois este usava uma dedeira cortada da malha de uma manopla. Depois fez um movimento e a faca voou pelo ar, com a lâmina a brilhar, para logo descer com a ponta para baixo e se vir a equilibrar de novo sobre o seu dedo. O criado não olhara uma vez sequer para a faca, pois mantivera os olhos escuros fixos nos soldados. O padre, completamente alheio ao espectáculo, gritava as suas preces com o rosto ensopado em sangue.

 

- São Domingos! São Domingos! Iluminai o nosso caminho! - A faca voou mais uma vez, com a perigosa lâmina a cortar a luz enevoada da manhã.

 

- São Domingos! Guiai-nos! Guiai-nos!

 

- A cavalo! Montai! Rápido! - Um homem grisalho, com o escudo pendurado do ombro esquerdo, andava por entre os espectadores. - Não temos o dia todo! Com os demónios, o que estais a ver? Jesus Cristo na cruz, que se passa aqui? Será a feira de Eskdale? Por amor de Deus, depressa! Depressa!

 

- O escudo que trazia ao ombro tinha gravado um coração vermelho, mas a tinta estava tão desbotada e o coiro do escudo tão marcado que a divisa era difícil de distinguir. - Oh, Cristo redentor! - O homem vira o dominicano e o criado. - Padre! Vamos embora. Já! E não vou esperar pelo fim das orações. Voltou-se para os seus homens: - Montai! Mexei-vos! Temos muito que fazer!

 

- Douglas! - exclamou repentinamente o dominicano. O homem grisalho voltou-se rapidamente.

 

- O meu nome, padre, é Sir Willíam e é melhor que não vos esqueçais.

 

O padre pestanejou. Parecia sofrer de uma súbita confusão, ainda envolvido no êxtase da sua dolorosa oração. Fez uma vénia formal como se reconhecesse a sua falha ao usar o sobrenome de Sir William.

 

- Falava com São Domingos - explicou.

 

- Pois sim. Espero que lhe tenhais pedido que levante este maldito nevoeiro.

 

- Ele há-de conduzir-nos hoje! Há-de guiar-nos!

 

- Então será melhor que calce as botas, porque nos vamos embora, quer o vosso santo esteja disposto quer não - rosnou Sir William Douglas, cavaleiro de Liddesdale para o padre. A sua cota de malha estava rasgada pela batalha e remendada com argolas mais novas. A ferrugem aparecia nas bainhas e nos cotovelos. O escudo desbotado, tal como o rosto, envelhecido pelas intempéries, mostrava cicatrizes. Tinha agora quarenta e seis anos e calculava ter uma marca de espada, seta ou lança por estes anos que lhe tinham embranquecido o cabelo e a curta barba. Abria agora de par em par a porta da pocilga. - De pé, padre. Tenho aqui um cavalo para vós.

 

- Vou a pé - disse Bernard de Taillebourg, pegando numa forte vara com uma correia de couro enfiada na ponta. - Como Nosso Senhor.

 

- Então não vos molhareis a atravessar os regatos, pois não? - riu-se Sir William. - Caminhareis sobre as águas, não é verdade, padre? Vós e o vosso criado?

 

Era o único, entre os seus homens, que não parecia impressionado pelo padre francês, nem receoso do seu bem armado criado, mas Sir William Douglas era conhecido por não ter medo de homem nenhum. Era um chefe de salteadores que se socorria de assassínio, fogo, espadas e lanças para proteger a sua terra e não era um padre furioso, vindo de Paris, que haveria de o impressionar. De facto, Sir William, não gostava muito de padres, mas o seu rei tinha-lhe ordenado que levasse Bernard de Taillebourg no ataque daquela manhã e Sir William consentira contrariado.

 

Em seu redor, os soldados subiam para as suas selas. Tinham consigo um armamento leve, pois não esperavam encontrar inimigos. Alguns, como Sir William, transportavam escudos, mas a maioria contentava-se apenas com uma espada. Bernard de Taillebourg, com o seu hábito de frade salpicado de lama, apressou-se a seguir Sir William.

 

- Ides entrar na cidade?

 

- Claro que não vou entrar na maldita cidade. Lembrai-vos de que há uma trégua.

 

- Mas se há uma trégua...

 

- Se há uma maldita trégua, deixamo-los descansados.

 

O padre francês falava bem inglês, mas levou alguns momentos a perceber o significado das últimas palavras de Sir William.

 

- Não vai haver luta?

 

- Não. Entre nós e a cidade, não. E não há um maldito exército inglês cem milhas em redor, por isso não haverá luta. Só teremos de procurar comida e pasto, padre, comida e pasto. Alimentar os homens e os animais e é essa a maneira de ganhar as guerras. - Enquanto falava, Sir William montou o seu cavalo que um escudeiro segurava pelas rédeas. Meteu as botas nos estribos, soltou o saiote da cota de malha de debaixo das pernas e pegou nas rédeas. - Levo-vos até perto da cidade, padre, mas depois disso tereis de vos arranjar sozinho.

 

- Arranjar? - perguntou Bernard de Taillebourg, mas Sir William já tinha dado meia volta e esporeado o cavalo por um atalho lamacento que corria entre baixos muros de pedra. Atrás dele e do padre, montados em cavalos enormes e cansados que se esforçavam por acompanhar o passo seguiam duzentos soldados sujos e cinzentos naquela manhã de nevoeiro. O criado seguia-os aparentemente despreocupado. Era evidente que estava habituado a viver entre soldados e não mostrava qualquer apreensão, mostrando até um porte que sugeria poder ser melhor com as suas armas do que a maioria dos homens que cavalgavam atrás de Sir William.

 

O dominicano e o criado tinham viajado para a Escócia juntamente com uma dezena de mensageiros enviados ao rei David II por Filipe de Valois, rei de França. A embaixada fora um pedido de ajuda. Os ingleses tinham queimado todas as terras por onde tinham passado na Normandia e na Picardia, tinham dizimado o exército do rei francês perto de uma aldeia chamada Crécy e os seus arqueiros possuíam agora cerca de doze praças fortificadas na Bretanha, enquanto os seus violentos cavaleiros partiam das possessões ancestrais de Eduardo de Inglaterra na Gasconha. Tudo aquilo era mau, mas, pior ainda, como que para mostrar que a França podia ser impunemente desmembrada, o rei inglês montara um cerco ao grande porto fortificado de Calais. Filipe de Valois fazia o melhor possível para o levantar, mas o Inverno aproximava-se, os nobres resmungavam que o seu rei não era um guerreiro e assim apelara à ajuda do rei David da Escócia, filho de Robert the Bruce. ”Invadi a Inglaterra”, implorara o rei francês. ”Obrigai assim Eduardo a abandonar o cerco de Calais para proteger a sua pátria.” Os escoceses tinham ponderado o convite, deixando-se convencer pela embaixada do rei francês de que a Inglaterra estava indefesa. Como não haveria de estar? O exército de Eduardo de Inglaterra encontrava-se todo em Calais ou então na Bretanha e na Gasconha e não havia ninguém para defender a Inglaterra, o que significava que o velho inimigo estava impotente, a pedir para ser violado e para que todas as riquezas de Inglaterra caíssem nas mãos da Escócia.

 

Portanto os escoceses tinham vindo para sul.

 

Era o maior exército que a Escócia alguma vez enviava para lá das suas fronteiras. Os grandes fidalgos estavam todos lá, filhos e netos dos guerreiros que haviam humilhado a Inglaterra na sangrenta matança junto de Bannockburn e esses senhores tinham trazido os seus homens-de-armas, mas, desta vez, sentindo o cheiro do saque, estavam acompanhados pelos chefes dos clãs das montanhas e das ilhas: os chefes conduziam violentos elementos das tribos que falavam uma linguagem própria e combatiam como diabos à solta. Tinham vindo aos milhares para enriquecer e os mensageiros franceses depois de desempenhada a sua tarefa tinham regressado à pátria para assegurar a Filipe de Valois que o rei Eduardo de Inglaterra certamente levantaria o cerco de Calais, assim que soubesse que os escoceses estavam a devastar as suas terras do Norte.

 

A embaixada francesa regressara, mas Bernard de Taillebourg não. Tinha assuntos a tratar no Norte de Inglaterra, porém, nos primeiros dias, nada mais sentira do que frustração. O exército escocês tinha doze mil homens, era forte e mais numeroso do que aquele com que Eduardo de Inglaterra tinha derrotado os franceses em Crécy, porém, uma vez atravessada a fronteira, tinham-se detido para cercar uma solitária fortaleza, guardada por trinta e oito homens; apesar de serem apenas trinta e oito só morreram ao fim de quatro dias. Mais tempo se perdeu a negociar com os habitantes de Carlisle um pagamento em ouro para que a sua cidade fosse poupada e, logo a seguir, o jovem rei escocês esbanjou mais três dias a saquear o priorato de Black Canons, em Hexham. Agora, dez dias depois de terem atravessado a fronteira e depois de terem vagueado pelos pântanos do Norte de Inglaterra, o exército escocês tinha finalmente chegado a Durham. A cidade oferecera-lhes mil libras de ouro para ser poupada e o rei David dera-lhes dois dias para reunirem o dinheiro. Isto significava que Bernard de Taillebourg tinha dois dias para descobrir um meio para entrar na cidade, até cujo extremo, escorregando na lama e meio cego pelo nevoeiro, seguira Sir William Douglas, depois de atravessar um vale, um ribeiro e subir uma encosta íngreme.

 

- Em que direcção fica a cidade? - perguntou a Sir William.

 

- Quando o nevoeiro levantar, digo-vos, padre.

 

- Respeitarão as tréguas?

 

- Em Durham são santos, padre - respondeu Sir William. - Melhor ainda, são homens assustados.

 

Tinham sido os monges da cidade a negociar o resgate, mas Sir William fora contra a aceitação. Se os monges ofereciam mil libras, calculava que seria melhor matar os monges e ficar com duas mil, mas o rei David impedira-o. David the Bruce passara grande parte da sua juventude em França e considerava-se um homem culto, porém Sir William não se sentia assaltado por escrúpulos.

 

- Estareis a salvo se conseguirdes chegar à cidade - garantiu Sir William ao padre.

 

Os cavaleiros tinham chegado ao cimo do monte e Sir William voltou-se para sul seguindo ainda um caminho ladeado por muros de pedra que levava, uma ou duas milhas mais a diante, a uma aldeola deserta onde, juntas num cruzamento havia quatro casas, tão baixas que os seus telhados de colmo, muito estragados, pareciam sair da turfa esparsa. No centro desse cruzamento, onde trilhos enlameados rodeavam uma moita de urtigas e ervas, uma cruz de pedra inclinava-se para sul. Sir William deteve o cavalo junto ao monumento e olhou para o dragão gravado que rodeava o pilar. A cruz não tinha um braço. Desmontaram doze homens que se baixaram para entrar nas cabanas, mas não encontraram nada nem ninguém lá dentro, embora uma delas ainda tivesse umas brasas que utilizaram para pegar fogo aos quatro telhados de colmo. Foi difícil fazer o colmo arder, pois estava tão húmido que saíam cogumelos da palha coberta de musgo.

 

Sir William retirou um pé do estribo e tentou com ele deitar abaixo a cruz, mas esta não se moveu. Gemeu com o esforço e fez má cara ao ver a expressão reprovadora de Bernard de Taillebourg.

 

- Não é um solo sagrado, padre. É a maldita Inglaterra - espreitou para o dragão gravado, cuja boca se abria para abarcar todo o pilar de pedra. - Que coisa tão feia, não acha?

 

- Os dragões são criaturas de pecado, criaturas do demónio - disse Bernard de Taillebourg. - Por isso têm de ser feios.

 

- Com que então uma coisa do demónio? - Sir William deu um novo pontapé na cruz. - A minha mãe sempre me disse que os malditos ingleses enterravam o ouro roubado debaixo de cruzes com dragões - explicou enquanto dava, pela terceira vez em vão, um pontapé na cruz.

 

Dois minutos depois a cruz tinha sido derrubada e meia-dúzia de homens espreitava desapontada para o buraco que deixara. O fumo dos telhados a arder tornava ainda mais denso o nevoeiro, rolava na estrada e desaparecia no ar cinzento da manhã.

 

- Não há ouro - resmungou Sir William, para logo chamar os seus homens e os conduzir para sul e para longe do fumo sufocante. Procurava algum gado vivo que pudesse ser conduzido para o exército escocês, mas os campos estavam vazios. O fogo das cabanas a arder parecia uma poeira dourada e vermelha no nevoeiro atrás dos salteadores, um brilho que foi lentamente desaparecendo até que apenas se lhe sentia o cheiro, mas depois, de repente, enchendo todo o mundo com um enorme ruído, um repicar de sinos entoou no céu. Presumindo que o som viesse de leste, Sir William voltou-se para uma abertura no muro que dava para uma pastagem, deteve o cavalo e pôs-se de pé nos estribos. Escutou, o som mas no nevoeiro era impossível dizer onde estavam os sinos ou a que distância repicavam, e logo o som terminou tal como tinha começado. O nevoeiro era agora menos denso, afastando-se os farrapos por entre as folhas alaranjadas de um grupo de ulmeiros. Cogumelos brancos pontilhavam a pastagem vazia onde Bernard de Taillebourg caiu de joelhos e começou a rezar em voz alta.

 

- Silêncio, padre - ordenou bruscamente Sir William.

 

O padre fez o sinal da cruz como se implorasse aos céus perdão para a terrível heresia de Sir William ao interromper-lhe as preces.

 

- Haveis dito que não existiam inimigos - justificou-se.

 

- Não estou à escuta de nenhum maldito inimigo - disse Sir William. Mas sim de animais. Estou à escuta de chocalhos de vacas ou carneiros.

 

Mesmo assim, Sir William parecia extremamente nervoso para um homem que apenas procurava gado. Voltava-se constantemente na sela, espreitando o nevoeiro e estremecendo com todos os pequenos ruídos dos arreios e dos cascos que pisavam a terra molhada. Ordenava aos soldados mais próximos que estivessem calados. Fora soldado mesmo antes de alguns daqueles homens terem nascido e não se mantinha vivo por ter ignorado os seus instintos; agora, naquele nevoeiro húmido, sentia o cheiro do perigo. O bom senso dizia-lhe que nada havia a temer, que o exército inglês estava muito distante do outro lado do mar, mas sentia o cheiro da morte e, inconscientemente, puxou o escudo do ombro, metendo o braço esquerdo nas suas correias. Era um escudo grande, feito antes de se começar a meter placas de couraça nas cotas de malha, um escudo com tamanho suficiente para cobrir todo o corpo de um homem.

 

À beira da pastagem um soldado soltou uma exclamação e Sir William agarrou imediatamente o punho da espada, mas viu que o homem apenas gritara devido à súbita aparição das torres de dentro do nevoeiro que agora pouco mais era do que uma leve bruma no alto do monte, embora, de cada lado, nos vales profundos, corresse ainda como um rio branco. E do outro lado do vale mais a leste, voltados a norte, surgiam na brancura espectral de outro cume, uma grande catedral e um castelo. Apareciam sobre a bruma, enormes e escuros, como edifícios produzidos pela imaginação de um feiticeiro maldito e o criado de Bernard Taillebourg, que sentia não ter visto a civilização havia muitas semanas, olhava extasiado para os dois edifícios. Monges de hábitos negros enchiam a mais alta das duas torres da catedral e viu-os apontar para os cavaleiros escoceses.

 

- Durham - resmungou Sir William. Calculava que os sinos tivessem servido para chamar os fiéis para as orações da manhã.

 

- Tenho de lá ir! - O dominicano pôs-se de pé e, pegando nas suas coisas, partiu em direcção à cidade envolta em bruma.

 

Sir William picou o cavalo diante do francês.

 

- Qual é a pressa, padre? - perguntou e Taillebourg tentou esquivar-se ao escocês, mas ouviu-se um arranhar e, de súbito, uma lâmina, fria, pesada e cinzenta estava junto ao rosto do dominicano. - Padre, perguntei-vos qual era a pressa - a voz de Sir William era tão fria como a sua espada; depois, alertado por um dos seus homens, olhou e viu que o criado do padre tinha também sacado parte da sua arma. - Se o bastardo do vosso criado não embainha imediatamente a espada, padre - disse Sir William em voz baixa, mas com uma terrível ameaça na voz -, como-o à ceia.

 

De Taillebourg disse qualquer coisa em francês e o criado empurrou com relutância a lâmina da espada para dentro da bainha. O padre olhou para Sir William.

 

- Não temeis pela vossa alma mortal? - perguntou.

 

Sir William sorriu, fez uma pausa e olhou em redor do cume do monte, mas nada viu de sinistro no nevoeiro que se dissipava e pensou que o seu nervosismo anterior seria resultado da sua imaginação. Talvez também o resultado de demasiada carne de vaca e de porco e também do vinho da noite anterior. Os escoceses tinham festejado na casa capturada ao prior de Durham e este vivia bem a julgar pela despensa e pela cave; porém, ceias pesadas provocavam premonições nos homens.

 

- Tenho o meu próprio padre para se preocupar com a minha alma disse Sir William, erguendo a ponta da espada para obrigar Taillebourg a erguer o rosto. - Porque tem um francês de tratar de assuntos com os nossos inimigos em Durham? - perguntou.

 

- São assuntos da Igreja - disse Taillebourg firmemente.

 

- Não tenho nada a ver de quem são os assuntos - disse Sir William. Mesmo assim quero saber o que são.

 

- Tentai impedir-me - disse Taillebourg, afastando a lâmina da espada. Farei com que o rei vos castigue e a Igreja vos condene e que o Santo Padre envie a vossa alma para a perdição eterna. Reunirei...

 

- Fechai essa maldita boca - disse Sir William. - Pensais que me podeis assustar, padre? O nosso rei é um cachorrinho e a Igreja faz o que aqueles que pagam a mandam fazer. - Desta vez encostou a arma ao pescoço do dominicano: - Agora dizei-me qual é o assunto. Dizei-me por que razão um francês fica connosco em vez de ir para casa com os seus compatriotas. Dizei-me o que quereis fazer em Durham.

 

Bernard de Taillebourg agarrou no crucifixo que tinha pendurado em redor do pescoço e estendeu-o na direcção de Sir William. Noutro homem, o gesto poderia ter sido tomado como uma exibição de receio, mas no dominicano parecia que era ele que estava a ameaçar a alma de Sir William com os poderes do céu. Sir William limitou-se a lançar ao crucifixo um olhar ávido, como se calculasse o seu valor, mas a cruz era de madeira simples, enquanto a pequena figura de Cristo na agonia da morte não passava de osso amarelecido. Se a figura tivesse sido feita de ouro, então Sir William podê-la-ia ter arrancado, mas assim, cuspiu de desprezo. Alguns homens, temendo mais a Deus do que ao seu amo, fizeram o sinal da cruz, mas a maioria não se deu a esse trabalho. Observavam o criado de perto, pois ele tinha um ar perigoso. Porém, um clérigo parisiense, de meia-idade, por muito feroz e descarnado que parecesse, não os assustava.

 

- E o que pensais fazer-me? - perguntou De Taillebourg a Sir William com ar escarninho. - Matar-me?

 

- Se for preciso - disse Sir William implacável. A presença do padre junto da embaixada francesa fora para si um enigma e a sua permanência depois da partida de todos os outros apenas aumentara o mistério. Porém, um soldado palrador, um dos franceses que tinha trazido duzentas couraças de oferta aos escoceses, dissera a Sir William que o padre andava atrás de um grande tesouro e se esse tesouro estivesse em Durham, então Sir William queria saber. Queria uma parte. - Já matei padres - disse a Taillebourg. - E outro padre vendeu-me indulgências pelas suas mortes, por isso, não vos temo, nem à vossa Igreja. Não há pecado que não se possa comprar, não há perdão que não possa ser transaccionado.

 

O dominicano encolheu os ombros. Dois homens de Sir William estavam atrás dele, com as espadas desembainhadas e compreendeu que esses escoceses o matariam realmente a si e ao seu criado. Os homens que seguiam o coração vermelho de Douglas eram rufiões de fronteira, criados para batalhar como um cão é criado para a caça. O dominicano percebeu que não valia a pena prosseguir com a ameaça das almas, pois eram gente que não se preocupava com tais coisas.

 

- Vou a Durham procurar um homem - disse De Taillebourg.

 

- Que homem? - perguntou Sir William, ainda com a espada no pescoço do padre.

 

- Um monge - respondeu De Taillebourg pacientemente. - Já é velho, tão velho que talvez tenha morrido. É francês e beneditino. Fugiu de Paris há muitos anos.

 

- Fugiu porquê?

 

- Porque o rei queria a sua cabeça.

 

- A cabeça de um monge? - Sir William parecia céptico.

 

- Nem sempre foi beneditino - disse De Taillebourg. - Foi templário.

 

- Ah! - Sir William começava a compreender.

 

- E sabe onde está escondido um grande tesouro - continuou De Taillebourg.

 

- O tesouro dos Templários?

 

- Diz-se que está escondido em Paris - disse De Taillebourg. - Escondido durante todo este tempo, mas só o ano passado é que descobrimos que o francês estava vivo e vivia em Inglaterra. Sabei que o beneditino foi sacristão dos Templários. Sabe o que isto quer dizer?

 

- Não me tomeis por tolo, padre - disse, friamente Sir William.

 

De Taillebourg inclinou a cabeça, reconhecendo a justiça da reprimenda.

 

- Se há alguém que saiba onde está o tesouro dos Templários - continuou humildemente -, é o antigo sacristão, e agora sabemos que esse homem vive em Durham.

 

Sir William recolheu a espada. Tudo o que o padre acabara de dizer fazia sentido. Os Templários, uma ordem de cavaleiros monges que juraram proteger as rotas dos peregrinos entre a Cristandade e Jerusalém ficara mais rica do que os reis poderiam sonhar ser, o que fora uma tolice, pois provocara a inveja destes e reis invejosos eram maus inimigos. O rei de França era um deles e ordenara a destruição dos Templários: para isso arranjara-se uma heresia, os advogados tinham facilmente distorcido a verdade e os Templários foram suprimidos. Os chefes arderam na fogueira, as suas terras foram confiscadas, mas os tesouros fabulosos dos Templários nunca tinham sido encontrados e o sacristão da ordem, o homem responsável por guardá-los em segurança, saberia certamente do seu destino.

 

- Quando foram dissolvidos os Templários? - perguntou Sir William.

 

- Há vinte e nove anos - respondeu Taillebourg.

 

- Então o sacristão pode muito bem estar vivo. Deve ser muito velho, mas pode estar vivo.

 

Sir William embainhou a espada, completamente convencido pela história de De Taillebourg, apesar de nada daquilo ser verdade, excepto a existência de um velho monge em Durham. Só que não era francês e nunca fora templário e, com toda a probabilidade, também nunca ouvira falar de nenhum tesouro dos Templários. Mas Bernard de Taillebourg tinha falado de modo convincente e a história do tesouro ecoava por toda a Europa, mencionado de cada vez que os homens se juntavam para falar de histórias maravilhosas. Sir William queria que a história fosse verdadeira e aquilo, mais do que tudo, convencia-o de que assim era.

 

- Se encontrardes esse homem - disse a De Taillebourg -, e se ele estiver vivo e se encontrardes o tesouro, será porque nós o tornámos possível. Será porque vos trouxemos até aqui e porque vos protegemos na vossa viagem até Durham.

 

- É verdade, Sir William - disse De Taillebourg.

 

Sir William ficou surpreendido pela pronta concordância do padre. Franziu a testa, agitou-se na sela e olhou para o dominicano como se quisesse avaliar até que ponto poderia confiar no padre.

 

- Teremos então de partilhar o tesouro - exigiu.

 

- Claro - respondeu De Taillebourg instantaneamente.

 

Sir William não era tolo. Se o padre fosse sozinho para Durham nunca mais ninguém o veria. Sir William voltou-se na sela e dirigiu-se para norte em direcção à catedral. Dizia-se que o tesouro dos Templários era o ouro de Jerusalém, mais ouro do que alguém poderia sonhar, e Sir William era suficientemente honesto para saber que não possuía recursos suficientes para passar parte desse tesouro para Liddesdale. Teria de usar o rei. David II poderia ser um rapaz fraco, com pouca experiência e pouco duro por ter vivido em França, mas os reis tinham recursos negados a cavaleiros. David da Escócia poderia falar com Filipe de França, quase como igual, ao passo que uma mensagem de William Douglas seria ignorada em Paris.

 

- Jamie - gritou bruscamente para o sobrinho, um dos dois homens que guardavam De Taillebourg. - Tu e o Douglas vão levar este padre directamente ao rei.

 

- Deveis deixar-me ir - protestou Bernard de Taillebourg. Sir William inclinou-se na sela.

 

- Quereis que vos corte os sagrados tomates para fazer deles um saco? - sorriu para o dominicano e olhou de novo para o sobrinho. - Dizei ao rei que este padre francês tem novidades que nos interessam e que o mantenha em segurança até ao meu regresso.

 

Sir William decidira que se havia um monge francês em Durham, então deveria ser interrogado pelos homens do rei da Escócia e as informações do dito monge, se existissem, poderiam então ser vendidas ao rei de França.

 

- Leva-o, Jamie - ordenou. - Vigia também esse maldito criado! Tira-lhe a espada.

 

James Douglas sorriu ao pensar que um simples padre e o seu criado lhe poderiam dar problemas, mas, mesmo assim, obedeceu ao tio. Exigiu que o criado lhe entregasse a espada e, quando o homem se rebelou contra a ordem, Jamie desembainhou parte da sua. De Taillebourg instruiu bruscamente o criado que obedecesse e a espada foi entregue de má vontade. Jamie Douglas sorriu ao colocá-la no seu próprio cinto.

 

- Não vão incomodar-me, tio.

 

- Ide - ordenou Sir William e ficou a ver o sobrinho e o companheiro bem montados em belos corcéis capturados nas terras de Percy em Northumberland, escoltando o padre e o criado de volta ao acampamento do rei.

 

Sem dúvida que o padre se queixaria ao rei e David, muito mais fraco do que o seu imponente pai, haveria de se preocupar com o desagrado de Deus e dos franceses, mas preocupar-se-ia muito mais com o desagrado de Sir William. Sorriu com a ideia, mas viu que alguns dos seus homens tinham desmontado do outro lado do campo.

 

- Quem diabo vos disse para desmontar - gritou zangado, mas logo a seguir viu que não eram os seus homens, mas sim desconhecidos que saíam da bruma que os ocultava. Recordou-se dos seus instintos e amaldiçoou-se pelo tempo que perdera com o padre.

 

Enquanto praguejava, a primeira seta cintilou vinda de sul. O som mais parecia um sibilar, como o de uma pena no ar e quando atingiu o alvo o ruído foi o de um cutelo a cortar carne. Um ruído seco e pesado, acompanhado pelo rasgar do aço no músculo, depois o gemido da vítima e um momento de silêncio.

 

A seguir, um grito.

 

Thomas de Hookton ouviu os sinos profundos e sonoros, não os habituais na igreja de uma aldeia vulgar, mas sinos de uma força poderosa. Durham, pensou, e sentiu um grande cansaço porque a viagem fora tão longa.

 

Começara na Picardia, num campo cheirando a homens e a cavalos mortos, um local de pendões caídos, armas quebradas e setas inutilizadas. Fora uma grande vitória e Thomas interrogara-se por que razão o deixara triste e nervoso. Os ingleses tinham marchado para norte, para cercar Calais, mas ele, ao serviço do conde de Northumberland, recebera a permissão deste último para conduzir um camarada ferido a Caen onde havia um físico de uma perícia extraordinária. Porém, nesse momento foi decretado que ninguém poderia abandonar o exército sem autorização do rei. O conde abordou o rei e foi assim que Eduardo Plantageneta ouviu falar de Thomas de Hookton e de como o seu pai fora um padre que nascera na família de exilados franceses com o nome de Vexille e de como corria o boato que a dita família tinha estado na posse do Graal. Claro que era apenas um rumor, farrapos de uma história num mundo difícil; porém essa história dizia que o Santo Graal era a coisa mais preciosa que alguma vez existira; o rei interrogara Thomas de Hookton e este tentara retirar importância à verdade da história do Graal, mas depois o bispo de Durham, que combatera na muralha que impedira os assaltos dos franceses, contara como o pai de Thomas tinha sido aprisionado nessa cidade.

 

- Estava louco - explicou o bispo ao rei. - Doido varrido! Então fecharam-no para seu próprio bem.

 

- Ele falou do Graal? - perguntou o rei, e o bispo de Durham respondera que havia apenas um homem na diocese que o poderia saber; um velho monge chamado Hugh Collimore que tinha tratado do louco Ralph Vexille, pai de Thomas.

 

O rei poderia ter considerado estas histórias como tagarelice de padres se Thomas não tivesse recuperado a herança do pai, a lança de São Jorge, na batalha que deixara tantos mortos na encosta verdejante sobranceira à aldeia de Crécy. A batalha deixara também ferido Sir William Skeat, amigo e comandante de Thomas que o queria levar ao físico da Normandia. Porém, o rei insistiu para que Thomas fosse a Durham falar com o irmão Collimore. Assim, o pai de Eleanor levara Sir William Skeat a Caen e Thomas, Eleanor e o padre Hobbe tinham acompanhado o capelão real e um cavaleiro da casa do rei Eduardo até Inglaterra. Em Londres, o capelão e o cavaleiro tinham ambos adoecido com uma febre serôdia e, portanto, Thomas e os companheiros tinham viajado para norte, sozinhos, e estavam agora próximo de Durham, numa manhã de nevoeiro, escutando os sinos da catedral. Eleanor, tal como o padre Hobbe, estava emocionado, pois acreditava que, se descobrissem o Graal, trariam paz e justiça a um mundo que cheirava a cabanas queimadas. Terminaria a tristeza, pensava Eleanor terminariam as guerras e talvez até as doenças.

 

Thomas queria acreditar, queria que a sua visão nocturna fosse verdadeira e não apenas chamas e fumo porém, se o Graal realmente existisse, estaria numa grande catedral, guardado por anjos. Ou então teria desaparecido deste mundo e, se assim fosse, então a fé de Thomas estaria num arco de guerra feito de teixo italiano, pintado de negro, com uma corda de cânhamo, com o qual disparava setas de freixo, empenadas com penas de ganso e com uma ponta de aço. Na curvatura do arco, onde a mão esquerda segurava o teixo, havia uma placa de prata gravada com um yale, um animal fabuloso com garras, chifres, presas e escamas que era a insígnia dos Vexilles, a família do seu pai. O yale segurava uma taça que, segundo tinham dito a Thomas, era o Graal. Sempre o Graal. Atraía-o, troçava dele, influenciava-lhe a vida, alterava tudo, mas nunca aparecia senão em forma de sonho ou de fogo. Era um mistério, tal como a família de Thomas também o era, mas talvez o irmão Collimore lançasse alguma luz, e fora para isso que Thomas viera ao Norte. Poderia não vir a saber do Graal, mas esperava descobrir mais coisas acerca da sua família e, pelo menos isso, já fazia com que a viagem tivesse valido a pena.

 

- Para que lado vamos? - perguntou o padre Hobbe.

 

- Só Deus sabe - respondeu Thomas. O nevoeiro envolvia a terra.

 

- Os sinos tocaram naquela direcção - o padre Hobbe apontou para norte e para leste.

 

Era um homem enérgico, cheio de entusiasmo e ingenuamente confiante no sentido de orientação de Thomas, embora este, na verdade, não soubesse onde se encontrava. Anteriormente, tinham chegado a uma bifurcação na estrada e ele, ao acaso, tomara o atalho da esquerda que agora parecia uma mera cicatriz na erva à medida que subia. Os cogumelos cresciam na pastagem molhada e pesada de orvalho, de tal maneira que a montada escorregava na subida. A montada era a égua de Thomas que transportava a pouca bagagem e num dos sacos, pendurado no punho da sela, estava uma carta do bispo de Durham a John Fossor, prior de Durham.

 

”Amado irmão em Cristo”, começava a carta, e continuava instruindo Fossor que permitisse Thomas de Hookton e o seu companheiro interrogarem o Irmão Collimore a respeito do padre Ralph Vexille, ”de quem não vos lembrareis pois foi mantido fechado em vossa casa, antes da vossa vinda para Durham, mesmo até antes de eu vir ocupar a sé, mas haverá quem saiba dele. Se Deus permitir que ele ainda esteja vivo, o Irmão Collimore terá certos conhecimentos a seu respeito e do grande tesouro que escondia. Peço-vos isto em nome do rei e ao serviço de Deus Todo-Poderoso que abençoou as nossas armas nesta presente tentativa.”

 

- Qu’est-ce que c’est? - perguntou Eleanor, apontando para o monte, onde um brilho avermelhado coloria o nevoeiro.

 

- O que é? - perguntou o padre Hobbe, que era o único que não falava francês.

 

- Silêncio - avisou-o Thomas, erguendo a mão.

 

Sentia o cheiro a queimado e via o brilho das chamas, mas não ouvia vozes. Retirou o arco da sela, onde o tinha pendurado e curvou a enorme ripa para prender a corda sobre o encaixe de osso. Retirou uma seta da bolsa e, depois, ordenando com um gesto a Eleanor e ao padre Hobbe que se deixassem ficar onde estavam, subiu o atalho até ao abrigo de uma enorme sebe onde cotovias e tentilhões esvoaçavam por entre as folhas mortas. As fogueiras crepitavam, sinal de terem sido recentemente acesas. Aproximou-se mais, com o arco quase em riste, até conseguir ver que tinham existido três ou quatro cabanas numa encruzilhada e que as suas traves e telhados de colmo ardiam, lançando fagulhas que giravam no nevoeiro cinzento. O fogo parecia recente, mas não havia ninguém à vista: nenhum inimigo, nenhum homem de cota de malha, por isso, fez sinal a Eleanor e ao padre Hobbe que avançassem, mas, logo a seguir, ouviu um grito sobre o ruído do fogo. Parecia ser ao longe, mas talvez tivesse sido camuflado pelo nevoeiro, de modo que Thomas olhou através do fumo e da bruma. Para lá das agitadas chamas viu subitamente dois homens de cota de malha, montados em negros corcéis, a trotar na sua direcção. Os cavaleiros tinham botas, bainhas de espada e chapéus negros e escoltavam dois outros a pé. Um era padre, dominicano, a julgar pelas vestes negras e brancas e tinha o rosto ensanguentado, enquanto o outro era alto, vestia cota de malha, tinha uma longa cabeleira negra e um rosto comprido e inteligente. Os dois seguiam os cavaleiros por entre o fumo e o nevoeiro, fazendo depois uma pausa quando o padre caiu de joelhos e fez o sinal da cruz.

 

O cavaleiro principal pareceu irritado pela oração do padre, pois voltou o cavalo e desembainhou a espada tocando com a lâmina no homem ajoelhado. O padre ergueu os olhos e, para espanto de Thomas, bateu com toda a força com o seu bordão no pescoço do cavalo. O animal estrebuchou para se afastar e o padre bateu com o bordão no braço do cavaleiro que empunhava a espada. O cavaleiro, desequilibrado pelo movimento súbito do corcel tentou usar a longa espada, passando-a pela frente do corpo. O segundo cavaleiro já tinha desmontado, embora Thomas não o tivesse visto cair e o homem de cabelo negro e cota de malha estava sobre ele, empunhando uma longa navalha. Thomas limitara-se a olhar estupefacto, pois estava convencido que os cavaleiros, o padre ou o homem de cabelo negro não tinham soltado um único grito; no entanto não se via mais ninguém. Um dos cavaleiros já estava morto e o outro combatia em silêncio com o padre. Thomas teve a sensação de que a contenda era irreal e de que estava a sonhar, de que na verdade se tratava da representação de uma moralidade, num espectáculo mudo: o cavaleiro vestido de negro era o demónio, o padre era a vontade de Deus e as dúvidas de Thomas acerca do Graal estavam perto de ser esclarecidas por aquele que vencesse. Por fim, o padre Hobbe pegou no enorme arco de Thomas.

 

- Temos de ajudar!

 

Contudo o padre não precisava de ajuda. Usava o bordão como uma espada, aparando os golpes do adversário e atacando-o com força para lhe atingir as costelas; depois o homem do cabelo negro meteu uma espada nas costas do cavaleiro e o homem arqueou-se, estremeceu e deixou cair a sua própria arma. Olhou o padre por um momento e depois caiu para trás na sela. Ficou momentaneamente com os pés presos nos estribos e o animal, em pânico, cavalgou pela encosta acima. O assassino limpou a lâmina da sua espada e depois retirou a bainha a um dos mortos.

 

O padre fora a correr atrás do outro cavalo e, tendo nesse momento a sensação de que estava a ser observado, voltou-se e viu dois homens e uma mulher no nevoeiro. Um dos homens era um padre com uma seta metida num arco.

 

- Iam matar-me! - protestou Bernard de Taillebourg em francês. O homem do cabelo negro voltou-se rapidamente, erguendo ameaçadoramente a espada.

 

- Está tudo bem - disse Thomas ao padre Hobbe, retirando o arco negro da mão do amigo e pondo-o ao ombro.

 

Deus falara mais alto, o padre vencera a contenda e Thomas recordou-se da sua visão nocturna em que o Graal aparecera nas nuvens como uma taça de fogo. Depois caiu de joelhos, pois viu que, por baixo das nódoas negras e do sangue, o rosto do estranho sacerdote era duro e esguio, o rosto de um mártir, com o olhar de um homem que tinha fome de Deus e já atingira uma evidente santidade.

 

- Quem sois? - perguntou ao dominicano.

 

- Sou um mensageiro - Bernard de Taillebourg agarrou-se àquela explicação para esconder que se sentia confuso. Tinha conseguido escapar à escolta escocesa e gostaria de saber se conseguiria agora escapar àquele jovem alto com o longo arco.

 

Nessa altura uma chuva de setas zumbiu vinda do sul e uma delas atingiu o tronco de um ulmeiro próximo, enquanto a segunda ziguezagueava ao longo da erva molhada; um cavalo relinchou ali próximo e ouviram-se homens a gritar desordenadamente. O padre De Taillebourg chamou o seu criado para agarrar o segundo cavalo, que trotava monte acima e viu que o desconhecido com o arco se esquecia dele, enquanto olhava para sul, na direcção de onde tinham vindo as setas.

 

Assim virou-se para a cidade, ordenou ao criado que o seguisse e tratou de andar depressa.

 

Por Deus, pela França, por São Dinis e pelo Graal.

 

Sir William Douglas praguejou. As setas zumbiam em seu redor. Os cavalos relinchavam assustados e os homens jaziam mortos ou feridos na relva. Por um instante sentiu-se estupefacto, depois apercebeu-se que o seu grupo de pilhagem se tinha encontrado com uma força inglesa, mas que tipo de força? Não havia nenhum exército ali próximo! Todo o exército inglês estava em França e não ali! Isto significava certamente que os cidadãos de Durham tinham quebrado a sua trégua, o que provocou uma raiva enorme a Sir William. Cristo, pensou, não haveria pedra sobre pedra quando ele tivesse saído da cidade. Chegou bem ao corpo o escudo enorme e impeliu o cavalo para sul em direcção aos arqueiros que se alinhavam junto a uma sebe baixa. Calculou que não fossem assim tantos, talvez apenas cinquenta e, como ainda tinha duzentos homens a cavalo, trovejou uma ordem de ataque.

 

As espadas saíram das bainhas.

 

- Matai esses bastardos! - gritou Sir William - Matai-os! Castigava o cavalo com as esporas e empurrava para o lado os outros

 

cavaleiros confusos na ânsia de chegar à sebe. Sabia que a carga seria irregular, sabia que alguns dos seus homens teriam de morrer, mas assim que estivessem do outro lado dos espinheiros e entre os bastardos, matá-los-iam a todos.

 

Malditos arqueiros, pensou. Odiava arqueiros. Odiava principalmente os arqueiros ingleses e detestava traidores. Detestava sobretudo os arqueiros de Durham que não tinham respeitado as tréguas.

 

- Avante! Avante! - gritava. - Douglas! Douglas! - Gostava que os inimigos soubessem quem os estava a dizimar, quem lhes violaria as mulheres quando eles tivessem morrido.

 

Se a cidade tivesse violado a trégua, então Deus a defendesse, pois toda ela seria saqueada, violada e queimada. Incendiaria as casas, revolveria as cinzas e deixaria os ossos dos cidadãos ao frio do Inverno, para que, durante anos, os homens pudessem ver as pedras nuas da sua catedral em ruínas e os pássaros fazendo ninho nas torres vazias do castelo. Saberiam assim como era a vingança do cavaleiro de Liddesdale.

 

- Douglas! - gritava. - Douglas! - E sentia o bater das setas no seu escudo. Depois o cavalo relinchou e percebeu que estas também lhe deveriam ter entrado no peito, pois sentia o animal vacilar.

 

Soltou rapidamente os pés dos estribos, ao mesmo tempo que o cavalo caía para o lado. Os homens passavam por ele a toda a velocidade, gritando em desafio. Depois, Sir William atirou-se da sela abaixo para cima do escudo que deslizou na relva como um trenó. Ouviu o cavalo relinchar de dor, mas ele estava incólume, praticamente sem um arranhão, portanto pôs-se de pé, procurou a espada que deixara cair e correu com os seus cavaleiros. Um deles tinha uma seta espetada no joelho. Um cavalo caiu com os olhos brancos, os dentes à mostra, o sangue a correr dos ferimentos. Os primeiros cavaleiros estavam junto à sebe e tinham encontrado uma fenda por onde passar. Sir William viu que os malditos cavaleiros ingleses fugiam. Bastardos, pensou, malditos ingleses, cobardes, filhos de uma rameira, depois soaram mais arcos à esquerda e viu um homem cair de um cavalo com uma seta na cabeça. O nevoeiro levantou um pouco, mostrando que afinal os inimigos não tinham fugido, mas que se tinham simplesmente juntado numa massa sólida de homens-de-armas a pé. De novo soaram as cordas. Um cavalo recuou de dor com uma flecha na barriga. Um homem estremeceu, foi de novo atacado e caiu com um ruído da cota de malha.

 

Cristo na cruz, pensou Sir William, mas estava ali um maldito exército! Todo um exército!

 

- Recuai! Recuai! - gritou. - Para trás! Recuai! - berrou até ficar rouco. Outra seta enfiou-se-lhe no escudo, a ponta atingindo a madeira coberta de couro e, cheio de raiva, partíu-a.

 

- Meu tio! Meu tio! - gritou um homem e Sir William viu tratar-se de Robbie Douglas, um dos seus oito sobrinhos que cavalgavam com o exército escocês e lhe trazia um cavalo. Porém um par de setas inglesas enfiou-se nos quartos do animal que, louco de fúria, se soltou da mão de Robbie.

 

- Vai para norte! - gritou Sir William ao sobrinho. - Vai, Robbie!

 

Mas Robbie acompanhou o tio. Uma seta atingiu-lhe a sela, outra passou-lhe junto ao elmo, mas ele inclinou-se, pegou na mão de Sir William e arrastou-o nessa direcção. As setas seguiam-nos, mas o nevoeiro mais espesso escondeu-os. Sir William sacudiu a mão do sobrinho e seguiu aos tropeções para norte, desajeitadamente por causa do escudo cheio de setas espetadas e pela pesada cota de malha. Malditos! Malditos!

 

- Atenção à esquerda! Atenção à esquerda - gritou uma voz escocesa e Sir William viu alguns cavaleiros ingleses saírem de trás da sebe. Um deles viu Sir William e pensou que seria presa fácil. Os ingleses tinham sido tão surpreendidos pela batalha como os escoceses. Alguns usavam a cota de malha, mas nenhum deles envergava a armadura apropriada ou empunhava lanças. Sir William calculou que tivessem detectado a sua presença muito antes de terem lançado as primeiras setas e a raiva de se sentir assim emboscado fê-lo avançar em direcção ao cavaleiro que segurava a espada como uma lança. Sir William nem sequer se incomodou em tentar aparar o golpe. Lançou o seu pesado escudo na direcção do focinho do cavalo, ouviu-o gemer de dor enquanto lhe batia com a espada nas pernas para que o animal desse a volta e o cavaleiro perdesse o equilíbrio. Este tentava ainda acalmar o animal quando a espada de Sir William lhe rasgou a cota de malha e lhe entrou no ventre.

- Bastardo! - rosnou Sir William. O homem gemia enquanto Sir William remexia a espada, mas Robbie aproximou-se do homem pelo outro lado e cortou-lhe a cabeça enquanto ele caía da sela. O outro cavaleiro desaparecera misteriosamente, mas logo a seguir as setas voaram de novo e Sir William sabia que o nevoeiro levantava. Arrancou a espada do cadáver, enfiou na bainha a lâmina molhada e subiu para a sela do morto. - Vamos embora! gritou para Robbie que parecia disposto a derrotar sozinho toda a força inglesa. - Vá, rapaz! Vamos embora!

 

Por Deus, pensou, como era difícil fugir de um inimigo, embora não fosse vergonha, pois eram duzentos homens a fugir de seiscentos ou setecentos. Depois, quando o nevoeiro levantasse poderia haver uma batalha como devia ser, um embate assassino de homens e aço e Sir William ensinaria aqueles bastardos ingleses a lutar. Picou o seu cavalo emprestado, disposto a levar as novas dos ingleses ao exército escocês, mas viu um arqueiro escondido numa sebe. Acompanhavam-no uma mulher e um padre e Sir William pôs a mão no punho da espada e pensou dar a volta para se vingar pelas setas que tinham atingido o seu grupo de homens em busca de alimento para os animais, porém, atrás dele os outros ingleses lançavam o seu grito de guerra:

 

- São Jorge! São Jorge!

 

Assim, Sir William deixou em paz o arqueiro isolado. Cavalgou, deixando homens válidos sobre a erva do Outono. Estavam mortos e moribundos, feridos e assustados. Mas ele era um Douglas. Voltaria para se vingar.

 

Um grupo de homens em pânico galopou pela sebe atrás da qual Thomas, Eleanor e o padre Hobbe estavam escondidos. Havia meia-dúzia de cavalos sem cavaleiro, enquanto pelo menos uma dezena de outros sangravam de feridas das quais saíam setas com as penas brancas manchadas de vermelho. Aos cavaleiros seguiam-se trinta ou quarenta homens a pé, uns coxos, outros com setas metidas nas roupas e alguns transportando as suas selas. Apressavam-se a passar pelas cabanas queimadas, quando uma nova nuvem de setas lhes apressou a retirada e o barulho dos cascos os obrigou a olhar para trás em pânico. Alguns dos fugitivos desataram a correr desajeitadamente quando uma dezena de cavaleiros envergando cotas de malha saiu com grande ruído do nevoeiro. Enormes torrões de terra molhada eram cuspidos dos cascos dos cavalos. Os corcéis foram refreados, obrigados a dar passos curtos, enquanto os cavaleiros identificavam as vítimas, depois as esporas voltaram ao mesmo tempo que os cavalos eram soltos para a matança e Eleanor soltou um grito enorme em antecipação à carnificina. As pesadas espadas cortavam. Um ou dois dos fugitivos caiu de joelhos e ergueu as mãos em sinal de rendição, mas a maioria tentava fugir. Um escondeu-se atrás de um cavaleiro a galope e fugiu em direcção à sebe, viu Thomas e o arco e regressou imediatamente à esteira de outro cavaleiro que lhe enfiou na cara a pesada lâmina da sua espada. O escocês ajoelhou, com a boca aberta, como se fosse gritar, mas dela não saiu qualquer som, apenas sangue que lhe escorria por entre os dedos com que apertava o nariz e os olhos. O cavaleiro, que não tinha escudo ou elmo voltou o corcel e depois inclinou-se na sela para cortar com a espada o pescoço da vítima, matando o homem como se este fosse uma vaca no matadouro. Isto pareceu a Thomas estranhamente apropriado já que o homem usava uma insígnia com uma vaca castanha no saiote, mais uma espécie de gibão que mal lhe cobria a couraça de malha. O saiote estava rasgado, coberto de sangue e a insígnia da vaca tinha-se esbatido, de modo que a princípio Thomas pensou que se tratava de um touro. Depois, o cavaleiro voltou-se para Thomas, ergueu ameaçadoramente a espada ensanguentada, mas depois reparou no arco e deteve o cavalo.

 

- Inglês?

 

- Com todo o orgulho! - respondeu o padre Hobbe em vez de Thomas. Um segundo cavaleiro, este com três corvos negros bordados no saiote branco, puxou as rédeas junto ao primeiro. Três prisioneiros eram empurrados para junto dos dois.

 

- Como diabo chegaram à frente? - perguntou a Thomas o recém-chegado.

 

- À frente? - perguntou Thomas.

 

- De todos nós.

 

- Viemos a pé desde França - disse Thomas. - Ou pelo menos desde Londres.

 

- Desde Southampton! - corrigiu o padre Hobbe com um ar formal completamente deslocado naquele cume cheio de fumo onde um escocês agonizava.

 

- De França? - O primeiro homem com o cabelo emaranhado, o rosto moreno e um sotaque tão serrado que Thomas teve dificuldade em entendê-lo, parecia nunca ter ouvido falar de França. - Haveis estado em França? - perguntou.

 

- Com o rei.

 

- Agora estais connosco - disse o segundo homem em tom ameaçador, olhando Eleanor dos pés à cabeça. - Haveis trazido a dama de França?

 

- Sim - respondeu Thomas, lacónico.

 

- Mente! Mente! - disse outra nova voz, de um terceiro cavaleiro que se aproximava. Era um homem magro, talvez com trinta anos e um rosto tão vermelho e arranhado que parecia tê-lo esfolado com as cerdas de uma escova ao arrancar a barba das suas faces encovadas. Tinha o cabelo escuro e comprido e atado na nuca com uma fita de couro. O cavalo, ruço e cheio de cicatrizes era tão magro como o dono e tinha um olhar nervoso. - Odeio mentirosos - disse o homem, olhando para Thomas, para logo se voltar com ar maligno para os prisioneiros, um dos quais usava no saiote a insígnia com um coração vermelho do cavaleiro de Liddesdale. - Quase tanto como odeio os malditos Douglas.

 

O recém-chegado usava uma túnica acolchoada em lugar de uma couraça. Era uma espécie de protecção que um arqueiro podia usar se não tivesse nada melhor; mesmo assim, este homem tinha certamente um posto mais importante do que os outros arqueiros, pois usava uma corrente de ouro ao pescoço, marca de distinção reservada para a pequena nobreza ou até mais. Da sela pendia-lhe um elmo velho e semelhante ao focinho de um porco, com tantas marcas como o cavalo; à cintura trazia uma espada numa simples bainha de couro, enquanto ao ombro trazia um escudo pintado de branco e com um machado negro. Tinha também um chicote enrolado preso ao cinto.

 

- Os escoceses têm arqueiros - afirmou, olhou para Thomas e depois com uma expressão de poucos amigos para Eleanor. - E têm mulheres.

 

- Sou inglês - insistiu Thomas.

 

- Somos todos ingleses - disse firmemente o padre Thomas, esquecendo-se de que Eleanor era normanda.

 

- Um escocês diria que era inglês para não lhe furarem as entranhas disse causticamente o homem da cara arranhada. Os outros dois tinham-se afastado, preferindo certamente acautelar-se com aquele homem magro que agora desenrolava o chicote de couro e, com habilidade natural, fê-lo estalar de modo que a ponta vibrou no ar muito perto do rosto de Eleanor. - Ela é inglesa?

 

- É francesa - respondeu Thomas.

 

O cavaleiro não respondeu imediatamente, ficando a olhar a jovem. O chicote ondeou quando a mão lhe tremeu. Viu uma jovem bonita, magra com cabelo dourado e enormes olhos assustados. A gravidez ainda não era evidente e havia nela uma delicadeza que falava de luxo e raras comodidades.

 

- Escocesa, galesa, francesa, que importa? - perguntou. - É uma mulher. Perguntais a um cavalo onde ele nasceu antes de o montardes? - Até a sua própria montada se assustou nesse momento pois o vento mudou e lançou-lhe um bafo de fumo para as narinas. Saltou para o lado numa série de passos nervosos até que o homem o esporeou tão violentamente que picou o caparazão almofadado e fez deter o cavalo a tremer de medo. - Não importa o que ela é - disse o homem a Thomas, apontando com o punho do chicote para Eleanor -, não importa. Mas vós sois escocês.

 

- Sou inglês - repetiu Thomas. Mais uma dezena de homens com a insígnia do machado negro tinha vindo ver Thomas e os seus companheiros. Os homens rodearam os três prisioneiros escoceses que pareciam conhecer o cavaleiro do chicote e não estavam muito satisfeitos. Havia mais arqueiros e homens-de-armas a olhar as cabanas que ardiam, rindo-se das ratazanas em pânico que saíam a correr do que restava do colmo cheio de musgo.

 

Thomas retirou uma seta da sua bolsa e imediatamente quatro ou cinco arqueiros com a libré do machado negro, meteram setas nas suas cordas. Os outros sorriam, na expectativa, como se já conhecessem o jogo e o apreciassem, mas antes de o começarem, o cavaleiro foi distraído por um dos prisioneiros escoceses, o homem que usava a insígnia de Sir William Douglas que, aproveitando-se do interesse mostrado pelos seus captores em Thomas e Eleanor, se tinha libertado e corrido para norte. Ainda não tinha dado vinte passos e já fora apanhado por um dos homens-de-armas ingleses. O homem magro, divertido pela desesperada tentativa de liberdade, apontou para uma das cabanas a arder.

 

- Aqueçam esse bastardo - ordenou. - Dickon! Beggar! - disse para dois peões. - Tomai conta destes três - apontou na direcção de Thomas. - Vigiai-os de perto!

 

Dickon, o mais jovem, tinha um rosto redondo e risonho, mas Beggar era um homem enorme, um gigante bamboleante, com tanta barba no rosto que apenas se lhe viam o nariz e os olhos através dos pêlos emaranhados e sujos por baixo do capacete enferrujado que lhe servia de elmo. Thomas tinha mais de um metro e oitenta, a altura de um arco, mas parecia um anão junto a Beggar, cujo peito enorme esticava um gibão de couro com placas de metal. Trazia à cintura duas braças de corda, com uma espada e um mangual. A espada, cuja lâmina estava embotada, não tinha bainha, e um dos picos da enorme bola de metal do mangual estava dobrado e coberto de sangue e cabelos. O enorme punho da arma batia contra as suas pernas nuas enquanto o gigante se aproximava de Eleanor.

 

- Bonita - disse. - Bonita!

 

- Beggar! Baixa as patas! Baixa as patas! - ordenou alegremente Dickon. Beggar obedeceu e afastou-se de Eleanor, embora continuasse a olhar para ela, emitindo com a garganta um som baixo e gorgolejante. Depois, um grito fê-lo olhar para a cabana em chamas que estava mais próxima e onde um escocês, agora despido, entrava e saía dentro da fogueira. O prisioneiro, em pânico, tentava freneticamente apagar as chamas em que ardia a sua longa cabeleira, ao mesmo tempo que corria em círculos para divertimento dos seus captores ingleses. Os outros dois prisioneiros escoceses estavam acocorados ali perto, guardados por espadas desembainhadas.

 

O cavaleiro magro ficou a ver um arqueiro envolver os cabelos do prisioneiro num bocado de estopa para apagar as chamas.

 

- Quantos sois vós? - perguntou o homem magro.

 

- Milhares! - respondeu o escocês em tom de desafio. O cavaleiro inclinou-se sobre a pega da sela.

 

- Quantos milhares, meu idiota?

 

O escocês com o cabelo e a barba a fumegar e a pele nua escurecida pelas brasas e lacerada por cortes, fazia o melhor possível por manter uma expressão de desafio.

 

- Mais do que os suficientes para vos levarem para casa dentro de uma jaula.

 

- Não devia dizer aquilo ao Espantalho! - comentou Dickon divertido. Não devia...!

 

- Espantalho? - perguntou Thomas. Parecia-lhe uma alcunha apropriada pois o cavaleiro com o machado negro era magro, pobre e assustador.

 

- Para ti, Sir Geoffrey Carr, idiota - disse Dickon, olhando o Espantalho com uma expressão de respeito.

 

- E quem é Sir Geoffrey Carr? - perguntou Thomas.

 

- É o Espantalho e o senhor de Lackby - respondeu Dickon num tom que implicava que toda a gente sabia quem era Sir Geoffrey Carr. - E agora vão começar os seus jogos de Espantalho! - Dickon sorriu, pois Sir Geoffrey, de novo com o chicote enrolado à cintura descera do cavalo e aproximava-se do prisioneiro escocês de faca em punho.

 

- Segurem-no - ordenou Sir Geoffrey aos arqueiros. - Segurem-no e abram-lhe as pernas.

 

- Non! - exclamou Eleanor num protesto.

 

- Bonita - disse Beggar numa voz que lhe veio do fundo do enorme peito. O escocês gritou e tentou soltar-se, mas estava atado e bem seguro pelos três arqueiros, enquanto o homem também conhecido na Escócia como o Espantalho se ajoelhou entre as suas pernas. Algures dentro do nevoeiro que já levantava um corvo crocitou. Um grupo de arqueiros olhava para norte, não fossem os escoceses regressarem, mas a maioria observava o Espantalho com a sua faca.

 

- Queres ficar com os teus engelhados tomates? - perguntou Sir Geoffrey ao escocês. - Então diz-me quantos sois.

 

- Quinze mil? Dezasseis? - O escocês parecia subitamente desejoso de falar.

 

- Está a falar de dez ou onze mil - anunciou Sir Geoffrey aos arqueiros que o escutavam. - E já é mais do que suficiente para as nossas poucas setas. E o patife do vosso rei, também cá está?

 

Nessa altura, o escocês ficou em silêncio, mas um toque com a lâmina da faca nas partes baixas recordou-lhe a sua situação.

 

- Sim, David Bruce está cá.

 

- Quem mais?

 

O desesperado escocês nomeou os outros chefes do exército. O meio-irmão do rei e herdeiro do trono, Lorde Robert Stewart encontrava-se com o exército invasor, tal como os condes de Moray, de March, de Wigtown, de Fife e de Menteith. Nomeou outros, chefes de clãs e homens violentos das terras estéreis a norte, porém Carr interessou-se mais por dois dos condes.

 

- Fife e Menteith? - perguntou. - Estão aqui?

 

- Sim, senhor, estão.

 

- Mas juraram vassalagem ao rei Eduardo - disse Sir Geoffrey parecendo duvidar do prisioneiro.

 

- Marcham agora com o nosso exército - insistiu o escocês. - Tal como o Douglas de Liddesdale.

 

- Esse bastardo - disse Sir Geoffrey. - Esse merdoso do inferno. Olhou para norte, através do nevoeiro que se afastava do alto do monte que se revelava agora como sendo um planalto estreito e rochoso que corria para norte e para sul. A pastagem do planalto era escassa e as pedras desgastadas surgiam através da erva como as costelas de um homem esfomeado. A nordeste, para lá do vale de bruma, a catedral e o castelo de Durham erigiam-se no seu penhasco banhado pelo rio, ao passo que, para oeste, havia montes, bosques e campos murados cortados por pequenos riachos. Dois bútios voavam sobre o monte, dirigindo-se ao exército escocês que estava ainda escondido pelo nevoeiro que se mantinha a norte, mas Thomas pensava que não demoraria muito que as tropas descobrissem os homens que tinham perseguido os seus camaradas a partir do cruzamento.

 

Sir Geoffrey endireitou-se e meteu a faca na bainha, mas logo pareceu recordar-se de qualquer coisa e sorriu para o prisioneiro.

 

- Ias levar-me de volta para a Escócia numa jaula, não é verdade?

 

- Não!

 

- Ias, sim! E porque haveria eu de querer ver a Escócia? Sempre que quiser posso espreitar uma latrina - cuspiu sobre o prisioneiro e depois acenou aos arqueiros. - Segurai-o.

 

- Não! - gritou o escocês e o grito transformou-se num terrível berro quando Sir Geoffrey se inclinou, mais uma vez, para diante empunhando a faca. O prisioneiro estrebuchou e tentou erguer-se, enquanto o Espantalho se levantava, com parte da frente do gibão almofadado coberto de sangue. O prisioneiro continuava a gritar, agarrando com as mãos as ensanguentadas partes baixas, mas o espectáculo trouxe um sorriso aos lábios do Espantalho. - Atirem com o resto para a fogueira - disse, voltando-se para olhar os outros dois prisioneiros escoceses. - Quem é o vosso amo? - perguntou-lhes.

 

Hesitaram ambos, depois um deles humedeceu os lábios.

 

- Servimos a Douglas - disse em tom orgulhoso.

 

- Odeio o Douglas. Odeio todos os Douglas que caíram das costas do diabo. - Sir Geoffrey estremeceu e depois voltou-se para o cavalo. - Queimai-os a ambos - ordenou.

 

Thomas afastou o olhar de todo aquele sangue quando avistou a cruz de pedra no centro do cruzamento. Fitou-a sem ver o dragão gravado, mas escutando os ecos do ruído e depois os novos gritos enquanto os prisioneiros ardiam nas chamas. Eleanor correu para ele e agarrou-lhe o braço.

 

- Bonita - disse Beggar.

 

- Pronto, Beggar, pronto! - exclamou Sir Geoffrey. - Içai-me! - O gigante estendeu as mãos e Sir Geoffrey usou-as para trepar para a sua sela; depois picou o cavalo na direcção de Thomas e Eleanor. - Tenho sempre fome depois de uma castração - disse, voltando-se para a fogueira, de onde um dos escoceses, com o cabelo em chamas, tentava escapar, mas foi de novo empurrado para o inferno, por uma dezena de arcos. O urro do homem extinguiu-se abruptamente quando ele caiu. - Hoje apetece-me castrar e queimar escoceses - disse Sir Geoffrey. - E tu, meu rapaz, pareces-me escocês.

 

- Não sou um rapaz - disse Thomas, sentindo a raiva erguer-se dentro de si.

 

- Pois a mim pareces-me um rapaz. E talvez um rapaz escocês. - Sir Geoffrey. estava simplesmente divertido com a zanga de Thomas e sorria para a sua nova vítima, que parecia de facto jovem, embora já tivesse cumprido vinte e dois Verões e tivesse lutado nos últimos quatro na Bretanha, Normandia e Picardia. - Pareces-me escocês, rapaz - disse o Espantalho, provocando Thomas para que este o desafiasse. - Todos os escoceses são morenos!

- Apelou à multidão para que julgasse o tom de pele de Thomas, que de facto estava queimada pelo sol.

 

Tinha também cabelo negro, mas o mesmo se poderia dizer de mais de uma dezena dos arqueiros do Espantalho. Embora Thomas tivesse um ar jovem, parecia também ser muito duro. Usava o cabelo cortado rente ao crânio e quatro anos de guerra tinham-lhe encovado as faces, mas havia qualquer coisa de diferente na sua aparência: uma beleza que atraía os olhares e espicaçava a inveja de Sir Geoffrey Carr.

 

- Que trazes no teu cavalo? - Sir Geoffrey apontou com o queixo para a égua de Thomas.

 

- Nada que vos pertença - replicou Thomas.

 

- O que é meu, é meu, rapaz e, se eu quiser, o que é teu também é meu. Meu e posso fazer o que quiser. Beggar! Queres a rapariga?

 

Beggar sorriu por trás das barbas e acenou rapidamente com a cabeça para cima e para baixo.

 

- Bonita - disse, coçando os piolhos da barba. - Beggar gosta da bonita.

 

’’ - Talvez possas ficar com a bonita depois de eu me servir dela - disse Sir Geoffrey com um sorriso, para logo retirar o chicote da cintura onde o tinha pendurado e o fazer estalar no ar. Thomas viu que a longa correia de couro tinha na ponta uma pequena garra de ferro. Sir Geoffrey sorriu de novo para Thomas e depois ergueu o chicote em sinal de ameaça. - Despe-a, Beggar - ordenou. - Vamos dar aos rapazes um pouco de prazer - e continuava a sorrir quando Thomas enfiou a ponta do pesado arco nos dentes do cavalo de Sir Geoffrey e o animal recuou, relinchando, tal como Thomas esperava. O Espantalho, que não esperava aquele movimento, caiu para trás, procurando equilibrar-se, mas os seus homens, que o deviam ter protegido, estavam tão entretidos a queimar os prisioneiros escoceses que nenhum deles ergueu um arco ou uma espada antes de Thomas ter arrastado Sir Geoffrey da sela e o ter no chão com uma faca na garganta.

 

- Há quatro anos que mato homens - disse Thomas -, e nem todos eram franceses.

 

- Thomas! - gritou Eleanor.

 

- Toma-a, Beggar, toma-a! - gritou Sir Geoffrey. Tentou escapar, mas Thomas era arqueiro e anos a puxar o seu enorme arco negro tinham-lhe dado uma força extraordinária nos braços e no peito e Sir Geoffrey não conseguiu escapar-lhe, preferindo cuspir-lhe na cara. - Toma-a, Beggar! - gritou de novo.

 

Os homens do Espantalho correram em direcção ao amo, mas detiveram-se quando viram que Thomas tinha uma faca na garganta da sua presa.

 

- Despe-a, Beggar! Despe a bonita! Vamos todos servir-nos dela! - vociferava Sir Geoffrey, aparentemente esquecido da lâmina que tinha encostada à garganta.

 

- Quem sabe ler aqui? Quem sabe ler? - clamou o padre Hobbe. A estranha pergunta deteve todos, até mesmo Beggar que tinha arrancado o chapéu de Eleanor e lhe rodeava o pescoço com o seu enorme braço esquerdo, enquanto já lhe agarrava com a mão direita o decote do vestido. - Quem, aqui presente, sabe ler? - perguntou de novo o padre Hobbe, brandindo um pergaminho que retirara de um dos alforges da égua de Thomas. - Eis uma carta do meu amo, o bispo de Durham que se encontra em França, em companhia do nosso rei e senhor, e que é enviada a John Fossor, prior de Durham. Apenas um inglês que tivesse lutado com o nosso rei poderia transportar esta carta. Trouxemo-la de França.

 

- Não prova nada! - gritou Sir Geoffrey, cuspindo mais uma vez no rosto de Thomas, quando sentiu a lâmina encostada à garganta.

 

- Em que língua está escrita a carta? - um novo cavaleiro tinha picado a montada por entre os homens do Espantalho. Não tinha nem camisa de tela, nem saiote, mas a insígnia sobre o seu escudo muito gasto era uma vieira sobre uma cruz, o que indicava que não era um dos seguidores de Sir Geoffrey.

- Em que língua? - repetiu.

 

- Latim - respondeu Thomas, ainda com a faca muito encostada à garganta de Sir Geoffrey.

 

- Deixai Sir Geoffrey levantar-se - ordenou o recém-chegado a Thomas -, e lerei a carta.

 

- Dizei-lhe que solte a minha mulher - apostrofou Thomas.

 

O cavaleiro pareceu surpreso por um simples arqueiro lhe ter dado uma ordem, mas não protestou. Fez mesmo avançar o seu cavalo na direcção de Beggar.

 

- Deixa-a - disse e, quando o gigante não obedeceu, começou a desembainhar a espada. - Queres que te corte as orelhas, Beggar? É isso? As duas orelhas? Depois o nariz, a seguir a pila, é isso que queres, Beggar? Queres ser tosquiado como uma ovelha no Verão? Queres ficar como um gnomo?

 

- Solta-a, Beggar - ordenou Sir Geoffrey, mal-humorado.

 

Beggar obedeceu e recuou, e o cavaleiro inclinou-se na sela para receber a carta das mãos do padre Hobbe.

 

- Soltai Sir Geoffrey - disse o recém-chegado a Thomas. - Pelo menos por um dia vamos ter paz entre os ingleses.

 

O cavaleiro era já velho, tinha pelo menos cinquenta anos e uma cabeleira branca que parecia nunca ter visto escova ou pente. Era um homem grande, alto e barrigudo, montando um cavalo forte mas sem caparazão, apenas com um velho pano de sela. A sua cota de malha estava tristemente ferrugenta nuns pontos e rota noutros e, sobre ela, tinha uma couraça que já perdera duas das suas correias. Pendia-lhe uma longa espada do lado direito da cintura. Thomas pensou que mais parecia um agricultor que tivesse vindo para a guerra com todo o equipamento que os vizinhos lhe pudessem ter emprestado; porém, fora saudado com deferência pelos arqueiros de Sir Geoffrey que tinham tirado os chapéus e os elmos quando ele aparecera. Até mesmo Sir Geoffrey parecia intimidado por aquele homem de cabelos brancos que franzia a testa enquanto lia a carta.

 

- Thesaurus, é? - dizia para consigo mesmo. - E um belo imbróglio é o que é! Um thesaurus, ora vejam! - Thesaurus era latim, mas o resto das palavras tinham sido ditas em francês normando e ele estava convencido que nenhum arqueiro o poderia compreender.

 

- Fala num tesouro - Thomas utilizou a mesma língua, que lhe fora ensinada pelo pai. - Os homens entusiasmam-se. Até de mais.

 

- Deus das alturas, Deus dos céus! Mas falais francês! Os milagres não acabam. Thesaurus quer, de facto, dizer tesouro, não é verdade? O meu latim já não é o que era quando eu era jovem. Foi-me ensinado à pancada por um padre e parece que desde esses tempos se foi esgotando aos poucos. Um tesouro, não é verdade? E falais francês! - o cavaleiro mostrava uma enorme surpresa que Thomas falasse a língua dos aristocratas, embora Sir Geoffrey que não a falava ficasse assustado, pois o facto sugeria que Thomas podia ser muito mais bem-nascido do que aquilo que a princípio julgara. O cavaleiro devolveu a carta ao padre Hobbe e depois dirigiu-se a Sir Geoffrey:

 

- Queríeis começar uma desavença com um inglês, Sir Geoffrey, nem mais nem menos do que com um mensageiro do nosso senhor e rei. Como explicais isto?

 

- Nada tenho a explicar, meu senhor - disse Sir Geoffrey. As duas últimas palavras foram acrescentadas com relutância.

 

- Deveria acabar convosco - disse sua senhoria com ar bem-disposto.

 

- Depois mandava-vos empalhar e metia-vos num pau para assustar os corvos que andam à volta dos meus cordeiros recém-nascidos. Podia-vos exibir na Feira de Skipton, Sir Geoffrey, como exemplo para os outros pecadores - pareceu reflectir na ideia durante alguns segundos, mas depois abanou a cabeça. - Montai - disse - e combatei hoje contra os escoceses em vez de discutirdes com os vossos compatriotas ingleses. - Voltou-se na sela e ergueu a voz para que todos os arqueiros e homens-de-armas o pudessem ouvir.

 

- Todos a descer o monte! E rápido, antes que os escoceses cheguem e vos persigam! Querem ir fazer companhia àqueles patifes ali nas fogueiras? apontou para os prisioneiros escoceses que nada mais eram que figuras escuras e engelhadas nas chamas coloridas. Depois, voltou-se para Thomas e passou a falar em francês: - Vindes realmente de França?

 

- Sim, senhoria.

 

- Então, meu amigo, fazei-me a cortesia de falar comigo.

Dirigiram-se para sul, abandonando a cruz de pedra partida, os homens queimados e os cadáveres trespassados por setas na bruma que se desfazia, no local em que o exército da Escócia chegara a Durham.

 

Bernard de Taillebourg pegou no crucifixo que trazia ao pescoço e beijou a figura retorcida de Cristo, pregada na pequena cruz de madeira.

 

- Deus esteja convosco, Irmão - murmurou para o velho deitado num banco de pedra protegido por uma esteira de palha e um cobertor dobrado. Um segundo cobertor, também muito fino, cobria o homem cujo cabelo era branco e frisado.

 

- Está frio - respondeu em voz fraca o Irmão Hugh Collimore. - Muito frio. - Falava francês, embora para De Taillebourg, o sotaque do velho monge fosse bárbaro por ser o francês da Normandia e dos governantes normandos da Inglaterra.

 

- O Inverno está a chegar - disse De Taillebourg. - Sente-se o cheiro no vento.

 

- Estou a morrer. - O Irmão Collimore voltou os olhos raiados de sangue para o seu visitante. - Já não sinto os cheiros. Quem sois?

 

- Tomai - disse De Taillebourg, entregando o seu crucifixo ao velho monge, para logo espevitar a lareira com mais dois troncos e depois cheirar um jarro de vinho aromático que estava poisado no chão. Não estava azedo, de modo que deitou um pouco numa caneca de osso. - Pelo menos tendes lume - disse, inclinando-se para espreitar pela pequena janela, que mais parecia uma seteira e estava voltada para ocidente do outro lado do circundante Wear. A enfermaria do monge ficava na encosta do monte de Durham por baixo da catedral e De Taillebourg conseguia ver os homens-de-armas escoceses transportando as suas lanças pelas farripas de nevoeiro que restavam no horizonte. Reparou que poucos dos homens de cota de malha tinham cavalos, o que sugeria que os escoceses pensavam lutar a pé.

 

O Irmão Collimore, de rosto pálido e voz fina, agarrou a pequena cruz.

 

- O fogo é autorizado aos moribundos - disse como se tivesse sido acusado de não ter conseguido resistir a um luxo. - Quem sois?

 

- Venho de Paris, da parte do cardeal Bessières - disse De Taillebourg.

- Envia-vos as suas saudações. Bebei isto, que vai aquecer-vos - entregou ao velho a caneca de vinho.

 

Collimore recusou. Tinha um olhar cauteloso.

 

- O cardeal Bessières? - perguntou, sugerindo que o nome lhe era desconhecido.

 

- O legado do Papa em França. - De Taillebourg ficou surpreendido porque o monge não reconhecera o nome, mas pensou que talvez a ignorância do moribundo fosse útil. - O cardeal - prosseguiu o dominicano - ama a Igreja com tanto ardor como ama a Deus.

 

- Se ama a Igreja - disse Collimore com força surpreendente -, poderá talvez usar a sua influência para convencer o Santo Padre a levar de novo o papado para Roma. - A afirmação esgotou-o e fechou os olhos. Nunca fora um homem forte, mas agora, sob o seu cobertor infestado de piolhos, parecia ter encolhido, transformando-se numa criança de dez anos e o seu cabelo branco era fino e escasso como o de um bebé. - Ele que leve o papado para Roma - repetiu em voz mais fraca. - Todos os nossos problemas pioraram desde que passou para Avinhão.

 

- O cardeal Bessières nada mais deseja do que trazer a Santa Sé de volta para Roma - mentiu De Taillebourg. - E talvez vós, Irmão, possais conseguir isso.

 

O Irmão Collimore pareceu não escutar aquelas palavras. Tinha aberto de novo os olhos e fitava agora as pedras caiadas do tecto em abóbada. O quarto era baixo, frio e branco. Por vezes, quando o sol de Verão ia alto, conseguia ver o cintilar da água reflectida nas pedras brancas. Pensou que no céu avistaria sempre rios cristalinos e ficaria sob um sol quente.

 

- Estive uma vez em Roma - disse, animado. - Recordo-me de descer uns degraus para entrar numa igreja onde cantava um coro. Tão belo.

 

- O cardeal deseja a vossa ajuda - disse Taillebourg.

 

- Havia lá um santo - Collimore franzia a testa, tentando recordar-se. Os seus ossos estavam amarelos.

 

- Por isso o cardeal enviou-me para falar convosco, Irmão - disse De Taillebourg em voz baixa. O criado, de olhos escuros e elegante, vigiava da porta.

 

- O cardeal Bessières - disse o Irmão Collimore, num sussurro.

 

- Envia-vos as suas saudações em Cristo, Irmão.

 

- O que Bessières quer - disse Collimore, ainda num murmúrio - consegue com chicotes e escorpiões.

 

De Taillebourg esboçou um leve sorriso. Afinal Collimore conhecia o cardeal Bessières, e não admirava. Talvez o medo de Bessières fosse o suficiente para conseguir a verdade. O monge fechara de novo os olhos e movia os lábios em silêncio, parecendo rezar. De Taillebourg não lhe perturbou as orações, limitando-se a olhar através da pequena janela para o monte distante, onde os escoceses preparavam a sua linha de batalha. Os invasores estavam voltados para sul, de modo que o extremo esquerdo da linha estava mais perto da cidade e Taillebourg conseguia ver os homens a disputar posições tentando conseguir os lugares de honra junto dos seus amos. Os escoceses tinham evidentemente decidido lutar a pé, de modo que os arqueiros ingleses não pudessem destruir os seus homens-de-armas, matando-lhes os cavalos. Ainda não havia sinais desses ingleses, embora, segundo o que De Taillebourg ouvira, pudessem ter reunido uma enorme força. O seu exército estava em França, às portas de Calais e não ali, de modo que talvez fosse apenas um fidalgo que conduzisse os seus seguidores.

 

Havia, mesmo assim, homens suficientes para convencer os escoceses a formarem uma linha de batalha e Taillebourg não esperava que o exército de David se demorasse muito. Significava isto que, se queria ouvir a história do velho e sair de Durham antes dos escoceses entrarem na cidade, o melhor seria apressar-se. Olhou de novo para o monge.

 

- O cardeal Bessières nada mais deseja que a glória da Igreja e de Deus. E quer saber do padre Ralph Vexille.

 

- Valha-me Deus - disse Collimore, e os seus dedos percorreram a figura de osso no pequeno crucifixo, enquanto abria os olhos e voltava a cabeça para fitar o padre. A expressão do monge sugeria que era a primeira vez que tinha de facto reparado em De Taillebourg e estremeceu ao reconhecer no seu visitante um homem que acreditava no mérito do sofrimento. Um homem, reflectia Collimore, que seria tão implacável como o seu mestre em Paris. - Vexille! - disse Collimore, como se quase tivesse esquecido o nome, e depois suspirou. - É uma longa história - disse com ar cansado.

 

- Vou então contar-vos aquilo que sei dela - afirmou De Taillebourg. O dominicano magro percorria o quarto de cá para lá, dando voltas no pequeno espaço sob a parte mais alta do telhado em abóbada. - Sabeis que no Verão houve uma batalha na Picardia? - perguntou. - Eduardo de Inglaterra combateu contra o seu primo rei de França e, do Sul, veio um homem combater pela França em cujo pendão havia um yale que segurava uma taça.

 

- Collimore pestanejou, mas nada disse. Tinha os olhos fixos em De Taillebourg que, por sua vez, se deteve para olhar para o padre. - Um yale a segurar uma taça - repetiu.

 

- Conheço o animal - afirmou tristemente Collimore. Um yale era um animal heráldico, desconhecido na natureza, com garras de leão, chifres de cabra e escamas de dragão.

 

- Veio do Sul - disse De Taillebourg - e pensou que, lutando pela França, lavaria dos elmos da família as velhas manchas de heresia e traição.

 

- O Irmão Collimore encontrava-se demasiado doente para perceber que o criado do padre escutava agora com toda a atenção, com ar quase feroz, ou para reparar que o dominicano erguera levemente a voz para que fosse mais fácil para o criado ouvir da porta. - Esse homem veio do sul, cavalgando orgulhosamente, acreditando que a sua alma fora imaculada, mas ninguém está fora do alcance de Deus. Pensou poder cavalgar vitorioso para os afectos do rei, mas, afinal, a França foi derrotada. Por vezes a vontade de Deus humilha-nos, Irmão, antes de nos conduzir à glória - disse ao velho monge, mas as suas palavras destinavam-se aos ouvidos do criado. - E, depois da batalha, irmão, enquanto a França chorava, encontrei esse homem que me falou de vós.

 

O Irmão Collimore pareceu espantado, mas nada disse.

 

- Falou-me de vós - disse o padre De Taillebourg. - E eu sou inquisidor.

 

Os dedos do Irmão Collimore estremeceram numa tentativa de fazer o sinal da cruz.

 

- A Inquisição - disse em voz fraca - não tem qualquer autoridade em Inglaterra.

 

- A Inquisição tem autoridade no céu e no inferno e pensais que a pequena Inglaterra se nos pode opor? - A fúria na voz de De Taillebourg ecoava na cela da enfermaria. - Para desenraizarmos uma heresia, Irmão, cavalgaremos até aos confins da terra.

 

A Inquisição, tal como a ordem dos frades dominicanos dedicava-se à erradicação da heresia e, para tal, empregavam o fogo e a dor. Não podiam derramar sangue, pois era contra a lei da Igreja, mas qualquer dor infligida sem derramamento de sangue era permitida e a Inquisição bem sabia que o fogo cauterizava as feridas e que a roda não picava a pele do herege e os grandes pesos colocados sobre o peito de um homem faziam rebentar as veias. Em caves com um fedor a fogo, medo, urina e fumo, numa escuridão interrompida pela luz das chamas e pelos gritos dos hereges, a Inquisição caçava os inimigos de Deus e, com a aplicação de dor sem sangue, levava as suas almas até uma abençoada união com Cristo.

 

- Veio um homem do Sul - disse, de novo, De Taillebourg a Collimore -, e a insígnia do seu escudo era um yale segurando uma taça.

 

- Um Vexille - disse Collimore.

 

- Um Vexille - repetiu De Taillebourg -, que conhecia o vosso nome. Agora, padre, porque haveria um herege das terras do Sul saber o nome de um monge inglês de Durham?

 

O Irmão Collimore suspirou.

 

- Todos o sabem - disse em tom cansado. - Toda a família o sabia. Sabiam-no porque Ralph Vexille me foi enviado. O bispo pensou que eu lhe poderia curar a loucura, mas a família receava que ele me contasse os seus segredos. Queriam vê-lo morto, mas fechámo-lo numa cela, onde apenas eu tinha acesso.

 

- E que segredos vos contou? - perguntou De Taillebourg.

 

- Loucuras - disse o Irmão Collimore -, apenas loucuras. - O criado estava à porta a olhar.

 

- Contai-me essas loucuras - ordenou o dominicano.

 

- Os loucos falam de milhares de coisas - disse o Irmão Collimore. Falam de espíritos e fantasmas, de neve no Verão e de escuridão em pleno dia.

 

- Mas o padre Ralph falou-vos do Graal - disse simplesmente De Taillebourg.

 

- Falou do Graal - confirmou o Irmão Collimore. O dominicano soltou um suspiro de alívio.

 

- Que vos disse ele do Graal?

 

Durante algum tempo, Hugh Collimore não falou. O seu peito subiu e baixou, tão ao de leve que o movimento mal se viu, depois abanou a cabeça.

 

- Disse-me que o Graal estivera na posse da sua família e que ele o tinha roubado e escondido! Mas falava de centenas de coisas... de centenas de coisas.

 

- Onde o teria escondido? - perguntou De Taillebourg.

 

- Estava louco. Completamente. Sabei que era meu dever tomar conta dos loucos. Deixávamos de lhes dar de comer ou batíamos-lhes para expulsar os demónios, mas nem sempre resultava. No Inverno mergulhávamo-los no rio, fazendo-os passar pelo gelo e isso já dava resultado. Os demónios odeiam o frio. Deu resultado com Ralph Vexille, ou pelo menos assim pareceu. Sabei que o soltámos algum tempo depois. Os demónios tinham desaparecido, percebeis?

 

- Onde escondeu o Graal? - A voz de De Taillebourg era agora mais alta e mais dura.

 

O Irmão Collimore olhou para o brilho da água reflectida no tecto.

 

- Era louco - murmurou -, mas era inofensivo. Inofensivo. Quando saiu de cá foi enviado para uma paróquia no Sul. Mesmo no Sul.

 

- Em Hookton no Dorset?

 

- Em Hookton no Dorset - concordou o Irmão Collimore. - Tinha lá um filho. Era um grande pecador, sabeis, mesmo assim era padre. Tinha um filho.

 

O padre De Taillebourg olhou para o monge que, por fim, lhe tinha dado alguma novidade.

 

- Um filho? E que sabeis do filho?

 

- Nada - o Irmão Collimore parecia surpreendido por lho terem perguntado.

 

- E que sabeis do Graal? - insistiu De Taillebourg.

 

- Sei que Ralph Vexille era louco - disse Collimore num murmúrio. De Taillebourg sentou-se na cama dura.

 

- Muito louco?

 

A voz de Collimore era ainda mais baixa.

 

- Disse que mesmo que uma pessoa encontrasse o Graal não o saberia, a menos que fosse digno dele - fez uma pausa e uma expressão de perplexidade, quase de espanto, surgiu-lhe por um momento no rosto. - Era preciso ser-se digno, disse ele, para saber o que era o Graal, mas se essa pessoa fosse digna, brilharia como o próprio Sol. Ofuscá-lo-ia.

 

De Taillebourg inclinou-se para o monge.

 

- E haveis acreditado?

 

- Acredito que Ralph Vexille era louco - disse o Irmão Collimore.

 

- Por vezes os loucos dizem as verdades - replicou De Taillebourg.

 

- Julgo que... - continuou o Irmão Collimore como se o inquisidor não tivesse falado - que Deus deu a Ralph Vexille uma carga demasiado grande para ele suportar.

 

- O Graal? - perguntou De Taillebourg.

 

- Vós poderíeis suportá-la? Eu não.

 

- Então, onde está? - insistiu De Taillebourg. - Onde está? O Irmão Collimore pareceu de novo perplexo.

 

- Como hei-de saber?

 

- Não estava em Hookton - disse De Taillebourg. - Guy Vexille procurou-o.

 

- Guy Vexille? - perguntou o Irmão Collimore.

 

- O homem que veio do Sul, irmão, para combater pela França e que acabou por ficar sob a minha custódia.

 

- Pobre homem - disse o monge.

 

O padre Taillebourg abanou a cabeça.

 

- Mostrei-lhe simplesmente a roda, deixei que sentisse as pinças e cheirasse o fumo. Depois ofereci-lhe a vida e contou-me tudo o que sabia, incluindo que o Graal não estava em Hookton.

 

O rosto do velho monge contorceu-se num sorriso.

 

- Não me haveis escutado, padre. Se um homem não for digno do Graal ele não se revelará. Guy Vexille pode não ter sido digno.

 

- Mas o padre Ralph possuía-o? - De Taillebourg queria garantias. - Julgais que de facto o possuía?

 

- Não disse isso - afirmou o monge.

 

- Mas haveis acreditado que o tinha? - perguntou De Taillebourg e, como o Irmão Collimore nada disse, acenou para consigo. - Acreditais que sim. - Deslizou da cama, pôs-se de joelhos e uma expressão de êxtase invadiu-lhe o rosto enquanto punha as mãos. - O Graal - disse num tom da mais completa admiração.

 

- Estava louco - avisou-o o Irmão Collimore. De Taillebourg não o escutava.

 

- O Graal - repetiu - Lê Graal! - Abraçava-se a si próprio balançando-se para a frente e para trás. - Lê Graal!

 

- Os loucos dizem coisas - disse o Irmão Collimore - e não sabem o que dizem.

 

- Ou Deus fala através deles - disse veementemente De Taillebourg.

 

- Então Deus tem uma língua terrível - replicou o velho monge.

 

- É preciso que me digais - insistiu De Taillebourg - tudo o que o padre Ralph vos contou.

 

- Mas já passou tanto tempo!

 

- é le Graal! - gritou De Taillebourg e, na sua frustração, abanou o velho. - É le Graal! Não podeis haver-vos esquecido. - Olhou pela janela e viu no alto do monte a vermelha cruz de Santo André no pendão amarelo do rei da Escócia e, por baixo, uma massa de homens de cotas cinzentas com a sua moita de lanças, piques e espadas. Não se via um único inimigo inglês, mas De Taillebourg não se importaria mesmo que todos os exércitos da Cristandade estivessem em Durham, pois tinha encontrado a sua visão. Era o Graal e embora, em seu redor, tremessem os exércitos de todo o mundo, ele persegui-lo-ia.

 

E o velho monge falou.

 

O cavaleiro da cota enferrujada, com a couraça sem correias e o escudo com a vieira apresentou-se como sendo Lorde Outhwaite de Witcar.

 

- Conheceis o lugar? - perguntou a Thomas.

 

- Witcar, Senhoria? Nunca ouvi falar.

 

- Meu Deus, nunca ouvistes falar de Witcar! E é um local tão agradável, muito agradável. Bom solo, boa água, óptima caça. Ah, cá estás tu! - Dirigiu-se a um rapazinho que montava um enorme cavalo e conduzia um segundo corcel pelas rédeas. O rapaz usava um saiote com a cruz e a vieira gravada a amarelo e vermelho e, puxando o cavalo de guerra atrás de si, picou-o em direcção ao amo.

 

- Perdão, Senhoria - disse o rapaz -, mas o Hereward não quer vir. - Hereward era sem dúvida o corcel que conduzia. - E puxava-me para o mais longe possível de vós!

 

- Dá-o a este jovem - disse Lorde Outhwaite. - Sabeis montar? - perguntou a Thomas com uma expressão séria.

 

- Sim, Senhoria.

 

- O Hereward é bastante difícil, mas muito bom. Picai-o com força, para ele saber quem manda.

 

Apareceu uma dezena de homens com a libré de Lorde Outhwaite, todos a cavalo e com a armadura em melhor estado do que a do amo. Lorde Outhwaite ordenou-lhes que voltassem para sul.

 

- íamos marchar para Durham - disse a Thomas -, sem nos metermos com ninguém, como bons cristãos, mas apareceram os malditos escoceses! Já não faremos Durham. Casei-me aqui, sabeis? Na catedral. Há trinta e dois anos, será possível? - Sorriu feliz para Thomas. - E a minha querida Margaret ainda vive. Deus seja louvado. Há-de gostar de ouvir a vossa história. Haveis mesmo estado em Wadicourt?

 

- Sim, senhoria.

 

- Haveis sido afortunado, muito afortunado! - disse Lorde Outhwaite e depois gritou a mais alguns dos seus homens que dessem a volta antes que fossem direitos aos escoceses.

 

Thomas apercebia-se rapidamente que Lorde Outhwaite, apesar da sua malha rasgada e aparência pouco cuidada, era um grande senhor, um dos ricos fidalgos do Norte. Sua senhoria confirmou esta suposição resmungando que tinha sido proibido pelo rei de lutar em França, pois ele e os seus homens poderiam ser necessários para impedir uma invasão dos escoceses.

 

- E tinha toda a razão! - Lorde Outhwaite parecia surpreendido. - Os malditos vieram para sul! Disse-vos que o meu filho mais velho estava na Picardia? É por isso que uso isto - puxou um rasgão da sua velha cota de malha.

- Dei-lhe a melhor armadura que tínhamos, pois pensei que não precisaríamos dela aqui! O jovem David da Escócia sempre me pareceu pacífico, mas agora a Inglaterra foi devastada pelos seus camaradas. É verdade que a carnificina foi grande em Wadicourt?

 

- Foi um campo de morte, Senhoria.

 

- Do lado deles, não do nosso, graças a Deus e a todos os seus santos.

 

- Sua Senhoria olhou para alguns arqueiros que se espalhavam para sul. - Nada de vadiagem! - gritou em inglês. - Não tarda muito que os escoceses venham à vossa procura. - Olhou de novo para Thomas e sorriu. - Que teríeis feito se eu não tivesse aparecido? - perguntou, continuando a falar inglês. - Cortaríeis a garganta do Espantalho?

 

- Se tivesse de ser.

 

- E a seguir os homens dele cortariam a vossa - observou alegremente Lorde Outhwaite. - É um beberrão venenoso. Só Deus sabe porque foi que a mãe não o afogou à nascença, mas também era uma bruxa com coração de bosta. - Como a maioria dos fidalgos que tinham crescido a falar francês, Lorde Outhwaite aprendera inglês com os criados dos pais e por isso falava-o com rudeza - O Espantalho merece que lhe cortem o pescoço, mas é um mau inimigo. Consegue manter os seus rancores melhor do que qualquer pessoa, mas como já tem tantos, é possível que não tenha lugar para mais um. Odeia principalmente Sir William Douglas.

 

- Porquê?

 

- Porque Willie o fez prisioneiro. Reparai que já fomos quase todos prisioneiros de Willie Douglas e, de vez em quando, um ou outro de nós já lhe retribuímos o favor; mas o resgate quase matou Sir Geoffrey. Quase não tem homens e aposto que não possui mais do que meio tostão furado. O Espantalho é um homem pobre, muito pobre mas orgulhoso, o que faz dele um péssimo inimigo. - Lorde Outhwaite ergueu cordialmente a mão para um grupo de arqueiros que usavam a sua libré. - Maravilhoso, rapazes, maravilhoso! Contai-me então a Batalha de Wadicourt. É verdade que os franceses passaram com os cavalos por cima dos seus próprios arqueiros?

 

- Passaram, sim, Senhoria. Eram besteiros genoveses.

- Contai-me então o que aconteceu.

 

Lorde Outhwaite tinha recebido uma carta do filho mais velho a contar-lhe a Batalha da Picardia, mas estava desesperado por ouvir a história do combate da boca de alguém que tivesse estado nessa encosta verde entre as aldeias de Wadicourt e Crécy. Thomas contou-lhe então como o inimigo tinha atacado ao fim da tarde e como as setas tinham voado pelo monte para dividir o grande exército do rei de França em grupos de homens e cavalos aos gritos e como alguns dos inimigos tinham atravessado a linha de recém-escavadas trincheiras e ultrapassado as setas para atacarem os homens-de-armas ingleses e como, no final da batalha, não sobravam setas, apenas arqueiros com os dedos em sangue e um monte coberto de homens e animais moribundos. O próprio céu parecera lavado em sangue.

 

Enquanto contava a história, Thomas desceu o monte e afastou-se de Durham. Eleanor e o padre Hobbe caminhavam atrás conduzindo a égua e interrompendo por vezes com os seus comentários, enquanto uma dezena de homens de Lorde Outhwaite cavalgavam de ambos os lados para escutar a história da batalha. Thomas contou-a bem e era evidente que Lorde Outhwaite gostara dele; Thomas de Hookton sempre possuíra um encanto que o protegera e o recomendara, mesmo quando causava a inveja de homens como Sir Geoffrey Carr. Este cavalgara adiante e, quando Thomas chegou aos prados, onde as forças inglesas se juntaram, o cavaleiro apontou para ele como se lhe estivesse a rogar uma praga, coisa que Thomas contrapôs fazendo o sinal da cruz. Sir Geoffrey cuspiu.

 

Lorde Outhwaite fez um gesto ameaçador na direcção do Espantalho.

 

- Não me esqueci da carta que o vosso padre me mostrou - falava agora em francês com Thomas -, mas confio em que não nos deixareis para a ir entregar a Durham. Pelo menos enquanto houver inimigos para combater.

 

- Posso ficar com os arqueiros de Vossa Senhoria? - perguntou Thomas. Eleanor emitiu um suspiro de reprovação, mas ambos a ignoraram.

 

Lorde Outhwaite acenou afirmativamente com a cabeça ao ouvir a oferta de Thomas e fez depois um gesto para que o jovem descesse do cavalo.

 

- Contudo há uma coisa que me intriga - continuou. - Porque foi que o nosso rei vos confiou tal encargo, a uma pessoa tão jovem.

 

- E de tão baixo nascimento? - perguntou Thomas com um sorriso, sabendo que era essa a verdadeira questão que Lorde Outhwaite era demasiado delicado para colocar.

 

Sua Senhoria riu-se ao ser descoberto.

 

- Falais francês, mas trazeis um arco, meu rapaz. Quem sois vós? Mal ou bem-nascido?

 

- Bastante bem, mas ilegítimo.

 

- Ah!

 

- E a resposta à vossa pergunta, Senhoria, é que o nosso rei me enviou com um dos seus capelães e um cavaleiro da sua casa, mas ambos adoeceram em Londres e lá ficaram. Eu segui viagem com os meus companheiros.

 

- Porque desejais falar com esse velho monge?

 

- Se ele estiver vivo, sim, porque me pode falar da família do meu pai, da minha própria família.

 

- E ele pode falar-vos desse tesouro, esse thesaurus. Sabeis o que é?

 

- Sei alguma coisa, Senhoria - acautelou-se Thomas.

 

- E foi por isso que o rei vos enviou, não é verdade? - insistiu Lorde Outhwaite, mas não deu tempo a que Thomas respondesse à pergunta. Pegou nas rédeas. - Lutai junto aos meus arqueiros, meu rapaz, mas cuidai de ficardes vivos. Gostaria de saber mais acerca do vosso thesaurus. O tesouro é assim tão grande como diz a carta?

 

Thomas voltou as costas ao despenteado Lorde Outhwaite e olhou para o cimo do monte, onde nada se via excepto as árvores de cores vivas e uma fina coluna de fumo das cabanas queimadas.

 

- Se existir, Senhoria - disse em francês -, é o tipo de tesouro que é guardado por anjos e procurado por demónios.

 

- Mas vós procurai-lo? - perguntou Lorde Outhwaite com um sorriso. Thomas devolveu o sorriso.

 

- Procuro simplesmente o prior de Durham, Senhoria, para lhe entregar a carta do bispo.

 

- Quereis então o prior Fossor, não é verdade? - Lorde Outhwaite apontou para um grupo de monges. - Ali está ele. O que está montado - indicara um monge alto, de cabelo branco, montado numa égua cinzenta e rodeado por uma dezena de outros monges, todos a pé, um dos quais transportava um estranho pendão que nada mais era que um pedaço de pano branco preso a um pau pintado. - Falai com ele - disse Lorde Outhwaite. - Depois procurai a minha bandeira e que Deus vos acompanhe! - Disse as últimas palavras em inglês.

 

- E a Vossa Senhoria também - responderam em uníssono Thomas e o padre Hobbe.

 

Thomas dirigiu-se ao prior, abrindo caminho por entre os arqueiros que se reuniam em redor de três carroças para receberem os molhos de setas. O pequeno exército inglês marchava em direcção a Durham por duas estradas separadas e agora os homens atravessavam os campos para se juntarem, no caso de os escoceses descerem lá do alto. Os homens-de-armas enfiavam as cotas de malha pelas cabeças e os mais ricos cobriam-nas com todas as placas de armadura que possuíam. Os comandantes do exército deviam ter levado a cabo uma rápida conferência, pois as primeiras colunas já estavam a ser conduzidas para norte, mostrando que os ingleses preferiam confrontar-se com os escoceses no terreno mais alto do monte do que serem atacados nos prados, ou tentarem chegar a Durham por um caminho circular. Thomas habituara-se aos pendões ingleses na Bretanha, Normandia e Picardia, mas estas bandeiras eram-lhe todas desconhecidas: um crescente de prata, uma vaca castanha, um leão azul, o machado negro do Espantalho, uma cabeça vermelha de javali, a cruz com a vieira de Lorde Outhwaite e, a mais vistosa entre elas, uma enorme bandeira escarlate com duas chaves em cruz bordadas a ouro e a prata. A bandeira do prior parecia pobre e maltrapilha comparada com os outros pendões, pois não passava de um pequeno quadrado de pano esfiapado sob o qual o prior se enervava.

 

- Ide e fazei o trabalho de Deus - gritava para uns arqueiros que ali se encontravam - porque os escoceses são animais. Cortai-os às postas! Matai-os a todos! Deus recompensará cada morte! Ide derrotá-los! Matai-os

- viu que Thomas se aproximava. - Quereis a minha bênção, meu filho? Que Deus dê força ao teu arco e acrescente ferrão às tuas setas! Que o teu braço nunca se canse e que os teus olhos não falhem. Deus e os Santos te abençoem enquanto matas.

 

Thomas persignou-se e entregou a carta.

 

- Vim trazer-vos isto, senhor - disse.

 

O prior pareceu espantar-se por um arqueiro se lhe dirigir com tanta familiaridade e vir, ainda por cima, entregar-lhe uma carta. A princípio não tocou no pergaminho, mas um dos monges arrancou-o das mãos de Thomas e, ao ver o selo quebrado, ergueu as sobrancelhas.

 

- O meu senhor bispo escreve-vos - disse.

 

- São animais! - repetia o prior ainda entusiasmado no seu discurso, mas reparando finalmente no que o monge acabara de dizer. - O meu senhor bispo escreve?

 

- A vós, Irmão - disse o monge.

 

O prior agarrou no pau pintado e baixou tanto o pendão que quase roçou pelo rosto de Thomas.

 

- Podeis beijá-lo - disse com ar imponente.

 

- Beijá-lo? - Thomas foi tomado de surpresa. O pano de esfarrapado que se encontrava agora junto ao seu nariz cheirava a bafio.

 

- É o corporal de São Cuthbert - disse o prior entusiasmado. - Retirado da sua tumba, meu filho! O bendito São Cuthbert lutará por nós! Os anjos do céu acompanhá-lo-ão na batalha.

 

Thomas, com o rosto na relíquia do santo, caiu de joelhos e aproximou o pano dos lábios. Era de linho, pensou, e via agora que tinha um complicado bordado a linha azul desbotada junto à bainha. No centro do pano que era usado na missa para envolver as hóstias, havia uma cruz bordada, com fios de prata que mal se via no linho fino e branco.

 

- Trata-se realmente do corporal de São Cuthbert? - perguntou.

- Só dele! - exclamou o prior. - Esta mesma manhã abrimos a sua tumba na catedral e rezámos para que combata hoje a nosso lado! - O prior ergueu a bandeira e acenou aos homens-de-armas que picaram os cavalos para norte. - Fazei o trabalho de Deus! Matai-os a todos! Estrumai os campos com a sua carne venenosa, regai-a com o seu sangue traiçoeiro!

 

- O bispo quer que este jovem fale com o Irmão Hugh Collimore disse ao prior o monge que lera a carta. - E o rei também o deseja. Sua Eminência fala de um tesouro que tem de se encontrar.

 

- O rei deseja-o? - perguntou a Thomas o prior espantado. - O rei deseja-o? - perguntou de novo e depois caiu em si e apercebeu-se de que o patrocínio real era uma grande vantagem. Por isso, arrancou a carta e leu-a ele próprio, para descobrir ainda mais vantagens do que as que tinha previsto. - Vindes então em busca de um grande thesaurus? - perguntou a Thomas com ar suspeito.

 

- O bispo assim o crê - respondeu Thomas.

 

- Que tesouro? - perguntou bruscamente o prior e todos os monges o olharam de boca aberta, pois a ideia de um tesouro fê-los momentaneamente esquecer a proximidade de um exército escocês.

 

- O tesouro, senhor - disse Thomas, evitando a pergunta com a verdade -, é do conhecimento do Irmão Collimore.

 

- Mas porque vos enviou a vós? - perguntou o prior, e era uma questão justa, pois Thomas parecia muito jovem e sem estirpe.

 

- Porque também eu tenho algum conhecimento da questão - replicou Thomas, perguntando a si próprio se não teria já dito de mais.

 

O prior dobrou a carta, rasgando inadvertidamente o selo e meteu-a numa bolsa que trazia pendurada no seu cinto de nós.

 

- Falaremos depois da batalha - disse - e então, e apenas então decidirei, se podereis ou não falar com o Irmão Collimore. Está doente, sabeis? Muito mal, pobre alma! Talvez já esteja a morrer. Pode não ser decente que o incomodeis. Veremos, veremos. - Era evidente que desejava falar primeiro com o velho monge para ser o único possuidor da sabedoria de Collimore.

- Deus te abençoe, meu filho - o prior despediu Thomas, depois ergueu o seu sagrado pendão e seguiu para norte.

 

A maior parte do exército inglês subia já o monte, deixando apenas as carroças e uma multidão de mulheres e crianças, bem como os homens que estavam demasiado doentes para caminhar. Os monges que faziam procissão atrás do seu corporal, começaram a cantar enquanto seguiam os soldados.

 

Thomas correu para uma carroça e pegou num molho de setas, que enfiou no cinto. Via já os homens de Lorde Outhwaite correrem em direcção ao cume, seguidos por um enorme grupo de arqueiros.

 

- Talvez que devêsseis os dois ficar aqui - disse ao padre Hobbe.

 

- Não! - exclamou Eleanor. - E vós não deveríeis combater.

- Não deveria combater? - perguntou Thomas.

 

- Esta batalha não vos pertence! - insistiu Eleanor. - Deveríamos ir para a cidade! Deveríamos procurar o monge.

 

Thomas fez uma pausa. Estava a pensar no padre que, no turbilhão de fumo e nevoeiro tinha matado o escocês e depois lhe falara usando o francês. Sou um mensageiro, dissera. ”Je suis an avant-coureur” tinham sido as suas palavras exactas, e um avant-coureur era mais do que um mero mensageiro. Um arauto, talvez? Até mesmo um anjo? Thomas não podia esquecer a imagem daquela fuga silenciosa, que os soldados não tinham conseguido impedir, um soldado contra um padre. Mesmo assim, o padre vencera e voltara o seu rosto magro e ensanguentado para Thomas, anunciando: ”Je suis an avan-coureur.” Era um sinal do céu que deveria seguir o avant-coureur até à cidade, mas havia também inimigos no monte, ele era arqueiro e os arqueiros não fogem das batalhas.

 

- Iremos para a cidade depois da batalha - disse.

 

- Porquê? - perguntou ela, impetuosa.

 

Mas Thomas não lhe explicou. Começou a caminhar, subindo o monte, onde cotovias e tentilhões esvoaçavam por entre as sebes e os tordos castanhos e cinzentos chilreavam nas pastagens vazias. O nevoeiro desaparecera completamente e soprava agora um vento seco sobre o Wear.

 

Depois, no local mais elevado onde os escoceses esperavam, os tambores começaram a soar.

 

Sir William Douglas, cavaleiro de Liddesdale, preparou-se para a batalha. Vestiu uns calções de couro suficientemente grossos para impedirem que uma espada cortasse a sua camisa de linho onde pendurara um crucifixo abençoado por um padre de Santiago de Compostela, onde estava sepultado o santo do mesmo nome. Sir William não era um homem especialmente religioso, mas tinha pago a um padre para lhe tomar conta da alma e este assegurara-lhe que se usasse a cruz de Santiago, filho do trovão, era certo que receberia os últimos sacramentos no seu leito e em segurança. Enrolou à cintura uma faixa vermelha, arrancada de um dos pendões capturados pelos ingleses em Bannockburn. A seda fora mergulhada em água benta na pia da capela do seu castelo em Hermitage e estava convencido de que aquele bocado de tecido lhe asseguraria a vitória sobre o antigo e odiado inimigo.

 

Vestira uma loriga roubada a um inglês morto, num dos muitos ataques de Sir William a sul da fronteira. Lembrava-se bem dessa morte. Vira a qualidade da couraça do inglês no princípio da luta e berrara aos seus soldados que deixassem aquele homem em paz; depois derrubara-o batendo-lhe nos tornozelos e o inglês, de joelhos, emitira um miado que provocara o riso nos homens de Sir William. O homem rendera-se, mas, mesmo assim, Sir William cortara-lhe o pescoço, por pensar que um homem que emitisse miados não era um verdadeiro combatente. Os criados em Hermitage levaram duas semanas para lavar todo o sangue das finas malhas da cota. A maior parte dos chefes escoceses tinham couraças que lhes cobriam o corpo do pescoço aos calcanhares, enquanto a loriga era muito mais curta e deixava as pernas desprotegidas; porém, Sir William tencionava lutar a pé e sabia que o peso de uma cota cansava rapidamente os homens e estes eram facilmente abatidos. Sobre a loriga pusera uma veste que mostrava a insígnia do coração vermelho. Em vez de elmo usava um carapuço, sem qualquer viseira ou protecção, pois, durante a batalha, Sir William gostava de ver o que faziam os inimigos à esquerda e à direita. Um homem com um elmo completo ou com um dos modernos capacetes em forma de focinho de porco, apenas via o que a fenda diante de si lhe permitia e era por isso que passava a batalha a abanar com força a cabeça para a direita e para a esquerda, até ter o pescoço dorido mais parecendo uma galinha entre raposas; mesmo assim, raras vezes viam o golpe que lhes rachava a cabeça. Durante a batalha, Sir William procurava os homens que abanavam a cabeça para a frente e para trás, como se fossem galinhas, pois sabia que estavam nervosos e, como podiam permitir-se a ter um capacete caro, também pagariam um bom resgate pela sua libertação. Transportava o seu enorme escudo. Era realmente muito pesado para um homem apeado, mas esperava que os ingleses soltassem a sua tempestade de setas e o escudo era suficientemente forte para aparar o impacto das ripas com uma jarda de comprimento e pontas de aço. Podia descansar a base do escudo no chão e acocorar-se atrás dele e, quando os ingleses ficassem sem setas, largá-lo-ia. Para o caso de haver uma carga dos cavaleiros ingleses, trazia uma espada, a sua arma favorita. Dentro do punho guardara uma madeixa de cabelo cortada do cadáver de Santo André, ou pelo menos fora o que o vendedor de indulgências lhe dissera quando ele a comprara. Robbie Douglas, sobrinho de Sir William, trazia uma cota e a cabeça coberta por uma gálea, transportando também uma espada e um escudo. Fora Robbie quem trouxera a Sir William a notícia de que Jamie Douglas, seu irmão mais velho, fora morto, provavelmente pelo criado do padre dominicano. Ou talvez tivesse sido o próprio padre De Taillebourg a executar a morte. Pelo menos, tê-la-ia ordenado. Robbie Douglas, com vinte anos, chorava o irmão.

 

- Como pôde um padre fazê-lo? - perguntara Robbie ao tio.

 

- Tens uma estranha ideia dos padres, Robbie - respondera Sir William. - A maioria dos padres são homens fracos que recebem autoridade de Deus e por isso se tornam perigosos. Agradeço ao Senhor por nenhum Douglas ter envergado vestes sacerdotais. São demasiado honestos.

- Quando este dia terminar, meu tio - disse Robbie Douglas. - Deixai-me ir atrás desse padre.

 

Sir William sorriu. Podia não ser um homem abertamente religioso, mas havia uma coisa sagrada para ele: o assassínio de qualquer membro da família deveria ser vingado e, segundo lhe parecia, Robbie executaria bem essa vingança. Era um belo jovem, forte e bonito, alto e honesto e Sir William estava orgulhoso do filho da sua irmã mais nova.

 

- Falaremos ao fim do dia - prometeu. - Mas até lá, Robbie, não te afastes de mim.

 

- Assim farei, meu tio.

 

- Se Deus quiser, mataremos alguns ingleses - disse Sir William e levou depois o seu sobrinho ao encontro do rei e para receber a bênção dos capelães reais.

 

Sir William, como a maioria dos cavaleiros e chefes escoceses, usava uma cota de malha, mas o rei trazia uma armadura francesa, uma coisa tão rara a norte da fronteira, que os homens das tribos mais selvagens tinham vindo olhar para aquela criatura que reflectia o sol e era feita de metal andante. O jovem rei parecia igualmente impressionado, pois retirou a veste e andou de um lado para o outro admirando-se e deixando-se admirar, enquanto os seus fidalgos vinham pedir-lhe a bênção e dar-lhe conselhos. O conde de Moray, que Sir William considerava um perfeito idiota, queria lutar a cavalo e o rei parecia disposto a concordar. Seu pai, o grande Robert the Bruce, tinha derrotado os ingleses em Bannockburn, a cavalo, e não só os derrotara como também os humilhara. A flor da Escócia tinha arrasado a nobreza de Inglaterra e David, agora rei do país de seu pai, queria fazer o mesmo. Queria sangue debaixo dos cascos e a glória ligada ao seu nome; queria que a sua reputação se espalhasse pela Cristandade e por isso voltou-se e olhou com uma expressão saudosa para a sua lança pintada de vermelho e amarelo encostada ao tronco de um ulmeiro.

 

Sir William Douglas percebeu para onde o rei olhava.

 

- Arqueiros - disse, lacónico.

 

- Havia arqueiros em Bannockburn - insistiu o conde de Moray.

 

- Pois, e os idiotas não souberam usá-los - disse Sir William. - Mas não podemos pensar que os ingleses vão ser sempre idiotas.

 

- Quantos arqueiros poderão ter? - perguntou o conde. - Dizia-se que havia milhares em França, centenas na Bretanha e outro tanto na Gasconha, por isso, quantos poderão aqui estar?

 

- Os suficientes - resmungou laconicamente Sir William, sem se importar em esconder o desprezo que sentia por John Randolph, terceiro conde de Moray. Este tinha tanta experiência de guerra como Sir William, mas estivera muito tempo prisioneiro dos ingleses e o ódio que daí adviera tornava-o impetuoso.

 

O rei, moço e ainda ingénuo, queria alinhar com o conde, de quem era amigo, mas via que os outros fidalgos concordavam com Sir William que, embora não possuísse título elevado ou alta posição de Estado, tinha mais experiência de guerra do que qualquer outro homem da Escócia. O conde de Moray sentia que estava a perder a discussão e pediu pressa.

 

- Atacai agora, senhor - sugeriu. - Antes que possam formar uma linha de batalha - apontou para sul, onde as primeiras tropas inglesas apareciam nas pastagens. - Aniquilai os bastardos antes que se preparem.

 

- Foi esse o conselho dado por Filipe de Valois na Picardia - disse em voz baixa o conde de Menteith. - Não serviu de nada lá, tal como não servirá aqui.

 

- Além do mais - comentou causticamente Sir William Douglas -, temos que competir com paredes de pedra - apontou para os muros de pedra que limitavam as pastagens e onde os ingleses tinham começado a formar uma linha. - Talvez Moray saiba dizer como é que os cavaleiros de armadura conseguem passar por muros de pedra - sugeriu.

 

O conde de Moray ofendeu-se.

 

- Tomais-me por idiota, Douglas?

 

- Tomo-vos por aquilo que mostrais ser, John Randolph - respondeu Sir William.

 

- Cavalheiros - advertiu o rei.

 

Não reparara nos muros de pedra quando formara a sua linha de batalha ao lado das cabanas queimadas e da cruz caída. Apenas vira verdes pastagens vazias, a estrada larga e o seu ainda mais largo sonho de glória. Via agora o inimigo surgir aos poucos por detrás das longínquas árvores. Havia muitos arqueiros e ouvira dizer como esses homens conseguiam encher o céu com as suas flechas, cujas setas de aço se enfiavam profundamente nos cavalos, deixando-os loucos de dor. Não se atrevia a perder a batalha. Prometera aos nobres que celebrariam o Natal no salão do rei inglês, em Londres, e uma derrota provocaria a perda do respeito e incitaria à rebelião. Tinha de vencer e, como estava impaciente, queria vencer rapidamente.

 

- Se carregarmos rapidamente - experimentou sugerir -, antes que todos cheguem à linha...

 

- Quebrareis as pernas dos vossos cavalos nos muros de pedra - contrapôs Sir William, com pouco respeito pelo seu real amo. - Se é que o cavalo de vossa majestade lá consegue chegar. Não podeis proteger um cavalo das setas, senhor, mas podereis limitar a tempestade combatendo a pé. Colocai os piques em frente, mas metei entre eles homens-de-armas que possam usar escudos para proteger os soldados que levam os piques. Subi os escudos, baixai as cabeças e aguentai firme. É assim que se vence.

 

O rei puxou a espaldeira que cobria o ombro direito e tinha o aborrecido hábito de cair para a parte de cima da couraça. Por tradição, a defesa dos exércitos escoceses estava entregue aos piqueiros que utilizavam as suas armas longas e monstruosas para deter os cavaleiros inimigos, mas necessitavam de ambas as mãos para as segurarem, pois eram difíceis de manusear, tornando-se assim os homens alvos fáceis para os arqueiros ingleses que gostavam de se gabar de que tinham, dentro da bolsa, as vidas dos piqueiros escoceses. Portanto, deviam proteger-se os piqueiros com os escudos dos homens-de-armas para que o inimigo gastasse as suas setas. Fazia sentido, mas, mesmo assim, David Bruce sentia-se enfadado por não poder conduzir os seus cavaleiros num assalto que fizesse estremecer a terra enquanto as trompetas bradavam aos céus.

 

Sir William viu a hesitação do rei e insistiu na argumentação.

 

- Temos de seguir apeados, senhor, temos de esperar e temos de deixar os nossos escudos aparar as setas, mas por fim, senhor, cansar-se-ão de gastar flechas e virão atacar-nos. Será nessa altura que os esquartejaremos como cães.

 

Um troar de concordância recebeu esta afirmação. Os senhores escoceses, todos eles homens duros, armados e de armadura, barbudos e mal-encarados, tinham confiança na sua vitória por serem muito mais numerosos que o inimigo, mas também por saberem não haver atalho para a vitória, quando tinham arqueiros como opositores. Teriam pois de fazer o que Sir William sugerira: aguentar as setas, picar o inimigo e depois esquartejá-lo.

 

O rei ouviu os seus fidalgos concordarem com Sir William e, então, com alguma relutância, abandonou o sonho de investir por entre o inimigo com os seus cavaleiros armados. Fora uma desilusão, mas olhou para os seus fidalgos e pensou que, com aqueles homens em seu redor, nunca poderia perder.

 

- Combateremos apeados - ordenou. - Depois cortá-los-emos como cães. Como cachorros açoitados! - E depois, pensou, quando os sobreviventes fugissem para sul, a cavalaria escocesa terminaria a matança.

 

Mas, entretanto, seriam peões contra peões e assim os pendões da Escócia avançaram e foram colocados no alto do monte. As cabanas queimadas eram agora meras brasas que continham três cadáveres engelhados, negros, pequenos como crianças. O rei colocou as suas bandeiras junto a esses cadáveres. Tinha o seu próprio estandarte, no centro da linha, a cruz de Santo André vermelha num campo amarelo e o pendão do santo da Escócia, a cruz branca sobre azul e à esquerda e à direita ondeavam as bandeiras dos fidalgos menos importantes. O leão dos Stewart brandia a sua espada, o falcão dos Randolph abria as suas asas, enquanto, a leste e a oeste, estrelas, machados e cruzes batiam ao vento. O exército estava escalonado em três troços tão grandes que os homens das alas mais afastadas se apertavam no centro para conseguirem ficar no terreno mais plano do cimo do monte.

 

As alas da retaguarda dos troços eram compostas por gente das tribos das ilhas e do Norte, homens que lutavam com as pernas nuas, sem armaduras de metal, brandindo enormes espadas que tanto podiam espancar um homem até à morte como cortá-lo. Eram terríveis combatentes, mas a falta da armadura tornava-os extremamente vulneráveis às setas e, portanto, eram colocados na retaguarda, enquanto os troços da vanguarda eram preenchidos por piqueiros e homens-de-armas. Os homens-de-armas levavam espadas, machados, massas ou martelos de guerra e, principalmente, os escudos para protegerem os piqueiros cujas armas tinham na ponta um pique, um gancho e a cabeça de um machado. O pique podia manter o inimigo à distância, o gancho podia derrubar um cavaleiro de armadura da sela ou fazê-lo cair no chão se estivesse em pé e o machado esmagava-o mesmo através da malha ou do metal. A linha parecia eriçar-se com os piques que iriam formar a barreira de aço para receber os ingleses e os padres caminhavam ao longo dela para consagrarem as armas e os homens que as empunhavam. Os soldados ajoelhavam para receber a bênção. Alguns fidalgos, tal como o próprio rei, permaneciam montados, mas apenas para poderem ver por cima das cabeças dos seus soldados; voltavam-se para sul onde viam surgir as últimas tropas inglesas. Tão poucos! Um exército tão pequeno para derrotar! À esquerda dos escoceses ficava Durham com as suas torres e fortificações, cheias de gente para assistir à batalha e, em frente, aquele pequeno exército de ingleses que não tinham o bom senso de retirar para sul em direcção a Iorque. Fugiriam pelo monte e os escoceses tinham a vantagem da posição e de serem mais numerosos.

 

- Se os odiais - gritou Sir William Douglas aos seus homens à direita da linha escocesa -, deixai que eles vos oiçam!

 

Os escoceses gritaram o seu ódio. Bateram com as espadas e as lanças contra os escudos, gritaram aos céus e, na linha central, onde o troço do rei aguardava sob os pendões da cruz, uma tropa de tambores começou uma terrível batida sobre as caixas cobertas de pele de cabra. Cada tambor era um enorme anel de carvalho sobre o qual estavam esticadas e presas por meio de cordas duas peles de cabra. Deixavam cair uma bolota sobre uma das peles, até que saltasse à mesma altura da mão que a lançara enquanto os tambores açoitados com varas de vime faziam um barulho agudo, quase metálico que enchia o céu. Era um assalto de puro ruído.

 

- Se odiais os ingleses, fazei com que eles o saibam! - gritou o conde de March da esquerda da linha escocesa que ficava mais próximo da cidade.

- Se odiais os ingleses eles têm de saber!

 

O ruído era cada vez maior, o bater metálico das lâminas das lanças nos escudos era mais forte, o barulho do ódio escocês espalhava-se pelo cimo do monte, de modo que nove mil homens gritavam para três mil, suficientemente insensatos para se confrontarem com eles.

 

- Vamos cortá-los ao meio como talos de aipo - prometeu um padre. Inundaremos os seus campos com o seu sangue fedorento e encheremos o inferno com as suas almas inglesas.

 

- As mulheres deles são vossas! - disse Sir William aos seus homens. Esta noite divertir-vos-eis com as suas esposas e filhas! - sorriu para o sobrinho Robbie. - Podes escolher entre as mulheres de Durham, Robbie.

 

- E as mulheres de Londres - respondeu Robbie -, antes do Natal.

 

- Sim, essas também - prometeu Sir William.

 

- Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo - gritou o capelão mais velho do rei -, enviai-os a todos para o inferno! Todos esses pecadores para o inferno! Por cada inglês que mateis hoje passareis menos mil semanas no purgatório!

 

- Se odiais os ingleses - gritava Lorde Robert Stuart, Stuart da Escócia e herdeiro do trono -, eles que vos oiçam! - E o ruído do ódio parecia um trovão que enchia o profundo vale do Wear e o trovão reverberava na escarpa onde Durham estava erigida e mesmo assim todo o barulho aumentava para anunciar a todo o Norte que os escoceses tinham descido para Sul.

 

E David, rei dos escoceses, sentia-se satisfeito por ter vindo para este local onde a cruz do dragão caíra, as cabanas ardidas fumegavam e os ingleses aguardavam a morte. Porque nesse dia levaria a glória a Santo André, à grande casa de Bruce e a toda a Escócia.

 

Thomas, o padre Hobbe e Eleanor seguiram o prior e os seus monges que continuavam a entoar cânticos embora as vozes dos Irmãos fossem agora entrecortadas pois estavam ofegantes da corrida. O corporal de São Cuthbert ondulava para trás e para a frente e o pendão atraía uma procissão dispersa de mulheres e crianças que, sem quererem perder os seus homens de vista, subiam o monte levando consigo bolsas suplementares de flechas. Thomas queria ir mais depressa, para ultrapassar os monges e reunir-se com os homens de Lorde Outhwaite, mas Eleanor deixou-se deliberadamente ficar para trás até que ele se voltou zangado.

 

- Podes andar mais depressa - protestou em francês.

 

- Posso andar mais depressa - respondeu ela. - E tu podes ignorar a batalha! - O padre Hobbe que conduzia o cavalo, percebeu o tom, embora não compreendesse as palavras. Suspirou, conseguindo assim um olhar furioso de Eleanor. - Não precisas de combater! - continuou.

 

- Sou arqueiro - disse Thomas obstinado. - E lá em cima está o inimigo.

 

- O teu rei enviou-te em busca da relíquia! - insistiu Eleanor. - Não para morreres! Não para me deixares só! A mim e a uma criança! - Deteve-se, agarrando o ventre com as mãos e os olhos marejados de lágrimas: - Vou ficar aqui sozinha? Em Inglaterra?

 

- Não vou morrer aqui - disse Thomas sarcástico.

 

- Como sabes? - Eleanor parecia ainda mais sarcástica. - Talvez Deus tenha falado contigo? Sabes aquilo que os outros homens não sabem? Sabes o dia da tua morte?

 

Thomas foi tomado de surpresa por aquela explosão. Eleanor era uma mulher forte, pouco dada a impertinências, mas agora estava a chorar e parecia perturbada.

 

- Esses homens, o Espantalho e o Beggar não te tocam - disse Thomas. Eu estou aqui.

 

- Não é por causa deles! - gemeu Eleanor. - Ontem à noite tive um sonho. Um sonho.

 

Thomas pôs-lhe as mãos nos ombros, as mãos que eram enormes e fortes de puxar a corda de cânhamo do enorme arco.

 

- Ontem à noite sonhei com o Graal - disse ele sabendo que não era exactamente verdade. Não sonhara com o Graal, acordara sim para uma visão que fora afinal decepcionante, mas isso não poderia dizer a Eleanor.

- Era dourado e belo - disse. - Como uma taça de fogo.

 

- No meu sonho - disse Eleanor, olhando para ele -, estavas morto e o teu corpo estava negro e inchado.

 

- Que diz ela? - perguntou o padre Hobbe.

 

- Teve um sonho mau - disse Thomas em inglês. - Um pesadelo.

 

- Bem sabeis que é o diabo que nos envia os pesadelos - afirmou o padre. - Dizei-lho.

 

Thomas traduziu o comentário do padre, depois acariciou-lhe uma madeixa de cabelo dourado e aconchegou-a dentro da touca de malha. Adorava aquele rosto, tão sério e esguio, tão felino, mas com olhos grandes e boca expressiva.

 

- Foi um pesadelo - sossegou-a. - Un cauchemar.

 

- O Espantalho - disse Eleanor estremecendo. - É ele o cauchemar.

Thomas atraiu-a aos seus braços.

 

- Não se aproximará de ti - prometeu-lhe. Ouvia os cânticos distantes, mas completamente diferentes das solenes orações dos monges. Tratava-se de um cântico zombeteiro e insistente, pesado como o bater dos tambores que lhe davam ritmo. Não ouvia as palavras, mas não era preciso.

 

- O inimigo espera-nos - disse a Eleanor.

 

- Não são o meu inimigo - disse ela veemente.

 

- Se entrarem em Durham - retorquiu Thomas -, não o saberão. Levam-te de qualquer modo.

 

- Todos odeiam os ingleses, sabes? Os franceses odeiam-vos, os bretões odeiam-vos, os escoceses odeiam-vos, toda a Cristandade vos odeia e sabeis porquê? Porque adorais combater! É verdade! Toda a gente sabe que os ingleses são assim. E tu? Não tens necessidade de combater hoje, esta luta não é tua, mas mal podes esperar para ir, para matar de novo!

 

Thomas não sabia como responder, pois havia muito de verdade naquilo que Eleanor dissera. Encolheu os ombros e pegou no seu pesado arco.

 

- Combato pelo meu rei e há um exército de inimigos ali no monte. São muito mais numerosos do que nós. Sabes o que vai acontecer se entrarem em Durham?

 

- Sei - respondeu com firmeza Eleanor, e sabia-o de facto, pois tinha estado em Caen quando os arqueiros ingleses, desobedecendo ao seu rei, tinham atravessado a ponte em grande número e devastado a cidade.

 

- Se não os combatermos e os detivermos aqui - disse Thomas -, então os seus cavaleiros dão cabo de nós. Um a um.

 

- Disseste que te casavas comigo - declarou Eleanor, chorando de novo.

 

- Não quero que o meu filho não tenha pai, não quero que seja como eu. - Queria dizer ilegítimo. - Caso-me contigo, prometo. Quando a batalha terminar, casaremos em Durham. Na catedral, está bem? - sorriu. - Podemos casar na catedral.

 

A promessa agradou a Eleanor, embora estivesse demasiado furiosa para mostrar esse prazer.

 

- Devíamos ir já à catedral - disse bruscamente. - Aí estaríamos a salvo. Poderíamos rezar no altar-mor.

 

- Tu podes ir à cidade - disse Thomas. - Deixa-me combater os inimigos do meu rei e tu vais para a cidade, tu e o padre Hobbe; procurais o velho monge, falais ambos com ele e depois ides para a catedral e esperais lá por mim - desprendeu um dos enormes sacos do dorso da égua, retirou de lá a sua loriga e enfiou-a pela cabeça. O forro de couro era rígido e frio e cheirava a bolor. Meteu as mãos nas mangas, depois afivelou o cinto da espada e pendurou a arma do lado direito.

 

- Vai para a cidade - disse a Eleanor. - Fala com o monge. Eleanor chorava.

 

- Vais morrer - disse. - Foi o que eu sonhei.

 

- Não posso ir para a cidade - protestou o padre Hobbe.

 

- Sois um padre - vociferou Thomas - Não um soldado! Levai Eleanor para Durham. Procurai o Irmão Collimore e falai com ele. - O prior insistira para que Thomas esperasse, mas de súbito pareceu-lhe muito sensato enviar o padre Hobbe antes que o prior lhe envenenasse a memória. - Ide ambos falar com o Irmão Collimore - insistiu Thomas. - Sabeis o que haveis de perguntar. Irei ter convosco esta noite à catedral - pegou na sua gálea, com uma aba larga para repelir um golpe de espada e prendeu-a à cabeça. Estava zangado com Eleanor, pois sentia que ela tinha razão. A batalha eminente não lhe dizia respeito, senão por ser guerreiro de profissão e porque a Inglaterra era o seu país. - Não vou morrer - disse a Eleanor com obstinada irracionalidade. - Haveis de me ver esta noite - atirou as rédeas do cavalo ao padre Hobbe. - Tomai conta de Eleanor - ordenou ao padre. - O Espantalho não se arriscará a fazer nada dentro do mosteiro ou da catedral.

 

Desejava despedir-se de Eleanor com um beijo, mas ela estava zangada com ele e ele com ela, de modo que pegou no arco e na bolsa das flechas e afastou-se. Ela nada disse, pois, tal como Thomas, era demasiado orgulhosa para recuar numa discussão. Além do mais sabia que tinha razão. Aquele recontro com os escoceses nada tinha a ver com Thomas cujo dever era encontrar o Graal. O padre Hobbe apanhado entre a obstinação de ambos, caminhava em silêncio, mas não reparou que Eleanor se voltou mais do que uma vez, esperando evidentemente apanhar o seu amado a olhar para ela. Tudo o que viu foi Thomas a subir o atalho com o enorme arco ao ombro.

 

O arco era muito grande, mais alto do que um homem mediano, e a espessura de um punho na sua curvatura. Era feito de teixo. Thomas tinha quase a certeza de que se tratava de teixo italiano, mas nunca poderia ter a certeza pois a ripa em bruto tinha vindo dar à praia proveniente de um navio naufragado. Tinha-lhe dado forma, deixando o centro mais grosso e afilara as pontas para as curvar na direcção em que o arco se devia dobrar quando se puxava a corda. Pintara-o de negro usando cera, azeite e fuligem; depois cobrira os dois extremos com um entalhe de chifre para segurar a corda. A ripa fora cortada de tal modo que no interior do bojo do arco, voltado para Thomas quando este puxava a corda de cânhamo, havia um rijo cerne de madeira que era comprimido quando a flecha era puxada, enquanto o bojo exterior era forrado de madeira de alburno flexível. Quando soltava a corda o cerne soltava-se da sua compressão e o alburno fazia-o voltar à forma inicial, lançando uma flecha sibilante a uma velocidade terrível. No bojo do arco, em redor do local em que a sua mão esquerda agarrava o teixo, enrolara cânhamo endurecido, com grude dos cascos e pregara um bocado de prata de um cálice amachucado que o pai utilizara na igreja de Hookton; esse bocado de cálice de prata mostrava o yale com o Graal entre as suas garras. O yale vinha na cota de armas da família de Thomas, embora este nunca o tivesse sabido, pois o pai nunca lhe contara a história. Nunca contara a Thomas que era um Vexille, de uma família de fidalgos cátaros, uma família expulsa das suas terras do Sul de França e queimada na fogueira, e que tivera de fugir para se esconder nos cantos mas escusos da Cristandade.

 

Thomas pouco sabia da heresia dos Cátaros. Conhecia o seu arco e sabia escolher uma delgada flecha de freixo, faia ou choupo, sabia como empenar a fenda com penas de ganso e como lhe colocar a seta de aço. Tudo isso sabia, mas não como conduzir essa seta através do escudo, malha e carne. A isso chamava instinto, coisa que praticava desde a infância; que praticava até ter os dedos a sangrar; que praticava até não pensar no momento em que puxava a corda até à orelha; que praticava como todos os arqueiros, até, ter um peito largo e braços enormemente musculosos. Não precisava saber como usar um arco, era um instinto, como respirar, despertar ou combater.

 

Voltou-se quando chegou a um grupo de choupos que guardavam a parte superior do caminho como uma muralha. Eleanor afastava-se teimosamente e Thomas sentia vontade de a chamar, mas sabia que ela já estava demasiado longe para poder ouvi-lo. Já antes se tinham zangado; Thomas pensava que os homens e as mulheres passavam metade da vida a discutir e a outra metade a amar-se e a intensidade dessas discussões alimentava a paixão do amor. Quase sorriu por reconhecer a teimosia de Eleanor e até mesmo a apreciar; depois, voltou-se e atravessou os pisados montes de folhas secas que tinham caído ao longo do atalho, por entre as pastagens muradas, onde pastavam centenas de corcéis selados. Eram as montadas de guerra dos cavaleiros e homens-de-armas ingleses e a sua presença ali mostrava a Thomas que os ingleses esperavam o ataque dos escoceses, já que um cavaleiro era muito mais capaz de se defender a pé. Os cavalos continuavam selados para que os homens-de-armas, de cota de malha, pudessem retirar rapidamente ou montar e perseguir o inimigo derrotado.

 

Thomas continuava sem ver o exército escocês, mas ouvia os seus cantos de guerra, que ganhavam força acompanhados por uma batida infernal dos enormes tambores. O som tornava nervosos alguns dos corcéis que se encontravam na pastagem e três deles, perseguidos por pajens, galopavam junto ao muro de pedra com os olhos revirados. Havia mais pajens a exercitar cavalos logo atrás da linha inglesa, que estava dividida em três troços. Cada troço tinha um conjunto de cavaleiros no centro da ala da retaguarda, sendo os homens montados os comandantes colocados por baixo dos pendões coloridos; depois, diante deles, quatro ou cinco alas de homens-de-armas com espadas, machados, lanças e escudos e adiante destes e amontoados nos espaços entre os três troços encontravam-se os arqueiros.

 

Os escoceses, à distância do disparo de duas flechas dos ingleses, encontravam-se num terreno ligeiramente mais elevado e também separado em três divisões que, tal como os troços ingleses, estavam reunidos em redor dos pendões dos seus comandantes. A bandeira mais alta, o estandarte real vermelho e amarelo estava no centro. Os cavaleiros e homens-de-armas escoceses, tal como os ingleses, encontravam-se apeados, mas cada um dos troços era três ou quatro vezes mais numeroso que o dos opositores. Thomas, com altura suficiente para espreitar por sobre a linha inglesa, viu que não havia muitos arqueiros nas alas inimigas. Aqui e ali, ao longo da linha escocesa, conseguia divisar, por entre moitas de piques, um ou outro arco e algumas bestas. Não eram tantos como os ingleses, mas, no total, o número de escoceses era muito superior. Portanto, se a batalha realmente começasse seria entre as setas inglesas e os piques e os homens-de-armas escoceses e se não houvesse setas suficientes, o cimo do monte transformar-se-ia num cemitério para os ingleses.

 

O pendão de Lorde Outhwaite com a cruz e a vieira estava do lado esquerdo do troço e foi para lá que Thomas se dirigiu. O prior, já apeado, encontrava-se no espaço entre as divisões à esquerda e à direita, onde um dos seus monges agitava um turíbulo e outro brandia o corporal no seu pau pintado. O próprio prior gritava embora Thomas não percebesse se se tratava de insultos ao inimigo ou orações a Deus, pois os escoceses cantavam muito alto. Thomas também não distinguia as palavras dos inimigos, mas o sentimento era bastante simples e era apressado pelos maciços tambores.

 

Thomas via-os agora e observava a paixão com a qual os escoceses batiam nas enormes peles para fazerem um barulho tão agudo como o partir de um osso. Tratava-se de um trovão ruidoso, de um rítmico e reverberante assalto que rebentava os tímpanos; e diante dos tambores, na frente da linha inimiga uns homens de barba giravam numa dança selvagem. Tinham vindo a correr da retaguarda da linha escocesa, não usavam qualquer cota ou metal e estavam cobertos de grossas dobras de tecido. Brandiam espadas de lâminas compridas em redor da cabeça. Seguravam nas mãos pequenos escudos de couro redondos, pouco maiores do que pratos de ir à mesa, atados aos antebraços. Atrás deles os homens-de-armas escoceses batiam com a parte lisa das espadas nos escudos enquanto os piqueiros batiam no chão com os cabos das suas armas enormes para aumentar o barulho dos seus grandes tambores. O som era tão alto que os monges do prior tinham abandonado os seus cânticos e se limitavam a olhar o inimigo.

 

- Estão simplesmente a tentar assustar-nos - disse Lorde Outhwaite, apeado como os seus homens e erguendo a voz para se fazer ouvir. Sua Senhoria coxeava, Thomas não queria perguntar se devido à idade ou a alguma ferida antiga. Via-se que queria simplesmente um local por onde pudesse andar e dar pontapés na erva e, portanto, viera falar com os monges, embora agora voltasse o rosto simpático para Thomas. - Tratai de ter um cuidado especial com esses patifes - disse, apontando para os dançarinos. - São mais violentos que gatos escaldados. Dizem que esfolam vivos os seus cativos.

 

- Lorde Outhwaite fez o sinal da cruz. - Não é vulgar vê-los tão a sul.

 

- Quem são? - perguntou Thomas.

 

- Pertencem às tribos mais a norte - explicou um dos monges. Era um homem alto com uma franja de cabelo grisalho, um rosto cheio de cicatrizes e apenas um olho. - Malvados, é o que são - prosseguiu o monge. - Malvados! Inclinam-se perante ídolos - abanou tristemente a cabeça. - Nunca fui até lá, tão a norte, mas ouvi dizer que a terra deles estava envolvida num nevoeiro perpétuo e que se um homem morre com uma ferida nas costas, a mulher come os filhos e atira-se dos penhascos com o desgosto.

 

- é verdade? - perguntou Thomas.

 

- Foi o que eu ouvi - respondeu o monge, fazendo o sinal da cruz.

 

- Alimentam-se de ninhos de aves, algas e peixe cru - Lorde Outhwaite continuou a história, mas depois sorriu: - Vede que alguma da minha gente em Witcar faz o mesmo, mas pelo menos rezam a Deus. Pelo menos acho que sim.

 

- Mas a vossa gente não tem cascos bifurcados - disse o monge, olhando para o inimigo.

 

- Os escoceses têm? - perguntou ansiosamente um monge muito mais jovem com o rosto terrivelmente marcado pela varíola.

 

- Os guerreiros dos clãs têm - disse Lorde Outhwaite. - Quase nem são humanos - abanou a cabeça e depois estendeu a mão ao monge mais velho.

 

- Sois o Irmão Michael, não é verdade?

 

- Vossa Senhoria lisonjeia-me por se lembrar do meu nome - respondeu o monge, satisfeito.

 

- Já foi homem-de-armas do meu Lorde Percy - explicou Lorde Outhwaite a Thomas. - E muito bom!

 

- Antes de ter perdido isto por causa dos escoceses... - disse o irmão Michael, erguendo o braço direito para que a manga do hábito subisse e revelasse o coto no pulso - ...e isto - apontou para a órbita vazia. - Por isso agora rezo em vez de combater - voltou-se para fitar a linha dos escoceses.

- Hoje estão muito barulhentos - resmungou.

 

- Sentem-se confiantes - comentou placidamente Lorde Outhwaite -, e é assim que devem estar. Quando foi a última vez que o exército escocês foi mais numeroso do que o nosso?

 

- Pode ser que seja mais numeroso - disse o Irmão Michael -, mas escolheram um estranho local para o colocarem. Deveriam ter ido para o lado sul do cume.

 

- Deviam sim, Irmão - concordou Lorde Outhwaite -, mas deixai que nos sintamos gratos pelas pequenas mercês. - O que o Irmão Michael queria dizer era que os escoceses sacrificavam a sua vantagem em homens, lutando no estreito cume onde a linha inglesa, embora menos densa e com menos homens, não podia ser sobreposta. Se os escoceses tivessem ido mais para sul, onde o cume se alargava, quando se inclinava na direcção dos prados irrigados, poderiam ter flanqueado os inimigos. A escolha do terreno poderia ter sido um erro que ajudasse os ingleses, mas foi um breve consolo quando Thomas tentou calcular as dimensões do exército inimigo. Havia outros homens a fazer o mesmo e os seus cálculos iam dos seis aos dezasseis mil homens, embora Lorde Outhwaite calculasse não haver mais de oito mil escoceses.

 

- É apenas três ou quatro vezes o nosso número - disse alegremente. E não têm arqueiros suficientes. Deus seja louvado pelos arqueiros ingleses.

 

- Ámen - disse o Irmão Michael.

 

O jovem monge com o rosto marcado pela varíola fitava fascinado a densa linha escocesa.

 

- Disseram-me que os escoceses pintam o rosto de azul, mas não vejo nenhum assim.

 

Lorde Outhwaite espantou-se.

 

- Ouvistes o quê?

 

- Que pintam o rosto de azul, senhoria - disse o monge já embaraçado. - Ou talvez só metade do rosto. Para nos assustarem.

 

- Para nos assustarem? - Lorde Outhwaite parecia divertido. - Só se for para nos fazerem rir. Nunca vi.

 

- Nem eu - acrescentou o Irmão Michael.

 

- Foi só uma coisa que ouvi dizer - afirmou o jovem monge.

 

- Já são bastante assustadores sem pintura - disse Lorde Outhwaite, apontando para um pendão diante da sua posição na linha. - Vejo Sir WilHam ali.

 

- Sir William? - perguntou Thomas.

 

- Willie Douglas - disse Lorde Outhwaite. - Fui seu prisioneiro durante dois anos e por causa disso continuo a pagar aos banqueiros. - Significava que a família tivera de pedir dinheiro emprestado para pagar o resgate. - Mas gostei dele. É um tratante. E vai combater com Moray?

 

- Moray? - perguntou o irmão Michael.

 

- John Randolph, conde de Moray - Lorde Outhwaite apontou para outro pendão junto da bandeira com o coração vermelho de Douglas. - Odeiam-se. Só Deus sabe porque estão juntos na linha - olhou de novo para os tambores escoceses que se inclinavam para trás para equilibrar os seus instrumentos junto aos ventres. - Odeio esses tambores - disse em voz baixa. - Pintar os rostos de azul! Nunca ouvi tal absurdo! - soltou uma gargalhada.

 

O prior salmodiava agora junto das tropas que estavam mais próximas, dizendo-lhes que os escoceses tinham destruído a grande casa religiosa em Hexham.

 

- Profanaram a Santa Igreja de Deus! Mataram os Irmãos! Roubaram o próprio Cristo e fizeram correr lágrimas nas faces de Deus! Vingai-vos em Seu nome! Não mostreis piedade! - Os arqueiros ali próximos dobraram os dedos, humedeceram os lábios e olharam o inimigo que não mostrava sinal de avançar. - Haveis de matá-los - guinchou o prior. - Deus abençoar-vos-á por isso! Vão chover bênçãos sobre as vossas cabeças!

 

- Querem que os ataquemos - comentou o Irmão Michael secamente. Parecia embaraçado pela paixão do seu prior.

 

- Sim - disse Lorde Outhwaite. - E pensam que vamos atacar a cavalo. Vêem os piques?

 

- Também servem para atacar homens apeados, senhor - disse o irmão Michael.

 

- É verdade, é verdade - concordou Lorde Outhwaite. - Os piques são coisas muito desagradáveis - remexeu nas malhas soltas da sua cota e pareceu surpreendido quando uma delas lhe veio agarrada aos dedos. - Gosto de Willie Douglas - disse. - Costumávamos caçar juntos enquanto estive preso. Lembro-me de que apanhámos javalis muito bons em Liddesdale - Franziu a testa. - Que tambores tão barulhentos.

 

- Vamos atacá-los? - o jovem monge reuniu coragem suficiente para perguntar.

 

- Valha-me Deus, não, espero que não - disse Lorde Outhwaite. - Somos muito menos! É melhor ficarmos onde estamos e deixar que venham ter connosco.

 

- E se não vierem? - perguntou Thomas.

 

- Irão para casa com os bolsos vazios - disse Lorde Outhwaite. - Isso não lhes vai agradar, não lhes vai agradar nada. Estão aqui apenas para saquear! É por isso que nos detestam tanto.

 

- Detestam-nos? Estão aqui para nos saquear? - Thomas não tinha compreendido a ideia de Sua Senhoria.

 

- Têm inveja, jovem! Simples inveja! Nós temos riquezas, eles não, e há poucas coisas mais passíveis de provocar ódio do que um tal desequilíbrio. Tinha um vizinho em Witcar que parecia um homem razoável, mas depois ele e os seus homens tentaram aproveitar-se da minha ausência enquanto estive prisioneiro de Douglas. Tentaram fazer uma emboscada para roubarem o dinheiro do meu resgate, se isto se admite! Mera inveja, creio eu, pois era um homem pobre.

 

- E morreu, Senhoria? - perguntou Thomas divertido.

 

- Valha-me Deus, não - respondeu Sua Senhoria com uma expressão reprovadora. - Está num buraco bem fundo nos confins das minhas masmorras. Lá no fundo, com as ratazanas. De vez em quando lanço-lhe moedas para que não se esqueça da razão por que lá está. - Pôs-se em bicos de pés e olhou para oeste, para onde os montes eram mais altos. Procurava em vão homens-de-armas escoceses a cavalo a atacarem de sul, mas não os ouvia.

- O pai dele - disse, referindo-se a Robert Bruce - não ficaria à espera. Já teria mandado soldados a cavalo para junto das nossas fileiras de modo a pôr-nos fogo no rabo, mas este cachorrinho não percebe nada disto, pois não? Está no local errado!

 

- Confiou no número de homens - disse o Irmão Michael.

 

- Talvez que o número deles seja, de facto, suficiente - replicou Lorde Outhwaite tristemente, fazendo o sinal da cruz.

 

Agora que Thomas podia ver o terreno entre os exércitos, entendia por que razão Lorde Outhwaite desprezava tanto os reis escoceses que lhe tinham atraído o exército para sul das cabanas queimadas, onde tombara a cruz do dragão. Não só a estreiteza do cume confinava os escoceses, negando-lhes a possibilidade de flanquear os ingleses numericamente inferiores, como o mal escolhido campo de batalha estava obstruído pelas sebes de abrunheiros e, pelo menos, por uma muralha de pedra. Nenhum exército poderia avançar, atravessando aqueles obstáculos na esperança de manter a linha intacta, porém o rei escocês parecia confiante que os ingleses os atacariam e não executava qualquer movimento. Os seus homens gritavam insultos na esperança de provocarem um ataque, mas os ingleses mantinham-se teimosamente imóveis nas suas fileiras.

 

Os escoceses gritavam ainda mais quando um homem alto cavalgou do centro da linha inglesa. O corcel tinha fitas roxas entrelaçadas na sua crina e um caparazão púrpura bordado com chaves douradas, tão comprido que varria o chão por trás das patas traseiras da montada. A cabeça do corcel estava protegida por uma placa de couro sobre a qual tinha um chifre de prata, retorcido, como a presa de um unicórnio. O cavaleiro trazia uma armadura de metal muito polida e uma veste sem mangas de cor púrpura e ouro, as mesmas cores mostradas pelo seu pajem porta-estandarte e pelos doze cavaleiros que o seguiam. O cavaleiro alto não tinha espada, mas sim um enorme mangual como o de Beggar. Os tambores escoceses redobraram os seus esforços, os soldados escoceses gritavam insultos e os ingleses aclamaram até que o homem alto ergueu a mão coberta de malha a pedir silêncio.

 

- Vamos ouvir uma homilia de Sua Graça - disse Lorde Outhwaite tristemente. - Sua Graça adora o som da sua própria voz.

 

O homem alto era evidentemente o Arcebispo de Iorque e, assim que as fileiras inglesas ficaram em silêncio, voltou a erguer a mão direita coberta de malha sobre o seu elmo enfeitado com uma pena de cor púrpura e fez um extravagante sinal da cruz.

 

- Dominus vobiscum - exclamou. - Dominus vobiscum. - Percorreu a linha, repetindo a invocação. - Hoje matareis o inimigo de Deus - repetia após cada promessa de que Deus estaria com os ingleses. Tinha de gritar para se fazer ouvir sobre o estrondo provocado pelo inimigo. - Deus está convosco e levareis a cabo a Sua obra fazendo muitas viúvas e órfãos. Enchereis os escoceses de desgosto como justa punição pela sua impiedade. O Senhor das Hostes está convosco; a vossa tarefa é a vingança de Deus!

 

O cavalo do arcebispo fazia mesuras, enquanto sua graça levava encorajamento às alas do exército. Os últimos farrapos de bruma tinham há muito desaparecido, e embora o ar ainda estivesse húmido o Sol aquecera e a sua luz cintilava reflectida nos milhares de lâminas escocesas. Duas carroças puxadas por um só cavalo tinham vindo da cidade, e uma dúzia de mulheres distribuía arenques secos, pão e odres de cerveja.

 

O escudeiro de Lorde Outhwaite trouxe uma barrica de arenques vazia para que Sua Senhoria se pudesse sentar. Ali próximo, um homem tocava uma flauta de cana e o Irmão Michael cantava uma antiga canção campestre acerca de um texugo e de um monge que vendia indulgências e Lorde Outhwaite ria-se da letra e depois apontou com a cabeça para o chão entre os exércitos onde dois cavaleiros, um de cada lado, se encontravam.

 

- Já vi que hoje estamos muito delicados - comentou. Um arauto inglês com um vistoso tabardo cavalgara na direcção dos escoceses e um padre, apressadamente nomeado arauto da Escócia, viera saudá-lo. Os dois homens inclinaram-se nas suas selas, falaram algum tempo e depois voltaram para os respectivos exércitos. O inglês aproximou-se da linha e abriu as mãos num gesto que queria dizer que os escoceses estavam a ser teimosos.

 

- Vieram até aqui, tão a sul, e não querem combater? - inquiriu o prior zangado.

 

- Querem que sejamos nós a começar o combate - disse Lorde Outhwaite em voz baixa - e nós queremos o mesmo. - Os arautos tinham-se encontrado para discutir como se deveria combater e cada um deles pedira simplesmente ao outro que desse início ao assalto. Como ambos os lados tinham recusado o convite, os escoceses tentavam mais uma vez provocar os ingleses por meio de insultos. Alguns inimigos avançaram até ao alcance dos arcos e gritaram que os ingleses eram porcos, que as mães eram porcas, mas quando um dos arqueiros ergueu a sua arma para reagir aos insultos um capitão inglês gritou-lhe.

 

- Não gasteis flechas com palavras.

 

- Cobardes! - Um escocês atreveu-se a aproximar-se ainda mais da linha inglesa, bem dentro de metade do alcance de um arco.

 

- Cobardes, bastardos! Filhos de prostitutas que vos alimentaram com mijo de cabra! As vossas mulheres são porcas parideiras! Prostitutas e porcas, escutais? Bastardos! Bastardos ingleses! Excrementos dos demónios! - A fúria do ódio fazia-o estremecer. Tinha uma barba eriçada, um saiote esfarrapado e uma cota de malha com um enorme rasgão nas costas de modo que, quando se voltava e inclinava, apresentava o traseiro nu aos ingleses. A intenção era insultar, mas foi recebido com uma estrondosa gargalhada.

 

- Mais cedo ou mais tarde têm de nos atacar - afirmou calmamente Lorde Outhwaite. - Ou então vão para casa sem nada e não estou a vê-los fazer isso. Não reuniriam um exército tão grande sem esperança de lucros.

 

- Já saquearam Hexham - observou o prior com ar lúgubre.

 

- E só conseguiram bugigangas - respondeu Lorde Outhwaite sem dar importância. - Há muito que os verdadeiros tesouros de Hexham foram levados e postos em segurança. Ouvi dizer que Carlisle lhes pagou o suficiente para ser deixada em paz, mas suficientemente bem para enriquecer oito ou nove mil homens? - abanou a cabeça. - Esses soldados não são pagos - disse a Thomas. - Não são como os nossos homens. O rei da Escócia não tem dinheiro para pagar aos seus soldados. Não. Querem fazer alguns prisioneiros ricos, depois saquear Durham e Iorque e, se não quiserem ir para casa pobres e de mãos vazias, o melhor será erguerem os escudos e virem ter connosco.

 

Mas, mesmo assim, os escoceses não se mexiam e os ingleses eram muito poucos para lançar um ataque, embora grupos de homens estivessem constantemente a chegar para reforçar as hostes do arcebispo. Eram principalmente pessoas da região e poucos tinham armaduras ou armas que não fossem os seus instrumentos de lavoura, como enxadas e picaretas. Era agora quase meio-dia e o sol tinha expulsado a humidade da terra de modo que Thomas suava sob o couro e a malha. Dois dos criados leigos do prior tinham chegado numa carroça puxada por um cavalo e carregada de barris de cerveja fraca, sacos de pão, uma caixa de maçãs e um enorme queijo e uma dúzia de monges transportou as provisões ao longo da linha inglesa. A maior parte do exército estava agora sentada, alguns homens até dormiam e muitos escoceses faziam o mesmo. Até os tambores tinham desistido, poisando os enormes instrumentos na pastagem. Os corvos circulavam lá em cima e Thomas, pensando que a presença dessas aves era presságio de morte, fez o sinal da cruz e logo se sentiu aliviado ao ver que elas voavam para norte, em direcção às tropas escocesas.

 

Um grupo de arqueiros tinha chegado da cidade e metia setas nas aljavas, sinal seguro de que nunca tinham combatido com o arco, pois a aljava era um mau instrumento nas batalhas. Espalhavam as setas enquanto os homens corriam e poucas podiam conter mais do que uma dezena de pontas. Os arqueiros como Thomas preferiam grandes bolsas feitas de linho esticado em volta de uma armação de junco, nas quais as flechas ficavam direitas, as penas não eram amachucadas pela armação e as setas de aço projectavam-se pelo gargalo da bolsa atado por um cordão. Thomas escolhera cuidadosamente as suas setas, rejeitando as ripas com falhas ou as penas dobradas. Em França, onde muitos cavaleiros inimigos possuíam armaduras de metal muito caras, os ingleses usavam flechas especiais com setas longas, estreitas e pesadas sem barbela que mais facilmente perfuravam os plastrões e elmos, mas aqui utilizavam ainda as flechas de caça com as suas farpas que as tornavam impossíveis de retirar das feridas. Chamavam-lhes setas de carne, mas mesmo essas podiam perfurar uma cota de malha a duzentos passos.

 

Thomas dormiu algum tempo ao princípio da tarde, acordando apenas quando o cavalo de Lorde Outhwaite o pisou. Sua Senhoria, juntamente com outros comandantes ingleses, fora convocada pelo arcebispo e, por isso, chamara o cavalo e, acompanhado pelo escudeiro, dirigia-se para o centro do exército. Um dos capelães do arcebispo transportava um crucifixo de prata ao longo da linha. O crucifixo tinha uma bolsa de couro por baixo dos pés de Cristo em cujo interior, segundo afirmava o capelão, estavam colocadas as falanges do mártir Santo Osvaldo.

 

- Beijai a bolsa e Deus proteger-vos-á - prometia o capelão e os arqueiros e homens-de-armas empurravam-se uns aos outros para terem oportunidade de obedecer. Thomas não se conseguiu aproximar o suficiente para beijar a bolsa, mas conseguiu estender a mão e tocar nela. Muitos homens tinham amuletos ou tiras de pano que as mulheres, filhas ou amantes lhes tinham dado ao saírem de casa ou das quintas para irem marchar contra os invasores. Tocavam agora nesses talismãs, enquanto os escoceses, sentindo que, por fim, algo se iria passar, tratavam de se pôr de pé. Um dos grandes tambores começou a fazer um barulho terrível.

 

Thomas olhou para a sua direita, onde podia ver os topos das torres gémeas da catedral e o pendão que flutuava nas ameias do castelo. Naquela altura já Eleanor e o padre Hobbe deveriam estar na cidade e Thomas sentiu remorsos por se ter apartado da sua mulher, zangado com ela. Depois pegou no arco para que o toque na madeira a afastasse do mal. Consolou-se a pensar que Eleanor estaria em segurança na cidade e, naquela noite, quando vencessem a batalha, fariam as pazes. Depois, supunha que pudessem casar.

Não tinha realmente a certeza de que o quisesse fazer, parecia-lhe demasiado cedo na sua vida para tomar esposa, mesmo sendo ela Eleanor, a quem decerto amava, mas que também desejaria que Thomas abandonasse o arco de teixo para se estabelecer numa casa. Isso era a última coisa que Thomas desejaria. O que queria era ser chefe dos arqueiros, um homem como Will Skeat. Queria ter o seu bando de homens para, por dinheiro, poderem servir os grandes senhores. Não havia falta de oportunidade. Dizia-se que os Estados italianos pagavam uma fortuna pelos arqueiros ingleses e Thomas queria uma parte, mas era preciso olhar por Eleanor e ele não queria que o filho fosse um bastardo. Já havia bastantes neste mundo e não seria preciso acrescentar mais um.

 

Os fidalgos ingleses falaram durante algum tempo. Eram cerca de uma dezena e olhavam constantemente para o inimigo. Thomas estava suficientemente perto para ver a ansiedade nos seus rostos. Seria a preocupação de que o inimigo fosse demasiado numeroso? Ou que os escoceses se recusassem a combater e que, no nevoeiro da manhã seguinte, pudessem desaparecer em direcção ao norte?

 

O Irmão Michael veio descansar os ossos na barrica de arenques que tinha servido de assento a Lorde Outhwaite.

 

- Vão mandar-vos a vós, arqueiros, para a frente. Seria o que eu faria. Mandar avançar os arqueiros para provocar os bastardos. Provocá-los ou pô-los em fuga, mas os escoceses não fogem facilmente. São patifes corajosos.

 

- Corajosos? Então porque não atacam?

 

- Porque não são tolos. Vêem muito bem estes aqui - o Irmão Michael tocou na ripa negra do arco de Thomas. - Já aprenderam o que fazem os arqueiros. Ouvistes falar de Halidon Hill? - ergueu as sobrancelhas surpreendido, quando Thomas abanou a cabeça. - Evidentemente, sois do Sul. Cristo podia voltar a este mundo no Norte e vós, os do Sul, não daríeis por nada, nem acreditaríeis se tivésseis ouvido falar. Passou-se há treze anos, atacaram-nos junto de Berwick e nós cortámo-los às postas, nós, isto é, os nossos arqueiros. Agora não sentem vontade de passar aqui pelo mesmo destino - o Irmão Michael franziu o sobrolho ao ouvir um leve som metálico. - Que foi isto?

 

Alguma coisa tocara no elmo de Thomas, fazendo-o voltar-se para ver o Espantalho, Sir Geoffrey Carr, que tinha feito estalar o chicote para que a garra de metal na ponta fizesse ricochete na gálea de Thomas. Sir Geoffrey recolheu o chicote.

 

- Escondendo-vos por trás das saias dos monges, não é verdade? - perguntou ironicamente a Thomas.

 

O Irmão Michael conteve Thomas.

 

- Ide, Sir Geoffrey - ordenou o monge -, antes que eu vos lance uma Maldição à vossa alma negra.

 

Sir Geoffrey enfiou um dedo na narina, para tirar dela uma coisa nojenta que lançou na direcção do monge.

 

- Pensais que me assustais, bastardo zarolho? Vós que haveis perdido os tomates quando vos cortaram a mão? - Riu-se e voltou-se de novo para Thomas. - Tendes uma contenda com a minha pessoa e não me haveis dado oportunidade de a terminar, rapaz.

 

- Agora não! - exclamou bruscamente o Irmão Michael. Sir Geoffrey fingiu não ter ouvido o monge.

 

- Lutais contra os vossos melhores, meu rapaz? Podeis ser enforcado por isso. Não... - estremeceu e depois apontou para Thomas o longo dedo ossudo. - Sereis enforcado por isso! Haveis ouvido? Sereis enforcado por isso cuspiu em cima de Thomas e depois voltou o seu esquelético cavalo, picando-o para o fazer regressar à linha.

 

- Como conheceis o Espantalho? - perguntou o Irmão Michael.

 

- Acabámos de nos conhecer.

 

- É uma criatura malvada - disse o Irmão Michael, fazendo o sinal da cruz. - Nasceu em quarto minguante, durante uma tempestade - continuava a olhar para o Espantalho. - Há quem diga que o Espantalho deve dinheiro até ao próprio demónio. Teve de pagar um resgate a Douglas de Liddesdale e pediu um enorme empréstimo aos banqueiros para o conseguir. As suas propriedades, os seus campos, tudo o que possui está em perigo se não pagar e mesmo que hoje consiga uma fortuna, vai jogá-la toda aos dados. O Espantalho é um idiota, mas um idiota perigoso - voltou o seu único olho para Thomas. - Haveis realmente arranjado uma contenda com ele?

 

- Queria violar a minha mulher.

 

- É mesmo do nosso Espantalho. Por isso cuidai, meu rapaz, pois ele não esquece as ofensas e nunca as perdoa.

 

Os fidalgos ingleses deviam ter chegado a um qualquer acordo pois estenderam os seus punhos fechados cobertos de malha e tocaram com os nós nos dedos uns dos outros, depois, Lorde Outhwaite voltou o cavalo para os seus homens.

 

- John! John! - exclamou para o capitão dos arqueiros. - Não vamos esperar que se resolvam - disse, desmontando. - Provocai-os.

 

Parecia que o prognóstico do Irmão Michael saíra certo; os arqueiros seriam enviados para a frente para irritarem os escoceses. O plano era enraivecê-los com as setas para assim os obrigar a um ataque apressado.

 

Um escudeiro levou o cavalo de Lorde Outhwaite para a pastagem murada, enquanto o arcebispo de Iorque colocava o seu corcel diante do exército.

 

- Deus ajudar-vos-á! - gritou para os homens da divisão central que comandava. - Os escoceses temem-nos! - gritou. - Sabem que com a ajuda de Deus tornaremos órfãs muitas crianças na sua terra maldita! Estão ali a olhar-nos porque nos receiam. Por isso temos de os atacar. - O sentimento provocou uma ovação. O arcebispo ergueu a mão para silenciar os homens.

 

- Quero que os arqueiros avancem - exclamou. - Apenas os arqueiros! Picai-os! Matai-os! E Deus vos abençoe a todos! Deus vos abençoe em tudo!

 

Assim, os arqueiros começariam a batalha. Os escoceses recusavam teimosamente mexer-se na esperança de que os ingleses dessem início ao ataque, pois era muito mais fácil defender o terreno do que assaltar um inimigo em formação, mas agora os arqueiros ingleses avançariam para espicaçar, picar e assediar o inimigo até que este fugisse ou, o que era mais provável, avançasse para se vingar.

 

Thomas tinha já seleccionado a melhor flecha. Era nova, tão nova que a cola esverdeada passada no fio que segurava as penas ainda não estava completamente seca, mas tinha uma haste forte, levemente mais larga atrás da cabeça e depois afunilada na direcção das penas. Uma haste assim teria um impacto forte. Era uma bela peça de freixo com mais um terço de comprimento que o seu braço, e Thomas não a desperdiçaria, mesmo que o tiro de abertura fosse feito a uma distância muito grande.

 

Seria mesmo a uma enorme distância pois o rei da Escócia estava na retaguarda do enorme troço central do seu exército. Porém, não seria impossível, pois o arco negro era enorme e Thomas era jovem forte e preciso.

 

- Deus esteja convosco - disse o Irmão Michael.

 

- Apontai bem! - exclamou Lorde Outhwaite.

 

- Que Deus apresse as vossas flechas - gritou o arcebispo de Iorque. Os tambores soavam mais alto, os escoceses vaiavam e os arqueiros

 

ingleses avançaram.

 

Bernard de Taillebourg sabia já grande parte daquilo que o velho monge lhe tinha dito, mas agora que este contava a história de seguida não o interrompeu. Era a história de uma dona de um obscuro condado no Sul de França. Chamava-se este Astarac e situava-se junto às terras dos Cátaros, no Sul de França e foi, a seu tempo, contagiada pela heresia.

 

- Os falsos ensinamentos espalharam-se como uma praga desde o mar interior até ao oceano - dissera o Irmão Collimore - e depois para norte até à Borgonha.

 

O padre De Taillebourg sabia tudo aquilo, mas nada disse, deixando o velho continuar a descrever como os Cátaros tinham sido expulsos da terra e queimados em fogueiras cujo fumo fora enviado aos céus para dizer a Deus e aos Seus anjos que a verdadeira religião fora restaurada nas terras entre França e Aragão, e os Vexilles, os últimos contaminados pelo mal cátaro, enviados para os cantos mais recônditos da Cristandade.

 

- Porém, antes de partirem - continuou o Irmão Collimore, erguendo os olhos para o arco branco do tecto -, levaram os tesouros dos hereges e esconderam-nos.

 

- E o Graal estava entre eles?

 

- Era o que diziam, mas quem sabe? - O Irmão Collimore voltou a cabeça e franziu a testa para o dominicano. - Se possuíam o Graal, porque não terão sido ajudados por ele? Nunca o entendi - fechou os olhos. Por vezes, quando o velho fazia uma pausa para tomar fôlego e quase parecia adormecido, De Taillebourg olhava pela janela para ver os dois exércitos no monte distante. Não se moviam, embora o barulho que faziam fosse como o estalar e o rugido de uma enorme fogueira. O rugido era o barulho das vozes dos homens e o estalar eram os tambores. Os sons gémeos subiam e desciam com os caprichos do vento que soprava no desfiladeiro rochoso sobre o rio Wear. O criado do padre De Taillebourg continuava à porta, semioculto por um dos muitos pilares de pedra nua, empilhados no espaço aberto entre o castelo e a catedral. Os andaimes escondiam a torre mais próxima e uns rapazitos, desejosos de conseguir ver o combate, trepavam pela teia de paus amarrados. Os pedreiros tinham abandonado o trabalho para observarem os dois exércitos.

 

Agora, depois de perguntar porque não teria o Graal ajudado os Vexilles, o Irmão Collimore caiu num breve sono e De Taillebourg dirigiu-se ao seu criado vestido de negro.

 

- Acreditas nele?

 

O criado encolheu os ombros e nada disse.

- Nada te surpreendeu? - perguntou De Taillebourg.

 

- O facto de o padre Ralph ter um filho - respondeu o criado. - É uma novidade para mim.

 

- Temos de falar com esse filho - disse em tom lúgubre o dominicano, voltando-se a seguir, vendo que o velho monge tinha acordado.

 

- Onde ia eu? - perguntou o Irmão Collimore. Um fio de saliva corria-lhe do canto dos lábios.

 

- Haveis perguntado por que razão o Graal não ajudou os Vexilles recordou-o Bernard de Taillebourg.

 

- Deveria tê-lo feito - disse o velho monge. - Se possuíam o Graal, porque não se tornaram poderosos?

 

O padre De Taillebourg sorriu.

 

- Suponde - respondeu ao velho monge - que os infiéis muçulmanos conseguissem a posse do Graal, pensais que Deus lhes garantiria tal poder? Irmão, o Graal é o maior tesouro, o maior de todos os tesouros nesta terra, mas não é maior que Deus.

 

- Não - concordou o Irmão Collimore.

 

- E se Deus não concordar com o guardião, então o Graal não terá poder.

 

- Sim - reconheceu o Irmão Collimore.

 

- Haveis dito que os Vexilles fugiram?

 

- Fugiram da Inquisição - disse o Irmão Collimore lançando um olhar oblíquo a De Taillebourg. - E um ramo da família veio aqui para Inglaterra onde prestaram serviços ao rei. Não ao rei actual, claro - esclareceu o velho monge -, mas ao seu bisavô, o último Henrique.

 

- Que serviço? - perguntou De Taillebourg.

 

- Ofereceram ao rei um casco do cavalo de São Jorge - disse o monge como se tais coisas fossem habituais. - Um casco ferrado a ouro e capaz de operar milagres. Pelo menos o rei acreditava que assim era pois o seu filho curou-se de uma febre ao ser tocado pelo casco. Disseram-me que o dito casco continua ainda na Abadia de Westminster.

 

A família fora recompensada com terra no Cheshire, continuou Collimore e se eram hereges não parecia pois viviam como qualquer outra família nobre. A sua queda, disse, chegara no princípio do actual reinado, quando a mãe do jovem rei, ajudada pela família Mortimer, tentara evitar que o filho tomasse o poder. Os Vexilles tomaram o partido da rainha quando esta foi derrotada e fugiram para o continente.

 

- Todos, excepto um - disse o Irmão Collimore. - O filho mais velho. Ralph, claro. Pobre Ralph.

 

- Mas se a sua família fugiu para França, porque o haveis tratado? - perguntou De Taillebourg, com a confusão a marcar-lhe o rosto coberto de crostas do sangue sobre as feridas que tinha feito ao bater nessa manhã com o rosto na pedra. - Porque não foi simplesmente executado como traidor?

 

- Porque tinha tomado ordens sagradas - protestou Collimore. - Não podia ser executado! Além do mais sabia-se que odiava o pai e que se tinha declarado a favor do rei.

 

- Então, não era completamente louco - afirmou De Taillebourg secamente.

 

- Também tinha dinheiro - continuou Collimore. - Era nobre e afirmava saber o segredo dos Vexilles.

 

- O tesouro dos Cátaros?

 

- Mas já nessa altura o demónio estava dentro dele! Declarou ser bispo e fazia violentos sermões nas ruas de Londres. Disse que conduziria uma nova Cruzada para expulsar os infiéis de Jerusalém e prometeu que o Graal garantiria o sucesso.

 

- E então havei-lo encerrado?

 

- Foi-me enviado - disse com ar reprovador o Irmão Collimore -, porque se sabia que eu era capaz de expulsar demónios - fez uma pausa para recordar. - Nos meus tempos, expulsei centenas! Centenas!

 

- Mas não haveis curado completamente Ralph Vexille? O monge abanou a cabeça.

 

- Era como que um homem castigado e fustigado por Deus, de modo que chorava, gritava e flagelava-se até fazer correr o sangue. - O Irmão Collimore, sem ter consciência de que poderia estar a descrever o próprio De Taillebourg, estremeceu. - E era também perturbado pelas mulheres. Julgo que disso nunca o curámos, mas se não conseguimos expulsar completamente os demónios de dentro dele, pelo menos conseguimos escondê-los de tal modo que raramente se atreviam a aparecer.

 

- O Graal seria um sonho que os demónios lhe tinham oferecido - perguntou o dominicano.

 

- Era isso que queríamos saber - replicou o Irmão Collimore.

 

- E que resposta haveis encontrado?

 

- Disse aos meus mestres que o padre Ralph mentia. Que tinha inventado o Graal. Que não havia qualquer verdade na sua loucura. Depois, quando os demónios já não o incomodavam, foi enviado para uma paróquia mesmo no Sul, onde pudesse pregar às gaivotas e às lontras. Nunca mais usou o título nobilitário, passou a ser simplesmente o padre Ralph e mandámo-lo embora para que fosse esquecido.

 

- Para que fosse esquecido? - repetiu De Taillebourg. - Porém, haveis tido notícias dele. Haveis descoberto que tinha um filho.

 

O velho monge acenou afirmativamente.

 

- Tínhamos um convento perto de Dorchester e enviaram-me a notícia. Disseram-me que o padre Ralph tinha arranjado uma mulher, uma governanta, mas qual é o padre de aldeia que não tem uma? Depois teve um filho e pendurou uma velha lança na sua igreja dizendo tratar-se da lança de São Jorge.

 

De Taillebourg espreitou para o monte a oeste, onde o ruído tinha aumentado. Parecia que os ingleses, certamente o exército mais pequeno, avançavam, o que significava que perderiam a batalha e que, por sua vez, o padre De Taillebourg teria de sair do mosteiro e até mesmo da cidade, antes de Sir William Douglas entrar em busca de vingança.

 

- Haveis dito aos vossos mestres que o padre Ralph mentia. Era verdade? O velho monge fez uma pausa e a De Taillebourg pareceu que o próprio firmamento sustivera a respiração.

 

- Não creio que mentisse - murmurou Collimore.

 

- Então, porque haveis dito que ele mentia?

 

- Porque gostava dele - disse o Irmão Collimore. - E creio que nunca seria possível extrair-lhe a verdade, nem matando-o à fome, nem tentando afogá-lo em água fria. Pensei que fosse inofensivo e que deveria ser deixado nas mãos de Deus.

 

De Taillebourg olhou pela janela. O Graal, pensou, o Graal. Os perdigueiros de Deus andavam na sua pista. Ele encontrá-lo-ia!

 

- Veio um parente de França - disse o dominicano. - Roubou a lança e matou o padre Ralph.

 

- Ouvi dizer.

 

- Mas não encontraram o Graal.

 

- Graças a Deus - disse em voz fraca o Irmão Collimore.

 

De Taillebourg ouviu um movimento, viu que o seu criado, que até ali escutara com atenção, vigiava agora o pátio. Devia ter ouvido alguém aproximar-se, e De Taillebourg, inclinando-se mais para o Irmão Collimore, baixou a voz para não poder ser escutado.

 

- Quantas pessoas sabem da existência do padre Ralph e do Graal? O Irmão Collimore pensou durante alguns instantes.

 

- Há muitos anos que ninguém falava do assunto - respondeu. - Até à vinda do novo bispo. Deve ter ouvido rumores, pois fez-me perguntas sobre o assunto. Disse-lhe que Ralph Vexille era louco.

 

- Acreditou em vós?

 

- Ficou desapontado. Queria o Graal para a catedral.

 

Claro que sim, pensou De Taillebourg, pois qualquer catedral que o possuísse seria a igreja mais rica de toda a Cristandade. Até mesmo Génova, com o seu raro bocado de vidro verde que afirmavam ser o Graal recebia dinheiro de milhares de peregrinos. Colocar o verdadeiro Graal numa igreja significava que as pessoas passariam a entrar às centenas de milhares com os seus carregamentos de moedas e jóias. Reis, rainhas, príncipes e duques encheriam a nave, competindo para oferecerem as suas riquezas.

 

O criado tinha desaparecido, deslizando sem fazer ruído por de trás de um dos pilares da construção e De Taillebourg aguardou, vigiando a porta, interrogando-se que problema dali surgiria. Depois, em vez de um problema, surgiu um jovem padre. Vestia um hábito grosseiro, tinha o cabelo despenteado e um rosto largo e franco. Acompanhava-o uma jovem pálida e frágil. Parecia nervosa, mas o padre saudou alegremente De Taillebourg.

 

- Um bom dia para vós, padre.

 

- E para vós também, padre - respondeu educadamente De Taillebourg. O criado reaparecera por de trás dos recém-chegados, impedindo-os de sair, a menos que De Taillebourg os autorizasse.

 

- Estou a ouvir a confissão do Irmão Collimore - disse De Taillebourg.

 

- Espero que seja boa - disse o padre Hobbe a sorrir. - Não me pareceis inglês, padre.

 

- Sou francês - disse De Taillebourg.

 

- Tal como eu - disse Eleanor nessa língua. - Viemos falar com o Irmão Collimore.

 

- Falar com ele? - perguntou delicadamente De Taillebourg.

 

- Enviou-nos o bispo - disse Eleanor com ar orgulhoso. - E o rei também.

 

- Que rei, minha filha?

 

- Edouard d’Angletem - afirmou Eleanor imponente. O padre Hobbe, que não falava francês, olhava ora para Eleanor ora para o dominicano.

 

- Porque vos enviaria Eduardo? - perguntou então De Taillebourg e, quando Eleanor corou, repetiu a pergunta. - Porque vos enviou Eduardo?

 

- Não sei, padre - respondeu Eleanor.

 

- Julgo que sabeis, minha filha, julgo que sabeis - levantou-se e o padre Hobbe pressentindo que alguma coisa não estava bem, pegou no pulso de Eleanor e tentou retirá-la do quarto, porém De Taillebourg acenou ao criado e apontou para o padre Hobbe. Enquanto o padre inglês tentava compreender porque sentia suspeitas do dominicano, uma faca deslizou-lhe por entre as costelas. Fez um ruído sufocado, depois tossiu e a respiração prendeu-se-lhe na garganta enquanto caía nas lajes. Eleanor tentava fugir, mas não foi suficientemente rápida e De Taillebourg apanhou-a pelo pulso e puxou-a com força para trás. Eleanor gritou, mas o dominicano silenciou-a tapando-lhe a boca com a mão.

 

- Que se passa? - perguntou o Irmão Collimore.

 

- Estamos a fazer o trabalho de Deus - disse De Taillebourg para o sossegar. - O trabalho de Deus.

 

E no cimo do monte as flechas começaram a voar.

 

Thomas avançou com os arqueiros da ala esquerda. Ainda não tinham andado mais de vinte jardas quando, por trás de uma vala, de um aterro e de alguns abrunheiros recém-plantados, foram forçados a virar à direita pois tinha sido retirada uma enorme quantidade de terra da vertente do monte. No solo ficara um buraco com os lados demasiado grandes para o arado. O buraco estava cheio de enormes fetos já amarelados e, por trás, havia uma muralha de pedra coberta de líquenes onde a bolsa de setas de Thomas se prendeu e rasgou numa ponta quando ele tentou atravessar. Caiu apenas uma flecha, mas foi cair sobre um anel das fadas1, e ele tentou perceber se seria ou não um bom presságio; porém, o ruído dos tambores escoceses distraiu-o. Pegou na flecha e apressou-se. Soavam agora todos os tambores do inimigo, agitando as peles num frenesim de modo que o próprio ar parecia vibrar. Os homens-de-armas escoceses erguiam os escudos, assegurando-se de que protegiam os piqueiros. Um besteiro fez funcionar a alavanca que puxava para trás a corda da sua arma e prendeu-a no gancho para disparar. O homem ergueu ansiosamente os olhos, vendo avançar os arqueiros ingleses, depois soltou as pegas da alavanca e colocou um virote de metal na calha da besta. O inimigo começara a gritar e Thomas percebia agora algumas

 

1 Círculo de cogumelos vulgares nos prados, que se acreditava marcarem o círculo onde dançavam as fadas. [N. da T.]

 

palavras. ”Se odiais os ingleses”, ouviu e em seguida passou por ele um virote de besta que o fez esquecer o cântico. Centenas de arqueiros ingleses avançavam pelos campos, a maior parte deles a correr. Os escoceses tinham poucas bestas, mas essas armas eram superiores em alcance aos arcos de guerra dos ingleses que se apressavam a minorar essa distância. Uma flecha deslizou pela relva diante de Thomas. Não se tratava de um virote, mas sim da seta de um dos poucos arcos de teixo que os escoceses possuíam e, ao vê-la, recordou-lhe que estava quase na sua posição. Os primeiros arqueiros ingleses detiveram-se para puxar as cordas e logo as setas cintilaram nos céus. Um arqueiro com um gibão de couro almofadado caiu para trás com um virote metido na testa. O sangue jorrou para cima, na mesma direcção da sua seta já disparada inutilmente.

 

- Apontai aos arqueiros! - gritou um homem com uma couraça enferrujada. - Matai os arqueiros em primeiro lugar!

 

Thomas deteve-se e olhou para o estandarte real. Estava à sua direita, um pouco distante, mas na sua vida já tinha disparado para alvos mais longínquos, por isso voltou-se, tomou balanço e depois, em nome de Deus e de São Jorge, escolheu uma flecha que meteu na corda e puxou as penas brancas até junto da orelha. Fitou o rei David II da Escócia, viu o sol brilhar no seu real elmo dourado, viu também o visor aberto e apontou-lhe ao peito, endireitando o arco de modo a compensar o vento. Disparou. A flecha partiu direita, sem vibrar como aconteceria com uma flecha mal feita. Thomas viu-a subir e cair e depois o rei saltar para trás e os cortesãos rodearem-no. Thomas pegou numa segunda flecha com a mão esquerda e procurou outro alvo. Um arqueiro inglês saía da linha a coxear com uma flecha espetada na perna. Os homens-de-armas rodearam-no, selando a linha com os pesados escudos. Thomas ouvia cães a uivar entre a formação inimiga, ou talvez fossem apenas os gritos guerreiros dos homens das tribos. O rei voltara-se e os homens inclinavam-se na sua direcção. O céu enchera-se com o murmúrio das flechas, e o ruído dos arcos era uma música firme e profunda. Os franceses chamavam-lhe a música da harpa do demónio. Que Thomas visse, não havia arqueiros escoceses. Tinham todos servido de alvos dos arqueiros ingleses e as setas haviam dado cabo deles, enchendo-os de sangue; agora os arqueiros ingleses dirigiam os seus projécteis para os homens dos piques, das espadas, dos machados e das lanças. Os guerreiros das tribos, todos eles cabelo, barba e fúria, estavam por detrás dos homens-de-armas que tinham na sua frente seis ou oito homens, para que as setas fizessem ricochete, batendo nas armaduras e nos escudos. Os cavaleiros, os homens-de-armas e os piqueiros escoceses abrigavam-se o melhor que podiam, acocorados sob a torrencial chuva de aço, mas algumas setas encontravam sempre as fendas entre os escudos, enquanto outras voavam direitas através das placas de cana cobertas de ouro. O som seco das setas a bater nos escudos, rivalizava com o barulho mais agudo dos tambores.

 

- Avante, rapazes! Avante! - um chefe dos arqueiros encorajava os seus homens a avançar vinte passos em direcção ao inimigo, de modo a que as setas pudessem atingir com mais força as fileiras escocesas. - Matai-os, rapazes!

 

- Dois dos seus homens estavam estendidos na erva, prova de que os arqueiros escoceses tinham provocado alguns danos antes de serem dominados pelas setas inglesas. Outro inglês cambaleava como se estivesse embriagado, pendendo para o lado e agarrando-se ao ventre de onde o sangue lhe escorria para as perneiras. A corda de um arco partiu-se, lançando a flecha de lado, enquanto o arqueiro praguejava e metia a mão sob a túnica para encontrar outra seta.

 

Os escoceses nada podiam fazer. Já não havia arqueiros e os ingleses aproximavam-se cada vez mais até lançarem as flechas numa trajectória em linha recta que enfiava as pontas de aço nos escudos, na malha das cotas e até mesmo nas raras armaduras de metal. Thomas encontrava-se a umas escassas setenta jardas da linha do inimigo e escolhia os seus alvos com fria deliberação. Via a perna de um homem por baixo de um escudo e meteu-lhe uma flecha na coxa. Os tambores tinham fugido e duas caixas dos instrumentos, com as peles rachadas como fruta podre, estavam caídas sobre a turfa. A montada de um nobre estava logo atrás das alas dos peões; Thomas meteu um projéctil no peito do corcel e viu que o animal ajoelhava e que os homens fugiam em pânico num frenesim, tentando escapar às suas patas esmagadoras. Todos esses homens se expunham, quando os escudos estremeciam, baixavam-se sobre a picada das setas, mas logo um momento depois uma matilha de uma dúzia de cães de caça, pêlo comprido, garras amarelas e a uivar, saíram das alas que recuavam e foram atingidos pelas flechas mortais.

 

- É sempre assim tão fácil? - perguntou um rapaz, evidentemente na sua primeira batalha, a um arqueiro que se encontrava ali próximo.

 

- Se o outro lado não tiver arqueiros - respondeu o soldado mais velho - e enquanto durarem as nossas flechas, é fácil. Depois é muito difícil.

 

Thomas puxou a corda e soltou-a, disparando num ângulo em direcção à frente escocesa, enfiando uma enorme flecha por de trás de um escudo e espetando-a no rosto de um homem barbudo. O rei escocês estava ainda a cavalo, mas agora protegido por quatro escudos cheios de setas. Thomas recordou-se dos cavalos franceses, a morrer na encosta da Picardia com as penas das flechas saindo dos seus pescoços, pernas e corpos. Procurou no saco de flechas já rasgado, encontrou outro projéctil e disparou-a de encontro ao cavalo do rei. O inimigo estava agora debilitado e ou fugiria da chuva de flechas ou então, enraivecido, carregaria sobre o exército inglês, mais pequeno. Mas, a julgar pelos gritos que partiam dos homens escondidos por de trás dos escudos cobertos de setas, Thomas suspeitava que atacariam.

 

Estava certo. Teve ainda tempo para disparar uma única flecha e depois ouviu-se um rugido terrível e toda a linha escocesa, aparentemente sem que ninguém tivesse dado qualquer ordem, atacou. Correram aos berros e aos gritos picados pelo ataque das flechas e os arqueiros ingleses fugiram. Milhares de escoceses enraivecidos atacavam e os arqueiros, mesmo que disparassem todas as setas que possuíam para a horda que avançava, seriam esmagados num instante, de modo que escaparam em busca de abrigo por {detrás dos seus homens-de-armas. Thomas tropeçou enquanto subia a muralha de pedra, mas pôs-se de pé, continuou a correr e depois viu que os outros arqueiros se tinham detido e disparavam agora para os perseguidores. A muralha aguentava bem os escoceses; deu meia-volta e meteu duas flechas em homens que estavam sem defesa antes que o inimigo surgisse do outro lado da barreira e o obrigasse mais uma vez a recuar. Correu na direcção de uma pequena fenda na linha inglesa onde ondulava o pano corporal de São Cuthbert, mas o espaço estava todo ocupado com arqueiros que tentavam ultrapassar a linha armada e, portanto, Thomas dirigiu-se para a direita, tentando atingir a fenda de terreno aberto que ficava entre o flanco do exército e a íngreme encosta do monte.

 

- Escudos avante! - gritou para os homens-de-armas ingleses um guerreiro grisalho, com o visor do elmo erguido. - Aguentai firme! Aguentai firme! - A linha inglesa, apenas com quatro ou cinco alas, firmou-se para receber o selvagem ataque, avançando com os seus escudos e firmando-se nas pernas direitas.

 

- São Jorge! São Jorge! - gritou um homem. - Aguentai firme agora! Atacai e aguentai firme!

 

Thomas encontrava-se no flanco do exército e voltou-se para ver que os escoceses, na sua carga precipitada, tinham alargado a linha. Tinham sido colocados ombro a ombro na sua primeira posição, mas agora, na fuga, haviam-se espalhado, o que significava que o troço mais ocidental tinha sido empurrado pela encosta do monte para o fosso profundo que inesperadamente estreitava o campo de batalha. Estavam no fundo do fosso, condenados a ter de olhar para a linha do horizonte.

 

- Arqueiros! - exclamou Thomas, julgando-se ainda em França, responsável por uma hoste de arqueiros de Will Skeat. - Arqueiros! - berrou, avançando para a borda do fosso. - Matai-os agora! - Os homens apressavam-se a chegar a seu lado, gritavam em triunfo e puxavam as cordas.

 

Era agora a vez da morte, a vez dos arqueiros. A ala direita dos escoceses encontrava-se no terreno mais profundo e os arqueiros, que se encontravam num plano superior, não poderiam falhar. Dois monges traziam molhos de flechas novas, cada um deles com vinte e quatro, regularmente espaçadas em redor de dois discos de couro que separavam as setas e impediam que as penas se esmagassem. Os monges cortaram o cordel que atava as flechas e espalharam os projécteis no chão ao lado dos arqueiros que se erguiam uma vez e outra e matavam uma vez e outra, disparando na
direcção do fosso da morte. Thomas escutou o estrondo ensurdecedor, quando os homens-de-armas colidiram no centro do campo, mas ali, sobre a esquerda inglesa, os escoceses nunca chegariam aos escudos inimigos porque se tinham espalhado pelos fetos amarelos do reino da morte.

 

A infância de Thomas fora passada em Hookton, uma aldeia no Sul da costa inglesa, onde um ribeiro, desaguando no mar, rasgara um profundo canal na praia de cascalho. O canal descrevia uma curva, deixando uma língua de terra que protegia os barcos de pesca e, uma vez por ano, quando as ratazanas eram demasiado numerosas nos porões e despensas dos barcos, os pescadores encalhavam as embarcações no fundo do ribeiro, enchiam os porões de pedras e deixavam que a maré cheia inundasse os cascos fedorentos. Era uma festa para as crianças da aldeia que, do alto do Hook, esperavam que as ratazanas abandonassem os barcos e, depois, com ovações e gritos de prazer, apedrejavam os animais. As ratazanas entravam em pânico, o que apenas aumentava a alegria das crianças, enquanto os adultos ficavam por ali a ver e também aplaudiam e incentivavam.

 

Agora era assim. Os escoceses encontravam-se num terreno baixo, os arqueiros no cimo e a morte era o seu domínio.

 

As flechas voavam pela encosta abaixo, mal descrevendo um arco no seu voo e atingindo o alvo com o som de cutelos a cortar carne. Os escoceses estrebuchavam e morriam na cova, tornando vermelhos os fetos amarelos do Outono. Alguns soldados inimigos tentavam subir na direcção dos seus atormentadores, mas transformavam-se em alvos fáceis. Outros tentavam escapar pelo lado oposto, mas eram atingidos pela retaguarda ao passo que outros ainda fugiam, completamente desbaratados, monte abaixo. Sir Thomas Rokeby, xerife do Yorkshire e comandante da esquerda inglesa viu aquela fuga e ordenou a duas dezenas dos seus homens que montassem a cavalo e percorressem o vale. Os cavaleiros, de cota de malha, brandiam as suas espadas e manguais para terminar o sangrento trabalho dos arqueiros.

 

A base do fosso era uma massa retorcida e ensanguentada. Um homem de armadura de metal, com um elmo encimado por uma pena, tentava subir para escapar à carnificina, mas bateram-lhe duas flechas na couraça e uma terceira encontrou a fenda da viseira, fazendo-o cair para trás a estrebuchar. Uma moita de flechas parecia sair-lhe do falcão do seu escudo. As setas eram agora menos, pois já não havia tantos escoceses para matar; depois, os primeiros arqueiros desceram a encosta empunhando facas para pilhar os mortos e matar os feridos.

 

- Quem é que agora odeia os ingleses? - zombou um dos arqueiros. - Vá, bastardos, quero ouvir-vos agora! Quem é que odeia os ingleses?

 

Depois soou um grito enorme vindo do centro.

 

- Arqueiros! À direita! À direita! - a voz tinha uma nota do mais completo pânico. - Para a direita! Por amor de Deus, já!

Os homens-de-armas da esquerda inglesa mal se tinham envolvido na luta, pois os arqueiros esquartejavam os escoceses no fosso dos fetos. O centro inglês aguentava-se com firmeza, e os homens do arcebispo estavam formados atrás de uma muralha de pedra que, embora lhes desse apenas pela cintura era uma barreira mais do que adequada contra o assalto escocês. Os invasores podiam apunhalar, golpear e arremeter contra a parte superior da muralha, podiam tentar trepar e até mesmo deitá-lo abaixo, retirando pedra a pedra, mas não a podiam derrubar empurrando-a. Os ingleses, embora muito menos numerosos, eram capazes de resistir, apesar de os escoceses investirem contra eles com os seus pesados piques.

 

Alguns cavaleiros ingleses mandaram vir os cavalos e, uma vez montados e armados com as suas lanças, seguiriam os seus camaradas sitiados e apontaram as lanças aos olhos dos escoceses. Outros homens-de-armas baixaram-se à passagem dos implacáveis piques e atacaram o inimigo com machados e espadas, enquanto as flechas chegavam da esquerda. No centro ouviam-se os gritos dos homens da retaguarda, os berros dos feridos, o entrechocar das espadas, o estalo das lâminas nos escudos e das lanças nos piques, mas a muralha significava que nenhum dos lados podia empurrar o outro e portanto, esmagados contra as pedras e impedidos pelos mortos, limitavam-se a arremeter, a golpear, sofrendo e sangrando para depois morrerem.

 

Mas na direita inglesa, comandada por Lorde Neville e Lorde Percy a muralha estava inacabada, não sendo mais do que um monte de pedras que nenhum obstáculo oferecia ao ataque da ala esquerda escocesa, comandada pelo conde de March e pelo sobrinho do rei, Lorde Robert Stewart. O troço mais próximo da cidade era a maior das três divisões escocesas e atirou-se aos ingleses como uma alcateia de lobos que não comia havia um mês. Os atacantes queriam sangue e os arqueiros fugiam da sua uivante carga como ovelhas das suas garras. Depois, os escoceses atingiram a direita inglesa, mas foi o preciso movimento do seu ataque que fez os defensores recuarem vinte passos e sem saberem como, os escoceses tropeçavam agora nos corpos dos homens que tinham ferido ou matado. Os ingleses, formando-se ombro a ombro, escondiam-se por de trás dos escudos e repeliam com as espadas, espetando tornozelos e rostos, resfolegando com o esforço de conter a enorme pressão da horda escocesa.

 

Era difícil lutar nas alas da vanguarda. Os homens empurravam detrás, de modo que ingleses e escoceses estavam tão próximos como namorados, demasiado para que uma espada servisse para mais do que para uma rudimentar punhalada. Nas alas da retaguarda havia mais espaço e um escocês podia cortar brandindo um pique como se este fosse um machado gigante, esmagando com a lâmina o elmo do inimigo, o forro de cabedal, o couro cabeludo e o crânio, tal como se esmigalha um ovo cru. Quando o soldado caiu, o sangue jorrou sobre mais de uma dezena de homens e outros escoceses acometeram para a fenda que a sua morte causara. Um dos guerreiros dos clãs tropeçou num cadáver e gritou ao mesmo tempo que um inglês lhe serrava o pescoço exposto com uma faca afiada. O pique caiu de novo, matando um segundo homem e desta vez, quando levantaram, o visor amolgado do homem estava preso na ponta ensanguentada do pique.

 

Os tambores, aqueles que ainda se encontravam inteiros, tinham recomeçado o seu estrondo e os escoceses acompanhavam-lhes o ritmo. ”Bruce! Bruce!”, entoavam alguns, enquanto outros apelavam para o santo padroeiro, ”Santo André! Santo André!” Lorde Robert Stewart nas suas vistosas cores azuis e amarelas e com um fino filete de ouro sobre a parte do elmo que protegia a testa, usava uma espada de dois punhos para cortar os homens-de-armas ingleses que fugiam dos exuberantes escoceses. Lorde Robert, finalmente a salvo das setas, erguera o visor, de modo a poder ver o inimigo. ”Avante!”, gritava para os seus homens. ”Avante! A eles! Matai-os! Matai-os!” O rei prometera que a festa do Natal seria em Londres e parecia que apenas seria necessário ultrapassar uma pequena cortina de homens assustados antes que a promessa se realizasse. As riquezas de Durham, Iorque e Londres estavam apenas à distância de umas espadeiradas; todos os bens de Norwich e Oxford, Bristol e Southampton distavam meia-dúzia de mortes das bolsas escocesas. ”Escócia! Escócia! Escócia!”, exclamava Lorde Robert. ”Escócia!” E o piqueiro, com a visão obstruída pela lâmina da viseira, batia no elmo de um homem com a parte do gancho da sua arma, sem conseguir cortar o metal, mas esmagando-o, martelando o capacete quebrado no cérebro do moribundo, de tal forma que o sangue e uma massa gelatinosa jorravam pelas fendas da viseira. Um inglês gritou quando um escocês lhe atingiu as partes baixas através da cota de malha. Um rapaz, talvez um pajem, recuou com os olhos em sangue do corte de uma espada. ”Escócia!” Lorde Robert sentia já o cheiro da vitória. Tão próxima! Investiu, sentiu a linha inglesa estremecer e recuar, viu como era estreita, com o escudo defendeu-se de uma estocada, apunhalou com a espada para matar um inimigo ferido, gritou aos escudeiros que estivessem atentos aos ricos fidalgos ingleses, cujo resgate pudesse enriquecer a casa de Stewart. Os homens resfolegavam enquanto apunhalavam e investiam. Um dos guerreiros das tribos recuou sem fôlego, agarrando-se ao ventre esquartejado, para tentar segurar lá dentro os intestinos. Um tambor incentivava os escoceses.

 

- Trazei-me a minha montada! - gritou Lorde Robert para um escudeiro. Sabia que a derrotada linha inglesa haveria de quebrar a qualquer momento e então montaria, tomaria a lança e perseguiria o inimigo derrotado. - Avante! Avante! - gritava. - Avante! - E o homem que empunhava o enorme pique, o corpulento escocês que abrira uma fenda nas alas da vanguarda inglesa e que parecia abrir sozinho um caminho ensanguentado em direcção a sul, emitiu subitamente o som de um miado. O seu pique, erguido no ar, ainda com bocados da viseira amolgada, estremeceu. O homem vacilou, abrindo e fechando a boca, abrindo-a e fechando-a mais uma vez, mas sem poder falar, pois uma seta, com as penas brancas ensanguentadas, saía-lhe agora da cabeça.

 

Lorde Robert viu a seta e viu que, de súbito, o ar se enchia delas. Baixou a viseira do elmo e o dia escureceu.

 

Os malditos arqueiros tinham voltado.

 

Só quando chegou à base do monte é que Sir William Douglas se apercebeu de como o fosso era profundo e inclinado, e aí, sob o ataque dos arqueiros, é que soube que não podia avançar nem recuar. As duas alas de vanguarda dos homens-de-armas escoceses estavam mortas ou feridas e os seus corpos formavam um monte sobre o qual não podia trepar envergando a pesada cota de malha. Robbie gritava em tom de desafio e tentava trepar sobre esse monte, mas Sir William, sem cerimónias, puxou o sobrinho para trás e atirou-o para cima dos fetos.

 

- Não é lugar para morreres, Robbie!

 

- Bastardos!

 

- Podem ser bastardos, mas nós somos os idiotas! - Sir William acocorou-se ao lado do sobrinho, cobrindo-se a si e a ele com o seu enorme escudo. Recuar era impensável, pois seria fugir do inimigo, porém, também não podia avançar, o que o fez maravilhar-se com a força das flechas que se espetavam na face do escudo. Um grupo de guerreiros das tribos, barbudos, mais ligeiros do que os homens-de-armas porque se recusavam a usar armaduras de metal, fervilhavam à sua volta, uivando em desafio, enquanto tentavam atravessar, de pernas nuas, o monte de escoceses moribundos, mas depois, as setas inglesas começaram a atingi-los e a fazê-los recuar. Ao tocarem no alvo, as setas faziam um ruído semelhante ao de bexigas a rebentarem, obrigando os membros dos clãs a gemerem e resfolegarem, estrebuchando à medida que eram atingidos. Cada projéctil provocava um jorro de sangue de modo que Sir William e Robbie Douglas, incólumes sob o pesado escudo, estavam também salpicados.

 

Um súbito tumulto surgiu entre os homens-de-armas mais próximos e provocou mais flechas, obrigando Sir William a gritar aos soldados que se deitassem, na esperança que aquela imobilidade persuadisse os arqueiros ingleses de que já não havia escoceses vivos; porém os homens-de-armas informaram que o conde de Moray tinha sido atingido. ”Já não era sem tempo”, resmungou Sir William para Robbie. Detestava o conde mais do que detestava os ingleses e sorriu quando um dos homens gritou que Sua Senhoria não estava apenas ferido mas sim morto, porém, logo outra chuva de setas silenciou os apoiantes do conde. Sir William ouviu os projécteis baterem sobre o metal, sobre a carne, atingindo as tábuas de cana dos escudos e, quando o ruído das flechas terminou, ficaram os gemidos e os choros, o silvado da respiração aflita e o chiado do couro, enquanto os homens morriam ou tentavam sair de debaixo dos montes dos moribundos.

 

- Que aconteceu? - perguntou Robbie.

 

- Não fizemos um reconhecimento apropriado do terreno - respondeu Sir William. - Somos muito mais numerosos do que esses bastardos, o que nos tornou mais confiantes.

 

No silêncio já sem flechas, um riso e um bater de botas soou agoirento. Depois foi um grito e Sir William, experiente na guerra, sabia que as tropas inglesas desceriam ao fosso para acabar com os feridos.

 

- Em breve teremos de retirar - disse a Robbie. - Não há escolha possível. Cobri o traseiro com o escudo e correi o mais possível.

- Vamos recuar? - perguntou Robbie, estupefacto.

Sir William suspirou.

 

- Robbie, meu idiota, podes avançar e morrer e direi à tua mãe que pereceste corajosamente como um tolo, ou podes recuar, subir a encosta comigo e tentar vencer esta batalha.

 

Robbie não discutiu, limitando-se a olhar para o lado escocês do fosso, onde os fetos estavam manchados com flechas de penas brancas.

 

- Dizei-me quando hei-de fugir - declarou.

 

Uma dezena de arqueiros e outros tantos homens-de-armas ingleses utilizavam facas para cortar as gargantas escocesas. Faziam uma pausa antes de acabar com a vida de cada soldado de modo a descobrirem se tinham algum valor como fonte de resgate, porém tal acontecia com poucos homens e os membros dos clãs nada possuíam. Estes, os mais odiados de todos os escoceses, por serem tão diferentes, eram tratados como vermes. Sir William levantou cautelosamente a cabeça e decidiu ser aquele o momento de retirar. Seria melhor saírem daquela armadilha sangrenta do que serem capturados, portanto, ignorando os gritos indignados dos ingleses, ele e o sobrinho subiram a encosta com alguma dificuldade. Para surpresa de Sir William, as flechas não os perseguiram. Esperara que a erva e os fetos fossem esmagados por setas, enquanto cambaleassem para fora do fosso, mas ele e Robbie foram deixados em paz. Voltou-se para trás a meio caminho e viu que os arqueiros ingleses tinham desaparecido, deixando apenas os homens-de-armas naquela ala do campo. À frente deles vigiando-o da outra borda do fosso estava Lorde Outhwaite, antigo prisioneiro de Sir William. Outhwaite coxeava, apoiando-se numa lança e, ao ver Sir William ergueu a arma para o saudar.

 

- Arranjai uma armadura como deve ser, Willie! - gritou Sir William. Lorde Outhwaite fora baptizado com o mesmo nome que o cavaleiro de Liddesdale. - Ainda não acabámos convosco.

- Não o receio, Sir William. De facto não o receio - respondeu Lorde Outhwaite. Firmou-se na sua lança. - Estais bem, creio eu.

 

- Claro que não estou bem, seu tolo! Metade dos meus homens estão mortos aí dentro.

 

- Meu caro amigo - disse Outhwaite com uma careta, para logo lhe acenar alegremente, enquanto Sir William empurrava Robbie pelo monte acima e o seguia para ficar em segurança.

 

Sir William, de novo em terreno alto, avaliou a situação. Via que os escoceses tinham sido derrotados ali à direita, mas por sua própria culpa, por terem investido imediatamente contra o terreno baixo, onde os arqueiros tinham sido capazes de matar com toda a impunidade. Esses arqueiros tinham desaparecido misteriosamente. Contudo, Sir William desconfiava que tinham sido conduzidos para a ala esquerda escocesa que avançara para o centro. Sabia-o pois o pendão azul e amarelo com o leão, pertencendo a Lorde Robert Stewart estava muito adiante da bandeira vermelha e amarela do rei. De modo que a batalha corria bem à esquerda, mas Sir William via que, no centro não conseguia avançar, devido à muralha de pedra que obstruía o caminho aos escoceses.

 

- Aqui não vamos conseguir nada - disse a Robbie. - Vamos tornar-nos úteis. - Voltou-se e ergueu a sua espada ensanguentada. - Douglas! - gritou.

- Douglas! - O seu porta-estandarte desaparecera, o que o fazia calcular que o homem com a sua bandeira do coração vermelho teria morrido no terreno baixo. - Douglas! - gritou de novo e, quando se lhe tinham juntado homens suficientes, conduziu-os para o troço central que estava cercado. - Lutamos aqui - disse-lhes e depois abriu caminho até junto do rei, que se encontrava a cavalo na primeira ou segunda ala, lutando sob o seu pendão todo espetado por setas. Combatia também de viseira erguida e Sir William viu que o rosto do rei estava semiobscurecido pelo sangue. - Baixai a viseira! - vociferou.

 

O rei tentava espetar a longa lança no muro de pedra, mas a pressão dos homens tornava inúteis os seus esforços. A sua camisa de tela amarela e azul estava rasgada, revelando o metal brilhante. Uma flecha atingira a espaldeira direita que tombara de novo sobre a couraça e ele arrancou-a enquanto outra abria ao meio a orelha esquerda do seu corcel. Viu Sir William e sorriu como se tudo aquilo se tratasse de um belo desporto.

 

- Baixai a viseira! - berrou Sir William, mas depois viu que o rei não ria, mas sim que um bocado de carne da sua face fora rasgada e que o sangue ainda continuava a sair da ferida e a salpicar a parte de baixo do elmo, encharcando a camisa rasgada. - Cobri o vosso rosto com uma ligadura! - gritou Sir William sobre o ruído do combate.

 

O rei afastou o atemorizado cavalo da muralha.

 

- Que aconteceu à direita? - a sua voz tornara-se indistinta devido à ferida.

 

- Mataram-nos - disse laconicamente Sir William, balançando inadvertidamente a sua longa espada, de modo que gotas de sangue caíram da ponta. - Não. Assassinaram-nos - resmungou. - Havia um buraco no chão que nos engoliu.

 

- A nossa esquerda está a vencer! Irromperemos por aí! - A boca do rei continuava a encher-se de sangue, que ele cuspia, mas apesar da copiosa hemorragia não parecia demasiado preocupado com a ferida. Fora-lhe infligida no início da batalha, quando uma flecha sibilara sobre as cabeças dos seus soldados para lhe abrir um buraco na face antes de se espetar no forro do elmo.

- Mantê-los-emos aí - disse a Sir William.

 

- John Randolph morreu - disse-lhe Sir William. - O conde de Moray acrescentou ao ver que o rei não tinha percebido as suas primeiras palavras.

 

- Morreu? - O rei David pestanejou e depois cuspiu mais sangue. Mataram-no? Não foi feito prisioneiro? - Outra flecha bateu-lhe na bandeira, mas o rei não se apercebia do perigo. Voltou-se e ficou a olhar para os pendões do inimigo. - Vamos pedir ao arcebispo que diga uma prece sobre a sua campa e depois o patife pode dar as graças à hora da ceia - viu uma fenda na ala da vanguarda escocesa e picou o cavalo para a ir tapar, investindo com a sua lança para o defensor inglês. O golpe do rei quebrou o ombro do homem lacerando a ferida sangrenta com os restos da malha rasgada.

 

- Bastardos! - bradou o rei furioso. - Havemos de vencer! - Chamou os seus homens e logo a seguir um grupo dos seguidores de Douglas se meteu entre ele e o muro. Os recém-chegados investiram contra a muralha de pedra como uma enorme onda, mas o muro era mais forte e a onda quebrou-se sobre as pedras. As espadas e os machados entrechocaram-se sobre elas; os homens de ambos os lados arrastavam os seus defuntos para abrir um caminho para a matança. - Reteremos os bastardos aqui - garantiu o rei a Sir William - e faremos recuar a direita deles.

 

Contudo, Sir William, com os ouvidos habituados ao ruído da batalha, ouvira algo de novo. Nos últimos minutos escutara gritos, entrechocar de armas, gritos e tambores, mas faltara-lhe um som que era afinal a música da harpa do demónio, o tom profundo do soltar dos arcos, mas logo o voltou a escutar e soube que embora dezenas de inimigos devessem ter sido mortos, poucos entre eles seriam arqueiros. Agora os arcos de Inglaterra tinham recomeçado o seu horrendo trabalho.

 

- Senhor, quereis um conselho?

 

- Claro - o rei tinha os olhos brilhantes. O seu corcel estava ferido por várias flechas e afastava-se com pequenos passos nervosos da luta enraivecida a poucos passos de distância.

 

- Baixai a viseira - disse sír William - e recuai.

 

- Recuar? - perguntou o rei como se tivesse ouvido mal.

- Recuai! - repetiu Sir William e embora parecesse perfeitamente seguro, não sabia bem porque tinha dado tal conselho. Era mais uma premonição como a que experimentara de madrugada no nevoeiro mas, mesmo assim, sabia que o conselho era bom. Retirar agora, retirar para a Escócia onde havia grandes castelos que podiam aguentar uma tempestade de flechas, mas não conseguia explicar porque o dissera. Não sabia qual a razão. O medo apertava-lhe o coração e enchia-o de premonições. Vindo de qualquer outro homem, aquele conselho seria considerado uma covardia, mas ninguém poderia acusar Sir William Douglas, cavaleiro de Liddesdale, de ser cobarde. O rei pensou que o conselho era uma piada de mau gosto e soltou uma gargalhada irónica.

 

- Estamos a vencer! - declarou a Sir William, ao mesmo tempo que mais sangue lhe jorrava do elmo e caía sobre a sela. - Há algum perigo à direita? perguntou.

 

- Nenhum - respondeu Sir William. O fosso no chão seria tão eficaz para deter o avanço inglês como fora para repetir o ataque escocês.

 

- Venceremos então a batalha à esquerda - declarou o rei e depois puxou as rédeas para dar meia volta. - Com que então recuar! - riu-se, pegou num pano de linho que lhe deu um dos seus capelães e meteu-o entre a face e o capacete. - Estamos a ganhar! - repetiu na direcção de Sir William, picando o cavalo e conduzindo-o para oriente. Cavalgava para levar a Escócia à vitória e para mostrar que era um digno filho do grande Bruce. - Santo André! - gritou através do sangue espesso. - Santo André!

 

- Julgais que deveríamos retirar, meu tio? - perguntou Robbie Douglas, tão confuso como o rei. - Mas se estamos a ganhar!

 

- Estamos? - Sir William escutava a música dos arcos. - O melhor será dizeres as tuas orações, Robbie - disse. - O melhor será dizeres todas as tuas orações e pedires a Deus que deixe o diabo levar os malditos arqueiros.

 

E rezar para que Deus ou o diabo o estivessem a ouvir.

 

Sir Geoffrey Carr estacionara com a esquerda inglesa, no local em que os escoceses tinham sido tão decisivamente repelidos pelas características do terreno e os seus homens-de-armas encontravam-se agora no fosso cheio de sangue em busca de prisioneiros. O Espantalho vira os escoceses presos no terreno baixo e sorrira com feroz alegria quando as flechas atingiram os atacantes. Um dos guerreiros das tribos, enraivecido, e com as espessas dobras do xaile cheias de setas, semelhantes aos picos dos ouriços, tentara lutar pela encosta acima. Gritara e praguejara, repetidamente atingido pelas flechas, uma das quais até lhe saía da cabeça, enredada no cabelo hirsuto e outra estava enfiada na moita da sua barba. Mesmo assim viera, sangrando e praguejando, tão cheio de ódio que não sabia que deveria estar morto e conseguia lutar a cinco passos dos arqueiros. Por fim Sir Geoffrey agitou o chicote e arrancou o olho esquerdo do homem da respectiva órbita, como se extrai uma avelã da sua casca; depois um arqueiro avançou e, casualmente, cortou-lhe a cabeça cheia de flechas com um machado. O Espantalho recolheu o chicote e retirou com um dedo a humidade da garra de metal.

 

- Gosto de uma batalha - dissera, não se dirigindo a qualquer pessoa em particular. Assim que o ataque começou, viu que um dos fidalgos escoceses muito colorido, de azul e prata, se encontrava sem vida por entre um monte de cadáveres, o que era uma pena. Uma verdadeira pena. Lá perdera uma fortuna com aquele morto. Sir Geoffrey, recordando-se das suas dívidas, ordenara aos seus homens que descessem ao fosso para cortar pescoços, pilhar cadáveres e encontrar algum prisioneiro que fosse digno de um resgate decente. Os seus arqueiros tinham sido levados para o outro lado do campo, mas os seus homens-de-armas tinham ficado para tentar encontrar algum dinheiro.

 

- Depressa, Beggar! - gritava Sir Geoffrey. - Depressa! Prisioneiros e saque. Procura cavalheiros e lordes! Não que haja muitos cavalheiros na Escócia - esta última observação feita apenas para si mesmo, divertiu-o tanto que soltou uma gargalhada. A graça pareceu aumentar enquanto reflectia e quase se sentiu duplamente satisfeito. - Cavalheiros na Escócia! - repetiu e depois apercebeu-se de que um jovem monge o olhava com ar preocupado.

 

O monge era um dos homens do prior e distribuía alimentos e cerveja às tropas, mas sentira-se alarmado pela gargalhada selvática de Sir Geoffrey. O Espantalho calou-se abruptamente, olhou com espanto para o monge e depois, silenciosamente, desenrolou lentamente o chicote. O couro fino não fez qualquer som na sua ondulação quando Sir Geoffrey movimentou o seu braço direito à velocidade de um relâmpago e o chicote se enrolou em redor do pescoço do jovem monge. Sir Geoffrey puxou o chicote.

 

- Vem cá, meu rapaz - ordenou.

 

O puxão fez o monge vacilar e deixar cair as maçãs e o pão; depois viu-se junto do cavalo de Sir Geoffrey, com o Espantalho de tal forma inclinado para ele, que lhe sentia o hálito fétido.

 

- Escuta, meu sapo piedoso - disse Sir Geoffrey em tom sibilante. - Se não me dizes a verdade, corto-te aquilo de que não tens falta senão para mijar e dou-o aos meus porcos, compreendes, rapaz?

 

Aterrorizado, o monge limitou-se a acenar com a cabeça. Sir Geoffrey enrolou de novo o chicote em redor do pescoço do jovem e deu-lhe um bom aperto para que o monge soubesse quem mandava.

 

- Um arqueiro, um homem com um arco negro, tinha uma carta para o teu prior.

 

- Tinha sim, Senhor.

 

- E o prior leu-a?

 

- Sim, Senhor. Leu-a.

 

- E disse-te de que tratava?

 

Instintivamente o monge abanou a cabeça, mas logo viu a raiva nos olhos do Espantalho e o pânico fê-lo soltar a palavra que tinha escutado logo que a carta fora aberta.

 

- Thesaurus, senhor, era o que lá dizia, thesaurus.

 

- Thesaurus? - perguntou Sir Geoffrey, sem perceber a palavra estrangeira. - E tu, meu pedaço de trampa de doninha, podes dizer-me em nome de mil virgens o que quer dizer thesaurus?

 

- Tesouro, Senhor. E latim, Senhor. Thesaurus é a palavra que em latim quer dizer... - o monge hesitou - tesouro... - terminou em voz fraca.

 

- Tesouro - Sir Geoffrey repetiu simplesmente a palavra.

 

O monge, meio sufocado, sentiu-se subitamente desejoso de repetir a maledicência que ouvira entre os irmãos desde que Thomas de Hookton encontrara o prior.

 

- O rei enviou-o, Senhor. Sua Majestade em pessoa e o meu senhor bispo também, desde França, e andam em busca de um tesouro, senhor, mas ninguém sabe do que se trata.

 

- O rei?

 

- O rei sim, Senhor. O rei em pessoa. Enviou-o, Senhor.

 

Sir Geoffrey olhou o monge nos olhos, não viu neles culpa e portanto desenrolou o chicote.

 

- Deixaste cair as maçãs, rapaz.

 

- É verdade, Senhor, deixei sim, Senhor.

 

- Dá uma ao meu cavalo - viu o monge pegar na maçã e depois o seu rosto contorceu-se subitamente de raiva. - Primeiro limpa-a da lama porcaria de sapo! Limpa-a! - Estremeceu e depois olhou para norte, mas não conseguiu ver que os escoceses sobreviventes da ala esquerda do inimigo se erguiam do terreno baixo e nem sequer reparou na fuga do seu odiado inimigo Sir William Douglas que o tinha empobrecido. O Espantalho não viu nada destas coisas porque pensava no tesouro. No ouro. Em montes de ouro. No desejo do seu coração. No dinheiro, nas jóias, nas moedas, na prata, nas mulheres e em tudo o que o seu coração poderia desejar.

 

O troço da esquerda escocesa, violento e enraivecido, forçou a direita inglesa a recuar tanto que apareceu uma enorme fenda entre o centro inglês, por trás da muralha de pedra e a divisão em retirada à sua direita. A retirada significava que o flanco direito da divisão central estava agora exposta ao ataque escocês, encontrando-se de facto nessa situação a retaguarda das tropas do arcebispo, mas, depois, surgindo por todo o monte, os arqueiros vieram ajudar.

 

Formaram uma nova linha para proteger o flanco do arcebispo, uma linha voltada para o lado, para o triunfante assalto escocês e um enxame de arqueiros lançou as suas flechas em direcção ao troço de Lorde Robert Stewart. Não poderiam falhar. Tratava-se de arqueiros que tinham iniciado a sua prática a uma centena e terminado a duas centenas de passos de alvos cheios de palha e que agora disparavam a vinte. As flechas voavam com uma força tal que algumas furavam as cotas de malha, todo o corpo e de novo a malha. Os homens de armaduras eram também espetados pelas setas e a direita do avanço escocês estava empapada de sangue e dor; todos os homens que caíam eram uma nova vítima dos arqueiros, que disparavam o mais rapidamente que conseguiam meter as flechas nas cordas. Os escoceses morriam às dezenas. Morriam e gritavam. Alguns homens tentavam instintivamente carregar contra os arqueiros, mas eram imediatamente impedidos, não havia tropas que conseguissem deter o assalto do aço e das penas. Subitamente, os escoceses recuaram, tropeçando nos mortos deixados pela carga, cambalearam pela pastagem onde a tinham começado, enquanto todos os seus passos eram perseguidos pelas setas sibilantes e que, por fim, uma voz inglesa ordenou aos arqueiros que baixassem as armas.

 

- Mas mantende-vos aqui! - ordenou o homem, desejando que os arqueiros que tinham vindo da ala esquerda se mantivessem na direita sitiada.

 

Thomas encontrava-se entre os arqueiros. Contou as flechas e viu que lhe sobravam apenas sete na bolsa, de modo que começou a procurar sobre a erva algumas que não estivessem muito danificadas. Por fim, um homem deu-lhe uma cotovelada e apontou para uma carroça que atravessava o campo com flechas novas. Thomas ficou estupefacto.

 

- Em França tínhamos sempre falta de flechas.

 

- Aqui não - o homem tinha lábio leporino, o que fazia com que fosse difícil compreendê-lo. - Guardam-nas em Durham. No castelo. Vêm para aqui de três condados - pegou em dois molhos.

 

As flechas eram feitas por toda a Inglaterra e no País de Gales. Umas pessoas cortavam e aparavam as hastes, outras juntavam as penas, as mulheres fiavam as cordas e os homens ferviam a cobertura, cola de cascos e verdete, enquanto os ferreiros fabricavam as setas nas suas forjas; depois as partes separadas eram levadas para as cidades onde as juntavam e atavam em feixes para as enviarem para Londres, Iorque, Chester ou Durham à espera de uma emergência. Thomas partiu o fio de dois feixes e meteu as flechas novas na bolsa que retirara a um arqueiro morto. Encontrara o homem no chão, por trás das tropas do arcebispo, deixara sobre o seu corpo a bolsa velha e tinha agora a nova cheia de flechas boas. Dobrou os dedos da mão direita. Estavam Doridos, prova que não tinha disparado flechas suficientes, desde a batalha da Picardia. Doíam-lhe as costas como sempre acontecia depois de ter disparado mais de vinte vezes. Cada vez que o fazia, era o equivalente a pegar num homem apenas com uma mão e o esforço causava-lhe uma dor profunda na espinha. Porém, as flechas tinham feito recuar a esquerda escocesa para o local de onde tinha partido e onde, tal como os ingleses, estavam a tomar fôlego. O terreno entre os dois exércitos estava coberto de flechas inutilizadas, mortos e feridos, alguns dos quais se moviam lentamente, tentando arrastar-se para junto dos camaradas. Dois cães farejavam um cadáver, mas afastaram-se quando um monge lhes atirou uma pedra.

 

Thomas desprendeu a corda do seu arco para endireitar a vara. Alguns arqueiros gostavam de deixar as armas permanentemente presas até que esta tomasse a forma do arco em tensão e dizia-se que a madeira seguia a corda; a curva deveria mostrar que o arco era muito usado e que portanto o dono era um soldado experimentado; porém, na opinião de Thomas um arco que seguisse a corda enfraquecia e, portanto, desprendia sempre que lhe era possível. Aquilo ajudava também a preservar a corda; era difícil arranjar uma exactamente do tamanho certo, pois esta esticava inevitavelmente, porém, uma boa corda de cânhamo, ensopada em cola, poderia durar a maior parte do ano se fosse mantida seca e não sujeita a uma tensão constante. Como muitos arqueiros, Thomas gostava de reforçar as suas cordas com cabelo de mulher, protegendo-as e evitando assim que rebentassem durante uma batalha. Também rezava a São Sebastião. Thomas deixava a corda pendurada no cimo do arco, depois acocorou-se na erva para retirar as flechas da bolsa e fazê-las passar, uma a uma, por entre os dedos e detectar farpas nas hastes.

 

- Os bastardos vão voltar! - disse um homem com uma meia-lua de prata na sua camisa de tela, aproximando-se da linha. - Vão voltar e querem mais! Mas haveis feito bem! - A meia-lua de prata estava quase obscurecida pelo sangue.

 

Um arqueiro cuspiu e outro acariciou impulsivamente o seu arco solto. Thomas pensou que se por acaso se deitasse, acabaria por adormecer, mas sentiu-se assaltado por um temor ridículo de que os outros arqueiros retirassem e o deixassem ali adormecido e os escoceses o encontrassem e acabassem com ele. Porém, os escoceses descansavam tal como os ingleses. Alguns estavam dobrados sobre si mesmos, como se quisessem recuperar o fôlego, outros estavam sentados na erva e outros ainda rodeavam um barril de agua ou de cerveja. Os enormes tambores já não soavam, mas Thomas ouvia o raspar da pedra no aço enquanto os homens afiavam as lâminas embotadas pelo primeiro embate da batalha. Não se ouviam insultos de nenhum dos lados, olhando-se apenas os homens com ar cauteloso. Os padres ajoelhavam Junto aos moribundos, rezando para que as suas almas fossem conduzidas ao paraíso, enquanto as mulheres gritavam porque os maridos, amantes ou filhos tinham sido mortos. A ala direita dos ingleses, com os números cerceados pela ferocidade do ataque escocês, tinha regressado ao seu local de origem e por detrás deles estavam dezenas de mortos e moribundos. As baixas escocesas, abandonadas pela retirada precipitada estavam a ser despidas e revistadas, dando início a uma luta entre dois homens que discutiam por um punhado de moedas sujas. Dois monges levavam água aos feridos. Uma criança pequena brincava com anéis quebrados de uma cota de malha, enquanto a mãe tentava soltar de um pique a viseira solta de um elmo, calculando que daria para fazer um bom martelo. Um escocês, dado como morto, gemeu e voltou-se e um homem-de-armas aproximou-se e matou-o com a espada. O inimigo ficou sufocado, descontraiu-se e já não se mexeu mais.

 

- Hoje ainda não é o dia da Ressurreição, patife - comentou o homem-de-armas, enquanto soltava a espada. - Maldito filho de uma rameira - resmungou, limpando a espada na camisa rasgada do morto. - Acordares assim! Pregaste-me um susto! - Não falava para ninguém em particular, mas acocorou-se junto do homem que acabar de matar e revistou-lhe as roupas.

 

As torres da catedral e do castelo estavam cheias de espectadores. Uma garça voou sob as ameias, seguindo as voltas do rio que cintilava ao sol de Outono. Thomas escutava os codornizões na encosta. As borboletas, certamente as últimas do ano, voavam sobre a relva ensopada em sangue. Os escoceses levantavam-se, espreguiçavam-se, enfiavam os elmos, metiam os braços nas correias dos escudos e erguiam as espadas piques e lanças recém-afiados. Alguns olhavam para a cidade imaginando os tesouros guardados na cripta da catedral e nas caves do castelo. Sonhavam com arcas cheias de ouro, barris transbordando de moedas, salas com montes de prata, tabernas onde corria a cerveja e ruas cheias de mulheres.

 

- Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo - exclamou um padre. Santo André esteja convosco. Lutais pelo vosso rei! Os inimigos não passam de ímpios filhos de Satanás! Deus esteja connosco!

 

- Vamos, rapazes, vamos! - exclamava um arqueiro do lado inglês. Os homens ergueram-se, prepararam os arcos e retiraram a primeira flecha da bolsa. Alguns benzeram-se, sem reparar que os escoceses faziam exactamente o mesmo.

 

Lorde Robert Stewart montado num novo corcel cinzento abriu caminho para a frente da ala esquerda escocesa.

 

- Já têm poucas flechas - garantiu aos seus homens. - Poucas flechas. Podemos ganhar! - os seus homens quase tinham vencido os malditos ingleses da última vez. De tal modo que certamente uma outra ruidosa corrida obliteraria o pequeno exército que os desafiava, abrindo caminho para as opulentas riquezas do Sul.

 

- Por Santo André! - exclamou Lorde Robert e os tambores recomeçaram a tocar. - Pelo nosso rei! Pela Escócia! E os gritos recomeçaram.

 

Bernard de Taillebourg dirigiu-se à catedral quando terminou os seus assuntos na pequena enfermaria do mosteiro. O criado preparava os cavalos, ao mesmo tempo que o dominicano descia a enorme nave entre os vastos pilares pintados com tiras vermelhas, amarelas, verdes e azuis. Dirigiu-se à tumba de São Cuthbert para dizer uma prece. Não tinha a certeza de que se tratasse de um santo importante - decerto não seria uma das almas abençoadas que Deus escutava com atenção lá no céu -, mas era muito reverenciado localmente e o seu túmulo, pesadamente decorado com jóias, ouro e prata, testemunhava essa devoção.

 

Pelo menos uma centena de mulheres rodeava a tumba, a maioria a chorar, e De Taillebourg empurrou algumas delas para as tirar do caminho e poder aproximar-se o suficiente para tocar na mortalha que envolvia o túmulo. Uma mulher falou-lhe em tom rude, mas logo se apercebeu que se tratava de um padre e, ao ver o seu rosto ensanguentado e macerado, pediu-lhe perdão. Bernard de Taillebourg não lhe deu importância, preferindo inclinar-se para o túmulo. A mortalha tinha franjas em que as mulheres tinham pendurado tiras de pano, cada uma das tiras, uma prece. A maior parte delas pediam riqueza, a recuperação de um membro, o dom da vista ou a salvação da vida de um filho, mas, naquele dia, imploravam a Cuthbert que lhes devolvesse os homens a salvo do monte.

 

Bernard de Taillebourg acrescentou a sua prece. Ide ter com São Dinis, implorou a Cuthbert e pedi-lhe que fale com Deus. Mesmo que Cuthbert não conseguisse chamar a atenção de Deus, certamente conseguiria falar com São Dinis que, sendo francês, estaria mais próximo do Altíssimo. Implorai a Dinis que reze para que Deus apresse o que eu tenho de fazer e que a sua bênção e graça seja dada ao sucesso da minha busca. Implorai a Deus que perdoe os nossos pecados, mas estai ciente de que os nossos pecados por muito graves que sejam são cometidos apenas ao serviço de Deus. Gemeu, pensando nos pecados daquele dia, depois beijou a mortalha e retirou uma moeda da bolsa que trazia por baixo das vestes. Deixou-a cair no grande frasco de metal onde os peregrinos ofereciam o que podiam ao santuário e depois apressou-se a percorrer de novo a nave da catedral. Um edifício tosco, pensou, com os seus coloridos pilares tão grosseiros e a sua decoração tão desajeitada como rabiscos de crianças, tão diferentes das novas e graciosas abadias e igrejas que se erguiam em França. Mergulhou os dedos em água benta, fez o sinal da cruz e saiu para o sol, onde o criado o esperava com as respectivas montadas.

 

- Podias ter partido sem mim - disse-lhe.

 

- Teria sido mais fácil matar-vos na estrada e prosseguir sem vós - declarou o criado.

 

- Mas não o farás - replicou De Taillebourg -, porque a graça de Deus entrou na tua alma.

 

- Graças a Deus - disse o criado.

 

O homem não era criado de nascimento, mas sim um cavaleiro e gentil-homem. Agora, ao serviço de De Taillebourg, estava a ser punido pelos pecados da sua família. Houvera quem pensasse, como o cardeal Bessières, que deveria ter sido metido na roda, prensado por enormes pesos, queimado com ferros em brasa até que as suas costas se arqueassem e gritasse para o alto o seu arrependimento. Porém, De Taillebourg convencera o cardeal para nada fazer excepto mostrar a este homem os instrumentos de tortura da Inquisição.

 

- Depois, entregai-mo - dissera De Taillebourg. - E deixai que me conduza até ao Graal.

 

- Mas depois matai-o - ordenara o cardeal ao inquisidor.

 

- Tudo será diferente quando tivermos o Graal - dissera De Taillebourg evasivo. Ainda não sabia se teria de matar aquele jovem esguio, de pele queimada pelo sol, olhos negros e rosto magro que dissera uma vez chamar-se Harlequin. Adoptara orgulhosamente o nome porque os harlequins eram almas perdidas, apesar de De Taillebourg estar certo de que fora capaz de salvar a alma deste. O verdadeiro nome do Harlequin era Guy Vexille, conde de Astarac, e fora Guy Vexille que De Taillebourg descrevera quando falara com o Irmão Collimore acerca do homem que viera do sul para combater pela França na Picardia. Vexille fora capturado depois da batalha quando o rei francês procurara bodes expiatórios e um homem que se atrevesse a mostrar as penas do elmo de uma família declaradamente herege e rebelde daria um bom bode expiatório.

 

Vexille fora entregue à Inquisição, na esperança de que a tortura extraísse dele a heresia, porém De Taillebourg gostara do Harlequin. Reconhecera nele uma alma gémea, um homem duro e dedicado, que sabia que esta vida de nada valia, pois o que contava era a próxima. Assim, De Taillebourg poupara as agonias a Vexille. Limitara-se a mostrar-lhe a câmara em que os homens e as mulheres gritavam o seu perdão a Deus e depois interrogara-o suavemente e Vexille revelara como fora uma vez a Inglaterra em busca do Graal e, embora tivesse matado o tio, pai de Thomas, não o encontrara. Agora, com De Taillebourg, ouvira da boca de Eleanor a história de Thomas.

 

- Haveis acreditado nela? - perguntava agora o dominicano.

 

- Acreditei - disse Vexille.

 

- Mas terá sido enganada? - interrogou-se o Inquisidor. Eleanor dissera-lhes que Thomas fora encarregado de procurar o Graal, mas que a sua fé era fraca e a sua busca pouco animada. - Mesmo assim, teremos de o matar - acrescentou De Taillebourg.

 

- Claro.

 

De Taillebourg franziu a testa.

 

- É-vos indiferente?

 

- Matá-lo? - Guy Vexille parecia espantado que De Taillebourg perguntasse. - Matar é a minha profissão, padre - disse o Harlequin. O cardeal Bessières decretara que todos aqueles que andassem em busca do Graal deveriam ser mortos, excepto os que o procurassem em seu nome, e portanto Guy Vexille dispusera-se a transformar-se no assassino de Deus. Não tinha certamente quaisquer escrúpulos em cortar a garganta do seu primo Thomas.

 

- Quereis esperar aqui por ele? - perguntou o Inquisidor. - A jovem disse que ele estaria na catedral após a batalha.

 

De Taillebourg olhou para o outro lado do monte. Tinha a certeza de que os escoceses venceriam e portanto seria duvidoso que Thomas de Hookton viesse à cidade. O mais provável seria ter de fugir para sul, em pânico.

 

- Uma vez revistei Hookton - disse Guy Vexille.

 

- Tereis de a revistar outra vez - disse bruscamente De Taillebourg.

 

- Sim, padre - Guy Vexille baixou humildemente a cabeça. Era um pecador; seria necessário que mostrasse arrependimento, e portanto não discutiu. Cumpria as ordens de De Taillebourg e a sua recompensa seria o restabelecimento. Devolver-lhe-iam o seu orgulho, poderia de novo conduzir os homens na guerra e seria perdoado pela Igreja.

 

- Partiremos agora - disse De Taillebourg. Desejava partir antes que William Douglas viesse em busca deles e, ainda com maior urgência, antes que alguém descobrisse os três cadáveres na cela do hospital. O dominicano fechara a porta, deixando os corpos atrás de si. Sem dúvida, os monges acreditariam que Collimore estava a dormir e portanto não o incomodariam, mas, mesmo assim, De Taillebourg desejava estar longe da cidade quando os corpos fossem descobertos. Assim, subiu para a sela de um dos cavalos que roubara nessa manhã a Jamie Douglas. Já lhe parecia ter passado muito tempo. Enfiou os pés nos estribos, afastou um pedinte com um pontapé. O homem tinha-se-lhe agarrado à perna, gemendo de fome, mas agora afastava-se com o violento empurrão do padre.

 

O barulho da batalha aumentou. O dominicano olhou mais uma vez para o monte, mas a luta não era assunto seu. Se os ingleses e os escoceses desejavam espancar-se, era com eles. Tinha assuntos mais importantes em que pensar, assuntos de Deus e do Graal, do céu e do inferno. Também tinha pecados na sua consciência, mas seriam perdoados pelo Santo Padre e até mesmo o Céu compreenderia esses pecados logo que tivesse encontrado o Graal.

 

Os portões da cidade, apesar de fortemente guardados, estavam abertos para que os feridos pudessem entrar e os alimentos e bebidas fossem levados até ao monte. Os guardas eram homens mais velhos que tinham recebido ordens para que nenhum assaltante escocês tentasse entrar na cidade, mas não tinham sido encarregados de deter ninguém que saísse, portanto não repararam num padre esfarrapado, com o rosto macerado, montado num corcel, nem no seu elegante criado. Foi assim que De Taillebourg e Harlequin saíram de Durham, deram a volta para a estrada de Iorque, picaram os cavalos e, enquanto o som da batalha ecoava no penhasco onde se situava a cidade, partiam para sul.

 

Os escoceses atacaram pela segunda vez a meio da tarde, porém, o assalto, ao contrário do primeiro, não foi feito atrás dos arqueiros em fuga. Pelo contrário, os arqueiros foram alinhados de forma a receberem a carga e, dessa vez, as flechas voaram como um bando de estorninhos. A esquerda escocesa, que quase quebrara a linha inglesa, enfrentava duas vezes mais arqueiros e a sua carga que começara de um modo tão confiante era agora muito lenta, acabando por se deter, quando os homens se esconderam por de trás dos escudos. A direita escocesa nunca chegou a avançar, enquanto o troço central do rei estava travado a cinquenta passos da muralha de pedra atrás da qual uma multidão de arqueiros enviava uma incessante chuva de flechas. Os escoceses não retiravam, não podiam avançar e, durante algum tempo, as enormes flechas batiam nos escudos e nos corpos descuidadamente expostos. Depois, os homens de Lorde Robert Stewart desviaram-se do alcance, seguidos pelo troço do rei e houve uma nova pausa no campo de batalha de terra avermelhada. Os tambores estavam em silêncio e já não se ouviam insultos pela pastagem. Os senhores escoceses, aqueles que ainda viviam, juntaram-se sob o pendão do rei, e o arcebispo de Iorque, vendo o os inimigos reunidos, chamou os seus fidalgos. Os ingleses tinham um ar lúgubre. Apercebiam-se de que o inimigo nunca se exporia àquilo que o arcebispo descreveu como um terceiro baptismo de setas.

 

- Os bastardos fugirão para norte - previu o arcebispo. - Malditas sejam as suas almas.

 

- E nós seguimo-los - respondeu Lorde Percy.

 

- São mais rápidos do que nós - disse o arcebispo. Retirara o elmo e o seu forro de couro deixara uma marca no cabelo em redor do crânio.

 

- Esmagaremos a sua infantaria - disse avidamente outro fidalgo.

 

- Ao diabo com eles - respondeu bruscamente o arcebispo, impaciente com tais tolices. Queria capturar senhores escoceses, homens que montassem os mais rápidos e caros corcéis, pois eram os seus resgates que fariam dele um homem rico. Desejava principalmente capturar nobres escoceses, por exemplo, o conde de Menteith que jurara lealdade a Eduardo de Inglaterra e cuja presença do lado inimigo provava a sua traição. Tais homens não ofereceriam qualquer resgate, mas seriam executados como exemplo para os outros homens que tivessem quebrado os seus juramentos. Contudo, se o arcebispo se sentia hoje vitorioso, podia então conduzir o seu pequeno exército para a Escócia e tomar as propriedades dos traidores. Tomar-lhes-ia tudo: a madeira dos parques, os lençóis das camas, as próprias camas, as telhas dos telhados, as panelas, os tachos, o gado e até mesmo as canas dos leitos dos seus regatos. - Mas não atacarão de novo - disse o arcebispo.

 

- Então teremos de ser inteligentes - afirmou alegremente Lorde Outhwaite.

 

Os outros fidalgos olharam para ele com ar desconfiado. A inteligência não era uma qualidade apreciada, pois não levava à caça de javalis, não matava veados, não conduzia ao gozo com mulheres nem fazia prisioneiros. Os clérigos podiam ser inteligentes e sem dúvida que haveria tolos inteligentes em Oxford, até mesmo as mulheres poderiam sê-lo, desde que não o evidenciassem. Mas num campo de batalha? Inteligência?

 

- Inteligentes? - perguntou Lorde Neville intencionalmente.

 

- Eles receiam os nossos arqueiros - disse Lorde Outhwaite -, mas se os nossos arqueiros forem vistos com poucas flechas, esse receio desaparecerá e podem muito bem voltar a atacar.

 

- Realmente... - o arcebispo começou a falar para logo se deter, pois era tão inteligente como Lorde Outhwaite, até mesmo o suficiente para esconder como era inteligente. - Mas como poderemos convencê-los? - perguntou.

 

Lorde Outhwaite acedeu ao arcebispo, explicando aquilo que julgava que este já tinha percebido.

 

- Saiba Vossa Graça que julgo que, se os nossos arqueiros forem vistos a varrer o campo em busca de flechas, então o inimigo retirará as conclusões correctas.

 

- Ou, neste caso - afirmou o arcebispo com clareza, para benefício dos outros fidalgos -, a conclusão incorrecta.

 

- Oh, muito bem - disse um deles, entusiasmado.

 

- Saiba Vossa Graça que ainda poderia ser melhor - sugeriu Lorde Outhwaite modestamente - se os nossos cavalos pudessem ser trazidos para a frente. O inimigo concluiria que nos preparávamos para fugir.

 

O arcebispo não hesitou.

 

- Trazei todos os cavalos - ordenou.

 

- Mas... - um dos fidalgos franzia a testa.

 

- Os arqueiros que procurem as flechas, os escudeiros e os pajens que tragam os cavalos para os homens-de-armas - disse bruscamente o arcebispo, compreendendo perfeitamente a ideia de Lorde Outhwaite e desejoso de a pôr em prática antes que o inimigo decidisse retirar para norte.

 

Lorde Outhwaite deu ele próprio as ordens aos arqueiros, e em poucos momentos estes encontravam-se às dezenas no espaço entre os exércitos onde apanhavam as flechas usadas. Alguns dos arqueiros resmungavam, pensando que seria uma tolice, já que se achavam expostos às tropas escocesas que, mais uma vez, os começavam a invectivar. Um arqueiro que se aproximara mais do que os outros foi atingido no peito por um virote de besta e caiu de joelhos com uma expressão de assombro no rosto, cuspindo o sangue que o sufocava para a mão em concha. Começou a chorar o que ainda o sufocou mais e depois, um segundo homem que o foi ajudar foi atingido na perna pela mesma besta. Os escoceses gritavam o seu escárnio aos feridos, mas depois fugiram quando uma dúzia de arqueiros ingleses soltou os arcos para o único besteiro.

 

- Poupai as flechas! Poupai as flechas! - vociferava Lorde Outhwaite montado a cavalo. Aproximou-se deles a galope. - Poupai as flechas, por amor de Deus! Poupai! - berrava o suficiente para que o inimigo o escutasse, mas um grupo de escoceses, cansados de se esconderem dos arqueiros, avançou a correr numa tentativa evidente de impedir a retirada a Lorde Outhwaite e todos os ingleses se espalharam pela linha. Lorde Outhwaite esporeou o cavalo e iludiu facilmente a onda de homens que se contentou em esquartejar os dois arqueiros feridos. O resto dos escoceses vendo os ingleses em fuga, riam e vaiavam-nos. Lorde Outhwaite voltou-se e olhou para os dois arqueiros mortos.

- Deveríamos ter trazido esses dois rapazes connosco - disse, arrependido.

 

Ninguém respondeu. Alguns dos arqueiros pareciam ressentidos com os homens-de-armas, pensando que as montadas tinham sido trazidas para os ajudar na fuga, mas depois Lorde Outhwaite berrou-lhes que se protegessem atrás deles.

 

- Alinhai à retaguarda! Todos não. Vamos tentar fazê-los acreditar que temos falta de flechas, porque se tivésseis flechas estaríeis na frente, não é verdade? Mantende os cavalos no local em que se encontram! - gritou esta última ordem aos escudeiros, pajens e criados que tinham trazido os corcéis. Os homens-de-armas não deveriam montar ainda, os cavalos seriam simplesmente conservados na retaguarda da linha, por detrás do sítio em que metade dos arqueiros estavam agora formados. Ao ver os cavalos, o inimigo deveria concluir que os ingleses, por falta de flechas, contemplavam a fuga.

 

E a simples armadilha resultou.

 

Caiu um silêncio sobre o campo de batalha, apenas se ouvia o gemido dos feridos, o crocitar dos corvos e o choro das mulheres. Os monges começaram de novo a entoar os seus cânticos, mas encontravam-se ainda junto à esquerda inglesa e, para Thomas, que agora estava colocado à direita o som era muito leve. Um sino tocou na cidade.

 

- Receio que sejamos demasiado inteligentes - comentou Outhwaite para Thomas. Sua Senhoria não era homem de manter o silêncio e não havia mais ninguém na divisão da direita capaz de uma conversa daquelas; por isso escolheu Thomas. - Ser inteligente nem sempre resulta - suspirou.

 

- Resultou para nós na Bretanha, Senhoria.

 

- Haveis estado também na Bretanha para além de na Picardia? - perguntou Lorde Outhwaite. Estava ainda a cavalo e olhava para os escoceses por sobre os seus homens-de-armas.

 

- Servi lá um homem inteligente, Senhor.

 

- E quem era? - Lorde Outhwaite fingia-se interessado, talvez já arrependido de ter começado aquela conversa.

 

- Will Skeat, Senhoria, agora Sir William. O rei armou-o cavaleiro na batalha.

 

- Will Skeat? - Lorde Outhwaite já se mostrava interessado. - Haveis servido Will? Meu Deus, é verdade? Caro William! Há um ano que não oiço o seu nome. Como está ele?

 

- Não muito bem, Senhoria - respondeu Thomas e contou-lhe como Will Skeat, um plebeu que se tornara chefe de um bando de arqueiros e homens-de-armas temidos onde quer que se falasse francês tinha sido gravemente ferido na batalha da Picardia. - Foi levado para Caen, Senhoria.

 

Lorde Outhwaite franziu a testa.

 

- Certamente está outra vez na mão dos franceses.

 

- Foi um francês que lá o levou, Senhoria - explicou Thomas. - Um amigo. Há um físico na cidade que dizem que faz milagres.

 

No fim da batalha, quando por fim os homens puderam pensar que tinham atravessado aquele terror, o crânio de Skeat fora aberto e quando Thomas o vira pela última vez estava mudo, cego e inutilizado.

 

- Não sei porque serão os franceses melhores físicos - disse Lorde Outhwaite levemente enfadado. - Mas de facto parece que assim é. O meu pai sempre o disse e o catarro dava-lhe muito que fazer.

 

- Esse homem é judeu, meu Senhor.

 

- Ainda por cima. Judeu! Haveis dito judeu? - Lorde Outhwaite pareceu alarmado. - Nada tenho contra os judeus - continuou, sem grande convicção. - Mas sou capaz de me lembrar de uma dúzia de boas razões pelas quais nunca deveríamos recorrer a um físico judeu.

 

- De verdade, Senhoria?

 

- Meu caro amigo, como podem eles ultrapassar o poder dos santos? Ou as propriedades curativas das relíquias? Ou a eficácia da água benta? Até a oração é um mistério para eles. A minha mãe, que em paz descanse, tinha uma grande dor nos joelhos. Sempre pensei que fosse de rezar demasiado, mas o seu físico ordenou-lhe que enrolasse as pernas em panos que tinham sido colocados na tumba de São Cuthbert e que rezasse três vezes por dia a São Gregório de Nazianzo. E deu resultado. Deu resultado! Mas nenhum judeu faria tal prescrição, não é verdade? E se a fizesse seria uma blasfémia e não resultaria. Devo dizer-vos que foi muito mal aconselhado terdes colocado o pobre Will nas mãos de um judeu. Merecia melhor, podíeis estar certo - abanou a cabeça com ar de reprovação. - Will serviu o meu pai durante algum tempo, mas era um homem demasiado esperto para se manter engaiolado na fronteira escocesa. Não havia saques suficientes, entendeis? Partiu por sua conta. Pobre Will.

 

- O físico judeu curou-me - disse Thomas teimosamente.

 

- Só podemos rezar - Lorde Outhwaite ignorou a afirmação de Thomas e falou num tom que sugeria que a oração, embora necessária, certamente se mostraria inútil. Depois, subitamente, alegrou-se. - Ah, parece que os nossos amigos começam a mexer! - Os tambores escoceses tinham começado a soar e, ao longo da linha do inimigo, os homens erguiam os escudos, deixavam cair as viseiras e empunhavam as espadas. Viam que os ingleses tinham aproximado os cavalos, provavelmente para os auxiliarem na retirada e que a linha inimiga estava aparentemente despida de metade dos seus arqueiros. Deviam portanto ter acreditado que os arqueiros estavam perigosamente desprovidos de projécteis mas, mesmo assim, os escoceses decidiam avançar a pé, sabendo que até uma mão-cheia de flechas podia enlouquecer os cavalos e lançar uma investida montada no caos. Gritavam à medida que avançavam, tanto para se animarem como para assustarem os ingleses, mas tornaram-se mais confiantes quando chegaram ao local onde se encontravam os cadáveres resultantes da última carga e as flechas não voavam.

 

- Ainda não, rapazes! Ainda não. - Lorde Outhwaite tinha tomado o comando dos arqueiros da ala direita. Os Lordes Percy e Neville eram aqui os comandantes, mas ambos permitiram de bom grado que o cavaleiro mais experiente desse as ordens aos arqueiros, enquanto eles esperavam pelos seus homens-de-armas. Lorde Outhwaite olhava constantemente para o outro lado do campo, onde os escoceses avançavam sobre a ala esquerda inglesa, na qual se encontravam os seus homens, mas sentia-se satisfeito porque o fosso no chão continuasse a protegê-los tal como a muralha de pedra protegia o centro. Era ali, daquele lado do monte, mais perto de Durham que os escoceses eram mais fortes e os ingleses mais vulneráveis. - Deixai-os aproximarem-se mais - avisou os arqueiros. - Queremos acabar com eles de uma vez por todas, coitados - começou a bater com os dedos no punho da sela, ao ritmo dos enormes tambores escoceses que ainda restavam e aguardando até que a ala da vanguarda dos escoceses estivesse apenas a cem passos de distância. - Avante, arqueiros! - ordenou assim que julgou que o inimigo estava suficientemente próximo. - Agora sois vós na linha da frente! Começai a disparar!

 

Cerca de metade dos arqueiros estavam à vista na vanguarda. Pegaram nos arcos, levantaram as flechas no ar e soltaram-nas. Os escoceses ao verem os projécteis aproximarem-se, começaram a correr, na esperança de rapidamente aumentarem a distância de modo que apenas uma mão-cheia de flechas os atingisse.

 

- Todos os arqueiros! - bradou Lorde Outhwaite, receando ter esperado demasiado e os arqueiros que se tinham escondido por trás dos homens-de-armas começaram a disparar sobre as cabeças das tropas que tinham à sua frente. Os escoceses estavam agora próximos, suficientemente próximos, para que mesmo o pior arqueiro não falhasse o alvo, tão próximo que as flechas furavam de novo a malha e os corpos e cobriam o chão com mais feridos e moribundos. Thomas ouvia as flechas baterem no alvo. Algumas ecoavam no metal das armaduras, outras davam golpes secos nos escudos, mas muitas emitiam um som semelhante ao do cutelo de um açougueiro quando esquartejava a carne dos animais no princípio do Inverno. Fez pontaria para um homem muito grande, cuja viseira estava erguida e enviou-lhe uma flecha pela garganta abaixo. Outra atingiu um guerreiro das tribos, cujo rosto estava contorcido pelo ódio. Depois o encaixe da flecha partiu-se, fazendo saltar o projéctil quebrado quando soltou a corda.

 

Retirou os restos da corda, pegou numa nova flecha e meteu-a no corpo de mais um homem barbudo que nada mais era do que fúria e cabelo. Um escocês montado encorajava os seus homens a avançar, para logo estremecer na sela atingido por três flechas. Thomas soltou mais uma, atingindo directamente no peito o homem-de-armas, de tal forma que a ponta rasgou a malha, o couro, o osso e a carne. A flecha seguinte afundou-se num escudo. Os escoceses tropeçavam, tentando aguentar-se na chuva da morte.

 

- Firmes, rapazes, firmes! - um arqueiro chamava os seus companheiros, receando que puxassem as cordas e não usassem toda a força dos seus arcos.

 

- Continuai a disparar! - exclamou Lorde Outhwaite. Os dedos continuavam a bater no punho da sela, embora os tambores escoceses já hesitassem. - Bom trabalho! Bom trabalho!

 

- Cavalos! - ordenou Lorde Percy. Viu que os escoceses estavam à beira do desespero porque os arqueiros ingleses afinal não tinham falta de flechas. - Cavalos! - vociferou mais uma vez e os seus homens-de-armas correram a erguer-se nas suas selas. Pajens e escudeiros entregavam-lhes as pesadas lanças, enquanto os homens enfiavam nos estribos os pés cobertos de malha, olhavam para o sofredor inimigo e depois batiam com as viseiras.

 

- Disparai! Disparai! - ordenava Lorde Outhwaite. - Assim mesmo, rapazes! - As flechas eram impiedosas. Os escoceses feridos gritavam a Deus, chamavam pelas mães, mas mesmo assim a morte em forma de penas acertava nos alvos. Um homem com o leão dos Stewart cuspia uma mistura rosada de sangue e saliva. Estava de joelhos, mas conseguiu pôr-se de pé, deu um passo, caiu de novo de joelhos, arrastou-se, soltou mais bolhas cor-de-rosa e depois uma flecha enfiou-se-lhe num olho, atravessando-lhe o
cérebro para sair de novo pela parte de trás do crânio, que parecia ter sido atingida por um raio.

 

Em seguida chegaram os enormes corcéis.

 

- Por Inglaterra, Eduardo e São Jorge! - exclamou Lorde Percy e um trombeteiro aceitou o desafio enquanto os enormes corcéis carregavam. Sem cerimónia, empurraram os arqueiros para o lado enquanto as lanças caíam.

 

A erva estremecia. Apenas alguns cavaleiros atacavam, mas o choque da carga atingiu o inimigo com força espantosa e os escoceses recuaram. As lanças foram metidas nos corpos dos homens, enquanto os cavaleiros empunhavam espadas e atacavam homens assustados e escondidos que não podiam fugir porque a pressão dos cadáveres era demasiada. Mais cavaleiros montavam e os homens-de-armas que não queriam esperar pelos corcéis avançavam a correr para entrarem na refrega. Os arqueiros juntaram-se-lhes, puxando das espadas ou bramindo os machados. Os tambores estavam por fim em silêncio e a carnificina começou.

 

Thomas já antes o vira. Já vira como, num abrir e fechar de olhos uma batalha mudava. Os escoceses tinham-nos pressionado todo o dia, quase despedaçando os ingleses, eram exaltados e pareciam vencer, porém, agora, estavam derrotados, e os homens da esquerda escocesa que tão próximos haviam estado de oferecer a vitória ao seu rei eram os que quebravam neste momento. Os corcéis ingleses galopavam para as suas alas abrindo atalhos sangrentos e os cavaleiros brandiam espadas, machados, massas e manguais em direcção aos homens em pânico. Os arqueiros ingleses juntavam-se, amontoando os escoceses mais lentos como matilhas de cães que saltavam para caçar veados.

 

- Prisioneiros! - gritava Lorde Percy aos seus homens. - Quero prisioneiros! - Um escocês brandiu um machado na direcção do seu cavalo, falhou e foi cortado pela espada de Sua Senhoria; um arqueiro terminou o trabalho com uma faca, rasgando depois o gibão acolchoado do homem em busca de moedas. Dois carpinteiros de Durham usavam enxós num homem-de-armas que se debatia, abrindo-lhe o crânio e matando-o lentamente. Um arqueiro recuou, ofegante com o ventre aberto, seguido por um escocês que gritava raivoso, tropeçou num arco e caiu ficando por baixo de um enxame de homens. Os caparazões dos cavalos ingleses pingavam sangue enquanto os donos se voltavam para abrir caminho por entre as hostes escocesas. Estes tinham cavalgado à vontade e agora picavam os cavalos para recuar e enfrentar a onda seguinte de homens-de-armas ingleses que combatiam com as viseiras abertas, pois o inimigo em pânico não oferecia de facto uma verdadeira resistência.

 

Mas a direita e o centro dos escoceses estavam intactos.

 

A direita tinha de novo sido empurrada para o terreno baixo, porém, em vez de arqueiros a empurrarem-nos na borda, enfrentavam os homens-de-armas ingleses que tinham sido suficientemente tolos para descer ao fosso e enfrentar a carga escocesa. Os homens cobertos de malha caíam com um estrondo metálico sobre os cadáveres dos escoceses, tropeçando desajeitadamente com os seus fatos de metal para brandir as espadas e os machados contra escudos e crânios. Os homens gemiam enquanto matavam. Rosnavam, atacavam e morriam na erva enlameada, porém, era uma luta vã pois, se qualquer dos lados ganhasse vantagem, limitar-se-iam a obrigar o inimigo a subir a encosta e imediatamente o lado derrotado tinha o solo como aliado. Voltariam pois a descer, juntando mais cadáveres ao fundo do fosso. Por isso a batalha parecia avançar e recuar, cada onda enorme deixando mais moribundos a gemer, a chamar por Jesus, a amaldiçoar o inimigo e a sangrar.

 

Ali se encontrava Beggar, esse homem enorme, sentado em cima do cadáver do conde de Moray, troçando dos escoceses e convidando-os a lutar. Chegaram meia-dúzia que foram mortos antes que um grupo de guerreiros dos clãs das Terras Altas viessem aos gritos a querer matá-lo. Ele vociferou e brandiu a massa cheia de picos na sua direcção. Para o Espantalho, que o olhava lá de cima, parecia um enorme urso esfarrapado atacado por mastins. Sir William Douglas, demasiado esperto para ser apanhado pela segunda vez em terreno baixo, também observava do lado oposto, espantado com a forma como, de boa vontade, os homens se entregavam à matança. Depois, entendendo que a batalha não poderia ser ganha nem perdida naquele poço da morte, voltou-se para o centro onde o troço do rei tinha ainda a possibilidade de conseguir uma grande vitória, apesar do desastre da esquerda escocesa.

 

Porque os homens do rei tinham ultrapassado a muralha de pedra. Nalguns locais tinham-na deitado abaixo, noutros tinha sido simplesmente derrubada pela pressão dos homens e embora as pedras caídas ainda representassem um formidável obstáculo aos soldados estorvados pelos pesados escudos e cotas de malha, estes avançavam com dificuldade e atacavam o centro inglês. Os escoceses tinham carregado na direcção das flechas, tinham-nas suportado e até mesmo apanhado uma dezena de arqueiros que alegremente dizimaram. Agora abriam caminho à punhalada, em direcção ao grande pendão do arcebispo. O rei, com o visor cheio de sangue da face ferida, encontrava-se na vanguarda do troço. O capelão do rei estava ao lado do seu amo, brandindo um maço com picos e Sir William e o sobrinho juntaram-se ao ataque. Sir William ficou subitamente envergonhado com a premonição que o tinha feito aconselhar uma retirada. Era assim que combatiam os escoceses! Com paixão e selvajaria. O centro inglês recuava, mal conseguindo manter firmes as suas alas. Sir William viu que o inimigo trouxera os cavalos mais para perto da linha de batalha e supôs que se preparasse para fugir, portanto, redobrou os seus esforços.

 

- Matai-os! - vociferou. Se os escoceses pudessem quebrar a linha naquele momento os ingleses ficariam num caos, incapazes de chegar aos cavalos, passando a ser carne para canhão.

 

- Matai! Matai! - gritava o rei aos seus homens, encontrando-se bem visível, montado no seu cavalo.

 

- Prisioneiros! - exigia o conde de Menteith, mais sensato. - Fazei prisioneiros.

 

- Acabai com eles, acabai com eles já! - vociferava Sir William. Avançou com o escudo para receber um golpe de espada, apunhalou por baixo e sentiu a espada cortar uma cota de malha. Revolveu a lâmina e soltou-a antes que a carne agarrasse o aço. Empurrou com o escudo, incapaz de ver por cima da sua orla superior, sentiu o inimigo vacilar e recuar, baixou o escudo, antecipando um golpe baixo, depois avançou de novo, empurrando o inimigo. Cambaleou para diante, quase se desequilibrando ao tropeçar no homem que ferira, mas recompôs-se apoiando a orla inferior do escudo no chão, endireitando-se e enfiando a espada num rosto barbudo. A lâmina falhou a face, atingiu um olho e o homem caiu para trás, de boca aberta, abandonando a luta. Sir William quase teve de se baixar para evitar o golpe de um machado, aparou outra espada com o seu escudo e apunhalou violentamente na direcção de dois homens que o atacavam. Robbie soltando pragas e impropérios, matou o homem do machado, dando depois um pontapé no rosto de um homem-de-armas caído. Sir William atacou com um golpe desleal e sentiu a espada raspar na malha rasgada. Voltou-se para evitar que a lâmina ficasse presa, retirando-a com tal força que um jorro de sangue saiu pelos anéis de metal da cota do ferido. O homem caiu, ofegante e estrebuchando enquanto mais ingleses chegavam da direita, desesperados para deter o ataque escocês que ameaçava limpar por completo a linha do arcebispo.

 

- Douglas! - vociferou Sir William. - Douglas! - Chamava os seus homens para que viessem ajudá-lo a empurrar, a enganar e a atacar o último inimigo. Ele e o sobrinho tinham talhado um caminho ensanguentado por entre as fileiras do arcebispo e bastar-lhes-ia um momento de luta feroz para desbaratar o centro inglês e a verdadeira carnificina poderia começar. Sir William desviou-se de outro machado que o quis atingir. Robbie matou o homem, cortando-lhe a garganta com a sua espada, mas teve imediatamente de aparar um golpe de lança e, ao fazê-lo, recuou e chocou com o tio. Sir William endireitou o sobrinho e bateu com o escudo no rosto do inimigo. Onde diabo estariam os seus homens? - Douglas! - vociferou de novo. - Douglas!

 

Nesse momento uma espada ou uma lança encalharam-se-lhe nos pés fazendo-o cair, para logo se cobrir instintivamente com o escudo. Os homens passavam por ele a correr e rezou para que fossem os seus a quebrar o resto da resistência inglesa. Aguardou ouvir o grito do inimigo, mas escutou apenas um insistente bater no seu elmo. O bater parou para logo recomeçar.

 

- Sir William? - perguntou uma voz suave.

 

A gritaria recomeçara, de modo que Sir William mal podia ouvir, porém o suave bater na coroa do elmo convenceu-o de que seria mais seguro baixar o escudo. Levou uns instantes para ver o que se passava pois o elmo ficara de lado quando caíra e teve de o repor na posição devida.

 

- Valha-me Deus - disse assim que conseguiu ver o mundo à sua volta.

 

- Meu caro Sir William - disse a voz suave. - Presumo que vos rendais. Claro que sim. Mas este não é o jovem Robbie? Meu Deus, como haveis crescido, meu rapaz! Lembro-me de vós ainda uma criança de colo.

 

- Oh, valha-me Deus! - repetiu Sir William, olhando para Lorde Outhwaite.

 

- Posso ajudar-vos a levantar? - perguntou solícito Lorde Outhwaite, inclinando-se na sua sela. - E depois, poderemos falar do resgate.

 

- Jesus - disse Sir William. - Maldição! - Compreendia agora que aqueles pés a correr à sua volta eram ingleses e os gritos vinham dos escoceses.

 

Afinal o centro inglês tinha-se mantido firme e para os escoceses a batalha transformara-se num perfeito desastre.

 

Eram de novo os arqueiros. Os escoceses haviam perdido homens durante todo o dia e mesmo assim eram superiores em número ao inimigo, mas não ofereciam qualquer resposta às setas e, quando o centro escocês demoliu a muralha e investiu por entre os seus restos, a esquerda escocesa retirou e expôs o flanco do troço do rei às setas inglesas.

 

Os arqueiros levaram algum tempo a entender a sua vantagem. Tinham-se juntado à perseguição da vencida esquerda escocesa e não tinham consciência de quão próximo da vitória estava o centro escocês. Mas, por fim, um dos homens de Lorde Neville apercebeu-se do perigo.

 

- Arqueiros! - os homens interromperam o saque e retiraram as flechas das bolsas.

 

Os arcos começaram de novo a soar, cada profunda nota de harpa conduzindo uma flecha para o flanco dos furiosos escoceses. O troço de David tinha empurrado a hoste central dos ingleses até à pastagem, tinham-na diminuído e aproximavam-se do grande pendão do arcebispo. Depois as flechas começaram a atacar e, logo a seguir, vieram os homens-de-armas da ala direita inglesa, os seguidores de Lorde Percy e de Lorde Neville e alguns montavam já os seus corcéis treinados para morder, empinar-se e escoicear com os seus cascos cobertos de ferro. Os arqueiros, largando mais uma vez os arcos, seguiam os cavaleiros com machados e espadas e desta vez as mulheres vinham também com facas desembainhadas.

 

O rei da Escócia atacou um inglês, viu-o cair, depois escutou o grito de terror do porta-estandarte e voltou-se para ver a queda do enorme pendão. O cavalo do porta-estandarte ficara com as pernas cortadas; relinchava enquanto caía e uma multidão de arqueiros e homens-de-armas atiraram-se ao homem e ao animal, arrancaram o pendão e deram ao porta-estandarte uma morte horrível; contudo o capelão real pegou nas rédeas do cavalo do rei e arrastou David Bruce da refrega. Vários escoceses reuniram-se em redor do soberano, escoltando-o dali para fora e atrás deles, os ingleses inclinavam-se das selas, cortavam com as espadas, soltavam impropérios enquanto matavam. O rei tentava voltar-se e continuar a lutar, porém, o capelão insistia em afastar o cavalo.

 

- Vamos, Senhor, vamos! - gritava. Homens assustados esbarravam no cavalo do rei que pisou o guerreiro dos clãs e tropeçou num cadáver. Havia agora escoceses na retaguarda inglesa e o rei, ao aperceber-se do perigo que corria recuou com as esporas. Um cavaleiro inimigo investiu contra ele, mas o rei aparou o golpe e afastou-se do perigo. O seu exército desintegrara-se em grupos de desesperados fugitivos. Viu o conde de Monteith tentar montar um cavalo, mas um arqueiro agarrou uma perna de Sua Senhoria e puxou-o para trás, depois sentou-se sobre ele e colocou-lhe a faca na garganta. O conde gritou que se rendia. O conde de Fife foi feito prisioneiro, o conde de Strathearn estava morto, o de Wigdown estava a ser assaltado por dois cavaleiros ingleses cujas armas soavam sobre o metal da armadura como martelos de ferreiros. Um dos grandes tambores escoceses, com a pele rasgada e danificada, rolou pela encosta, cada vez com maior velocidade, à medida que esta se tornava mais íngreme, batendo com força nas pedras até que por fim caiu de lado e se deteve.

 

O enorme pendão do rei estava em mãos inglesas, e o mesmo acontecia com os estandartes de uma dúzia de fidalgos escoceses. Alguns deles galopavam para norte. Lorde Robert Stewart que estivera tão próximo de vencer o combate, encontrava-se livre e à vontade no lado oriental do cume, enquanto o rei mergulhava pelo lado ocidental, passando para a sombra, pois o sol estava agora mais baixo do que os montes em direcção aos quais cavalgava em busca desesperada de refúgio. Pensou na sua esposa. Estaria grávida? Tinham-lhe dito que Lorde Robert contratara uma bruxa para lançar uma maldição ao ventre dela de modo a que o trono passasse dos Bruce para os Stewart.

 

- Senhor! Senhor! - gritou-lhe um dos seus homens e o rei saiu do seu devaneio para ver um grupo de arqueiros que já tinha descido ao vale. Como o teriam ultrapassado? Puxou as rédeas, inclinou-se para a direita para ajudar o cavalo a dar a volta e sentiu uma flecha bater no peito do animal. Outro dos seus homens caiu no solo pedregoso que lhe rasgou a cota de malha em farrapos brilhantes. Um cavalo relinchou, o sangue jorrou na escuridão e uma terceira flecha bateu no escudo que o rei trazia às costas. Uma terceira atingiu a crina do cavalo e o corcel abrandou, subindo e descendo procurando respirar.

 

O rei tentou fazê-lo recuar por meio das esporas, mas o cavalo não podia andar mais depressa. Fez uma careta e o gesto abriu-lhe a crosta da ferida do rosto, de modo que o sangue jorrou de novo da viseira aberta, para cima da camisa de tela. O cavalo tropeçou novamente. Mais adiante havia um ribeiro e uma pequena ponte de pedra. O rei ficou maravilhado por alguém ter feito uma tal obra de pedra sobre um curso de água tão ténue. Depois as pernas do cavalo cederam e o rei rolou pelo chão, miraculosamente livre da sua montada moribunda e sem os ossos partidos. Levantou-se com dificuldade e correu para a ponte onde três dos seus homens aguardavam a cavalo, um deles com um corcel sem cavaleiro. Mas mesmo antes de o rei poder chegar aos três homens as flechas voavam em seu redor e acertaram no alvo, cada uma delas fazendo os cavalos vacilar de lado pelo choque do impacto. O corcel relinchou, soltou-se das mãos do homem e galopou para leste com o sangue a escorrer do ventre. Outro cavalo caiu com uma flecha profundamente enfiada na garupa, duas no ventre e uma na jugular.

 

- Para baixo da ponte! - gritou o rei. Haveria abrigo sob o arco, um esconderijo e quando tivesse reunido uma dúzia de homens tentaria escapar. O crepúsculo não demoraria muito e se esperassem pelo anoitecer e depois caminhassem toda a noite, poderiam chegar à Escócia de madrugada.

 

Assim, quatro escoceses, um deles o rei, esconderam-se debaixo da ponte de pedra a recuperar o fôlego. As flechas tinham deixado de voar, os cavalos estavam todos mortos e o rei atrevia-se a pensar que os arqueiros ingleses tinham partido em busca de outra presa.

 

- Esperaremos aqui - murmurou. Conseguia ouvir os gritos do terreno mais alto, os cascos dos cavalos na encosta, mas nenhum parecia estar perto da pequena ponte. Estremeceu, apercebendo-se da magnitude do desastre. O seu exército tinha desaparecido, as suas grandes esperanças nada eram, a festa do Natal não seria em Londres e a Escócia ficaria aberta aos seus inimigos. Espreitou para norte. Um grupo de guerreiros dos clãs atravessavam o ribeiro fazendo levantar água e, de súbito, seis cavaleiros ingleses apareceram e desceram com os seus corcéis da margem mais alta, brandindo as enormes espadas. O sangue rodopiou na água, correndo em redor dos pés do rei, cobertos de malha, fazendo-o encolher-se para a sombra, enquanto os homens-de-armas partiam para ocidente em busca de mais fugitivos. As patas dos cavalos batiam sobre a ponte e os quatro escoceses nada disseram, nem se atrevendo a olhar uns para os outros até desaparecer o ruído dos cascos. Do alto do monte chamava-os uma trombeta com um som odioso de triunfo e desprezo. O rei fechou os olhos receando chorar.

 

- Tendes de consultar um físico, Senhor - disse um homem e o rei abriu os olhos e viu que quem tinha falado era um dos seus criados.

 

- Isto não se pode curar - disse o rei a pensar na Escócia.

 

- A face há-de sarar, Senhor - disse o criado, para o acalmar.

 

O rei olhou o homem como se ele tivesse falado numa língua estranha e depois, subitamente, a sua face ferida começou a doer-lhe terrivelmente. Não tivera dores durante todo o dia, mas agora sentia uma agonia que lhe fazia soltar as lágrimas dos olhos. Não de dor, mas de vergonha, e depois, enquanto pestanejava para afastar as lágrimas, deu conta dos gritos, das sombras que caíam e do bater das botas dos homens dentro de água, quando estes saltavam da ponte. Os atacantes tinham espadas e lanças e mergulhavam sob o arco da ponte como caçadores de lontras. O rei vociferou o seu desafio e saltou para o homem que estava na sua frente; a sua raiva era tanta que se esqueceu de empunhar a espada tendo esmurrado o inimigo com os punhos cobertos de metal. Sentiu os dentes do inglês rangerem com a pancada, viu o sangue espirrar e meteu o homem no ribeiro enquanto lhe batia. Mas não se pôde mover porque outros o agarraram. O homem, por baixo dele, meio afogado, com os dentes partidos e os lábios ensanguentados, começou a rir.

 

Fizera um prisioneiro. E ficaria rico.

 

Tinha capturado o rei.

 

                        Inglaterra e Normandia, 1346-1347

                         O Cerco do Inverno

Estava escuro na catedral. Tão escuro que as cores vivas dos pilares e das paredes se tinham diluído na escuridão. A única luz provinha das velas dos altares laterais e de detrás do retábulo da Cruz onde as chamas estremeciam no coro e os monges vestidos de negro entoavam cânticos. As suas vozes teciam um encantamento na escuridão, entrelaçando-se, descendo, surgindo e erguendo-se, um som que levaria as lágrimas aos olhos de Thomas se ainda as tivesse para chorar.

 

- Libera me, Domine, de morte aeterna - entoavam os monges, enquanto o fumo das velas subia ao tecto da catedral. Liberta-me, Senhor, da morte eterna. Nas lajes do coro encontrava-se o caixão em que o corpo ainda não encomendado do irmão Hugh Collimore jazia, com as mãos cruzadas sobre a túnica, os olhos fechados e, sem que o prior soubesse, uma moeda pagã colocada sob a língua por um dos outros monges que receava que o demónio levasse a alma do irmão, se o barqueiro que transportava as almas dos defuntos até ao outro lado do rio do outro mundo não recebesse a paga da travessia.

 

- Requiem aeternam dona eis, Domina - entoavam os monges, pedindo ao Senhor que desse ao irmão Collimore o eterno descanso e na cidade junto à catedral, das casinhas situadas no terreno rochoso provinham lamentações, pois muitos homens de Durham tinham morrido na batalha. Porém, o choro não era nada comparado com as lágrimas que seriam derramadas quando as notícias do desastre chegassem à Escócia. O rei fora feito prisioneiro e o mesmo acontecera a Sir William Douglas e aos condes de Fife, Menteith e Wigtown. O conde de Moray estava morto tal como o Condestável da Escócia, o marechal e o chanceler do rei, todos esquartejados, os seus corpos desnudados e ridicularizados pelos inimigos e, com eles, centenas de compatriotas seus, com a carne branca ensanguentada e transformados em alimento para as raposas, lobos, cães e corvos. Os estandartes escoceses manchados encontravam-se sobre o altar da catedral de Durham e os restos do grande exército de David fugiam através da noite e logo seguidos pelos vingativos ingleses, preparados para a pilhagem e devastação das Terras Baixas, para recuperar assim o que lhes fora roubado e para roubarem um pouco mais.

 

- Et lux perpetua luceat eis - entoavam os monges, rezando para que a luz perpétua cintilasse sobre o defunto monge, enquanto no cume do monte os outros mortos jaziam na escuridão onde piavam as corujas brancas.

 

- Deveis confiar em mim - sussurrou o prior ao fundo da catedral. Pequenas velas cintilavam nas dezenas de altares laterais onde os padres, muitos deles refugiados das aldeias vizinhas saqueadas pelos escoceses, diziam missas pelos mortos. O latim daqueles sacerdotes rurais era muitas vezes execrável, uma fonte de divertimento para o próprio clero da catedral e para o prior que estava sentado ao lado de Thomas num banco de pedra. - Sou vosso superior perante Deus - insistiu, mas, mesmo assim, Thomas manteve-se em silêncio, o que irritou o prior. - O rei ordenou-vos! Assim diz a carta do bispo! Por isso, dizei-me o que buscais.

 

- Quero a minha mulher de volta - disse Thomas, satisfeito com a escuridão da catedral, pois tinha os olhos vermelhos de tanto chorar. Eleanor estava morta, o padre Hobbe estava morto bem como o Irmão Collimore, todos eles anavalhados, ninguém sabia por quem, embora um dos monges tivesse falado de um homem moreno, de um criado que viera com um padre estrangeiro. Thomas recordou-se então do mensageiro que vira de madrugada, quando Eleanor estava viva, ainda antes da discussão. Agora estava morta, por sua culpa. Por sua culpa. Sentiu-se invadido pelo desgosto e gemeu a sua tristeza na nave da catedral.

 

- Silêncio - ordenou o prior, chocado com o ruído.

 

- Amava-a!

 

- Há outras mulheres, centenas - desagradado, fez o sinal da cruz.

- O que foi que o rei vos mandou procurar? Ordeno-vos que me digais.

 

- Estava de esperanças - disse Thomas, olhando para o tecto. - Eu ia casar com ela - sentia a alma vazia e escura como o espaço por cima de si.

 

- Ordeno-vos que mo digais! - repetiu o prior. - Em nome de Deus, ordeno-vos!

 

- Se o rei desejar que saibais o que eu busco - disse Thomas em francês, embora o prior estivesse a utilizar o inglês decerto vo-lo dirá com todo o prazer.

 

O prior olhou furioso para a cruz. O francês, língua dos aristocratas, silenciara-o, obrigando-o a perguntar a si próprio quem seria aquele arqueiro. Dois homens-de-armas, com as malhas entrechocando-se ligeiramente, caminharam pelas lajes para agradecer a São Cuthbert o terem sobrevivido. A maior parte do exército inglês descansava a norte, durante as horas de escuridão, para retomar a perseguição do inimigo derrotado, mas alguns cavaleiros e homens-de-armas tinham vindo para a cidade, onde guardavam os valiosos prisioneiros, colocados na residência do bispo dentro do castelo. Talvez, pensou o prior, o tesouro que Thomas de Hookton buscava já não fosse importante; afinal tinham capturado um rei juntamente com metade dos condes da Escócia e os seus resgates empobreceriam completamente esse país; contudo não conseguia libertar-se da palavra thesaurus. Um tesouro, e a Igreja tinha sempre falta de dinheiro. Ergueu-se.

 

- Esqueceis de que sois meu hóspede - disse friamente.

 

- Não o esqueço - respondeu Thomas. Tinham-lhe dado um espaço nos alojamentos dos convidados dos monges, ou antes, nos seus estábulos, pois os homens mais importantes precisavam de quartos mais quentes. - Não o esqueço - repetiu num tom cansado.

 

O prior olhou para a escuridão do tecto alto.

 

- Talvez - sugeriu - saibais mais a respeito do assassínio do Irmão Collimore do que pretendeis.

 

Thomas não respondeu; as palavras do prior eram um absurdo e o próprio prior o sabia, pois ele e Thomas tinham ambos estado no campo de batalha no momento da morte do velho monge, e o desgosto que Thomas mostrava pelo assassínio de Eleanor era sincero; mesmo assim, o prior estava zangado e frustrado e falava sem pensar. Era aquilo que a esperança de conseguir um tesouro fazia a um homem.

 

- Ficareis em Durham, até que vos dê autorização para partir - ordenou o prior. - Dei instruções para que o vosso cavalo fique nos meus estábulos. Compreendeis?

 

- Compreendo-vos - disse Thomas em tom cansado e depois viu que o prior se afastava.

 

Na catedral entravam mais homens-de-armas, com as espadas pesadas a bater contra pilares e tumbas. Nas sombras, por trás de um dos altares laterais, o Espantalho, Beggar e Dickon vigiavam Thomas. Seguiam-no desde o final da batalha. Sir Geoffrey vestia agora uma bela cota de malha, que roubara a um escocês morto e debatera-se na dúvida de se deveria ou não continuar a sua perseguição, mas preferira mandar um sargento e meia-dúzia de homens com ordens para saquearem tudo o que pudessem quando a pilhagem começasse. O próprio Sir Geoffrey apostara que, já que o tesouro de Thomas interessara ao rei, seria certamente digno da sua consideração e portanto decidiu-se a seguir o arqueiro.

 

Thomas, indiferente ao olhar do Espantalho, inclinou-se com os olhos fechados, pensando que nunca mais seria o mesmo. Tinha as costas e o braço doridos depois de um dia a puxar o arco, e os dedos da mão direita feridos pela corda. Se fechasse os olhos nada mais veria do que escoceses a correr na sua direcção, o arco a desenhar uma linha escura na sua memória e o branco das penas das flechas estremecendo no seu voo; depois a imagem desvanecer-se-ia para ver Eleanor estrebuchar por baixo da faca que a tinha torturado. Tinham-na obrigado a falar, porém, que sabia ela? Que Thomas duvidara do Graal, que sentia relutância em buscar essa relíquia, que nada mais desejava do que ser chefe dos arqueiros e que tinha deixado a mulher e o amigo irem ao encontro da morte.

 

Uma mão tocou na parte detrás da cabeça e Thomas quase saltou para o lado na expectativa de alguma coisa pior, talvez da lâmina de uma espada; depois ouviu a voz de Lorde Outhwaite.

 

- Vinde até lá fora, meu rapaz - ordenou a Thomas. - Vamos para onde o Espantalho não nos possa ouvir - disse aquilo em voz alta e em inglês, para logo baixar o tom de voz e falar em francês. - Tenho andado à vossa procura - tocou no braço de Thomas para lhe incutir coragem. - Já sei da vossa jovem mulher e lamento muito. Era muito bonita.

 

- Pois era, Senhoria.

 

- O seu modo de falar sugeria que era bem-nascida - continuou Lorde Outhwaite. - Sem dúvida que a família dela desejará ajudar-vos na vossa vingança.

 

- O pai dela é fidalgo, senhoria, mas ela era bastarda.

 

- Ah! - Lorde Outhwaite continuou a andar, ajudado pela lança que carregara consigo a maior parte do dia. - Então provavelmente não vos ajudará, pois não? Mas podeis fazê-lo sozinho. Pareceis-me muito capaz. - Sua Senhoria conduzira Thomas para a noite fresca. A lua brincava com nuvens prateadas, enquanto no cume ocidental enormes fogueiras ardiam fazendo subir um véu de fumo avermelhado sobre a cidade. As fogueiras iluminaram o campo de batalha para os homens e mulheres de Durham que procuravam os mortos para os pilhar e esfaqueavam os escoceses feridos para os matarem e também saquearem. - Estou demasiado velho para me juntar a um saque - declarou Lorde Outhwaite olhando para as fogueiras distantes. - Demasiado velho e com as articulações perras. É uma caçada boa para os jovens e estes hão-de ir atrás deles até ao castelo de Edimburgo. Já haveis estado no castelo de Edimburgo?

 

- Não, meu Senhor - respondeu Thomas tristemente, sem se importar com a possibilidade de alguma vez vir a conhecer Edimburgo ou o seu castelo.

 

- Oh, é bonito, muito bonito! - disse Lorde Outhwaite entusiasmado. Foi-nos capturado por Sir William Douglas. Meteu lá dentro os seus homens escondendo-os em barris. Barris enormes. Um homem esperto, não é verdade? E agora é meu prisioneiro - Lorde Outhwaite espreitou para o castelo como se esperasse ver Sir William Douglas e os outros nobres escoceses a aparecer entre as ameias. A entrada, onde uma dúzia de homens-de-armas montava guarda, era iluminada por dois archotes colocados em apoios de metal. - Um patife, o nosso William, um patife. Porque vos segue o Espantalho?

 

- Não faço ideia, meu Senhor.

 

- Fazeis sim - Sua Senhoria encostou-se a um bloco de pedra. A área junto da catedral estava cheia de pedra e madeira, pois os operários reparavam uma das grandes torres. - Sabe que procurais um tesouro, por isso procura-o também.

 

Thomas tomou atenção, olhando fixamente para Sua Senhoria e logo a seguir para a catedral. Sir Geoffrey e os dois homens tinham vindo até à porta mas era evidente que não se atreviam a aproximar-se temendo o desagrado de Lorde Outhwaite.

 

- Como pode sabê-lo? - perguntou Thomas.

 

- Como pode não o saber? - perguntou Lorde Outhwaite. - Os monges sabem, o que é equivalente a pedir a um arauto que o anuncie. Os monges são tão tagarelas como as mulheres no mercado! É por isso que o Espantalho sabe que deveis ser a fonte de uma grande riqueza e deseja-a. O que é esse tesouro?

 

- É apenas um tesouro, Senhoria, embora duvide que tenha grande valor intrínseco.

 

Lorde Outhwaite sorriu. Durante algum tempo nada disse, ficando apenas a olhar para o espaço escuro por cima do rio.

 

- Não me haveis dito - disse por fim - que o rei vos enviou na companhia de um cavaleiro da sua casa e de um capelão da Casa Real?

 

- Sim, Senhoria.

 

- E que ambos adoeceram em Londres?

 

- Exactamente.

 

- Um lugar doentio. Estive lá duas vezes e foi mais do que suficiente! Um veneno! Os meus porcos vivem em condições mais limpas! Mas um capelão real, então, sempre é mais inteligente do que um padre de aldeia, não? Não se tratava de um camponês enganado com uma ou duas frases de latim, mas de um homem elevado, um homem que viria a ser bispo em breve se sobrevivesse à febre. Mas porque enviaria o rei um homem assim?

 

- Deveis perguntar-lhe, Senhoria.

 

- Um capelão real, nem mais nem menos - continuou Lorde Outhwaite como se Thomas nada tivesse dito e depois calou-se. As estrelas espalhavam-se por entre as nuvens e ele olhou-as e depois suspirou. - Uma vez disse -, há muito tempo, vi um frasco de cristal com o sangue de Nosso Senhor. Foi na Flandres e liquefazia-se em resposta às orações! Segundo me disseram, há outro frasco no Gloucestershire, mas esse não vi. Uma vez em Nantes, afaguei a barba de São Jerónimo; já tive na mão um pêlo do burro de Balaam; beijei uma pena da asa de São Gabriel e brandi o osso do próprio maxilar com que Sansão matou tantos filisteus! Vi uma sandália de São Paulo, uma unha de Maria Madalena e seis fragmentos da verdadeira Cruz, um deles manchado pelo mesmo sangue sagrado que vi na Flandres. Avistei as espinhas dos peixes que Nosso Senhor deu a comer às cinco mil Pessoas, senti o aço de uma das setas que atingiu São Sebastião e cheirei uma folha da macieira do Jardim do Éden. Na minha capela, meu rapaz, tenho um osso do dedo de São Tomás e uma dobradiça da caixa do incenso oferecido ao Menino Jesus. Essa dobradiça custou-me muito dinheiro, mesmo muito. Por isso, dizei-me, Thomas, que relíquia é mais preciosa que todas aquelas que já vi e todas as que ainda espero ver nas grandes igrejas da Cristandade?

 

Thomas fitava as fogueiras no monte onde tantos tinham morrido. Eleanor já estaria no céu? Ou estaria condenada a passar milhares de anos no purgatório? Aquele pensamento recordou-lhe que teria de mandar dizer missas pela sua alma.

 

- Ficais em silêncio - observou Lorde Outhwaite. - Mas dizei-me, meu rapaz, pensais realmente que eu possuo uma dobradiça da caixa do incenso do Menino Jesus?

 

- Como hei-de saber, meu Senhor?

 

- Por vezes duvido - disse Lorde Outhwaite com jovialidade -, mas a minha mulher acredita. E é isso que interessa: a crença. Se acreditarmos que uma coisa possui o poder de Deus, então esse poder passará para nós - fez uma pausa, erguendo a cabeça desgrenhada na escuridão, como se quisesse farejar os inimigos. - Julgo que procurais uma coisa com o poder de Deus, uma coisa muito importante e acredito que o próprio diabo procura impedir-vos. O próprio Satanás envia as suas criaturas para vos impedir - Lorde Outhwaite voltou para Thomas o rosto ansioso. - Aquele estranho padre e o seu criado moreno são filhos do diabo, tal como Sir Geoffrey! Esse é uma cria de Satanás - lançou o olhar para o pórtico da catedral, onde o Espantalho e os seus dois carrascos tinham já recuado para as sombras, enquanto uma procissão de monges curvados aparecia na noite. - Satanás faz coisas malévolas afirmou Lorde Outhwaite. - Deveis lutar contra ele. Tendes dinheiro suficiente?

 

Depois daquela conversa acerca do demónio, uma pergunta tão trivial sobre dinheiro surpreendeu Thomas.

 

- Se tenho dinheiro, Senhor?

 

- Se o demónio vos combate, meu rapaz, eu vou ajudar-vos e poucas coisas neste mundo ajudam mais do que o dinheiro. Tendes de levar a cabo uma busca, tendes viagens para terminar e precisais de dinheiro. Portanto, tendes suficiente?

 

- Não, meu senhor - respondeu Thomas.

 

- Permiti então que vos ajude - Lorde Outhwaite colocou um saco de moedas sobre um monte de pedras. - E talvez queirais levar companhia nessa vossa busca?

 

- Companhia? - perguntou Thomas ainda assombrado.

 

- Não sou eu! Não! Já estou muito velho! - Lorde Outhwaite soltou uma gargalhada. - Não. Mas confesso que gosto de William Douglas. O padre que julgo ter matado a vossa mulher também matou o sobrinho de Douglas e ele deseja vingança. Pediu, não implorou, que o irmão do rapaz morto seja autorizado a viajar convosco.

 

- Mas não se trata de um prisioneiro?

 

- Parece-me que sim, mas o jovem Robbie praticamente não vale qualquer resgate. Talvez consiga umas quantas libras por ele, mas nada que se compare à fortuna que tenciono extorquir ao tio. Não. Preferia que Robbie viajasse convosco. Quer encontrar o padre e o criado e julgo que vos pode ajudar - Lorde Outhwaite fez uma pausa e, ao ver que Thomas não respondia, insistiu no pedido. - Robbie é bom rapaz. Conheço-o, gosto dele, é capaz e segundo me disseram também é um bom soldado.

 

Thomas encolheu os ombros. Naquele momento não lhe importaria que metade da Escócia viajasse com ele.

 

- Ele pode vir comigo, Senhoria - disse. - Se eu tiver permissão para partir.

 

- Que quereis dizer? Permissão?

 

- Não tenho permissão para viajar. - Thomas falava em tom triste. O prior proibiu-me que deixasse a cidade e levou o meu cavalo. - Thomas encontrara o cavalo, que o padre Hobbe trouxera para Durham, atado ao portão do mosteiro.

 

Lorde Outhwaite soltou uma gargalhada.

 

- E obedecereis ao prior?

 

- Não posso dar-me ao luxo de perder um bom cavalo, senhor - respondeu Thomas.

 

- Eu tenho cavalos - disse Lorde Outhwaite, sem dar importância ao caso. - Incluindo dois belos cavalos escoceses que arranjei hoje. Amanhã de madrugada os mensageiros do arcebispo vão partir para sul para levar a Londres notícias deste dia. Serão acompanhados por três dos meus homens. Sugiro que vós e Robbie também os acompanheis. Assim chegareis ambos em segurança a Londres. E depois? Para onde ides?

 

- Vou à minha terra, Senhoria - disse Thomas. - A Hookton, à aldeia onde o meu pai viveu.

 

- E esse padre assassino não estará lá à vossa espera?

 

- Não sei dizer.

 

- Ele procurar-vos-á. Sem dúvida que há-de ter pensado em esperar-vos aqui, mas seria muito perigoso. Mesmo assim, quererá saber o que vós sabeis, Thomas, e vai atormentar-vos até o conseguir. Sir Geoffrey também. O maldito Espantalho tudo fará por dinheiro, mas suspeito que o padre seja mais perigoso.

 

- Devo então manter os olhos abertos e as setas afiadas?

 

- Eu seria mais esperto que isso - disse Lorde Outhwaite. - Sempre achei que se um homem vos persegue, será melhor que vos encontre num local da vossa escolha. Não vos deixeis emboscar, mas preparai-vos para o emboscar a ele.

 

Thomas aceitou a sabedoria daquele conselho, mas ao mesmo tempo parecia ter dúvidas.

 

- Como saberão para onde vou?

 

- Eu digo-lhes - declarou Lorde Outhwaite. - Ou melhor, quando o prior se queixar que lhe haveis desobedecido saindo da cidade, digo-lhe e os monges encarregar-se-ão de o fazer chegar a todos os ouvidos. Os monges são criaturas faladoras, por isso, meu rapaz, onde gostaríeis de enfrentar os vossos inimigos? Na vossa terra?

 

- Não, meu senhor - disse Thomas apressadamente e depois pensou alguns instantes. - Em La Roche-Derrien - continuou.

 

- Na Bretanha? - Lorde Outhwaite pareceu surpreendido. - Aquilo que buscais está na Bretanha?

 

- Não sei onde está, Senhoria, mas tenho amigos na Bretanha.

 

- Ah. E confio que já me considereis vosso amigo - empurrou a bolsa de moedas na direcção de Thomas. - Aqui tendes.

 

- Hei-de pagar-vos, Senhor.

 

- Podeis pagar-me - disse Sua Senhoria, pondo-se de pé - trazendo-me o tesouro para que eu o toque uma vez antes que vá para o rei - olhou para a catedral onde Sir Geoffrey se escondia. - Julgo que será melhor dormirdes esta noite no castelo. Tenho lá homens para manterem esse maldito Espantalho à distância. Vinde.

 

Sir Geoffrey Carr viu os dois homens afastarem-se. Não atacaria Thomas enquanto Lorde Outhwaite estivesse com ele, pois o Lorde era um homem poderoso; mas o Espantalho sabia que o poder vinha com o dinheiro e parecia que havia um tesouro à deriva no mundo, um tesouro que interessava o rei e que agora interessava também Lorde Outhwaite.

 

Assim, mesmo que o inferno ou o. diabo se lhe opusessem, o Espantalho tencionava encontrá-lo primeiro.

 

Thomas não ia para La Roche-Derrien. Mentira, mencionando a cidade, apenas porque a conhecia e porque não se importava que os seus perseguidores lá fossem parar, mas tencionava estar noutro local. Iria a Hookton ver se o pai tinha escondido aí o Graal e depois, como não esperava encontrá-lo, iria para França, pois era lá que o exército inglês mantinha o cerco de Calais, onde se encontravam os seus amigos e onde um arqueiro podia verdadeiramente arranjar trabalho. Os homens de Will Skeat estavam nas linhas do cerco e tinham mostrado desejo de que Thomas os chefiasse. Este sabia que seria capaz de o fazer. Poderia conduzir o seu próprio grupo de arqueiros e ser temido como Will Skeat. Pensou no assunto enquanto se dirigia para sul, embora não o fizesse consistentemente, nem com muita atenção. Estava demasiado obcecado com os pormenores das mortes de Eleanor e do padre Hobbe, e torturava-se com a recordação do seu último olhar para Eleanor e a lembrança desse olhar significava que via toda a região deformada pelas lágrimas.

 

Thomas deveria cavalgar para sul, com os homens que iam levar a Londres as notícias da vitória, mas não foi mais além do que Iorque. Deveria sair desta cidade de madrugada, mas Robbie Douglas tinha desaparecido. O cavalo do escocês estava ainda nos estábulos do Arcebispo e a sua bagagem no sítio do pátio em que ele a deixara, mas Robbie desaparecera. Por uns momentos Thomas sentiu-se tentado a deixar para trás o escocês, mas uma vaga sensação de dever obrigou-o a ficar. Ou talvez não ligasse muito à companhia dos homens-de-armas que cavalgavam com as suas triunfantes notícias. Assim, deixou-os ir e foi em busca do companheiro.

 

Encontrou o escocês de boca aberta a olhar para os ornamentos dourados do tecto da catedral.

 

- Já devíamos ter partido para o sul - disse Thomas.

 

- Sim - respondeu laconicamente Robbie, quase ignorando Thomas. Thomas esperou.

 

- Disse que já deveríamos ter partido para o sul - repetiu algum tempo depois.

 

- Pois devíamos - concordou Robbie. - Eu não vos impeço - acenou magnanimamente com o braço. - Ide!

 

- Haveis desistido da caça a De Taillebourg - perguntou Thomas. Soubera por Robbie o nome do padre.

 

- Não - Robbie tinha ainda a cabeça inclinada para trás e olhava a magnificência do tecto do transepto. - Hei-de encontrar esse bastardo e fazê-lo em postas.

 

Thomas pensou que seria melhor que De Taillebourg tivesse cuidado.

 

- Porque diabo estais aqui?

 

Robbie franziu a testa. Tinha uma cabeleira castanha encaracolada e um rosto desdenhoso que, à primeira vista, lhe davam um ar agarotado, embora uma observação mais atenta evidenciasse a força do seu maxilar e a dureza dos seus olhos. E foram esses olhos que voltou para Thomas.

 

- Aquilo que eu não suporto são esses malditos rapazes - disse. - Bastardos!

 

Passaram alguns instantes antes que Thomas compreendesse que ele se referia aos homens-de-armas que tinham sido seus companheiros na viagem de Durham até Iorque, os homens que tinham partido havia já duas horas pela estrada para Londres.

 

- O que têm eles?

 

- Havei-los ouvido ontem à noite? Haveis? - A indignação de Robbie estava ao rubro, atraindo a atenção de dois homens que sobre um andaime Pintavam o milagre do pão e dos peixes na parede da nave. - E na noite anterior? - continuou Robbie.

 

- Embriagaram-se - disse Thomas. - Mas nós também.

 

- A dizerem como tinham combatido na batalha! - disse Robbie. - E quem os ouvisse pensaria que nós tínhamos fugido!

 

- Vós haveis fugido! - disse Thomas. Robbie nem o ouviu.

 

- Quem os ouvisse pensaria que nem sequer tínhamos combatido! Estavam a gabar-se, mas nós quase vencemos. Haveis ouvido? - apontou um dedo agressivo ao peito de Thomas. - Quase vencemos e na boca daqueles bastardos parecíamos uns cobardes!

 

- Haveis perdido - disse Thomas.

 

Robbie olhou para Thomas como se não pudesse acreditar naquilo que estava a ouvir.

 

- Quase que vos obrigámos a fugir até meio caminho de Londres! Pusemo-vos a fugir! Até mijaram as calças! Quase que vencemos, pois! E esses bastardos a gabarem-se! A gabarem-se! Só me apetecia matá-los aos dois! - Uma dezena de pessoas juntara-se para os ouvir. Dois peregrinos que seguiam de joelhos até ao santuário que se encontrava por detrás do altar-mor olhavam para Robbie de boca aberta. Um padre franzia nervosamente o sobrolho, enquanto uma criança chupava no dedo e olhava espantada para o homem de cabelo encaracolado que gritava tão alto.

 

- Haveis ouvido - gritou Robbie. - Quase ganhámos! Thomas afastou-se.

 

- Para onde ides? - perguntou Robbie.

 

- Para sul - respondeu Thomas. Compreendia o embaraço de Robbie. Os mensageiros, levando as notícias da batalha não conseguiam resistir a enfeitar a história da luta quando eram recebidos num castelo ou num mosteiro e, assim, uma luta tão difícil e uma carnificina tão selvagem transformara-se numa vitória fácil. Não admirava que Robbie estivesse ofendido; mesmo assim, Thomas pouco se compadeceu. Voltou-se e apontou para o escocês.

 

- Deveríeis ter ficado em casa.

 

Robbie cuspiu em sinal de desprezo e depois apercebeu-se de que tinha público.

 

- Obrigámo-vos a fugir! - disse furioso. Depois deu um salto para apanhar Thomas. Sorriu e o seu rosto tornou-se de súbito atraente e encantador. - Não queria gritar convosco - disse. - Só estava zangado.

 

- Eu também - disse Thomas, mas a zanga era consigo próprio e estava misturada com remorsos e um desgosto que não diminuía quando os dois se dirigiram para sul. Metiam-se à estrada naquelas manhãs de pesado orvalho, cavalgavam pelas brumas do Outono, curvavam-se quando surgiam as bátegas de chuva e a quase cada passo da viagem Thomas pensava em Eleanor. Lorde Outhwaite prometera sepultá-la e mandar dizer missas pela sua alma, mas por vezes Thomas desejava poder partilhar a tumba com ela.

 

- Então, porque vos persegue De Taillebourg? - perguntou-lhe Robbie no dia em que partiram de Iorque. Falavam em inglês, pois embora Robbie pertencesse à nobre casa escocesa de Douglas, não falava francês. Durante algum tempo, Thomas nada disse e quando Robbie já pensava que ele não lhe responderia, soltou uma exclamação de desprezo.

 

- Porque o bastardo acredita que o meu pai possuía o Graal.

 

- O Graal? - Robbie fez o sinal da Cruz. - Ouvi dizer que estava na Escócia.

 

- Na Escócia? - replicou Thomas assombrado. - Sei que Génova afirma tê-lo. Mas a Escócia?

 

- E porque não? - perguntou Robbie irritado. - Olhai - continuou mais calmo. - Ouvi dizer que também há um em Espanha.

 

- Em Espanha?

 

- E se os espanhóis têm um - disse Robbie. - Os franceses também o terão, e parece-me que também os portugueses - encolheu os ombros e depois voltou a olhar para Thomas. - Então, vosso pai tinha outro?

 

Thomas não soube o que responder. O pai fora um homem caprichoso, louco, brilhante, difícil e torturado. Fora um grande pecador e também poderia ter sido um santo. O padre Ralph rira-se do fantástico alcance das superstições, troçara dos ossos de porco entregues pelos vendedores de indulgências como relíquias de santos, no entanto, tinha pendurado uma lança escurecida e torta nas traves da igreja, afirmando tratar-se da lança de São Jorge. Nunca mencionara o Graal a Thomas, mas desde a sua morte que este soubera que a história da sua família estava ligada a essa relíquia. Por fim, preferiu dizer a verdade a Robbie.

 

- Não sei. Simplesmente, não sei.

 

Robbie baixou a cabeça sob um ramo que se atravessava no caminho.

 

- Estais a dizer que é esse o verdadeiro Graal?

 

- Se existe - disse Thomas e mais uma vez se interrogou sobre se seria possível, desejando, ao mesmo tempo, que não o fosse. Porém, fora encarregado de o encontrar e procuraria o único amigo do pai, perguntar-lhe-ia sobre o Graal e quando recebesse a resposta esperada iria para França para se juntar aos arqueiros de Skeat. O próprio Will Skeat, seu antigo comandante e amigo, estava doente em Caen, sem que Thomas soubesse se ainda vivia, e se vivia, se falava, ouvia ou caminhava. Poderia sabê-lo enviando uma carta a Sir Guillaume d’Evecque, pai de Eleanor e Will, poderia receber um salvo-conduto em troca da libertação de alguns nobres franceses pouco importantes. Thomas pagaria a Lorde Outhwaite com dinheiro do saque ao inimigo e depois, disse para consigo, encontraria consolo na prática da sua arte, o arco e a matar os inimigos do rei. Talvez De Taillebourg viesse ter com ele e Thomas matá-lo-ia, como uma ratazana. Quanto a Robbie? Thomas apercebera-se de que gostava do escocês, mas não se importava se ele ficava ou partia.

 

Robbie apenas sabia que De Taillebourg procuraria Thomas e portanto ficaria ao lado do arqueiro até poder matar o dominicano. Não tinha outra ambição que não fosse vingar o irmão; era um dever de família.

 

- Quem toca num Douglas - disse a Thomas - é feito em postas. Esfolado vivo. É um feudo de família, entendeis?

 

- Mesmo que o assassino seja um padre?

 

- É ele ou o criado - declarou Robbie. - E o criado obedece ao amo: de qualquer modo o padre é o responsável e por isso morre. Corto-lhe a maldita garganta - cavalgou algum tempo em silêncio, depois sorriu. - Depois vou para o inferno, mas pelo menos haverá lá bastantes Douglas para me fazerem companhia - soltou uma gargalhada.

 

Levaram dez dias a chegar a Londres e, uma vez lá, Robbie fingiu não estar impressionado, como se a Escócia tivesse cidades daquelas dimensões em todos os vales, mas, algum tempo depois, desistiu e pôs-se a olhar assombrado para os grandes edifícios, para as ruas cheias de gente e as muitas bancas dos mercados. Thomas usou as moedas de Lorde Outhwaite para se alojarem numa taberna em Smithfield, fora das muralhas da cidade ao lado de um tanque para lavar cavalos e junto do relvado onde mais de trezentos comerciantes tinham as suas bancadas.

 

- E hoje nem sequer é dia de mercado? - perguntou Robbie, puxando pela manga de Thomas. - Olhai! - Um malabarista mantinha no ar meia-dúzia de bolas, nada havia de estranho, pois qualquer feira de aldeia mostraria o mesmo, mas aquele homem estava equilibrado sobre duas espadas, usando-as como andas, com os pés nus sobre as suas pontas. - Como faz ele aquilo?

- perguntou Robbie. - Olhai! - Um urso bailarino arrastava os pés ao som de uma flauta, mesmo por baixo de uma forca de onde pendiam dois cadáveres. Era aquele o local para onde traziam os criminosos de Londres e os mandavam rapidamente para o inferno. Os dois corpos estavam cobertos com correntes para que a carne podre não se soltasse dos ossos; o cheiro a podridão que deles emanava, misturava-se com o do fumo e o fedor do gado assustado que era trazido para ser vendido no relvado que se estendia desde a muralha de Londres ao priorado de São Bartolomeu, onde Thomas pagou a um padre para dizer algumas missas pelas almas de Eleanor e do padre Hobbe.

 

Thomas, tentando convencer Robbie que estava mais familiarizado com a cidade de Londres do que de facto estava, escolhera aquela taberna em Smithfield porque a sua tabuleta eram duas setas cruzadas. Era apenas a sua segunda visita à cidade e estava tão impressionado, confuso, assombrado e surpreendido como Robbie. Percorreram as ruas, olhando de boca aberta para as igrejas e para as casas dos nobres; Thomas usou parte do dinheiro de Lorde Outhwaite para comprar umas botas novas, bem como perneiras de pele de vitela, um casaco de pele de vaca e uma boa capa de lã. Sentiu-se tentado a levar também uma navalha francesa numa caixa de marfim mas, sem conhecer

o seu verdadeiro valor, teve receio de ser enganado; calculou que poderia roubar uma ao cadáver de um francês, quando chegasse a Calais. Preferiu pagar a um barbeiro que lhe fizesse a barba e, a seguir, vestido com as roupas novas, gastou o dinheiro que teria dado pela navalha numa mulher da taberna, deixando-se depois ficar deitado, com as lágrimas nos olhos, a pensar em Eleanor.

 

- Há alguma razão para que estejamos em Londres? - perguntou-lhe Robbie naquela noite.

 

Thomas terminou a cerveja e ordenou à jovem que lhe trouxesse mais.

 

- Fica no caminho para Dorset.

 

- É uma razão como qualquer outra.

 

Londres não ficava de facto no caminho de Durham a Dorchester, mas as estradas para a capital eram muito melhores do que as que cruzavam os campos, por isso era mais rápido viajar atravessando a grande cidade. Porém, passados três dias, Thomas percebeu que deveriam partir, e assim ele e Robbie dirigiram-se para ocidente. Ao passarem junto a Westminster Thomas pensou por um instante em visitar John Pryke, o capelão real enviado para o acompanhar a Durham, que adoecera ali em Londres e que se encontraria vivo ou morto na enfermaria da Abadia. Mas Thomas não tinha vontade de falar do Graal e portanto seguiu viagem.

 

O ar tornou-se mais limpo à medida que avançavam para o campo. Ainda não era seguro viajar por aquelas estradas, mas o rosto de Thomas estava tão sisudo que outros viajantes calculavam ser ele o perigo e não a presa. Tinha a barba por fazer, estava vestido de preto como era costume e a tristeza dos últimos dias tinha-lhe posto profundas rugas no seu rosto magro. Juntando o cabelo desgrenhado de Robbie, os dois pareciam vulgares vagabundos que percorressem as estradas, só que armados. Thomas levava a sua espada, arco e bolsa das flechas, enquanto Robbie tinha a espada do tio com a madeixa do cabelo de Santo André metida no punho. Sir William calculava poder dar pouco uso à espada nos dias seguintes, enquanto a família tentava juntar o enorme resgate, por isso emprestou-a a Robbie incitando-o a fazer bom uso dela.

 

- Pensais que De Taillebourg está em Dorset? - perguntou Robbie a Thomas, enquanto cavalgavam debaixo de um aguaceiro torrencial.

 

- Duvido.

 

- Então, porque vamos para lá?

 

- Porque ele poderá lá ir ter por fim - respondeu Thomas. - Ele e o seu maldito criado.

 

Nada sabia do criado, excepto aquilo que Robbie lhe tinha dito: que o homem era exigente, elegante, moreno e misterioso, mas Robbie nunca ouvira o seu nome. Thomas, achando difícil acreditar que um padre tivesse matado Eleanor, convencera-se de que o criado era o assassino e portanto Planeava fazê-lo sofrer em agonia.

 

Já a tarde ia longa quando passaram o portão oriental de Dorchester. Aí um guarda, assustado com as armas, invectivou-os, mas recuou quando Thomas lhe respondeu em francês. Sugeria tratar-se de um aristocrata, de modo que, de má vontade, o guarda deixou entrar os dois cavaleiros e ficou a olhar e a vê-los subir a rua leste, para passarem a Igreja de Todos-os-Santos e a cadeia do condado. As casas tinham um ar mais próspero à medida que se aproximavam do centro da cidade e, junto à Igreja de São Pedro, as residências dos mercadores de lã não pareceriam deslocadas em Londres. Thomas sentiu o cheiro a matadouro nas casas dos carniceiros, depois conduziu Robbie a Cornhill, passou a loja do fabricante de artigos de estanho que gaguejava e tinha um olho esbranquiçado; passaram depois por um ferreiro onde uma vez comprara setas. Conhecia a maioria daquelas pessoas. O Homem-Cão, um pedinte sem pernas que ganhara a alcunha porque lambia água do rio Cerne como um cão, descia a rua sul com os tacos de madeira amarrados às mãos. Dick Adyn, irmão do carcereiro da cidade, conduzia três ovelhas encosta acima e fez uma pausa para insultar alegremente Willie Palmer que estava a fechar a sua loja de malhas. Um jovem padre caminhava apressado por um beco, abraçado a um livro, evitando olhar para uma mulher que se agachava numa sarjeta. Uma rajada de vento fez baixar na rua uma coluna de fumo. Dorcas Galton, com o cabelo apanhado num carrapito, sacudia um tapete a uma janela do primeiro andar e ria-se de qualquer coisa que Dick Adyn havia dito. Falavam todos com o sotaque da região, suave, longo e sibilante como o do próprio Thomas, que quase parou o cavalo para falar com eles; porém Dick Adyn fitou-o e afastou rapidamente o olhar, enquanto Dorcas fechava a janela com toda a força. Robbie tinha um aspecto formidável e o ar de Thomas era também assustador, de modo que nenhum dos habitantes da terra o reconheceu como o filho bastardo do último padre de Hookton. Se se apresentasse haveriam de o reconhecer, mas a guerra mudara Thomas. Dera-lhe uma dureza que repelia os desconhecidos. Saíra de Dorset ainda rapaz, mas voltara como um dos importantes assassinos de Eduardo de Inglaterra e, quando abandonou a cidade pela porta sul, um guarda desejou-lhe a ele e a Robbie boa viagem, dizendo-lhes que não voltassem.

 

- Têm muita sorte em não irem os dois parar à cadeia! - gritou o homem, encorajado pela sua cota de malha municipal e a espada antiga. Thomas deteve o cavalo, voltou-se na sela e limitou-se a olhar para o guarda que subitamente encontrou uma razão para voltar para a ruela ao lado da porta. Thomas cuspiu e seguiu em frente.

 

- Não é esta a vossa terra? - perguntou Robbie sarcástico.

 

- Já não - disse Thomas, perguntando a si próprio qual era naquela altura a sua terra e por uma estranha razão veio-lhe sem querer à ideia La Roche-Derrien. Deu por si a recordar-se de Jeanette Chenier, na sua grande casa junto ao rio Jaudy e a recordação desse amor antigo fê-lo de novo sentir-se culpado em relação a Eleanor. - Onde é a vossa? - perguntou a Robbie em vez de continuar com aquelas recordações.

 

- Cresci perto de Langholm.

 

- Onde fica?

 

- Junto do rio Esk - disse Robbie. - Um pouco a norte da fronteira. É uma região dura, isso é. Não é nada disto.

 

- Esta região é agradável - disse Thomas suavemente. Ergueu os olhos para as altas muralhas verdes de Maiden Castle onde o diabo brincava na Véspera de Todos-os-Santos e onde os codornizões soltam os seus pios roucos. Havia amoras maduras nas sebes e, à medida que as sombras se alongavam, as crias das raposas saltitavam na beira dos campos. Algumas milhas mais adiante e quando a tarde já quase se transformara em noite, sentiu o cheiro do mar e pareceu-lhe que já o podia ouvir a subir e a descer na enseada de Dorset. Era a fantasmagórica hora do dia em que as almas dos mortos cintilavam no canto do olho dos vivos, quando a boa gente se apressava a ir para casa, para se sentar à lareira, debaixo dos telhados de colmo, pondo a tranca na porta. Um cão uivava numa das aldeias.

 

Thomas pensara cavalgar até Down Mapperley, onde Sir Giles Marriott, o fidalgo de Hookton e de outras aldeias, tinha o seu solar, mas era tarde e não lhe pareceu sensato lá chegar depois do escurecer. Além do mais, Thomas queria ver Hookton antes de falar com Sir Giles, de modo que voltou o seu cavalo cansado na direcção do mar e deixou Robbie à sombra do cabo de Lip Hill.

 

- Matei os primeiros homens sobre aquele monte - gabou-se.

 

- Com o arco?

 

- Quatro deles - disse Thomas. - Com quatro flechas. - Não era exactamente verdade, pois deveria ter atirado sete ou oito, talvez mais, mas ainda tinha matado quatro dos atacantes que tinham atravessado o canal para saquear Hookton. E agora encontrava-se profundamente imerso na luz do crepúsculo do vale de Hookton e via a curva da espuma branca da rebentação das ondas no crepúsculo enquanto cavalgava junto ao ribeiro até ao local onde o pai pregara e morrera.

 

Agora ninguém ali vivia. Os saqueadores tinham deixado a aldeia completamente morta. As casas tinham sido queimadas, o tecto da igreja caíra e os aldeãos tinham sido sepultados num cemitério sufocado por urtigas, silvas e cactos. Tinham passado quatro anos e meio desde que o grupo de salteadores havia atracado em Hookton conduzidos pelo primo de Thomas, Guy Vexille, conde de Astarac e pelo pai de Eleanor, Sir Guillaume d’Evecque. Thomas tinha matado quatro besteiros, o que representara o início da sua vida de arqueiro. Abandonara os seus estudos em Oxford e, até àquele momento, não mais havia regressado a Hookton.

 

- Era aí a minha terra - disse a Robbie.

 

- O que aconteceu?

 

- Chegaram os franceses - disse Thomas apontando para a escuridão do mar. - Vieram da Normandía.

 

- Jesus! - Robbie ficara estranhamente espantado. Sabia que as fronteiras de Inglaterra e da Escócia eram locais onde as casas eram queimadas, o gado roubado, as mulheres violadas e os homens assassinados, mas nunca pensara que aquilo também acontecesse no Sul. Deslizou do cavalo e dirigiu-se a um monte de urtigas onde tinha existido uma cabana. - Havia aqui uma aldeia?

 

- Uma aldeia de pescadores - respondeu Thomas e percorreu aquilo que outrora fora a rua onde tinham remendado as redes, enquanto as mulheres fumavam o peixe. A casa do pai era um monte de tábuas de madeira queimada, agora coberta de trepadeiras. As outras cabanas estavam na mesma, com o telhado de colmo e canas reduzido a cinza e a terra. Apenas a igreja a ocidente do ribeiro estava reconhecível, com as suas paredes sombrias abertas ao céu. Thomas e Robbie ataram os cavalos a pequenas aveleiras no cemitério, depois pegaram na bagagem e levaram-na para dentro da igreja em ruínas. Já estava demasiado escuro para a explorar, porém, Thomas não conseguia dormir e foi até à praia. Recordou aquele Domingo de Páscoa de manhã em que os navios normandos tinham fundeado na enseada e os homens tinham chegado a terra aos gritos, no meio da madrugada, com espadas e bestas, machados e fogo. Vinham em busca do Graal. Guy Vexille acreditava que poderia encontrá-lo na posse do seu tio e por isso o Harlequin tinha posto a aldeia de Hookton a ferro e fogo. Queimara-a, destruíra-a, mas partira de lá sem o Graal.

 

O ribeiro fazia um leve ruído ao serpentear dentro da enseada do Hook, para ir desaguar no mar imenso. Thomas sentou-se no Hook, envolvido na sua capa nova, com o enorme arco negro a seu lado. O capelão John Pryke falara do Graal no mesmo tom exaltado que o padre Hobbe usava quando falava dessa relíquia. O Graal, dizia o padre Pryke, não era apenas a taça pela qual Cristo tinha bebido vinho na Última Ceia, mas o recipiente para onde tinha escorrido o sangue de Cristo enquanto este morria na Cruz.

 

- Longinus - dissera o padre Pryke no seu tom excitado - era o centurião que se encontrava por baixo da Cruz e quando a espada tocou na dolorosa ferida, ergueu o prato para aparar o sangue!

 

Thomas gostaria de saber como seria possível que a taça que ficara na sala em que Jesus tomara a Última Ceia passara para as mãos de um centurião romano. E, ainda mais estranho, como teria chegado à posse de Ralph Vexille? Fechou os olhos balançando-se para trás e para diante, envergonhado da sua descrença. O padre Hobbe sempre lhe dissera que ele precisava ver para crer como São Tomé.

 

- Não deveis procurar explicações - repetira-lhe várias vezes o padre Hobbe. - O Graal é um milagre. Transcende as explicações.

 

- Cest une tasse magique - continuara Eleanor, acrescentando implicitamente a sua repreensão à do padre Hobbe.

 

Thomas desejava realmente acreditar que se tratava de uma taça mágica. Queria acreditar que o Graal existia para lá da visão humana, para lá do véu da descrença, uma coisa meio invisível, cintilante, maravilhosa, com luz pairando por cima e cintilando como um fogo pálido. Queria acreditar que um dia mostraria a sua substância e que dessa taça, que tinha contido o sangue de Cristo, fluiria a paz e a saúde. Mas se Deus queria que o mundo estivesse em paz e que a doença terminasse, porque esconderia o Graal? A resposta do padre Hobbe fora que a humanidade não era digna de possuir a taça, mas Thomas interrogava-se agora se seria verdade. Alguém seria digno? E se, por acaso, pensava Thomas, o Graal só tivesse magia para exagerar os defeitos e as virtudes daqueles que o procuravam. A busca do padre Hobbe tinha-se tornado mais santa, e mais malévola a do estranho padre com o seu escuro criado. Era como uma dessas lentes de cristal que os joelheiros usavam para ampliar o seu trabalho, só que o Graal ampliava o carácter. Thomas gostaria de saber o que revelaria do seu. Recordava-se da sua apreensão em relação à ideia de se casar com Eleanor; de súbito começou a chorar, com enormes soluços, mais do que já o tinha feito desde o assassínio da jovem. Balançava o corpo para trás e para diante, num desgosto tão profundo como o mar que batia na língua de terra; e era ainda pior por saber que era um pecador impenitente, com a alma condenada ao fogo do Inferno.

 

Sentia a falta da sua mulher, odiava-se, sentia-se vazio, só e condenado e assim, na aldeia morta de seu pai, chorou.

 

Mais tarde começou a chover, uma chuva forte que lhe ensopou a capa nova e gelou Thomas e Robbie até aos ossos. Tinham acendido uma fogueira que cintilava com o seu lume fraco dentro da velha igreja, assobiando sob a chuva e dando-lhes uma leve ilusão de calor.

 

- Há lobos aqui? - perguntou Robbie.

 

- Dizem que sim - respondeu Thomas. - Mas nunca vi nenhum.

 

- Em Eskdale temos lobos - disse Robbie. - À noite os seus olhos brilham vermelhos como fogo.

 

- Aqui há monstros marinhos - replicou Thomas. - Por vezes os seus corpos dão à costa e encontramos os seus ossos sobre os rochedos. Por vezes, até em dias calmos, os homens não voltavam da pesca e sabíamos que os monstros os tinham levado - estremeceu e fez o sinal da cruz.

 

- Quando o meu avô morreu - disse Robbie -, os lobos fizeram um círculo em redor da casa e puseram-se a uivar.

 

- A casa é grande?

 

Robbie pareceu surpreendido pela pergunta. Reflectiu por um momento e depois acenou afirmativamente.

 

- Sim - disse. - O meu pai é um lord.

 

- Um Lorde?

 

- Como um Lorde - respondeu Robbie.

 

- Não estava na batalha?

 

- Perdeu uma perna e um braço em Berwick, por isso nós, os filhos, temos de combater por ele - disse depois que era o mais novo de quatro.

- Agora somos só três - declarou fazendo o sinal da cruz e pensando em Jamie.

 

Mantiveram-se semi adormecidos, acordaram, estremeceram e, de madrugada, Thomas voltou ao Hook para ver nascer o novo dia cinzento ao longo do recorte do mar. Já não chovia, embora um vento frio agitasse o cimo das ondas. O cinzento transformara-se num branco doentio, depois prateado quando as gaivotas sobrevoaram a longa língua de terra, onde no cimo do banco do Hook encontrou os restos de quatro postes. Não os vira quando dali partira, mas, por baixo de um deles, meio enterrado nas pedras encontrava-se um bocado amarelado de um crânio e calculou que fosse um dos besteiros que matara com o seu enorme arco negro naquele Domingo de Páscoa. Quatro postes, quatro mortos; Thomas pensou que as quatro cabeças tivessem sido colocadas nos postes para olharem para o mar até que as gaivotas lhes debicassem os olhos e lhe retirassem a carne até que os ossos ficassem a descoberto nos crânios.

 

Ficou a olhar para a aldeia arruinada, mas não via ninguém. Robbie estava ainda dentro da igreja de onde saía uma leve coluna de fumo. De contrário, Thomas estava sozinho com as gaivotas. Nem sequer havia ovelhas, vacas ou cabras em Lipp Hill. Caminhou para o interior, com os pés a ranger na língua de terra, apercebendo-se depois de que ainda tinha na mão o osso quebrado do maxilar e atirou-o para o ribeiro, onde os porões dos barcos de pesca eram cheios de água para se verem livres das ratazanas. Em seguida, já com fome, foi buscar um bocado de queijo duro e pão escuro ao alforge que tinha deixado cair junto à porta da igreja. Agora que as podia ver bem à luz do dia, as paredes pareciam mais baixas do que aquilo que se recordava, provavelmente porque as pessoas da terra tinham vindo com carroças e levado as pedras para construir celeiros, pocilgas ou paredes de casas. Dentro da igreja havia apenas uma moita de espinhos, urtigas e alguns paus de madeira queimada que há muito estava coberta de erva.

 

- Quase me mataram aqui - disse a Robbie e descreveu-lhe como os assaltantes tinham partido a pontapé os painéis de osso da janela oriental e saltado para o cemitério. Recordou-se de como tinha amolgado o cálice de prata com o pé quando saltara sobre o altar.

 

Esse cálice de prata seria o Graal? A ideia fê-lo soltar uma gargalhada.

 

O cálice era uma taça de prata onde estava gravado o brasão dos Vexilles, que Thomas recortara e pregara no seu arco. Era tudo o que restava da antiga taça, que decerto não fora o Graal. O Graal era muito mais antigo, mais misterioso e muito mais assustador.

 

O altar desaparecera havia muito, mas sobre as urtigas do local onde existira, encontrava-se uma taça rasa de barro. Thomas pegou-lhe, afastando para o lado as plantas, recordando-se de que o pai a enchia de hóstias antes da missa e a cobria com um bocado de linho. Depois apressava-se a caminho da igreja, zangando-se se algum dos aldeões não tirava o chapéu ou não se curvava quando passava o sacramento. Thomas dera um pontapé na taça quando subira o altar para fugir aos franceses e ela ainda ali estava. Sorriu pesaroso, pensou em guardá-la, mas voltou a atirá-la para as urtigas. Os arqueiros deviam viajar com pouca bagagem.

 

- Vem aí alguém - avisou-o Robbie, correndo para ir buscar a espada do tio. Thomas pegou no arco e sacou uma flecha da bolsa, escutando depois o bater dos cascos e o ladrar dos cães. Dirigiu-se até às ruínas da porta e viu uma dúzia de cães de caça chapinhando no ribeiro com as línguas penduradas entre as presas; não tinha tempo para fugir deles, apenas para se encostar à parede enquanto os cães passavam por ele.

 

- Argos! Maera! Para trás! Olhem os modos! - gritava o cavaleiro aos cães, insistindo nas ordens fazendo estalar o chicote sobre as cabeças dos animais, mas estes rodeavam Thomas e saltavam sobre ele. Mesmo assim não pareciam ameaçadores: lambiam-lhe o rosto e abanavam as caudas. - Orthos! gritou o caçador a um dos cães e depois olhou para Thomas. Não o reconheceu, mas os animais sim, o que obrigou o caçador a fazer uma pausa.

 

- Jake! - disse Thomas.

 

- Valha-me Jesus Cristo! - respondeu Jake. - Doce Jesus! Olhem o que nos trouxe a maré. Orthos! Argos! Afastem-se, patifes, afastem-se! - O chicote estalou e os cães, ainda excitados, afastaram-se. - És Thomas, não é verdade?

 

- Como estás, Jake?

 

- Mais velho - resmungou Jake, descendo da sela, empurrando os cães e cumprimentando Thomas com um abraço. - Foi o maldito do teu pai que pôs o nome a estes cães. Pensou que fosse uma piada. É bom ver-te, rapaz!

 

- Jake tinha a barba grisalha, o rosto moreno como uma avelã e a pele marcada de passar inúmeras vezes pelos espinheiros. Era o monteiro-mor de Sir Giles Marriott e ensinara Thomas a disparar o arco, a perseguir um veado e a esconder-se em silêncio no mato. - Deus Todo-Poderoso me acuda, rapaz! - disse. - Como cresceste. Olha para o teu tamanho!

 

- Os rapazes crescem, Jake - disse Thomas, apontando para Robbie. É um amigo.

 

Jake acenou para o escocês e depois afastou os cães de Thomas. Os animais tinham sido baptizados com o nome dos cães do mito grego e ganiam excitados.

 

- Mas que diabo fazes tu aqui? - quis Jake saber. - Devias ter ido para a casa grande como todos os cristãos!

 

- Já cá chegámos muito tarde - explicou Thomas. - Queria ver como isto estava.

 

- Já não há nada que ver aqui - disse Jake com desprezo. - Apenas lebres.

 

- Andas agora à caça da lebre?

 

- Não trago dez trelas de cães para farejarem lebres, rapaz. Não. O filho de Lally Gooden viu-vos a espreitar ontem à noite e Sir Giles, mandou-me ver o que se passava. Houve um par de vagabundos que quiseram estabelecer-se por aqui na Primavera e tiveram de ser postos a andar. A semana passada andaram também por aí dois desconhecidos a espreitar.

 

- Desconhecidos? - perguntou Thomas, sabendo que Jake poderia muito bem querer dizer que os desconhecidos tinham vindo da freguesia vizinha.

 

- Um padre e o criado - disse Jake. - E, se não se tratassem de um padre, tinha-lhe atiçado os cães. Não gosto de desconhecidos, não vejo que interesse possam ter. Os vossos cavalos parecem ter fome. Querem pequeno-almoço, ou vão ficar aqui a fazer festas aos cães até que os matem com mimos?

 

Cavalgaram de regresso a Down Mapperly, seguindo os cães pela pequena aldeia. Thomas recordava-se que o local era grande, duas vezes maior do que Hookton e, quando era criança, pensara tratar-se quase de uma pequena cidade. Agora via como era pequena. Pequena e baixa, de tal forma que, montado a cavalo, ficava por cima das cabanas cobertas de colmo que lhe tinham parecido palácios quando era criança. Os montes de estrume ao lado de cada cabana chegavam ao telhado. A casa grande de Sir Giles Marriott, por trás da aldeia, tinha também um telhado de colmo e musgo que quase chegava ao solo.

 

- Sir Giles vai ficar contente por te ver - garantiu Jake.

 

E de facto ficou. Era já velho e viúvo, outrora temeroso da fogosidade de Thomas, mas que agora o recebia como um filho pródigo.

 

- Estás muito magro, rapaz. Muito magro. Não é bom para um homem ser magro. Querem os dois tomar o pequeno-almoço? Puré de ervilhas e cerveja fraca é o que temos. Ontem havia pão, mas hoje não há. Quando voltaremos a cozer pão, Gooden? - perguntou a um criado.

 

- Hoje é quarta-feira, senhor - disse o criado em tom de reprovação.

 

- Então é amanhã - disse Sir Giles a Thomas. - Amanhã há pão, mas hoje não. Dá azar cozer pão às quartas-feiras. O pão de quarta-feira é veneno. Devo ter comido o de segunda-feira. Haveis dito que sois escocês? - perguntou a Robbie.

 

- Sou sim, Senhoria.

 

- Pensava que todos os escoceses tinham barba - disse Sir Giles. Havia um escocês em Dorchester, não havia, Gooden? Lembras-te dele? Tinha barba. Tocava cítara e dançava muito bem. Deves lembrar-te dele.

 

- Era das ilhas Scilly - disse o criado.

 

- Foi o que eu acabei de dizer. Mas tinha barba, não é verdade?

 

- Tinha sim, Sir Giles. Uma barba grande.

 

- Aí está! - Sir Giles meteu na boca mais puré de ervilhas, a única coisa que podia comer com os dois últimos dentes que lhe restavam. Era gordo, de cabelo branco, com o rosto vermelho e pelo menos cinquenta anos de idade. - Já não posso andar a cavalo, Thomas - confessou. - Não presto senão para ficar aqui a olhar para o ar. Jake disse-te que andaram por aí uns desconhecidos?

 

- Disse, Senhoria.

 

- Um padre! Vestes negras e brancas como as de uma pega. Queria falar acerca do teu pai, mas eu disse-lhe que não havia nada de que falar. O padre Ralph morreu, disse eu, Deus lhe tenha a alma em descanso.

 

- O padre perguntou por mim, Senhoria? - quis saber Thomas. Sir Giles sorriu.

 

- Disse-lhe que não te via há muitos anos e que esperava nunca mais te voltar a ver e depois o criado perguntou onde te poderia procurar e eu disse-lhe que não deveria falar com os seus superiores sem autorização. Não gostou nada! - soltou uma gargalhada. - Depois a pega perguntou pelo teu pai e eu disse-lhe que mal o conhecia. Claro que menti, mas ele acreditou e partiu. Põe umas achas no fogo, Gooden. É capaz de me deixar morrer de frio na minha própria casa.

 

- Então o padre partiu, Senhor? - perguntou Robbie. Parecia-lhe pouco provável que De Taillebourg aceitasse uma mera negação e se fosse simplesmente embora.

 

- Ficou assustado com os cães - disse Sir Giles, ainda divertido. - Tinha aqui parte dos mastins e se ele não estivesse vestido de pega, tê-los-ia soltado, mas não costumo matar padres. Dá sempre problemas. O diabo vem sempre arranjar-nos sarilhos se matarmos um padre. Mas não gostei dele e disse-lhe que não sabia quanto tempo conseguiria manter os cães presos. Há presunto na cozinha. Queres presunto, Thomas?

 

- Não, Senhoria.

 

- Odeio o Inverno - Sir Giles olhou para o fogo, que já ardia alto na sua enorme lareira. A casa tinha enormes traves escurecidas que apoiavam a enorme expansão de colmo. Numa ponta, uma parede de madeira trabalhada escondia as cozinhas, enquanto os aposentos privados eram na outra ponta. Contudo, desde a morte da esposa, Sir Giles nunca mais usara os pequenos quartos e vivia, comia e dormia agora naquela sala junto ao fogo. - Julgo que este seja o último que passo neste mundo, Thomas.

 

- Espero que não, Senhoria.

 

- Como queiras, mas não vou chegar ao fim dele. Espera que venha o gelo. É impossível aquecer nessa altura, Thomas. O frio morde-nos a medula e não me agrada. O teu pai também não gostava - olhava agora para Thomas. - O teu pai sempre disse que tu partirias. Não para Oxford. Sabia que não te agradaria ir para lá. Era como meter um corcel entre varais, costumava ele dizer. Sabia que haverias de fugir para ser soldado. Sempre disse que tinhas sangue selvagem - Sir Giles sorriu, ao recordar-se. - Mas também disse que um dia voltarias para casa. Disse que voltarias para lhes mostrares como te tinhas transformado num belo rapaz.

 

Thomas sentiu os olhos marejados de lágrimas. O pai teria realmente dito aquilo?

 

- Desta vez regressei - disse ele - para vos fazer uma pergunta, Senhor. A mesma pergunta, julgo eu, que o padre francês vos tenha querido fazer.

 

- Perguntas! - resmungou Sir Giles. - Nunca gostei de perguntas. São precisas respostas, sabes? Claro que queres presunto! Não? Como não? Gooden, pede à tua filha que desembrulhe esse presunto, por favor.

 

Sir Giles pôs-se de pé e arrastou-se pela sala até uma grande arca de carvalho polido. Ergueu a tampa e, gemendo com o esforço de se ter curvado, começou a remexer por entre as roupas e as botas que estavam lá dentro.

 

- Thomas, já descobri que não preciso de perguntas - continuou. - Sento-me no tribunal desta região de duas em duas semanas e sei se são culpados ou inocentes assim que os réus são trazidos para a sala! Sabes que temos de fingir que não é assim, não é verdade? Vamos lá ver onde está isto. Ah!

- encontrou aquilo que procurava e trouxe-o para a mesa. - Pronto, Thomas, está aqui a resposta à tua maldita pergunta - empurrou a trouxa sobre a mesa.

 

Era um pequeno objecto embrulhado num saco velho. Thomas teve um absurdo pressentimento de que se tratava do próprio Graal e ficou ridiculamente desapontado ao descobrir que o embrulho continha um livro. A capa era de couro macio quatro ou cinco vezes mais grossa do que as folhas e servia para envolver o volume que, conforme Thomas viu ao abri-lo, estava escrito na caligrafia do pai. Porém, como tinha sido escrito pelo pai, nada do que lá estava era directo. Thomas folheou-o rapidamente, descobrindo notas escritas em latim, grego e numa estranha escrita que pensou tratar-se de hebreu. Voltou à primeira página onde havia apenas três palavras escritas e, quando as leu, sentiu gelar-se-lhe o sangue. Cálix meus inebrians.

 

- É esta a tua resposta? - perguntou Sir Giles.

 

- Sim, Senhor.

 

Sir Giles espreitou a primeira página.

 

- Isso é latim, não é verdade?

 

- Sim, Senhor.

 

- Bem me parecia. Claro que fui espreitar, mas não percebi nada e não quis perguntar a Sir John - Sir John era o padre de São Pedro em Dorchester - ou àquele homem de leis, aquele que se baba quando fica nervoso. Fala latim ou diz que fala. O que significa?

 

- ”O meu cálice embriaga-me” - respondeu Thomas.

 

- ”O meu cálice embriaga-me!” - Sir Giles pensou que aquilo era esplendidamente engraçado. - Olha, o teu pai estava completamente louco. Um bom homem, um bom homem, mas valha-me Deus! ”O meu cálice embriaga-me!”

 

- Pertence a um dos salmos - disse Thomas, passando à segunda página que estava escrita naquilo que pensava ser hebreu, embora houvesse qualquer coisa de estranho. Um dos símbolos recorrentes era semelhante a um olho humano, coisa que Thomas nunca antes vira na escrita hebraica. Para falar verdade, pouca coisa vira escrita em hebreu. - Pertence a um salmo, Senhoria - continuou. - Aquele que começa por dizer que o Senhor é nosso pastor.

 

- Meu não é - resmungou Sir Giles. - Não sou ovelha de ninguém.

 

- Eu também não, Senhoria - declarou Robbie.

 

- Ouvi dizer que o rei da Escócia tinha sido feito prisioneiro - prosseguiu Sir Giles, olhando para Robbie.

 

- Terá sido, Senhor? - perguntou Robbie com ar inocente.

 

- Provavelmente não passa de um absurdo - replicou Sir Giles, começando depois a contar uma longa história acerca de ter encontrado um escocês barbudo em Londres, mas Thomas não o ouviu, imerso nas páginas do livro que pertencera ao pai. Sentia uma espécie de estranho desapontamento, pois o livro sugeria que a busca do Graal era justificada. Queria que alguém dissesse que era um disparate, que o libertasse daquela taça, mas o pai levara o assunto a sério quando escrevera o livro. Porém, Thomas recordou a si próprio que o pai era louco.

 

Mary, a filha de Gooden, trouxe o presunto. Thomas conhecia Mary desde que ambos eram crianças e tinham brincado nas poças de água. Sorriu ao cumprimentá-la e reparou que Robbie a olhava como se se tratasse de uma aparição surgida do céu. Tinha cabelo comprido e negro, uma boca carnuda e Thomas estava certo de que Robbie descobriria alguns rivais em Down Mapperly. Esperou até Mary ter saído e depois segurou no livro.

 

- O meu pai alguma vez falou convosco acerca deste livro, Senhoria?

 

- Ele falava de tudo - respondeu Sir Giles. - Falava como uma mulher, era o que era. Nunca se calava! Era amigo do teu pai, Thomas, mas nunca fui homem de religião. Se falava demasiado a esse respeito, eu adormecia. Ele gostava - Sir Giles fez uma pausa para cortar uma fatia de presunto. - Mas o teu pai era maluco.

 

- Pensais que isto se trata de loucura, Senhoria? - Thomas ergueu de novo o livro.

 

- O teu pai era louco por Deus, mas não era estúpido. Nunca conheci um homem tão sensato e sinto muito a falta dele. Sinto a falta dos seus conselhos.

 

- Esta rapariga trabalha aqui? - perguntou Robbie fazendo um gesto para o biombo atrás do qual Mary desaparecera.

 

- Desde que nasceu - disse Sir Giles. - Lembras-te de Mary, Thomas?

 

- Quando éramos pequenos, tentei afogá-la - respondeu Thomas. Folheou de novo o livro do pai, embora não tivesse tempo para perceber o significado do emaranhado de palavras.

 

- Sabeis o que isto é, não é verdade, Senhoria?

 

Sir Giles fez uma pausa e depois acenou com a cabeça.

 

- Sei, Thomas, que muitos homens querem aquilo que o teu pai afirmava possuir.

 

- Então disse o que era? Nova pausa.

 

- Mais ou menos - respondeu pesadamente Sir Giles. - E eu não te invejo.

 

- A mim?

 

- Porque ele deu-me esse livro, Thomas, e disse-me que se alguma coisa lhe acontecesse eu deveria guardá-lo até teres idade suficiente e seres um homem para levar a cabo essa tarefa. Foi isso que me disse. - Sir Giles olhou para Thomas e viu estremecer o filho do amigo. - Mas se quereis os dois ficar mais algum tempo - continuou - sereis muito bem-vindos. Jake Churchill precisa de ajuda. Disse-me que nunca tinha visto tantos raposinhos e se não matarmos alguns, no próximo ano teremos um massacre entre as ovelhas.

 

Thomas olhou para Robbie. O dever de ambos era encontrar De Taillebourg e vingar as mortes de Eleanor, do padre Hobbe e do irmão de Robbie, mas era pouco provável, pensou, que o dominicano voltasse ali. Porém, via-se que Robbie desejava realmente ficar: Mary Gooden encarregara-se disso. E Thomas estava cansado. Não sabia onde procurar o padre, portanto a oportunidade de ficar naquela casa era-lhe agradável. Teria a oportunidade de estudar o livro e, assim, seguir o pai pelo tortuoso caminho do Graal.

 

- Ficaremos, Senhoria - disse Thomas. Por algum tempo.
Era a primeira vez que Thomas vivia como um senhor. Talvez não como um grande senhor, como um conde ou como um duque com dezenas de homens às suas ordens, mas, mesmo assim, com privilégios, instalado na casa grande - mesmo que a casa grande fosse de madeira com telhado de colmo e chão de terra batida. Podia passar os dias agradavelmente, enquanto as outras pessoas trabalhavam duramente a cortar lenha, a tirar água dos poços, a mungir vacas a amassar e a lavar roupa. Robbie estava mais habituado, mas achava que a vida era muito mais fácil em Dorset.

 

- De onde eu venho - dizia - há sempre uns malditos invasores ingleses a descer os montes para roubar o gado ou levar os nossos cereais.

 

- Ao passo que vós - disse Thomas - nunca haveis pensado em cavalgar para o sul e roubar aos ingleses.

 

- Porque haveria eu de pensar em tal coisa? - perguntou Robbie a sorrir. Por isso, quando o Inverno desceu sobre a terra, caçaram na terra de Sir Giles Marriott para tornar os campos seguros para a época dos carneiros e para trazer de novo a caça para a mesa de Sir Giles; beberam nas tabernas de Dorchester e riram-se com os actores que tinham vindo para a feira de Inverno. Thomas encontrou alguns amigos e contou-lhes histórias engraçadas da Bretanha, da Normandia e da Picardia, umas verdadeiras, outras não, e ganhou a seta de ouro na competição de tiro ao arco da feira. Apresentou-a a Sir Giles que a pendurou na sala e declarou ser o trofeu mais belo que já alguma vez vira.

 

- O meu filho disparava muito bem. Muito bem. Gostaria de pensar que poderia ter sido ele a ganhar o troféu.

 

O único filho de Sir Giles morrera de uma febre e a sua única filha estava casada com um cavaleiro que tinha as suas terras no Devon. Sir Giles não gostava nem da filha nem do genro.

 

- Herdarão os bens quando eu morrer - disse a Thomas. - Portanto, tu e Robbie podem gozá-los à vontade.

 

Thomas convenceu-se de que não estava a ignorar a busca do Graal, pois passava horas a estudar o livro do pai. As páginas eram de pergaminho espesso, caro e invulgar, que mostrava bem a importância que aquelas notas tinham tido para o padre Ralph, apesar de tão pouco sentido fazerem para Thomas. Grande parte do livro eram histórias. Uma falava de um cego que ao acariciar a taça, recebera o dom da vista, mas depois, desapontado com o aparecimento do Graal, voltara a perdê-lo. Outra contava como um guerreiro mouro tentara roubar o Graal e fora transformado numa serpente pela sua impiedade. A mais longa história do livro era acerca de Persival, um cavaleiro da antiguidade que partira numa cruzada e descobrira o Graal no túmulo de Cristo. Dessa vez a palavra latina utilizada para descrever o Graal era crater, que significa taça, enquanto noutras páginas era cálix, um cálice e Thomas gostaria de saber se a distinção teria algum significado. Se o pai tivesse possuído o Graal, saberia se se tratava de uma taça ou de um cálice? Talvez não houvesse uma verdadeira diferença. Não importava, a longa história contava como a taça tinha ficado sobre uma prateleira no túmulo de Cristo, à vista desarmada de todos os que entravam no sepulcro, fossem eles peregrinos cristãos ou os seus inimigos pagãos. Porém, o Graal só foi visto quando Sir Persival entrou de joelhos na gruta, pois este era um homem recto e portanto digno de ter os olhos abertos. Sir Persival retirou o Graal, trazendo-o para a Cristandade, onde planeava construir um santuário digno do tesouro, mas, segundo a história laconicamente contava, ”morrera”. O pai de Thomas escrevera esta abrupta conclusão: ”Sir Persival era conde de Astarac e era conhecido por outro nome. Casou com uma Vexille.”

 

- Sir Persival! - Sir Giles estava impressionado. - Era então membro da tua família? O teu pai nunca mo disse. Pelo menos que eu saiba. Adormecia a meio de quase todas as suas histórias.

 

- Dantes ele escarnecia destas histórias - disse Thomas.

 

- Geralmente troçamos daquilo de que temos medo - observou sentenciosamente Sir Giles. De súbito sorriu. - Jake contou-me que apanhaste aquele velho raposo nas Cinco Marias. As Cinco Marias eram antigos montes de sepulturas que as pessoas da terra diziam ter sido cavadas por gigantes e Thomas nunca entendera por que razão os montes eram seis.

 

- Não estava lá - disse Thomas -, mas sim por detrás da White Nothe.

 

- Por trás da White Nothe? Lá em cima nos rochedos? - Sir Giles olhou para Thomas e depois riu-se. - Seus patifes! Haveis estado nas terras de Holgate! - Sir Giles que sempre se queixara insistentemente nos tempos em que Thomas caçara furtivamente nas suas terras, achava agora extremamente divertido fazer o mesmo nas do vizinho. - Holgate parece uma velha. Então? Já te entendeste com esse livro?

 

- Quem me dera - respondeu Thomas, olhando para a palavra ”Astarac”. Apenas sabia que Astarac era um feudo ou uma região no Sul de França, onde vivera a família Vexille antes de ter sido declarada rebelde e herege. Também sabia que Astarac era perto, das terras dos Cátaros, o suficiente para terem contagiado os Vexilles, e quando cem anos antes o rei francês e a verdadeira igreja queimaram os hereges e lhes tiraram as terras, obrigaram também os Vexilles a fugir. Seria então o lendário Sir Persival um Vexille? Thomas tinha ideia de que quanto mais penetrava no mistério, mais este se emaranhava.

 

- Alguma vez o meu pai vos falou de Astarac, Senhor? - perguntou a Sir Giles.

 

- Astarac? O que é isso?

 

- O local de onde vem a minha família.

 

- Não. Ele cresceu no Cheshire. Foi o que sempre disse.

 

Mas o Cheshire fora meramente um refúgio, um local para se esconder da Inquisição: seria aí que estava escondido o Graal? Thomas voltou a página e descobriu um longo texto descrevendo como uma coluna de salteadores tinha tentado atacar a torre de Astarac e tinham sido repelidos pela visão do Graal. ”Ofuscou-os”, escrevera o padre Ralph. ”Por isso 364 foram esquartejados.”

 

Outra página relatava que era impossível um homem dizer uma mentira, enquanto tivesse a sua mão sobre o Graal, ”de contrário seria morto como que por um raio”. Uma mulher estéril passaria a poder ter filhos afagando o Graal e se um homem bebesse dele numa Sexta-Feira Santa nunca avistaria ”aquela que teria por esposa no céu”. Outra história contava como um cavaleiro, transportando o Graal pelo deserto, fora perseguido por pagãos e, quando parecia ter sido apanhado, Deus enviou-lhe uma enorme águia para o erguer a ele, ao cavalo e ao precioso Graal no ar, deixando os seus perseguidores a uivar de frustração e raiva.

 

Havia copiada uma expressão em várias páginas do livro: transfer calicem istem a me e Thomas sentia a tristeza e a frustração do pai através da repetição daquelas palavras. ”Afasta de mim este cálice”, as palavras eram as mesmas que Cristo dissera no Jardim de Getsémani quando implorara a Deus Pai que lhe poupasse a dor de morrer na Cruz. A frase estava por vezes escrita em grego, língua que Thomas estudara mas nunca dominara completamente; conseguia decifrar grande parte do texto grego, mas o hebreu continuava um mistério.

 

Sir John, o idoso vigário de São Pedro concordou tratar-se de uma estranha forma da língua hebraica.

 

- Já me esqueci de todo o hebreu que aprendi - disse a Thomas. - Mas não me recordo de ver uma letra assim! - Apontou para o símbolo que parecia um olho humano. - Muito estranho, Thomas, muito estranho. É quase hebreu - fez uma pequena pausa para logo se lamentar. - Se ao menos o pobre Nathan ainda cá estivesse.

 

- Nathan?

 

- Foi antes de teres nascido, Thomas. Nathan apanhava sanguessugas e mandava-as para Londres. Lá os físicos apreciavam as sanguessugas de Dorset, sabias? Mas, claro, Nathan era judeu e partiu com os outros - os judeus tinham sido expulsos de Inglaterra havia quase cinquenta anos, um acontecimento ainda fresco na memória do padre. - Nunca ninguém soube onde ele encontrava as sanguessugas - continuou Sir John. - Por vezes interrogo-me se não lhes poria uma maldição - franziu a testa para o livro. - Pertencia ao teu pai?

 

- Pertencia.

 

- Pobre padre Ralph - disse Sir John, insinuando que o livro deveria ser um produto da loucura. Fechou o volume e envolveu cuidadosamente as páginas na capa de couro.

 

Não havia sinais de De Taillebourg, nem notícias dos amigos de Thomas na Normandia. Escreveu uma carta difícil a Sir Guillaume dizendo-lhe que a filha morrera e pedindo-lhe novas de Will Skeat, pois Sir Guillaume tinha-o conduzido a Caen para ser tratado por Mordecai, o físico judeu. A carta foi para Southampton e daí para Guernsey, com a garantia de que seguiria para a Normandia, mas como não recebesse resposta até ao Natal, partiu do princípio de que se extraviara. Thomas escreveu também a Lorde Outhwaite, garantindo a Sua Senhoria que estava a ser assíduo na sua busca e relatando algumas histórias do livro do seu pai.

 

Lorde Outhwaite enviou uma resposta em que felicitava Thomas pelo que tinha descoberto, relatando a seguir que Sir Geoffrey Carr partira para a Bretanha com meia-dúzia de homens. Contava também que, segundo os boatos, as dívidas do Espantalho eram maiores que nunca, ”e talvez seja essa a razão da sua partida para a Bretanha”. Não era apenas a esperança de pilhagem que levara o Espantalho a La Roche Derrien, mas sim a lei que dizia que um devedor não era obrigado a fazer os pagamentos enquanto estivesse no estrangeiro a servir o Rei. ”Ireis atrás do Espantalho?”, perguntava, Lorde Outhwaite e Thomas enviou uma resposta dizendo que estaria em La Roche Derrien quando Lorde Outhwaite lesse aquelas palavras, mas afinal nada fez para sair de Dorset. Era Natal, disse para consigo, e sempre apreciara essa época do ano.

 

Sir Giles celebrava os doze dias da festa em grande estilo. Não comia carne desde o Domingo do Advento, o que não era um sacrifício particularmente difícil pois adorava enguias e outro tipo de peixe mas, na Véspera de Natal, comia apenas pão, preparando-se para a primeira refeição das festas. Eram trazidas para a sala doze colmeias vazias para serem decoradas com ramos de hera e azevinho; sobre a mesa era colocada uma enorme vela capaz de se manter acesa durante todo o período de festas e, na lareira, ficava a arder um enorme tronco. Sir Giles e os vizinhos eram convidados para beber vinho e cerveja e comer carne de vaca, javali, veado, ganso e porco de mato. A taça dos brindes, cheia de vinho clarete, quente e aromático, era passada de mão em mão pela sala e, tal como acontecia todos os Natais, Sir Giles chorava pela mulher e adormecia embriagado quando as velas se apagavam. Na quarta noite do Natal, Thomas e Robbie juntaram-se aos actores que, disfarçados de fantasmas, gnomos e selvagens, andavam pela freguesia extorquindo fundos para a igreja. Seguiram até Dorchester, meteram-se em mais duas freguesias e arranjaram uma briga com dois valdevinos de Todos-os-Santos. Terminaram a noite na cadeia de Dorchester, da qual foram soltos por um divertido George Adyn que lhes levou um jarro de cerveja e uma das famosas empadas de porco feitas pela mulher. Na festa da Noite de Reis foi um javali caçado por Thomas e, depois de o terem comido e quando os convidados já estavam quase todos embriagados e saciados, deitados sobre os juncos, começou a nevar. Thomas ficou à porta a ver os flocos rodopiarem à luz cintilante dos archotes.

 

- Temos de partir em breve - Robbie tinha vindo ter com ele.

 

- Partir?

 

- Temos um trabalho a fazer - disse o escocês.

 

Thomas sabia que era verdade, mas não queria ir-se embora.

 

- Pensei que vos sentíeis feliz aqui.

 

- E sinto - disse Robbie. - Sir Giles é mais generoso do que aquilo que eu mereço.

 

- E então?

 

- É Mary - disse Robbie. Estava embaraçado e não terminou.

- Está grávida? - arriscou Thomas.

 

Thomas persignou-se.

- Parece que sim.

Thomas fixou os olhos na neve que caía.

 

- Se lhe deres o suficiente para um dote - disse- contentar-se-á.

 

- Restam-me apenas três libras - disse Robbie.

O tio, Sir William, tinha-lhe dado uma bolsa com o que deveria ser dinheiro suficiente para um ano.

 

- Deve bastar - disse Thomas.

A neve rodopiou com uma rajada de vento.

 

- Vou ficar sem nada! - protestou Robbie.

 

- Deveríeis ter pensado nisso antes de meterdes o arado no campo disse Thomas, recordando-se de que se tinha encontrado exactamente na mesma situação com uma rapariga em Hookton. Voltou para a casa onde os músicos tocavam harpa e flauta para os bêbados.

- Devíamos ir - continuou. - Mas não sei bem para onde.

 

- Haveis dito que queríeis ir para Calais. Thomas encolheu os ombros.

 

- Pensais que De Taillebourg nos vai lá procurar?

 

- Penso que assim que ele souber desse vosso livro, há-de querer seguir-vos até ao inferno - respondeu Robbie.

 

Thomas sabia que Robbie tinha razão, mas o livro não lhe estava a dar grande ajuda. Nunca dissera exactamente que o padre Ralph possuía o Graal, nem descrevia o local onde poderia ser encontrado. Thomas e Robbie tinham-no procurado. Tinham vasculhado todas as grutas marinhas nos rochedos junto de Hookton, onde haviam encontrado destroços, moluscos e algas. Não havia qualquer taça escondida naquela língua de terra. Portanto para onde haveriam de ir? Onde haveriam de procurar? Se Thomas fosse para Calais, poderia então juntar-se ao exército, mas duvidava que De Taillebourg o procurasse no meio da soldadesca inglesa. Talvez, pensava, devesse voltar à Bretanha e bem sabia que não era nem a necessidade de enfrentar De Taillebourg que o atraíam a La Roche-Derrien, mas sim a esperança de que Jeanette Chenier tivesse regressado. Pensava nela muitas vezes, no seu cabelo negro, no seu corajoso espírito de desafio e sempre que o fazia sentia remorsos por causa de Eleanor.

 

A neve não durou muito. Descongelou, quando uma chuva forte vinda de oeste açoitou a costa de Dorset. Um enorme navio inglês naufragou nos rochedos de Chesil, de modo que Thomas e Robbie levaram uma das carroças de Sir Giles até à praia e, com a ajuda de Jack Churchill e de dois dos seus filhos, combateram contra uma dezena de homens para salvar seis fardos de lã para os transportarem para Down Mapperley e apresentarem a Sir Giles que assim obteve num só dia todo o rendimento de um ano inteiro.

 

Na manhã seguinte o padre francês chegou a Dorchester.

 

As novas foram trazidas por George Adyn.

 

- Sei porque nos haveis dito que procurássemos estrangeiros - disse a Thomas. - E este é mesmo estrangeiro. Está vestido de padre, mas quem sabe? Parece mais um vagabundo. Basta dizerdes e tratamos-lhe da saúde antes de o mandarmos para Shaftesbury.

 

- Que lhe farão aí? - perguntou Robbie.

 

- Dão-lhe outra sova e mandam-no de volta - respondeu George.

 

- É dominicano? - perguntou Thomas.

 

- Como hei-de saber? Só diz disparates. Não fala como um cristão.

 

- De que cor é o hábito?

 

- Negro, claro.

 

- Vou falar com ele - disse Thomas.

 

- Só diz disparates. Meu Senhor! - o cumprimento foi dirigido a Sir Giles e Thomas teve então de aguardar que os dois homens discutissem a saúde de vários primos, sobrinhos e outros parentes e era quase meio-dia quando Robbie se dirigiu a Dorchester. Pela milésima vez, Thomas pensou que deveria ser um prazer viver naquela bela cidade.

 

O padre foi trazido para o pátio da prisão. O dia estava bonito. Dois melros saltitavam ao longo do muro superior e um acónito florescia num canto. O padre era um rapaz, com o nariz esborrachado, olhos protuberantes e cabelo negro e espetado. Usava um hábito tão velho, rasgado e manchado que não admirava que os guardas o tivessem considerado um vagabundo; um engano que indignara o jovem sacerdote.

 

- É assim que os ingleses tratam os servidores de Deus? O inferno é bom de mais para vós, ingleses! Direi ao bispo, que contará ao arcebispo, que por sua vez haverá de informar o Santo Padre e sofrereis um anátema! Sereis todos excomungados!

 

- Vedes o que eu dizia? - perguntou George Adyn. - Ladra como um raposo, mas não se percebe nada.

 

- Está a falar francês - disse Thomas. - Qual é o vosso nome? - perguntou ao padre.

 

- Quero falar com o bispo. Já!

 

- Qual é o vosso nome?

 

- Trazei aqui o vosso padre!

 

- Primeiro dou-vos um soco nas orelhas - disse Thomas. - Qual é o vosso nome?

 

Chamava-se padre Pascal e suportara até ali uma viagem de um extremo desconforto, atravessando os mares de Inverno desde a Normandia de um local a sul de Caen. Viajara primeiro até Guernsey e depois até Southampton, de onde viajara sempre a pé e sem saber falar inglês. A Thomas parecia um milagre que o padre Pascal ali tivesse chegado. E mais miraculoso ainda porque tinha sido enviado de Evecque a Hookton, com uma mensagem para Thomas.

 

Sir Guillaume d’Evecque enviara-lha, ou antes, o padre Pascal apresentara-se como voluntário para fazer a viagem que era urgente, pois trazia um pedido de ajuda. Evecque estava cercada.

 

- É terrível! - disse o padre Pascal já mais calmo e aplacado, junto à lareira dos Three Cocks onde comia ganso e bebia bragget, uma mistura de hidromel morno e cerveja preta. - Está cercado pelo conde de Coutances. O conde!

 

- Porque é assim tão terrível? - perguntou Thomas.

 

- Porque o conde é seu suserano! - exclamou o padre e Thomas compreendeu por que razão o padre Pascal dissera que era terrível. As terras de Sir Guillaume eram um feudo do conde e declarando guerra ao seu próprio vassalo, este declarava ser Sir Guillaume um fora-da-lei.

 

- Mas porquê?

 

O padre Pascal encolheu os ombros.

 

- O conde diz que é por causa do que aconteceu na batalha. Sabeis o que aconteceu na batalha?

 

- Sei - respondeu Thomas e como, de qualquer forma, estava a traduzir para Robbie, tinha de explicar. O padre referia-se à batalha que tivera lugar no Verão anterior na floresta de Crécy. Sir Guillaume estivera no exército francês mas, no meio do combate, avistara o seu inimigo Guy de Vexille e voltara os seus homens de armas contra as tropas deste último.

 

- O conde diz que se trata de traição - explicou o padre. - E o rei deu-lhe a sua bênção.

 

Thomas ficou em silêncio por algum tempo.

 

- Como sabíeis que eu aqui estava? - perguntou por fim.

 

- Haveis enviado uma carta a Sir Guillaume.

 

- Nunca pensei que a tivesse recebido.

 

- Claro que a recebeu. O ano passado. Antes de surgirem os problemas. Sir Guillaume estava com problemas, mas, segundo o padre Pascal, o seu solar em Evecque era feito de pedra e protegido por um fosso e até aí fora impossível ao conde de Coutances ultrapassá-lo ou chegar aos muros; porém, o conde tinha dezenas de homens enquanto na guarnição de Sir Guillaume havia apenas nove.

 

- Também lá estão algumas mulheres - o padre Pascal partiu uma perna de ganso com os dentes -, mas essas não contam.

 

- Tem provisões?

 

- Muitas. E o poço é bom.

 

- Então consegue resistir durante algum tempo? O padre encolheu os ombros.

 

- Talvez sim, talvez não. Ele acha que sim, mas que sei eu? E o conde tem uma máquina, um... - franziu o sobrolho, tentando encontrar a palavra.

 

- Um fundíbulo?

 

- Não, não, uma catapulta! - Uma catapulta era como uma enorme besta que lançava um gigantesco virote. O padre Pascal arrancou o último bocado de carne do osso. - É muito lenta e uma vez partiu-se. Mas arranjaram-na. Esmigalha uma parede. Oh, e o vosso amigo está lá - resmungou com a boca cheia.

 

- O meu amigo?

 

- Skeat, não é esse o nome dele? Está lá com o físico. Já fala e consegue andar. Está muito melhor, sabeis? Mas não reconhece as pessoas a não ser que elas falem.

 

- A não ser que elas falem? - perguntou Thomas intrigado.

 

- Se ele vos vir - explicou o padre - não vos conhece. Depois, se lhe falardes, reconhece-vos - encolheu de novo os ombros. - É estranho, não é verdade? - Bebeu o resto da caneca. - Que fareis então?

 

- Que deseja Sir Guillaume que eu faça?

 

- Quer-vos perto para o caso de precisar de fugir, mas escreveu uma carta ao rei, explicando o que aconteceu na batalha. Enviei a carta para Paris. Sir Guillaume pensa que o rei poderá ceder, de modo que aguarda uma resposta. Mas e eu? Penso que Sir Guillaume está como este ganso. Depenado e cozinhado.

 

- Disse alguma coisa acerca da filha?

 

- Da filha? - o padre Pascal ficou intrigado. - Oh! A filha bastarda? Jisse que vós havíeis de matar quem quer que a tivesse matado.

 

- É o que farei.

 

- E que deseja a vossa ajuda.

 

- Pode contar com ela - disse Thomas. - E partiremos amanhã. Olhou para Robbie. - Vamos voltar para a guerra.

 

- Por quem vou eu lutar?

 

- Por mim - Thomas sorriu.

 

Thomas, Robbie e o padre partiram na manhã seguinte. Thomas levou uma muda de roupa, uma bolsa cheia de flechas, o seu arco, a espada e a cota de malha e, embrulhado em pele de veado, o livro do pai que mais parecia uma pesada parte da bagagem. Na verdade, era mais leve do que um molho de flechas, porém a sua responsabilidade implicava uma carga adicional para a consciência de Thomas. Disse para consigo que partia meramente para ajudar Sir Guillaume, porém, sabia que ia continuar a busca do segredo do pai.

Dois dos vassalos de Sir Giles cavalgaram com eles para trazerem de volta a égua que transportava o padre Pascal e os dois corcéis que Sir Giles (comprara a Thomas e a Robbie.

 

- Não quereis levá-los no barco - declarou Sir Giles. - Os cavalos não se dão bem nas embarcações.

 

- Pagou-nos demasiado - declarou Robbie, enquanto se afastavam.

 

- Não quer que o genro fique com o dinheiro - disse Thomas. - Além do mais, é um homem generoso. Deu a Mary Gooden mais três libras para o dote. Eis um homem de sorte.

 

Qualquer coisa no tom de Thomas chamou a atenção de Robbie.

 

- Ele? Quereis dizer que ela arranjou um marido?

 

- É bom rapaz. Um colmador de Toldpuddle. Casam para a semana.

 

- Para a semana! - Robbie parecia ofendido por a rapariga ir casar. Apesar de ser ele a abandoná-la, sentia o orgulho ferido.

 

- Mas porque haveria de casar com ela? - perguntou algum tempo depois. - Ou não sabe que ela está grávida?

 

- Pensa que o filho é dele - disse Thomas, mantendo-se sério. - E, segundo ouvi dizer, é bem possível que seja.

 

- Jesus! - Robbie soltou uma imprecação ao perceber e depois voltou-se para olhar de novo a estrada que ficava para trás e sorriu, recordando-se dos bons tempos. - É um bom homem - disse a respeito de Sir Giles.

 

- Um homem solitário - respondeu Thomas. Sir Giles não queria que partissem, mas aceitara o inevitável.

 

Robbie farejou o ar.

 

- Vai nevar outra vez.

 

- Nem pensar! - Era uma manhã de sol radioso. Havia açafrão e acónito a aparecer nos locais abrigados e nas sebes chilreavam tentilhões e melros. Mas Robbie sentira de facto o cheiro da neve. À medida que o dia avançava, o céu tornava-se mais pesado e cinzento, o vento passou a soprar de leste, açoitando-lhes o rosto com uma nova frieza e logo a seguir nevou. Abrigaram-se na casa de um guarda-florestal, no bosque, juntamente com o marido e a mulher, cinco filhas e três filhos. As vacas tinham um estábulo num extremo da casa e quatro cabras estavam guardadas noutro. O padre Pascal confiou a Thomas que aquela casa era muito parecida com aquela em que tinha crescido, mas gostaria de saber se as convenções em Inglaterra eram as mesmas que em Limousin.

 

- Convenções? - perguntou Thomas.

 

- Na nossa casa - explicou o padre Pascal, corando - as mulheres urinavam com as vacas e os homens com as cabras. Não gostaria de fazer o que não é correcto.

 

- Passa-se o mesmo aqui - garantiu-lhe Thomas.

 

O padre Pascal mostrou-se um bom companheiro de viagem. Tinha uma bela voz para cantar, e após terem partilhado os alimentos com o guarda-florestal e a família o padre entoou algumas canções francesas. Depois, como a neve continuasse a cair e o fumo da lareira rodopiasse por baixo do colmo, sentou-se a conversar com Thomas. Fora o padre da aldeia em Evecque e, quando o conde de Coutances atacou, encontrara refúgio no solar.

 

- Mas não gosto de estar engaiolado - disse, e fora por isso que se oferecera para levar a mensagem de Sir Guillaume a Inglaterra. Escapara de Evecque, atirando, em primeiro lugar, as suas roupas por cima do fosso e depois nadando atrás delas. - Estava tanto frio. Nunca tinha tido tanto frio! Disse para comigo que era melhor ter frio do que estar no inferno, mas não sei. É terrível.

 

- Que quer Sir Guillaume que façamos? - perguntou-lhe Thomas.

 

- Não disse. Talvez, se os sitiantes pudessem ser desencorajados...? - encolheu os ombros. - O Inverno não é bom tempo para um cerco, julgo eu. Dentro de Evecque têm conforto, calor, a colheita armazenada, mas os sitiantes? Estão molhados e têm frio. Se ficassem ainda menos confortáveis, quem sabe? Talvez abandonassem o cerco.

 

- E vós? Que fareis?

 

- Nada tenho a fazer em Evecque - disse o padre. Sir Guillaume fora declarado traidor e os seus bens penhorados, de modo que os seus servos tinham sido retirados das terras do conde de Coutances, enquanto os trabalhadores, saqueados e violados pelos sitiantes, tinham quase todos fugido.

- Talvez vá para Paris. Não posso ir ter com o bispo de Caen.

 

- Porque não?

 

- Porque ele enviou homens para ajudar o conde de Coutances - o padre Pascal abanou a cabeça num espanto triste. - Os ingleses empobreceram o bispo este Verão - explicou. - Por isso, precisa de dinheiro, terra e bens e espera conseguir alguma coisa de Evecque. Em grande parte é a ganância que provoca a guerra.

 

- Mesmo assim, estais do lado de Sir Guillaume? O padre Pascal encolheu os ombros.

 

- É bom homem. Mas e então? Tenho de seguir para Paris para poder ascender na carreira eclesiástica. Ou talvez para Dijon. Tenho lá um primo.

 

Com algum esforço, nos dois dias seguintes, dirigiram-se para oriente atravessando as mortas charnecas de New Forest, sob uma macia camada branca. De noite, as luzinhas das aldeias da floresta cintilavam ao frio. Thomas receava que chegassem à Normandia demasiado tarde para prestarem auxílio a Sir Guillaume, mas essa dúvida não era razão suficiente para abandonar o esforço e por isso continuaram. As últimas milhas até Southampton obrigaram-nos a atravessar uma pastosa combinação de lama e neve e Thomas perguntou a si próprio como haveriam de chegar à Normandia que era uma província inimiga. Duvidava que algum navio partisse para lá de Southampton, pois qualquer barco inglês que se aproximasse da costa da Normandia arriscava-se a ser abordado pelos piratas. Sabia que muitos barcos estariam prestes a partir para a Bretanha, que ficava muito distante de Caen.

 

- Atravessaremos as ilhas, claro - disse o padre Pascal. Passaram uma noite numa taberna e, na manhã seguinte, arranjaram lugar no Ursula, um pesqueiro com destino a Guernsey e que levava barricas de carne de porco salgada, barris de pregos, barras de ferro, potes acondicionados em serradura, fardos de lã, molhos de flechas e três grades de chifres de gado. Transportava também uma dúzia de arqueiros que viajava para a guarnição do ancoradouro de St. Peter Port. Se viesse de oeste um vento desfavorável, disse-lhes o capitão do Ursula, uma dúzia de navios que transportava vinho da Gasconha para Inglaterra poderia ser empurrada pelo canal acima e St. Peter Port seria um dos últimos portos de abrigo. Os marinheiros franceses também o saberiam e, mesmo com mau tempo, os seus navios ficariam ao largo da ilha tentando conseguir alguma pilhagem.

 

- Quer dizer que estão à nossa espera? - perguntou Thomas. A ilha de Wight passava à popa e o navio mergulhava num mar cinzento de Inverno.

 

- À nossa espera não, não estarão. Conhecem o Ursula. - O capitão, um homem sem dentes com um rosto horrivelmente marcado pelas bexigas, sorriu. - Conhecem-no e adoram-no.

 

Aquilo queria dizer que, provavelmente, teria pago os seus direitos aos homens de Cherburgo e Carteret. Porém, não os tinha pago a Neptuno nem a qualquer outro espírito que governasse o mar de Inverno, embora afirmasse ter um conhecimento prévio de ventos e ondas e afirmado que ambos estariam calmos, o Ursula rolou como um sino numa trave, para cima e para baixo, subindo e descendo tanto, que a carga deslizava no porão com um ruído trovejante; o céu da tarde ficou cinzento como a morte, quando o granizo começou a espumar sobre a água dilacerada. O capitão, agarrado ao leme, com um sorriso nos lábios, dizia que aquilo não passava de uma pequena brisa, que não deveria preocupar qualquer bom cristão, porém, outros marinheiros na tripulação tocavam no crucifixo pregado no único mastro ou então baixavam as cabeças rezando num pequeno oratório no convés de ré, onde uma imagem de madeira nua estava envolvida em fitas coloridas. Supostamente, a imagem pertencia a Santa Ursula, padroeira dos navios e o próprio Thomas lhe murmurou uma prece acocorado num pequeno espaço sob o convés, aí se abrigando ostensivamente com os outros passageiros; porém, a união das traves que tinham por cima das cabeças vertiam, deixando passar continuamente uma mistura de água da chuva e do mar. Três arqueiros estavam enjoados e até Thomas que já antes atravessara duas vezes o canal da Mancha, fora criado num meio de pescadores e passado dias a bordo dos seus barquitos, se sentia enjoado. Robbie que nunca estivera no mar parecia alegre e interessado em tudo o que se passava a bordo.

 

- É por causa da forma dos navios - gritou sobre o ruído. - Rolam.

 

- Percebeis de navios, não é verdade? - perguntou-lhe Thomas.

 

- Parece óbvio - respondeu Robbie.

 

Thomas tentou dormir. Enrolou-se na sua capa húmida e deixou-se ficar o mais sossegado que os balanços do barco lho permitiam e, espantosamente, adormeceu. Acordou uma dúzia de vezes nessa noite, de cada uma delas perguntava a si próprio onde estava e, quando se recordava, interrogava-se se aquela noite alguma vez acabaria ou se alguma vez voltaria a sentir calor.

 

A manhã estava de um cinzento doentio e o frio mordia os ossos de Thomas, mas a tripulação estava muito mais satisfeita porque o vento tinha caído e o mar apenas se mostrava de mau humor, com as longas vagas riscadas de espuma que se erguiam e caíam lentamente, sobre um perigoso grupo de rochas, talvez o lar de uma miríade de aves marinhas. Era a única terra à vista.

 

O capitão veio para junto de Thomas a coxear pelo convés.

 

- ”Os Caixões” - disse apontando para os rochedos. - Muitas viúvas se fizeram já sobre eles - fez o sinal da cruz, cuspiu sobre a amurada para afastar o azar e depois olhou para o céu, para uma abertura cada vez maior nas nuvens. - Vamos ter bom tempo - disse. - Graças a Deus e a Santa Ursula

- olhou de lado para Thomas. - Então, o que vos traz às ilhas?

 

Thomas pensou em inventar uma desculpa, talvez algo acerca da família, mas depois pensou que a verdade poderia ser bem mais interessante.

 

- Queremos ir para a Normandia - disse.

 

- Não gostam muito de ingleses na Normandia, pelo menos desde que o nosso rei lá esteve de visita no ano passado.

 

- Estive lá.

 

- Então sabeis porque não gostam de nós.

 

Thomas sabia que o capitão tinha razão. Os ingleses tinham matado milhares em Caen, depois tinham deitado fogo a quintas, moinhos e aldeias numa enorme faixa de terra para leste e para norte. Era um modo cruel de empreender a guerra, mas poderia persuadir o inimigo a sair dos seus bastiões e a travar a batalha. Sem dúvida, era por isso que o conde de Coutances assolava as terras de Evecque, na esperança que Sir Guillaume saísse das suas muralhas de pedra para as defender. Mas Sir Guillaume tinha apenas nove homens e não podia enfrentar o conde numa batalha aberta.

 

- Temos assuntos a tratar em Caen - admitiu Thomas. - Se lá conseguirmos chegar.

 

O capitão meteu o dedo numa narina e depois lançou qualquer coisa ao mar.

 

- Procurai os Troy Frairs - disse.

 

- Os quê?

 

- Troy Frairs - repetiu. - É um barco que tem esse nome. É francês. Não é grande, pouco maior do que esta pequena banheira - apontou para um pequeno barco de pesca, com o casco pintado de negro, do qual dois homens lançavam redes para as ondas junto dos Caixões. - É um homem chamado Peter, o Feio, que comanda o Troy Frairs e pode levar-vos a Caen ou talvez a Carteret ou a Cherburgo. Não digais que fui eu que vo-lo disse.

 

- Claro que não - disse Thomas, supondo que o capitão queria dizer que Peter, o Feio, comandava um barco chamado Lês Trois Frères. Olhou para a embarcação pesqueira e interrogou-se sobre que vida seria preciso levar para tirar o sustento daquele mar encapelado. Sem dúvida seria mais fácil fazer contrabando de lã para a Normandia e trazer de lá vinho para as ilhas.

 

                                                                                CONTINUA 

 

                      

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